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CATALINA / Somerset Maugham
CATALINA / Somerset Maugham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Catalina - o cenário desta história é a Espanha do reinado de Filipe III, a trágica Espanha da Inquisição.
Catalina, jovem de dezasseis anos, aleijada de uma perna, está orando ardentemente pela sua cura quando lhe aparece a Virgem Maria.
Qual dos três filhos de Valero melhor servia a Deus? Em páginas repletas de emoção, o leitor verá quem, afinal, realiza o milagre, assim como assistirá a todo o restante e apaixonante entrecho deste romance cheio de contrastes humanos.

 

 

 


 

 

 


I.

Era um grande dia para a cidade de Castel Rodríguez. Já ao amanhecer os habitantes estavam de pé, com as suas melhores roupas. Nos balcões dos velhos e severos palácios dos nobres ostemtavam-se ricos estofos e os galhardetes batiam indolentemente de encontro às hastes. Era a festa da Assunção, dia 15 de Agosro, e o sol escaldava num céu sem nuvens. Sentia-se um alvoroço no ar, pois nesse dia, após muitos anos de ausência,, chegavam duas pessoas eminemtes, naturais da cidade, e grandes festividades tinham sido preparadas em sua honra. Uma delas era Frei Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, e a outra seu irmão Don Manuel, capitão de nomeada nas forças d'El-Rei. Haverá um "Te Deum" na colegiada, banquete na municipalidade, touradas e fogo preso quando anoitecesse. À medida que se adiantava a manhã, um número cada vez maior de pessoas tomava o caminho da Plaza Mayor. Formou-se ali o cortejo que ia esperar os ilustres viajantes a certa distância da cidade. Encabeçavam-no as autoridades civis, vindo
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depois os dignitários da Igreja e, por fim, uma série de pessoas gradas. A multidão abriu alas nas ruas para vê-los passar,, depois colocou-se em ordem para esperar a emtrada dos dois irmãos na cidade, seguidos desses importamtes personagens, no momento em que os sinos de todas as igrejas se punham a repicar em sinal de boas-vindas.
Na capela da Virgem da igreja anexa ao convento das freiras carmelitas, uma jovem aleijada estava a rezar. Fazia-o com devoção apaixonada, diante da imagem da Santíssima Virgem. Ao erguer-se, afinal, ajeitou melhor a muleta debaixo do braço e saiu da igreja. Lá dentro estava fresco e escuro, e aquela claridade súbita do dia quente e abafado ofuscou-a por um momento. Deteve-se a olhar a praça vazia, em baixo. As casas tinham os postigos fechados para não deixar entrar o calor. Reinava ali um grande silêncio. Todos tinham ido ver os festejos e não ficara um cão sem dono para latir. Dir-se-ia uma cidade morta. A jovem olhou para a sua própria casa, um pequeno prédio de dois andares comprimido entre os seus vizinhos, e suspirou desalentada. A sua mãe e seu tío Domingo, que vivia com elas, tinham ido com os demais e só voltavam depois das touradas. Sentia-se muito só e muito infeliz. Como não tivesse ânimo de ir para casa, sentou-se no último degrau da escadaria que descia da porta da igreja à praça e largou a muleta no chão. Pôs-se a chorar. De repente, assoberbada pela mágoa, prostrou-se no patamar de pedra e, mergulhando o rosto nos braços, soluçou como se o seu coração estivesse a ponto de despedaçar-se. O seu movimento brusco dera um impulso à muleta, que caiu com ruído pelos degraus estreitos e íngremes, até em baixo. Era o cúmulo do infortúnio: teria que descer de rastos ou deixar-se escorregar pela escada a fim de ir buscá-la, já que a sua perna paralítica não lhe permitia caminhar sem a muleta. Chorou desconsoladamemte.
De súbito ouviu uma voz.
- Porque choras, minha filha?
Virou-se surpreendida, pois não ouvira ninguém aproximar-se. Viu uma mulher em pé atrás de si. Parecia ter saído da igreja, mas ela própria o fizera naquele momento e lá dento não estava ninguém. A mulher vestia um longo mamto azul, que lhe ia até aos pés, e enquanto Catalina a olhava, afastou o capuz que lhe cobria a cabeça. Devia ter saído da igreja, com efeito, pois para as mulheres era um pecado entrar na casa do Senhor com a cabeça descobertta. Era bastante alta para uma espanhola e moça, tendo a pele do rosto suave e macia, sem rugas por baixo dos olhos escuros. Usava um penteado muito simples, com o cabelo repartido no meio e apanhado num coque frouxo sobre a nuca. Possuía feições pequenas, delicadas, e um olhar bondoso. A jovem paralítica não saberia dizer se se tratava de uma camponesa - esposa, talvez, de algum chacareiro das imediações - ou de uma dama. Tinha certa singeleza de aspecto, e ao mesmo tempo uma dignidade um tanto intimidativa. O comprido manto escondia-lhe as roupas, mas quando ela tirou o capuz a rapariga vislumbrou qualquer coisa branca e deduziu que tal devia ser a cor do seu vestido.
- Enxuga as lágrimas, minha filha, e dize-me o teu nome.
- Catalina.
- Por que vens sentar-te aqui sozinha, a chorar, quando toda a gente foi ver a recepção do bispo e de seu mano, o capitão?
- Sou aleijada e não posso ir longe, senhora. Além disso, que iria fazer no meio de toda essa gente sã e feliz?
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A desconhecida estava atrás de Catalina e esta tivera de virar-se para lhe falar. Relanceou os olhos para a porta da igreja.
- De onde veio, Senhora? Não a vi na igreja.
A desconhecida sorriu. Era um sorriso tão meigo que todo o amargor pareceu dissipar-se no coração da rapariga.
- Pois eu vi-te, minha filha:. Estavas a rezar.
- Estava pedindo à Virgem que me curasse, como venho fazendo noite, e dia desde que fiquei inválida.
- E pensas que ela tem o poder de fazê-lo?
- Se ela quiser...
A senhora tinha uns modos tão doces e tão afectuosos que Catalina sentiu-se impelida a contarnlhe a sua triste história. Aquilo sucedera quando estavam trazendo os novilhos para as touradas da Páscoa e toda a população da cidade se reunira para vê-los chegar, sob a orientação segura dos dois padrinhos. À frente ia um grupo de jovens fidalgos, cujos cavalos curveteavam. De repente, um dos animais escapou-se e enveredou por uma viela. Formou-se um pânico e a multidão espalhou-se para todos os lados. Um homem foi atropelado pelo touro-, que tornou a investir para a frente. Catalina, que corria tão depressa quanto podia, escorregou e caiu no momento em que o amimal ia alcançá-la. Soltou um grito e perdeu os sentidos. Ao voltar a si, disseram-lhe que o touro a tinha pisado na sua doida arremetida, mas continuara a correr impetuosamente. Ela sofrera contusões mas não fora ferida. Disseram-lhe que havia de sarar em pouco tempo, mas um ou dois dias depois, Catalina queixou-se de não poder mexer a perna. Os médicos examinaram o membro e encontraram-no paralisado. Picaram-no com agulhas: Catalina não sentia nada. Sangraram-na, purgaram-na e deram-lhe poções nauseabundas para tomar, mas tudo foi inútil. A perna estava como morta.
- Mas ainda tens o uso das mãos - disse a senhora...
- Graças a Deus, pois se não fosse isso nós morríamos de fome. A senhora perguntou-me porque estava eu a chorar. Eu choro porque, com o uso da perna, perdi também a afeição do meu amado.
- Ele não te podia ter grande amor, se te abandonou na tua desgraça.
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- Amava-me de todo o coração, e eu amo-o mais do que à minha própria alma. Mas nós somos pobres, senhora. Ele é Diego Martínez, o filho do alfaiate, e segue a profissão do pai. Íamos casar quando ele tivesse terminado o aprendizado, mas um homem pobre não pode dar-se ao luxo de desposar uma mulher incapaz de fazer frente às outras mulheres no mercado ou de subir e descer as escadas para dar conta dos trabalhos caseiros. Depois, os homens são sempre homens. Um homem não pode querer uma mulher aleijada. Pedro Álvarez ofereceu-lhe a sua filha Francisca. É feia como o pecado, mas Pedro Álvarez é rico, e assim como poderia ele recusar?
Catalina pôs-se de novo a chorar. A dama considerou-a com um sorriso de compaixão. De repente, ouviu-se ao longe um rufar de tambores e um clangor de trombetas e todos os sinos se puseram a badalar simultaneamente.
- Entraram na cidade: o bispo e seu irmão, o capitão - disse Catalina. - Como se explica, que esteja aqui em lugar de ir vê-los passar, senhora?
- Não me deu vontade de ir.
Isto pareceu tão esquisito a Catalina que lançou um olhar desconfiado à desconhecida.
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- Não mora na cidade, senhora?
- Não.
- Estranhei não a ter visto antes. Creio que não há aqui ninguém a quem eu não conheça:, pelo menos de vista.
A dama não respondeu. Catalina ficou intrigada e olhou-a com mais atenção por baixo dos cílios. Não era crível que fosse moura, pois não tinha a pele bastante escura para isso, mas era bem possível que pertencesse aos cristãos-novos, isto é, a esses judeus que tinham preferido o baptismo à expulsão do país. Mas, como todos sabiam, continuavam a observar em segredo os ritos judaicos, lavando as mãos antes e depois das refeições, jejuando no Dia da Expiação e comendo carne às sextas-feiras. A Inquisição não dormia e, quer se tratasse de mouros baptizados ou de judeus conversos, era perigoso ter quaisquer relações com eles. Havia sempre o risco de caírem nas mãos do Santo Ofício e, submetidos à tortura, incriminarem inocentes. catalina perguntou consigo, ansiosa, se não teria dito alguma coisa que pudesse motivar uma acusação, pois na Espanha daqueles tempos toda a gente vivia no terror do Santo Ofício e uma palavra impensada, um gracejo, podiam constituir motivo suficiente para a prisão, e uma vez no cárcere passavam-se semanas, meses e até anos antes que se conseguisse provar a sua inocência. Catalina achou bom afastar-se dali o quanto antes.
- São horas de ir para casa, senhora - disse ela; e, com a polidez que lhe era natural, acrescentou: - Assim, se me permite, vou deixá-la.
Relanceou os olhos para a muleta, que caíra lá em baixo. Teria a coragem de pedir à senhora que a fosse buscar? Mas esta não prestou atenção no que ela dissera.
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- Não gostaria de recobrar o uso das suas pernas, minha filha,, para poder andar e correr como se nunca houvesse estado doente? - perguntou ela.
Catalina ficou branca. Essa pergunta deixava patente a verdade. A desconhecida não era cristã-nova e sim uma moura, pois ninguém ignorava que os mouros, cristãos apenas no nome, tinham pacto com o demónio e por meio das artes mágicas podiam obrar toda a sorte de malefícios. Não fazia muito que uma pestilência assolara a cidade, e os mouros, acusados de serem os seus causamtes, confessaram-se culpados no cavalete e acabaram morrendo na fogueira. Catalina sentiu tamanho terror que ficou impossibilitada por um momento de falar.
- Então, minha filha?
- Eu daria tudo que tenho no mundo - e não é nada - para me ver livre da minha enfermidade, mas ainda que fosse para recuperar o amor do meu Diego não faria nada que pusesse em perigo a minha alma Imortal ou que constituísse uma ofensa à Santa Madre Igreja.
E, enquanto falava, persignou-se sem tirar os olhos da desconhecida.
- Então eu te direi como podes curar-te. O filho de Juan Suárez de Vataro que melhor tem servido a Deus tem o poder de fazê-lo. Ele te imporá as mãos em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, mandar-te-á atirar fora a muleta e andar. E tu atirarás fora a muleta e andarás.
Não era isto, em absoluto, o que Catalina esperava. O que a senhora dizia era surpreendente, mas falava com tanta calma e segurança que a moça ficou impressionada. Duvidando e esperando ao mesmo tempo, encarava fixamente a misteriosa desconhecida. Necessitava de um momento para tornar a si
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do seu espanto, antes de fazer as perguntas que já iam tomando forma no seu espírito. Mas de súbito os olhos de Catalina quase lhe saltaram das órbitas e a sua boca escancarou-se de assombro, pois no lugar onde estava a senhora já não se via mais nada. Não podia ter entrado na igreja, porquanto Catalina não tirara os olhos dela., nem podia ter-se movido: desvanecera-se no ar, simplesmente. A jovem soltou um grande grito e novas lágrimas, mais lágrimas de outra espécie, correram-lhe em torrente pelas faces.
- Era a Santíssima Virgem! - gritou. - Era a Rainha dos Céus, e eu falei-lhe como teria falado a minha mãe. Era Maria Santíssima, e eu tomei-a por uma moura ou uma judia conversa!
Tal era a sua emoção que sentiu a necessidade urgente de contar aquilo a alguém. Sem reflectir, deixou-se escorregar sobre as costas pela escada abaixo, ajudando-se com as mãos, até alcançar a muleta. Voltou então para casa, mas somente ao chegar à porta se lembrou de que ninguém estava lá. Apesar disso entrou e, como sentisse fome, arranjou um pedaço de pão e algumas azeitonas e tomou um copo de vinho. Este deu-lhe sono, mas continuou sentada, resolvida a não dormir enquanto não chegassem sua mãe e seu tio Domingo. Mal podia esperar para lhes contar a sua história maravilhosa. Foram-se-lhe, porém, cerrando as pálpebras e dentro em pouco dormia profundamente.

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II.

Era Catalina uma linda moça. Tinha dezasseis anos, era alta para a sua idade, já com o busto bem desenvolvido, mãos e pés pequeninos, e antes do acidente caminhava com uma graça sinuosa que encantava todos quantos a olhavam. Tinha olhos grandes e escuros em que brilhava o ardor da mocidade, cabelos pretos que se encrespavam naturalmente e tão compridos que podia sentar-se neles, pele morena e suave, faces de um rosado tépido, lábios vermelhos e húmidos. Quando ria ou sorria - o que era frequente antes do seu infortúnio - mostrava os dentes, parelhos, pequenos e alvíssimos. O seu nome completo era Maria de los Dólares Catalina Orta y Pérez. Seu pai, Pedro Orta, fora fazer fortuna nas Américas pouco depois de nascer Catalina, e desde então não tinham notícias dele. Sua esposa, Maria Pérez por nascimento,, ignorava se ele estava vivo ou morto, mas ainda tinha esperança de vê-lo regressar um dia com uma arca repleta de ouro, enriquecendo-os a todos. Era uma mulher devota e todas as manhãs, à missa, fazia uma oração pela segurança do marido. Enfurecia-se com o mano Domingo quando este lhe dizia que, se Pedro não morrera havia muito tempo, devia estar vivendo com alguma índia ou quem sabe se duas ou três, e não tinha a menor intenção de abandonar os filhos mestiços que indubitavelmente tinha por lá, para voltar à companhia de uma esposa que já perdera a beleza e a mocidade.
Tio Domingo era uma terrível provação para a sua virtuosa mana,, mas esta queria-lhe bem, em parte porque tal era o seu dever de cristã mas também porque, apesar dos seus graves defeitos, Domingo era um homem estimável e ela não podia
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deixar de amá-lo. Não o esquecia também nas suas orações e compraziam em acreditar que era em virtude da eficácia destas, e não por estar envelhecendo, que ele abandonara! ao menos os seus piores costumes. Domingo Pérez fora destinado ao sacerdócio e no seminário de Akallá de Henares, para onde o mandou o pai, tomou as ordens menores e recebeu a tonsura. Um de seus condiscípulos fora Blasco Suárez de Valero, o bispo de Segóvia, cuja chegada os habitantes da cidade estavam festejando naquele dia. Maria Pérez suspirava ao pensar nos destinos tão diferentes que os dois tinham tomado. Domingo era um estrabulega. Desde o começo envolveu-se em complicações no seminário devido ao seu génio teimoso, turbulento e dissipador, e nem as advertências, nem os castigos nem as pancadas conseguiam domá-lo. Já nesse tempo gostava da pinga e quando bebia de mais entoava canções obscenas que ofendiam os seus colegas de seminário e os professores, os quais tinham por missão incutir a honestidade e o decoro naqueles jovens espíritos. Ainda não tinha feito vinte anos, quando deixou grávida uma escrava moura e, ao perceber que a sua má acção seria divulgada, fugiu e ingressou num grupo de actores ambulantes. Vagueou com eles durante dois anos pelo país e ao fim desse tempo apareceu de repente em casa do pai.
Declarou-se arrependido dos seus pecados e prometeu emendar-se. Era evidente que a Providência não o talhara para o sacerdócio. Disse ao pai que, se este lhe desse o dinheiro necessário para não morrer de fome, iria estudar leis numa universidade. O pai estava ansioso por acreditar que o seu filho havia assentado o juízo e como, na verdade, Domingo voltou reduzido a pele e ossos, a existência que levara não parecia ter sido muito fácil e o velho Pérez deixou-se persuadir. Domingo foi para Salamanca, onde ficou oito anos, mas fez os seus estudos de maneira muito irregular. A magra mesada que recebia do pai obrigava-o a viver numa casa de pensão com vários outros estudantes e a comida era o quanto bastava para não morrer de inanição. Posteriormente, costumava divertir os seus companheiros de pândega, nas tabernas que frequentava, com anedotas sobre os horrores do estabelecimento e as astúcias a que tinham de recorrer para completar o mísero passadio. Mas a pobreza não impedia que Domingo gozasse a vida. Tinha uma língua desenvolta, modos encantadores e cantava bem, de forma que era bem recebido em todas as festas. Talvez os dois anos passados com a troupe ambulante não lhe tivessem ensinado a ser bom actor, mas ensinaram-lhe outras coisas que lhe prestavam serviço agora. Aprendera a ganhar às cartas e aos dados,, e quando aparecia na universidade algum jovem rico, Domingo não tardava a travar conhecimento com ele. Constituía-se em seu guia e mentor no tocante aos costumes da cidade e era raro que o recém-vindo não tivesse de pagar bom -preço pela experiência adquirida. era Domingo nessa época um rapaz bem apessoado e de vez em quando tinha a sorte de provocar a paixão de alguma mulher dada às aventuras amorosas. Não estavam elas no viço da mocidade mas eram pessoas abastadas e Domingo achava justo que provissem às suas necessidades em troca dos serviços que lhes prestava.
O período que passara como actor -ambulante inspirara-lhe o desejo de escrever peças de teatro e todas as horas vagas que lhe deixavam os seus divertimentos, ele dedicava-se a essa ocupação. Tinha considerável facilidade e, além de escrever algumas comédias, compunha amiúde um soneto ao objecto das suas lucrativas atenções e fazia versos em honra de alguma
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pessoa grada, a quem os enviava com a esperamça de receber uma recompensa em metal sonante. Foi esse seu dom de rimar que acabou por levá-lo à mina. O reitor da universidade provocara a cólera dos estudantes com uma pnescrição qualquer e, ao encontrarem numa mesa de taberna uns versos indecentes e injuriosos a seu respeito, encheram-se de regozijo. Dentro em pouco andavam cópias de mão em mão. Correu o boato de que o autor era Domingo Pérez e, conquanto este o negasse, fê-lo com tal complacência que era o mesmo que admiti-lo. Amigos serviçais chamaram a atenção do reitor para os versos, indicando-lhe ao mesmo (tempo quem os tinha escrito. Como o original houvesse desaparecido, não foi possível provar a culpa de Domingo com a sua própria letra, mas o reitor fez indagações discretas que o convenceram de que esse indivíduo dissoluto e mau estudante era o responsável pelo insulto. Tinha demasiada astúcia para formular uma acusação difícil de provar, mas, decidido a vingar-se, escolheu um método mais subtil. Não foi difícil descobrir o escândalo provocado por Domingo como seminarista em Alcalá, e a existência que ele levara durante os oito amos passados na universidade eram notoriamente desregrada. Domingo era jogador e todos sabiam que o jogo leva muitas vezes à impiedade; não faltaram testemunhas dispostas a jurar que lhe tinham ouvido proferir as mais horríveis blasfémias, e diante de duas delas ele dissera que acreditar nos Artigos de Fé era, acima de tudo, questão de boa educação. Isto por si era suficiente para justificar um inquérito do Santo Ofício. O reitor depôs nas mãos dos inquisidores as informações que tinha recebido. O Santo Ofício nunca procedia às pressas. Reunia as provas com todo o sigilo e cuidado e enquanto não
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lhe desabava o golpe na cabeça, a vítima raras vezes sabia que estava debaixo de suspeita.
Uma noite, tarde, estando Domingo deitado a dormir, o aguazil bateu-lhe à porta e prendeu-o quando ele veio abrir. Só lhe deu tempo para vestir-se e emalar a sua reduzida bagagem, junto com a roupa de cama, e conduziu-o, não à prisão - pois Domingo tinha as ordens menores e a Inquisição fazia o possível para evitar escândalos no seio da Igreja - mas a um mosteiro, onde foi encarcerado numa cela disciplinar. Deixaram-no ficar alli algumas semanas, fechado a sete chaves, sem permissão de falar a ninguém ou de ler o que quer que fosse, sem uma vela sequer para alumiar-lhe as trevas. Foi então conduzido à presença do tribunal. As coisas estariam mal paradas para ele se não fosse uma feliz circunstância. Poucos dias antes o reitor, homem vaidoso e irrascível, -tivera violenta disputa com os inquisidores sobre uma questão de precedência. Leram os versos de Domingo e riram com malicioso júbilo. Os seus delitos eram manifestos e não podiam ser relevados, mas os juízes perceberam que,, temperando a justiça com a clemência, podiam infligir ao reitor furioso uma afronta que ele sentiria fundo mas teria de tragar. Domingo reconheceu a sua culpa e declarou-se arrependido. Foi sentenciado a ouvir missa na câmara de audiência e exilado de Salamanca e seus arredores, Tinha rapado um bom susto. Achou conveniente ausentar-se da Espanha por algum tempo; foi, pois, para a Itália como soldado e passou lá alguns anos a jogar, a praguejar quando os dados ou as cartas o atraiçoavam, a fornicar e a beber. Tinha quarenta anos quando voltou à sua terra natal, tão pobre como ao deixá-la, com uma ou duas cicatrizes arranjadas
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em rixas entre bêbedos mas com numerosas recordações para emtreter-Lhe as horas vagas.
Seus pais tinham morrido e a única pessoa da família que restava era a mana Maria, abandonada pelo marido, e a sobrinha Catalina, então uma linda criança de nove anos. O marido de Maria esbanjara-lhe o dote e ela nada possuía além da casinha em que morava. Sustentava a si mesmo e à filha com hábeis e difíceis trabalhos de agulha, tecendo adornos de ouro e prata para os mantos de veludo das imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos padroeiros, as quais eram carregadas nas procissões da Semana Santa, e para as capas, casulas e estolas usadas nas cerimónias da Igreja. Na idade a que chegara, Domingo sentia-se disposto a trocar por uma existência tranquila a vida aventurosa que levara durante vinte anos e a irmã, necessitando da protecção de um homem em casa, convidou-o para morar com ela. Ao iniciar-se a nossa história, havia sete anos que ele vivia ali. Já não pesava nas despesas de Maria, pois ganhava dinheiro escrevendo cartas a pedido de pessoas iletradas, sermões para padres preguiçosos ou ignorantes que não queriam compô-los por si, e depoimentos para demandantes em juízo. Era também hábil em traçar genealogias de pessoas que desejavam atestados de sangue limpo, o que queria dizer que durante um século, ao menos, a sua ascendência não fora manchada por qualquer cruzamento com judeus ou mouros. A pequena família teria uma vida assaz remediada se Domingo pudesse livrar-se dos maus hábitos do jogo e da bebida. Também gastava dinheiro em livros, sobretudo volumes de versos e peças dramáticas, pois ao voltar da Itália recomeçara a escrever para o teatro e, embora não conseguisse fazer representar nenhuma das suas produções, contentava-se com o prazer
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de lê-las aos outros beberrões na sua taberna favorita. Ao tornar-se um homem respeitável reassumira a tonsura, uma salvaguarda em meio aos perigos da Espanha daquele tempo, e usava as vestes sóbrias que convinham a um letrado com as ordens menores.
Tomou grande afeição a Catalina, tão alegre, tão vivaz e tão bonita, e via-a transformar-se numa bela moça com uma satisfação inteiramente desinteressada. Encarregou-se da sua educação e ensinou-a a ler e escrever. Ensinou-lhe também o catecismo e assistiu à sua primeira comunhão com todo o orgulho de um pai. Quanto ao resto, porém, limitava o seu ensino a ler-lhe versos e, quando ela teve bastante idade para apreciá-las, as peças dos dramaturgos que começavam a ser tão comentados na Espanha. Mais do que a todos admirava Lope de Vega, a quem proclamava o maior génio que o mundo tinha visto, e antes do acidente que lesou a jovem, ele e Catalina costumavam representar as cenas que mais admiravam. Tinha ela uma memória viva e com o tempo chegou a saber de cor passagens inteiras. Domingo não esquecera que tinha sido actor e ensinou-a a declamar os seus versos, quando devia ser comedida e quando soltar as rédeas à paixão. Domingo tornara-se um homem magro, de movimentos desarticulados, cabelos grisalhos, rosto amarelo e cheio de rugas, mas ainda havia fogo nos seus olhos e ressonância na sua voz; e quando ele e Catalina representavam uma cena emocionante, com Maria por único auditório, Domingo já não era o valdevinos envelhecido, bêbedo e decadente, mas um brioso mancebo, um príncipe de sangue azul, um galã, um herói ou o que se quisesse. Tudo isso terminou, porém, quando Catalina foi pisada pelo touro. O choque manteve-a de cama algumas semanas, durante as
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quais os médicos da cidade empregaram todos os recursos da sua pobre ciência para devolver a vida ao membro paralisado. Afinal confessaram-se impotentes. Era um caso incurável. Diego, seu namorado, já não lhe vinha à janela de noite para lhe fazer a corte através da grade de ferro, e pouco depois sua mãe trazia para casa a notícia de que ele ia casar com a filha de Pedro Álvarez. Domingo ainda lhe lia dramas para distraí-la, mas as cartas de amor faziam-na chorar com tanta amargura que ele tinha de interromper-se.


III.

Catalina dormiu algumas horas e foi despertada afinal pelos ruídos que sua mãe fazia, lidando na cozinha. Pegou na muleta e foi lá.
- Onde está o tio Domingo? - perguntou, pois queria que ele estivesse presente para ouvir o que ela precisava contar com tanta urgência.
- Que pergunta! Está na taberna. Mas, se bem o conheço, voltara para casa à hora de jantar.
Por via de regra como toda a gente;, eles faziam a única refeição quente do dia às doze horas., mas desde a manhã não tinham comido senão um naco de pão barrado de alho, que Maria levara consigo, e ela sabia que Domingo devia estar faminto. Acendeu, pois, o fogo e tratou de preparar a sopa. Catalina não pôde esperar nem um momento mais.
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- Mãe, a Virgem Santíssima apareceu-me.
- Sim, minha querida? - volveu Maria. - Limpa e corta as cenouras para mim, por favor.
- Mas ouve, mãe! Eu vi a Virgem Santíssima, ela falou-me!
- Não sejas tola, menina. Encontrei-te dormindo quando cheguei e não te acordei. Ainda bem que tiveste um sonho bonito. Mas agora que acordaste, podes ajudar-me a preparar o jantar.
- Mas eu não sonhei, isso foi antes de eu dormir!
Referiu, então, a coisa extraordinária que lhe acontecera.
Maria Pérez fora bonita em moça mas engordara com a idade, como muitas vezes sucede às espanholas. Tinha sofrido muito: dois filhos que tivera antes de Catalina haviam morrido; aceitara isso, porém, do mesmo (modo que o abandono do marido, como uma mortificação que lhe era imposta, pois era profundamente religiosa. E, sendo ao mesmo tempo uma mulher prática que não tinha o hábito de lastimar-se inutilmente, encontrara consolação no trabalho aturado, no ofício divino e nos desvelos com a filha e com seu refractário irmão Domingo. Ouviu aterrada a história de Catalina. Era tão circunstanciada, com pormenores tão precisos, que estaria disposta a darnlhe crédito se, ao menos, não fosse incrível. A única explicação possível era que a enfermidade da pobre rapariga e a perda do namorado lhe houvessem dado volta ao juízo. Estivera a rezar dentro da igreja e depois fora sentar-se sob o sol ardente: era muitíssimo provável que qualquer coisa se tivesse desarranjado no seu cérebro e ela houvesse imaginado tudo aquilo com tamanha força que estava convencida da reailidade do acontecimento.
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- O filho de Don Juan de Valeiro que melhor tem servido a Deus é o bispo - disse Catalina ao terminar.
- Quanto a isso, não há dúvida - volveu a mãe. - Ele é um santo.
- Tio Domingo conheceu-o bem quando ambos eram jovens e pode levar-me à presença dele.
- Cala-te, menina. Deixa-me pensar.
A Igreja não via com bons olhos as pessoas que afirmavam ter-se comunicado com Jesus Cristo ou sua Mãe, e punha toda a sua autoridade em desanimar tais pretensões. Alguns anos atrás, um frade franciscano causara grande alvoroço curando enfermos por meios sobrenaturais e era tal o número de pessoas que recorriam a ele que o Santo Ofício fora obrigado a intervir. Prenderam-no e nunca mais se ouviu falar nele. Pelas conversas do convento das carmelitas, para o qual trabalhava de quando em quando, Maria Pérez tinha notícia de uma freira, que havia afirmado que Elias,, o fundador da ordem, lhe aparecera na cela e lhe conferira favores especiais. A superiora do convento mandara açoitá-la imediatamente, até ela confessar que tinha inventado a história para se dar importância. Se, portanto, frades e freiras pagavam caro tais pretensões, era mais do que provável que a Igreja olhasse com extrema severidade a história de Catalina. Maria atemorizou-se.
- Não digas nada a ninguém - aconselhou a Catalina - , nem mesmo ao tio Domingo. Falarei com ele depois do jantar e ele resolverá sobre o melhor caminho a seguir. Mas, pelo amor de Deus, limpa as cenouras, de contrário não teremos sopa hoje.
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Catalina não ficou muito satisfeita com este alvitre, mas a mãe mandou-a calar e fazer o que lhe diziam.
Pouco depois chegava Domingo. Não estava bêbedo, mas tam-pouco estava bem são, e vinha muito alegre. Gostava de ouvir o som da própria voz e, enquanto jantavam, descreveu com loquacidade a Catalina os sucessos do dia. Isso dá-nos uma boa oportunidade de expor ao leitor as razões pelas quais reinava tamanho alvoroço na cidade.


IV.

Don Juan Suárez de Valero era um cristão-velho e, ao contrário de muitas entre as mais nobres famílias espanholas, cujos filhos, antes de Fernando e Isabel terem unido os reinos de Castela e Aragão, haviam desposado herdeiros de judeus ricos e poderosos, ele podia exibir uma ascendência isenta de qualquer aliança espúria. Mas os seus antepassados eram a sua única fortuna. Possuía escassas terras a uma milha da cidade, próximo a uma povoação chamada Valero, e fora antes para se distinguir das demais famílias Suárez do que para se dar importância que ele e seus ascendentes imediatos haviam acrescentado ao seu o nome da povoação. Era muito pobre e a sua aliança com a filha de um fidalgo de Castel Rodríguez pouco contribuiu para melhorar-lhe as circunstâncias. Dona Violante deu ao seu senhor um filho anualmente, pelo espaço de dez anos, mas desses filhos somente três, todos varões, passaram
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da adolescência. Chamavam-se, respectivamente, Blasco, Manuel e Martin.
Blasco, o mais velho, desde a infância deu sinais de uma inteligência excepcional e, por sorte, também de devoção, de maneira que o destinaram para a Igreja. Na idade própria foi posto no seminário de Alcalá de Henares e a seu tempo passou à universidade. Bacharelou-se em Ciências e Letras e doutorou-se em Teologia em tão poucos anos que era evidente poder ele contar com uon futuro brilhante no clero secular. Prometiam-lhe altas distinções. Mas, de súbito, afirmando desejar viver no isolamento do mundo para poder dedicar-se inteiramente aos estudos, à prece e à meditação, ele mostrou o intuito de ingressar na ordem monástica dos dominicanos. Os seus amigos procuraram dissuadi-lo, pois a ordem era austera, com um serviço divino à meia-noite, perpétua abstinência de carne, frequentes mortificações, jejum e silêncios prolongados. Tudo foi inútil, porém, e Blasco de Valero fez-se frade. Tão manifestas eram as suas qualidades que os seus superiores não podiam desconhecê-las, e quando se descobriu que, além de uma bela presença e grande cultura, ele possuía uma voz ao mesmo tempo forte e melodiosa, assim como uma ardente eloquência, enviaram-no a pregar aqui e ali: pois o Papa Inocêncio III tinha mamdado São Domingos pregar aos hereges e desde então os dominicanos tornaram-se conhecidos como missionários e pregadores. Em certa ocasião mandaram-no à sua velha universidade de Alcalá de Henares. Gozava já de uma reputação considerável e toda a cidade correu a ouvi-lo. O sermão que pronunciou foi sensacional. Empregou todos os seus recursos para convencer a numerosa congregação da importância de conservar a fé na sua pureza e exterminar
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por completo os hereges. Em voz trovejante ordenou aos leigos, pela estima que tinham às suas almas e pelo temor aos rigores do Santo Ofício, que denunciassem tudo que lhes viesse ao conhecimento com sabor ao pecado e ao crime de heresia. Incutiu-lhes, com palavras ameaçadoras, que era dever religioso de cada um delatar o seu vizinho, o filho ao pai, a mulher ao marido, pois não havia laços naturais de afeição que pudessem absolver um filho da Igreja de conivência com um mal que era um perigo para o Estado e uma ofensa a Deus. O resultado do sermão foi satisfatório. Houve numerosas deflações e no final três cristãos-novos, contra os quais ficou provado que costumavam retirar a gordura da carne que comiam e mudar de roupa aos sábados, morreram na fogueira. Bom número de acusados foram condenados à prisão perpétua, com a comfiscação de todas as suas posses, e muitos outros açoitados ou submetidos a penas pecuniárias e outras.
A enérgica eloquência do frade produziu impressão tão funda nas autoridades universitárias que pouco depois era ele nomeado professor de Teologia. Alegou o seu pouco mérito e pediu que o dispensassem de aceitar essa posição de responsabilidade, mas os seus superiores na ordem determinaram que aceitasse e ele teve de obedecer. Desempenhou os seus deveres com crédito e as suas prelecções eram tão concorridas que, embora as fizesse no vasto salão da universidade, não havia espaço suficiente para comportar todos aqueles que desejavam ouvi-lo. A sua reputação galgou grandes alturas e ao cabo de alguns anos, com trinta e sete de idade,, fizeram-no inquisidor do Santo Ofício em Valência.
Embora continuasse sinceramente convicto da sua indignidade, aceitou o posto sem se fazer rogar. Era Valência um
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porto marítimo em que amiúde ancoravam navios estrangeiros - ingleses, holandeses ou franceses. Não raro, as suas tripulações eram protestantes e, por esse motivo, objectos muito apropriados para as actividades da Inquisição. Acresce que tentavam com frequência introduzir na Espanha livros proibidos, como bíblias traduzidas em espanhol e as obras heréticas de Erasmo. Blasco de Valeiro percebeu que podia ser muito útil ali. Além disso, havia grande número de mouros em Valência e nos arredores. Tinham sido convertidos à força, mas ninguém ignorava que a maior parte dessas conversões não iam além da superfície e eles continuavam a observar boa parte dos seus costumes mouriscos. Não comiam carne de porco, usavam em casa os trajes proibidos e negavam-se a comer animais que houvessem perecido de morte natural. Apoiada na autoridade régia, a Inquisição tinha conseguido eliminar o judaísmo, e embora os cristãos-novos pudessem ser ainda olhados com desconfiança, o Santo Ofício encontrava cada vez menos ocasiões de proceder contra eles. Mas com os mouros era diferente. Eram laboriosos e não só a agricultura do país se encontrava nas suas mãos mas também todo o comércio - pois os espanhóis eram demasiado preguiçosos, soberbos e dissipados para se dedicarem a ocupações manuais. Em consequência, os mouros tornavam-se cada vez mais ricos e, como fossem muito prolíferos, o seu número aumentava. Muita gente ponderada vaticinava o dia em que toda a riqueza do país passaria às suas mãos e o seu número excederia o da população nativa. Temia-se, como era natural, que nesse dia eles tomassem conta do poder e reduzissem à servidão os indolentes espanhóis. Tornava-se necessário livrar-se deles a qualquer custo e vários planos foram arquitectados com esse fim.
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Um desses planos era entregá-los às mãos do Santo Ofício e processá-los pelas suas notórias heresias, queimando-os em tal quantidade que os restantes se tornassem inofensivos. Outro plano, menos oneroso, consistia em deportá-los; mas o governo não desejava aumentar o poder dos mouros além do estreito de Gibraltar, acrescentando à população daquelas regiões algumas centenas de milhares de homens robustos e industriosos, de modo que alguém apresentou o engenhoso alvitre de fazê-los embarcar em velhas naus, sob pretexto de conduzi-los à África, e então pôr a pique os barcos, de modo que todos morressem afogados.
Ninguém se interessava mais por esse problema do que Frei Blasco de Valero, e talvez o mais famoso dos seus sermões durante a estada em Alcalá de Henares fosse aquele em que propunha o transporte dos mouros em massa para a Terra Nova, castrando-se previamente os machos, tanto jovens quanto velhos, de modo que em pouco acabariam todos por se extinguir. Foi esse sermão., possivelmente, que lhe valeu o alto e honroso cargo de inquisidor na importante cidade de Valência.
Frei Blasco encetou as suas novas funções com a certeza, fortificada por fervorosas preces, de que tinha diante de si a possibilidade de fazer grandes coisas em honra do Santo Ofício e pela maior glória do Senhor. Sabia que teria de fazer frente aos poderosos. Os mouros eram vassalos dos nobres, a quem pagavam tributo em dinheiro, espécie ou serviços, e aqueles tinham interesse em protegê-los. Mas o frade não levava em conta as pessoas e resolveu não permitir a ninguém,, por maior que fosse, perturbar o desempenho do seu dever. Não havia muitas semanas que estava em Valência quando o informaram de que um fidalgo poderoso, Don Hernando de Belmonte,
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duque de Terranova, impedira as autoridades do Santo Ofício de prender alguns ricos vassalos que, em desobediência à lei, usavam trajes mouriscos e tinham banheiras em casa. Mandou os seus familiares armados prender o duque, multou-o em dois mil ducados e condenou-o à reclusão perpétua num convento. Atacar, logo de início, pessoa tão altamente colocada foi um acto de audácia que infundiu terror nos mais corajosos. Ao tornar-se evidente, contudo, que o inquisidor estava decidido a exterminar os mouros, as autoridades municipais foram reunidas interceder com ele. Fizeram-lhe ver que a prosperidade da província dependia deles e que Valência iria à ruína se ele persistisse naquele intento. Mas Frei Blasco repreendeu-os asperamente e ameaçou-os com a excomunhão, forçando-os assim a submeter-se e a apresentar humildes desculpas. Mediante castigos e confiscações, logrou dentro em pouco reduzir os mouros à miséria e à desgraça. Os seus espias andavam por toda a parte e ai daquele espanhol, leigo ou eclesiástico, que desse motivo a suspeita! Como, em seus sermões, ele continuasse a incutir no povo de Valência a obrigação de denunciar todo aquele que, por gracejo ou mau humor, ignorância ou descuido, pronunciasse alguma palavra leviana, não tardou que todos os habitantes da cidade vivessem num terror perpétuo.
Mas o inquisidor era um homem justo. Tinha o cuidado de adequar a punição à falta. Por exemplo: se bem que, como teólogo, condenasse como pecado mortal as relações carnais entre pessoas não unidas pelo matrimónio, como inquisidor o facto só lhe interessava quando as pessoas envolvidas afirmassem não haver aí pecado mortal, caso em que as condenava a receber cem açoites. Por outro lado, punia apenas com 28

uma multa a asserção não menos herética de que a vida matrimonial valia tanto quanto o celibato. Era, ademais, um homem misericordioso. Não desejava a morte do herege e sim a salvação da sua alma. Certa ocasião um inglês, proprietário de um navio, foi preso e confessou pertencer à religião reformada, ante o que foi apreendida a embarcação e confiscada a carga. Submeteu-se o homem à tortura até falecerem-lhe as forças, e então permitiu-se-lhe abraçar o catolicismo. Foi com sincera satisfação que o Inquisidor pôde, assim condená-lo a apenas dez anos de galés e prisão perpétua. Podemos dar dois ou três exemplos mais do seu natural misericordioso. Após a morte de um penitente, em resultado de duzentos açoites que recebera, ele fizera questão de que o número fosse limitado a cem. Quando era necessário aplicar a tortura a uma mulher grávida o inquisidor adiava-a para depois do parto, e era antes o seu coração compassivo do que o respeito à lei que o levava a ter o maior cuidado para que a tortura não acarretasse invalidez permanente nem fractura de ossos, e se, por vezes, ocorria um acidente ou alguém morria) em resultado dos tratos, ninguém poderia lamentar mais amargamente a ocorrência.
A magistratura de Frei Blasco foi altamente bem sucedida. No decurso de dez anos celebrou trinta e sete autos-de-fé em que seiscentas pessoas se penitenciaram e mais de setenta foram queimadas vivas ou em efígie, não só prestando desse modo um serviço a Deus mas também edificando o povo. Um homem menos humilde do que ele teria considerado a última dessas solenidades como a glória suprema da sua carreira, pois ela se realizou em honra do príncipe Filipe, o herdeiro do trono. As várias cerimónias foram conduzidas com tanta propriedade e de tal modo divertiram o príncipe herdeiro que
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este fez a Frei Blasco um presente de duzentos ducados, com uma carta em que lhe dava os parabéns pelo edificante espectáculo e o exortava a continuar servindo a Deus dessa forma, para glória do Santo Ofício e proveito do Estado. Era evidente que o zelo e a piedade do inquisidor haviam produzido funda impressão nele, pois quando Filipe II morreu pouco depois e o príncipe ascendeu ao trono, nomeou-o acto contínuo bispo de Segóvia.
Ele só aceitou essa nova dignidade após uma noite inteira passada de joelhos, a contender com o Senhor, e deixou Valência entre as lamentações de grandes e pequenos. Conquistara a admiração daqueles pelo seu zelo, pela austeridade da sua vida e pela sua escrupulosa honestidade; enquanto a sua caridade fazia dele o ídolo dos pobres. Ganhava pingues emolumentos como inquisidor e a cortezia de Málaga na qual fora provido traziam-lhe benefícios consideráveis; mas ele gastava até ao último vintém em socorrer as necessidades dos pobres. A confiscação das riquezas dos hereges condenados e as multas impostas aos penitentes canailizavam elevadas quantias para os cofres do Santo Ofício e esse dinheiro servia para atender às grandes despesas da organização, mas não era raro que os inquisidores reservassem para si somas consideráveis. Até ao piedoso Torquemada acumulara desse modo uma imensa fortuna, que gastou na construção do mosteiro de S. Tomás de Aquino, em Ávila, e nos acréscimos feitos ao da Santa Cruz, em Segóvia. Mas Blasco de Valero nunca aprovou essa prática e partiu de Valência tão pobre como lá chegara.
Nunca vestiu outra coisa que não fosse o humilde hábito da sua ordem, jamais comia carne nem usava linho sobre o corpo ou nas roupas de cama,, e flagelava-se regularmente,,
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por vezes com tamanho rigor que o sangue espirrava nas paredes Tal era a sua reputação de santidade que, quando teve de adquirir um novo hábito por estar o primeiro demasiadamente gasto, muita gente pagou aos criados do bispo para lhes conseguirem fragmentos do velho hábito posto fora de uso, os quais usavam como amuletos contra a varíola e o mal venéreo. Antes da sua partida, várias pessoas influentes procuraram arrancar-lhe a promessa de lhes conceder, quando afinal aprouvesse ao Altíssimo chamá-lo a Si, o privilégio de enterrar o seu corpo na cidade em que ele levara a efeito obra tão fecunda. Estavam certos de poder exercer suficiente influência em Roma- para conseguir, senão a sua canonização, pelo menos a sua beatificação, e ter-lhe os ossos na catedral seria uma glória para a cidade. Mas o frade, adivinhando-lhes o pensamento, respondeu com severidade e não quis comprometer-se.
Foi escoltado até três milhas além das portas da cidade por uma grande comitiva de dignitários eclesiásticos, magistrados e grande número de nobres cavalheiros. Quando se despediram dele, não havia um só olho enxuto em toda aquela distinta companhia.


V.

Não é necessário estendermo-nos tanto sobre os outros filhos de Juan de Valero.
O segundo filho, Manuel, era vários anos mais novo do que Blasco e, embora não fosse tolo, não tinha nem a inteligência
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nem a operosidade do irmão. Interessava-se mais pelos desportos do campo do que pela aquisição de cultura. Fez-se um moço belo e rijo, dotado de grande força corporal e alta opinião de si mesmo. Tinha audácia, coragem e ambição. Era grande caçador e capaz de montar cavalos que outros achavam indomáveis. Desde a meninice brincava às touradas com os outros garotos do lugar, e com mais idade não perdia um ensejo de saltar para a arena, e fazer a parte do touro. Aos dezasseis anos conseguiu permissão para lutar a cavalo com um touro e, com grande admiração do público, matou o animal à primeira lançada. Havia muito que decidira abraçar a carreira das armas, pois na Espanha daquela época, a menos que se ingressasse na Igreja,, não havia outro meio de elevar-se na vida. Embora pobre, Don Juan de Valero era muito respeitado, e sucede que um dos nobres da cidade era parente afastado do grande duque de Alva. Assim um belo dia, com uma carta de recomendação na algibeira,, o jovem Manuel partiu em busca da fortuna. Encontrou o grande homem num momento favorável, pois, tendo sido desterrado da corte, achava-se ele então retido no seu castelo de Uzeda. Caiu-lhe em graça a bela aparência desse jovem que vinha solicitar o seu patrocínio quando ele havia caído em desfavor, e ao ser chamado pouco depois por Filipe II para assumir o comando do exército na guerra com Portugal, o duque levou-o na sua comitiva. Derrotou o rei Don António e expulsou-o do seu reino. Apreendeu um grande tesouro em Lisboa e deu aos seus soldados permissão de saquear a cidade e os seus arredores. Manuel portou-se com bravura na batalha e mais tarde, no saque, deitou a mão a muitos objectos de valor que prontamente converteu em dinheiro. Como, porém, Alva estivesse
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velho e não pudesse durar muito, vendo o moço ansioso por fazer progressos na carreira militar, deu-lhe cartas de apresentação para alguns dos seus antigos capitães que tinham servido com ele nos Países Baixos e se achavam então sob o comando de Alexandre Farnese.
Durante vinte anos Manuel lutou com mérito nas guerras para fazer voltar as províncias do norte ao domínio do rei de Espanha. Mostrou-se não só corajoso mas astuto e foi promovido primeiro por Alexandre Farnese e depois pelos generais que à morte deste o substituíram. Era tão inescrupuloso quanto intrépido, não menos cruel do que hábil e igualmente devoto e brutal, de forma que com o tempo veio a ser investido em comandos importantes. Não tardara a descobrir que o homem que serve o seu país nunca é recompensado pelos seus méritos, a menos que peça o que deseja. Não hesitava em fazê-lo, e como havia acumulado quantias consideráveis graças à pilhagem das cidades capturadas, à extorsão a que submetia os mercadores das localidades que administrava e à concessão de favores em troca de dinheiro, pôde finalmente consubstanciar os seus direitos de uma forma que tornava difícil deixar de reconhecê-los. Recebeu a cobiçada Ordem de Calatrava e usava com orgulho a sua fita verde. Dois anos depois foi feito conde de San Costanzo, no reino de Nápoles, com o direito de fazer o uso que lhe aprouvesse do título. Os reis de Espanha tinham o proveitoso hábito de recompensar por esse modo as pessoas merecedoras, e como estas podiam vender os títulos a plebeus ricos que desejavam enobrecer-se, a Coroa conseguia assim prover, financeiramente, sem despesa para o Tesouro, aqueles que a tinham servido bem. Mas o cavaleiro de Calatrava dera um emprego judicioso ao seu dinheiro e não necessitava
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de lançar mão desse recurso. Tinha recebido vários ferimentos, o último tão grave que só a sua vigorosa constituição lhe permitiu sobreviver. Esse ferimento dava-lhe um pretexto razoável para deixar o serviço de el-rei. Resolveu voltar para casa e unir-se pelo casamento a uma família da velha aristocracia da sua cidade natal, o que não duvidava poder fazer graças ao seu posto e à sua fortuna, e depois mudar-se para Madrid, onde empregaria a sua energia e o seu talento para a intriga em satisfazer a sua ambição desmedida. Quem sabe se, jogando bem as cartas e cultivando a amizade das pessoas que convinham,, ele não alcançaria grandes alturas? Estava com quarenta anos e era uma bela- figura de homem, com olhos pretos e ousados, bonito bigode, um ar de virilidade insolente e uma língua desembaraçada.


VI.

Quanto ao terceiro filho, Martin, necessitamos dizer ainda menos. Todas as famílias têm a sua ovelha tinhosa e a família de Juan de Valeiro não constituía excepção à regra. Martin, o mais moço dos três e o último filho que Dona Violamte dera ao marido, não possuía nem o zelo ardente graças ao qual Blasco de Valero havia alcançado a eminência na Igreja, nem a ambição e destreza que tinham trazido fama e fortuna a Don Manuel. Parecia contentar-se com o cultivo das escassas e magras terras de cujos produtos viviam seus pais. Naqueles

tempos, devido às guerras constantes e à atracção que a América exercia sobre os espíritos jovens e aventurosos, havia falta de braços na Espanha. Os mouros, inteligentes e trabalhadores, nunca tinham sido numerosos na região e por essa época a sua quase totalidade fora obrigada a abandoná-la. Martin era uma grande decepção para Don Juan, e embora a sua esposa insistisse que tinha as suas vantagens possuir um filho robusto, activo e disposto a enfrentar qualquer espécie de trabalho, ele não cessava de afligir-se.
Mas um golpe ainda maior lhe estava reservado. Aos vinte e três anos Martin casou, e fê-lo com pessoa de classe inferior. É verdade que a sua noiva era uma cristã-velha e estava convincentemente provado que pelo espaço de gerações não houvera aliança com pessoas de sangue judeu ou mouro, mas o pai era padeiro. Consuelo era filha única e herdaria todas as suas posses, mas isso não alterava o facto de ser o homem um mercador. Passaram-se alguns anos. Consuelo teve filhos. Então um novo golpe feriu Don Juan: o padeiro morreu e o velho suspirou aliviado, pois agora seria possível vender a padaria e o estigma dessa conexão com um ofício manual acabaria por se apagar. Mas nem bem o padeiro fora decentemente enterrado quando Marttin informou os pais de que pretendia mudar-se para a cidade e dirigir o estabelecimento em pessoa. Mal podiam dar crédito aos seus ouvidos. Don Juan esbravejou, Dona Violante chorou. O filho fez-lhes ver que, se tinham melhorado um pouco de vida ultimamente, era graças ao dote de Consuelo; esse dote evaporara-se; ele tinha quatro filhos e não havia razão para que não viessem outros quatro; o dinheiro andava escasso na Espanha e a venda do negócio não podia render mais que o suficiente para sustentá-lo ainda
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alguns anos, ao termo dos quais os aguardava a miséria e a fome. Levantou o ridículo argumento de que cozer pão não era mais vergonhoso do que lavrar um campo estéril ou espremer azeitonas.
Martin instalou a família por cima da padaria. Levantava-se muito antes de amanhecer para levar o pão ao forno e depois ia a cavalo à chácara, onde trabalhava até à noite. Prosperou, pois fazia bom pão, e ao cabo de um ano ou dois pôde pagar a um homem para fazer o trabalho da chácara, mas não deixava passar um dia sem ir ver os pais. Era raro que não lhes levasse alguma coisa e dentro em pouco eles puderam comer carne todos os dias permitidos pela Igreja. Estavam adiantados em anos e Don Juan não podia negar que os presentes do filho eram um conforto para a sua velhice. Se bem que houvesse causado certa surpresa na cidade o facto de ter-se o filho de Juan de Valero rebaixado daquela forma,, e os garotos lhe gritassem na rua "panadero" em tom de mofa, o seu bom génio e inconsciência de ter feito qualquer coisa fora do comum não tardaram a desarmar toda a gente. Era caridoso e nenhum pobre lhe aparecia à porta pedindo esmola sem levar um pão fresco. Era religioso, ia à missa todos os domingos e confessavam regularmente quatro vezes por ano. Ao começar a nossa narrativa era um homem forte e disposto, de trinta e quatro anos, algo corpulento, pois gostava da boa mesa e do bom vinho, com um rosto redondo e franco, uma expressão jovial e feliz.
- É óptima pessoa - diziam dele - , não muito inteligente nem muito instruído, mas bom e honesto.
Era de agradável trato, amigo de gracejar e com o correr do tempo, quando Martin passou a ter vida mais folgada,
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homens de posição respeitável vinham muitas vezes à padaria conversar com ele e o estabelecimento tornou-se mesmo uma espécie de ponto de encontro em que os amigos iam ver-se e dar dois dedos de conversa.
Era uma feliz circunstância que ele houvesse tomado a seu cargo o sustento dos pais, visto que Frei Blasco, durante os seus vinte anos de ausência, jamais lhes enviara um vintém - pois distribuía em esmolas tudo quanto tinha - enquanto Don Manuel também não mandava nada porque nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse dar melhor emprego ao seu dinheiro do que ele mesmo. Desse modo, dependiam inteiramente de Martin na velhice. Ainda se envergonhavam dele e não podiam deixar de lastimar o rumo que dera à sua vida. Era uma fonte contínua de irritação o facto de ele parecer inteiramente satisfeito com o seu estado. Tratavam-lhe a esposa plebeia com a cerimoniosa cortesia que lhes parecia exigir o respeito próprio e ganharam afeição aos netos. Mas o seu coração estava com os dois filhos que haviam trazido honra e glória ao seu antigo nome.


VII.

Não é difícil imaginar a alegria com que Don Juan e Dona Violante aguardavam o dia em que tornariam a vê-los após tão prolongada separação. O frade escrevia com raros intervalos, e como nem Don Juan nem o filho padeiro eram
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muito letrados e de qualquer modo sentiam-se incapazes de escrever com a elegância devida a um culto homem de Igreja, tinham pedido a Domingo Pérez que respondesse às cartas. E Domingo fazia-o com plena satisfação tanto dos Valeros como de si próprio, pois orgulhava-se da elegância do seu estilo. Don Manuel, por outro lado, nunca se comunicara com ele a não ser quando estava cabalando para conseguir a Ordem de Calatrava e necessitou apresentar provas da pureza da sua ascendência. Também dessa vez recorreram aos bons serviços de Domingo, que preparou uma genealogia, devidamente autenticada pelos magistrados locais, em que reportava as origens da família, sem a menor mistura de sangue judeu, a Afonso VIII, rei de Castela,, o qual desposara Eleanora, filha de Henrique II da Inglaterra.
O que motivava a vinda dos dois filhos de Don Juan não era apenas o regresso de Don Manuel após os longos anos de serviço nas guerras e a elevação de Frei Blasco à dignidade episcopal, mas também a comemoração das bodas de ouro do velho casal. Combinaram os dois irmãos encontrarem-se numa localidade situada a umas vinte milhas de Castel Rodríguez e realizar juntos a sua entrada solene na cidade. Don Juan comprazia-se em pensar que a grandiosa recepção preparada aos filhos compensaria de certo modo o longo opróbrio da degradação do pobre Martin. Estava, naturalmente, impossibilitado de receber os dois filhos e as respectivas comitivas na sua semi-arruinada granja. Ficou, pois, combinado que o bispo se hospedaria no convento dominicano, enquamto o despenseiro do duque de Castel Rodríguez, na ausência do seu amo, que estava em Madrid, oferecia aposentos a Don Manuel no palácio ducal.
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Chegou o grande dia. Os nobres da cidade puseram-se a caminho, montando os seus cavalos, enquanto os magistrados e os eclesiásticos cavalgavam mulas. Seguiam, numa carruagem que lhes emprestara uma pessoa de qualidade, Don Juan e Dona Violante acompanhados de Martin e da família deste. Pouco depois os visitantes tão ansiosamente esperados foram vistos a aproximar-se pela sinuosa e poeirenta estrada. O bispo, com o hábito dominicano, sobre o lombo de uma mula, cavalgava ao lado do irmão no seu corcel de guerra. Envergava uma maravilhosa armadura, toda marchetada de ouro. Atrás deles vinham os dois secretários do bispo, religiosos da mesma ordem, os seus criados e os do capitão, vestidos de sumptuosa libré. Após saudar os importantes personagens que os tinham vindo receber e após ouvir alguns eloquentes discursos, o bispo perguntou pelo pai e pela mãe. Estes, que se mantinham modestamente atrás dos outros, adiantaram-se então. Dona Violante ia ajoelhar-se para beijar o anel episcopal quando o bispo, com grande admiração dos espectadores, não a deixou fazer e, tomando-a nos braços, beijou-lhe ambas as faces. Ela pôs-se a chorar e muitas pessoas presentes ficaram tão tocadas com aquilo que as lágrimas lhes corriam pelas faces. Beijou ele também o pai e, enquanto os dois velhos se voltavam para o segundo filho, perguntou por Martin.
- "El panadero" - chamou alguém.
Martin avançou então por entre a multidão, com a mulher e os filhos. Todos haviam vestido as suas melhores roupas e o jovial, rubicundo e corpulento homem, tinha excelente aspecto. O bispo saudou-o afectuosamente e Don Manuel com certa condescendência, enquanto Consuelo e os pequenos ajoelhavam no chão e beijavam o anel do bispo. Este felicitou
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amavelmente o irmão pelo número e pela saudável aparência dos seus rebentos. Nas cartas que lhe escreviam, Dom Juan e Dona Violamte haviam falado do casamento do filho mais moço e participado o nascimento das crianças, mas jamais ousaram informá-lo de que Martin se fizera mercador. Observavam o encontro cheios de apreensão. Sabiam que a verdade, infalivelmente, não tardaria a vir à tona, mas estavam ansiosos por evitar qualquer ocorrência que pudesse perturbar o regozijo da ocasião. Ao cabo de muitas disputas, havia assentado quem iria à direita e quem à esquerda dos dois ilustres filhos da cidade, e embora muitos guardassem ressentimento formou-se o cortejo e a cavalgada realizou uma entrada imponente na cidade. Ao transporem as portas os sinos das igrejas puseram-se a repicar, foguetes estouraram, houve um clangor de trombetas e um rufar de tambores. As ruas estavam apinhadas de gente e foi entre vivas e palmas que eles passaram pelas ruas, a caminho da colegiada, onde se cantaria um "Te Deum".
O serviço divino foi seguido de um banquete e os anfitriões notaram que, embora fosse dia de festa da Igreja, o bispo não comia carne nem tomava vinho. Terminada a refeição ele mostrou o desejo de ficar alguns instantes a sós com as pessoas da sua família. Martin foi buscar a mãe, que se recolhera à casa do padeiro com Consuelo e as crianças. Ao voltar, encontrou o mano Blasco a sós com o pai, mas nem bem havia entrado na sala quando surgiu Don Manuel, de sobrolho franzido, os olhos negros de cólera.
- Mano - disse ele, dirigindo-se a Blasco - , tu sabes que esse Martin, filho de um nobre de antiga linhagem,, é um pasteleiro?
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Don Juan e sua esposa estremeceram, mas o bispo limitou-se a sorrir.
- Pastelleiro não, mano: padeiro.
- Quer dizer então que sabias?
- Há anos que sei. Embora os meus sagrados deveres não me permitissem dedicar a meus pais o cuidado que desejava, observava-os de longe e nunca os esquecia nas minhas orações. O prior da nossa ordem nesta cidade mamtinha-me ao par da sua situação.
- Então como consentiste que ele lançasse tamanho labéu sobre a nossa família?
- Nosso irmão Martin é um homem virtuoso e devoto. É um cidadão respeitado e caridoso para os pobres. Tem zelado pelos nossos pais na sua velhice. Não lhe posso censurar o haver tomado uma decisão que lhe era imposta pelas circunstâncias.
- Eu sou um soldado, mano, e ponho a honra acima da vida. Essa história arruinou-me os planos.
- Duvido muito.
- Como podes saber? - esbravejou Don Manuel. - Tu não conheces os meus planos.
O esboço de um sorriso clareou por um instante as feições austeras do bispo.
- Não deves ter muita experiência do mundo,, mano - respondeu ele - , se ignoras que os nossos assuntos pessoais raramente escapam à notícia dos nossos servidores. Esqueces que passámos dois dias debaixo do mesmo tecto, a caminho daqui. Chegou-me aos ouvidos que não vieste apenas cumprir um dever filial, mas também escolher uma esposa entre as famílias nobres da cidade. Apesar da profissão que nosso irmão resolveu seguir, com o título que Sua Majestade houve por bem
conceder-te e o dinheiro que ganhaste a seu serviço creio que não te será difícil alcançar o teu objectivo.
Martin ouvia tudo isso sem o menor sinal de que sentisse vergonha. O seu rosto bem-humorado tinha uma expressão de divertimento.
- Não esqueças, Manuel - disse ele - , que Domingo Pérez repontou as origens de nossa família a um rei de Castela e a um rei de Inglaterra. Isso não pode deixar de ter o seu peso junto à família a que pretendas fazer a honra de lhe desposar a filha. Domingo disse-me que um dos reis ingleses fazia bolos, de modo que talvez não haja grande ignomínia no facto de um descendente de reis fazer pão, sobretudo quando, por opinião unânime, é o melhor pão da cidade.
- Quem é esse Domingo Pérez? - perguntou o soldado, de carramca fechada.
Não era fácil responder a esta pergunta, porém Martin fez o que pôde.
- Um homem instruído e um poeta.
- Recordo-me dele - disse o bispo. - Estivemos juntos no seminário.
Don Manuel fez um gesto agastado e dirigiu-se ao pai.
- Como pôde permitir que ele nos envergonhasse assim?
- Eu não aprovei. Fiz tudo que estava no meu poder para impedi-lo.
Don Manuel voltou-se então severamente para o irmão mais novo.
- E tu ousaste contrariar o desejo de teu pai? Devia representar para ti uma ordem. Dá-me uma razão, uma só, pela qual, mandando a decência à fava, te rebaixaste fazendo-te padeiro.
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- A fome.
A palavra pareceu desabar no chão como um monte de alvenaria. Don Manuel sufocou uma exclamação de nojo e raiva. Mais uma vez, um leve sorriso tremeu nos lábios do bispo. Os próprios santos conservam certa dose de humanidade, e durante os dois dias que tinham passado jumtos Don Blasco chegara à conclusão de que não simpatizava muito com seu mano militar. Censurava-se tal coisa, mas nem toda a sua caridade cristã conseguia vencer a impressão de que Don Manuel era um indivíduo grosseiro, brutal e despótico.
Por felicidade, essa reunião de família foi interrompida pela entrada de algumas pessoas, as quais vinham avisar que estava na hora das touradas. Os dois irmãos receberam lugares de honra. A municipalidade dera-se a despesas para conseguir bons touros e o espectáculo esteve à altura da ocasião. Depois de terminado, o bispo retirou-se para o convento dominicano com os frades que o acompanhavam e Don Manuel dirigiu-se para os aposentos que lhe tinham sido reservados. O povo da cidade voltou para as suas casas ou para as tabernas, a fim de trocar impressões sobre as emocionantes ocorrências do dia, e Domingo Pérez acabou por encontrar o caminho da casa da irmã.


VIII.

Após a ceia, como de hábito, Domingo subiu para o seu quarto. Pouco depois Maria foi ter com ele. Tinha ouvido, lá em baixo, ler em voz sonora e dramática, e quando bateu
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à porta ele não respondeu. Entrou. Era um quarto pequeno e desguarnecido, que não continha mais do que um leito, um baú para a roupa, uma mesa e uma cadeira. Havia uma prateleira cheia de livros e livros espalhados na mesa, no soalho e sobre a arca. A cama estava desarrumada e Domingo atirara para ali a sua batina. Estava de calções e em mangas de camisa. Inúmeros papéis juncavam a mesa e a um canto do quarto via-se grande pilha de manuscritos. Maria suspirou ao ver aquela desordem a que jamais conseguira pôr termo. Sem tomar conhecimento da presença da irmã, ele continuou a declamar as falas de uma peça teatral.
- Quero falar contigo, Domingo - disse ela.
- Não me interrompas,, mulher. Escuta os versos gloriosos do maior génio dos -nossos tempos.
E continuou a vozear. Maria bateu com o pé.
- Larga esse livro, Domingo. Tenho uma coisa muito importante para te dizer.
- Vai-te daqui. Que coisa pode ser mais importante do que a divina inspiração dessa fénix da época, do incomparável Lope de Vega?
- Não sairei enquanto não me ouvires. Domingo atirou o livro, agastado.
- Então dize o que tens para dizer. Dize depressa e vai-te. Ela contou-lhe a história de Catalina: como a Virgem lhe
aparecera e lhe dissera que o bispo, filho de Dom Juan, tinha o poder de curá-la da sua enfermidade.
- Isso foi um sonho, minha pobre Maria - disse ele quando a irmã terminou.
- Foi o que eu lhe disse. Mas afirma que estava bem acordada. Não posso convencê-la do contrário.
Domingo ficou impressionado.
- Vou descer contigo. Quero ouvir essa história dos seus próprios lábios.
Pela segunda vez, Catalina narrou o incidente. A Domingo bastou um olhar para se convencer de que ela acreditava firmemente em cada palavra que dizia.
- Por que motivo estás tão segura de que não dormias, menina?
- Como podia eu pegar no sono àquela hora do dia? Tinha acabado de sair da igreja. Chorei, e quando cheguei a casa o meu lenço estava molhado de lágrimas: como podia enxugar os olhos enquanto dormia? Ouvi tanger os sinos quando o bispo e Don Manuel entraram na cidade. Ouvi as trombetas, os tambores e os gritos do povo.
- Não faltam ardis a Satanás para enganar os desprevenidos. A própria Madre Teresa de Jesus, a freira que fundou tantos conventos, receou por muito tempo que as suas visões fossem obras do demónio.
- Será possível a um demónio simular a doçura e a bondade de Nossa Senhora quando me falou?
- O diabo é bom actor - sorriu Domingo. - Quando Lope de Rueda se impacientava com os componentes da sua "troupe", dizia que, se o diabo quisesse trabalhar para ele, dar-lhe-ia de bom grado, em paga, todas as almas da companhia. Mas ouve, querida: nós sabemos que certas pessoas devotas receberam a graça de ver com seus próprios olhos Nosso Senhor e a Santíssima Virgem, mas receberam essa graça em recompensa de orações, jejuns, mortificações e de uma vida dedicada ao serviço do Senhor. Que fizeste tu para merecer
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um favor que só é concedido a outros ao cabo de longos anos de imolação de si mesmos?
- Nada - respondeu Catalina. - Mas sou pobre e desgraçada, implorei a Nossa Senhora que me socorresse e ela teve piedade de mim.
Domingo guardou silêncio por alguns momentos. Catalina era resoluta e voluntariosa, e ele tinha medo. A moça não fazia ideia dos perigos que corria.
- A Santa Madre Igreja não olha com indulgência as pessoas que afirmam ter comunicação com o Céu. O país está infestado de gente que pretende ter sido contemplada com privilégios sobrenaturais. Alguns são pobres criaturas iludidas que acreditam no que dizem; muitos são impostores que inventam tais coisas a fim de conquistar notoriedade ou ganhar dinheiro. O Santo Ofício persegue-os com razão, pois eles perturbam os ignorantes e muitas vezes levam-nos à heresia. A uns o Santo Ofício põe na prisão, a outros açoita, a uns manda para as galés, a outros para a fogueira, imploro-te, pelo amor que nos tens, que não divulgues nem uma só palavra do que nos contaste.
- Mas tio, querido tio, é toda a minha felicidade que está em jogo! Todos sabem que não há no reino homem mais santo do que o bispo. É coisa sabida que até os pedaços do seu hábito têm uma virtude milagrosa. Como poderei ficar calada, quando a Santíssima Mãe de Deus me disse pessoalmente que ele me pode curar deste mal que me roubou o amor do meu Diego?
- Não é só a ti que isso interessa. Se o Santo Ofício resolver fazer um inquérito, é bem possível que o meu processo seja reaberto, pois o Santo Ofício tem a memória comprida, e se nos puserem nos cárceres da Inquisição esta casa será vendida
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para pagar as despesas do nosso sustento e tua mãe ver-se-á lançada às ruas, onde terá de mendigar o seu pão. Promete-me ao menos que não dirás nada até que tenhamos tempo de reflectir.
Domingo tinha um ar de tamanha consternação, de tão profunda ansiedade, que Catalina cedeu.
- Sim, isso eu prometo.
- És uma excelente menina. Agora deixa que tua mãe te ponha na cama, pois todos nós estamos cansados de um dia tão cheio de acontecimentos.
Beijou-a e deixou as duas mulheres, a sós, mas chamou a irmã do alto da escada. Ela veio atendê-lo.
- Dá-lhe um purgante - murmurou Domingo. - Com os intestinos a funcionar bem ela mostrar-se-á mais razoável, e amanhã poderemos convencê-la de que tudo isso não passou de um sonho muito infeliz.


IX.

Mas o purgante não produziu efeito - pelo menos o efeito desejado. Catalina continuou a asseverar que tinha visto a Virgem Santíssima com os seus próprios olhos e falado com ela. Descrevia-lhe as vestes com tamanha precisão que Maria Pérez encheu-se de assombro. Ora, sucedeu que o dia seguinte era sexta-feira e Maria foi confessar-se. Havia muitos anos que tinha o mesmo confessor, o padre Vergara, e confiava tanto
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na benevolência como na prudência deste. Portanto, depois de receber a absolvição ela contou-lhe a estranha história de Catalina e repetiu-lhe grande parte do que Domingo havia dito. - Seu irmão portou-se com uma discrição e um bom-senso admiráveis, sobretudo porque tais qualidades não seriam de esperar nele. Este assunto deve ser tratado com cautela. Não devemos fazer nada às pressas. É preciso evitar o escândalo e a senhora deve ordenar à sua filha que não fale nisso a ninguém. Vou reflectir e, se necessário, consultarei o meu superior.
O confessor de Maria também o era de Catalina e conhecia a ambas tão bem como só um confessor pode conhecer as suas penitentes. Sabia-as simples, honestas, sem malícia e tementes a Deus. O próprio Domingo não lhes pudera corromper a inocência ou empanar-lhes a candura. Catalina era uma menina sensata, dona de uma cabeça sólida, e se não suportava com resignação a sua invalidez não se podia negar que a suportasse com coragem. Era ingénua de mais para ter inventado aquela história com segundas intenções. Além disso, estava convencido de que a natureza excessivamente material da jovem não era capaz de imaginar um acontecimento espiritual. O padre Vergara era dominicano e fora no seu convento que o bispo se hospedara com a sua comitiva. Homem simples e de medíocre cultura, a história da aventura de Catalina contada pela mãe desta perturbou-o de tal forma que se sentiu na obrigação de referi-la ao seu prior. Este reflectiu e chegou à conclusão de que era preciso informar o bispo; mandou, pois, um noviço perguntar-lhe se podia ouvi-los, a ele e ao padre Vergara, a respeito de um assunto que talvez fosse de importância.
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Daí a pouco o noviço voltou dizendo que o bispo teria prazer em recebê-los.
Tinham-lhe dado a cela mais espaçosa do convento. Uma dupla arcádia com um pilar de suporte separava-a em duas partes, uma das quais servia de alcova e a outra de oratório. Ao entrarem o prior e o padre Vergara, encontraram o bispo a ditar cartas a um dos seus secretários. O prior explicou a que tinham vindo e deixou que o padre Vergara repetisse ponto por ponto o que lhe dissera a sua penitente. O frade começou por expor ao bispo o quanto as duas mulheres eram honestas e devotas, a existência irrepreensível que levavam, depois descreveu o fatal acidente em consequência do qual a infeliz Catalina havia perdido o uso da perna e as atenções do seu namorado, e terminou repetindo a história da aparição da Santíssima Virgem, a qual dissera à menina que o bispo a curaria da sua enfermidade. Pensando bem, resolveu acrescentar que Domingo Pérez, o tio da menina lhe arrancara a promessa de conservar sigilo sobre o episódio enquanto o assunto não fosse devidamente examinado. Quando ele terminou, o rosto do bispo assumira uma expressão de tal severidade que o frade, com a voz estrangulada, suava por todos os poros. Fez-se um silêncio.
- Eu conheço esse Domingo - disse o bispo afinal. - É um homem de má vida, com quem nenhuma pessoa que preze a salvação da sua alma deveria manter relações. Mas não é tolo. Ao exigir da sobrinha a promessa de segredo, agiu com prudência. É também o confessor da menina, padre? - O outro fez uma reverência. - Fará bem em recusar-lhe a absolvição enquanto ela não prometer que não falará nisso a ninguém.
O padre frade arregalou os olhos para o bispo, cheio de
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confusão. Não era ele, pelo consenso geral, um santo? O padre Vergara julgava que ele receberia de braços abertos essa oportunidade de exercer os seus poderes milagrosos, com o que não só glorificaria o Senhor mas conduziria muitos pecadores ao arrependimento. O olhar do bispo era frio. Dir-se-ia que só por um esforço de vontade ele conseguia dominar a sua cólera.
- E agora, se me dão licença, vou prosseguir o meu trabalho - disse ele; e, voltando-se para o secretário: - Leia de novo a última frase que ditei.
Os dois frades retiraram-se timidamente, sem dizer mais uma só palavra.
- Por que estará ele tão vexado? - perguntou o padre Vergara.
- Não devíamos ter-lhe falado nisso. A culpa é minha. Ofendemos a sua humildade. Ele não sabe que grande santo é e não se julga digno de fazer um milagre.
A explicação parecia muito razoável e, como redundava em maior crédito para o bispo, o padre Vergara apressou-se a contar tudo aos seus confrades. Dentro em pouco o convento zumbia de excitação. Alguns louvavam a modéstia do bispo, outros lamentavam que ele não tivesse aproveitado essa ocasião de fazer alguma coisa que tanto exaltaria o seu renome e a boa fama da ordem.
Entrementes, a história havia alcançado outros ouvidos. A igreja em que Catalina estivera a rezar e de onde, a dar-lhe crédito, a Santíssima Virgem tinha saído pertencia, como dissemos, ao convento carmelita da Encarnação. Era o convento ricamente dotado e havia muitos anos que a prioresa tinha o hábito de dar trabalho a Maria Pérez, em parte por caridade
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e em parte por ser ela habilíssima no difícil e trabalhoso ofício que exercia. Maria viera, desse modo,, a fazer amizade com muitas dentre as religiosas. Como se tratasse de um convento de ordem mitigada, gozavam elas de bastante liberdade e não era raro que uma das freiras lhe viesse à casa almoçar e conversar. Dois ou três dias após a confissão de Maria, necessitou esta de ir ao convento e, após cumprir a sua obrigação, pôs-se a tagarelar com a freira que era sua amiga mais íntima. Exigindo-lhe juramento de segredo, contou-lhe o estranho facto que ocorrera à sua filha. As religiosas eram muito palradeiras e semelhante história não podia deixar de ser um grande acontecimento na rotina piedosa mas monótona das suas existências, de modo que ao cabo de vinte e quatro horas todas as moradoras do convento estavam informadas e o caso acabou por chegar aos ouvidos da prioresa. Como esta senhora desempenha um papel de certa importância na nossa narrativa, torna-se necessário contar aqui a sua história, ainda que com risco de aborrecer o leitor.


X.

Beatriz Henríquez y Bragamza, na vida religiosa Beatriz de San Domingo, era filha única do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Tinha grande fortuna e era poderosíssimo. Logrou conservar a confiança do sombrio e desconfiado Filipe II e exerceu com distinção importantes cargos na Espanha e na Itália. Possuía vastas
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propriedades em ambos os países e, embora os seus deveres o forçassem a morar ora aqui ora ali, não havia para ele nada melhor do que viver com a esposa e os filhos - pois tinha três-, dois homens e uma mulher - na cidade em que nascera, com os seus ares saudáveis e as suas grandiosas vistas. Era ali que se originara a sua raça e fora graças à repulsa, por um dos seus antepassados, das tropas mouras que assediavam a cidade, que a família começara por adquirir eminência. Não existia ali ninguém maior do que o duque de Castel Rodríguez, o qual vivia numa propriedade quase régia. Como durante toda a história da família os seus membros houvessem contraído grandes alianças, ela achava-se relacionada com os mais magníficos nobres de Espanha. Ao fazer treze anos sua filha, Beatriz, ele procurou um esposo que lhe conviesse, e após passar em revista vários candidatos possíveis decidiu-se pelo filho único do duque de Anteguera, O qual descendia por vias espúrias de Fernando de Aragão. O duque de Castel Rodríguez prontificava-se a dar à filha um dote magnífico, e assim o assunto foi resolvido sem dificuldade. Realizaram-se os esponsais dos dois jovens, mas como o rapaz não tinha mais de quinze anos combinou-se que só se faria o casamento quando ele alcançasse uma idade apropriada. Beatriz teve permissão de ver o futuro marido em presença dos pais deste e dos seus, dos tios e tias e outros parentes mais distantes. Era um rapazinho atarracado, de estatura não maior que a dela, áspera gaforinha preta, nariz arrebitado e boca mal-humorada. Concebeu uma imediata antipatia por ele, mas sabia que era inútil protestar e contentou-se em lhe fazer caretas. Ele respondeu mostrando-lhe a língua.
Depois dos esponsais o duque mandou-a terminar a sua
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educação no convento carmelita da Encarnação, em Ávila, onde sua irmã era prioresa. Ela achou divertida a vida do convento. Havia ali outras meninas, filhas de famílias nobres, em situação idêntica à sua, e várias senhoras que por uma razão ou por outra viviam como pensionistas no convento sem estar sujeitas à disciplina deste. A regra suavizada das carmelitas era bastante suportável e, embora algumas das freiras se dedicassem à prece e à contemplação, muitas delas, sem negligenciar os seus deveres, saíam e iam visitar as pessoas amigas, ausentando-se por vezes durante semanas inteiras. A sala de visitas estava sempre cheia de pessoas de ambos os sexos, de modo que se fazia ali uma alegre vida social. Armavam-se casamentos, discutia-se o andamento das guerras e permutavam-se os mexericos da cidade. Era uma existência pacífica e inofensiva, com diversões modestas, e para as freiras não representava um caminho muito árduo para a eterna bem-aventurança.
Na idade de dezasseis anos foi Beatriz tirada do convento e desceu com a mãe para Castel Rodríguez, acompanhada de um batalhão de criados. A duquesa não estava bem de saúde e os médicos tinham-lhe recomendado que fosse viver num clima menos rigoroso que o de Madrid. Preso pelos assuntos de estado, o duque ficou a contragosto na capital. Aproximava-se a época em que deveria realizar-se o casamento de Beatriz e seus pais achavam conveniente que ela aprendesse alguma coisa sobre o modo de dirigir um grande solar. A duquesa passou, pois, alguns meses ensinando à filha as normas sociais que ela não podia ter aprendido no convento das carmelitas. Beatriz fizera-se uma jovem alta, de grande beleza, com uma pele clara e sem marcas de bexigas, feições de uma regularidade clássica,
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talhe esguio e flexível. Os espanhóis daquela época apreciavam formas mais opulentas e algumas das senhoras que vinham prestar os seus respeitos à duquesa lamentavam-lhe a magreza, mas a desvanecida mãe respondia que o casamento não tardaria a remediar esse defeito.
Nesse tempo Beatriz era alegre,, apaixonada pela dança e estuante de vitalidade animal. Era travessa e voluntariosa. Já então possuía um génio autoritário, pois haviam-na estragado com mimos, e sempre teve o hábito de impor a sua vontade aos que a cercavam. Desde pequena compreendera que estava destinada pelo nascimento às altas posições de mando e que o resto da humanidade devia submeter-se aos seus caprichos. O seu confessor, bastante preocupado com esse desejo de domínio, falou nisso à duquesa:, mas esta não se mostrou muito impressionada com a advertência.
- Minha filha nasceu para mandar, padre. Não se pode esperar dela o servilismo de uma lavadeira. Se o seu temperamento é excessivamente orgulhoso, o marido, caso tenha carácter, o modificará sem dúvida .alguma, e caso não o tenha o sentimento do que lhe é devido, que não falta a Beatriz, será benéfico para ele também.
No convento, Beatriz tomara-se de entusiasmo pelos romances de cavalaria a que algumas das senhoras pensionistas eram muito afeiçoadas. Embora a freira encarregada de zelar pelas alunas não lhe permitisse lê-los, de quando em quando ela conseguia lançar um olhar furtivo a essas histórias intermináveis. Quando veio para Castel Rodríguez encontrou vários no palácio e, como a mãe estivesse muitas vezes indisposta e a "duena" fosse indulgente, devorou-os com avidez. A sua imaginação juvenil inflamou-se e começou a pensar com fastio no
inevitável casamento com o rapaz que ela ainda via como um garoto achaparrado, mal enjambrado e birrento. Tinha consciência da sua beleza e na missa, na companhia da mãe, não perdia nenhum dos olhares de admiração que lhe deitavam os jovens casquilhos da cidade. Reuniam-se na escadaria da igreja para vê-la sair e, embora Beatriz andasse com os olhos modestamente baixos, ao lado da duquesa, seguida pelos dois lacaios de libré que carregavam as almofadas de veludo sobre as quais se haviam ajoelhado durante o serviço divino, percebia a sensação que causava e o seu ouvido apanhava os elogios que os rapazes, segundo o costume espanhol, diziam à sua passagem. Conquanto nunca olhasse para eles, conhecia-os a todos de vista e não tardou a descobrir-lhes os nomes, a que famílias pertenciam e, na verdade,, tudo que era possível saber a respeito deles. Uma ou duas ocasiões os mais ousados cantaram-lhe serenatas, mas a duquesa mandava imediatamente os criados enxotá-los. Certa feita encontrou uma carta em cima do seu travesseiro. Adivinhou que uma das criadas fora paga para a pôr ali. Abriu o sobrescrito e leu-a duas vezes, depois rasgou-a em pedacinhos e queimou-os à chama das velas. Foi a primeira e a única carta de amor que recebeu na sua vida. Não trazia assinatura e ela não podia adivinhar de quem provinha.
Devido ao mau estado da sua saúde a duquesa achava suficiente assistir à missa nos domingos e dias de festa, mas Beatriz ia todas as manhãs com a "duena". A missa realizava-se muito cedo e eram poucas as pessoas que se encontravam na igreja, mas havia um seminarista que nunca faltava. Era alto e magro, de feições resolutas, olhos escuros e apaixonados.
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Por vezes, quando andava com a "duena" no desempenho de alguma piedosa missão, ela passava pelo moço na rua.
- Quem é esse? - perguntou Beatriz um dia em que o viu caminhar lentamente na sua direcção, a ler um livro.
- Esse? Ora, ninguém. É o filho mais velho de Juan Suárez de Valero. "Hidalguía de gutierra".
Esta expressão, que pode ser traduzida por "nobreza de sarjeta", era o termo desdenhoso aplicado aos fidalgos de nascimento que não tinham meios para viver de acordo com a sua posição. A "duena", uma viúva vagamente aparentada ao duque, era orgulhosa, devota;, criticadora e sem vintém. Residira toda a vida em Castel Rodríguez, até que, ao deixar Beatriz o convento, o duque a tinha escolhido para dama de companhia da filha. Conhecia todos os habitantes da cidade como as palmas das suas mãos, e apesar de muito piedosa não resistia à tendência de falar mal do próximo.
- Que faz ele aqui nesta época do ano? - indagou Beatriz. A "duena" sacudiu os ombros magros. - Adoeceu no seminário por excesso de trabalho e os médicos desesperaram de salvá-lo. Mandaram-no para casa, a ver se recobrava a saúde, e por mercê divina foi o que sucedeu. Dizem-no muito talentoso. Segundo creio, seus pais esperam que ele obtenha um benefício graças à influência do duque seu pai.
Beatriz nada mais disse.
Mas, por alguma razão que os médicos não podiam descobrir, começou a perder o apetite e a animação. Também perdeu a cor fresca das faces e tornou-se pálida. Andava apática e muitas vezes iam encontrá-la banhada em lágrimas. Ela, cuja alegria, cujo carácter encantadoramente caprichoso e irresponsável
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tinham dado vida àquele palácio sombrio e magnificente, andava agora entregue à tristeza e ao desalento. A duquesa não sabia o que fazer e, temendo que a menina fosse de mal a pior, escreveu ao marido pedindo que viesse vê-las, a fim de resolverem sobre o melhor caminho a seguir. Ele veio e ficou estupefacto com a mudança que se operara na filha. Beatriz estava mais (magra do que nunca e tinha manchas negras debaixo dos olhos. Chegaram à conclusão de que o melhor alvitre era casá-la sem demora, mas ao fazerem essa proposta a Beatriz ela teve um acesso de nervos, pondo-se aos gritos, o que os deixou ainda mais alarmados. Desistiram de voltar por ora ao assunto. Deram-lhe mesinhas, alimentaram-na a leite de mula e sangue de boi, mas, se bem que Beatriz engolisse obedientemente tudo quanto lhe davam,, nada produziu efeito. Continuava pálida e desalentada. Fizeram o possível para distraí-la. Pagaram a músicos que tocavam para ela; levaram-na a assistir a uma peça religiosa na colegiada, levaram-na às touradas - apesar de tudo, ela continuava a definhar. A "duena" tomara grande afeição à sua pupila e, como Beatriz já não se interessasse pelos romances que tinham constituído o seu maior entretenimento, ela não encontrava outro modo de divertir a doente senão contando-lhe os mexericos da cidade. Beatriz ouvia polidamente, mas sem interesse. Certa ocasião ela mencionou de passagem que o filho mais velho de Juan Suárez de Valero tinha ingressado na ordem dos dominicanos. Continuou a tagarelar sobre uma pessoa e outra, quando de súbito notou que Beatriz perdera os sentidos. Gritou por socorro e Beatriz foi posta na cama.
Um ou dois dias depois, estando já melhor, pediu permissão para ir confessar-se. Havia várias semanas que recusava
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fazê-lo, dizendo não se sentir muito bem, e o confessor da duquesa, que também o era de Beatriz, concordou em que era preferível não insistir. Dessa vez tanto o pai como a mãe tentaram dissuadi-la, mas a jovem instou e chorou tão amargamente que afinal cederam. Mandaram sair a grande carruagem, usada apenas nas ocasiões solenes, e ela dirigiu-se para a igreja dominicana acompanhada pela "duena". Ao voltar parecia-se mais com a antiga Beatriz. Tinha uma leve cor nas faces pálidas e nos seus bonitos olhos brilhava uma nova luz. Ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe permissão para fazer-se freira. Foi para ele um grande choque, não só porque não queria perder a filha única mas também porque não lhe agradava desistir da importante aliança que havia projectado. Era, no entanto, um homem bondoso e devoto, e respondeu sem aspereza que decisões como aquela não deviam ser tomadas levianamente e, de qualquer modo, o assunto estava fora de cogitação enquanto o estado da sua saúde fosse tão precário. Ela disse-lhe que tinha conversado a respeito com o seu confessor e este dera plena aprovação à ideia.
- Sem dúvida, o padre Garcia é muito digno e muito piedoso - disse o duque,, franzindo de leve o sobrolho - , mas a sua profissão impede-o, talvez, de compreender quanto são grandes as responsabilidades ligadas à nobreza e às altas posições. Falarei amanhã com ele.
Assim, no dia seguinte o frade foi chamado ao palácio ducal e levado à presença do duque e da duquesa. Sabiam estes, naturalmente, que ele não revelaria nada do que Beatriz lhe dissera no confessionário, e não tentaram averiguar se ela lhe dera a conhecer algum motivo capaz de justificar uma resolução que tanto os contrariava, Disseram-lhe, contudo, que
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embora ela observasse os preceitos da Igreja, era de natural alegre, amiga de toda a sorte de diversões, e nunca mostrara qualquer inclinação para a vida religiosa. Falaram-lhe do grande casamento que tinham arranjado para ela e dos transtornos que adviriam da sua ruptura, assim como dos ressentimentos que isso iria causar; e, finalmente, com todo o respeito devido ao seu hábito, insinuaram que não fora prudente da sua parte aprovar um desejo evidentemente nascido da misteriosa doença de Beatriz. Esta era jovem e tinha uma constituição saudável. Não havia razão para supor que continuasse com as mesmas ideias quando recobrasse a saúde. O dominicano mostrou uma singular obstinação. Achava o desejo de Beatriz muito forte para que se lhe pudessem opor e a vocação da jovem parecia-lhe autêntica. Foi ao ponto de dizer a esses grandes personagens que não tinham direito a impedir sua filha de tomar uma resolução que lhe traria a paz neste mundo e a bem-aventurança no outro. Foi essa a primeira de uma série de discussões. Beatriz permaneceu firme na sua decisão e o confessor apoiou-lhe o desejo com todos os argumentos persuasivos de que pôde lançar mão. Por fim o duque prometeu dar a sua anuência se, ao cabo de três meses, ela ainda desejasse entrar para o convento.
A partir de então Beatriz começou a melhorar. Volveram-se os três meses e ela entrou como noviça na comunidade das carmelitas de Ávila. Toda. de veludo e cetim, ataviada com as suas jóias, foi acompanhada ao convento pela família e numerosos cavalheiros,, dos mais nobres da cidade. À porta disse adeus a todos, alegremente, e foi recebida pela porteira. Mas o duque também fizera os seus planos para enfrentar a situação. Em sua própria honra e para maior glória do
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Senhor, resolveu fundar em Castel Rodríguez um convento para onde sua filha pudesse recolher-se logo que terminasse o noviciado e do qual no devido tempo se tornasse superiora. Possuía imóveis na cidade e escolheu junto aos muros um local apropriado para tal fim. Construiu ali uma linda igreja,, um claustro, pavilhões adequados à vida de sociedade, e mandou plantar um jardim. Contratou o melhor arquitecto que se podia encontrar, os melhores escultores, os melhores pintores, e quando tudo ficou pronto Beatriz, conhecida agora como Dona Beatriz de San Domingo, veio instalar-se no palácio com várias freiras de Ávila, escolhidas pela sua virtude, inteligência e importância social. O duque havia determinado que nenhuma freira fosse aceite a menos que pertencesse a família nobre. Escolheu-se uma superiora, ficando entendido que esta se retiraria logo que Beatriz de San Domingo alcançasse a idade necessária para substituí-la. A instâncias do duque, a "duena" entrara num convento de Castel Rodríguez ao mesmo tempo que Beatriz ia para Ávila e estava em condições de reunir-se à sua antiga pupila. O padre Garcia rezou missa, o Santíssimo Sacramento foi entronizado e as freiras instalaram-se na nova instituição.
Na época de que trata a nossa narrativa, havia já alguns anos que Beatriz de San Domingo era prioresa do convento. Conquistara o respeito dos cidadãos de Castel Rodríguez e a admiração, senão o afecto, das suas freiras. Jamais esquecia a sua alta posição, mas também tinha sempre em mente a origem nobre de suas filhas espirituais. No refeitório sentavam-se na devida ordem de precedência, mas quando surgiam disputas a esse respeito, como sucedia algumas vezes, Dona Beatriz procedia com firmeza. Impunha uma disciplina rigorosa e, por
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mais bem nascida que fosse uma freira, não hesitava em mandá-la açoitar quando as suas ordens eram desobedecidas. O convento estava submetido à regra mitigada do Papa Eugénio IV e, contanto que as freiras desempenhassem os seus deveres religiosos, ela não via razão para destituí-las dos privilégios que lhes foram concedidos. Tinham permissão de visitar as pessoas amigas na cidade e, em havendo motivo justificado, até podiam passar longas temporadas com os parentes em outras localidades. Vinham muitas visitas ao convento, tanto leigos como clérigos; várias senhoras, como em Ávila, viviam ali por gosto; havia, desse modo, abundante e agradável intercâmbio social. O silêncio era obrigatório das completas às primas. Irmãs leigas faziam o trabalho do convento, a fim de dar mais tempo às freiras para as devoções e ocupações mais nobres. Mas, apesar de toda essa liberdade e dessas tentações mundanas, jamais um sopro de escândalo empanara o bom nome das virtuosas mulheres. Tal fama desfrutava a comunidade que a superiora não podia atender a todas as candidatas, de forma que tinha ensejo de mostrar-se muito exigente no exame destas.
Levava uma vida atarefada. Além dos seus deveres religiosos, tinha de fiscalizar a economia do convento, vigiar o comportamento das freiras e zelar pela saúde destas, tanto física como espiritual. A instituição fora ricamente dotada de terras, bem como de casas na cidade, e a prioresa tinha de tratar com os feitores que cobravam os aluguéis e com os camponeses que cultivavam as terras. Visitava-os amiúde para ver se tudo corria bem e se as plantações se achavam em bom estado. Como a regra lhe permitia ter propriedades privadas, o duque passara-lhe em vida algumas casas e um belo solar, e por morte
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dele Beatriz herdara muito mais ainda. Administrava tudo tão bem que podia todos os anos distribuir uma soma considerável em esmolas. O restante, gastava-o em aformosear a igreja, o refeitório e a sala de visitas e em construir oratórios no jardim, aos quais as freiras podiam recolher-se para se entregar às suas meditações. A igreja tinha magnífico aspecto. Os vasos sagrados eram de ouro puro e a custódia, cravejada de pedras preciosas. Os retábulos que decoravam os diversos altares tinham ricas molduras de madeira dourada e primorosamente lavrada, e as imagens do Salvador e da Virgem Santíssima vestiam grandes mantos de veludo ricamente bordados de ouro (por Maria Pérez) e as suas coroas chamejavam de pedrarias, preciosas e semipreciosas.
Para celebrar o vigésimo aniversário da sua consagração, Dona Beatriz construíra uma capela, dedicando-a a São Domingos, por quem tinha devoção especial, e ao ouvir dizer a uma das irmãs, natural de Toledo, que existia lá um pintor grego cujos quadros exaltavam extraordinariamente a devoção do fiel, escreveu a seu irmão o actual duque, encomendando um retábulo. Como era uma mulher prática, deu as dimensões exactas. Mas o irmão respondeu que el-rei encomendara a esse mesmo grego um painel de São Maurício e da Legião Tebana para a sua nova igreja do Escurial, mas ao receber a pintura ficara tão descontente com ela que não a deixara instalar. Em tais condições, o duque achava que seria indiscrição da parte dela dar trabalho a esse pintor. Mandava-lhe, por isso, de presente um quadro de Lodovico Cardacci, artista famoso na Itália, quadro que, por coincidência, tinha exactamente as dimensões pedidas.
Ao construir o convento, o falecido duque, seu pai,
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destinara para ela um apartamento que ocuparia quando fosse superiora e que não era menos elegante do que adequado ao seu cargo e posição. Havia num dos andares uma cela a que ninguém era admitido, salvo a irmã encarregada de proceder à sua limpeza e mantê-la em ordem!, e dali uma pequena escada conduzia a um oratório situado no andar de cima. Era nessa cela que ela fazia as suas devoções pessoais, atendia os assuntos do convento e recebia visitas. Era um aposento severo, mas majestoso. Acima do altarzinho diante do qual fazia as suas orações achava-se um grande crucifixo com a figura de Cristo esculpido em madeira, quase em tamanho natural e pintada com muito realismo, enquanto que a sua mesa de trabalho era encimada por um quadro de certo pintor catalão, o qual representava a Virgem cercada de glória. Nessa época, estava Dona Beatriz entre os quarenta e os cinquenta, mulher alta e magra, de olhos grandes e sombrios, quase sem rugas no rosto. A idade afinara-lhe as feições e adelgaçara-lhe os lábios, de modo que tinha a beleza calma e severa dessas esposas de cavaleiros que se vêem nos túmulos góticos. Mantinha-se sempre muito erecta. Havia no seu porte algo de imperioso que dava a entender que ela não considerava a ninguém seu superior e a muito poucos como seus iguais. Tinha uma veia de humorismo austero e mesmo sarcástico, e embora sorrisse muitas vezes, era com uma espécie de grave indulgência. Quando ria, o que era raro, dava a impressão de sofrer.
Tal era, pois, a mulher a cujos ouvidos chegou o rumor de que a Santíssima Virgem tinha aparecido a Catalina Pérez na escadaria da igreja das carmelitas.

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XI.

Dona Beatriz era não somente uma óptima organizadora, como boa cabeça para os negócios, mas também uma mulher de grande inteligência e sensatez. Sempre desfavorecera as visões, êxtases e graças especiais entre as suas freiras. Não lhes permitia dar-se a uma austeridade excessiva nem a mortificações além das prescritas pela Regra. Nada lhe passava despercebido, e quando uma delas mostrava sinais de uma religiosidade que a superiora achasse exagerada,, administrava-lhe logo um purgante, proibiam-na de jejuar e, se isso não bastasse, era mandada passar algumas semanas agradáveis em casa de amigos ou parentes. O rigor de Dona Beatriz nesse ponto tinha raiz na lembrança dos aborrecimentos e do escândalo provocados no convento de Ávila por uma freira que afirmava ter visto Jesus Cristo, a Santíssima Virgem e vários santos e ter recebido deles graças especiais. A superiora não rejeitava a possibilidade de tais ocorrências,, visto ser certo que alguns santos haviam recebido favores análogos, mas não podia crer que a freira de Ávilai, Teresa de Gepeda, com quem falara muitas vezes quando aluna do convento, fosse outra coisa senão a vítima histérica e iludida de uma desenfreada fantasia.
Era altamente improvável que houvesse qualquer coisa de verdadeiro na estranha história de Catalína. Como as freiras, porém, estivessem tão alvoroçadas com aquilo que não falavam de outra coisa, Dona Beatriz achou de bom aviso mandar chamar a jovem e ouvir o caso dos seus próprios lábios. Chamou uma das freiras e disse-lhe que fosse buscar a rapariga.
A freira voltou daí a pouco, informando-a de que Catalina estava disposta a obedecer à ordem da Reverenda Madre, mas que o seu confessor a proibira de repetir a história a quem quer que fosse. Dona Beatriz, pouco habituada a que a contrariassem, franziu o sobrolho, e quando ela o fazia todas as habitantes do convento se punham a tremer.
- A mãe da moça está aqui, Reverenda Madre - disse a freira, sustendo a respiração.
- De que me pode servir a mãe?
- Ela ouviu a história dos lábios da moça logo depois de Nossa Senhora lhe ter aparecido. O padre não pensou em proibi-la também de falar no caso.
Um sorriso austero encrespou os lábios pálidos da prioresa.
- Um homem digno, mas pouco previdente. Você fez bem, minha filha. Vou receber a mulher.
Maria Pérez foi introduzida no oratório. Tinha visto muitas vezes a superiora, mas nunca lhe falara e estava nervosa. Encontrou Dona Beatriz sentada numa cadeira de encosto alto, com assento e costas de couro, cujo topo era decorado com folhas de acanto em madeira dourada. Maria Pérez não cria que uma rainha pudesse parecer mais distante, solene e orgulhosa. Ajoelhou-se e beijou a mão branca e esguia que lhe ofereciam. Depois, como lhe ordenassem que dissesse o que tinha vindo dizer, repetiu palavra por palavra o que lhe contara Catalina. Quando ela terminou, a prioresa inclinou de leve a nobre cabeça.
- Pode ir.
Ficou algum tempo a reflectir, depois sentou-se à mesa e escreveu uma carta rogando ao Bispo de Segóvia que lhe
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fizesse a honra de vir vê-la, pois desejaria falar-lhe sobre um assunto que parecia de importância. Enviou a carta e dentro de uma hora recebeu a resposta. Em tom não menos cerimonioso, dizia o bispo que obedeceria com prazer à ordem da Reverenda Madre, visitando o convento no dia seguinte.
Houve uma comoção entre as freiras quando souberam que uma pessoa tão eminente e santa era esperada ali e imediatamente concluíram, com acerto, que a visita estava relacionada à misteriosa aparição da Virgem Santíssima nos degraus da bela igreja do convento. Veio ele à tarde, depois da sesta que as freiras costumavam fazer no Verão, acompanhado pelos dois frades seus secretários, e foi recebido pela subprioresa na sala de visitas. Com grande pesar seu,, as freiras tinham recebido ordem de permanecer nas suas celas. Tendo beijado o anel do bispo, a subprioresa disse-lhe que ia conduzi-lo à presença da senhora superiora. Os dois frades dispuseram-se a acompanhá-lo.
- A Reverenda Madre deseja falar em particular com Vossa Senhoria - disse ela humildemente.
O bispo hesitou um instante, depois inclinou ao de leve a cabeça, consentindo. Os frades voltaram aos seus lugares e o bispo seguiu a freira pelos corredores btrancos e frescos e subiu o lance de escada que levava ao oratório. Ela abriu a porta e arredou-se para deixá-lo entrar. Dona Beatriz levantou-se para vir ao encontro do bispo e, ajoelhando-se, beijou o anel episcopal. Depois indicou-lhe uma cadeira e sentou-se.
- Esperava que Vossa Senhoria se dignasse visitar o nosso convento, mas como não viesse tomei a liberdade de convidá-lo.
- Meu mestre de teologia em Salamanca aconselhava-me
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que tratasse o menos possível com mulheres, que fosse cortês com elas mas as mantivesse à distância.
Ela não deu a resposta ácida que tinha na ponta da língua,, mas ao invés disso considerou-o com atenção. Ele baixou os olhos e ficou à espera. A superiora não tinha pressa de falar. Fazia quase trinta anos que não o via e essas eram as primeiras palavras que trocavam. Ele vestia um hábito velho e remendado. Tinha a cabeça rapada à navalha, com excepção do anel de cobalto preto,, semeado de raros fios brancos, que simbolizavam a Coroa de Espinhos. As têmporas eram reentrantes, as faces cavadas; o rosto, coberto de rugas profundas, exibia sinais de sofrimento; só restavam os olhos escuros e apaixonados, em que brilhava uma luz estranha, para lembrar-lhe o jovem seminarista a quem tinha conhecido muito tempo atrás - conhecido e amado tão loucamente.
Aquilo começara como uma travessura. Beatriz tinha-o notado a primeira vez que ele servira a missa, como fazia algumas ocasiões, na igreja que ela frequentava com a sua "duena". Já então ele era magro, de cabelos negros e bastos, pois usava apenas a tonsura das ordens menores, tinha feições bem definidas e uma graça singular no porte. Parecia-se com um desses santos que recebiam a vocação em meninos,, tornando-se objectos de veneração para todos e morrendo moços e aureolados de beleza. Quando não estava servindo a missa ia ajoelhar-se na capelinha, entre as poucas pessoas que ali se encontravam àquela hora. Atento às suas devoções, nunca desviava os olhos do altar. Beatriz, naquela época, era uma jovem estouvada e folgazã. Conhecia o poder devastador dos Seus olhos maravilhosos. Pareceu-lhe que seria uma óptima brincadeira fazer com que o jovem seminarista lhe prestasse
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atenção. Fixou nele, pois, o olhar, desejando com todas as suas forças que ele olhasse para o seu lado. Continuou a fazê-lo durante vários dias, em vão, mas certa manhã teve a intuição de que ele estava perturbado. Não saberia dizer o que lhe dava essa impressão, mas tinha a certeza. Esperou, sustendo o fôlego. Ele ergueu os olhos de repente, como se ouvisse um ruído inesperado, e, encontrando o olhar dela, desviou vivamente o rosto. Desde então Beatriz absteve-se de relancear sequer os olhos para ele, mas um ou dois dias depois, embora mantivesse a cabeça baixa como se estivesse a rezar, teve consciência de que ele a fitava. Ficou perfeitamente imóvel, mas semtia-lhe o olhar perplexo, um olhar que ele nunca havia dirigido a ninguém até então. Experimentou um estremecimento de triunfo e, alçando a cabeça, encarou-o de propósito. Como da outra vez, ele desviou os olhos o mais depressa que pôde e Beatriz viu um rubor de vergonha banhar-lhe o rosto.
Por duas ou três ocasiões, ao andar na rua com a "duena", viu-o caminhar na sua direcção, e embora passasse por elas desviando o rosto, Beatriz sabia-o emocionado. Uma vez mesmo, ao avistá-las, ele tinha girado nos calcanhares e voltado pelo mesmo caminho. Beatriz desatou a rir como louca, a ponto de lhe perguntar a "duena" o que achava tão engraçado, e ela teve de dizer a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Certa manhã, sucedeu que ambas entrassem na igreja no momento em que o seminarista mergulhava os dedos na água benta para persignar-se. Beatriz estendeu a mão para tocar-lhe nos dedos, recebendo dessa forma a água benta. Era um acto costumeiro e natural, e ele não podia recusar. Ficou muito pálido e, mais uma vez, os olhos de ambos se encontraram. Foi apenas um instante,, mas nesse instante Beatriz compreendeu
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que ele a amava com um amor humano, o amor que um rapaz apaixonado dedica a uma bela jovem, e ao mesmo tempo sentiu uma dor aguda no coração, como se uma espada o trespassasse, e compreendeu que o amava com o mesmo amor humano, o amor de uma jovem apaixonada a um amável mancebo. Foi invadida pela alegria. Jamais conhecera tamanha felicidade.
Nesse dia ele serviu a missa. Beatriz não lhe tirava os olhos de cima. O coração pulsava-lhe com uma violência quase insuportável, mas a dor, se dor havia, era maior do que qualquer prazer já sentido por ela. Já havia descoberto que o mesmo encargo ou ocupação o obrigava a passar todos os dias diante do palácio ducal a uma hora certa, e tratou de sentar-se a uma janela de onde pudesse observar a rua. Via-o aproximar-se e retardar o passo, como que mau-grado seu, ao passar, depois via-o seguir caminho apressadamente, como se fugisse à tentação. Esperava que ele levantasse o olhar, mas o rapaz nunca o fazia. Uma vez, para apoquentá-lo, deixou cair um cravo no instante em que ele se aproximava. O seminarista alçou os olhos instintivamente, mas Beatriz recuou a fim de poder vê-lo sem ser vista. Ele deteve-se e apanhou a flor. Tomou-a com ambas as mãos, como se fosse uma jóia inestimável, e por um momento contemplou-a como que em êxtase. Depois atirou-a ao chão com um gesto violento, espezinhou-a no pó e fugiu, fugiu a correr tão depressa quanto podia. Beatriz desatou a rir mas, de repente desfez-se em lágrimas.
Como o rapaz passasse vários dias sem ir à missa, ela não pôde mais suportar a sua ansiedade.
- Que aconteceu àquele seminarista que costumava servir a missa?
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- perguntou à "duena". - Não o tenho visto ultimamente.
- Como posso sabê-lo? Imagino que tenha voltado para o seminário.
Nunca mais tornou a vê-lo. Havia compreendido o drama em que terminara a farsa armada por ela e lamentou amargamente a sua tolice. Amava-o com toda a ardente paixão do seu corpo jovem. Nunca fora contrariada em coisa alguma e enraivecia ao pensar que dessa vez a sua vontade seria frustrada. O casamemto que lhe tinham arranjado era um casamento de conveniência e ela aceitara-o como consequência da sua posição. Estava disposta a dar filhos ao marido, como era seu dever, mas resolvera não lhe dar mais importância do que se fosse um lacaio. Agora, porém, a ideia de unir-se àquele anão estúpido enchia-a de asco. Sabia que o seu amor a Blasco de Valero não podia dar em nada. É verdade que, estando ele nas ordens menores, havia a possibilidade de obter a sua secularização, mas Beatriz nem sequer necessitou lembrar-se de que seu pai jamais consentiria em semelhante aliança; o seu próprio orgulho não lhe permitia dar a mão em casamento a esse "fidalgo de sarjeta". E Blasco? Estava segura de que ele a amava, mas tinha ainda maior amor a Deus. Quando ele espezinhara, raivoso, a flor que ela deixara cair aos seus pés, fora para esmagar aquela paixão indigna que o horrorizava. Beatriz tinha sonhos terríveis, apavorantes, em que jazia nos braços dele, a boca contra a sua, o peito de Blasco a comprimir o seu, e acordava cheia de vergonha, angústia e desespero. Foi então que começou a enfermar. Ninguém lhe compreendia a doença, porém ela sabia de que se tratava: estava a morrer de mágoa. Foi ao ter conhecimento de que ele entrara
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numa ordem monástica que teve aquela inspiração. Sabia, como se o próprio Blasco lhe houvesse dito, que ao renunciar ao mundo ele procurava fugir dela; e isso dava-lhe uma estranha alegria, um sentimento de força triunfante. Faria a mesma coisa: o ingresso no convento a libertaria de uma união odiosa, e talvez encontrasse paz no amor divino. Num recanto do seu espírito, sem que a própria palavra interior lhe desse forma senão muito raramente, habitava a ideia de que naquela vida, por mais separados que estivessem, cada um devotado ao serviço do Altíssimo, existia entre ambos uma espécie de união mística. Tudo isso, que levamos tanto tempo a contar, passou como um relâmpago pela mente da fria e severa prioresa. Viu a sua história como se fosse um desses vastos afrescos pintados na longa parede de um claustro, e aos quais, entretanto, podemos abranger com um só olhar. Toda aquela paixão, que na sua tola mocidade ela julgava dever durar para sempre, havia muito que morreria. O tempo, a piedosa monotonia da vida conventual, as orações e os jejuns, os múltiplos deveres da sua posição, haviam-na embotado pouco a pouco e agora não passava de uma lembrança amarga. Ao olhar para esse homem tão gasto e emaciado, com aquela expressão de sofrimento, perguntava consigo se ele se recordaria de ter amado uma vez - contra a vontade,, sim, mas de todo o coração - uma linda jovem a quem nunca falara, mas que atormentava os seus sonhos. O silêncio era pesado ao bispo, que se remexia inquieto na cadeira.
- A Reverenda Madre disse ter um assunto de importância sobre o qual desejava consultar-me - falou ele.
- Sim, mas permita primeiro que apresente as minhas
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felicitações a Vossa Excelência pela dignidade que el-rei houve por bem conferir-lhe.
- Não posso ter senão a esperança de me mostrar à altura dos deveres pertinentes a tão alto cargo.
- Quanto a isso, não pode haver dúvidas no espírito de quem conheça o zelo e a discrição de que Vossa Excelência deu provas durante os dez amos que passou em Valência. Embora vivamos numa remota cidadezinha das montanhas, conseguimos manter-nos inteirados do que se passa nesse grande mundo, e não nos passou despercebida a fama conquistada pela austeridade, pela virtude e pelo incansável labor de Vossa Excelência em prol da pureza da nossa fé.
O bispo olhou-a um instante por baixo das sobrancelhas franzidas.
- Minha senhora, fico-lhe agradecido pela sua cortesia mas devo rogar-lhe que me poupe esses cumprimentos. Nunca senti prazer em ouvir comentários a meu respeito, feitos na minha presença. Ficar-lhe-ei grato se me disser sem mais demora por que razão solicitou a minha visita.
A prioresa não se deixou abater por esta admoestação. Ainda que ele fosse bispo, não deixava de ser um "fidalgo de sarjeta", como dizia a sua velha "duena" que lá estava no seio do Senhor; enquanto ela era a filha do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Uma palavra sua ao irmão, confidente do favorito de Filipe III, podia relegar esse prelado para uma obscura diocese das Canárias.
- Lamento ofender a modéstia de Vossa Excelência - respondeu em tom tranquilo - , mas foi justamente a sua virtude e a sua austeridade - a sua santidade, se assim me posso
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exprimir - que constituiu a causa, imediata do meu pedido para que me fizesse a honra de visitar-me. Está informado do estranho caso que se passou com uma menina chamada Catalina Pérez?
- Estou. O confessor dela, homem digno, sem dúvida, mas de pouca instrução e inteligência, referiu-me essa história. Mandei-o calar. Proibi os frades do convento de mencionar tal coisa na minha presença ou de falar nela entre si. Essa rapariga ou é uma impostora à cata de notoriedade, ou uma simplória iludida.
- Não a conheço, senhor, mas segundo todas as informações é uma menina boa, sensata e piedosa. Pessoas de critério, que a conhecem, estão convencidas de que ela é incapaz de inventar semelhante história. Não costuma mentir e, ao que me dizem, está lomge de ser dada a fantasias.
- Se ela teve uma visão como a que descreve, só pode ter sido por ardil de Satanás. Ninguém ignora que os demónios tem o poder de assumir formas celestes para tentar os desprevenidos e arrastá-los à perdição.
- Essa menina sofre um infortúnio imerecido. Não devemos atribuir ao diabo mais habilidade do que ele possui. Como poderia ele ser estúpido ao ponto de julgar que a alma dessa criança incorre em perigo pelo facto de um santo homem lhe impor a mão em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo?
O bispo, que durante essa conversa mantivera os olhos postos no chão, ergueu-os para a superiora a estas últimas palavras, com uma expressão de angústia.
- Minha senhora, Lúcifer, o filho da manhã, caiu por causa do seu orgulho. Como é possível que pelo orgulho eu,
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um homem tão corrupto e pecador, me atreva a fazer milagres ?
- Está bem que na sua humildade se considere um homem corrupto e pecador, Excelência, mas o resto do mundo bem conhece a sua grande virtude. Ouça, senhor: essa história foi divulgada e a cidade inteira anda a falar nela. Todos estão alvoroçados e em expectativa. É preciso dar uma satisfação qualquer ao povo.
O bispo suspirou.
- Eu sei que o povo está perturbado. Grupos de pessoas conservam-se diante do convénto como se aguardassem alguma coisa, e quando saio eles ajoelham-se à minha passagem pedindo que os abençoe. É necessário fazer alguma coisa para que entrem na razão.
- Vossa Excelência permite que lhe dê um conselho? - disse a prioresa com muito respeito; mas os seus olhos tinham um brilho divertido e irónico que de certo modo ateimava aquele.
- Ficar-lhe-ia muito grato.
- Eu não falei com a rapariga porque o seu confessor lhe deu ordem de não repetir a história a ninguém, mas o senhor bispo tem o poder de revogar essa ordem. Não acha que seria conveniente vê-la? Com o seu discernimento, a sua penetração das almas e a habilidade que adquiriu no Santo Ofício com a inquirição de suspeitos, Vossa Excelência descobriria bem depressa se ela é uma impostora, se foi iludida por Satanás ou, afinal, se foi verdadeiramente a Virgem Santíssima que condescendeu em aparecer-lhe.
O bispo alçou os olhos e contemplou a imagem do Redentor pregado à Cruz, no santuário diante do qual a prioresa
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costumava rezar. O seu rosto tinha uma expressão muito triste. Estava dilacerado pela dúvida.
- É escusado lembrar-lhe, senhor, que este convento se acha sob a protecção especial de Nossa Senhora do Carmelo. Nós, pobres freiras, somos sem dúvida alguma indignas dessa honra, mas é possível que ela olhe com um favor especial esta igreja que meu pai, o duque, lhe erigiu na nossa cidade. Seria uma grande honra e uma grande glória para a nossa casa se, por intercessão de Vossa Excelência, a nossa celeste padroeira curasse essa pobre menina da sua enfermidade.
Durante largo tempo o bispo esteve absorto nos seus pensamentos. Por fim tornou a suspirar.
- Onde poderei ver essa menina?
- Haverá lugar mais próprio do que a capela dedicada ao culto da Santíssima Virgem, na nossa igreja?
- É preferível fazer depressa o que tem de ser feito. Que ela venha amanhã, minha senhora:, e estarei aqui à sua espera.
Levantou-se, e ao curvar-se para se despedir da prioresa havia nos seus lábios a sombra de um sorriso - mas tão pesaroso!...
- Uma triste noite me aguarda, Reverenda Madre. Ela ajoelhou-se mais uma vez e beijou-lhe o anel.


XII.

No dia seguinte, à hora aprazada, o bispo entrou na opulenta igreja acompanhado dos seus dois secretários. Catalina, com uma das freiras, esperava na capela da Virgem.
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Mantinha-se em pé com o auxílio da muleta;, mas quando o bispo apareceu a freira tocou-lhe no braço e Catalina fez um movimento para ajoelhar-se. Ele não a deixou.
- Pode deixar-nos - disse à freira e, quando esta saiu, dirigiu-se aos dois frades: - Podem retirar-se, mas fiquem aqui perto. Quero falar a sós com esta menina.
Eles desapareceram silenciosamente. O bispo observou-lhes a retirada. Sabianos muito curiosos e não queria ser ouvido por eles. Deitou então um longo olhar à inválida. Tinha um coração sensível e a desgraça, a miséria e a doença nunca deixavam de comovê-lo. Ela tremia um pouco e estava muito pálida.
- Não te assustes, minha filha - disse ele com suavidade. - Não tens nada a temer se dizes a verdade.
A jovem pareceu-lhe muito simples e inocente. Notou-lhe a singular beleza das feições, mas fê-lo com a mesma indiferença com que teria observado o pêlo ruão ou tordilho de um cavalo. Começou por lhe fazer perguntas sobre ela própria. Catalina respondeu a princípio com muita timidez, mas, como o bispo continuasse a instá-la com perguntas, acabou por ganhar mais confiança. Tinha uma voz suave e melodiosa e expressava-se com correcção. Contou-lhe a singela história da sua vida. Era a história de todas as moças pobres: duros trabalhos, diversões inofensivas, frequentes visitas à igreja e o seu namoro; contou-a, porém, com tal naturalidade e um ar tão ingénuo que o bispo sentiu-se tocado. Parecia-lhe inconcebível que essa rapariga tivesse inventado qualquer coisa para se fazer importante. Cada uma das suas palavras respirava modéstia e humildade. Contou-lhe então o seu acidente, como ficara com
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a perna paralítica e como Diego, o filho do alfaiate, o seu amado com quem ia casar-se, a tinha abandonado.
- Não o censuro - disse ela. - Vossa Excelência ignora talvez que a vida do pobre é dura, e um homem não deseja ter uma mulher incapaz de trabalhar para ele.
Um sorriso tão terno quanto o permitiam as feições conturbadas do bispo perpassou-lhe rapidamente na face. - Como aprendeste a falar tão bem e com tanto critério, minha filha? - perguntou ele.
- Meu tio Domingo Pérez ensinou-me a ler e a escrever. Deu-se a muito trabalho comigo. Tem sido como um pai para mim.
- Eu conheci-o outrora.
Catalina bem conhecia a má reputação do tio e receou que a sua referência a este a prejudicasse no conceito do santo homem. Houve um silêncio e, por um momento, ela julgou que ele fosse pôr fim à entrevista.
- Conte-me agora, nas suas próprias palavras, a história que referiu a sua mãe - disse ele, fitando-lhe um olhar perscrutador.
Catalina hesitou e o bispo lembrou-se de que o seu confessor lhe dera ordem de não falar naquilo. Informou-a gravemente de que tinha autoridade para tornar sem efeito a proibição do confessor.
Ela repetiu então a história, tal qual a havia contado à mãe. Disse que estava sentada nos degraus da igreja a chorar porque toda a cidade estava em festa e só ela era desgraçada, que uma senhora tinha saído da igreja e lhe falara, que ela lhe tinha dito que Sua Excelência o Bispo tinha o poder de curá-la do seu mal, depois desaparecera diante dos seus próprios olhos,
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e que ela compreendera então que essa senhora era a Virgem Santíssima em pessoa.
Quando terminou de falar, fez-se um longo silêncio. O bispo ficara abalado, mas ao mesmo tempo atormentava-o a decisão. A jovem não era uma impostora - disso estava convencido, pois a sua inocência, a sua sinceridade eram inconfundíveis. Não podia ter sido um sonho, porque ela ouvira bater os sinos, rufar os tambores e soar as trombetas quando ele e seu irmão tinham entrado na cidade, e nesse momento Catalina conversava com a dama, a qual ela não tinha razão para supor fosse coisa diversa do que parecia. Como teria Satanás o poder de assumir uma falsa aparência quando a menina estivera a abrir o seu pobre coraçãozinho diante da Mãe de Deus e a suplicar-lhe que a socorresse na sua aflição? Era uma criatura piedosa e não havia nela a menor presunção. Outros tinham visto as suas orações atendidas, outros tinham recebido a graça espiritual, outros tinham sido curados dos seus males. Se ele recusasse, por medo, fazer aquilo que parecia ser-lhe ordenado, porventura não inconreria em grave pecado de omissão?
"Um sinal!" murmurou de si para si. "Um sinal!" Avançou um ou dois passos e chegou ao pé do altar sobre o qual, envolta num grande manto de veludo azul todo pontoado de ouro, com uma coroa de ouro na cabeça, estava a imagem da Mãe de Deus. Ajoelhou-se e orou, pedindo-lhe que o guiasse. Orou apaixonadamente, mas tinha o coração seco e sentia as trevas da noite envolver-lhe a alma.. Por fim, com um triste Suspiro, ergueu-se e ficou com os braços estendidos numa súplica, fitando o olhar desesperado nos olhos meigos da Santíssima Virgem. De repente Catalina lançou um
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grande grito de espanto. Os dois frades haviam desaparecido, mas embora não pudessem ouvir o que ambos diziam, não estavam fora do alcance da voz, e ao sentir esse grito correram tão depressa como coelhos que ganham a toca. Mas o que viram pareceu chumbá-los ao chão. Ficaram mudos, boquiabertos, como se, a exemplo da mulher de Lot, se houvessem convertido em estátuas de sal. Don Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, alçava-se lentamente no ar, tão lentamente como o azeite que escorrega por uma superfície inclinada muito de leve; elevava-se com um movimento regular, quase imperceptível, como as aguas de um rio em enchente. O bispo subiu até colocar-se rosto a rosto com a imagem que encimava o altar, e por um momento ficou suspenso no ar, qual um falcão que se imobiliza sobre as asas estendidas. Temendo que ele caísse, um dos frades fez menção de avançar, mas o outro - o padre António - reteve-o; e o bispo, muito devagar, tão devagar que mal se percebia o movimento, desceu até os seus pés tornarem a tocar o chão de mármore defronte do altar. Penderam-lhe os braços e ele voltou-se. Os dois frades aproximaram-se a correr e, caindo de joelhos, beijaram-lhe a ourela do hábito. Ele não parecia dar-se conta da presença de ambos. Desceu os três degraus do altar e, como ofuscado, saiu da capela aos tacteios. Os dois frades seguiam-no de muito perto, para acudir-lhe no caso de tropeçar. Catalina ficou esquecida. Saíram da igreja. O bispo deteve-se no alto dos degraus, onde a jovem estivera sentada quando Nossa Senhora lhe apareceu, e olhou para a pracinha que resplandecia ao sol de Agosto. O céu sem nuvens estava tão azul e tão claro, em contraste com a penumbra da igreja, carregada de fumos de incenso, que olhar para ele cegava a vista. As casas brancas, cujos postigos estavam fechados por causa do calor, pareciam cintilar com um brilho próprio, como pedras preciosas. O bispo teve um arrepio, embora o dia estivesse quente como uma fornalha, e tornou a si.
- Façam saber à menina que eu a mandarei chamar. Desceu os degraus, seguido pelos frades a uma distância
respeitável. Atravessou a praça de cabeça baixa. Os dois não ousavam falar-lhe. Quando alcançaram o convento dominicano o bispo parou e votou-se para eles.
- Sob pena de excomunhão, não digam uma só palavra sobre o que viram hoje.
- Foi um milagre, senhor - volveu o padre António. - Acaso é justo que tão conspícuo sinal do favor divino seja ocultado aos nossos irmãos?
- Ao fazer a sua profissão, meu filho, você prestou voto de obediência.
Padre António fora aluno do bispo quando este ensinava teologia em Alcalá, e foi por influência de frei Blasco que ele entrou na Ordem Dominicana. Era vivo e inteligente, e ao ser nomeado inquisidor em Valência, o mestre levou-o consigo na qualidade de secretário. Sentia-se reconhecido ao jovem monge pela sua dedicação e, embora tentasse muitas vezes moderar a excessiva admiração que António tinha por ele, os seus argumentos não faziam senão intensificá-la ainda mais. Padre António, embora fosse tão devoto e zeloso na observância dos seus deveres religiosos quanto podia desejá-lo o Bispo, embora tivesse uma vida impoluta e se mostrasse diligentíssimo no serviço da Igreja, sofria dessa doença que Juvenal chamou "cacoethes soribendi": não se contentando em tomar a vasta correspondência do inquisidor e em redigir
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os inúmeros relatórios, documentos, decisões, etc, necessários à direcção dos negócios do Santo Ofício, passava todos os seus momentos de folga a escrevinhar; e o inquisidor descobriu - como descobria tudo que se relacionava com a sua pessoa ou o seu cargo - que padre António estava mantendo uma crónica minuciosa dos seus actos, de cada palavra que ele pronunciava e dos vários sucessos da sua carreira. Percebia, cheio de humildade, que o secretário lhe dedicava uma estima exagerada, e nos seus exames de consciência perguntava a si mesmo se não lhe incumbiria o dever de pôr termo àquele trabalho, pois muito bem sabia com que fim o frade escrevia. Metera-se naquela cabeça ilustrada, mais tonta, que ele, Frei Blasco de Valero, tinha a fibra de que se fazem os santos e que um documento como o que estava preparando seria valioso para a Cúria quando, após a sua morte, se instaurasse o processo de beatificação. Ainda que perfeitamente cônscio da sua indignidade, o inquisidor não deixava de ser humano e vibrava de piedosa exultação ao considerar a possibilidade, embora remota, de que algum dia viesse a ser contado entre os santos da Igreja. Açoitava-se até fazer correr sangue para punir-se da sua presunção, mas não podia decidir-se a privar aquela boa e piedosa Griatura de uma ocupação evidentemente inofensiva. E quem sabe? Era possível que a simples piedade religiosa do autor lhe permitisse compor uma obra que, apesar da insignificância do assunto, fosse edificante para os fiéis. Nesse instante, lendo no coração do frade, o bispo teve a certeza de que, conquanto os lábios deste não deixassem escapar nem uma palavra sequer do que sucedera na igreja das carmelitas, uma exposição pormenorizada do facto seria incluída no livro. O portentoso fenómeno que hoje conhecemos
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como levitação, e de que ele fora instrumento, tornara-se-lhe familiar através da leitura das vidas de vários santos, e toda a Espanha sabia que em tempos recentes esse sinal de favor divino fora conferido a Pedro de Alcântara, à Madre Teresa de Jesus e a mais de uma freira da ordem das carmelitas descalças. O bispo não podia esperar que padre António omitisse tal ocorrência no seu livro e, mesmo, ignorava se tinha o direito de ordenar-lhe tal coisa. Assim, entrou no convento sem dizer mais uma palavra e dirigiu-se para a sua cela.


XIII.

Não se lembrara, porém, de impor segredo a Catalina, e nem bem os três religiosos tinham deixado a igreja quando ela correu para casa tão depressa quanto lho permitia o seu estado de invalidez. Domingo fora a uma das povoações circunvizinhas a chamado de alguém e só Maria estava em casa. Catalina contou-lhe, em tom aterrado, o portento de que fora testemunha, e depois de terminar contou tudo de novo.
Maria Pérez tinha um pouco do senso dramático que parecia ter sido negado a seu irmão, o dramaturgo. Reprimindo com esforço a sua impaciência, aguardou a hora do recreio no convento, quando todas as freiras estariam reunidas, em palestra com as damas pensionistas e pessoas da cidade; poderia, assim, relatar a assombrosa ocorrência obtendo dela o maior efeito possível. Tinha um público numeroso quando contou a história, e deu-lhe grande satisfação o espanto com
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que a ouviram. Tal foi a impressão causada na subprioresa que esta achou necessário repetir o caso a Dona Beatriz sem perda de um só instante. Daí a pouco Maria Pérez foi chamada à presença da superiora e tornou a desfiar a mesma narrativa; A superiora escutou-a com uma satisfação que não se deu ao trabalho de ocultar.
- Diante disso não é possível hesitar mais - disse ela. - Será uma grande glória não só para este convento, mas para a Ordem de Nossa Senhora do Carmelo.
Despediu as duas mulheres e, apanhando a pena de pato, escreveu ao bispo uma carta em que dizia ter sido informada da graça que lhe fora concedida aquela manhã. Não se faziam mister maiores provas da verdade do que afirmara a jovem Catalina Pérez e de que tal ocorrência não era atribuível a uma maquinação do Inimigo e sim à compaixão de Nossa Senhora. Conjurava-o a pôr de parte as suas dúvidas e incertezas, pois com toda a evidência o seu dever cristão lhe ordenava aceitar a missão que lhe fora imposta. Era uma carta perfeita, sucinta mas bem argumentada, respeitosa mas firme, e a superiora terminava rogando-lhe, com grande humildade, que se dignasse realizar o milagre na mesmo igreja em que lhe fora conferido esse favor divino e à qual era evidente ter a Santíssima Virgem concebido uma afeição especial. Enviou a carta por um mensageiro.
Dois dos cavalheiros que se encontravam na sala de visitas do convento quando Maria Pérez contou a história ficaram tão impressionados que foram acto contínuo ao convento dos dominicanos indagar da sua veracidade. Os frades, naturalmente, nada sabiam, mas não se surpreenderam em absoluto quando o caso lhes foi repetido. Conheciam perfeitamente
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a gramde santidade do bispo e nada era mais natural do que conferir-lhe o Senhor a assinalada honra da levitação. Nesse meio tempo, uma das pensionistas das carmelitas foi visitar pessoas amigas na cidade e relatou-lhes o milagroso acontecimento. Dentro de uma ou duas horas toda a cidade tinha conhecimento do oconrido. Outros cavalheiros dirigiram-se para o convento dos dominicanos, a fim de colher informações de primeira mão. Os frades vibravam de entusiasmo religioso. Finalmente, Padre António viu-se na obrigação de ir dizer ao bispo que, embora nem ele nem o seu companheiro houvessem falado, o facto se tornara conhecido de todos. A carta da prioresa estava aberta em cima da mesa.
- Essas miseráveis mulheres são incapazes de refrear a língua - disse Don Blasco, apontando para ela. - É uma grande humilhação para mim que essa história tenha transpirado.
- Os nossos irmãos deste convento esperam que Vossa Excelência consinta agora em curar a infeliz jovem da sua enfermidade.
Bateram à porta. Padre António foi abri-la. Era um frade com um recado do prior perguntando se podia falar ao bispo.
- Que venha.
Padre António esteve presente à entrevista e escreveu uma relação da mesma, com toda a minúcia. Ao cabo, o bispo deixou-se convencer de que a vontade do Senhor era que ele obedecesse à solicitação da Santíssima Virgem. Formulou, todavia, condições que o prior, muito a contragosto, foi obrigado a aceitar. Queria o prior uma cerimónia com todos os monges reunidos, em presença das notabilidades locais, tanto leigas como eclesiásticas. Mas a isto o Bispo se opôs asperamente.
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Insistiu em que se guardasse sigilo. Estava disposto a ir à igreja das carmelitas e dizer a sua missa ali na manhã seguinte. Deviam fechar-se as portas para que ninguém fosse admitido. Ele próprio só iria acompanhado pelos seus dois secretários. Bastante enraivecido pelo que lhe parecia uma desconsideração à sua dignidade, o prior retirou-se. O bispo mandou então o padre António informar Dona Beatriz da sua decisão. Dava-lhe licença de trazer as suas freiras, mas proibia as damas pensionistas de comparecer. Recomendava-lhe que fizesse Catalina preparar-se para tomar a Santa Comunhão depois da missa e pedia-lhe, a ela e às suas freiras, que orassem por ele aquela noite.
Dentro de uma hora, uma freira toda emocionada veio à casa de Maria Pérez e pediu para ver Catalina, pois tinha algo muito importante para lhe dizer em particular. Depois de chamarem Catalina a freira levou o dedo aos lábios, recomendando discrição.
- É um grande segredo - disse ela. - Não deves contar a ninguém. O senhor bispo vai curar-te e amanhã estarás correndo e pulando sobre os dois pés, como qualquer outro cristão.
Catalina susteve o fôlego e o seu coração pôs-se a bater como doido.
- Amanhã?
- Terás de tomar a Sagrada Comunhão, de modo que não deves comer nada depois da meia-noite.
- Sim, eu sei. Mas de qualquer jeito nunca como nada depois da meia-noite.
- Além disso, deves pôr-te em estado de graça. Depois de comungares ele te deixará tão sã como Nosso Senhor deixou o leproso.
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- A mamã e o tio Domingo podem ir?
- Não me disseram nada a esse respeito. Está claro que podem. Talvez isso também cure o teu pobre tio dos seus maus costumes.
Domingo não voltou do campo senão tarde naquela noite, mas assim que ele entrou em casa Catalina contou-lhe, toda agitada, a emocionante nova. Ele fitou-a cheio de consternação.
- Não ficais contente, tio? - exclamou ela.
Em lugar de responder ele pôs-se a caminhar de um lado para outro. Catalina não podia compreender essa estranha atitude.
- Mas que (tens, tio? Isso não te agrada? Eu pensava que ficarias tão contente como eu. Não queres que eu me cure?
Ele sacudiu os ombros com irritação e continuou a percorrer o quarto de um lado para outro. Ainda não estava plenamente convencido de que a aparição não fora um produto da mente perturbada da sobrinha e temia as consequências para ela se a intervenção do bispo fosse inútil. Em tal caso, o Santo Ofício bem podia achar que o assunto exigia inquérito.
Seria um desastre. Parou de repente e virou-se para Catalina.
Olhou-a com uma expressão severa que a jovem nunca lhe
tinha visto até então.
- Conta-me exactamente o que te disse a Virgem Santíssima.
Ela repetiu a história.
- E então a Virgem disse: "O filho de Juan de Valero que melhor tem servido a Deus possui o poder de curar-te."
Domingo interrompeu-a asperamente.
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- Mas não foi isso que disseste a tua mãe! Disseste-lhe que Blasco de Valero tinha o poder de curar-te.
- Dá no mesmo. O bispo é um santo, todo o mundo sabe disso. Qual dos filhos de Dom Juan tem servido a Deus tão bem como ele?
- Ó tola! - exclamou Domingo. - Ó grande tolinha!
- Tu é que és tolo! - retrucou ela, acalorada.
Não acreditaste que a Santíssima Virgem me tinha aparecido, falado comigo e desaparecido diante dos meus olhos. Pensavas que fosse um sonho. Pois bem, ouve isto.
E contou-lhe como vira o bispo elevar-se do chão, ficar suspenso no ar e descer novamente até ao chão.
- Isso não foi sonho. Os dois frades que lá estavam viram-no com os seus próprios olhos.
- Coisas ainda mais extraordinárias têm acontecido - resmungou ele.
- E contudo não queres acreditar que Nossa Senhora me apareceu.
Ele deitou-lhe um olhar cintilante.
- Não é verdade. Antes não acreditava, mas agora acredito, não por causa do que viste essa manhã mas pelas palavras que te dirigiu a Santíssima Virgem. Há nelas um sentido oculto que me convence.
Catalina ficou perplexa. Não compreendia como a insignificante disparidade entre as duas versões pudesse fazer alguma diferença. Ele afagou-lhe a face com brandura.
- Sou um grande pecador, minha pobre criança, e o que torna desesperada a minha situação é que nunca pude arrepender-me dos meus pecados. Tenho tido uma existência aventurosa e frívola, mas li muitos livros, antigos e modernos,
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e aprendi muita coisa que talvez fosse melhor para a minha alma não conhecer. Mas coragem, minha querida, talvez tudo ainda venha a terminar bem. Apanhou o chapéu.
- Aonde vais, tio?
- Passei um dia muito atarefado e preciso distrair-me. Vou à taberna.
Nisto, porém, Domingo faltava com a verdade, pois em lugar de ir à taberna dirigiu-se para o convento dos dominicanos. Embora ainda estivesse claro, a hora era avançada e o porteiro não o deixou entrar. Domingo insistiu que precisava falar com o bispo sobre um assunto de grande importância, mas o porteiro, falando pelo postigo, negou-se a abrir a porta. Domingo disse-lhe que era o tio de Catallina Pérez e rogou-lhe que chamasse pelo menos um dos secretários de Sua Excelência. O porteiro mostrou-se pouco disposto a atender mesmo a esse pedido, mas tanto insistiu Domingo que ele consentiu afinal. Volvidos alguns minutos, padre António aproximou-se do postigo. Domingo implorou-lhe que o deixasse falar ao bispo, pois tinha uma comunicação da maior importância para este. O frade, evidentemente, estava informado a respeito da sua pessoa e conhecia-lhe a má reputação, pois respondeu com frieza. Disse que era impossível incomodar Sua Excelência, que estava a passar a noite em orações e dera ordens para que não o interrompessem sob pretexto algum.
- Se não me deixar vê-lo será responsável por um terrível infortúnio.
- Bêbedo! - disse padre António desdenhosamente.
- Sou um bêbedo, é verdade, mas não estou embriagado
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agora. Vai lamentar amargamente o facto de não me ter deixado entrar.
- Que mensagem é essa que me pede para transmitir? Domingo hesitou. Não sabia o que dizer.
- Diga-lhe que, pelo amor que lhe tem, Domingo Pérez lhe manda esta mensagem: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo."
- "Hijo de puta!" - gritou padre António, enraivecido por ouvir esse valdevinos, esse dissoluto citar a Santa Escritura.
Bateu-lhe com o postigo na cara. Domingo afastou-se, cheio de melancolia. O hábito orientou-lhe os passos para a taberna. e ele entrou. Era uma criatura sociável e, se não tinha muitos amigos, tinha pelo menos bom número de companheiros de libação. Embebedou-se e, uma vez bêbedo, soltou-se-lhe a língua. Gostava de se ouvir falar e, nessa ocasião como em muitas outras, foi-lhe fácil encontrar ouvintes.


XIV.

Na manhã seguinte, quando, como teria dito Domingo num dos seus poemas, Aurora esfregou os olhos com os dedos rosados e Febo atrelou ao seu carro de ouro os velozes corcéis do sol - ou seja, em prosa, ao romper do dia, três monges dominicanos com os capuzes baixados sobre as cabeças rapadas à navalha, em parte para ocultar-se e em parte para se protegerem dos nocivos vapores da noite que ainda não se acabara de todo, saíram atenciosamente do convento. Mas, embora
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fosse tão cedo, os habitantes da cidade tinham sentido qualquer coisa no ar e já havia um grupo reunido diante do portão do convento. Na alta figura encapuzada que caminhava entre as duas outras, reconheceram de imediato a santa pessoa do bispo. Seguidos a respeitosa distância pelos curiosos, os três frades dirigiram-se rapidamente para a igreja das carmelitas. Outras pessoas esperavam ali. Um dos frades bateu à porta. Esta abriu-se o suficiente para deixá-los passar um após outro e cerrou-se atrás deles. Quando os espectadores tentaram entrar, encontraram-na fechada à chave e, embora batessem, fizeram-no em vão.
Catalina esperava na capela da Virgem. Maria Pérez e Domingo tinham-na acompanhado, mas não os deixaram entrar. Dona Beatriz recebeu o bispo à porta da igreja com as suas freiras, vinte ao todo, pois tal era o limite fixado pelo duque de Castel Rodríguez ao fundar a instituição. O bispo entrou na sacristia com os seus dois auxiliares e envergou as sacras vestimentas. Dirigiu-se devagar para a capela da Virgem. As freiras estavam de joelhos. Apoiando-se na muleta, Catalina ajoelhou-se ao pé dos degraus do altar. O bispo celebrou a missa. As freiras entoaram os responsos em voz baixa e reverente. Ele administrou a Santa Comunhão a Catalina. Após a bênção e a leitura do último Evangelho, ajoelhou-se diante do altar e orou em silêncio. Depois ergueu-se, fitando em Catalina os grandes olhos trágicos, desceu os degraus. Pousou-lhe na cabeça a mão fina e morena.
- Eu, instrumento indigno do Altíssimo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ordeno-te que lances fora essa muleta e caminhes.
Começara em voz trémula e tão sumida que as freiras mal
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podiam ouvi-lo, mas pronunciou as últimas palavras sonoramente, num tom claro de comando. Catalina, com o rosto pálido de emoção, os olhos cintilantes, ergueu-se em pé, largou a muleta!, deu um passo à frente e, com um grito de angústia, caiu redondamente no chão. O milagre havia falhado.
Imediatamente se formou uma balbúrdia entre as freiras. Algumas puseram-se a gritar e duas delas desmaiaram. A prioresa adiantou-se. Relanceou os olhos para Catalina e depois o seu olhar encontrou o do bispo. Por um instante encararam-se fixamente. À retaguarda as freiras soluçavam. Então o bispo saiu da capela, com os dois frades atrás de si, e entrou na sacristia. Não disse uma só palavra. Após tirarem as vestimentas da missa e tornarem a pôr os seus hábitos monásticos, entraram de novo na igreja. A porteira estava à espera para abrir a porta. Com a cabeça novamente coberta pelo capuz, o bispo tornou a sair para o sol claro da manhã de Verão.
Tinha-se espalhado a notícia de que ele estava realizando um milagre naquele momento e as janelas da praça estavam apinhadas de espectadores. Formavam uma multidão compacta nos degraus da igreja e o logradouro estava cheio deles. Durante um instante o bispo ficou aterrado por ver aquele grande concurso de povo - mas só durante um instante. Compôs o hábito e aprumou-se. Assim que ele aparecera, um estremecimento de consternação percorreu o povo, pois de um modo misterioso este compreendeu de imediato, embora não soubesse dizer como, que o milagre falhara. Abriram caminho e o bispo, seguido pelos dois frades, desceu a escadaria da igreja. Aqueles que se encontravam na praça recuavam, comprimindo-se uns aos outros, e ao passar o bispo pela espécie
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de corredor assim formado, com o rosto oculto, a alta figura encolhida no hábito branco e preto da ordem, fazia-se na multidão um temível silêncio. Dir-se-ia que estivessem apavorados ante a iminência de alguma catástrofe inevitável.


XV.

Os monges do convento dominicano tinham-se indignado quando o bispo lhes negou permissão de assistir à cerimónia. Ao regressar com os seus dois secretários, encontrou-os vadiando, à espera para olhá-lo. A notícia já havia alcançado o convento. Passou por eles como se não os visse.
Ao saber que teriam no seu meio um hóspede tão ilustre, haviam provido a sua cela do luxo que lhes parecia condizente com a sua grandeza. Mas ele mandara logo retirar tudo quanto ofendia a sua austeridade. Obrigou-os a trocar o colchão macio da cama por outro de palha, tão fino quanto um cobertor, e pediu que as duas poltronas colocadas no oratório fossem substituídas por mochos de três pés. Tinham-lhe dado uma bela mesa de teca para escrever, mas ele reclamou, em lugar dela, uma mesa de pinho sem pintura. Não aceitava nada que desse prazer aos sentidos. Rejeitou os quadros que hiaviam pendurado nas paredes. Estas ficaram nuas, com excepção de uma simples cruz negra, sem a figura de Nosso Senhor, quer esculpida, quer pintada, e isso a fim de que ele pudesse imaginar-se mais vivamente pregado a ela, sentindo assim no seu corpo o suplício que havia experimentado o Redentor por amor à humanidade.
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Ao entrar na sua cela, o bispo deixou-se cair no duro mocho de madeira e fitou os olhos no pavimento de pedra. Lágrimas lentas e dolorosas escorreram-lhe pelas faces cavadas. Padre António encheu-se de compaixão ao ver o seu mestre mergulhado num sentimento que muito se parecia com o desespero. Cochichou qualquer coisa ao seu companheiro, que no mesmo instante saiu, voltando ao cabo de poucos minutos com uma tigela de sopa. Padre António ofereceu-a ao bispo.
- Coma, senhor.
O bispo desviou o rosto.
- Não poderia engolir nada.
- Mas, Excelência, não tem posto nada na boca desde ontem de manhã! Rogo-lhe que tome pelo menos algumas colheradas.
Ajoelhou-se, encheu uma colher com a sopa fumegante e levou-a aos lábios do bispo.
- Você é muito bom para mim, meu filho - disse este. - Não mereço as atenções que me dedica.
Para não ser grosseiro, engoliu o conteúdo da colher e o monge deu de comer ao humilhado homem como se este fosse uma criança enferma. O bispo não desconhecia o profundo apego que lhe tinha o seu fiel auxiliar e mais de uma vez o advertira do perigo de tal coisa, pois um religioso deve estar sempre em guarda para não tomar afeição a indivíduos particulares, o que não faz senão criar obstáculos à integral devoção para com o Senhor, que é o único objecto verdadeiro de amor. Quanto aos seres humanos, quer clérigos quer leigos, deve tratá-los com boa vontade, pois são criaturas de Deus, mas ao mesmo tempo - visto que são perecíveis - com uma indiferença para a qual tanto faz estarem presentes como
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ausentes. Mas é difícil governar os afectos e, por mais que o tentasse, padre António não conseguia eliminar o amor, a devoção extática de que estava repleto o seu pobre coração. Depois que o bispo comeu, padre António pôs de lado a tigela e, sempre de joelhos, atreveu-se a tomar-lhe a mão.
- Não se amargure tanto, senhor. A menina foi enganada pelo demónio.
- Não, a culpa foi minha. Solicitei um sinal e ele foi-me dado. Na minha vanglória, não me julguei indigno de realizar aquilo que só é concedido aos santos eleitos pelo Senhor. Sou um pecador e fui justamente punido pela minha presunção.
Tão acabrunhado estava o bispo que o frade ousou falar-lhe num tom que jamais teria empregado em outras circunstâncias.
- Todos nós somos pecadores, meu senhor, mas eu tive o privilégio de conviver consigo durante muitos anos e ninguém melhor do que eu conhece a sua constante bondade para com todos os homens, a sua inesgotável caridade e compaixão.
- Quem fala agora, é a sua bondade, meu filho. É a afeição que me tem, contra a qual o tenho advertido tantas vezes e que eu tão pouco mereço.
Padre António considerou com piedade o nosto agoniado do bispo. Continuava a segurar-lhe a mão fria e emaiciada.
- Permite que eu lhe leia um pouco para distraí-lo, meu senhor? - disse ele depois de uma pausa. - Escrevi ultimamente alguma coisa sobre a qual desejaria a sua opinião.
O bispo sabia quão amargurado estava o pobre frade pelo facto de não se haver realizado o milagre que ele aguardara com tão absoluta confiança, e sentiu-se tocado ao ver esse homem simples e estimável vencer a sua própria decepção para
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o atender e consolar. Até então, jamais havia consentido em escutar uma palavra sequer do livro que o seu secretário escrevia com tanta diligência, mas dessa vez não teve coragem de recusar-lhe um prazer que ele tão ardentemente desejava.
- Leia, meu filho. Terei muito gosto em ouvir.
Com as faces rubras de prazer, o padre pôs-se atabalhoadamente em pé e tirou, de entre os numerosos papéis com que o seu cargo o obrigara a lidar, várias folhas manuscritas. Sentou-se num dos mochos. O outro frade sentou-se no chão, pois não havia outro lugar onde sentar-se. Padre António começou a ler.
Escritor erudito e elegante, nenhum artifício de retórica lhe era desconhecido. Tinha um estilo rico em símiles e metáforas, metonímias, sinédoques e catacreses. Nunca soltava um substantivo sem o escoltar com dois robustos adjectivos. As imagens brotavam-lhe na mente tão pingues e profusas como cogumelos após a chuva. Versado como era nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja e dos moralistas latinos, nunca tinha dificuldade em encaixar uma alusão oculta. Conhecia a fundo a estrutura dos períodos, simples, complexos, compostos e compostos-complexos, e não só sabia compô-los de maneira perfeita, com cláusulas e subcláusulas, mas também dar-lhe um fecho sonoro e triunfante que fazia o efeito de uma porta batida na cara do leitor. Esse estilo literário, a que um crítico engenhoso deu o nome de "Mandarim", é muito estimado pelos que o adoptam, mas tem a pequena desvantagem de tomar muito tempo para exprimir aquilo que se pode dizer em poucas palavras. Em todo o caso, ele destoaria da linguagem simples e tosca em que é vasada esta narrativa; de modo que, ao invés de fazer uma inútil tentativa de reproduzir
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a grandiloquência do bom frade, o autor destas páginas achou de bom aviso dar uma súmula do assunto à sua moda singela.
Não sem bastante tacto, padre António escolheu para ler o relato do grande auto-de-fé que havia coroado a carreira de Frei Blasco no Santo Ofício e que, conforme mencionamos anteriormente, causara tanto prazer ao príncipe, agora Filipe III, e a seu tempo ocasionara a elevação do piedoso inquisidor à importante diocese de Segóvia.
A impressionante cerimónia, feita para inspirar respeito à autoridade da Inquisição e edificar o povo, realizou-se num domingo, a fim de que ninguém pudesse pretextar suas ocupações para deixar de comparecer, visto que isso era um dever religioso; e, para conseguir-se um público tão numeroso quanto possível, concederam-se quarenta dias de indulgência a todos quantos assistissem. Três palanques tinham sido erigidos na grande praça da cidade, uma para os penitentes com os seus assistentes espirituais, outro para os inquisidores, autoridades do Santo Ofício e o clero em geral, e um terceiro para as autoridades civis e dignitários locais. As solenidades, no entanto, tiveram início na noite anterior com a procissão da Cruz Verde. Em primeiro lugar, com um estandarte de damasco carmesim em que fora bordado o escudo real, ia uma multidão de familiares e de cavalheiros; depois as ordens religiosas, com a Cruz Branca; a Cruz da igreja da paróquia, carregada pelo clero secular; e finalmente a Cruz Verde, carregada pelo prior dos dominicanos, acompanhado pelos seus frades com tochas. Enquanto caminhavam, cantavam o "Miserere". A Cruz Verde foi plantada acima do altar, no palanque reservado aos inquisidores, e guardada durante a noite pelos dominicanos. A Cruz Branca
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foi conduzida ao local da execução, onde lhe montaram guarda soldados da "Zarza", milícia encarregada de vigiar o "quemadero" ou lugar onde se armavam as fogueiras, e de fornecer lenha para estas.
Um dos deveres dos inquisidores era visitar durante a noite os condenados à morte, informá-los da sentença e designar dois monges que deviam preparar cada um deles para enfrentar o Senhor. Nessa, ocasião, porém, padre Baltasar, o mais moço dos inquisidores, estava acamado com uma cólica e desejando refazer-se o suficiente para tomar parte nas cerimónias do dia seguinte, rogou a Frei Blasco que o escusasse de acompanhá-lo nessa triste missão.
Ao nascer do dia celebrou-se a missa na câmara de audiências do Santo Ofício e diante do altar da Cruz Verde. Serviu-se uma refeição aos prisioneiros e aos frades que tinham feito companhia aos condenados e que, sem dúvida, a acolheram com alegria. Os penitentes foram então dispostos em fileiras, de acordo com a gravidade do seu delito contra a fé, e vestiram-nos com sambenitos. O sambenito era uma túnica amarela num de cujos lados tinham pintado chamas para os condenados à fogueira, e no outro lado estava inscrito o nome, residência e crimes cometidos por cada um. Davam-lhe cruzes verdes para carregar e punham-lhe círios amarelos na mão.
Formou-se outra procissão. Os soldados da "Zarza", que a conduziam eram seguidos de um religioso com uma cruz envolta numa mortalha negra e de um acólito que de tempos a tempos dobrava uma sineta. Vinham então os penitentes, um a um, com um familiar de cada lado; depois, as efígies ou as ossadas daqueles que, pela fuga ou pela morte, tinham esbulhado o Santo Ofício da sua justa presa; em seguida,
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os condenados à morte, acompanhados pelos frades que lhes tinham prestado assistência espiritual durante a noite. Seguiam-se autoridades a cavalo, familiares a avançar dois a dois, os magistrados e os dignitários eclesiásticos, de acordo com a ordem oficial de precedência. Um nobre de alta categoria carregava um estojo de veludo vermelho, franjado de ouro, que continha as sentenças dos condenados. Vinha então o estandarte do Santo Ofício, conduzido pelo prior dos dominicanos, seguido dos seus monges; e, por último, os inquisidores.
Era um belo dia de sol, um desses dias que estimulam o espírito de moços e velhos, fazendo-lhes sentir que a vida é boa.
A procissão avançou lentamente pelas ruas tortuosas até chegar à praça. Havia grande afluência de povo. Muita gente acorrera das férteis fazendas que cercavam a cidade dos arrozais e dos olivais; outros, ainda vinham de Alicante, a terra dos parreirais, e de Elche, a região das tamareiras. As janelas das casas circundantes estavam cheias de pessoas nobres e gradas. O príncipe esperava com a sua comitiva num balcão da municipalidade.
Fizeram os réus sentar-se no palanque erigido para eles, na ordem em que tinham marchado, os menos culpados nos bancos inferiores e os mais criminosos nos superiores. Havia no palanque dois púlpitos em que se acomodou o tribunal, e de um desses púlpitos fez-se uma prédica. Então, numa voz tão alta que todos podiam ouvi-lo, um secretário leu o juramento pelo qual as autoridades e todos os presentes se comprometiam a obedecer ao Santo Ofício e a perseguir os hereges e a heresia. Todos disseram ámen, Em seguida, os dois inquisidores dirigiram-se para a sacada em que se achava o príncipe e, sobre a Cruz
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e os Evangelhos, exigiram-lhe um juramento pelo qual se obrigava a obedecer à fé católica e ao Santo Ofício, a perseguir os hereges e apóstatas e ajudar a Inquisição a capturar e punir, quaisquer que fossem a sua posição e categoria-, os infiéis que rejeitavam a verdadeira religião.
- Eu o juro e prometo pela minha fé e sob a minha palavra real - respondeu solenemente o príncipe.
Havia um banco entre os dois púlpitos, e para ali os penitentes foram conduzidos um a um. Leram-lhes as sentenças, alternativamente, de um e de outro púlpito. Com excepção dos condenados às chamas, era a primeira vez que lhes anunciavam o seu destino, e como alguns perdiam os sentidos ao ouvi-lo o Santo Ofício, na sua misericórdia, havia munido o banco de um gradil para que não se magoassem ao cair. Nessa ocasião um homem, alquebrado pela tortura, morreu ali mesmo do choque. A Última sentença foi lida e os réus entregues ao braço secular. O Santo Ofício não impunha qualquer espécie de pena que implicasse em derramamento de sangue, chegando mesmo ao ponto de instar com as autoridades civis para que poupassem a vida do criminoso. A lei canónica, no entanto, exigia-lhes que punissem prontamente os hereges confiados às suas mãos pela Inquisição e concedia-se uma indulgência aos devotos que trouxessem lenha para a fogueira destinada a queimá-los.
Ficava assim terminada a tarefa dos inquisidores, que se retiraram. Os soldados da "Zarza" entraram na praça e descarregaram os seus mosquetes. Depois cercaram os prisioneiros e marcharam com eles para o local da execução, a fim de protegê-los contra a fúria do populacho, que, no seu ódio à heresia, tê-los-ia maltratado e até seria capaz de matá-los.
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Os frades acompanhavam-nos, esforçando-se até ao fim por lhes arrancar uma palavra de arrependimento e conversão. Entre eles havia quatro mulheres mouras, cuja beleza provocou a admiração de todos, um impenitente mercador holandês que fora apanhado a introduzir no país uma tradução espanhola do Novo Testamento, um mouro culpado de ter morto uma galinha cortando-lhe a cabeça, um bígamo, um mercador que dera asilo a um fugitivo do Santo Ofício, e um grego culpado de defender opiniões condenadas pela Igreja. Um aguazil e um secretário foram com as autoridades civis, para tratar de que as sentenças fossem devidamente executadas. O secretário, nessa ocasião, era padre António, que assim teve oportunidade de fazer um relato completo dos acontecimentos do dia.
O "quemadero" ficava fora da cidade. Garrotes tinham sido presos às estacas, a fim de que aqueles que houvessem manifestado a intenção de morrer na fé cristã, inclusive os que o faziam no último momento, pudessem escapar à morte pelo fogo, perecendo pelo método mais suave do estrangulamento. A multidão precipitara-se em pós dos soldados e dos prisioneiros e grande número de pessoas, a fim de apreciar melhor os trâmites da execução, foram tomar lugar antecipadamente no espaço aberto em que devia verificar-se a cena final. Havia ali enorme assistência, o que era natural, pois tratava-se de um espectáculo digno de ser visto e de um entretenimento muito apropriado a um hóspede de sangue real; além disso, o espectador tinha a satisfação de saber que estava realizando um acto de piedade e um serviço a Deus. Os destinados ao garrote foram garroteados. Depois atearam-se as chamas, e vivos e mortos foram reduzidos a cinzas, a fim de que a sua memória
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desaparecesse para sempre. O povo levantou um clamor e pôs-se a bater palmas ao ver subir as chamas, abafando quase os gritos agudos das vítimas, e aqui e além uma mulher entoava um salmo lamentoso e estridente à Santíssima Virgem ou a Cristo Crucificado. Caiu a noite e a multidão voltou aos grupos para a cidade, fatigada de tanta emoção e tantas horas passadas em pé, mas sentindo que tivera um dia feliz. Dirigiam-se em grande número para as tabernas. Os bordéis tiveram um movimento nunca visto e muito homem pôs à prova nessa noite a eficácia do fragmento do hábito de frei Blasco, que usava num escapulário ao pescoço.
Padre António também estava cansado, mas a sua primeira obrigação era comunicar os acontecimentos aos dois inquisidores. Feito isso, como era um homem consciencioso, apesar da fadiga que o tentava a ir para a cama sentou-se e escreveu uma narrativa circunstanciada de tudo quanto sucedera naquele dia, enquanto tinha todos os pormenores frescos no espírito. Fê-lo com rapidez e uma eloquência que parecia inspirada pelo Céu, e ao reler o que escrevera verificou que não havia necessidade de alterar uma só palavra. Finalmente, ditoso pela consciência de haver cumprido o seu dever e contribuído, além disso, com a sua modesta parte para uma obra piedosa, meteu-se na cama e dormiu o sono inocente de uma criança.
Tudo isso ele o leu ao desalentado bispo em voz forte e sonora, dando uma ênfase dramática aos episódios mais significativos. Lia com os olhos pregados ao papel. Sentia uma estranha exaltação. Era assim que se servia o Senhor e se mantinha a pureza da fé católica. Terminou a leitura. Tinha de reconhecer que fizera justiça à grandiosa solenidade. Ele próprio sentia a vividez da sua descrição e a maneira artística por que conduzira
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a narrativa, sem saber como, a um clímax imponente. Alçou os olhos. Como muitos outros escritores que submetem a sua obra à apreciação de um ouvinte, gostaria de ser recompensado com uma palavra de louvor. Mas isso não passou de um desejo momentâneo. O fim principal era dissipar as sombrias imaginações do seu amado e venerado superior, lembrando-lhe o mais glorioso incidente da sua carreira. Por mais santo que fosse, não podia deixar de sentir um estremecimento de orgulho ao surgir-lhe ante os olhos do espírito aquele dia magnífico em que relegara aos tormentos eternos tão grande número de amaldiçoados hereges, servindo assim o Senhor, desobrigando a sua consciência e edificando o povo. Padre António ficou surpreendido, mais do que surpreendido, ateimado, quando viu que as lágrimas lhe desciam pelas faces murchas e ele apertava os punhos com força, para conter os soluços que lhe sacudiam o peito.
Atirou ao chão o manuscrito e, saltando do tamborete em que estava sentado, lançou-se aos pés do seu mestre.
- Mas que tem o senhor? - exclamou. - Que fiz eu? Li apenas para distraí-lo...
O bispo afastou-o de si e, pondo-se em pé, estendeu os braços súplices para a cruz negra pregada à parede.
- O grego! - gemeu ele. - O grego!
E, incapaz de se conter por mais tempo, desatou num choro arrebatado. Os dois frades contemplavam-no cheios de consternação. Nunca tinham visto esse homem austero entregar-se a crises emotivas. O bispo secou as lágrimas impacientemente, com a palma da mão.
- Eu sou o culpado - gemeu ele - , terrivelmente culpado.
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Cometi um horrendo pecado e a minha única esperança de perdão está na infinita misericórdia do Senhor.
- Explique pelo amor de Deus, Excelência! Estou absolutamente confuso. Pareço um marinheiro numa tempestade, com o barco desarvorado e o leme perdido. - Com o seu trecho literário ainda a ressoar-lhe nos ouvidos, era impossível a padre António deixar de falar como um livro.
- O grego? Porque Vossa Excelência se refere ao grego? Era um herege e sofreu a justa punição do seu crime.
- Você não sabe o que diz. Não sabe que o meu crime é ainda maior que o dele. Pedi um sinal e o sinal foi-me dado. Tomei-o por um indício da graça divina;; vejo agora que era um indício da Sua cólera. É justo que eu seja humilhado aos olhos dos homens, porque sou um miserável pecador.
Não se voltou para os seus companheiros. Não era a eles que falava, mas à Cruz sobre a qual se imaginara tantas vezes, com as mãos e os pés atravessados por pregos.
- Era um bom velho, caridoso na sua pobreza para com os mais pobres do que ele, e durante os anos que o conheci nunca lhe ouvi pronunciar uma má palavra. Olhava todos os homens com estima e bondade. Possuía a verdadeira nobreza da alma.
- Muitos homens, virtuosos na vida pública e privada, foram justamente condenados pelo Santo Ofício, porquanto a rectidão moral nada pesa na balança contra o pecado mortal da heresia.
O bispo virou-se e considerou padre António. O seu olhar era trágico.
- E o estipêndio do pecado é a morte - murmurou ele. O grego de quem faiavam, Demétrios Ghristopoulos, era
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natural de Chipre e homem de algumas posses, o que lhe permitira dedicar-se aos estudos. Quando os turcos, no reinado de Selim II, invadiram a ilha, tomaram Nicósia, a capital, e passaram a fio de espada vinte mil dos seus habitantes. Famagusta, onde vivia Demétrios Chrastopoulos, foi cercada e rendeu-se após um ano de acirrada resistência. Sucedia isso em 1571. Fugiu ele da cidade condenada! e homiziou-se nos montes até conseguir escapar num bote de pescadores, e depois de muitas aventuras desembarcou na Itália. Estava sem vintém, mas não tardou a arranjar suficiente trabalho, como professor de grego e expositor da filosofia antiga, para não morrer de fome. Numa hora aziaga, porén, fez-se notado por um fidalgo espanhol adido à embaixada do seu país em Roma, o qual durante a sua residência na Itália se rendera ao culto de Platão, então na moda. O nobre levava-o ao seu palácio e os dois liam juntos os imortais diálogos do filósofo. Volvidos alguns anos, no entanto, foi reconduzido à Espanha e convenceu o grego a ir com ele. Foi elevado à vice-realeza do Reino de Valência e nesta cidade veio a monrer. O grego, sem recursos e já à beira da velhice, deixou o palácio do vice-Rei e instalou-se muito modestamente em casa de uma viúva. Tinha adquirido certo renome de erudição e arranjou um precário meio de vida dando lições de grego aos que desejavam adquirir conhecimentos desse nobre idioma.
Frei Blasco de Valeiro ouvira falar dele quando ainda ensinava teologia em Alcalá de Henares. Pouco depois de assumir o cargo de inquisidor em Valência, sabedor de que ele era um homem de boa reputação e vida virtuosa, mandou chamá-lo. Simpatizou com as maneiras suaves e modestas do velho e pediu-lhe que lhe ensinasse a língua em que fora escrito o Novo
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Testamento, a fim de poder lê-lo com maior devoção. Durante nove anos, sempre que os seus múltiplos deveres lhe davam um momento de folga, o inquisidor e o grego trabalharam juntos. Frei Blasco era um aluno diligente e capaz, e ao cabo de alguns meses o grego, que tinha paixão pela grande e antiga literatura do seu país, convenceu-o a enfrentar as obras dos autores clássicos. Era platonista fervoroso e não tardou que se pusessem a ler os "Diálogos". Daí passaram para Aristóteles. O frade não quis ler a "ilíada", que lhe parecia brutal, nem a "Odisseia", que ele achava frívola, mas encontrou muita coisa de admiração nos autores dramáticos. Sempre acabavam, no entanto, por voltar aos "Diálogos".
O inquisidor era um homem de sensibilidade delicada e encantou-o a graça, a piedade religiosa e a profundidade de Platão. Havia nas obras deste muita coisa que um cristão podia aprovar. Era pretexto para que ambos discutissem muitos assuntos sérios. Frei Blasco entrou assim num novo mundo. Sentia um singular deleite na leitura desses grandes livros que lhe proporcionavam um feliz repouso após as ocupações do dia. No seu longo e fecundo convívio com aquele homem que não parecia pertencer a este mundo concebera por ele uma espécie de afeição, e tudo que ouvia dizer do grego, da sua vida simples e honesta, da sua índole bondosa e da sua caridade, aumentava a admiração que lhe inspirava o seu carácter.
Foi um choque terrível para ele quando um holandês luterano, detido pelos familiares da Inquisição por introduzir na Espanha traduções do Novo Testamento, confessou no cavalete haver dado um exemplar ao grego. Prosseguindo o interrogatório, com a assistência de mais uma volta do arrocho, disse
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ter conversado amiúde com ele sobre religião, e que em muitos pontos estavam inteiramente de acordo. Isto era suficiente para que o Santo Ofício se visse obrigado a instaurar um inquérito que, como sempre, foi exaustivo e secreto. O grego foi conservado na ignorância de estar sob suspeita. Ao ler os autos finais do inquérito, frei Blasco ficou horrorizado. Nunca lhe passara pela cabeça que o grego, tão bom, tão humilde, não houvesse, durante os longos anos passados na Itália e depois na Espanha, abjurado as suas opiniões cismáticas e abraçado a fé católica de Roma. Testemunhas juraram ter-lhe ouvido emitir opiniões condenáveis. Demétrios negava que o Espírito Santo procedesse do Filho, rejeitava a supremacia do papa e, embora venerasse a Virgem:, não queria admitir a sua imaculada conceição. A dona da casa em que ele morava ouvira-lhe dizer que as indulgências não tinham valor algum e alguém mais testificou que ele não aceitava a doutrina romana do purgatório.
O colega de frei Blasco, Don Baltasar de Carmona, era doutor em direito e um rígido moralista - homenzinho descarnado, de narigão pontudo, lábios comprimidos, olhos pequenos e desinquietos. Sofria, de uma doença dos intestinos que lhe azedava o temperamento. O seu cargo dava-lhe um poder imenso, que ele exercia com selvagem prazer. Ao ter conhecimento desses factos condenatórios, insistiu em que se prendesse o grego. Frei Blasco fez o que pôde para salvá-lo. Alegou que, na qualidade de cismático, ele não era um herege, e portanto não caía sob a jurisdição do Santo Ofício. Mas não havia só o depoimento do luterano submetido à tortura: um calvinista francês, a quem aquele também incriminara, declarou que ouvira o grego emitir opiniões que cheiravam a protestantismo,
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e ao saber disto frei Blasco viu-se obrigado a cumprir o seu dever de ofício, por mais que tal coisa lhe custasse. Familiares foram buscar o velho a sua casa e levaram-no para o cárcere da Inquisição. Interrogaram-no e confessou-se francamente culpado do que lhe imputavam. Deram-lhe a oportunidade de abjurar as suas falsas crenças e converter-se ao catolicismo, mas com grande consternação de frei Blasco ele recusou fazê-lo. O delito era grave, mas como as provas não fossem concludentes quanto ao protestantismo, frei Blasco quis dar ao grego um ensejo de expiar o seu crime e insistiu junto ao seu colega, partidário de uma condenação imediata, a fim de que o submetessem à tortura, para induzi-lo à conversão e salvar-lhe a alma.
A lei exigia que ambos os inquisidores estivessem presentes à aplicação da tortura, com o representante do bispo diocesano e um notário para registar o ocorrido. Esse espectáculo nunca deixava de inspirar tal horror a frei Blasco que durante noites seguidas era atormentado por sonhos pavorosos.
Trouxeram o grego, desnudaram-lhe o torso e amarraram-no ao cavalete. O seu débil corpo de ancião estava ema-ciado. Rogaram-lhe solenemente que confessasse a verdade, pois os inquisidores não desejavam vê-lo sofrer. Permaneceu calado. Ataram-lhe as pernas aos lados do cavalete, passaram-lhe cordas em volta dos braços, das coxas e das pernas, e as extremidades daquelas foram presas a um arrocho - isto é, um pau mediante o qual podiam ser esticadas. O algoz deu uma vigorosa volta ao arrocho e o grego soltou um grito agudo; outra volta, e as cordas penetraram-lhe na pele e na carne, até aos ossos. Devido à sua idade avançada frei Blasco insistira em que não se dessem mais de quatro voltas, pois
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embora o máximo estabelecido fosse de seis ou sete, raramente se ia além de cinco, ainda quando se tratava de homens robustos. O grego suplicou que o matassem de uma vez e pusessem termo à sua agonia. Embora frei Blasco fosse obrigado a estar presente, não era obrigado a olhar. Mantinha os olhos cravados no chão de pedra, mas os gritos de dor retiniam-lhe nos ouvidos e atassalhavam-lhe os nervos. Aquela era a voz com que o seu amigo havia recitado as graves e nobres passagens de Sófocles; era a mesma voz com que, presa de uma emoção que a custo dominava, ele tinha lido o derradeiro discurso de Sócrates. Antes de cada volta do arrocho ordenava-se ao grego que confessasse a verdade, mas ele cerrava os dentes e não abria a boca. Quando o tiraram do cavalete não podia ter-se em pé e foi preciso carregá-lo de volta ao cárcere do Santo Ofício.
Embora nada houvesse confessado, condenaram-no com base nas suas confissões prévias. Frei Blasco ainda quis salvar-lhe a vida, mas Don Baltasar, o doutor em leis, objectou que ele era tão culpado quanto os outros luteranos condenados à fogueira. O representante do bispo e as demais autoridades a quem consultaram mostraram-se concordes com ele. Como o auto-de-fé só devesse realizar-se algumas semanas depois, frei Blasco teve tempo de escrever ao inquisidor-mor expondo-lhe o caso. O inquisidor-mor respondeu que não via motivo para alterar a decisão do tribunal. Frei Blasco nada mais podia fazer. Mas os gritos desesperados do velho continuavam a ecoar-lhe nos ouvidos e o sofrimento não lhe dava tréguas. Enviava-lhe conselheiros espirituais para tentar convertê-lo, pois embora já fosse impossível salvar-lhe a vida, o arrependimento permitiria que fosse garroteado, poupando-lhe
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assim o suplício da fogueira. Mas o grego mostrou-se contumaz. Apesar da tortura e da longa permanência no cárcere, o seu espírito continuava lúcido e activo. Aos argumentos dos frades respondia com outros argumentos tão subtis que aqueles se enfureciam.
Finalmente chegou a véspera do auto-de-fé. As anteriores solenidades da mesma espécie não haviam feito impressão em frei Blasco, pois os judaizantes relapsos, os mouros que persistiam nas suas práticas diabólicas, os protestantes, eram criminosos perante Deus e os homens, e, levando-se em conta a segurança da Igreja e do Estado, havia todas as razões para fazê-los sofrer. Mas ninguém sabia melhor do que ele quanto o grego era bom, compassivo e prestativo aos necessitados. Apesar da autoridade do seu colega, homem cruel, de alma seca e fria, ele punha em dúvida a legalidade do pavoroso castigo. Tinham trocado palavras acres e Don Baltasar acusara-o de favorecer o criminoso por ser seu amigo. No íntimo, frei Blasco sabia existir pelo menos um fundo de verdade nessa imputação: se ele nunca houvesse encontrado o grego, teria aceite a sentença sem protesto. Já não lhe podia salvar a vida, mas ainda podia salvar a sua alma. Os frades a quem tinha enviado para convencê-lo do seu erro não possuíam a habilidade necessária para tratar com um homem tão instruído. Uma hora antes de romper o dia foi ao cárcere da Inquisição e pediu que o conduzissem à cela do grego. Os dois frades estavam-no ajudando a passar essa última noite na Terra. Frei Blasco mandou-os sair.
- Ele não quis ouvir as nossas exortações - disse um deles.
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Um sorriso bailou nos lábios do grego ao vê-los deixar a cela.
- Sem dúvida alguma, os seus frades são pessoas muito dignas, senhor. Mas não têm grande inteligência.
Estava calmo e, conquanto velho e alquebrado, mantinha uma aparência de dignidade.
- Vossa Reverência há-de perdoar-me se fico na cama. A tortura deixou-me muito fraco e desejo conservar as forças para as cerimónias de hoje.
- Não percamos o tempo em falas ociosas. Dentro de poucas horas você terá de enfrentar um horrível destino. Sabe Deus que eu de bom grado daria dez anos da minha vida para o salvar. As provas eram condenatórias e eu faltaria ao meu juramento se deixasse de cumprir o meu dever.
- Eu jamais desejaria que o senhor fizesse tal coisa.
- Já não lhe posso salvar a vida, mas se consentir em retractar-se e aceitar a conversão, poderei ao menos poupar-lhe o tormento das chamas. Eu estimava-o, Demétrios, e nunca poderei saldar a minha dívida para consigo a não ser salvando a sua alma imortal. Esses frades são ignorantes e tacanhos. Vim aqui fazer uma última tentativa desesperada de convencê-lo do seu erro.
- Perderia o seu tempo, senhor. Nós lhe daríamos muito melhor emprego se conversássemos, como tantas vezes fizemos, sobre a morte de Sócrates. Não me permitiram trazer livros para este calabouço, mas possuo boa memória e tenho encontrado alívio em repetir a mim mesmo aquele discurso em que ele fala com tanta nobreza sobre a alma.
- Não estou a ordenar-lhe agora, Demétrios, estou a suplicar-lhe que me ouça.
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- Não posso negar-lhe esse último acto de cortesia.
Em tom grave, ponto por ponto, com cultura e discrição, o inquisidor expôs os argumentos imaginados pela Igreja para justificar as suas pretensões e refutar as opiniões de hereges e cismáticos. Estava habituado a discutir tais assuntos e expressou-se com habilidade e uma impressionante convicção.
- Eu não merecia muito respeito se, pelo receio de uma morte horrível, fingisse aceitar crenças que considero erróneas - disse o grego depois de ele terminar.
- Não é isso que eu lhe peço. Peço-lhe que creia na verdade com todo o seu coração.
- "Que é a verdade?" perguntou Pôncio Pilatos. É tão impossível ao homem forçar a sua crença como é impossível subjugar as vagas do oceano quando açoitado pela borrasca. Agradeço a Vossa Reverência a bondade de que me dá prova, e esteja certo de que não lhe guardo rancor pelo infortúnio que me aconteceu. O senhor agiu de acordo com a sua consciência e nenhum homem pode fazer mais do que isso. Eu já estou velho e pouca diferença faz que morra hoje ou daqui a um ou dois anos. Só tenho um pedido para lhe fazer. Não abandone, por eu ter desaparecido, os seus estudos da sublime literatura da Grécia antiga. Ela não deixará de ampliar-lhe o espírito e enobrecer-lhe o pensamento.
- Não teme a justa vingança do Senhor contra a sua contumaz obstinação?
- O Senhor possui muitos nomes e uma infinidade de atributos. Tem sido chamado Jeová, Zeus e Brama. Que importância tem o nome que Lhe damos? Mas entre os seus atributos infinitos o principal, como bem o percebeu Sócrates, ainda que pagão, é a justiça. Ele deve saber que o homem
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não acredita naquilo que quer, mas no que pode, e eu não Lhe farei a suma injustiça de supor que Ele condene as suas criaturas por uma coisa de que não são culpadas. Vossa Reverência não me julgue desrespeitoso se lhe peço que me deixe agora a sós com os meus pensamentos.
- Não posso deixá-lo assim. Devo esforçar-me até ao fim para salvar a sua alma imortal das chamas furiosas do Inferno. Diga uma palavra que me dê a esperança de poder salvá-lo ainda. Uma palavra para mostrar que você não continua impenitente, para que eu possa ao menos mitigar o seu castigo aqui na Terra.
O grego sorriu, e é possível que houvesse um toque de ironia nesse sorriso.
- O senhor desempenhará o seu papel, e eu o meu. O seu papel é matar, o meu é morrer sem tremer.
As lágrimas cegaram o inquisidor, que encontrou a custo o caminho da saída.
O bispo referiu este episódio aos frades numa voz embargada, e ao chegar a este ponto cobriu o rosto com as mãos, como se não pudesse suportar a vergonha de contar o resto. Eles escutavam-no compungidos, mas com uma atenção empolgada, e padre António anotava cuidadosamente, na sua memória, cada fala e cada resposta, a fim de registá-las no seu livro.
- Fiz então uma coisa horrível. Don Baltasar estava de cama e eu sabia que ele não se levantaria senão no último momento, pois tinha um medo mortal de que a doença o impedisse de assistir ao auto-de-fé. É um homem ambicioso e queria fazer-se notar pelo príncipe. Eu tinha, pois, liberdade de agir como entendesse. Não podia suportar a ideia
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de ver aquele pobre velho ser devorado pelas chamas cruéis. Ainda me ressoavam ao ouvido os seus gritos ao ser torturado e parecia-me que não cessaria de ouvi-los durante toda a minha vida. Disse às pessoas a quem isso interessava que tinha falado pessoalmente com ele e ele se retractara a ponto de admitir a dupla processão do Espírito Santo. Dei ordem para que o garroteassem antes de queimá-lo e mandei dinheiro por um criado ao algoz para que o despachasse depressa.
Convém explicar que o algoz podia prolongar durante horas a agonia da vítima, apertando-lhe e afrouxando-lhe alternativamente o colar de ferro em torno do pescoço, de modo que era preciso pagar-lhe para dar morte rápida ao infeliz.
- Não ignorava que isso era um pecado. O pesar desvairou-me e mal sabia o que estava a fazer. Foi um pecado que jamais deixarei de censurar a mim mesmo. Disse-o ao meu confessor e cumpri a penitência que ele me impôs. Recebi a absolvição, mas não posso absolver a mim mesmo, e o que sucedeu hoje é o meu castigo.
- Mas, meu senhor, isso foi um acto de compaixão! - obtemperou padre António. - Qual é aquele que, tendo trabalhado consigo tantos anos como eu trabalhei, não conhece a bondade do seu coração, e quem pode censurar-lhe o ter permitido uma vez que essa bondade suplantasse o seu sentimento de justiça?
- Não foi um acto de compaixão. Quem pode afirmar que o grego não ficara abalado pelos meus argumentos e quem sabe se, quando as chamas lhe lambessem a carne, a graça do Senhor não lhe seria concedida, levando-lhe o espírito obstinado a renegar os seus erros? Muitos homens, nesse derradeiro e terrível momento em que estão prestes a encontrar o seu Criador,
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salvaram assim as suas almas. Eu tirei-lhe esse ensejo e com isso o condenei aos tormentos eternos.
Um soluço rouco escapou-se-lhe da garganta - um som que semelhava o grito estrangulado, misterioso, de alguma ave nocturna no tenebroso silêncio da floresta.
- Os tormentos eternos! Quem pode imaginar tal sofrimento? Os réprobos estorcem-se num lago de fogo de onde se desprendem vapores deletérios que eles respiram cheios de angústia. Têm o corpo inçado de vermes. Uma fome e uma sede desesperadas torturam-nos. Chamuscados pelas chamas, os seus gritos formam um tumulto e uma confusão em face dos quais o ribombar do trovão e os bramidos do mar fustigado pela borrasca representam um silêncio mortal. Demónios de medonha aparência zombam e escarnecem deles, batem-lhes com um furor incansável, mais o remorso dilacerados com uma dor mais cruel do que as torturas desses hediondos diabos. O verme da consciência rói-lhes as entranhas. O fogo crucifica-lhes as almas, e comparado com ele o fogo aqui da terra é como o fogo que vemos num quadro, pois é a cólera do Senhor que o ateia e o alimenta, como instrumento terrível da Sua justa vingança por toda a eternidade.
"E a eternidade, como é terrível a eternidade! Tantos milhões de anos passam sobre os réprobos quantas são as gotas de água que têm caído sobre a terra desde o início dos tempos; tantos milhões de anos quantas são as gotas de água de todos os mares e rios do mundo; tantos milhões de anos quantas são as folhas de todas as árvores que existem e quantos são os grãos de areia de todas as praias do oceano; tantos milhões de anos quantas são as lágrimas que os homens têm derramado desde que Deus criou os nossos primeiros pais.
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volvido esse número incalculável de anos, a angústia dessas infelizes criaturas prosseguirá como se apenas houvesse começado, como se fosse ainda o primeiro dia; e a eternidade permanecerá inteira à sua frente, como se nem um segundo houvesse passado. E foi a essa eternidade de sofrimento que eu condenei aquele desgraçado. Que castigo pode reparar um mal tão grande? Oh! tenho medo, tenho medo..."
Estava desesperado. Profundos soluços sacudiam-lhe o peito. Encarava os dois frades com olhos escuros de" terror, e ao fixarem-se messes olhos notaram-lhes no fundo um clarão vermelho, como se visse reflectidas neles, de muito longe, as chamas rubras do Inferno.
- Mandem reunir os monges. Confessar-lhes-ei o meu pecado e, pela salvação da minha alma, ordenar-lhes-ei que me apliquem a disciplina circular.
Era um castigo degradante em que todos os presentes usavam o açoite contra o culpado. Padre António, aterrado, caiu de joelhos e, juntando as mãos como numa prece, implorou ao seu mestre que não insistisse em submeter-se a tão terrível provação.
- Nossos confrades não o vêem com bons olhos, meu senhor, estão furiosos porque Vossa Excelência não os deixou ir à igreja esta manhã. Não o pouparão. Vão açoitá-lo com toda a força. Muitos monges têm morrido sob as suas vergastadas.
- Não quero que me poupem. Se eu morrer, ter-se-á feito justiça. Ordeno-lhe, em nome do seu voto de obediência, que faça o que lhe digo.
O frade pôs-se em pé.
- Vossa Excelência não tem o direito de expor-se
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a tamanha afronta. É bispo de Segóvia. Vai lançar um labéu sobre todo o episcopado da Espanha. Vai diminuir a autoridade de todos aqueles que Deus escolheu para essa alta posição. Tem a certeza de que não há nenhuma ostentação nessa vergonha a que pretende expor-se?
Jamais ousara falar nesse tom peremptório ao seu pai em Deus. O bispo ficou surpreendido. Haveria realmente uma sombra de vanglória no seu desejo de humilhar-se assim em público? Deu um longo olhar ao frade.
- Não sei - disse afinal, lastimavelmente. - Sou como um homem que anda aos tropeções por uma terra desconhecida, nas trevas da noite. Talvez você tenha razão. Eu só pensava em mim, não pensei no efeito que isso produziria nos outros.
Padre António deu um suspiro de alívio.
- Vocês dois aplicar-me-ão a disciplina aqui, em particular.
- Não, não! Não faço isso. Sou incapaz de maltratar o seu sagrado corpo.
- É preciso então lembrar-lhe os seus votos? - perguntou o bispo com a sua velha severidade. - Você tem-me tão pouca estima que hesita em me infligir um castigo insignificante a bem da minha alma? Há açoites debaixo da cama.
Confrangido e em silêncio, o frade foi buscá-los. Estavam manchados de sangue. O bispo despiu a parte superior do hábito, que lhe caiu em volta da cintura. Tirou então a camisa: era feita de lata e perfurada como um ralador, para poder lacerar a carne. Padre António sabia que o bispo usava um cilício de crina - não sempre, pois isso faria com que se acostumasse a ele, mas apenas o número suficiente de vezes
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para que o tormento se renovasse constantemente. Susteve a respiração ao ver aquela horrível camisa de lata, mas ao mesmo tempo sentiu-se edificado. Aquele homem era na verdade um santo. Não deixaria de registar essa particularidade no seu livro. O dorso do bispo mostrava as cicatrizes dos açoites que ele aplicava a si mesmo pelo menos uma vez por semana, e havia chagas abertas que supuravam.
Abraçou-se à fina coluna que sustentava os dois arcos divisórios dos seus aposentos e ofereceu as costas aos dois frades. Cada um deles apanhou em silêncio um açoite e golpeou a carne sangrenta. A cada vergastada o bispo estremecia, mas nem um gemido lhe escapou dos lábios. Não lhe tinham dado mais de uma dúzia de açoites quando ele caiu desmaiado. Levantaram-no e carregaram-no para a cama dura. Jogaram-lhe água em cima, mas como o bispo não recobrasse os sentidos assustaram-se. Padre António disse ao seu colega que mandasse um irmão leigo ir depressa chamar um médico, pois o bispo estava doente, mas ao mesmo tempo recomendou-lhe que avisasse os monges que não deviam incomodá-lo em hipótese alguma. Banhou-lhe as costas laceradas e tomou-lhe ansiosamente o pulso, que vacilava. A princípio julgou que o bispo estivesse à morte. Mas afinal Don Blasco abriu os olhos. Foram precisos alguns instantes para que recobrasse o uso das suas faculdades. Forçou então um sorriso.
- Pobre criatura que eu sou! Desmaiei...
- Não fale, meu senhor. Fique tranquilo. Mas o bispo ergueu-se num dos cotovelos.
- Dê-me a minha camisa.
Padre António olhou com um arrepio para aquele instrumento de tortura.
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- Oh! meu senhor! Não poderia suportá-la agora.
- Dê-ma.
- O médico vem aí. Não lhe conviria ser visto por ele a usar um instrumento de suplício.
O bispo deixou-se cair novamente na dura enxerga.
- Dê-me a minha Cruz - pediu ele.
Afinal chegou o médico, que mandou o doente permanecer na cama e prometeu mandar um remédio. Era um sedativo e dentro em pouco o bispo adormecia.


XVI.

No dia seguinte insistiu em levantar-se. Disse a sua missa. Embora débil e abalado, estava calmo e mergulhou no trabalho como se nada houvesse acontecido.
Pela tarde um irmão leigo veio comunicar-lhe que seu mano Don Manuel estava na sala de visitas e desejava falar-lhe. Supondo que ele tivesse sido informado da sua doença, mandou dizer que lhe ficava agradecido pela visita, mas assuntos urgentes o impediam de recebê-lo. O irmão leigo voltou dizendo que Don Manuel recusava ir embora enquanto o bispo não o recebesse, pois tinha uma comunicação importante para lhe fazer. O bispo soltou um suspiro e disse ao irmão leigo que o mandasse entrar. Desde a chegada a Castel Rodríguez não lhe tinha falado senão nas ocasiões exigidas pela cortesia. Embora censurasse a si próprio a sua falta de caridade, não podia dominar a antipatia que lhe inspirava esse homem vaidoso, brutal e empedernido.
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Don Manuel entrou sumptuosamente trajado, pletórico, ressumbrando saúde e vitalidade agressiva. Caminhava com um ar arrogante. Tinha no rosto uma expressão satisfeita e o bispo julgou notar-lhe malícia e astúcia nos olhos brilhantes e ousados. Teve um sorriso frio ao correr os olhos pela cela nua e austera. O bispo indicou-lhe um tamborete.
- Não tens um assento mais cómodo para me oferecer, mano?
- Não.
- Disseram-me que estavas doente.
- Foi uma indisposição passageira e sem importância. Já voltei ao meu estado normal de saúde.
- Estimo.
Houve um silêncio. Don Manuel continuava a encará-lo com um sorriso levemente zombeteiro.
- Disseste que tinhas uma comunicação para me fazer - falou o bispo afinal.
- E tenho, mano. Parece que a cerimónia de ontem de manhã não correspondeu às tuas esperanças.
- Faze-me o favor de dizer a que vens, Manuel.
- Que te fez pensar que eras tu o instrumento escolhido para curar essa rapariga da sua enfermidade?
O bispo hesitou. O seu primeiro impulso foi não dar resposta, mas, mortificando-se diante daquele homem grosseiro e vulgar, respondeu.
- Garantiram-me que a rapariga tinha falado a verdade e, embora me julgasse indigno, senti-me na obrigação de fazer o que me era solicitado.
- Cometeste um erro, mano. Devias tê-la interrogado mais cuidadosamente. A Santíssima Virgem disse-lhe que o filho
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de Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la. Porque tiraste logo a conclusão de que a Virgem se referia a ti? Não achas que te faltou um pouco de humildade cristã?
O bispo empalideceu.
- Que queres dizer? - exclamou ele. - Segundo ela me informou, Nossa Senhora tinha-lhe dito que era eu.
- É uma rapariga tola e ignorante. Supôs que a pessoa designada fosses tu, porque és bispo e, não sei porquê, o povo desta cidade tem ouvido falar muito da tua santidade e das tuas mortificações.
O bispo fez uma breve oração mental para poder dominar a cólera e a vergonha que lhe causavam as palavras do irmão.
- Como sabes disso? Quem te disse que as palavras da Santíssima Virgem foram essas?
Dom Manuel espirrou uma risada. Aquilo parecia-lhe uma óptima pilhéria.
- Vim a saber que a rapariga tem um tio chamado Domingo. Nós conhecemo-lo em pequenos. Se bem me lembro, estiveste no seminário com ele.
O bispo inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
- Domingo Pérez é um borracho,. Costuma ir a uma taberna frequentada pelos meus criados e fez amizade com eles, sem dúvida esperando que lhe pagassem a bebida. A noite passada tomou um pifão. Como era natural, todos falavam dos acontecimentos da manhã, pois o teu fiasco, mano, é assunto de todas as conversas. Domingo disse-lhes que não esperava outra coisa e tinha procurado prevenir-te, mas não o quiseram receber no convento. Repetiu então exactamente
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as palavras que a Virgem tinha pronunciado, conforme lhe foram repetidas pela sobrinha.
O bispo estava confuso. Não sabia o que dizer. Don Manuel continuou a falar, já com uma expressão de franca zombaria no olhar. O bispo perguntava consigo, lastimosamente, que espécie de homem seria aquele, que podia encontrar um prazer tão cruel em humilhar assim o próprio irmão.
- Não te passou pela cabeça, mano, que ela pudesse referir-se a mim?
- A ti?
O bispo mal podia dar crédito aos seus ouvidos. Se fosse capaz de rir, teria rido nessa ocasião.
- Isso surpreende-te, mano? Durante vinte e quatro anos tenho servido o meu rei. Arrisquei a minha vida uma centena de vezes, bati-me em batalhas gloriosas e o meu corpo traz cicatrizes dos mais honrosos ferimentos. Tenho sofrido fome e sede, o frio rigoroso daqueles malditos Países Baixos e o tórrido calor do Verão. Tu queimaste algumas dúzias de hereges na fogueira enquanto eu, para glória do Senhor, matei milhares desses hereges. Para glória de Deus, assolei-lhes os campos e queimei-lhes as searas. Assediei cidades prósperas e, quando se renderam, passei a fio de espada todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças.
O bispo estremeceu.
- O Santo Ofício só condena os acusados de acordo com as normas do processo judicial. Dá-lhes o ensejo de arrependerem-se e expiarem os seus pecados. Tem o maior cuidado em fazer justiça e, se castiga os culpados, também absolve os inocentes.
- Eu conheço de mais esses holandeses para crer que sejam capazes de arrependimento. Eles têm a heresia no sangue.
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São traidores à sua fé e ao seu rei e merecem a morte. Ninguém que me conheça pode negar que eu tenha servido bem ao Senhor.
O bispo pôs-se a reflectir. A brutalidade e a vanglória do irmão enchiam-no de asco. Parecia incrível que Deus pudesse escolher semelhante instrumento para a Sua obra, e no entanto podia ser que Ele o tivesse feito justamente por ser Manuel quem era, a fim de cobri-lo de vergonha, a ele, Blasco de Valero, por causa do seu pecado que não fora perdoado. Nesse caso, cumpria-lhe baixar a cabeça e aceitar a humilhação.
- Deus sabe que eu tenho consciência da minha indignidade - disse ele por fim. - Se fizesses essa tentativa e fosses mal sucedido, causarias um escândalo na cidade e darias um cruel ensejo aos maldosos para escarnecerem. Suplico-te que não faças nada precipitadamente; é um assunto que exige cuidadosa reflexão.
- Já reflectimos bastante, mano - volveu tranquilamente Don Manuel. - Consultei os meus amigos, que são as pessoas mais importantes da cidade. Pedi a opinião do arcipreste e do prior deste convento. Todos eles estão de acordo comigo.
O bispo tornou a fazer uma pausa. Sabia existir na cidade muita gente que invejava as posições conquistadas por ele e pelo irmão, porque, embora fidalgo de nascença, eram uma família de pouca monta. Bem podia ser que tivessem consentido na absurda pretensão de Don Manuel a fim de lançar descrédito sobre ambos.
- Não deves esquecer a possibilidade de que essa rapariga tenha sido iludida.
- Isso é o que vamos ver. Se eu fracassar, ficará provado
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que a rapariga é uma feiticeira e deve ser entregue à Inquisição para que a) julguem e castiguem.
- Se obtiveste o consentimento das autoridades municipais e estás resolvido a fazer a tentativa, não tenho o poder de impedir-te. Mas peço-te que faças tudo com o maior sigilo possível, para impedir um escândalo ainda maior que o que já tivemos.
- Agradeço-te o conselho, mano. Dar-lhe-ei a atenção que ele merece.
Com estas palavras, Don Manuel retirou-se. O bispo deu um profundo suspiro. Parecia-lhe que a sua taça de amargura se tinha enchido até às bordas. Ajoelhou-se diante da Cruz negra pregada à parede e orou em silêncio. Depois chamou um irmão leigo e mandou que fosse buscar Domingo Pérez.
- Se não o achar em casa, hão-de encontrá-lo na taberna próxima ao palácio em que está hospedado meu irmão, Don Manuel. Peça-lhe que me faça o favor de vir cá sem demora.


XVII.

Pouco depois o irmão leigo introduzia Domingo no oratório do bispo. Os dois homens encararam-se silenciosamente durante algum tempo. Não se encontravam desde quando haviam estudado juntos no seminário de Alcalá de Henares, ainda jovens e pouco mais que meninos. Ambos estavam já idosos, emaciados e devastados pelos anos. Mas a um tinham devastado a austeridade, as longas vigílias, os jejuns e o trabalho
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constante, enquanto o outro fora gasto pela bebida e pela dissipação. Todavia), se alguma semelhança havia na sua aparência, nenhuma tinham na expressão: a do bispo era atribulada e ansiosa, ao passo que a do escrevinhador era despreocupada e bem-humorada. Como clérigo das ordens menores, vestia batina, e esta estava coçada, esverdeada pelo longo uso e coberta, na frente, de nódoas de vinho e de gordura. Ambos, porém, tinham um ar de ascetismo e distinção intelectual.
- Vossa Excelência exprimiu o desejo de falar comigo - disse Domingo.
Um débil mas terno sorriso esboçou-se nos lábios pálidos do bispo.
- Há muito tempo que não nos vemos, Domingo.
- Os nossos caminhos têm-se distanciado muito. Eu cuidava que Vossa Excelência houvesse esquecido há muito a existência de uma criatura tão mesquinha e indigna como Domingo Pérez.
- Nós conhecemo-nos durante toda a vida. Envergonho-me de me ver tratado por ti com tanta cerimónia. Há muitos anos que não ouço um amigo chamar-me Blasco.
Domingo dirigiu-lhe o seu sorriso encantador, que tinha o dom de desarmar.
- Os grandes não têm amigos, meu querido Blasco. Esse é o preço que eles têm de pagar pela sua grandeza.
- Esqueçamos por uma hora esta minha lamentável grandeza e conversemos como os velhos e íntimos camaradas que fomos. Estavas enganado ao pensar que eu te houvesse esquecido. Tivemos demasiadas coisas em comum para que isso fosse possível. Eu mantinha-me informado da tua existência.
- Ela não tem sido muito edificante.
O bispo sentou-se num mocho e fez sinal a Domingo para que tomasse o outro.
- Mais ainda, mantive-me em contacto contigo através das tuas cartas.
- Como pode ser isso?... Eu nunca te escrevi...
- Não da tua própria parte, mas quando éramos rapazes li tantas poesias tuas que fiquei conhecendo muito bem a tua letra. Julgas que eu não a reconhecia nas cartas que meu pai e meu irmão Martin me enviavam? Sabia perfeitamente que eles eram incapazes de expressar-se com tanta elegância e propriedade. Além disso, havia certos modos de dizer, certos torneios de frase e certas reflexões em que eu reconhecia logo o teu espírito travesso.
Domingo riu suavemente.
- Não são muito notáveis os dotes literários de Don Juan e de teu irmão Martin. Depois de dizerem que gozavam saúde, que esperavam que o mesmo se desse contigo e que a colheita tinha sido minguada, não lhes restava mais nada que dizer. Tanto a bem do meu crédito como deles, eu sentia-me na obrigação de avivar essas secas informações com os mexericos da cidade e as agudezas e gracejos irreverentes que me ocorressem no momento.
- Como é lamentável que tenhas malbaratado os teus grandes talentos, Domingo! As coisas que eu tinha de aprender à força de aplicação e diligência, tu adquiria-las como que por intuição. Muitas vezes eu aterrava-me diante da audácia do teu pensamento, dessa abundância de ideias inesperadas que pareciam fluir do teu cérebro com tão pouco esforço como a água que jorra de uma fonte, mas nunca duvidei da tua inteligência. Tu nasceste para brilhar e, se não fosse a tua índole
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irrequieta, serias hoje um luzido armamento da nossa Santa Madre Igreja.
- Ao invés disso - volveu Domingo - , não passo de um pobre letrado, um dramaturgo que não encontra actores para lhe representarem as peças, um literato de aluguel que escreve sermões para padres estúpidos e incapazes de fazê-lo por si, um beberrão sem préstimo. Faltava-me a vocação, meu bom Blasco. A vida fascinava-me. O meu lugar não era nem no claustro nem no lar, mas na estrada real com as suas aventuras e perigos, os seus encontros fortuitos e a sua múltipla variedade. Vivi. Curti fome e sede, criei chagas nos pés, levei bordoada, sofri todos os infortúnios que podem caber em sorte a um homem: em suma, vivi. E mesmo agora que a velhice vai tomando conta de mim, não lamento os anos que desperdicei, pois eu também dormi no Parnaso; e quando vou a uma aldeia distante escrever uma carta para algum lapuz analfabeto, ou quando estou sentado no meu quarto, rodeado pelos meus livros, rimando falas em dramas que jamais serão levados à cena, sinto tamanha exultação que não trocaria de lugar com um cardeal ou mesmo com um papa.
- Não receias a cólera futura do Senhor? O estipêndio do pecado é a morte.
- É o bispo de Segóvia que me faz esta pergunta, ou o meu velho e estimado amigo Blasco de Valero?
- Até hoje não traí nenhum amigo ou inimigo. Enquanto não disseres nada que seja ofensivo à Fé, podes dizer o que quiseres.
- Então será esta a minha resposta: Nós sabemos que os atributos de Deus são infinitos, e sempre achei estranho que ninguém lhe tenha jamais atribuído um pouco de senso comum.
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É difícil acreditar que Ele tivesse criado um mundo tão belo sem desejar que os homens se deleitassem nele. Teria Ele dado às estrelas o seu esplendor, aos pássaros o seu canto mavioso e às flores o seu perfume, se não devêssemos sentir prazer nessas coisas? Eu pequei perante os homens e os homens condenaram-me por isso. Deus fez-me homem, com as paixões de um homem, e ter-me-ia Ele dado essas paixões unicamente para que eu as reprimisse? Foi Ele que me deu este espírito aventuroso e este amor à vida. Espero humildemente que, quando eu me encontrar face a face com o meu Criador, Ele se condoa das minhas imperfeições e me olhe com clemência. O bispo parecia profundamente perturbado. Podia responder ao pobre poeta que nós fomos postos na Terra para desprezar os seus deleites, resistir à tentação, vencer a nós mesmos e carregar a nossa cruz - para que no fim, embora não passemos de miseráveis pecadores, possamos ser considerados dignos da comunhão dos santos. Mas de que serviriam as suas palavras? Nada podia fazer senão rezar para que, antes de vir buscá-lo a morte, a graça de Deus descesse sobre o infortunado homem e ele se arrependesse das suas más acções. Fez-se um silêncio entre ambos.
- Não te mandei chamar para fazer com que te corrigisses - disse o bispo por fim. - Não me seria difícil refutar as tuas opiniões erróneas, mas sei de longa data o quanto és engenhoso em fazer parecer plausíveis os piores argumentos, e conheço também o prazer que sentes em irritar os demais com sofismas. Quero crer que grande parte do que disseste foi dito apenas com o fim de te divertires à minha custa. Tens uma sobrinha.
- Tenho.
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- Qual é a tua opinião sobre essa história que alvoroçou toda a cidade?
- Ela é uma menina virtuosa e verídica. É boa católica, mas não exageradamente religiosa.
- Bem creio nisso, pois estou informado de que ela foi educada por ti.
- Também não é dada a devaneios ociosos. É até, como não podem deixar de ser os pobres, um tanto prosaica. Ninguém poderia acusá-la de possuir a inditosa faculdade da imaginação.
- Acreditas, então, que a Santíssima Virgem lhe tenha aparecido realmente?
- Estive em dúvida até ontem, quando ela me referiu os termos exactos que a Virgem havia empregado. Então convenci-me, e foi por isso que quis falar contigo. Percebi logo qual era a pessoa indicada e quis poupar-te uma intervenção inútil. Mas não me deixaram entrar.
O bispo suspirou.
- Uma das cruzes que temos de carregar, e não a menor delas, é que os nossos companheiros de labutas, na sua solicitude para connosco, impedem que cheguem até nós aqueles a quem seria proveitoso recebermos.
- O tempo não embotou a afeição que me ligava a ti na mocidade, pois, como vês, eu, um pecador, posso dar-me ao luxo de ceder aos cegos impulsos do coração. Queria poupar-te uma humilhação que não podia deixar de ser-te muito amarga. Logo que a rapariga me repetiu as palavras exactas da Virgem Santíssima, eu percebi quem era a pessoa designada para curá-la da sua enfermidade.
- Ela disse-me que Nossa Senhora me tinha designado.
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- Foi um engano natural numa menina que conhecia as tuas mortificações, a tua virtude e austeridade. A Santíssima Virgem disse-lhe que o poder de curá-la estava nas mãos daquele entre os filhos de teu pai que melhor tem servido a Deus.
- Só há pouco vim a saber disso.
- Não sabes então a quem a Virgem se referia? É claro como água da fonte.
O bispo empalideceu e lançou um olhar ansioso a Domingo.
- Meu mano Martin?
- O padeiro.
Gotas de suor cobraram a fronte do bispo. Estremeceu como se alguém lhe pisasse na sepultura.
- Isso é impossível. Ele é sem dúvida um homem de bem, mas completamemte mundano.
- Impossível, por quê? Porque ele não tem instrução? Um dos mistérios da nossa Fé é que o Senhor, que deu a razão ao homem, elevando-o desse modo acima dos brutos, nunca deu, ao que saibamos, grande valor à inteligência. Teu irmão é um homem bom e simples. Tem sido um marido fiel e um pai amoroso. Tem honrado pai e mãe, dando-lhes de comer quando tinham fome e cuidando deles quando estavam doentes. Aguentou submisso o desprezo do pai e a aflição da mãe porque ele, um fidalgo de nascença, adoptou um ofício que o rebaixava na estima dos tolos. Suportou com bom humor o desdém da nobreza e as zombarias do vulgo. Como nosso pai Adão, ganha o seu pão com o suor do seu rosto, sentindo um modesto desvanecimento em saber que o pão que faz é bom. Aceita com gratidão as alegrias da vida e com resignação
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os seus pêsames. Tem socorrido os necessitados. É um homem de trato ameno e sempre bem disposto. Mostra-se amigo de todos. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis e é bem possível que aos olhos divinos, pela sua vida diligente e honesta, a sua inocente alegria, Martim o padeiro O tenha servido melhor do que tu, que buscas a salvação nas orações e na penitência, ou teu irmão Manuel, que faz glória das mulheres e crianças que trucidou e das cidades prósperas que reduziu a desoladas ruínas.
O bispo passou a mão pesadamente pela testa. O seu rosto tinha uma expressão de angústia.
- Tu conheces-me de mais, Domingo - disse ele em voz trémula - , para julgar que eu me tenha abalançado a fazer aquilo sem um ansioso exame de consciência. Eu sabia ser indigno e a minha alma estava aterrada, mas tomei o sinal que me foi concedido por uma ordem de executar aquilo que eu acreditava ser a vontade do Senhor. Enganei-me. E agora meu irmão Manuel está resolvido a tentar aquilo em cuja realização falhei.
- Já em pequeno ele se fazia notar mais pela força corporal do que pelo vigor do entendimento.
- É tão teimoso quanto errado. Os notáveis da cidade estão a animá-lo na sua pretensão para poderem metê-lo à chacota depois. Conseguiu a aprovação do arcipreste e do prior deste convento.
- Deves impedi-lo a todo o custo.
- Não tenho autoridade para tanto.
- Se teu irmão se obstinar nessa loucura, quererá vingar-se da sua decepção naquela infeliz rapariga. O povo tomará o partido dele e não terá compaixão. Em nome da nossa velha
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amizade, suplico-te que a protejas contra a hostilidade e a cega violência do povo.
- Pela Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor, juro-te que darei a minha vida, se preciso for, para salvar a menina de todo o perigo.
Domingo pôs-se em pé.
- Agradeço-te de todo o coração. Adeus, meu caro. Os nossos caminhos são diferentes e não tornaremos a encontrar-nos. Adeus para sempre.
- Adeus. Oh! Domingo, sou um homem bem infeliz! Ora por mim, pede a Deus em todas as tuas orações que me conceda a graça de livrar-me do cruel fardo desta existência.
Estava tão perturbado e tinha uma expressão tão lastimosa que o velho beberrão se compadeceu dele. Levado por um impulso repentino, abraçou o bispo e beijou-o nas duas faces. O pecador estreitou o santo contra o peito e logo se retirou.


XVIII.

Nessa noite aconteceu um facto muito estranho. A lua cheia, prosseguindo na sua rota predeterminada, tinha um brilho tão deslumbrante que o céu límpido estava azul como o manto de veludo que cobria as vestes brancas da Virgem Maria. Os habitantes de Castel Rodríguez dormiam. De repente, todos os sinos da cidade se puseram a badalar com um clamor capaz de ressuscitar os mortos. Despertou os adormecidos e alguns precipitaram-se para as janelas, enquanto outros, semidespidos, apanhando as suas roupas à passagem, corriam para a rua.
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Esse badalar de sinos a uma hora tão insólita significava que o fogo havia irrompido nalguma parte da cidade e as tímidas donas de casa trataram de reunir os seus objectos de valor, pois quando se declarava um incêndio ninguém podia prever até onde se alastraria, e era de bom aviso pôr a salvo tudo quanto se podia antes que as chamas atingissem a casa. Tomados de pânico, alguns foram ao ponto de atirar as roupas de cama pelas janelas e outros começaram a carregar os móveis para fora, depositando-os diante das suas portas.
Os moradores escoavam-se para as ruas, que ficaram regurgitamtes. Levados por um impulso comum, aglomeraram-se na grande praça que constituía o orgulho do lugar. Cada qual perguntava ao seu vizinho onde era o incêndio. Os homens praguejavam e as mulheres torciam as mãos. Corriam de um lado para outro à procura das casas que ardiam. Erguiam os olhos para o céu, buscando o clarão denunciador que devia assinalar o lugar do sinistro. Não se avistava coisa nenhuma. As pessoas que desembocavam na praça, vindas dos diversos quarteirões da cidade, afirmavam que no seu bairro não havia incêndio. Não havia incêndio em parte alguma. Então, como se um vento houvesse soprado de súbito no meio deles, todos tiveram ao mesmo tempo a ideia de que alguns peraltas se estavam divertindo a bater os sinos para fazer o povo sair da cama e meter-lhe medo. Homens furiosos, decididos a moê-los com pancadas, arremessaram-se para as torres das igrejas. Aguardava-os ali um espectáculo pasmoso. As cordas dos sinos esticavam-se e distendiam-se sem que ninguém as puxasse. Contemplaram-nas por um momento, cheios de assombro; depois, carregando tochas e lanternas, subiram a correr as íngremes escadas das torres. Ao alcançarem os campanários,
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o clamor ensurdeceu-os. Os sinos sacudiam-se de um lado para outro muma furiosa oscilação e os badalos atroavam-lhes nos flancos de bronze. Não havia ninguém ali. Homem algum seria capaz de tirar tão violento estrépito daqueles pesados sinos. Dir-se-ia que estes haviam enlouquecido de repente. Tangiam sozinhos.
Anelantes, com o terror nos corações, despenhando-se pelas escadas como se levassem o Diabo nos calcanhares, correram para as ruas e, com palavras doidas e gestos desvairados, contaram o que tinham visto.
Tratava-se de um milagre. Era o Senhor que fazia tanger os sinos, e ninguém sabia se aquilo augurava bem ou mal à cidade. Muitos caíram de joelhos e oraram em altas vozes. Pecadores lembraram-se dos seus pecados e pensaram na cólera divina que os aguardava. Os curas mandaram abrir as portas das igrejas e a multidão invadiu-as, acompanhamdo os padres nas suas preces, em que se suplicava ao Altíssimo piedade para as suas criaturas. Só ao cabo de muito tempo recobraram o sossego e voltaram, silenciosos e mais calmos, para as suas casas.


XIX.

Ninguém sabia onde aquilo tinha começado, se a ideia ocorrera a uma pessoa de grande imaginação ou se fora concebida independentemente por muitas,. Era como a cólera; não se sabe se a trouxe para a cidade um forasteiro vindo de terras estranhas ou se foi um vento funesto que disseminou a doença. Um homem adoece aqui, acolá morre uma mulher, e quando
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despertamos para a consciência do perigo já a epidemia grassa por todas as ruas da cidade e os coveiros não podem cavar sepulturas com a necessária rapidez para enterrar todos os mortos. Ainda pela manhã, espalhara-se pela população de Castel Rodríguez a convicção de que a misteriosa ocorrência da noite anterior tinha uma relação qualquer com o aparecimento da Santa Virgem a Caitalina Pérez. Não se falava de outra coisa. Magistrados discutiam o assunto nas suas câmaras de conselho, sacerdotes nas suas sacristias e nobres nos seus palácios. O povo nas ruas, as donas de casa no mercado e os artífices nas suas oficinas falavam dele, cheios de perplexidade. Os monges nos seus mosteiros e as freiras nos seus conventos não podiam concentrar-se nas suas orações.
Dentro em pouco chegou-se à conclusão de que não podia haver dúvidas quanto à pessoa designada pelas palavras enigmáticas da Santíssima Virgem. Não eram poucos, sobretudo entre o clero secular, os que indagavam se Deus não estaria descontente com a excessiva austeridade do bispo e se um certo elemento de arrogância que havia na sua humildade não incorreria na verdade na reprovação divina. Mas em Dom Manuel de Valero não havia nódoa nem pecha de qualquer sorte. Ele tinha dedicado os melhores anos da sua vida ao serviço do Senhor e de el-Rei. Ao conferir-lhe assinaladas honrarias, Sua Majestade, vice-regente do Todo-Poderoso na terra, apusera o selo da sua aprovação ao valor e à virtude de Don Manuel. Tornara-se manifesto a todos, clérigos e leigos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, que Don Manuel era o homem escolhido para realizar o milagre que a vontade divina ordenara. Uma deputação de eclesiásticos eminentes, membros da aristocracia e pessoas de autoridade no
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conselho municipal, foi visitá-lo para lhe comunicar a sua aprovação unânime. Don Manuel, à sua maneira rude de soldado, respondeu-lhes que estava pronto para colocar-se à sua disposição. Ficou resolvido que a cerimónia se realizaria no da seguinte, na igreja da colegiada. Don Manuel pediu ao arcipreste que o recebesse em confissão naquela tarde e, como pretendia comungar pela manhã, o que só podia fazer em jejum, mandou suspender a ceia que ia oferecer aos seus amigos durante a noite. Era um homem consciencioso e estava decidido a não omitir nada que pudesse tornar a sua intervenção eficaz em ocasião tão solene. Três vezes armado está aquele que, absolvido dos seus pecados e livre de toda a culpa, deposita a sua confiança em Deus.
O prior do convento dominicano informou pessoalmente o bispo da resolução tomada, convidando-o ao mesmo tempo para chefiar os monges que iriam em procissão assistir à cerimónia. Don Blasco percebeu a malícia encoberta sob o oferecimento do prior mas aceitou gravemente, agradecendo-lhe a honra. Não sabia o que fazer. Não ligava importância ao que lhe tinha dito Domingo sobre o seu irmão Martin; conhecia demasiado o gosto de Domingo a quezilar o próximo e o prazer que tinha em defender ideias paradoxais; mas, com tudo isso, tinha a firme convicção de que Don Manuel não era o homem indicado para realizar um milagre. Fugiria de bom grado à obrigação de assistir à sua confusão, mas sabia que se recusasse ir isto seria atribuído ao despeito. Não ficava bem ao seu alto cargo dar aos espíritos maldosos um ensejo de pensar mal dele. Além disso, tinha ainda de cumprir a promessa que fizera a Domingo. Conhecia bem a insensatez e a brutalidade da multidão, quer a constituísse gente bem ou mal nascida,
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e era bem provável que, vendo-se decepcionados na sua esperança de um portento, tirassem vingança na infortunada moça. Achando-se presente, ele poderia salvá-la de tal vandalismo. No da seguinte, pois, com o coração opresso, acompanhado dos seus dois fiéis secretários, dirigiu-se do convento para a igreja à testa dos monges. A igreja achava-se repleta de gente até às portas e contudo o povo, ávido de ver um milagre realizar-se diante dos seus olhos, continuava a fazer força para entrar. Abriram passagem e o bispo, seguido pelos frades, adiantou-se vagarosamente pela nave. Sentou-se numa grande cadeira colocada ao lado e um pouco para a frente do altar-mor. O coro estava cheio de notabilidades locais. Momentos depois Don Manuel entrou com uma comitiva de cavalheiros e sentou-se numa cadeira reservada para ele no outro lado do altar. Vestia uma armadura de parada, o peitoral damasquinado de ouro, e envergava o grande manto da Ordem de Calatrava com a sua cruz verde. Os nobres;, no coro, tinham posto os seus trajes mais sumptuosos. Palestravam e riam, trocando acenos de cabeça e sorrisos entre si. Na nave, a multidão conversava alto e as pessoas chamavam-se umas às outras como se estivessem numa tourada. O bispo observava-os, indignado. Aquilo era um desacato à religião. Estava já disposto a levantar-se e vituperar-lhes aquela irreverente leviandade.
Ao pé dos degraus, apoiando-se na muleta, estava ajoelhada Cattalina.
Ouviram-se os primeiros acordes de um improviso ao órgão, e as floridas notas desceram a bailar jovialmente por sobre as cabeças da congregação. A igreja era de uma arquitectura vasta e simples, mas os sucessivos chefes da grande
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casa de Henríquez tinham-na adornado com um tecto de madeira pintada em estilo "plateresco", encaixando os retábulos em maciças molduras douradas e vestindo as imagens com mantos magnificentes. Os assentos do coro eram lavrados a primor. Nas capelas achavam-se os túmulos - os mais antigos de pedra, austeros e frios, os mais recentes de mármore ricamente esculpido - em que descansavam os restos mortais dos defuntos duques e das suas esposas. Uma luz fosca filtrava-se pelos vitrais e a atmosfera estava pesada de incenso.
Chegaram os sacerdotes, envergando os sumptuosos paramentos que eram usados em tais ocasiões e que tinham sido doados à igreja por damas nobres e devotas. O subdiácono segurava o cálice e a patena, envoltos no véu. A missa foi cantada. Um tremor respeitoso percorreu o vasto concurso de gente, que caiu de joelhos ao ouvir o tinido argentino da campainha que anunciava a elevação da Hóstia e do Cálice. O celebrante, que era o arcipreste, participou da Santa Comunhão e administrou-a sucessivamente a Don Manuel e a Catalina. Tinha chegado afinal o momento que a multidão aguardava com tamanha impaciência. Elevou-se dela um estranho som, que não era um som de vozes nem propriamente um ruído de movimentos ansiosos, mas parecia antes o suspirar do vento nos pinheirais, como se a expectativa da multidão se houvesse tornado audível.
Don Manuel pôs-se em pé e adiantou-se a passos largos para a jovem ajoelhada. Com a sua armadura, o grande manto da ordem a pender dos ombros, formava ele uma figura imponente e magnífica. A cena e a ocasião revestiam-no de uma dignidade desacostumada. Tinha confiança no seu poder. Pousou a mão na cabeça da jovem e, em voz alta, como se
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desse ordem de carregar ao seu regimento, de maneira que foi ouvido com clareza nos mais afastados recantos da igreja, repetiu as palavras que lhe tinham dado para pronunciar:
- Em nome de Deus Padre, Filho e Espírito Santo, ordeno a ti, Catalina Pérez, que te levantes, lances fora essa inútil muleta e caminhes.
A jovem assustada e como que enfeitiçada pela solenidade da ocasião, pôs-se em pé com dificuldade e largou a muleta. Deu um passo à frente e, com um grito de terror, caiu estendida no chão. O milagre falhara mais uma vez.
Levantou-se então uma grande algazarra e dir-se-ia que uma loucura súbita se apoderara da multidão. Homens bradavam, mulheres proferiam gritos agudos. Berravam de fúria.
- Bruxa! Bruxa! À fogueira! À fogueira! Queimem-na!
Arrastados por um impulso repentino, avançaram na direcção do santuário, dispostos a linchar a moça. No seu arrebatamento, arredavam-se uns aos outros do caminho. Alguns caíram e foram brutalmente espezinhados. Os gritos de desespero acresciam o tumulto geral.
O bispo pôs-se em pé de um salto e, com um rápido movimento circular, atravessou o santuário até fazer frente à multidão desvairada. Ergueu os braços acima da cabeça e os seus grandes olhos escuros chamejavam.
- Para trás! para trás! - gritou numa voz de trovão. - Quem sois vós para profanar este lugar? Para trás, digo-vos eu, para trás!
Tão terrificante era o seu aspecto que uma exclamação de horror partiu de todas as gargantas. A multidão estacou de súbito, como se um grande abismo se tivesse aberto diante
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dela. Recuaram. Por um momento o bispo considerou-os com os olhos negros de indignação.
- Vergonha! Vergonha! - gritou ele e, cerrando os punhos, atirou os braços para a frente como se quisesse fulminá-los com o raio da sua cólera. - Ajoelhai, ajoelhai e pedi que vos seja perdoado o insulto que fizestes à casa do Senhor.
A estas palavras, dominados pela força da sua autoridade, muitos caíram de joelhos a soluçar. Outros, como se o atordoamento os paralisasse, ficaram imóveis a contemplar boquiabertos aquela terrível figura. Lentamente, o bispo correu os olhos de um lado para o outro até abranger toda a vasta multidão, e cada um teve a impressão de que esses olhos irados se fixaram particularmente nele. Fez-se silêncio, só cortado pelos soluços histéricos de uma mulher aqui e além.
- Escutai - disse finalmente o bispo. - Escutai o que eu digo. - A sua voz não era já ameaçadora, mas grave, severa e autoritária. - Ouvi. Conheceis as palavras que Nossa Senhora dirigiu a Catalina Pérez e conheceis também os portentos que ocorreram nesta cidade, provocando a confusão e a inquietude nos vossos espíritos. A Santíssima Virgem disse a esta menina que o filho de Dom Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la da sua enfermidade. No nosso condenável orgulho e vaidade, eu que vos falo e meu irmão Don Manuel tivemos a temeridade de julgar que um de nós era a pessoa designada. Fomos amargamente punidos pela nossa presunção. Mas Don Juan de Valero ainda tem outro filho.
A multidão interrompeu-o com risos e vozearia.
- "El panadero"! - gritavam.
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Puseram-se a cantar em tom escarninho, dentro de uma espécie de cadência rude:
- "El panadero, el panadero..."
- Silêncio! - gritou o bispo.
As pessoas da multidão fizeram calar umas às outras.
- Ride! Qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso dos tolos. Que exige Deus de vós senão que sejais justos, ameis a clemência e andeis humildemente nos caminhos do Senhor? Hipócritas e blasfemadores! Impuros! Vergonha, vergonha, vergonha!
Repetiu esta palavra com um tom de desdém cada vez mais pungente, e os que o ouviam recuaram como recuaria um homem a cuja face fosse atirado um copo de água gelada. Era terrível de ver-se a cólera do prelado. Percorreu a multidão com um olhar de causticamte desprezo.
- Estão presentes os familiares do Santo Ofício?
Um som estranho, semelhante a um suspiro de susto, percorreu a multidão, como se todos ao mesmo tempo houvessem sustido o fôlego, pois esses instrumentos da Inquisição provocavam o terror no seio do povo. Ignoravam o significado dessas palavras sinistras e cada qual se pôs a tremer como varas verdes. Vários homens aprumaram-se atrás do Bispo.
- Que se apresentem - disse este.
Como os familiares do Santo Ofício dispunham de poder, influência e sobretudo isenção dos seus terríveis inquéritos, era um cargo muito procurado por homens da mais alta categoria. Havia oito em Castel Rodríguez. Fez-se um silêncio momentâneo,
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enquanto eles se erguiam dos seus assentos e tomavam posição atrás do bispo. Este aguardou até sentir, pelo silenciar dos pés, que todos eles se achavam por trás de si.
- Escutai - disse novamente. O indicador da sua mão estendida parecia acusar cada uma das apavoradas criaturas. - O Santo Ofício nunca procede às pressas nem impelido pela cólera. Faz justiça aos culpados, mas é clemente com o pecador arrependido.
Fez uma pausa, e o silêncio foi medonho.
- Não é a vós, raça de víboras, que compete lançar a mão a esta infeliz menina. Se ela foi iludida ou está possuída de um demónio, é ao Santo Ofício que cumpre tomar conhecimento do facto. Se ela se sair mal na prova, os familiares estão aqui para entregá-la ao tribunal. Mas a prova não se completou ainda. Onde está Martim de Valero?
- Aqui, aqui! - gritaram várias vozes.
- Que ele se apresente.
- Não, não, não!
Era a voz de Martin, o padeiro, que protestava.
- Se ele não vier por sua livre vontade, tragam-no à força - disse rispidamente o bispo.
Houve um arrastar de pés enquanto Martin forcejava com os homens que procuravam arrastá-lo aos puxões e repelões, mas volvidos alguns instantes a multidão abriu alas e ele foi trazido até aos degraus do altar. Os homens voltaram aos seus lugares e deixaram-no consigo mesmo. Viera da oficina ver o milagre de que todos falavam, e estava com a sua roupa de trabalho. Tinha o rosto vermelho do calor dos fornos e pelo vão esforço de escapar às rudes mãos que o arrastavam. O da estava quente e gotas de suor brotavam-lhe da testa. O seu rosto gorducho e bem-humorado estava pesado de consternação.
- Vem - disse o bispo.
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Como que impelido por uma força a que não pudesse resistir, o padeiro subiu os degraus do santuário.
- Mano, mano, a que me queres obrigar? - exclamou ele. - Como poderei eu fazer aquilo que tu não pudeste? Não sou mais do que um homem de trabalho e não sou melhor cristão do que o meu próximo.
- Silêncio!
O bispo não cria em absoluto que o padeiro fosse capaz de realizar um milagre e só pensara nele sob a inspiração do momento, como único meio de salvar Catalina da fúria do populacho. Desejava uma pequena trégua que lhe permitisse apaziguá-los. Sabia que a menina já não correria perigo. Ali estavam os familiares para protegê-la e, como não houvesse cárcere da Inquisição na cidade, conduzi-la-iam para um convento a uma ordem sua e sobraria então tempo para reflectir sobre o que cumpria fazer em seguida. O bispo dirigiu-se mais uma vez ao povo reverente:
- Porventura não "tem o oleiro poder sobre a argila, poder de fazer com o mesmo bloco um vaso de honra e outro de desonra? Deus não faz acepção de pessoas. Aquele que se humilha será exaltado e os soberbos serão humilhados. Tragam a menina.
Catalina jazia no mesmo lugar em que tombara, com o rosto oculto nos braços e o pequeno corpo sacudido de soluços. Ninguém lhe prestava mais atenção do que se ela fosse um cão morto à beira da estrada. Dois familiares puseram-na em pé e colocaram-na em face do bispo. Com a muleta debaixo do braço, ela juntou como melhor pôde as mãos num gesto de súplica. As lágrimas corriam-lhe pdas faces.
- Oh! senhor bispo, senhor bispo, tenha compaixão de
mim! Não tente de novo, suplico-lhe, tudo é inútil! Deixe-me voltar para junto de minha mãe!
- Ajoelha-te - ordenou ele. - Ajoelha-te.
Com um soluço desesperado, a criança deixou-se cair de joelhos.
- Pousa-lhe a mão na cabeça - disse o bispo ao irmão.
- Não posso... Não o farei... Tenho medo!
- Sob pena de excomunhão, ordeno-te que faças o que te digo - tornou o bispo asperamente.
O infeliz foi tomado de um tremor, pois sabia que o irmão não hesitaria em pôr em efeito a sua pavorosa ameaça. Pousou timidamente a mão trémula na cabeça da jovem. Essa mão nem sequer estava limpa.
- Dize agora as palavras que ouviste a teu irmão Manuel pronunciar.
- Não me lembro delas...
- Vou dizê-las, então, e tu as repetirás: "Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero"...
Martin repetiu:
- Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero...
O bispo pronunciou as últimas palavras fatídicas em voz forte e sonora, mas o irmão repetiu-as num tom apenas perceptível. Catallina pôs-se em pé como lhe ordenavam e, com um gesto desesperado, atirou para longe a muleta. Por um instante vacilou, mas não caiu. Ficou em pé. Então, deixando escapar um grito e um soluço, olvidada do lugar e da ocasião, virou-se e desceu a correr os degraus do santuário.
- Mãe, mãe!
Maria Pérez, que estava com Domingo na igreja, delirante de alegria, abriu caminho por entre a multidão e correu ao
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encontro dela. Catalina atirou-se-lhe aos braços e desatou a chorar.
Por um instante a densa multidão ficou tão aturdida que não pôde mover-se. Contemplavam a cena boquiabertos. Formou-se então tal algazarra como jamais se ouviu outra igual.
- Milagre! Milagre!
Gritavam, batiam palmas, mulheres acenavam com os lenços. Os homens gritavam "olé, olé", como faziam nas touradas, quando um dos toureiros executava um passe perigoso; atiravam os chapéus para cima como costumavam atirá-los aos pés do matador de espada quando, seguido da sua "quadrilha", ele dava volta à arena para receber os aplausos do público. Acima do tumulto elevava-se a voz estridente de alguma mulher a entoar aqui e ali, ao compasso de uma estranha melodia semimourisca, um hino à Virgem Santíssima. Dir-se-ia que a balbúrdia não terminaria mais. Desconhecidos abraçavam-se. Homens e mulheres choravam de alegria. Tinham visto um milagre com os seus próprios olhos.
De repente fez-se um silêncio no meio daquela doida confusão e todos os olhos se voltaram para o bispo. Martin, o tímido, mal atinando com o que havia sucedido, recuara modestamente para o fundo e o dominicano ficara sozinho no alto dos degraus do santuário, com as costas viradas para o altar-mor. Emaciado, mas alto e erecto, envolto no seu hábito remendado e puído, formava uma figura imponente. O maravilhoso, porém, é que ele estava banhado em luz. Não era uma simples auréola a cercar-lhe a cabeça, mas um resplendor que parecia vesti-lo da cabeça aos pés.
- Um santo! Um santo! - clamou o povo, com os olhos cravados no estranho e sensacional espectáculo. - Bendita seja
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aquela que te pôs no mundo! - gritavam. - Agora permites que o Teu servo se retire em paz. Oh, ditoso, ditoso dia!
Falavam às tontas, sem saber o que diziam. Estavam desvairados de alegria, amor e medo. Somente Domingo notou que um dos vitrais tinha um caixilho quebrado e, por uma feliz coincidência, um raio de sol passava pela abertura, incidindo no bispo e banhando-o em glória.
O bispo alçou a mão exigindo silêncio e imediatamente a grande algazarra cessou. Ficou um instante a contemplar, com uma expressão triste e severa, aquele mar de rostos que tinha diante de si. Depois, levantando a cabeça, os trágicos olhos cheios de arrebatamento, como se com os olhos do espírito avistasse as hostes celestiais, começou a recitar o Credo de Niceia em voz lenta e solene. As palavras eram familiares a todos os presentes, que as ouviam todos os domingos na missa; e, num zumbido abafado que se assemelhava a um longínquo arrastar de pés, puseram-se a repetir os artigos de fé um após outro. O bispo terminou a recitação do Credo, virou-se e caminhou para o altar-mor. O halo de luz desaparecera. Levantando os olhos para o vitral, Domingo viu que o sol tinha continuado a sua inexorável viagem através do céu e já nenhum raio de luz penetrava pelo vidro quebrado. O bispo prosternou-se diante do altar e deu graças ao Senhor numa oração muda. O seu torturado coração fora aliviado de um grande peso, pois compreendera, sem sombra de dúvida, que, embora tivesse sido Martin quem pousara a mão na cabeça da jovem paralítica, seu irmão não tinha passado de um instrumento de que aprouvera a Deus lançar mão a fim de que ele, Blasco de Valero, obrasse um milagre para Sua eterna glória. Era ademais um sinal, seguro e indubitável, de que o Senhor lhe perdoava
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o grave pecado que cometera ao permitir, num momento de fraqueza, que o grego fosse garroteado antes de o queimarem. Deus, que vê todas as coisas passadas, presentes e futuras, conhecia o duro coração do descrente e por ísho o tinha condenado à morte eterna. Estava bem lamentar os réprobos nos seus tormentos, mas mostrar-se descontente era impugnar a justiça divina.
O bispo pôs-se em pé e retirou-se lentamente do santuário. Caminhava como que em sonho. Os dois religiosos, seus amigos e secretários, perceberam-lhe a intenção e seguiram-no. Vendo isso, o prior fez um sinal aos seus frades para que o seguissem também e pôs-se a caminhar atrás deles. O bispo deteve-se ao alcançar os degraus.
- Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Padre e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Desceu. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e aos religiosos que o acompanhavam. Os frades entoaram o "Te Deum Laudamus". As vozes fortes e profundas ecoaram por toda a igreja. Como que transportado em êxtase, o bispo passou por entre a multidão ajoelhada, dando a sua bênção ao povo enquanto se dirigia para a saída. Não notou o olhar irónico de Domingo.
Nesse momento os sinos começaram a soar no campanário, e dentro em pouco todos os sinos da cidade badalavam. Não havia nisso, porém, nenhuma intervenção sobrenatural. Don Manuel, como o bom soldado que era, tinha atendido a todos os pormenores e tomara disposições para que, ao serem tangidos os sinos da colegiada em celebração do milagre que
ele estava certo de realizar, todos os sinos das demais igrejas se pusessem a bater também.
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As enormes portas abriram-se de par em par à aproximação do bispo e este saiu para o sol deslumbrante do dia de Agosto. A multidão lançou-se em pós dele e seguiu a procissão de frades até estes chegarem ao convento. Ia o bispo entrar quando uma grande gritaria se levantou da turba. Queriam que ele falasse. Junto à parede do convento havia um púlpito, usado quando a cidade era visitada por algum pregador tão famoso que a igreja do convento não podia comportar a vasta congregação desejosa de ouvi-lo. O prior adiantou-se, transmitindo ao bispo o desejo do povo, rogou-lhe que acedesse. Don Blasco correu os olhos em volta de si, como se ignorasse onde estava. Dir-se-ia que até então não se apercebera das devotas e ansiosas criaturas que lhe seguiam os passos. Deteve-se um instante para reunir as ideias e, sem uma palavra, subiu ao púlpito.
Tinha uma voz magnífica, de tom rico, com uma infinita variedade de inflexão. Começou a falar.
- Ninguém pode sondar as profundezas do coração humano, nem perceber as coisas que ele pensa: como encontrar então a Deus, que criou todas essas coisas-, e conhecer-Lhe o pensamento ou compreender os Seus desígnios?
Os gestos do bispo eram vigorosos e expressivos. A sua voz alcançava os últimos confins da cerrada multidão, e quando ele a baixava num tom compassivo, tal era a beleza da sua dicção que nenhuma das suas palavras deixava de ser ouvida. Quando, numa investida apaixonada contra os pecados humanos, ele a erguia, em todo o seu esplendor, era como o trovão a rolar nas desoladas serras. Fazia de súbito uma pausa,
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e o silêncio no meio daquela torrente de eloquência semelhava o estridor do Juízo Final. O povo encolheu-se confrangido quando ele lhes lembrou a brevidade da existência, os acidentes que perseguem os filhos de Adão desde o berço até à sepultura, a transitoriedade dos seus prazeres, a angústia dos seus sofrimentos; tremeram quando ele lhes pintou os horrores do Inferno e as intermináveis torturas dos réprobos; e choraram quando, com a voz apagada de ternura, ele descreveu com inflexões extáticas a comunhão dos santos e as eternas alegrias do Paraíso. Muitos arrependeram-se dos seus pecados e regeneraram-se desse dia em diante. O bispo terminou por uma grande peroração em louvor da Santíssima Virgem e para glória do Senhor. Jamais tinha falado com mais ardente e patética eloquência.
Quando o conduziram à sua cela, estava tão alquebrado que se deixou deitar na cama dura pelos seus dois fiéis assistentes. Sentia-se devastado pela emoção e pela fadiga.

XX.

Nessa noite houve grande regozijo na cidade. Os taberneiros não tinham mãos a medir. A multidão passeava em redor da praça, palrando sobre o portentoso acontecimento daquele dia. Ninguém duvidava de que tivesse sido o santo bispo o realizador do milagre e todos admiravam a sua modéstia em usar o irmão padeiro como instrumento do seu poder. Ensinara-lhes, assim, que na verdade os humildes devem ser exaltados e os soberbos devem ser humilhados. Muitos
afirmavam tê-lo visto elevar-se no ar - a dois pés do chão, segundo alguns, a quatro, segundo outros - e permanecer suspenso dessa forma, rodeado de glória.


C O N T I N U A

Catalina - o cenário desta história é a Espanha do reinado de Filipe III, a trágica Espanha da Inquisição.
Catalina, jovem de dezasseis anos, aleijada de uma perna, está orando ardentemente pela sua cura quando lhe aparece a Virgem Maria.
Qual dos três filhos de Valero melhor servia a Deus? Em páginas repletas de emoção, o leitor verá quem, afinal, realiza o milagre, assim como assistirá a todo o restante e apaixonante entrecho deste romance cheio de contrastes humanos.

 


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I.

Era um grande dia para a cidade de Castel Rodríguez. Já ao amanhecer os habitantes estavam de pé, com as suas melhores roupas. Nos balcões dos velhos e severos palácios dos nobres ostemtavam-se ricos estofos e os galhardetes batiam indolentemente de encontro às hastes. Era a festa da Assunção, dia 15 de Agosro, e o sol escaldava num céu sem nuvens. Sentia-se um alvoroço no ar, pois nesse dia, após muitos anos de ausência,, chegavam duas pessoas eminemtes, naturais da cidade, e grandes festividades tinham sido preparadas em sua honra. Uma delas era Frei Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, e a outra seu irmão Don Manuel, capitão de nomeada nas forças d'El-Rei. Haverá um "Te Deum" na colegiada, banquete na municipalidade, touradas e fogo preso quando anoitecesse. À medida que se adiantava a manhã, um número cada vez maior de pessoas tomava o caminho da Plaza Mayor. Formou-se ali o cortejo que ia esperar os ilustres viajantes a certa distância da cidade. Encabeçavam-no as autoridades civis, vindo
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depois os dignitários da Igreja e, por fim, uma série de pessoas gradas. A multidão abriu alas nas ruas para vê-los passar,, depois colocou-se em ordem para esperar a emtrada dos dois irmãos na cidade, seguidos desses importamtes personagens, no momento em que os sinos de todas as igrejas se punham a repicar em sinal de boas-vindas.
Na capela da Virgem da igreja anexa ao convento das freiras carmelitas, uma jovem aleijada estava a rezar. Fazia-o com devoção apaixonada, diante da imagem da Santíssima Virgem. Ao erguer-se, afinal, ajeitou melhor a muleta debaixo do braço e saiu da igreja. Lá dentro estava fresco e escuro, e aquela claridade súbita do dia quente e abafado ofuscou-a por um momento. Deteve-se a olhar a praça vazia, em baixo. As casas tinham os postigos fechados para não deixar entrar o calor. Reinava ali um grande silêncio. Todos tinham ido ver os festejos e não ficara um cão sem dono para latir. Dir-se-ia uma cidade morta. A jovem olhou para a sua própria casa, um pequeno prédio de dois andares comprimido entre os seus vizinhos, e suspirou desalentada. A sua mãe e seu tío Domingo, que vivia com elas, tinham ido com os demais e só voltavam depois das touradas. Sentia-se muito só e muito infeliz. Como não tivesse ânimo de ir para casa, sentou-se no último degrau da escadaria que descia da porta da igreja à praça e largou a muleta no chão. Pôs-se a chorar. De repente, assoberbada pela mágoa, prostrou-se no patamar de pedra e, mergulhando o rosto nos braços, soluçou como se o seu coração estivesse a ponto de despedaçar-se. O seu movimento brusco dera um impulso à muleta, que caiu com ruído pelos degraus estreitos e íngremes, até em baixo. Era o cúmulo do infortúnio: teria que descer de rastos ou deixar-se escorregar pela escada a fim de ir buscá-la, já que a sua perna paralítica não lhe permitia caminhar sem a muleta. Chorou desconsoladamemte.
De súbito ouviu uma voz.
- Porque choras, minha filha?
Virou-se surpreendida, pois não ouvira ninguém aproximar-se. Viu uma mulher em pé atrás de si. Parecia ter saído da igreja, mas ela própria o fizera naquele momento e lá dento não estava ninguém. A mulher vestia um longo mamto azul, que lhe ia até aos pés, e enquanto Catalina a olhava, afastou o capuz que lhe cobria a cabeça. Devia ter saído da igreja, com efeito, pois para as mulheres era um pecado entrar na casa do Senhor com a cabeça descobertta. Era bastante alta para uma espanhola e moça, tendo a pele do rosto suave e macia, sem rugas por baixo dos olhos escuros. Usava um penteado muito simples, com o cabelo repartido no meio e apanhado num coque frouxo sobre a nuca. Possuía feições pequenas, delicadas, e um olhar bondoso. A jovem paralítica não saberia dizer se se tratava de uma camponesa - esposa, talvez, de algum chacareiro das imediações - ou de uma dama. Tinha certa singeleza de aspecto, e ao mesmo tempo uma dignidade um tanto intimidativa. O comprido manto escondia-lhe as roupas, mas quando ela tirou o capuz a rapariga vislumbrou qualquer coisa branca e deduziu que tal devia ser a cor do seu vestido.
- Enxuga as lágrimas, minha filha, e dize-me o teu nome.
- Catalina.
- Por que vens sentar-te aqui sozinha, a chorar, quando toda a gente foi ver a recepção do bispo e de seu mano, o capitão?
- Sou aleijada e não posso ir longe, senhora. Além disso, que iria fazer no meio de toda essa gente sã e feliz?
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A desconhecida estava atrás de Catalina e esta tivera de virar-se para lhe falar. Relanceou os olhos para a porta da igreja.
- De onde veio, Senhora? Não a vi na igreja.
A desconhecida sorriu. Era um sorriso tão meigo que todo o amargor pareceu dissipar-se no coração da rapariga.
- Pois eu vi-te, minha filha:. Estavas a rezar.
- Estava pedindo à Virgem que me curasse, como venho fazendo noite, e dia desde que fiquei inválida.
- E pensas que ela tem o poder de fazê-lo?
- Se ela quiser...
A senhora tinha uns modos tão doces e tão afectuosos que Catalina sentiu-se impelida a contarnlhe a sua triste história. Aquilo sucedera quando estavam trazendo os novilhos para as touradas da Páscoa e toda a população da cidade se reunira para vê-los chegar, sob a orientação segura dos dois padrinhos. À frente ia um grupo de jovens fidalgos, cujos cavalos curveteavam. De repente, um dos animais escapou-se e enveredou por uma viela. Formou-se um pânico e a multidão espalhou-se para todos os lados. Um homem foi atropelado pelo touro-, que tornou a investir para a frente. Catalina, que corria tão depressa quanto podia, escorregou e caiu no momento em que o amimal ia alcançá-la. Soltou um grito e perdeu os sentidos. Ao voltar a si, disseram-lhe que o touro a tinha pisado na sua doida arremetida, mas continuara a correr impetuosamente. Ela sofrera contusões mas não fora ferida. Disseram-lhe que havia de sarar em pouco tempo, mas um ou dois dias depois, Catalina queixou-se de não poder mexer a perna. Os médicos examinaram o membro e encontraram-no paralisado. Picaram-no com agulhas: Catalina não sentia nada. Sangraram-na, purgaram-na e deram-lhe poções nauseabundas para tomar, mas tudo foi inútil. A perna estava como morta.
- Mas ainda tens o uso das mãos - disse a senhora...
- Graças a Deus, pois se não fosse isso nós morríamos de fome. A senhora perguntou-me porque estava eu a chorar. Eu choro porque, com o uso da perna, perdi também a afeição do meu amado.
- Ele não te podia ter grande amor, se te abandonou na tua desgraça.
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- Amava-me de todo o coração, e eu amo-o mais do que à minha própria alma. Mas nós somos pobres, senhora. Ele é Diego Martínez, o filho do alfaiate, e segue a profissão do pai. Íamos casar quando ele tivesse terminado o aprendizado, mas um homem pobre não pode dar-se ao luxo de desposar uma mulher incapaz de fazer frente às outras mulheres no mercado ou de subir e descer as escadas para dar conta dos trabalhos caseiros. Depois, os homens são sempre homens. Um homem não pode querer uma mulher aleijada. Pedro Álvarez ofereceu-lhe a sua filha Francisca. É feia como o pecado, mas Pedro Álvarez é rico, e assim como poderia ele recusar?
Catalina pôs-se de novo a chorar. A dama considerou-a com um sorriso de compaixão. De repente, ouviu-se ao longe um rufar de tambores e um clangor de trombetas e todos os sinos se puseram a badalar simultaneamente.
- Entraram na cidade: o bispo e seu irmão, o capitão - disse Catalina. - Como se explica, que esteja aqui em lugar de ir vê-los passar, senhora?
- Não me deu vontade de ir.
Isto pareceu tão esquisito a Catalina que lançou um olhar desconfiado à desconhecida.
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- Não mora na cidade, senhora?
- Não.
- Estranhei não a ter visto antes. Creio que não há aqui ninguém a quem eu não conheça:, pelo menos de vista.
A dama não respondeu. Catalina ficou intrigada e olhou-a com mais atenção por baixo dos cílios. Não era crível que fosse moura, pois não tinha a pele bastante escura para isso, mas era bem possível que pertencesse aos cristãos-novos, isto é, a esses judeus que tinham preferido o baptismo à expulsão do país. Mas, como todos sabiam, continuavam a observar em segredo os ritos judaicos, lavando as mãos antes e depois das refeições, jejuando no Dia da Expiação e comendo carne às sextas-feiras. A Inquisição não dormia e, quer se tratasse de mouros baptizados ou de judeus conversos, era perigoso ter quaisquer relações com eles. Havia sempre o risco de caírem nas mãos do Santo Ofício e, submetidos à tortura, incriminarem inocentes. catalina perguntou consigo, ansiosa, se não teria dito alguma coisa que pudesse motivar uma acusação, pois na Espanha daqueles tempos toda a gente vivia no terror do Santo Ofício e uma palavra impensada, um gracejo, podiam constituir motivo suficiente para a prisão, e uma vez no cárcere passavam-se semanas, meses e até anos antes que se conseguisse provar a sua inocência. Catalina achou bom afastar-se dali o quanto antes.
- São horas de ir para casa, senhora - disse ela; e, com a polidez que lhe era natural, acrescentou: - Assim, se me permite, vou deixá-la.
Relanceou os olhos para a muleta, que caíra lá em baixo. Teria a coragem de pedir à senhora que a fosse buscar? Mas esta não prestou atenção no que ela dissera.
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- Não gostaria de recobrar o uso das suas pernas, minha filha,, para poder andar e correr como se nunca houvesse estado doente? - perguntou ela.
Catalina ficou branca. Essa pergunta deixava patente a verdade. A desconhecida não era cristã-nova e sim uma moura, pois ninguém ignorava que os mouros, cristãos apenas no nome, tinham pacto com o demónio e por meio das artes mágicas podiam obrar toda a sorte de malefícios. Não fazia muito que uma pestilência assolara a cidade, e os mouros, acusados de serem os seus causamtes, confessaram-se culpados no cavalete e acabaram morrendo na fogueira. Catalina sentiu tamanho terror que ficou impossibilitada por um momento de falar.
- Então, minha filha?
- Eu daria tudo que tenho no mundo - e não é nada - para me ver livre da minha enfermidade, mas ainda que fosse para recuperar o amor do meu Diego não faria nada que pusesse em perigo a minha alma Imortal ou que constituísse uma ofensa à Santa Madre Igreja.
E, enquanto falava, persignou-se sem tirar os olhos da desconhecida.
- Então eu te direi como podes curar-te. O filho de Juan Suárez de Vataro que melhor tem servido a Deus tem o poder de fazê-lo. Ele te imporá as mãos em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, mandar-te-á atirar fora a muleta e andar. E tu atirarás fora a muleta e andarás.
Não era isto, em absoluto, o que Catalina esperava. O que a senhora dizia era surpreendente, mas falava com tanta calma e segurança que a moça ficou impressionada. Duvidando e esperando ao mesmo tempo, encarava fixamente a misteriosa desconhecida. Necessitava de um momento para tornar a si
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do seu espanto, antes de fazer as perguntas que já iam tomando forma no seu espírito. Mas de súbito os olhos de Catalina quase lhe saltaram das órbitas e a sua boca escancarou-se de assombro, pois no lugar onde estava a senhora já não se via mais nada. Não podia ter entrado na igreja, porquanto Catalina não tirara os olhos dela., nem podia ter-se movido: desvanecera-se no ar, simplesmente. A jovem soltou um grande grito e novas lágrimas, mais lágrimas de outra espécie, correram-lhe em torrente pelas faces.
- Era a Santíssima Virgem! - gritou. - Era a Rainha dos Céus, e eu falei-lhe como teria falado a minha mãe. Era Maria Santíssima, e eu tomei-a por uma moura ou uma judia conversa!
Tal era a sua emoção que sentiu a necessidade urgente de contar aquilo a alguém. Sem reflectir, deixou-se escorregar sobre as costas pela escada abaixo, ajudando-se com as mãos, até alcançar a muleta. Voltou então para casa, mas somente ao chegar à porta se lembrou de que ninguém estava lá. Apesar disso entrou e, como sentisse fome, arranjou um pedaço de pão e algumas azeitonas e tomou um copo de vinho. Este deu-lhe sono, mas continuou sentada, resolvida a não dormir enquanto não chegassem sua mãe e seu tio Domingo. Mal podia esperar para lhes contar a sua história maravilhosa. Foram-se-lhe, porém, cerrando as pálpebras e dentro em pouco dormia profundamente.

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II.

Era Catalina uma linda moça. Tinha dezasseis anos, era alta para a sua idade, já com o busto bem desenvolvido, mãos e pés pequeninos, e antes do acidente caminhava com uma graça sinuosa que encantava todos quantos a olhavam. Tinha olhos grandes e escuros em que brilhava o ardor da mocidade, cabelos pretos que se encrespavam naturalmente e tão compridos que podia sentar-se neles, pele morena e suave, faces de um rosado tépido, lábios vermelhos e húmidos. Quando ria ou sorria - o que era frequente antes do seu infortúnio - mostrava os dentes, parelhos, pequenos e alvíssimos. O seu nome completo era Maria de los Dólares Catalina Orta y Pérez. Seu pai, Pedro Orta, fora fazer fortuna nas Américas pouco depois de nascer Catalina, e desde então não tinham notícias dele. Sua esposa, Maria Pérez por nascimento,, ignorava se ele estava vivo ou morto, mas ainda tinha esperança de vê-lo regressar um dia com uma arca repleta de ouro, enriquecendo-os a todos. Era uma mulher devota e todas as manhãs, à missa, fazia uma oração pela segurança do marido. Enfurecia-se com o mano Domingo quando este lhe dizia que, se Pedro não morrera havia muito tempo, devia estar vivendo com alguma índia ou quem sabe se duas ou três, e não tinha a menor intenção de abandonar os filhos mestiços que indubitavelmente tinha por lá, para voltar à companhia de uma esposa que já perdera a beleza e a mocidade.
Tio Domingo era uma terrível provação para a sua virtuosa mana,, mas esta queria-lhe bem, em parte porque tal era o seu dever de cristã mas também porque, apesar dos seus graves defeitos, Domingo era um homem estimável e ela não podia
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deixar de amá-lo. Não o esquecia também nas suas orações e compraziam em acreditar que era em virtude da eficácia destas, e não por estar envelhecendo, que ele abandonara! ao menos os seus piores costumes. Domingo Pérez fora destinado ao sacerdócio e no seminário de Akallá de Henares, para onde o mandou o pai, tomou as ordens menores e recebeu a tonsura. Um de seus condiscípulos fora Blasco Suárez de Valero, o bispo de Segóvia, cuja chegada os habitantes da cidade estavam festejando naquele dia. Maria Pérez suspirava ao pensar nos destinos tão diferentes que os dois tinham tomado. Domingo era um estrabulega. Desde o começo envolveu-se em complicações no seminário devido ao seu génio teimoso, turbulento e dissipador, e nem as advertências, nem os castigos nem as pancadas conseguiam domá-lo. Já nesse tempo gostava da pinga e quando bebia de mais entoava canções obscenas que ofendiam os seus colegas de seminário e os professores, os quais tinham por missão incutir a honestidade e o decoro naqueles jovens espíritos. Ainda não tinha feito vinte anos, quando deixou grávida uma escrava moura e, ao perceber que a sua má acção seria divulgada, fugiu e ingressou num grupo de actores ambulantes. Vagueou com eles durante dois anos pelo país e ao fim desse tempo apareceu de repente em casa do pai.
Declarou-se arrependido dos seus pecados e prometeu emendar-se. Era evidente que a Providência não o talhara para o sacerdócio. Disse ao pai que, se este lhe desse o dinheiro necessário para não morrer de fome, iria estudar leis numa universidade. O pai estava ansioso por acreditar que o seu filho havia assentado o juízo e como, na verdade, Domingo voltou reduzido a pele e ossos, a existência que levara não parecia ter sido muito fácil e o velho Pérez deixou-se persuadir. Domingo foi para Salamanca, onde ficou oito anos, mas fez os seus estudos de maneira muito irregular. A magra mesada que recebia do pai obrigava-o a viver numa casa de pensão com vários outros estudantes e a comida era o quanto bastava para não morrer de inanição. Posteriormente, costumava divertir os seus companheiros de pândega, nas tabernas que frequentava, com anedotas sobre os horrores do estabelecimento e as astúcias a que tinham de recorrer para completar o mísero passadio. Mas a pobreza não impedia que Domingo gozasse a vida. Tinha uma língua desenvolta, modos encantadores e cantava bem, de forma que era bem recebido em todas as festas. Talvez os dois anos passados com a troupe ambulante não lhe tivessem ensinado a ser bom actor, mas ensinaram-lhe outras coisas que lhe prestavam serviço agora. Aprendera a ganhar às cartas e aos dados,, e quando aparecia na universidade algum jovem rico, Domingo não tardava a travar conhecimento com ele. Constituía-se em seu guia e mentor no tocante aos costumes da cidade e era raro que o recém-vindo não tivesse de pagar bom -preço pela experiência adquirida. era Domingo nessa época um rapaz bem apessoado e de vez em quando tinha a sorte de provocar a paixão de alguma mulher dada às aventuras amorosas. Não estavam elas no viço da mocidade mas eram pessoas abastadas e Domingo achava justo que provissem às suas necessidades em troca dos serviços que lhes prestava.
O período que passara como actor -ambulante inspirara-lhe o desejo de escrever peças de teatro e todas as horas vagas que lhe deixavam os seus divertimentos, ele dedicava-se a essa ocupação. Tinha considerável facilidade e, além de escrever algumas comédias, compunha amiúde um soneto ao objecto das suas lucrativas atenções e fazia versos em honra de alguma
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pessoa grada, a quem os enviava com a esperamça de receber uma recompensa em metal sonante. Foi esse seu dom de rimar que acabou por levá-lo à mina. O reitor da universidade provocara a cólera dos estudantes com uma pnescrição qualquer e, ao encontrarem numa mesa de taberna uns versos indecentes e injuriosos a seu respeito, encheram-se de regozijo. Dentro em pouco andavam cópias de mão em mão. Correu o boato de que o autor era Domingo Pérez e, conquanto este o negasse, fê-lo com tal complacência que era o mesmo que admiti-lo. Amigos serviçais chamaram a atenção do reitor para os versos, indicando-lhe ao mesmo (tempo quem os tinha escrito. Como o original houvesse desaparecido, não foi possível provar a culpa de Domingo com a sua própria letra, mas o reitor fez indagações discretas que o convenceram de que esse indivíduo dissoluto e mau estudante era o responsável pelo insulto. Tinha demasiada astúcia para formular uma acusação difícil de provar, mas, decidido a vingar-se, escolheu um método mais subtil. Não foi difícil descobrir o escândalo provocado por Domingo como seminarista em Alcalá, e a existência que ele levara durante os oito amos passados na universidade eram notoriamente desregrada. Domingo era jogador e todos sabiam que o jogo leva muitas vezes à impiedade; não faltaram testemunhas dispostas a jurar que lhe tinham ouvido proferir as mais horríveis blasfémias, e diante de duas delas ele dissera que acreditar nos Artigos de Fé era, acima de tudo, questão de boa educação. Isto por si era suficiente para justificar um inquérito do Santo Ofício. O reitor depôs nas mãos dos inquisidores as informações que tinha recebido. O Santo Ofício nunca procedia às pressas. Reunia as provas com todo o sigilo e cuidado e enquanto não
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lhe desabava o golpe na cabeça, a vítima raras vezes sabia que estava debaixo de suspeita.
Uma noite, tarde, estando Domingo deitado a dormir, o aguazil bateu-lhe à porta e prendeu-o quando ele veio abrir. Só lhe deu tempo para vestir-se e emalar a sua reduzida bagagem, junto com a roupa de cama, e conduziu-o, não à prisão - pois Domingo tinha as ordens menores e a Inquisição fazia o possível para evitar escândalos no seio da Igreja - mas a um mosteiro, onde foi encarcerado numa cela disciplinar. Deixaram-no ficar alli algumas semanas, fechado a sete chaves, sem permissão de falar a ninguém ou de ler o que quer que fosse, sem uma vela sequer para alumiar-lhe as trevas. Foi então conduzido à presença do tribunal. As coisas estariam mal paradas para ele se não fosse uma feliz circunstância. Poucos dias antes o reitor, homem vaidoso e irrascível, -tivera violenta disputa com os inquisidores sobre uma questão de precedência. Leram os versos de Domingo e riram com malicioso júbilo. Os seus delitos eram manifestos e não podiam ser relevados, mas os juízes perceberam que,, temperando a justiça com a clemência, podiam infligir ao reitor furioso uma afronta que ele sentiria fundo mas teria de tragar. Domingo reconheceu a sua culpa e declarou-se arrependido. Foi sentenciado a ouvir missa na câmara de audiência e exilado de Salamanca e seus arredores, Tinha rapado um bom susto. Achou conveniente ausentar-se da Espanha por algum tempo; foi, pois, para a Itália como soldado e passou lá alguns anos a jogar, a praguejar quando os dados ou as cartas o atraiçoavam, a fornicar e a beber. Tinha quarenta anos quando voltou à sua terra natal, tão pobre como ao deixá-la, com uma ou duas cicatrizes arranjadas
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em rixas entre bêbedos mas com numerosas recordações para emtreter-Lhe as horas vagas.
Seus pais tinham morrido e a única pessoa da família que restava era a mana Maria, abandonada pelo marido, e a sobrinha Catalina, então uma linda criança de nove anos. O marido de Maria esbanjara-lhe o dote e ela nada possuía além da casinha em que morava. Sustentava a si mesmo e à filha com hábeis e difíceis trabalhos de agulha, tecendo adornos de ouro e prata para os mantos de veludo das imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos padroeiros, as quais eram carregadas nas procissões da Semana Santa, e para as capas, casulas e estolas usadas nas cerimónias da Igreja. Na idade a que chegara, Domingo sentia-se disposto a trocar por uma existência tranquila a vida aventurosa que levara durante vinte anos e a irmã, necessitando da protecção de um homem em casa, convidou-o para morar com ela. Ao iniciar-se a nossa história, havia sete anos que ele vivia ali. Já não pesava nas despesas de Maria, pois ganhava dinheiro escrevendo cartas a pedido de pessoas iletradas, sermões para padres preguiçosos ou ignorantes que não queriam compô-los por si, e depoimentos para demandantes em juízo. Era também hábil em traçar genealogias de pessoas que desejavam atestados de sangue limpo, o que queria dizer que durante um século, ao menos, a sua ascendência não fora manchada por qualquer cruzamento com judeus ou mouros. A pequena família teria uma vida assaz remediada se Domingo pudesse livrar-se dos maus hábitos do jogo e da bebida. Também gastava dinheiro em livros, sobretudo volumes de versos e peças dramáticas, pois ao voltar da Itália recomeçara a escrever para o teatro e, embora não conseguisse fazer representar nenhuma das suas produções, contentava-se com o prazer
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de lê-las aos outros beberrões na sua taberna favorita. Ao tornar-se um homem respeitável reassumira a tonsura, uma salvaguarda em meio aos perigos da Espanha daquele tempo, e usava as vestes sóbrias que convinham a um letrado com as ordens menores.
Tomou grande afeição a Catalina, tão alegre, tão vivaz e tão bonita, e via-a transformar-se numa bela moça com uma satisfação inteiramente desinteressada. Encarregou-se da sua educação e ensinou-a a ler e escrever. Ensinou-lhe também o catecismo e assistiu à sua primeira comunhão com todo o orgulho de um pai. Quanto ao resto, porém, limitava o seu ensino a ler-lhe versos e, quando ela teve bastante idade para apreciá-las, as peças dos dramaturgos que começavam a ser tão comentados na Espanha. Mais do que a todos admirava Lope de Vega, a quem proclamava o maior génio que o mundo tinha visto, e antes do acidente que lesou a jovem, ele e Catalina costumavam representar as cenas que mais admiravam. Tinha ela uma memória viva e com o tempo chegou a saber de cor passagens inteiras. Domingo não esquecera que tinha sido actor e ensinou-a a declamar os seus versos, quando devia ser comedida e quando soltar as rédeas à paixão. Domingo tornara-se um homem magro, de movimentos desarticulados, cabelos grisalhos, rosto amarelo e cheio de rugas, mas ainda havia fogo nos seus olhos e ressonância na sua voz; e quando ele e Catalina representavam uma cena emocionante, com Maria por único auditório, Domingo já não era o valdevinos envelhecido, bêbedo e decadente, mas um brioso mancebo, um príncipe de sangue azul, um galã, um herói ou o que se quisesse. Tudo isso terminou, porém, quando Catalina foi pisada pelo touro. O choque manteve-a de cama algumas semanas, durante as
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quais os médicos da cidade empregaram todos os recursos da sua pobre ciência para devolver a vida ao membro paralisado. Afinal confessaram-se impotentes. Era um caso incurável. Diego, seu namorado, já não lhe vinha à janela de noite para lhe fazer a corte através da grade de ferro, e pouco depois sua mãe trazia para casa a notícia de que ele ia casar com a filha de Pedro Álvarez. Domingo ainda lhe lia dramas para distraí-la, mas as cartas de amor faziam-na chorar com tanta amargura que ele tinha de interromper-se.


III.

Catalina dormiu algumas horas e foi despertada afinal pelos ruídos que sua mãe fazia, lidando na cozinha. Pegou na muleta e foi lá.
- Onde está o tio Domingo? - perguntou, pois queria que ele estivesse presente para ouvir o que ela precisava contar com tanta urgência.
- Que pergunta! Está na taberna. Mas, se bem o conheço, voltara para casa à hora de jantar.
Por via de regra como toda a gente;, eles faziam a única refeição quente do dia às doze horas., mas desde a manhã não tinham comido senão um naco de pão barrado de alho, que Maria levara consigo, e ela sabia que Domingo devia estar faminto. Acendeu, pois, o fogo e tratou de preparar a sopa. Catalina não pôde esperar nem um momento mais.
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- Mãe, a Virgem Santíssima apareceu-me.
- Sim, minha querida? - volveu Maria. - Limpa e corta as cenouras para mim, por favor.
- Mas ouve, mãe! Eu vi a Virgem Santíssima, ela falou-me!
- Não sejas tola, menina. Encontrei-te dormindo quando cheguei e não te acordei. Ainda bem que tiveste um sonho bonito. Mas agora que acordaste, podes ajudar-me a preparar o jantar.
- Mas eu não sonhei, isso foi antes de eu dormir!
Referiu, então, a coisa extraordinária que lhe acontecera.
Maria Pérez fora bonita em moça mas engordara com a idade, como muitas vezes sucede às espanholas. Tinha sofrido muito: dois filhos que tivera antes de Catalina haviam morrido; aceitara isso, porém, do mesmo (modo que o abandono do marido, como uma mortificação que lhe era imposta, pois era profundamente religiosa. E, sendo ao mesmo tempo uma mulher prática que não tinha o hábito de lastimar-se inutilmente, encontrara consolação no trabalho aturado, no ofício divino e nos desvelos com a filha e com seu refractário irmão Domingo. Ouviu aterrada a história de Catalina. Era tão circunstanciada, com pormenores tão precisos, que estaria disposta a darnlhe crédito se, ao menos, não fosse incrível. A única explicação possível era que a enfermidade da pobre rapariga e a perda do namorado lhe houvessem dado volta ao juízo. Estivera a rezar dentro da igreja e depois fora sentar-se sob o sol ardente: era muitíssimo provável que qualquer coisa se tivesse desarranjado no seu cérebro e ela houvesse imaginado tudo aquilo com tamanha força que estava convencida da reailidade do acontecimento.
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- O filho de Don Juan de Valeiro que melhor tem servido a Deus é o bispo - disse Catalina ao terminar.
- Quanto a isso, não há dúvida - volveu a mãe. - Ele é um santo.
- Tio Domingo conheceu-o bem quando ambos eram jovens e pode levar-me à presença dele.
- Cala-te, menina. Deixa-me pensar.
A Igreja não via com bons olhos as pessoas que afirmavam ter-se comunicado com Jesus Cristo ou sua Mãe, e punha toda a sua autoridade em desanimar tais pretensões. Alguns anos atrás, um frade franciscano causara grande alvoroço curando enfermos por meios sobrenaturais e era tal o número de pessoas que recorriam a ele que o Santo Ofício fora obrigado a intervir. Prenderam-no e nunca mais se ouviu falar nele. Pelas conversas do convento das carmelitas, para o qual trabalhava de quando em quando, Maria Pérez tinha notícia de uma freira, que havia afirmado que Elias,, o fundador da ordem, lhe aparecera na cela e lhe conferira favores especiais. A superiora do convento mandara açoitá-la imediatamente, até ela confessar que tinha inventado a história para se dar importância. Se, portanto, frades e freiras pagavam caro tais pretensões, era mais do que provável que a Igreja olhasse com extrema severidade a história de Catalina. Maria atemorizou-se.
- Não digas nada a ninguém - aconselhou a Catalina - , nem mesmo ao tio Domingo. Falarei com ele depois do jantar e ele resolverá sobre o melhor caminho a seguir. Mas, pelo amor de Deus, limpa as cenouras, de contrário não teremos sopa hoje.
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Catalina não ficou muito satisfeita com este alvitre, mas a mãe mandou-a calar e fazer o que lhe diziam.
Pouco depois chegava Domingo. Não estava bêbedo, mas tam-pouco estava bem são, e vinha muito alegre. Gostava de ouvir o som da própria voz e, enquanto jantavam, descreveu com loquacidade a Catalina os sucessos do dia. Isso dá-nos uma boa oportunidade de expor ao leitor as razões pelas quais reinava tamanho alvoroço na cidade.


IV.

Don Juan Suárez de Valero era um cristão-velho e, ao contrário de muitas entre as mais nobres famílias espanholas, cujos filhos, antes de Fernando e Isabel terem unido os reinos de Castela e Aragão, haviam desposado herdeiros de judeus ricos e poderosos, ele podia exibir uma ascendência isenta de qualquer aliança espúria. Mas os seus antepassados eram a sua única fortuna. Possuía escassas terras a uma milha da cidade, próximo a uma povoação chamada Valero, e fora antes para se distinguir das demais famílias Suárez do que para se dar importância que ele e seus ascendentes imediatos haviam acrescentado ao seu o nome da povoação. Era muito pobre e a sua aliança com a filha de um fidalgo de Castel Rodríguez pouco contribuiu para melhorar-lhe as circunstâncias. Dona Violante deu ao seu senhor um filho anualmente, pelo espaço de dez anos, mas desses filhos somente três, todos varões, passaram
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da adolescência. Chamavam-se, respectivamente, Blasco, Manuel e Martin.
Blasco, o mais velho, desde a infância deu sinais de uma inteligência excepcional e, por sorte, também de devoção, de maneira que o destinaram para a Igreja. Na idade própria foi posto no seminário de Alcalá de Henares e a seu tempo passou à universidade. Bacharelou-se em Ciências e Letras e doutorou-se em Teologia em tão poucos anos que era evidente poder ele contar com uon futuro brilhante no clero secular. Prometiam-lhe altas distinções. Mas, de súbito, afirmando desejar viver no isolamento do mundo para poder dedicar-se inteiramente aos estudos, à prece e à meditação, ele mostrou o intuito de ingressar na ordem monástica dos dominicanos. Os seus amigos procuraram dissuadi-lo, pois a ordem era austera, com um serviço divino à meia-noite, perpétua abstinência de carne, frequentes mortificações, jejum e silêncios prolongados. Tudo foi inútil, porém, e Blasco de Valero fez-se frade. Tão manifestas eram as suas qualidades que os seus superiores não podiam desconhecê-las, e quando se descobriu que, além de uma bela presença e grande cultura, ele possuía uma voz ao mesmo tempo forte e melodiosa, assim como uma ardente eloquência, enviaram-no a pregar aqui e ali: pois o Papa Inocêncio III tinha mamdado São Domingos pregar aos hereges e desde então os dominicanos tornaram-se conhecidos como missionários e pregadores. Em certa ocasião mandaram-no à sua velha universidade de Alcalá de Henares. Gozava já de uma reputação considerável e toda a cidade correu a ouvi-lo. O sermão que pronunciou foi sensacional. Empregou todos os seus recursos para convencer a numerosa congregação da importância de conservar a fé na sua pureza e exterminar
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por completo os hereges. Em voz trovejante ordenou aos leigos, pela estima que tinham às suas almas e pelo temor aos rigores do Santo Ofício, que denunciassem tudo que lhes viesse ao conhecimento com sabor ao pecado e ao crime de heresia. Incutiu-lhes, com palavras ameaçadoras, que era dever religioso de cada um delatar o seu vizinho, o filho ao pai, a mulher ao marido, pois não havia laços naturais de afeição que pudessem absolver um filho da Igreja de conivência com um mal que era um perigo para o Estado e uma ofensa a Deus. O resultado do sermão foi satisfatório. Houve numerosas deflações e no final três cristãos-novos, contra os quais ficou provado que costumavam retirar a gordura da carne que comiam e mudar de roupa aos sábados, morreram na fogueira. Bom número de acusados foram condenados à prisão perpétua, com a comfiscação de todas as suas posses, e muitos outros açoitados ou submetidos a penas pecuniárias e outras.
A enérgica eloquência do frade produziu impressão tão funda nas autoridades universitárias que pouco depois era ele nomeado professor de Teologia. Alegou o seu pouco mérito e pediu que o dispensassem de aceitar essa posição de responsabilidade, mas os seus superiores na ordem determinaram que aceitasse e ele teve de obedecer. Desempenhou os seus deveres com crédito e as suas prelecções eram tão concorridas que, embora as fizesse no vasto salão da universidade, não havia espaço suficiente para comportar todos aqueles que desejavam ouvi-lo. A sua reputação galgou grandes alturas e ao cabo de alguns anos, com trinta e sete de idade,, fizeram-no inquisidor do Santo Ofício em Valência.
Embora continuasse sinceramente convicto da sua indignidade, aceitou o posto sem se fazer rogar. Era Valência um
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porto marítimo em que amiúde ancoravam navios estrangeiros - ingleses, holandeses ou franceses. Não raro, as suas tripulações eram protestantes e, por esse motivo, objectos muito apropriados para as actividades da Inquisição. Acresce que tentavam com frequência introduzir na Espanha livros proibidos, como bíblias traduzidas em espanhol e as obras heréticas de Erasmo. Blasco de Valeiro percebeu que podia ser muito útil ali. Além disso, havia grande número de mouros em Valência e nos arredores. Tinham sido convertidos à força, mas ninguém ignorava que a maior parte dessas conversões não iam além da superfície e eles continuavam a observar boa parte dos seus costumes mouriscos. Não comiam carne de porco, usavam em casa os trajes proibidos e negavam-se a comer animais que houvessem perecido de morte natural. Apoiada na autoridade régia, a Inquisição tinha conseguido eliminar o judaísmo, e embora os cristãos-novos pudessem ser ainda olhados com desconfiança, o Santo Ofício encontrava cada vez menos ocasiões de proceder contra eles. Mas com os mouros era diferente. Eram laboriosos e não só a agricultura do país se encontrava nas suas mãos mas também todo o comércio - pois os espanhóis eram demasiado preguiçosos, soberbos e dissipados para se dedicarem a ocupações manuais. Em consequência, os mouros tornavam-se cada vez mais ricos e, como fossem muito prolíferos, o seu número aumentava. Muita gente ponderada vaticinava o dia em que toda a riqueza do país passaria às suas mãos e o seu número excederia o da população nativa. Temia-se, como era natural, que nesse dia eles tomassem conta do poder e reduzissem à servidão os indolentes espanhóis. Tornava-se necessário livrar-se deles a qualquer custo e vários planos foram arquitectados com esse fim.
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Um desses planos era entregá-los às mãos do Santo Ofício e processá-los pelas suas notórias heresias, queimando-os em tal quantidade que os restantes se tornassem inofensivos. Outro plano, menos oneroso, consistia em deportá-los; mas o governo não desejava aumentar o poder dos mouros além do estreito de Gibraltar, acrescentando à população daquelas regiões algumas centenas de milhares de homens robustos e industriosos, de modo que alguém apresentou o engenhoso alvitre de fazê-los embarcar em velhas naus, sob pretexto de conduzi-los à África, e então pôr a pique os barcos, de modo que todos morressem afogados.
Ninguém se interessava mais por esse problema do que Frei Blasco de Valero, e talvez o mais famoso dos seus sermões durante a estada em Alcalá de Henares fosse aquele em que propunha o transporte dos mouros em massa para a Terra Nova, castrando-se previamente os machos, tanto jovens quanto velhos, de modo que em pouco acabariam todos por se extinguir. Foi esse sermão., possivelmente, que lhe valeu o alto e honroso cargo de inquisidor na importante cidade de Valência.
Frei Blasco encetou as suas novas funções com a certeza, fortificada por fervorosas preces, de que tinha diante de si a possibilidade de fazer grandes coisas em honra do Santo Ofício e pela maior glória do Senhor. Sabia que teria de fazer frente aos poderosos. Os mouros eram vassalos dos nobres, a quem pagavam tributo em dinheiro, espécie ou serviços, e aqueles tinham interesse em protegê-los. Mas o frade não levava em conta as pessoas e resolveu não permitir a ninguém,, por maior que fosse, perturbar o desempenho do seu dever. Não havia muitas semanas que estava em Valência quando o informaram de que um fidalgo poderoso, Don Hernando de Belmonte,
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duque de Terranova, impedira as autoridades do Santo Ofício de prender alguns ricos vassalos que, em desobediência à lei, usavam trajes mouriscos e tinham banheiras em casa. Mandou os seus familiares armados prender o duque, multou-o em dois mil ducados e condenou-o à reclusão perpétua num convento. Atacar, logo de início, pessoa tão altamente colocada foi um acto de audácia que infundiu terror nos mais corajosos. Ao tornar-se evidente, contudo, que o inquisidor estava decidido a exterminar os mouros, as autoridades municipais foram reunidas interceder com ele. Fizeram-lhe ver que a prosperidade da província dependia deles e que Valência iria à ruína se ele persistisse naquele intento. Mas Frei Blasco repreendeu-os asperamente e ameaçou-os com a excomunhão, forçando-os assim a submeter-se e a apresentar humildes desculpas. Mediante castigos e confiscações, logrou dentro em pouco reduzir os mouros à miséria e à desgraça. Os seus espias andavam por toda a parte e ai daquele espanhol, leigo ou eclesiástico, que desse motivo a suspeita! Como, em seus sermões, ele continuasse a incutir no povo de Valência a obrigação de denunciar todo aquele que, por gracejo ou mau humor, ignorância ou descuido, pronunciasse alguma palavra leviana, não tardou que todos os habitantes da cidade vivessem num terror perpétuo.
Mas o inquisidor era um homem justo. Tinha o cuidado de adequar a punição à falta. Por exemplo: se bem que, como teólogo, condenasse como pecado mortal as relações carnais entre pessoas não unidas pelo matrimónio, como inquisidor o facto só lhe interessava quando as pessoas envolvidas afirmassem não haver aí pecado mortal, caso em que as condenava a receber cem açoites. Por outro lado, punia apenas com 28

uma multa a asserção não menos herética de que a vida matrimonial valia tanto quanto o celibato. Era, ademais, um homem misericordioso. Não desejava a morte do herege e sim a salvação da sua alma. Certa ocasião um inglês, proprietário de um navio, foi preso e confessou pertencer à religião reformada, ante o que foi apreendida a embarcação e confiscada a carga. Submeteu-se o homem à tortura até falecerem-lhe as forças, e então permitiu-se-lhe abraçar o catolicismo. Foi com sincera satisfação que o Inquisidor pôde, assim condená-lo a apenas dez anos de galés e prisão perpétua. Podemos dar dois ou três exemplos mais do seu natural misericordioso. Após a morte de um penitente, em resultado de duzentos açoites que recebera, ele fizera questão de que o número fosse limitado a cem. Quando era necessário aplicar a tortura a uma mulher grávida o inquisidor adiava-a para depois do parto, e era antes o seu coração compassivo do que o respeito à lei que o levava a ter o maior cuidado para que a tortura não acarretasse invalidez permanente nem fractura de ossos, e se, por vezes, ocorria um acidente ou alguém morria) em resultado dos tratos, ninguém poderia lamentar mais amargamente a ocorrência.
A magistratura de Frei Blasco foi altamente bem sucedida. No decurso de dez anos celebrou trinta e sete autos-de-fé em que seiscentas pessoas se penitenciaram e mais de setenta foram queimadas vivas ou em efígie, não só prestando desse modo um serviço a Deus mas também edificando o povo. Um homem menos humilde do que ele teria considerado a última dessas solenidades como a glória suprema da sua carreira, pois ela se realizou em honra do príncipe Filipe, o herdeiro do trono. As várias cerimónias foram conduzidas com tanta propriedade e de tal modo divertiram o príncipe herdeiro que
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este fez a Frei Blasco um presente de duzentos ducados, com uma carta em que lhe dava os parabéns pelo edificante espectáculo e o exortava a continuar servindo a Deus dessa forma, para glória do Santo Ofício e proveito do Estado. Era evidente que o zelo e a piedade do inquisidor haviam produzido funda impressão nele, pois quando Filipe II morreu pouco depois e o príncipe ascendeu ao trono, nomeou-o acto contínuo bispo de Segóvia.
Ele só aceitou essa nova dignidade após uma noite inteira passada de joelhos, a contender com o Senhor, e deixou Valência entre as lamentações de grandes e pequenos. Conquistara a admiração daqueles pelo seu zelo, pela austeridade da sua vida e pela sua escrupulosa honestidade; enquanto a sua caridade fazia dele o ídolo dos pobres. Ganhava pingues emolumentos como inquisidor e a cortezia de Málaga na qual fora provido traziam-lhe benefícios consideráveis; mas ele gastava até ao último vintém em socorrer as necessidades dos pobres. A confiscação das riquezas dos hereges condenados e as multas impostas aos penitentes canailizavam elevadas quantias para os cofres do Santo Ofício e esse dinheiro servia para atender às grandes despesas da organização, mas não era raro que os inquisidores reservassem para si somas consideráveis. Até ao piedoso Torquemada acumulara desse modo uma imensa fortuna, que gastou na construção do mosteiro de S. Tomás de Aquino, em Ávila, e nos acréscimos feitos ao da Santa Cruz, em Segóvia. Mas Blasco de Valero nunca aprovou essa prática e partiu de Valência tão pobre como lá chegara.
Nunca vestiu outra coisa que não fosse o humilde hábito da sua ordem, jamais comia carne nem usava linho sobre o corpo ou nas roupas de cama,, e flagelava-se regularmente,,
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por vezes com tamanho rigor que o sangue espirrava nas paredes Tal era a sua reputação de santidade que, quando teve de adquirir um novo hábito por estar o primeiro demasiadamente gasto, muita gente pagou aos criados do bispo para lhes conseguirem fragmentos do velho hábito posto fora de uso, os quais usavam como amuletos contra a varíola e o mal venéreo. Antes da sua partida, várias pessoas influentes procuraram arrancar-lhe a promessa de lhes conceder, quando afinal aprouvesse ao Altíssimo chamá-lo a Si, o privilégio de enterrar o seu corpo na cidade em que ele levara a efeito obra tão fecunda. Estavam certos de poder exercer suficiente influência em Roma- para conseguir, senão a sua canonização, pelo menos a sua beatificação, e ter-lhe os ossos na catedral seria uma glória para a cidade. Mas o frade, adivinhando-lhes o pensamento, respondeu com severidade e não quis comprometer-se.
Foi escoltado até três milhas além das portas da cidade por uma grande comitiva de dignitários eclesiásticos, magistrados e grande número de nobres cavalheiros. Quando se despediram dele, não havia um só olho enxuto em toda aquela distinta companhia.


V.

Não é necessário estendermo-nos tanto sobre os outros filhos de Juan de Valero.
O segundo filho, Manuel, era vários anos mais novo do que Blasco e, embora não fosse tolo, não tinha nem a inteligência
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nem a operosidade do irmão. Interessava-se mais pelos desportos do campo do que pela aquisição de cultura. Fez-se um moço belo e rijo, dotado de grande força corporal e alta opinião de si mesmo. Tinha audácia, coragem e ambição. Era grande caçador e capaz de montar cavalos que outros achavam indomáveis. Desde a meninice brincava às touradas com os outros garotos do lugar, e com mais idade não perdia um ensejo de saltar para a arena, e fazer a parte do touro. Aos dezasseis anos conseguiu permissão para lutar a cavalo com um touro e, com grande admiração do público, matou o animal à primeira lançada. Havia muito que decidira abraçar a carreira das armas, pois na Espanha daquela época, a menos que se ingressasse na Igreja,, não havia outro meio de elevar-se na vida. Embora pobre, Don Juan de Valero era muito respeitado, e sucede que um dos nobres da cidade era parente afastado do grande duque de Alva. Assim um belo dia, com uma carta de recomendação na algibeira,, o jovem Manuel partiu em busca da fortuna. Encontrou o grande homem num momento favorável, pois, tendo sido desterrado da corte, achava-se ele então retido no seu castelo de Uzeda. Caiu-lhe em graça a bela aparência desse jovem que vinha solicitar o seu patrocínio quando ele havia caído em desfavor, e ao ser chamado pouco depois por Filipe II para assumir o comando do exército na guerra com Portugal, o duque levou-o na sua comitiva. Derrotou o rei Don António e expulsou-o do seu reino. Apreendeu um grande tesouro em Lisboa e deu aos seus soldados permissão de saquear a cidade e os seus arredores. Manuel portou-se com bravura na batalha e mais tarde, no saque, deitou a mão a muitos objectos de valor que prontamente converteu em dinheiro. Como, porém, Alva estivesse
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velho e não pudesse durar muito, vendo o moço ansioso por fazer progressos na carreira militar, deu-lhe cartas de apresentação para alguns dos seus antigos capitães que tinham servido com ele nos Países Baixos e se achavam então sob o comando de Alexandre Farnese.
Durante vinte anos Manuel lutou com mérito nas guerras para fazer voltar as províncias do norte ao domínio do rei de Espanha. Mostrou-se não só corajoso mas astuto e foi promovido primeiro por Alexandre Farnese e depois pelos generais que à morte deste o substituíram. Era tão inescrupuloso quanto intrépido, não menos cruel do que hábil e igualmente devoto e brutal, de forma que com o tempo veio a ser investido em comandos importantes. Não tardara a descobrir que o homem que serve o seu país nunca é recompensado pelos seus méritos, a menos que peça o que deseja. Não hesitava em fazê-lo, e como havia acumulado quantias consideráveis graças à pilhagem das cidades capturadas, à extorsão a que submetia os mercadores das localidades que administrava e à concessão de favores em troca de dinheiro, pôde finalmente consubstanciar os seus direitos de uma forma que tornava difícil deixar de reconhecê-los. Recebeu a cobiçada Ordem de Calatrava e usava com orgulho a sua fita verde. Dois anos depois foi feito conde de San Costanzo, no reino de Nápoles, com o direito de fazer o uso que lhe aprouvesse do título. Os reis de Espanha tinham o proveitoso hábito de recompensar por esse modo as pessoas merecedoras, e como estas podiam vender os títulos a plebeus ricos que desejavam enobrecer-se, a Coroa conseguia assim prover, financeiramente, sem despesa para o Tesouro, aqueles que a tinham servido bem. Mas o cavaleiro de Calatrava dera um emprego judicioso ao seu dinheiro e não necessitava
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de lançar mão desse recurso. Tinha recebido vários ferimentos, o último tão grave que só a sua vigorosa constituição lhe permitiu sobreviver. Esse ferimento dava-lhe um pretexto razoável para deixar o serviço de el-rei. Resolveu voltar para casa e unir-se pelo casamento a uma família da velha aristocracia da sua cidade natal, o que não duvidava poder fazer graças ao seu posto e à sua fortuna, e depois mudar-se para Madrid, onde empregaria a sua energia e o seu talento para a intriga em satisfazer a sua ambição desmedida. Quem sabe se, jogando bem as cartas e cultivando a amizade das pessoas que convinham,, ele não alcançaria grandes alturas? Estava com quarenta anos e era uma bela- figura de homem, com olhos pretos e ousados, bonito bigode, um ar de virilidade insolente e uma língua desembaraçada.


VI.

Quanto ao terceiro filho, Martin, necessitamos dizer ainda menos. Todas as famílias têm a sua ovelha tinhosa e a família de Juan de Valeiro não constituía excepção à regra. Martin, o mais moço dos três e o último filho que Dona Violamte dera ao marido, não possuía nem o zelo ardente graças ao qual Blasco de Valero havia alcançado a eminência na Igreja, nem a ambição e destreza que tinham trazido fama e fortuna a Don Manuel. Parecia contentar-se com o cultivo das escassas e magras terras de cujos produtos viviam seus pais. Naqueles

tempos, devido às guerras constantes e à atracção que a América exercia sobre os espíritos jovens e aventurosos, havia falta de braços na Espanha. Os mouros, inteligentes e trabalhadores, nunca tinham sido numerosos na região e por essa época a sua quase totalidade fora obrigada a abandoná-la. Martin era uma grande decepção para Don Juan, e embora a sua esposa insistisse que tinha as suas vantagens possuir um filho robusto, activo e disposto a enfrentar qualquer espécie de trabalho, ele não cessava de afligir-se.
Mas um golpe ainda maior lhe estava reservado. Aos vinte e três anos Martin casou, e fê-lo com pessoa de classe inferior. É verdade que a sua noiva era uma cristã-velha e estava convincentemente provado que pelo espaço de gerações não houvera aliança com pessoas de sangue judeu ou mouro, mas o pai era padeiro. Consuelo era filha única e herdaria todas as suas posses, mas isso não alterava o facto de ser o homem um mercador. Passaram-se alguns anos. Consuelo teve filhos. Então um novo golpe feriu Don Juan: o padeiro morreu e o velho suspirou aliviado, pois agora seria possível vender a padaria e o estigma dessa conexão com um ofício manual acabaria por se apagar. Mas nem bem o padeiro fora decentemente enterrado quando Marttin informou os pais de que pretendia mudar-se para a cidade e dirigir o estabelecimento em pessoa. Mal podiam dar crédito aos seus ouvidos. Don Juan esbravejou, Dona Violante chorou. O filho fez-lhes ver que, se tinham melhorado um pouco de vida ultimamente, era graças ao dote de Consuelo; esse dote evaporara-se; ele tinha quatro filhos e não havia razão para que não viessem outros quatro; o dinheiro andava escasso na Espanha e a venda do negócio não podia render mais que o suficiente para sustentá-lo ainda
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alguns anos, ao termo dos quais os aguardava a miséria e a fome. Levantou o ridículo argumento de que cozer pão não era mais vergonhoso do que lavrar um campo estéril ou espremer azeitonas.
Martin instalou a família por cima da padaria. Levantava-se muito antes de amanhecer para levar o pão ao forno e depois ia a cavalo à chácara, onde trabalhava até à noite. Prosperou, pois fazia bom pão, e ao cabo de um ano ou dois pôde pagar a um homem para fazer o trabalho da chácara, mas não deixava passar um dia sem ir ver os pais. Era raro que não lhes levasse alguma coisa e dentro em pouco eles puderam comer carne todos os dias permitidos pela Igreja. Estavam adiantados em anos e Don Juan não podia negar que os presentes do filho eram um conforto para a sua velhice. Se bem que houvesse causado certa surpresa na cidade o facto de ter-se o filho de Juan de Valero rebaixado daquela forma,, e os garotos lhe gritassem na rua "panadero" em tom de mofa, o seu bom génio e inconsciência de ter feito qualquer coisa fora do comum não tardaram a desarmar toda a gente. Era caridoso e nenhum pobre lhe aparecia à porta pedindo esmola sem levar um pão fresco. Era religioso, ia à missa todos os domingos e confessavam regularmente quatro vezes por ano. Ao começar a nossa narrativa era um homem forte e disposto, de trinta e quatro anos, algo corpulento, pois gostava da boa mesa e do bom vinho, com um rosto redondo e franco, uma expressão jovial e feliz.
- É óptima pessoa - diziam dele - , não muito inteligente nem muito instruído, mas bom e honesto.
Era de agradável trato, amigo de gracejar e com o correr do tempo, quando Martin passou a ter vida mais folgada,
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homens de posição respeitável vinham muitas vezes à padaria conversar com ele e o estabelecimento tornou-se mesmo uma espécie de ponto de encontro em que os amigos iam ver-se e dar dois dedos de conversa.
Era uma feliz circunstância que ele houvesse tomado a seu cargo o sustento dos pais, visto que Frei Blasco, durante os seus vinte anos de ausência, jamais lhes enviara um vintém - pois distribuía em esmolas tudo quanto tinha - enquanto Don Manuel também não mandava nada porque nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse dar melhor emprego ao seu dinheiro do que ele mesmo. Desse modo, dependiam inteiramente de Martin na velhice. Ainda se envergonhavam dele e não podiam deixar de lastimar o rumo que dera à sua vida. Era uma fonte contínua de irritação o facto de ele parecer inteiramente satisfeito com o seu estado. Tratavam-lhe a esposa plebeia com a cerimoniosa cortesia que lhes parecia exigir o respeito próprio e ganharam afeição aos netos. Mas o seu coração estava com os dois filhos que haviam trazido honra e glória ao seu antigo nome.


VII.

Não é difícil imaginar a alegria com que Don Juan e Dona Violante aguardavam o dia em que tornariam a vê-los após tão prolongada separação. O frade escrevia com raros intervalos, e como nem Don Juan nem o filho padeiro eram
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muito letrados e de qualquer modo sentiam-se incapazes de escrever com a elegância devida a um culto homem de Igreja, tinham pedido a Domingo Pérez que respondesse às cartas. E Domingo fazia-o com plena satisfação tanto dos Valeros como de si próprio, pois orgulhava-se da elegância do seu estilo. Don Manuel, por outro lado, nunca se comunicara com ele a não ser quando estava cabalando para conseguir a Ordem de Calatrava e necessitou apresentar provas da pureza da sua ascendência. Também dessa vez recorreram aos bons serviços de Domingo, que preparou uma genealogia, devidamente autenticada pelos magistrados locais, em que reportava as origens da família, sem a menor mistura de sangue judeu, a Afonso VIII, rei de Castela,, o qual desposara Eleanora, filha de Henrique II da Inglaterra.
O que motivava a vinda dos dois filhos de Don Juan não era apenas o regresso de Don Manuel após os longos anos de serviço nas guerras e a elevação de Frei Blasco à dignidade episcopal, mas também a comemoração das bodas de ouro do velho casal. Combinaram os dois irmãos encontrarem-se numa localidade situada a umas vinte milhas de Castel Rodríguez e realizar juntos a sua entrada solene na cidade. Don Juan comprazia-se em pensar que a grandiosa recepção preparada aos filhos compensaria de certo modo o longo opróbrio da degradação do pobre Martin. Estava, naturalmente, impossibilitado de receber os dois filhos e as respectivas comitivas na sua semi-arruinada granja. Ficou, pois, combinado que o bispo se hospedaria no convento dominicano, enquamto o despenseiro do duque de Castel Rodríguez, na ausência do seu amo, que estava em Madrid, oferecia aposentos a Don Manuel no palácio ducal.
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Chegou o grande dia. Os nobres da cidade puseram-se a caminho, montando os seus cavalos, enquanto os magistrados e os eclesiásticos cavalgavam mulas. Seguiam, numa carruagem que lhes emprestara uma pessoa de qualidade, Don Juan e Dona Violante acompanhados de Martin e da família deste. Pouco depois os visitantes tão ansiosamente esperados foram vistos a aproximar-se pela sinuosa e poeirenta estrada. O bispo, com o hábito dominicano, sobre o lombo de uma mula, cavalgava ao lado do irmão no seu corcel de guerra. Envergava uma maravilhosa armadura, toda marchetada de ouro. Atrás deles vinham os dois secretários do bispo, religiosos da mesma ordem, os seus criados e os do capitão, vestidos de sumptuosa libré. Após saudar os importantes personagens que os tinham vindo receber e após ouvir alguns eloquentes discursos, o bispo perguntou pelo pai e pela mãe. Estes, que se mantinham modestamente atrás dos outros, adiantaram-se então. Dona Violante ia ajoelhar-se para beijar o anel episcopal quando o bispo, com grande admiração dos espectadores, não a deixou fazer e, tomando-a nos braços, beijou-lhe ambas as faces. Ela pôs-se a chorar e muitas pessoas presentes ficaram tão tocadas com aquilo que as lágrimas lhes corriam pelas faces. Beijou ele também o pai e, enquanto os dois velhos se voltavam para o segundo filho, perguntou por Martin.
- "El panadero" - chamou alguém.
Martin avançou então por entre a multidão, com a mulher e os filhos. Todos haviam vestido as suas melhores roupas e o jovial, rubicundo e corpulento homem, tinha excelente aspecto. O bispo saudou-o afectuosamente e Don Manuel com certa condescendência, enquanto Consuelo e os pequenos ajoelhavam no chão e beijavam o anel do bispo. Este felicitou
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amavelmente o irmão pelo número e pela saudável aparência dos seus rebentos. Nas cartas que lhe escreviam, Dom Juan e Dona Violamte haviam falado do casamento do filho mais moço e participado o nascimento das crianças, mas jamais ousaram informá-lo de que Martin se fizera mercador. Observavam o encontro cheios de apreensão. Sabiam que a verdade, infalivelmente, não tardaria a vir à tona, mas estavam ansiosos por evitar qualquer ocorrência que pudesse perturbar o regozijo da ocasião. Ao cabo de muitas disputas, havia assentado quem iria à direita e quem à esquerda dos dois ilustres filhos da cidade, e embora muitos guardassem ressentimento formou-se o cortejo e a cavalgada realizou uma entrada imponente na cidade. Ao transporem as portas os sinos das igrejas puseram-se a repicar, foguetes estouraram, houve um clangor de trombetas e um rufar de tambores. As ruas estavam apinhadas de gente e foi entre vivas e palmas que eles passaram pelas ruas, a caminho da colegiada, onde se cantaria um "Te Deum".
O serviço divino foi seguido de um banquete e os anfitriões notaram que, embora fosse dia de festa da Igreja, o bispo não comia carne nem tomava vinho. Terminada a refeição ele mostrou o desejo de ficar alguns instantes a sós com as pessoas da sua família. Martin foi buscar a mãe, que se recolhera à casa do padeiro com Consuelo e as crianças. Ao voltar, encontrou o mano Blasco a sós com o pai, mas nem bem havia entrado na sala quando surgiu Don Manuel, de sobrolho franzido, os olhos negros de cólera.
- Mano - disse ele, dirigindo-se a Blasco - , tu sabes que esse Martin, filho de um nobre de antiga linhagem,, é um pasteleiro?
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Don Juan e sua esposa estremeceram, mas o bispo limitou-se a sorrir.
- Pastelleiro não, mano: padeiro.
- Quer dizer então que sabias?
- Há anos que sei. Embora os meus sagrados deveres não me permitissem dedicar a meus pais o cuidado que desejava, observava-os de longe e nunca os esquecia nas minhas orações. O prior da nossa ordem nesta cidade mamtinha-me ao par da sua situação.
- Então como consentiste que ele lançasse tamanho labéu sobre a nossa família?
- Nosso irmão Martin é um homem virtuoso e devoto. É um cidadão respeitado e caridoso para os pobres. Tem zelado pelos nossos pais na sua velhice. Não lhe posso censurar o haver tomado uma decisão que lhe era imposta pelas circunstâncias.
- Eu sou um soldado, mano, e ponho a honra acima da vida. Essa história arruinou-me os planos.
- Duvido muito.
- Como podes saber? - esbravejou Don Manuel. - Tu não conheces os meus planos.
O esboço de um sorriso clareou por um instante as feições austeras do bispo.
- Não deves ter muita experiência do mundo,, mano - respondeu ele - , se ignoras que os nossos assuntos pessoais raramente escapam à notícia dos nossos servidores. Esqueces que passámos dois dias debaixo do mesmo tecto, a caminho daqui. Chegou-me aos ouvidos que não vieste apenas cumprir um dever filial, mas também escolher uma esposa entre as famílias nobres da cidade. Apesar da profissão que nosso irmão resolveu seguir, com o título que Sua Majestade houve por bem
conceder-te e o dinheiro que ganhaste a seu serviço creio que não te será difícil alcançar o teu objectivo.
Martin ouvia tudo isso sem o menor sinal de que sentisse vergonha. O seu rosto bem-humorado tinha uma expressão de divertimento.
- Não esqueças, Manuel - disse ele - , que Domingo Pérez repontou as origens de nossa família a um rei de Castela e a um rei de Inglaterra. Isso não pode deixar de ter o seu peso junto à família a que pretendas fazer a honra de lhe desposar a filha. Domingo disse-me que um dos reis ingleses fazia bolos, de modo que talvez não haja grande ignomínia no facto de um descendente de reis fazer pão, sobretudo quando, por opinião unânime, é o melhor pão da cidade.
- Quem é esse Domingo Pérez? - perguntou o soldado, de carramca fechada.
Não era fácil responder a esta pergunta, porém Martin fez o que pôde.
- Um homem instruído e um poeta.
- Recordo-me dele - disse o bispo. - Estivemos juntos no seminário.
Don Manuel fez um gesto agastado e dirigiu-se ao pai.
- Como pôde permitir que ele nos envergonhasse assim?
- Eu não aprovei. Fiz tudo que estava no meu poder para impedi-lo.
Don Manuel voltou-se então severamente para o irmão mais novo.
- E tu ousaste contrariar o desejo de teu pai? Devia representar para ti uma ordem. Dá-me uma razão, uma só, pela qual, mandando a decência à fava, te rebaixaste fazendo-te padeiro.
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- A fome.
A palavra pareceu desabar no chão como um monte de alvenaria. Don Manuel sufocou uma exclamação de nojo e raiva. Mais uma vez, um leve sorriso tremeu nos lábios do bispo. Os próprios santos conservam certa dose de humanidade, e durante os dois dias que tinham passado jumtos Don Blasco chegara à conclusão de que não simpatizava muito com seu mano militar. Censurava-se tal coisa, mas nem toda a sua caridade cristã conseguia vencer a impressão de que Don Manuel era um indivíduo grosseiro, brutal e despótico.
Por felicidade, essa reunião de família foi interrompida pela entrada de algumas pessoas, as quais vinham avisar que estava na hora das touradas. Os dois irmãos receberam lugares de honra. A municipalidade dera-se a despesas para conseguir bons touros e o espectáculo esteve à altura da ocasião. Depois de terminado, o bispo retirou-se para o convento dominicano com os frades que o acompanhavam e Don Manuel dirigiu-se para os aposentos que lhe tinham sido reservados. O povo da cidade voltou para as suas casas ou para as tabernas, a fim de trocar impressões sobre as emocionantes ocorrências do dia, e Domingo Pérez acabou por encontrar o caminho da casa da irmã.


VIII.

Após a ceia, como de hábito, Domingo subiu para o seu quarto. Pouco depois Maria foi ter com ele. Tinha ouvido, lá em baixo, ler em voz sonora e dramática, e quando bateu
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à porta ele não respondeu. Entrou. Era um quarto pequeno e desguarnecido, que não continha mais do que um leito, um baú para a roupa, uma mesa e uma cadeira. Havia uma prateleira cheia de livros e livros espalhados na mesa, no soalho e sobre a arca. A cama estava desarrumada e Domingo atirara para ali a sua batina. Estava de calções e em mangas de camisa. Inúmeros papéis juncavam a mesa e a um canto do quarto via-se grande pilha de manuscritos. Maria suspirou ao ver aquela desordem a que jamais conseguira pôr termo. Sem tomar conhecimento da presença da irmã, ele continuou a declamar as falas de uma peça teatral.
- Quero falar contigo, Domingo - disse ela.
- Não me interrompas,, mulher. Escuta os versos gloriosos do maior génio dos -nossos tempos.
E continuou a vozear. Maria bateu com o pé.
- Larga esse livro, Domingo. Tenho uma coisa muito importante para te dizer.
- Vai-te daqui. Que coisa pode ser mais importante do que a divina inspiração dessa fénix da época, do incomparável Lope de Vega?
- Não sairei enquanto não me ouvires. Domingo atirou o livro, agastado.
- Então dize o que tens para dizer. Dize depressa e vai-te. Ela contou-lhe a história de Catalina: como a Virgem lhe
aparecera e lhe dissera que o bispo, filho de Dom Juan, tinha o poder de curá-la da sua enfermidade.
- Isso foi um sonho, minha pobre Maria - disse ele quando a irmã terminou.
- Foi o que eu lhe disse. Mas afirma que estava bem acordada. Não posso convencê-la do contrário.
Domingo ficou impressionado.
- Vou descer contigo. Quero ouvir essa história dos seus próprios lábios.
Pela segunda vez, Catalina narrou o incidente. A Domingo bastou um olhar para se convencer de que ela acreditava firmemente em cada palavra que dizia.
- Por que motivo estás tão segura de que não dormias, menina?
- Como podia eu pegar no sono àquela hora do dia? Tinha acabado de sair da igreja. Chorei, e quando cheguei a casa o meu lenço estava molhado de lágrimas: como podia enxugar os olhos enquanto dormia? Ouvi tanger os sinos quando o bispo e Don Manuel entraram na cidade. Ouvi as trombetas, os tambores e os gritos do povo.
- Não faltam ardis a Satanás para enganar os desprevenidos. A própria Madre Teresa de Jesus, a freira que fundou tantos conventos, receou por muito tempo que as suas visões fossem obras do demónio.
- Será possível a um demónio simular a doçura e a bondade de Nossa Senhora quando me falou?
- O diabo é bom actor - sorriu Domingo. - Quando Lope de Rueda se impacientava com os componentes da sua "troupe", dizia que, se o diabo quisesse trabalhar para ele, dar-lhe-ia de bom grado, em paga, todas as almas da companhia. Mas ouve, querida: nós sabemos que certas pessoas devotas receberam a graça de ver com seus próprios olhos Nosso Senhor e a Santíssima Virgem, mas receberam essa graça em recompensa de orações, jejuns, mortificações e de uma vida dedicada ao serviço do Senhor. Que fizeste tu para merecer
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um favor que só é concedido a outros ao cabo de longos anos de imolação de si mesmos?
- Nada - respondeu Catalina. - Mas sou pobre e desgraçada, implorei a Nossa Senhora que me socorresse e ela teve piedade de mim.
Domingo guardou silêncio por alguns momentos. Catalina era resoluta e voluntariosa, e ele tinha medo. A moça não fazia ideia dos perigos que corria.
- A Santa Madre Igreja não olha com indulgência as pessoas que afirmam ter comunicação com o Céu. O país está infestado de gente que pretende ter sido contemplada com privilégios sobrenaturais. Alguns são pobres criaturas iludidas que acreditam no que dizem; muitos são impostores que inventam tais coisas a fim de conquistar notoriedade ou ganhar dinheiro. O Santo Ofício persegue-os com razão, pois eles perturbam os ignorantes e muitas vezes levam-nos à heresia. A uns o Santo Ofício põe na prisão, a outros açoita, a uns manda para as galés, a outros para a fogueira, imploro-te, pelo amor que nos tens, que não divulgues nem uma só palavra do que nos contaste.
- Mas tio, querido tio, é toda a minha felicidade que está em jogo! Todos sabem que não há no reino homem mais santo do que o bispo. É coisa sabida que até os pedaços do seu hábito têm uma virtude milagrosa. Como poderei ficar calada, quando a Santíssima Mãe de Deus me disse pessoalmente que ele me pode curar deste mal que me roubou o amor do meu Diego?
- Não é só a ti que isso interessa. Se o Santo Ofício resolver fazer um inquérito, é bem possível que o meu processo seja reaberto, pois o Santo Ofício tem a memória comprida, e se nos puserem nos cárceres da Inquisição esta casa será vendida
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para pagar as despesas do nosso sustento e tua mãe ver-se-á lançada às ruas, onde terá de mendigar o seu pão. Promete-me ao menos que não dirás nada até que tenhamos tempo de reflectir.
Domingo tinha um ar de tamanha consternação, de tão profunda ansiedade, que Catalina cedeu.
- Sim, isso eu prometo.
- És uma excelente menina. Agora deixa que tua mãe te ponha na cama, pois todos nós estamos cansados de um dia tão cheio de acontecimentos.
Beijou-a e deixou as duas mulheres, a sós, mas chamou a irmã do alto da escada. Ela veio atendê-lo.
- Dá-lhe um purgante - murmurou Domingo. - Com os intestinos a funcionar bem ela mostrar-se-á mais razoável, e amanhã poderemos convencê-la de que tudo isso não passou de um sonho muito infeliz.


IX.

Mas o purgante não produziu efeito - pelo menos o efeito desejado. Catalina continuou a asseverar que tinha visto a Virgem Santíssima com os seus próprios olhos e falado com ela. Descrevia-lhe as vestes com tamanha precisão que Maria Pérez encheu-se de assombro. Ora, sucedeu que o dia seguinte era sexta-feira e Maria foi confessar-se. Havia muitos anos que tinha o mesmo confessor, o padre Vergara, e confiava tanto
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na benevolência como na prudência deste. Portanto, depois de receber a absolvição ela contou-lhe a estranha história de Catalina e repetiu-lhe grande parte do que Domingo havia dito. - Seu irmão portou-se com uma discrição e um bom-senso admiráveis, sobretudo porque tais qualidades não seriam de esperar nele. Este assunto deve ser tratado com cautela. Não devemos fazer nada às pressas. É preciso evitar o escândalo e a senhora deve ordenar à sua filha que não fale nisso a ninguém. Vou reflectir e, se necessário, consultarei o meu superior.
O confessor de Maria também o era de Catalina e conhecia a ambas tão bem como só um confessor pode conhecer as suas penitentes. Sabia-as simples, honestas, sem malícia e tementes a Deus. O próprio Domingo não lhes pudera corromper a inocência ou empanar-lhes a candura. Catalina era uma menina sensata, dona de uma cabeça sólida, e se não suportava com resignação a sua invalidez não se podia negar que a suportasse com coragem. Era ingénua de mais para ter inventado aquela história com segundas intenções. Além disso, estava convencido de que a natureza excessivamente material da jovem não era capaz de imaginar um acontecimento espiritual. O padre Vergara era dominicano e fora no seu convento que o bispo se hospedara com a sua comitiva. Homem simples e de medíocre cultura, a história da aventura de Catalina contada pela mãe desta perturbou-o de tal forma que se sentiu na obrigação de referi-la ao seu prior. Este reflectiu e chegou à conclusão de que era preciso informar o bispo; mandou, pois, um noviço perguntar-lhe se podia ouvi-los, a ele e ao padre Vergara, a respeito de um assunto que talvez fosse de importância.
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Daí a pouco o noviço voltou dizendo que o bispo teria prazer em recebê-los.
Tinham-lhe dado a cela mais espaçosa do convento. Uma dupla arcádia com um pilar de suporte separava-a em duas partes, uma das quais servia de alcova e a outra de oratório. Ao entrarem o prior e o padre Vergara, encontraram o bispo a ditar cartas a um dos seus secretários. O prior explicou a que tinham vindo e deixou que o padre Vergara repetisse ponto por ponto o que lhe dissera a sua penitente. O frade começou por expor ao bispo o quanto as duas mulheres eram honestas e devotas, a existência irrepreensível que levavam, depois descreveu o fatal acidente em consequência do qual a infeliz Catalina havia perdido o uso da perna e as atenções do seu namorado, e terminou repetindo a história da aparição da Santíssima Virgem, a qual dissera à menina que o bispo a curaria da sua enfermidade. Pensando bem, resolveu acrescentar que Domingo Pérez, o tio da menina lhe arrancara a promessa de conservar sigilo sobre o episódio enquanto o assunto não fosse devidamente examinado. Quando ele terminou, o rosto do bispo assumira uma expressão de tal severidade que o frade, com a voz estrangulada, suava por todos os poros. Fez-se um silêncio.
- Eu conheço esse Domingo - disse o bispo afinal. - É um homem de má vida, com quem nenhuma pessoa que preze a salvação da sua alma deveria manter relações. Mas não é tolo. Ao exigir da sobrinha a promessa de segredo, agiu com prudência. É também o confessor da menina, padre? - O outro fez uma reverência. - Fará bem em recusar-lhe a absolvição enquanto ela não prometer que não falará nisso a ninguém.
O padre frade arregalou os olhos para o bispo, cheio de
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confusão. Não era ele, pelo consenso geral, um santo? O padre Vergara julgava que ele receberia de braços abertos essa oportunidade de exercer os seus poderes milagrosos, com o que não só glorificaria o Senhor mas conduziria muitos pecadores ao arrependimento. O olhar do bispo era frio. Dir-se-ia que só por um esforço de vontade ele conseguia dominar a sua cólera.
- E agora, se me dão licença, vou prosseguir o meu trabalho - disse ele; e, voltando-se para o secretário: - Leia de novo a última frase que ditei.
Os dois frades retiraram-se timidamente, sem dizer mais uma só palavra.
- Por que estará ele tão vexado? - perguntou o padre Vergara.
- Não devíamos ter-lhe falado nisso. A culpa é minha. Ofendemos a sua humildade. Ele não sabe que grande santo é e não se julga digno de fazer um milagre.
A explicação parecia muito razoável e, como redundava em maior crédito para o bispo, o padre Vergara apressou-se a contar tudo aos seus confrades. Dentro em pouco o convento zumbia de excitação. Alguns louvavam a modéstia do bispo, outros lamentavam que ele não tivesse aproveitado essa ocasião de fazer alguma coisa que tanto exaltaria o seu renome e a boa fama da ordem.
Entrementes, a história havia alcançado outros ouvidos. A igreja em que Catalina estivera a rezar e de onde, a dar-lhe crédito, a Santíssima Virgem tinha saído pertencia, como dissemos, ao convento carmelita da Encarnação. Era o convento ricamente dotado e havia muitos anos que a prioresa tinha o hábito de dar trabalho a Maria Pérez, em parte por caridade
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e em parte por ser ela habilíssima no difícil e trabalhoso ofício que exercia. Maria viera, desse modo,, a fazer amizade com muitas dentre as religiosas. Como se tratasse de um convento de ordem mitigada, gozavam elas de bastante liberdade e não era raro que uma das freiras lhe viesse à casa almoçar e conversar. Dois ou três dias após a confissão de Maria, necessitou esta de ir ao convento e, após cumprir a sua obrigação, pôs-se a tagarelar com a freira que era sua amiga mais íntima. Exigindo-lhe juramento de segredo, contou-lhe o estranho facto que ocorrera à sua filha. As religiosas eram muito palradeiras e semelhante história não podia deixar de ser um grande acontecimento na rotina piedosa mas monótona das suas existências, de modo que ao cabo de vinte e quatro horas todas as moradoras do convento estavam informadas e o caso acabou por chegar aos ouvidos da prioresa. Como esta senhora desempenha um papel de certa importância na nossa narrativa, torna-se necessário contar aqui a sua história, ainda que com risco de aborrecer o leitor.


X.

Beatriz Henríquez y Bragamza, na vida religiosa Beatriz de San Domingo, era filha única do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Tinha grande fortuna e era poderosíssimo. Logrou conservar a confiança do sombrio e desconfiado Filipe II e exerceu com distinção importantes cargos na Espanha e na Itália. Possuía vastas
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propriedades em ambos os países e, embora os seus deveres o forçassem a morar ora aqui ora ali, não havia para ele nada melhor do que viver com a esposa e os filhos - pois tinha três-, dois homens e uma mulher - na cidade em que nascera, com os seus ares saudáveis e as suas grandiosas vistas. Era ali que se originara a sua raça e fora graças à repulsa, por um dos seus antepassados, das tropas mouras que assediavam a cidade, que a família começara por adquirir eminência. Não existia ali ninguém maior do que o duque de Castel Rodríguez, o qual vivia numa propriedade quase régia. Como durante toda a história da família os seus membros houvessem contraído grandes alianças, ela achava-se relacionada com os mais magníficos nobres de Espanha. Ao fazer treze anos sua filha, Beatriz, ele procurou um esposo que lhe conviesse, e após passar em revista vários candidatos possíveis decidiu-se pelo filho único do duque de Anteguera, O qual descendia por vias espúrias de Fernando de Aragão. O duque de Castel Rodríguez prontificava-se a dar à filha um dote magnífico, e assim o assunto foi resolvido sem dificuldade. Realizaram-se os esponsais dos dois jovens, mas como o rapaz não tinha mais de quinze anos combinou-se que só se faria o casamento quando ele alcançasse uma idade apropriada. Beatriz teve permissão de ver o futuro marido em presença dos pais deste e dos seus, dos tios e tias e outros parentes mais distantes. Era um rapazinho atarracado, de estatura não maior que a dela, áspera gaforinha preta, nariz arrebitado e boca mal-humorada. Concebeu uma imediata antipatia por ele, mas sabia que era inútil protestar e contentou-se em lhe fazer caretas. Ele respondeu mostrando-lhe a língua.
Depois dos esponsais o duque mandou-a terminar a sua
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educação no convento carmelita da Encarnação, em Ávila, onde sua irmã era prioresa. Ela achou divertida a vida do convento. Havia ali outras meninas, filhas de famílias nobres, em situação idêntica à sua, e várias senhoras que por uma razão ou por outra viviam como pensionistas no convento sem estar sujeitas à disciplina deste. A regra suavizada das carmelitas era bastante suportável e, embora algumas das freiras se dedicassem à prece e à contemplação, muitas delas, sem negligenciar os seus deveres, saíam e iam visitar as pessoas amigas, ausentando-se por vezes durante semanas inteiras. A sala de visitas estava sempre cheia de pessoas de ambos os sexos, de modo que se fazia ali uma alegre vida social. Armavam-se casamentos, discutia-se o andamento das guerras e permutavam-se os mexericos da cidade. Era uma existência pacífica e inofensiva, com diversões modestas, e para as freiras não representava um caminho muito árduo para a eterna bem-aventurança.
Na idade de dezasseis anos foi Beatriz tirada do convento e desceu com a mãe para Castel Rodríguez, acompanhada de um batalhão de criados. A duquesa não estava bem de saúde e os médicos tinham-lhe recomendado que fosse viver num clima menos rigoroso que o de Madrid. Preso pelos assuntos de estado, o duque ficou a contragosto na capital. Aproximava-se a época em que deveria realizar-se o casamento de Beatriz e seus pais achavam conveniente que ela aprendesse alguma coisa sobre o modo de dirigir um grande solar. A duquesa passou, pois, alguns meses ensinando à filha as normas sociais que ela não podia ter aprendido no convento das carmelitas. Beatriz fizera-se uma jovem alta, de grande beleza, com uma pele clara e sem marcas de bexigas, feições de uma regularidade clássica,
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talhe esguio e flexível. Os espanhóis daquela época apreciavam formas mais opulentas e algumas das senhoras que vinham prestar os seus respeitos à duquesa lamentavam-lhe a magreza, mas a desvanecida mãe respondia que o casamento não tardaria a remediar esse defeito.
Nesse tempo Beatriz era alegre,, apaixonada pela dança e estuante de vitalidade animal. Era travessa e voluntariosa. Já então possuía um génio autoritário, pois haviam-na estragado com mimos, e sempre teve o hábito de impor a sua vontade aos que a cercavam. Desde pequena compreendera que estava destinada pelo nascimento às altas posições de mando e que o resto da humanidade devia submeter-se aos seus caprichos. O seu confessor, bastante preocupado com esse desejo de domínio, falou nisso à duquesa:, mas esta não se mostrou muito impressionada com a advertência.
- Minha filha nasceu para mandar, padre. Não se pode esperar dela o servilismo de uma lavadeira. Se o seu temperamento é excessivamente orgulhoso, o marido, caso tenha carácter, o modificará sem dúvida .alguma, e caso não o tenha o sentimento do que lhe é devido, que não falta a Beatriz, será benéfico para ele também.
No convento, Beatriz tomara-se de entusiasmo pelos romances de cavalaria a que algumas das senhoras pensionistas eram muito afeiçoadas. Embora a freira encarregada de zelar pelas alunas não lhe permitisse lê-los, de quando em quando ela conseguia lançar um olhar furtivo a essas histórias intermináveis. Quando veio para Castel Rodríguez encontrou vários no palácio e, como a mãe estivesse muitas vezes indisposta e a "duena" fosse indulgente, devorou-os com avidez. A sua imaginação juvenil inflamou-se e começou a pensar com fastio no
inevitável casamento com o rapaz que ela ainda via como um garoto achaparrado, mal enjambrado e birrento. Tinha consciência da sua beleza e na missa, na companhia da mãe, não perdia nenhum dos olhares de admiração que lhe deitavam os jovens casquilhos da cidade. Reuniam-se na escadaria da igreja para vê-la sair e, embora Beatriz andasse com os olhos modestamente baixos, ao lado da duquesa, seguida pelos dois lacaios de libré que carregavam as almofadas de veludo sobre as quais se haviam ajoelhado durante o serviço divino, percebia a sensação que causava e o seu ouvido apanhava os elogios que os rapazes, segundo o costume espanhol, diziam à sua passagem. Conquanto nunca olhasse para eles, conhecia-os a todos de vista e não tardou a descobrir-lhes os nomes, a que famílias pertenciam e, na verdade,, tudo que era possível saber a respeito deles. Uma ou duas ocasiões os mais ousados cantaram-lhe serenatas, mas a duquesa mandava imediatamente os criados enxotá-los. Certa feita encontrou uma carta em cima do seu travesseiro. Adivinhou que uma das criadas fora paga para a pôr ali. Abriu o sobrescrito e leu-a duas vezes, depois rasgou-a em pedacinhos e queimou-os à chama das velas. Foi a primeira e a única carta de amor que recebeu na sua vida. Não trazia assinatura e ela não podia adivinhar de quem provinha.
Devido ao mau estado da sua saúde a duquesa achava suficiente assistir à missa nos domingos e dias de festa, mas Beatriz ia todas as manhãs com a "duena". A missa realizava-se muito cedo e eram poucas as pessoas que se encontravam na igreja, mas havia um seminarista que nunca faltava. Era alto e magro, de feições resolutas, olhos escuros e apaixonados.
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Por vezes, quando andava com a "duena" no desempenho de alguma piedosa missão, ela passava pelo moço na rua.
- Quem é esse? - perguntou Beatriz um dia em que o viu caminhar lentamente na sua direcção, a ler um livro.
- Esse? Ora, ninguém. É o filho mais velho de Juan Suárez de Valero. "Hidalguía de gutierra".
Esta expressão, que pode ser traduzida por "nobreza de sarjeta", era o termo desdenhoso aplicado aos fidalgos de nascimento que não tinham meios para viver de acordo com a sua posição. A "duena", uma viúva vagamente aparentada ao duque, era orgulhosa, devota;, criticadora e sem vintém. Residira toda a vida em Castel Rodríguez, até que, ao deixar Beatriz o convento, o duque a tinha escolhido para dama de companhia da filha. Conhecia todos os habitantes da cidade como as palmas das suas mãos, e apesar de muito piedosa não resistia à tendência de falar mal do próximo.
- Que faz ele aqui nesta época do ano? - indagou Beatriz. A "duena" sacudiu os ombros magros. - Adoeceu no seminário por excesso de trabalho e os médicos desesperaram de salvá-lo. Mandaram-no para casa, a ver se recobrava a saúde, e por mercê divina foi o que sucedeu. Dizem-no muito talentoso. Segundo creio, seus pais esperam que ele obtenha um benefício graças à influência do duque seu pai.
Beatriz nada mais disse.
Mas, por alguma razão que os médicos não podiam descobrir, começou a perder o apetite e a animação. Também perdeu a cor fresca das faces e tornou-se pálida. Andava apática e muitas vezes iam encontrá-la banhada em lágrimas. Ela, cuja alegria, cujo carácter encantadoramente caprichoso e irresponsável
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tinham dado vida àquele palácio sombrio e magnificente, andava agora entregue à tristeza e ao desalento. A duquesa não sabia o que fazer e, temendo que a menina fosse de mal a pior, escreveu ao marido pedindo que viesse vê-las, a fim de resolverem sobre o melhor caminho a seguir. Ele veio e ficou estupefacto com a mudança que se operara na filha. Beatriz estava mais (magra do que nunca e tinha manchas negras debaixo dos olhos. Chegaram à conclusão de que o melhor alvitre era casá-la sem demora, mas ao fazerem essa proposta a Beatriz ela teve um acesso de nervos, pondo-se aos gritos, o que os deixou ainda mais alarmados. Desistiram de voltar por ora ao assunto. Deram-lhe mesinhas, alimentaram-na a leite de mula e sangue de boi, mas, se bem que Beatriz engolisse obedientemente tudo quanto lhe davam,, nada produziu efeito. Continuava pálida e desalentada. Fizeram o possível para distraí-la. Pagaram a músicos que tocavam para ela; levaram-na a assistir a uma peça religiosa na colegiada, levaram-na às touradas - apesar de tudo, ela continuava a definhar. A "duena" tomara grande afeição à sua pupila e, como Beatriz já não se interessasse pelos romances que tinham constituído o seu maior entretenimento, ela não encontrava outro modo de divertir a doente senão contando-lhe os mexericos da cidade. Beatriz ouvia polidamente, mas sem interesse. Certa ocasião ela mencionou de passagem que o filho mais velho de Juan Suárez de Valero tinha ingressado na ordem dos dominicanos. Continuou a tagarelar sobre uma pessoa e outra, quando de súbito notou que Beatriz perdera os sentidos. Gritou por socorro e Beatriz foi posta na cama.
Um ou dois dias depois, estando já melhor, pediu permissão para ir confessar-se. Havia várias semanas que recusava
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fazê-lo, dizendo não se sentir muito bem, e o confessor da duquesa, que também o era de Beatriz, concordou em que era preferível não insistir. Dessa vez tanto o pai como a mãe tentaram dissuadi-la, mas a jovem instou e chorou tão amargamente que afinal cederam. Mandaram sair a grande carruagem, usada apenas nas ocasiões solenes, e ela dirigiu-se para a igreja dominicana acompanhada pela "duena". Ao voltar parecia-se mais com a antiga Beatriz. Tinha uma leve cor nas faces pálidas e nos seus bonitos olhos brilhava uma nova luz. Ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe permissão para fazer-se freira. Foi para ele um grande choque, não só porque não queria perder a filha única mas também porque não lhe agradava desistir da importante aliança que havia projectado. Era, no entanto, um homem bondoso e devoto, e respondeu sem aspereza que decisões como aquela não deviam ser tomadas levianamente e, de qualquer modo, o assunto estava fora de cogitação enquanto o estado da sua saúde fosse tão precário. Ela disse-lhe que tinha conversado a respeito com o seu confessor e este dera plena aprovação à ideia.
- Sem dúvida, o padre Garcia é muito digno e muito piedoso - disse o duque,, franzindo de leve o sobrolho - , mas a sua profissão impede-o, talvez, de compreender quanto são grandes as responsabilidades ligadas à nobreza e às altas posições. Falarei amanhã com ele.
Assim, no dia seguinte o frade foi chamado ao palácio ducal e levado à presença do duque e da duquesa. Sabiam estes, naturalmente, que ele não revelaria nada do que Beatriz lhe dissera no confessionário, e não tentaram averiguar se ela lhe dera a conhecer algum motivo capaz de justificar uma resolução que tanto os contrariava, Disseram-lhe, contudo, que
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embora ela observasse os preceitos da Igreja, era de natural alegre, amiga de toda a sorte de diversões, e nunca mostrara qualquer inclinação para a vida religiosa. Falaram-lhe do grande casamento que tinham arranjado para ela e dos transtornos que adviriam da sua ruptura, assim como dos ressentimentos que isso iria causar; e, finalmente, com todo o respeito devido ao seu hábito, insinuaram que não fora prudente da sua parte aprovar um desejo evidentemente nascido da misteriosa doença de Beatriz. Esta era jovem e tinha uma constituição saudável. Não havia razão para supor que continuasse com as mesmas ideias quando recobrasse a saúde. O dominicano mostrou uma singular obstinação. Achava o desejo de Beatriz muito forte para que se lhe pudessem opor e a vocação da jovem parecia-lhe autêntica. Foi ao ponto de dizer a esses grandes personagens que não tinham direito a impedir sua filha de tomar uma resolução que lhe traria a paz neste mundo e a bem-aventurança no outro. Foi essa a primeira de uma série de discussões. Beatriz permaneceu firme na sua decisão e o confessor apoiou-lhe o desejo com todos os argumentos persuasivos de que pôde lançar mão. Por fim o duque prometeu dar a sua anuência se, ao cabo de três meses, ela ainda desejasse entrar para o convento.
A partir de então Beatriz começou a melhorar. Volveram-se os três meses e ela entrou como noviça na comunidade das carmelitas de Ávila. Toda. de veludo e cetim, ataviada com as suas jóias, foi acompanhada ao convento pela família e numerosos cavalheiros,, dos mais nobres da cidade. À porta disse adeus a todos, alegremente, e foi recebida pela porteira. Mas o duque também fizera os seus planos para enfrentar a situação. Em sua própria honra e para maior glória do
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Senhor, resolveu fundar em Castel Rodríguez um convento para onde sua filha pudesse recolher-se logo que terminasse o noviciado e do qual no devido tempo se tornasse superiora. Possuía imóveis na cidade e escolheu junto aos muros um local apropriado para tal fim. Construiu ali uma linda igreja,, um claustro, pavilhões adequados à vida de sociedade, e mandou plantar um jardim. Contratou o melhor arquitecto que se podia encontrar, os melhores escultores, os melhores pintores, e quando tudo ficou pronto Beatriz, conhecida agora como Dona Beatriz de San Domingo, veio instalar-se no palácio com várias freiras de Ávila, escolhidas pela sua virtude, inteligência e importância social. O duque havia determinado que nenhuma freira fosse aceite a menos que pertencesse a família nobre. Escolheu-se uma superiora, ficando entendido que esta se retiraria logo que Beatriz de San Domingo alcançasse a idade necessária para substituí-la. A instâncias do duque, a "duena" entrara num convento de Castel Rodríguez ao mesmo tempo que Beatriz ia para Ávila e estava em condições de reunir-se à sua antiga pupila. O padre Garcia rezou missa, o Santíssimo Sacramento foi entronizado e as freiras instalaram-se na nova instituição.
Na época de que trata a nossa narrativa, havia já alguns anos que Beatriz de San Domingo era prioresa do convento. Conquistara o respeito dos cidadãos de Castel Rodríguez e a admiração, senão o afecto, das suas freiras. Jamais esquecia a sua alta posição, mas também tinha sempre em mente a origem nobre de suas filhas espirituais. No refeitório sentavam-se na devida ordem de precedência, mas quando surgiam disputas a esse respeito, como sucedia algumas vezes, Dona Beatriz procedia com firmeza. Impunha uma disciplina rigorosa e, por
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mais bem nascida que fosse uma freira, não hesitava em mandá-la açoitar quando as suas ordens eram desobedecidas. O convento estava submetido à regra mitigada do Papa Eugénio IV e, contanto que as freiras desempenhassem os seus deveres religiosos, ela não via razão para destituí-las dos privilégios que lhes foram concedidos. Tinham permissão de visitar as pessoas amigas na cidade e, em havendo motivo justificado, até podiam passar longas temporadas com os parentes em outras localidades. Vinham muitas visitas ao convento, tanto leigos como clérigos; várias senhoras, como em Ávila, viviam ali por gosto; havia, desse modo, abundante e agradável intercâmbio social. O silêncio era obrigatório das completas às primas. Irmãs leigas faziam o trabalho do convento, a fim de dar mais tempo às freiras para as devoções e ocupações mais nobres. Mas, apesar de toda essa liberdade e dessas tentações mundanas, jamais um sopro de escândalo empanara o bom nome das virtuosas mulheres. Tal fama desfrutava a comunidade que a superiora não podia atender a todas as candidatas, de forma que tinha ensejo de mostrar-se muito exigente no exame destas.
Levava uma vida atarefada. Além dos seus deveres religiosos, tinha de fiscalizar a economia do convento, vigiar o comportamento das freiras e zelar pela saúde destas, tanto física como espiritual. A instituição fora ricamente dotada de terras, bem como de casas na cidade, e a prioresa tinha de tratar com os feitores que cobravam os aluguéis e com os camponeses que cultivavam as terras. Visitava-os amiúde para ver se tudo corria bem e se as plantações se achavam em bom estado. Como a regra lhe permitia ter propriedades privadas, o duque passara-lhe em vida algumas casas e um belo solar, e por morte
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dele Beatriz herdara muito mais ainda. Administrava tudo tão bem que podia todos os anos distribuir uma soma considerável em esmolas. O restante, gastava-o em aformosear a igreja, o refeitório e a sala de visitas e em construir oratórios no jardim, aos quais as freiras podiam recolher-se para se entregar às suas meditações. A igreja tinha magnífico aspecto. Os vasos sagrados eram de ouro puro e a custódia, cravejada de pedras preciosas. Os retábulos que decoravam os diversos altares tinham ricas molduras de madeira dourada e primorosamente lavrada, e as imagens do Salvador e da Virgem Santíssima vestiam grandes mantos de veludo ricamente bordados de ouro (por Maria Pérez) e as suas coroas chamejavam de pedrarias, preciosas e semipreciosas.
Para celebrar o vigésimo aniversário da sua consagração, Dona Beatriz construíra uma capela, dedicando-a a São Domingos, por quem tinha devoção especial, e ao ouvir dizer a uma das irmãs, natural de Toledo, que existia lá um pintor grego cujos quadros exaltavam extraordinariamente a devoção do fiel, escreveu a seu irmão o actual duque, encomendando um retábulo. Como era uma mulher prática, deu as dimensões exactas. Mas o irmão respondeu que el-rei encomendara a esse mesmo grego um painel de São Maurício e da Legião Tebana para a sua nova igreja do Escurial, mas ao receber a pintura ficara tão descontente com ela que não a deixara instalar. Em tais condições, o duque achava que seria indiscrição da parte dela dar trabalho a esse pintor. Mandava-lhe, por isso, de presente um quadro de Lodovico Cardacci, artista famoso na Itália, quadro que, por coincidência, tinha exactamente as dimensões pedidas.
Ao construir o convento, o falecido duque, seu pai,
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destinara para ela um apartamento que ocuparia quando fosse superiora e que não era menos elegante do que adequado ao seu cargo e posição. Havia num dos andares uma cela a que ninguém era admitido, salvo a irmã encarregada de proceder à sua limpeza e mantê-la em ordem!, e dali uma pequena escada conduzia a um oratório situado no andar de cima. Era nessa cela que ela fazia as suas devoções pessoais, atendia os assuntos do convento e recebia visitas. Era um aposento severo, mas majestoso. Acima do altarzinho diante do qual fazia as suas orações achava-se um grande crucifixo com a figura de Cristo esculpido em madeira, quase em tamanho natural e pintada com muito realismo, enquanto que a sua mesa de trabalho era encimada por um quadro de certo pintor catalão, o qual representava a Virgem cercada de glória. Nessa época, estava Dona Beatriz entre os quarenta e os cinquenta, mulher alta e magra, de olhos grandes e sombrios, quase sem rugas no rosto. A idade afinara-lhe as feições e adelgaçara-lhe os lábios, de modo que tinha a beleza calma e severa dessas esposas de cavaleiros que se vêem nos túmulos góticos. Mantinha-se sempre muito erecta. Havia no seu porte algo de imperioso que dava a entender que ela não considerava a ninguém seu superior e a muito poucos como seus iguais. Tinha uma veia de humorismo austero e mesmo sarcástico, e embora sorrisse muitas vezes, era com uma espécie de grave indulgência. Quando ria, o que era raro, dava a impressão de sofrer.
Tal era, pois, a mulher a cujos ouvidos chegou o rumor de que a Santíssima Virgem tinha aparecido a Catalina Pérez na escadaria da igreja das carmelitas.

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XI.

Dona Beatriz era não somente uma óptima organizadora, como boa cabeça para os negócios, mas também uma mulher de grande inteligência e sensatez. Sempre desfavorecera as visões, êxtases e graças especiais entre as suas freiras. Não lhes permitia dar-se a uma austeridade excessiva nem a mortificações além das prescritas pela Regra. Nada lhe passava despercebido, e quando uma delas mostrava sinais de uma religiosidade que a superiora achasse exagerada,, administrava-lhe logo um purgante, proibiam-na de jejuar e, se isso não bastasse, era mandada passar algumas semanas agradáveis em casa de amigos ou parentes. O rigor de Dona Beatriz nesse ponto tinha raiz na lembrança dos aborrecimentos e do escândalo provocados no convento de Ávila por uma freira que afirmava ter visto Jesus Cristo, a Santíssima Virgem e vários santos e ter recebido deles graças especiais. A superiora não rejeitava a possibilidade de tais ocorrências,, visto ser certo que alguns santos haviam recebido favores análogos, mas não podia crer que a freira de Ávilai, Teresa de Gepeda, com quem falara muitas vezes quando aluna do convento, fosse outra coisa senão a vítima histérica e iludida de uma desenfreada fantasia.
Era altamente improvável que houvesse qualquer coisa de verdadeiro na estranha história de Catalína. Como as freiras, porém, estivessem tão alvoroçadas com aquilo que não falavam de outra coisa, Dona Beatriz achou de bom aviso mandar chamar a jovem e ouvir o caso dos seus próprios lábios. Chamou uma das freiras e disse-lhe que fosse buscar a rapariga.
A freira voltou daí a pouco, informando-a de que Catalina estava disposta a obedecer à ordem da Reverenda Madre, mas que o seu confessor a proibira de repetir a história a quem quer que fosse. Dona Beatriz, pouco habituada a que a contrariassem, franziu o sobrolho, e quando ela o fazia todas as habitantes do convento se punham a tremer.
- A mãe da moça está aqui, Reverenda Madre - disse a freira, sustendo a respiração.
- De que me pode servir a mãe?
- Ela ouviu a história dos lábios da moça logo depois de Nossa Senhora lhe ter aparecido. O padre não pensou em proibi-la também de falar no caso.
Um sorriso austero encrespou os lábios pálidos da prioresa.
- Um homem digno, mas pouco previdente. Você fez bem, minha filha. Vou receber a mulher.
Maria Pérez foi introduzida no oratório. Tinha visto muitas vezes a superiora, mas nunca lhe falara e estava nervosa. Encontrou Dona Beatriz sentada numa cadeira de encosto alto, com assento e costas de couro, cujo topo era decorado com folhas de acanto em madeira dourada. Maria Pérez não cria que uma rainha pudesse parecer mais distante, solene e orgulhosa. Ajoelhou-se e beijou a mão branca e esguia que lhe ofereciam. Depois, como lhe ordenassem que dissesse o que tinha vindo dizer, repetiu palavra por palavra o que lhe contara Catalina. Quando ela terminou, a prioresa inclinou de leve a nobre cabeça.
- Pode ir.
Ficou algum tempo a reflectir, depois sentou-se à mesa e escreveu uma carta rogando ao Bispo de Segóvia que lhe
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fizesse a honra de vir vê-la, pois desejaria falar-lhe sobre um assunto que parecia de importância. Enviou a carta e dentro de uma hora recebeu a resposta. Em tom não menos cerimonioso, dizia o bispo que obedeceria com prazer à ordem da Reverenda Madre, visitando o convento no dia seguinte.
Houve uma comoção entre as freiras quando souberam que uma pessoa tão eminente e santa era esperada ali e imediatamente concluíram, com acerto, que a visita estava relacionada à misteriosa aparição da Virgem Santíssima nos degraus da bela igreja do convento. Veio ele à tarde, depois da sesta que as freiras costumavam fazer no Verão, acompanhado pelos dois frades seus secretários, e foi recebido pela subprioresa na sala de visitas. Com grande pesar seu,, as freiras tinham recebido ordem de permanecer nas suas celas. Tendo beijado o anel do bispo, a subprioresa disse-lhe que ia conduzi-lo à presença da senhora superiora. Os dois frades dispuseram-se a acompanhá-lo.
- A Reverenda Madre deseja falar em particular com Vossa Senhoria - disse ela humildemente.
O bispo hesitou um instante, depois inclinou ao de leve a cabeça, consentindo. Os frades voltaram aos seus lugares e o bispo seguiu a freira pelos corredores btrancos e frescos e subiu o lance de escada que levava ao oratório. Ela abriu a porta e arredou-se para deixá-lo entrar. Dona Beatriz levantou-se para vir ao encontro do bispo e, ajoelhando-se, beijou o anel episcopal. Depois indicou-lhe uma cadeira e sentou-se.
- Esperava que Vossa Senhoria se dignasse visitar o nosso convento, mas como não viesse tomei a liberdade de convidá-lo.
- Meu mestre de teologia em Salamanca aconselhava-me
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que tratasse o menos possível com mulheres, que fosse cortês com elas mas as mantivesse à distância.
Ela não deu a resposta ácida que tinha na ponta da língua,, mas ao invés disso considerou-o com atenção. Ele baixou os olhos e ficou à espera. A superiora não tinha pressa de falar. Fazia quase trinta anos que não o via e essas eram as primeiras palavras que trocavam. Ele vestia um hábito velho e remendado. Tinha a cabeça rapada à navalha, com excepção do anel de cobalto preto,, semeado de raros fios brancos, que simbolizavam a Coroa de Espinhos. As têmporas eram reentrantes, as faces cavadas; o rosto, coberto de rugas profundas, exibia sinais de sofrimento; só restavam os olhos escuros e apaixonados, em que brilhava uma luz estranha, para lembrar-lhe o jovem seminarista a quem tinha conhecido muito tempo atrás - conhecido e amado tão loucamente.
Aquilo começara como uma travessura. Beatriz tinha-o notado a primeira vez que ele servira a missa, como fazia algumas ocasiões, na igreja que ela frequentava com a sua "duena". Já então ele era magro, de cabelos negros e bastos, pois usava apenas a tonsura das ordens menores, tinha feições bem definidas e uma graça singular no porte. Parecia-se com um desses santos que recebiam a vocação em meninos,, tornando-se objectos de veneração para todos e morrendo moços e aureolados de beleza. Quando não estava servindo a missa ia ajoelhar-se na capelinha, entre as poucas pessoas que ali se encontravam àquela hora. Atento às suas devoções, nunca desviava os olhos do altar. Beatriz, naquela época, era uma jovem estouvada e folgazã. Conhecia o poder devastador dos Seus olhos maravilhosos. Pareceu-lhe que seria uma óptima brincadeira fazer com que o jovem seminarista lhe prestasse
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atenção. Fixou nele, pois, o olhar, desejando com todas as suas forças que ele olhasse para o seu lado. Continuou a fazê-lo durante vários dias, em vão, mas certa manhã teve a intuição de que ele estava perturbado. Não saberia dizer o que lhe dava essa impressão, mas tinha a certeza. Esperou, sustendo o fôlego. Ele ergueu os olhos de repente, como se ouvisse um ruído inesperado, e, encontrando o olhar dela, desviou vivamente o rosto. Desde então Beatriz absteve-se de relancear sequer os olhos para ele, mas um ou dois dias depois, embora mantivesse a cabeça baixa como se estivesse a rezar, teve consciência de que ele a fitava. Ficou perfeitamente imóvel, mas semtia-lhe o olhar perplexo, um olhar que ele nunca havia dirigido a ninguém até então. Experimentou um estremecimento de triunfo e, alçando a cabeça, encarou-o de propósito. Como da outra vez, ele desviou os olhos o mais depressa que pôde e Beatriz viu um rubor de vergonha banhar-lhe o rosto.
Por duas ou três ocasiões, ao andar na rua com a "duena", viu-o caminhar na sua direcção, e embora passasse por elas desviando o rosto, Beatriz sabia-o emocionado. Uma vez mesmo, ao avistá-las, ele tinha girado nos calcanhares e voltado pelo mesmo caminho. Beatriz desatou a rir como louca, a ponto de lhe perguntar a "duena" o que achava tão engraçado, e ela teve de dizer a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Certa manhã, sucedeu que ambas entrassem na igreja no momento em que o seminarista mergulhava os dedos na água benta para persignar-se. Beatriz estendeu a mão para tocar-lhe nos dedos, recebendo dessa forma a água benta. Era um acto costumeiro e natural, e ele não podia recusar. Ficou muito pálido e, mais uma vez, os olhos de ambos se encontraram. Foi apenas um instante,, mas nesse instante Beatriz compreendeu
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que ele a amava com um amor humano, o amor que um rapaz apaixonado dedica a uma bela jovem, e ao mesmo tempo sentiu uma dor aguda no coração, como se uma espada o trespassasse, e compreendeu que o amava com o mesmo amor humano, o amor de uma jovem apaixonada a um amável mancebo. Foi invadida pela alegria. Jamais conhecera tamanha felicidade.
Nesse dia ele serviu a missa. Beatriz não lhe tirava os olhos de cima. O coração pulsava-lhe com uma violência quase insuportável, mas a dor, se dor havia, era maior do que qualquer prazer já sentido por ela. Já havia descoberto que o mesmo encargo ou ocupação o obrigava a passar todos os dias diante do palácio ducal a uma hora certa, e tratou de sentar-se a uma janela de onde pudesse observar a rua. Via-o aproximar-se e retardar o passo, como que mau-grado seu, ao passar, depois via-o seguir caminho apressadamente, como se fugisse à tentação. Esperava que ele levantasse o olhar, mas o rapaz nunca o fazia. Uma vez, para apoquentá-lo, deixou cair um cravo no instante em que ele se aproximava. O seminarista alçou os olhos instintivamente, mas Beatriz recuou a fim de poder vê-lo sem ser vista. Ele deteve-se e apanhou a flor. Tomou-a com ambas as mãos, como se fosse uma jóia inestimável, e por um momento contemplou-a como que em êxtase. Depois atirou-a ao chão com um gesto violento, espezinhou-a no pó e fugiu, fugiu a correr tão depressa quanto podia. Beatriz desatou a rir mas, de repente desfez-se em lágrimas.
Como o rapaz passasse vários dias sem ir à missa, ela não pôde mais suportar a sua ansiedade.
- Que aconteceu àquele seminarista que costumava servir a missa?
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- perguntou à "duena". - Não o tenho visto ultimamente.
- Como posso sabê-lo? Imagino que tenha voltado para o seminário.
Nunca mais tornou a vê-lo. Havia compreendido o drama em que terminara a farsa armada por ela e lamentou amargamente a sua tolice. Amava-o com toda a ardente paixão do seu corpo jovem. Nunca fora contrariada em coisa alguma e enraivecia ao pensar que dessa vez a sua vontade seria frustrada. O casamemto que lhe tinham arranjado era um casamento de conveniência e ela aceitara-o como consequência da sua posição. Estava disposta a dar filhos ao marido, como era seu dever, mas resolvera não lhe dar mais importância do que se fosse um lacaio. Agora, porém, a ideia de unir-se àquele anão estúpido enchia-a de asco. Sabia que o seu amor a Blasco de Valero não podia dar em nada. É verdade que, estando ele nas ordens menores, havia a possibilidade de obter a sua secularização, mas Beatriz nem sequer necessitou lembrar-se de que seu pai jamais consentiria em semelhante aliança; o seu próprio orgulho não lhe permitia dar a mão em casamento a esse "fidalgo de sarjeta". E Blasco? Estava segura de que ele a amava, mas tinha ainda maior amor a Deus. Quando ele espezinhara, raivoso, a flor que ela deixara cair aos seus pés, fora para esmagar aquela paixão indigna que o horrorizava. Beatriz tinha sonhos terríveis, apavorantes, em que jazia nos braços dele, a boca contra a sua, o peito de Blasco a comprimir o seu, e acordava cheia de vergonha, angústia e desespero. Foi então que começou a enfermar. Ninguém lhe compreendia a doença, porém ela sabia de que se tratava: estava a morrer de mágoa. Foi ao ter conhecimento de que ele entrara
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numa ordem monástica que teve aquela inspiração. Sabia, como se o próprio Blasco lhe houvesse dito, que ao renunciar ao mundo ele procurava fugir dela; e isso dava-lhe uma estranha alegria, um sentimento de força triunfante. Faria a mesma coisa: o ingresso no convento a libertaria de uma união odiosa, e talvez encontrasse paz no amor divino. Num recanto do seu espírito, sem que a própria palavra interior lhe desse forma senão muito raramente, habitava a ideia de que naquela vida, por mais separados que estivessem, cada um devotado ao serviço do Altíssimo, existia entre ambos uma espécie de união mística. Tudo isso, que levamos tanto tempo a contar, passou como um relâmpago pela mente da fria e severa prioresa. Viu a sua história como se fosse um desses vastos afrescos pintados na longa parede de um claustro, e aos quais, entretanto, podemos abranger com um só olhar. Toda aquela paixão, que na sua tola mocidade ela julgava dever durar para sempre, havia muito que morreria. O tempo, a piedosa monotonia da vida conventual, as orações e os jejuns, os múltiplos deveres da sua posição, haviam-na embotado pouco a pouco e agora não passava de uma lembrança amarga. Ao olhar para esse homem tão gasto e emaciado, com aquela expressão de sofrimento, perguntava consigo se ele se recordaria de ter amado uma vez - contra a vontade,, sim, mas de todo o coração - uma linda jovem a quem nunca falara, mas que atormentava os seus sonhos. O silêncio era pesado ao bispo, que se remexia inquieto na cadeira.
- A Reverenda Madre disse ter um assunto de importância sobre o qual desejava consultar-me - falou ele.
- Sim, mas permita primeiro que apresente as minhas
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felicitações a Vossa Excelência pela dignidade que el-rei houve por bem conferir-lhe.
- Não posso ter senão a esperança de me mostrar à altura dos deveres pertinentes a tão alto cargo.
- Quanto a isso, não pode haver dúvidas no espírito de quem conheça o zelo e a discrição de que Vossa Excelência deu provas durante os dez amos que passou em Valência. Embora vivamos numa remota cidadezinha das montanhas, conseguimos manter-nos inteirados do que se passa nesse grande mundo, e não nos passou despercebida a fama conquistada pela austeridade, pela virtude e pelo incansável labor de Vossa Excelência em prol da pureza da nossa fé.
O bispo olhou-a um instante por baixo das sobrancelhas franzidas.
- Minha senhora, fico-lhe agradecido pela sua cortesia mas devo rogar-lhe que me poupe esses cumprimentos. Nunca senti prazer em ouvir comentários a meu respeito, feitos na minha presença. Ficar-lhe-ei grato se me disser sem mais demora por que razão solicitou a minha visita.
A prioresa não se deixou abater por esta admoestação. Ainda que ele fosse bispo, não deixava de ser um "fidalgo de sarjeta", como dizia a sua velha "duena" que lá estava no seio do Senhor; enquanto ela era a filha do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Uma palavra sua ao irmão, confidente do favorito de Filipe III, podia relegar esse prelado para uma obscura diocese das Canárias.
- Lamento ofender a modéstia de Vossa Excelência - respondeu em tom tranquilo - , mas foi justamente a sua virtude e a sua austeridade - a sua santidade, se assim me posso
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exprimir - que constituiu a causa, imediata do meu pedido para que me fizesse a honra de visitar-me. Está informado do estranho caso que se passou com uma menina chamada Catalina Pérez?
- Estou. O confessor dela, homem digno, sem dúvida, mas de pouca instrução e inteligência, referiu-me essa história. Mandei-o calar. Proibi os frades do convento de mencionar tal coisa na minha presença ou de falar nela entre si. Essa rapariga ou é uma impostora à cata de notoriedade, ou uma simplória iludida.
- Não a conheço, senhor, mas segundo todas as informações é uma menina boa, sensata e piedosa. Pessoas de critério, que a conhecem, estão convencidas de que ela é incapaz de inventar semelhante história. Não costuma mentir e, ao que me dizem, está lomge de ser dada a fantasias.
- Se ela teve uma visão como a que descreve, só pode ter sido por ardil de Satanás. Ninguém ignora que os demónios tem o poder de assumir formas celestes para tentar os desprevenidos e arrastá-los à perdição.
- Essa menina sofre um infortúnio imerecido. Não devemos atribuir ao diabo mais habilidade do que ele possui. Como poderia ele ser estúpido ao ponto de julgar que a alma dessa criança incorre em perigo pelo facto de um santo homem lhe impor a mão em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo?
O bispo, que durante essa conversa mantivera os olhos postos no chão, ergueu-os para a superiora a estas últimas palavras, com uma expressão de angústia.
- Minha senhora, Lúcifer, o filho da manhã, caiu por causa do seu orgulho. Como é possível que pelo orgulho eu,
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um homem tão corrupto e pecador, me atreva a fazer milagres ?
- Está bem que na sua humildade se considere um homem corrupto e pecador, Excelência, mas o resto do mundo bem conhece a sua grande virtude. Ouça, senhor: essa história foi divulgada e a cidade inteira anda a falar nela. Todos estão alvoroçados e em expectativa. É preciso dar uma satisfação qualquer ao povo.
O bispo suspirou.
- Eu sei que o povo está perturbado. Grupos de pessoas conservam-se diante do convénto como se aguardassem alguma coisa, e quando saio eles ajoelham-se à minha passagem pedindo que os abençoe. É necessário fazer alguma coisa para que entrem na razão.
- Vossa Excelência permite que lhe dê um conselho? - disse a prioresa com muito respeito; mas os seus olhos tinham um brilho divertido e irónico que de certo modo ateimava aquele.
- Ficar-lhe-ia muito grato.
- Eu não falei com a rapariga porque o seu confessor lhe deu ordem de não repetir a história a ninguém, mas o senhor bispo tem o poder de revogar essa ordem. Não acha que seria conveniente vê-la? Com o seu discernimento, a sua penetração das almas e a habilidade que adquiriu no Santo Ofício com a inquirição de suspeitos, Vossa Excelência descobriria bem depressa se ela é uma impostora, se foi iludida por Satanás ou, afinal, se foi verdadeiramente a Virgem Santíssima que condescendeu em aparecer-lhe.
O bispo alçou os olhos e contemplou a imagem do Redentor pregado à Cruz, no santuário diante do qual a prioresa
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costumava rezar. O seu rosto tinha uma expressão muito triste. Estava dilacerado pela dúvida.
- É escusado lembrar-lhe, senhor, que este convento se acha sob a protecção especial de Nossa Senhora do Carmelo. Nós, pobres freiras, somos sem dúvida alguma indignas dessa honra, mas é possível que ela olhe com um favor especial esta igreja que meu pai, o duque, lhe erigiu na nossa cidade. Seria uma grande honra e uma grande glória para a nossa casa se, por intercessão de Vossa Excelência, a nossa celeste padroeira curasse essa pobre menina da sua enfermidade.
Durante largo tempo o bispo esteve absorto nos seus pensamentos. Por fim tornou a suspirar.
- Onde poderei ver essa menina?
- Haverá lugar mais próprio do que a capela dedicada ao culto da Santíssima Virgem, na nossa igreja?
- É preferível fazer depressa o que tem de ser feito. Que ela venha amanhã, minha senhora:, e estarei aqui à sua espera.
Levantou-se, e ao curvar-se para se despedir da prioresa havia nos seus lábios a sombra de um sorriso - mas tão pesaroso!...
- Uma triste noite me aguarda, Reverenda Madre. Ela ajoelhou-se mais uma vez e beijou-lhe o anel.


XII.

No dia seguinte, à hora aprazada, o bispo entrou na opulenta igreja acompanhado dos seus dois secretários. Catalina, com uma das freiras, esperava na capela da Virgem.
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Mantinha-se em pé com o auxílio da muleta;, mas quando o bispo apareceu a freira tocou-lhe no braço e Catalina fez um movimento para ajoelhar-se. Ele não a deixou.
- Pode deixar-nos - disse à freira e, quando esta saiu, dirigiu-se aos dois frades: - Podem retirar-se, mas fiquem aqui perto. Quero falar a sós com esta menina.
Eles desapareceram silenciosamente. O bispo observou-lhes a retirada. Sabianos muito curiosos e não queria ser ouvido por eles. Deitou então um longo olhar à inválida. Tinha um coração sensível e a desgraça, a miséria e a doença nunca deixavam de comovê-lo. Ela tremia um pouco e estava muito pálida.
- Não te assustes, minha filha - disse ele com suavidade. - Não tens nada a temer se dizes a verdade.
A jovem pareceu-lhe muito simples e inocente. Notou-lhe a singular beleza das feições, mas fê-lo com a mesma indiferença com que teria observado o pêlo ruão ou tordilho de um cavalo. Começou por lhe fazer perguntas sobre ela própria. Catalina respondeu a princípio com muita timidez, mas, como o bispo continuasse a instá-la com perguntas, acabou por ganhar mais confiança. Tinha uma voz suave e melodiosa e expressava-se com correcção. Contou-lhe a singela história da sua vida. Era a história de todas as moças pobres: duros trabalhos, diversões inofensivas, frequentes visitas à igreja e o seu namoro; contou-a, porém, com tal naturalidade e um ar tão ingénuo que o bispo sentiu-se tocado. Parecia-lhe inconcebível que essa rapariga tivesse inventado qualquer coisa para se fazer importante. Cada uma das suas palavras respirava modéstia e humildade. Contou-lhe então o seu acidente, como ficara com
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a perna paralítica e como Diego, o filho do alfaiate, o seu amado com quem ia casar-se, a tinha abandonado.
- Não o censuro - disse ela. - Vossa Excelência ignora talvez que a vida do pobre é dura, e um homem não deseja ter uma mulher incapaz de trabalhar para ele.
Um sorriso tão terno quanto o permitiam as feições conturbadas do bispo perpassou-lhe rapidamente na face. - Como aprendeste a falar tão bem e com tanto critério, minha filha? - perguntou ele.
- Meu tio Domingo Pérez ensinou-me a ler e a escrever. Deu-se a muito trabalho comigo. Tem sido como um pai para mim.
- Eu conheci-o outrora.
Catalina bem conhecia a má reputação do tio e receou que a sua referência a este a prejudicasse no conceito do santo homem. Houve um silêncio e, por um momento, ela julgou que ele fosse pôr fim à entrevista.
- Conte-me agora, nas suas próprias palavras, a história que referiu a sua mãe - disse ele, fitando-lhe um olhar perscrutador.
Catalina hesitou e o bispo lembrou-se de que o seu confessor lhe dera ordem de não falar naquilo. Informou-a gravemente de que tinha autoridade para tornar sem efeito a proibição do confessor.
Ela repetiu então a história, tal qual a havia contado à mãe. Disse que estava sentada nos degraus da igreja a chorar porque toda a cidade estava em festa e só ela era desgraçada, que uma senhora tinha saído da igreja e lhe falara, que ela lhe tinha dito que Sua Excelência o Bispo tinha o poder de curá-la do seu mal, depois desaparecera diante dos seus próprios olhos,
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e que ela compreendera então que essa senhora era a Virgem Santíssima em pessoa.
Quando terminou de falar, fez-se um longo silêncio. O bispo ficara abalado, mas ao mesmo tempo atormentava-o a decisão. A jovem não era uma impostora - disso estava convencido, pois a sua inocência, a sua sinceridade eram inconfundíveis. Não podia ter sido um sonho, porque ela ouvira bater os sinos, rufar os tambores e soar as trombetas quando ele e seu irmão tinham entrado na cidade, e nesse momento Catalina conversava com a dama, a qual ela não tinha razão para supor fosse coisa diversa do que parecia. Como teria Satanás o poder de assumir uma falsa aparência quando a menina estivera a abrir o seu pobre coraçãozinho diante da Mãe de Deus e a suplicar-lhe que a socorresse na sua aflição? Era uma criatura piedosa e não havia nela a menor presunção. Outros tinham visto as suas orações atendidas, outros tinham recebido a graça espiritual, outros tinham sido curados dos seus males. Se ele recusasse, por medo, fazer aquilo que parecia ser-lhe ordenado, porventura não inconreria em grave pecado de omissão?
"Um sinal!" murmurou de si para si. "Um sinal!" Avançou um ou dois passos e chegou ao pé do altar sobre o qual, envolta num grande manto de veludo azul todo pontoado de ouro, com uma coroa de ouro na cabeça, estava a imagem da Mãe de Deus. Ajoelhou-se e orou, pedindo-lhe que o guiasse. Orou apaixonadamente, mas tinha o coração seco e sentia as trevas da noite envolver-lhe a alma.. Por fim, com um triste Suspiro, ergueu-se e ficou com os braços estendidos numa súplica, fitando o olhar desesperado nos olhos meigos da Santíssima Virgem. De repente Catalina lançou um
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grande grito de espanto. Os dois frades haviam desaparecido, mas embora não pudessem ouvir o que ambos diziam, não estavam fora do alcance da voz, e ao sentir esse grito correram tão depressa como coelhos que ganham a toca. Mas o que viram pareceu chumbá-los ao chão. Ficaram mudos, boquiabertos, como se, a exemplo da mulher de Lot, se houvessem convertido em estátuas de sal. Don Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, alçava-se lentamente no ar, tão lentamente como o azeite que escorrega por uma superfície inclinada muito de leve; elevava-se com um movimento regular, quase imperceptível, como as aguas de um rio em enchente. O bispo subiu até colocar-se rosto a rosto com a imagem que encimava o altar, e por um momento ficou suspenso no ar, qual um falcão que se imobiliza sobre as asas estendidas. Temendo que ele caísse, um dos frades fez menção de avançar, mas o outro - o padre António - reteve-o; e o bispo, muito devagar, tão devagar que mal se percebia o movimento, desceu até os seus pés tornarem a tocar o chão de mármore defronte do altar. Penderam-lhe os braços e ele voltou-se. Os dois frades aproximaram-se a correr e, caindo de joelhos, beijaram-lhe a ourela do hábito. Ele não parecia dar-se conta da presença de ambos. Desceu os três degraus do altar e, como ofuscado, saiu da capela aos tacteios. Os dois frades seguiam-no de muito perto, para acudir-lhe no caso de tropeçar. Catalina ficou esquecida. Saíram da igreja. O bispo deteve-se no alto dos degraus, onde a jovem estivera sentada quando Nossa Senhora lhe apareceu, e olhou para a pracinha que resplandecia ao sol de Agosto. O céu sem nuvens estava tão azul e tão claro, em contraste com a penumbra da igreja, carregada de fumos de incenso, que olhar para ele cegava a vista. As casas brancas, cujos postigos estavam fechados por causa do calor, pareciam cintilar com um brilho próprio, como pedras preciosas. O bispo teve um arrepio, embora o dia estivesse quente como uma fornalha, e tornou a si.
- Façam saber à menina que eu a mandarei chamar. Desceu os degraus, seguido pelos frades a uma distância
respeitável. Atravessou a praça de cabeça baixa. Os dois não ousavam falar-lhe. Quando alcançaram o convento dominicano o bispo parou e votou-se para eles.
- Sob pena de excomunhão, não digam uma só palavra sobre o que viram hoje.
- Foi um milagre, senhor - volveu o padre António. - Acaso é justo que tão conspícuo sinal do favor divino seja ocultado aos nossos irmãos?
- Ao fazer a sua profissão, meu filho, você prestou voto de obediência.
Padre António fora aluno do bispo quando este ensinava teologia em Alcalá, e foi por influência de frei Blasco que ele entrou na Ordem Dominicana. Era vivo e inteligente, e ao ser nomeado inquisidor em Valência, o mestre levou-o consigo na qualidade de secretário. Sentia-se reconhecido ao jovem monge pela sua dedicação e, embora tentasse muitas vezes moderar a excessiva admiração que António tinha por ele, os seus argumentos não faziam senão intensificá-la ainda mais. Padre António, embora fosse tão devoto e zeloso na observância dos seus deveres religiosos quanto podia desejá-lo o Bispo, embora tivesse uma vida impoluta e se mostrasse diligentíssimo no serviço da Igreja, sofria dessa doença que Juvenal chamou "cacoethes soribendi": não se contentando em tomar a vasta correspondência do inquisidor e em redigir
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os inúmeros relatórios, documentos, decisões, etc, necessários à direcção dos negócios do Santo Ofício, passava todos os seus momentos de folga a escrevinhar; e o inquisidor descobriu - como descobria tudo que se relacionava com a sua pessoa ou o seu cargo - que padre António estava mantendo uma crónica minuciosa dos seus actos, de cada palavra que ele pronunciava e dos vários sucessos da sua carreira. Percebia, cheio de humildade, que o secretário lhe dedicava uma estima exagerada, e nos seus exames de consciência perguntava a si mesmo se não lhe incumbiria o dever de pôr termo àquele trabalho, pois muito bem sabia com que fim o frade escrevia. Metera-se naquela cabeça ilustrada, mais tonta, que ele, Frei Blasco de Valero, tinha a fibra de que se fazem os santos e que um documento como o que estava preparando seria valioso para a Cúria quando, após a sua morte, se instaurasse o processo de beatificação. Ainda que perfeitamente cônscio da sua indignidade, o inquisidor não deixava de ser humano e vibrava de piedosa exultação ao considerar a possibilidade, embora remota, de que algum dia viesse a ser contado entre os santos da Igreja. Açoitava-se até fazer correr sangue para punir-se da sua presunção, mas não podia decidir-se a privar aquela boa e piedosa Griatura de uma ocupação evidentemente inofensiva. E quem sabe? Era possível que a simples piedade religiosa do autor lhe permitisse compor uma obra que, apesar da insignificância do assunto, fosse edificante para os fiéis. Nesse instante, lendo no coração do frade, o bispo teve a certeza de que, conquanto os lábios deste não deixassem escapar nem uma palavra sequer do que sucedera na igreja das carmelitas, uma exposição pormenorizada do facto seria incluída no livro. O portentoso fenómeno que hoje conhecemos
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como levitação, e de que ele fora instrumento, tornara-se-lhe familiar através da leitura das vidas de vários santos, e toda a Espanha sabia que em tempos recentes esse sinal de favor divino fora conferido a Pedro de Alcântara, à Madre Teresa de Jesus e a mais de uma freira da ordem das carmelitas descalças. O bispo não podia esperar que padre António omitisse tal ocorrência no seu livro e, mesmo, ignorava se tinha o direito de ordenar-lhe tal coisa. Assim, entrou no convento sem dizer mais uma palavra e dirigiu-se para a sua cela.


XIII.

Não se lembrara, porém, de impor segredo a Catalina, e nem bem os três religiosos tinham deixado a igreja quando ela correu para casa tão depressa quanto lho permitia o seu estado de invalidez. Domingo fora a uma das povoações circunvizinhas a chamado de alguém e só Maria estava em casa. Catalina contou-lhe, em tom aterrado, o portento de que fora testemunha, e depois de terminar contou tudo de novo.
Maria Pérez tinha um pouco do senso dramático que parecia ter sido negado a seu irmão, o dramaturgo. Reprimindo com esforço a sua impaciência, aguardou a hora do recreio no convento, quando todas as freiras estariam reunidas, em palestra com as damas pensionistas e pessoas da cidade; poderia, assim, relatar a assombrosa ocorrência obtendo dela o maior efeito possível. Tinha um público numeroso quando contou a história, e deu-lhe grande satisfação o espanto com
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que a ouviram. Tal foi a impressão causada na subprioresa que esta achou necessário repetir o caso a Dona Beatriz sem perda de um só instante. Daí a pouco Maria Pérez foi chamada à presença da superiora e tornou a desfiar a mesma narrativa; A superiora escutou-a com uma satisfação que não se deu ao trabalho de ocultar.
- Diante disso não é possível hesitar mais - disse ela. - Será uma grande glória não só para este convento, mas para a Ordem de Nossa Senhora do Carmelo.
Despediu as duas mulheres e, apanhando a pena de pato, escreveu ao bispo uma carta em que dizia ter sido informada da graça que lhe fora concedida aquela manhã. Não se faziam mister maiores provas da verdade do que afirmara a jovem Catalina Pérez e de que tal ocorrência não era atribuível a uma maquinação do Inimigo e sim à compaixão de Nossa Senhora. Conjurava-o a pôr de parte as suas dúvidas e incertezas, pois com toda a evidência o seu dever cristão lhe ordenava aceitar a missão que lhe fora imposta. Era uma carta perfeita, sucinta mas bem argumentada, respeitosa mas firme, e a superiora terminava rogando-lhe, com grande humildade, que se dignasse realizar o milagre na mesmo igreja em que lhe fora conferido esse favor divino e à qual era evidente ter a Santíssima Virgem concebido uma afeição especial. Enviou a carta por um mensageiro.
Dois dos cavalheiros que se encontravam na sala de visitas do convento quando Maria Pérez contou a história ficaram tão impressionados que foram acto contínuo ao convento dos dominicanos indagar da sua veracidade. Os frades, naturalmente, nada sabiam, mas não se surpreenderam em absoluto quando o caso lhes foi repetido. Conheciam perfeitamente
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a gramde santidade do bispo e nada era mais natural do que conferir-lhe o Senhor a assinalada honra da levitação. Nesse meio tempo, uma das pensionistas das carmelitas foi visitar pessoas amigas na cidade e relatou-lhes o milagroso acontecimento. Dentro de uma ou duas horas toda a cidade tinha conhecimento do oconrido. Outros cavalheiros dirigiram-se para o convento dos dominicanos, a fim de colher informações de primeira mão. Os frades vibravam de entusiasmo religioso. Finalmente, Padre António viu-se na obrigação de ir dizer ao bispo que, embora nem ele nem o seu companheiro houvessem falado, o facto se tornara conhecido de todos. A carta da prioresa estava aberta em cima da mesa.
- Essas miseráveis mulheres são incapazes de refrear a língua - disse Don Blasco, apontando para ela. - É uma grande humilhação para mim que essa história tenha transpirado.
- Os nossos irmãos deste convento esperam que Vossa Excelência consinta agora em curar a infeliz jovem da sua enfermidade.
Bateram à porta. Padre António foi abri-la. Era um frade com um recado do prior perguntando se podia falar ao bispo.
- Que venha.
Padre António esteve presente à entrevista e escreveu uma relação da mesma, com toda a minúcia. Ao cabo, o bispo deixou-se convencer de que a vontade do Senhor era que ele obedecesse à solicitação da Santíssima Virgem. Formulou, todavia, condições que o prior, muito a contragosto, foi obrigado a aceitar. Queria o prior uma cerimónia com todos os monges reunidos, em presença das notabilidades locais, tanto leigas como eclesiásticas. Mas a isto o Bispo se opôs asperamente.
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Insistiu em que se guardasse sigilo. Estava disposto a ir à igreja das carmelitas e dizer a sua missa ali na manhã seguinte. Deviam fechar-se as portas para que ninguém fosse admitido. Ele próprio só iria acompanhado pelos seus dois secretários. Bastante enraivecido pelo que lhe parecia uma desconsideração à sua dignidade, o prior retirou-se. O bispo mandou então o padre António informar Dona Beatriz da sua decisão. Dava-lhe licença de trazer as suas freiras, mas proibia as damas pensionistas de comparecer. Recomendava-lhe que fizesse Catalina preparar-se para tomar a Santa Comunhão depois da missa e pedia-lhe, a ela e às suas freiras, que orassem por ele aquela noite.
Dentro de uma hora, uma freira toda emocionada veio à casa de Maria Pérez e pediu para ver Catalina, pois tinha algo muito importante para lhe dizer em particular. Depois de chamarem Catalina a freira levou o dedo aos lábios, recomendando discrição.
- É um grande segredo - disse ela. - Não deves contar a ninguém. O senhor bispo vai curar-te e amanhã estarás correndo e pulando sobre os dois pés, como qualquer outro cristão.
Catalina susteve o fôlego e o seu coração pôs-se a bater como doido.
- Amanhã?
- Terás de tomar a Sagrada Comunhão, de modo que não deves comer nada depois da meia-noite.
- Sim, eu sei. Mas de qualquer jeito nunca como nada depois da meia-noite.
- Além disso, deves pôr-te em estado de graça. Depois de comungares ele te deixará tão sã como Nosso Senhor deixou o leproso.
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- A mamã e o tio Domingo podem ir?
- Não me disseram nada a esse respeito. Está claro que podem. Talvez isso também cure o teu pobre tio dos seus maus costumes.
Domingo não voltou do campo senão tarde naquela noite, mas assim que ele entrou em casa Catalina contou-lhe, toda agitada, a emocionante nova. Ele fitou-a cheio de consternação.
- Não ficais contente, tio? - exclamou ela.
Em lugar de responder ele pôs-se a caminhar de um lado para outro. Catalina não podia compreender essa estranha atitude.
- Mas que (tens, tio? Isso não te agrada? Eu pensava que ficarias tão contente como eu. Não queres que eu me cure?
Ele sacudiu os ombros com irritação e continuou a percorrer o quarto de um lado para outro. Ainda não estava plenamente convencido de que a aparição não fora um produto da mente perturbada da sobrinha e temia as consequências para ela se a intervenção do bispo fosse inútil. Em tal caso, o Santo Ofício bem podia achar que o assunto exigia inquérito.
Seria um desastre. Parou de repente e virou-se para Catalina.
Olhou-a com uma expressão severa que a jovem nunca lhe
tinha visto até então.
- Conta-me exactamente o que te disse a Virgem Santíssima.
Ela repetiu a história.
- E então a Virgem disse: "O filho de Juan de Valero que melhor tem servido a Deus possui o poder de curar-te."
Domingo interrompeu-a asperamente.
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- Mas não foi isso que disseste a tua mãe! Disseste-lhe que Blasco de Valero tinha o poder de curar-te.
- Dá no mesmo. O bispo é um santo, todo o mundo sabe disso. Qual dos filhos de Dom Juan tem servido a Deus tão bem como ele?
- Ó tola! - exclamou Domingo. - Ó grande tolinha!
- Tu é que és tolo! - retrucou ela, acalorada.
Não acreditaste que a Santíssima Virgem me tinha aparecido, falado comigo e desaparecido diante dos meus olhos. Pensavas que fosse um sonho. Pois bem, ouve isto.
E contou-lhe como vira o bispo elevar-se do chão, ficar suspenso no ar e descer novamente até ao chão.
- Isso não foi sonho. Os dois frades que lá estavam viram-no com os seus próprios olhos.
- Coisas ainda mais extraordinárias têm acontecido - resmungou ele.
- E contudo não queres acreditar que Nossa Senhora me apareceu.
Ele deitou-lhe um olhar cintilante.
- Não é verdade. Antes não acreditava, mas agora acredito, não por causa do que viste essa manhã mas pelas palavras que te dirigiu a Santíssima Virgem. Há nelas um sentido oculto que me convence.
Catalina ficou perplexa. Não compreendia como a insignificante disparidade entre as duas versões pudesse fazer alguma diferença. Ele afagou-lhe a face com brandura.
- Sou um grande pecador, minha pobre criança, e o que torna desesperada a minha situação é que nunca pude arrepender-me dos meus pecados. Tenho tido uma existência aventurosa e frívola, mas li muitos livros, antigos e modernos,
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e aprendi muita coisa que talvez fosse melhor para a minha alma não conhecer. Mas coragem, minha querida, talvez tudo ainda venha a terminar bem. Apanhou o chapéu.
- Aonde vais, tio?
- Passei um dia muito atarefado e preciso distrair-me. Vou à taberna.
Nisto, porém, Domingo faltava com a verdade, pois em lugar de ir à taberna dirigiu-se para o convento dos dominicanos. Embora ainda estivesse claro, a hora era avançada e o porteiro não o deixou entrar. Domingo insistiu que precisava falar com o bispo sobre um assunto de grande importância, mas o porteiro, falando pelo postigo, negou-se a abrir a porta. Domingo disse-lhe que era o tio de Catallina Pérez e rogou-lhe que chamasse pelo menos um dos secretários de Sua Excelência. O porteiro mostrou-se pouco disposto a atender mesmo a esse pedido, mas tanto insistiu Domingo que ele consentiu afinal. Volvidos alguns minutos, padre António aproximou-se do postigo. Domingo implorou-lhe que o deixasse falar ao bispo, pois tinha uma comunicação da maior importância para este. O frade, evidentemente, estava informado a respeito da sua pessoa e conhecia-lhe a má reputação, pois respondeu com frieza. Disse que era impossível incomodar Sua Excelência, que estava a passar a noite em orações e dera ordens para que não o interrompessem sob pretexto algum.
- Se não me deixar vê-lo será responsável por um terrível infortúnio.
- Bêbedo! - disse padre António desdenhosamente.
- Sou um bêbedo, é verdade, mas não estou embriagado
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agora. Vai lamentar amargamente o facto de não me ter deixado entrar.
- Que mensagem é essa que me pede para transmitir? Domingo hesitou. Não sabia o que dizer.
- Diga-lhe que, pelo amor que lhe tem, Domingo Pérez lhe manda esta mensagem: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo."
- "Hijo de puta!" - gritou padre António, enraivecido por ouvir esse valdevinos, esse dissoluto citar a Santa Escritura.
Bateu-lhe com o postigo na cara. Domingo afastou-se, cheio de melancolia. O hábito orientou-lhe os passos para a taberna. e ele entrou. Era uma criatura sociável e, se não tinha muitos amigos, tinha pelo menos bom número de companheiros de libação. Embebedou-se e, uma vez bêbedo, soltou-se-lhe a língua. Gostava de se ouvir falar e, nessa ocasião como em muitas outras, foi-lhe fácil encontrar ouvintes.


XIV.

Na manhã seguinte, quando, como teria dito Domingo num dos seus poemas, Aurora esfregou os olhos com os dedos rosados e Febo atrelou ao seu carro de ouro os velozes corcéis do sol - ou seja, em prosa, ao romper do dia, três monges dominicanos com os capuzes baixados sobre as cabeças rapadas à navalha, em parte para ocultar-se e em parte para se protegerem dos nocivos vapores da noite que ainda não se acabara de todo, saíram atenciosamente do convento. Mas, embora
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fosse tão cedo, os habitantes da cidade tinham sentido qualquer coisa no ar e já havia um grupo reunido diante do portão do convento. Na alta figura encapuzada que caminhava entre as duas outras, reconheceram de imediato a santa pessoa do bispo. Seguidos a respeitosa distância pelos curiosos, os três frades dirigiram-se rapidamente para a igreja das carmelitas. Outras pessoas esperavam ali. Um dos frades bateu à porta. Esta abriu-se o suficiente para deixá-los passar um após outro e cerrou-se atrás deles. Quando os espectadores tentaram entrar, encontraram-na fechada à chave e, embora batessem, fizeram-no em vão.
Catalina esperava na capela da Virgem. Maria Pérez e Domingo tinham-na acompanhado, mas não os deixaram entrar. Dona Beatriz recebeu o bispo à porta da igreja com as suas freiras, vinte ao todo, pois tal era o limite fixado pelo duque de Castel Rodríguez ao fundar a instituição. O bispo entrou na sacristia com os seus dois auxiliares e envergou as sacras vestimentas. Dirigiu-se devagar para a capela da Virgem. As freiras estavam de joelhos. Apoiando-se na muleta, Catalina ajoelhou-se ao pé dos degraus do altar. O bispo celebrou a missa. As freiras entoaram os responsos em voz baixa e reverente. Ele administrou a Santa Comunhão a Catalina. Após a bênção e a leitura do último Evangelho, ajoelhou-se diante do altar e orou em silêncio. Depois ergueu-se, fitando em Catalina os grandes olhos trágicos, desceu os degraus. Pousou-lhe na cabeça a mão fina e morena.
- Eu, instrumento indigno do Altíssimo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ordeno-te que lances fora essa muleta e caminhes.
Começara em voz trémula e tão sumida que as freiras mal
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podiam ouvi-lo, mas pronunciou as últimas palavras sonoramente, num tom claro de comando. Catalina, com o rosto pálido de emoção, os olhos cintilantes, ergueu-se em pé, largou a muleta!, deu um passo à frente e, com um grito de angústia, caiu redondamente no chão. O milagre havia falhado.
Imediatamente se formou uma balbúrdia entre as freiras. Algumas puseram-se a gritar e duas delas desmaiaram. A prioresa adiantou-se. Relanceou os olhos para Catalina e depois o seu olhar encontrou o do bispo. Por um instante encararam-se fixamente. À retaguarda as freiras soluçavam. Então o bispo saiu da capela, com os dois frades atrás de si, e entrou na sacristia. Não disse uma só palavra. Após tirarem as vestimentas da missa e tornarem a pôr os seus hábitos monásticos, entraram de novo na igreja. A porteira estava à espera para abrir a porta. Com a cabeça novamente coberta pelo capuz, o bispo tornou a sair para o sol claro da manhã de Verão.
Tinha-se espalhado a notícia de que ele estava realizando um milagre naquele momento e as janelas da praça estavam apinhadas de espectadores. Formavam uma multidão compacta nos degraus da igreja e o logradouro estava cheio deles. Durante um instante o bispo ficou aterrado por ver aquele grande concurso de povo - mas só durante um instante. Compôs o hábito e aprumou-se. Assim que ele aparecera, um estremecimento de consternação percorreu o povo, pois de um modo misterioso este compreendeu de imediato, embora não soubesse dizer como, que o milagre falhara. Abriram caminho e o bispo, seguido pelos dois frades, desceu a escadaria da igreja. Aqueles que se encontravam na praça recuavam, comprimindo-se uns aos outros, e ao passar o bispo pela espécie
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de corredor assim formado, com o rosto oculto, a alta figura encolhida no hábito branco e preto da ordem, fazia-se na multidão um temível silêncio. Dir-se-ia que estivessem apavorados ante a iminência de alguma catástrofe inevitável.


XV.

Os monges do convento dominicano tinham-se indignado quando o bispo lhes negou permissão de assistir à cerimónia. Ao regressar com os seus dois secretários, encontrou-os vadiando, à espera para olhá-lo. A notícia já havia alcançado o convento. Passou por eles como se não os visse.
Ao saber que teriam no seu meio um hóspede tão ilustre, haviam provido a sua cela do luxo que lhes parecia condizente com a sua grandeza. Mas ele mandara logo retirar tudo quanto ofendia a sua austeridade. Obrigou-os a trocar o colchão macio da cama por outro de palha, tão fino quanto um cobertor, e pediu que as duas poltronas colocadas no oratório fossem substituídas por mochos de três pés. Tinham-lhe dado uma bela mesa de teca para escrever, mas ele reclamou, em lugar dela, uma mesa de pinho sem pintura. Não aceitava nada que desse prazer aos sentidos. Rejeitou os quadros que hiaviam pendurado nas paredes. Estas ficaram nuas, com excepção de uma simples cruz negra, sem a figura de Nosso Senhor, quer esculpida, quer pintada, e isso a fim de que ele pudesse imaginar-se mais vivamente pregado a ela, sentindo assim no seu corpo o suplício que havia experimentado o Redentor por amor à humanidade.
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Ao entrar na sua cela, o bispo deixou-se cair no duro mocho de madeira e fitou os olhos no pavimento de pedra. Lágrimas lentas e dolorosas escorreram-lhe pelas faces cavadas. Padre António encheu-se de compaixão ao ver o seu mestre mergulhado num sentimento que muito se parecia com o desespero. Cochichou qualquer coisa ao seu companheiro, que no mesmo instante saiu, voltando ao cabo de poucos minutos com uma tigela de sopa. Padre António ofereceu-a ao bispo.
- Coma, senhor.
O bispo desviou o rosto.
- Não poderia engolir nada.
- Mas, Excelência, não tem posto nada na boca desde ontem de manhã! Rogo-lhe que tome pelo menos algumas colheradas.
Ajoelhou-se, encheu uma colher com a sopa fumegante e levou-a aos lábios do bispo.
- Você é muito bom para mim, meu filho - disse este. - Não mereço as atenções que me dedica.
Para não ser grosseiro, engoliu o conteúdo da colher e o monge deu de comer ao humilhado homem como se este fosse uma criança enferma. O bispo não desconhecia o profundo apego que lhe tinha o seu fiel auxiliar e mais de uma vez o advertira do perigo de tal coisa, pois um religioso deve estar sempre em guarda para não tomar afeição a indivíduos particulares, o que não faz senão criar obstáculos à integral devoção para com o Senhor, que é o único objecto verdadeiro de amor. Quanto aos seres humanos, quer clérigos quer leigos, deve tratá-los com boa vontade, pois são criaturas de Deus, mas ao mesmo tempo - visto que são perecíveis - com uma indiferença para a qual tanto faz estarem presentes como
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ausentes. Mas é difícil governar os afectos e, por mais que o tentasse, padre António não conseguia eliminar o amor, a devoção extática de que estava repleto o seu pobre coração. Depois que o bispo comeu, padre António pôs de lado a tigela e, sempre de joelhos, atreveu-se a tomar-lhe a mão.
- Não se amargure tanto, senhor. A menina foi enganada pelo demónio.
- Não, a culpa foi minha. Solicitei um sinal e ele foi-me dado. Na minha vanglória, não me julguei indigno de realizar aquilo que só é concedido aos santos eleitos pelo Senhor. Sou um pecador e fui justamente punido pela minha presunção.
Tão acabrunhado estava o bispo que o frade ousou falar-lhe num tom que jamais teria empregado em outras circunstâncias.
- Todos nós somos pecadores, meu senhor, mas eu tive o privilégio de conviver consigo durante muitos anos e ninguém melhor do que eu conhece a sua constante bondade para com todos os homens, a sua inesgotável caridade e compaixão.
- Quem fala agora, é a sua bondade, meu filho. É a afeição que me tem, contra a qual o tenho advertido tantas vezes e que eu tão pouco mereço.
Padre António considerou com piedade o nosto agoniado do bispo. Continuava a segurar-lhe a mão fria e emaiciada.
- Permite que eu lhe leia um pouco para distraí-lo, meu senhor? - disse ele depois de uma pausa. - Escrevi ultimamente alguma coisa sobre a qual desejaria a sua opinião.
O bispo sabia quão amargurado estava o pobre frade pelo facto de não se haver realizado o milagre que ele aguardara com tão absoluta confiança, e sentiu-se tocado ao ver esse homem simples e estimável vencer a sua própria decepção para
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o atender e consolar. Até então, jamais havia consentido em escutar uma palavra sequer do livro que o seu secretário escrevia com tanta diligência, mas dessa vez não teve coragem de recusar-lhe um prazer que ele tão ardentemente desejava.
- Leia, meu filho. Terei muito gosto em ouvir.
Com as faces rubras de prazer, o padre pôs-se atabalhoadamente em pé e tirou, de entre os numerosos papéis com que o seu cargo o obrigara a lidar, várias folhas manuscritas. Sentou-se num dos mochos. O outro frade sentou-se no chão, pois não havia outro lugar onde sentar-se. Padre António começou a ler.
Escritor erudito e elegante, nenhum artifício de retórica lhe era desconhecido. Tinha um estilo rico em símiles e metáforas, metonímias, sinédoques e catacreses. Nunca soltava um substantivo sem o escoltar com dois robustos adjectivos. As imagens brotavam-lhe na mente tão pingues e profusas como cogumelos após a chuva. Versado como era nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja e dos moralistas latinos, nunca tinha dificuldade em encaixar uma alusão oculta. Conhecia a fundo a estrutura dos períodos, simples, complexos, compostos e compostos-complexos, e não só sabia compô-los de maneira perfeita, com cláusulas e subcláusulas, mas também dar-lhe um fecho sonoro e triunfante que fazia o efeito de uma porta batida na cara do leitor. Esse estilo literário, a que um crítico engenhoso deu o nome de "Mandarim", é muito estimado pelos que o adoptam, mas tem a pequena desvantagem de tomar muito tempo para exprimir aquilo que se pode dizer em poucas palavras. Em todo o caso, ele destoaria da linguagem simples e tosca em que é vasada esta narrativa; de modo que, ao invés de fazer uma inútil tentativa de reproduzir
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a grandiloquência do bom frade, o autor destas páginas achou de bom aviso dar uma súmula do assunto à sua moda singela.
Não sem bastante tacto, padre António escolheu para ler o relato do grande auto-de-fé que havia coroado a carreira de Frei Blasco no Santo Ofício e que, conforme mencionamos anteriormente, causara tanto prazer ao príncipe, agora Filipe III, e a seu tempo ocasionara a elevação do piedoso inquisidor à importante diocese de Segóvia.
A impressionante cerimónia, feita para inspirar respeito à autoridade da Inquisição e edificar o povo, realizou-se num domingo, a fim de que ninguém pudesse pretextar suas ocupações para deixar de comparecer, visto que isso era um dever religioso; e, para conseguir-se um público tão numeroso quanto possível, concederam-se quarenta dias de indulgência a todos quantos assistissem. Três palanques tinham sido erigidos na grande praça da cidade, uma para os penitentes com os seus assistentes espirituais, outro para os inquisidores, autoridades do Santo Ofício e o clero em geral, e um terceiro para as autoridades civis e dignitários locais. As solenidades, no entanto, tiveram início na noite anterior com a procissão da Cruz Verde. Em primeiro lugar, com um estandarte de damasco carmesim em que fora bordado o escudo real, ia uma multidão de familiares e de cavalheiros; depois as ordens religiosas, com a Cruz Branca; a Cruz da igreja da paróquia, carregada pelo clero secular; e finalmente a Cruz Verde, carregada pelo prior dos dominicanos, acompanhado pelos seus frades com tochas. Enquanto caminhavam, cantavam o "Miserere". A Cruz Verde foi plantada acima do altar, no palanque reservado aos inquisidores, e guardada durante a noite pelos dominicanos. A Cruz Branca
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foi conduzida ao local da execução, onde lhe montaram guarda soldados da "Zarza", milícia encarregada de vigiar o "quemadero" ou lugar onde se armavam as fogueiras, e de fornecer lenha para estas.
Um dos deveres dos inquisidores era visitar durante a noite os condenados à morte, informá-los da sentença e designar dois monges que deviam preparar cada um deles para enfrentar o Senhor. Nessa, ocasião, porém, padre Baltasar, o mais moço dos inquisidores, estava acamado com uma cólica e desejando refazer-se o suficiente para tomar parte nas cerimónias do dia seguinte, rogou a Frei Blasco que o escusasse de acompanhá-lo nessa triste missão.
Ao nascer do dia celebrou-se a missa na câmara de audiências do Santo Ofício e diante do altar da Cruz Verde. Serviu-se uma refeição aos prisioneiros e aos frades que tinham feito companhia aos condenados e que, sem dúvida, a acolheram com alegria. Os penitentes foram então dispostos em fileiras, de acordo com a gravidade do seu delito contra a fé, e vestiram-nos com sambenitos. O sambenito era uma túnica amarela num de cujos lados tinham pintado chamas para os condenados à fogueira, e no outro lado estava inscrito o nome, residência e crimes cometidos por cada um. Davam-lhe cruzes verdes para carregar e punham-lhe círios amarelos na mão.
Formou-se outra procissão. Os soldados da "Zarza", que a conduziam eram seguidos de um religioso com uma cruz envolta numa mortalha negra e de um acólito que de tempos a tempos dobrava uma sineta. Vinham então os penitentes, um a um, com um familiar de cada lado; depois, as efígies ou as ossadas daqueles que, pela fuga ou pela morte, tinham esbulhado o Santo Ofício da sua justa presa; em seguida,
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os condenados à morte, acompanhados pelos frades que lhes tinham prestado assistência espiritual durante a noite. Seguiam-se autoridades a cavalo, familiares a avançar dois a dois, os magistrados e os dignitários eclesiásticos, de acordo com a ordem oficial de precedência. Um nobre de alta categoria carregava um estojo de veludo vermelho, franjado de ouro, que continha as sentenças dos condenados. Vinha então o estandarte do Santo Ofício, conduzido pelo prior dos dominicanos, seguido dos seus monges; e, por último, os inquisidores.
Era um belo dia de sol, um desses dias que estimulam o espírito de moços e velhos, fazendo-lhes sentir que a vida é boa.
A procissão avançou lentamente pelas ruas tortuosas até chegar à praça. Havia grande afluência de povo. Muita gente acorrera das férteis fazendas que cercavam a cidade dos arrozais e dos olivais; outros, ainda vinham de Alicante, a terra dos parreirais, e de Elche, a região das tamareiras. As janelas das casas circundantes estavam cheias de pessoas nobres e gradas. O príncipe esperava com a sua comitiva num balcão da municipalidade.
Fizeram os réus sentar-se no palanque erigido para eles, na ordem em que tinham marchado, os menos culpados nos bancos inferiores e os mais criminosos nos superiores. Havia no palanque dois púlpitos em que se acomodou o tribunal, e de um desses púlpitos fez-se uma prédica. Então, numa voz tão alta que todos podiam ouvi-lo, um secretário leu o juramento pelo qual as autoridades e todos os presentes se comprometiam a obedecer ao Santo Ofício e a perseguir os hereges e a heresia. Todos disseram ámen, Em seguida, os dois inquisidores dirigiram-se para a sacada em que se achava o príncipe e, sobre a Cruz
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e os Evangelhos, exigiram-lhe um juramento pelo qual se obrigava a obedecer à fé católica e ao Santo Ofício, a perseguir os hereges e apóstatas e ajudar a Inquisição a capturar e punir, quaisquer que fossem a sua posição e categoria-, os infiéis que rejeitavam a verdadeira religião.
- Eu o juro e prometo pela minha fé e sob a minha palavra real - respondeu solenemente o príncipe.
Havia um banco entre os dois púlpitos, e para ali os penitentes foram conduzidos um a um. Leram-lhes as sentenças, alternativamente, de um e de outro púlpito. Com excepção dos condenados às chamas, era a primeira vez que lhes anunciavam o seu destino, e como alguns perdiam os sentidos ao ouvi-lo o Santo Ofício, na sua misericórdia, havia munido o banco de um gradil para que não se magoassem ao cair. Nessa ocasião um homem, alquebrado pela tortura, morreu ali mesmo do choque. A Última sentença foi lida e os réus entregues ao braço secular. O Santo Ofício não impunha qualquer espécie de pena que implicasse em derramamento de sangue, chegando mesmo ao ponto de instar com as autoridades civis para que poupassem a vida do criminoso. A lei canónica, no entanto, exigia-lhes que punissem prontamente os hereges confiados às suas mãos pela Inquisição e concedia-se uma indulgência aos devotos que trouxessem lenha para a fogueira destinada a queimá-los.
Ficava assim terminada a tarefa dos inquisidores, que se retiraram. Os soldados da "Zarza" entraram na praça e descarregaram os seus mosquetes. Depois cercaram os prisioneiros e marcharam com eles para o local da execução, a fim de protegê-los contra a fúria do populacho, que, no seu ódio à heresia, tê-los-ia maltratado e até seria capaz de matá-los.
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Os frades acompanhavam-nos, esforçando-se até ao fim por lhes arrancar uma palavra de arrependimento e conversão. Entre eles havia quatro mulheres mouras, cuja beleza provocou a admiração de todos, um impenitente mercador holandês que fora apanhado a introduzir no país uma tradução espanhola do Novo Testamento, um mouro culpado de ter morto uma galinha cortando-lhe a cabeça, um bígamo, um mercador que dera asilo a um fugitivo do Santo Ofício, e um grego culpado de defender opiniões condenadas pela Igreja. Um aguazil e um secretário foram com as autoridades civis, para tratar de que as sentenças fossem devidamente executadas. O secretário, nessa ocasião, era padre António, que assim teve oportunidade de fazer um relato completo dos acontecimentos do dia.
O "quemadero" ficava fora da cidade. Garrotes tinham sido presos às estacas, a fim de que aqueles que houvessem manifestado a intenção de morrer na fé cristã, inclusive os que o faziam no último momento, pudessem escapar à morte pelo fogo, perecendo pelo método mais suave do estrangulamento. A multidão precipitara-se em pós dos soldados e dos prisioneiros e grande número de pessoas, a fim de apreciar melhor os trâmites da execução, foram tomar lugar antecipadamente no espaço aberto em que devia verificar-se a cena final. Havia ali enorme assistência, o que era natural, pois tratava-se de um espectáculo digno de ser visto e de um entretenimento muito apropriado a um hóspede de sangue real; além disso, o espectador tinha a satisfação de saber que estava realizando um acto de piedade e um serviço a Deus. Os destinados ao garrote foram garroteados. Depois atearam-se as chamas, e vivos e mortos foram reduzidos a cinzas, a fim de que a sua memória
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desaparecesse para sempre. O povo levantou um clamor e pôs-se a bater palmas ao ver subir as chamas, abafando quase os gritos agudos das vítimas, e aqui e além uma mulher entoava um salmo lamentoso e estridente à Santíssima Virgem ou a Cristo Crucificado. Caiu a noite e a multidão voltou aos grupos para a cidade, fatigada de tanta emoção e tantas horas passadas em pé, mas sentindo que tivera um dia feliz. Dirigiam-se em grande número para as tabernas. Os bordéis tiveram um movimento nunca visto e muito homem pôs à prova nessa noite a eficácia do fragmento do hábito de frei Blasco, que usava num escapulário ao pescoço.
Padre António também estava cansado, mas a sua primeira obrigação era comunicar os acontecimentos aos dois inquisidores. Feito isso, como era um homem consciencioso, apesar da fadiga que o tentava a ir para a cama sentou-se e escreveu uma narrativa circunstanciada de tudo quanto sucedera naquele dia, enquanto tinha todos os pormenores frescos no espírito. Fê-lo com rapidez e uma eloquência que parecia inspirada pelo Céu, e ao reler o que escrevera verificou que não havia necessidade de alterar uma só palavra. Finalmente, ditoso pela consciência de haver cumprido o seu dever e contribuído, além disso, com a sua modesta parte para uma obra piedosa, meteu-se na cama e dormiu o sono inocente de uma criança.
Tudo isso ele o leu ao desalentado bispo em voz forte e sonora, dando uma ênfase dramática aos episódios mais significativos. Lia com os olhos pregados ao papel. Sentia uma estranha exaltação. Era assim que se servia o Senhor e se mantinha a pureza da fé católica. Terminou a leitura. Tinha de reconhecer que fizera justiça à grandiosa solenidade. Ele próprio sentia a vividez da sua descrição e a maneira artística por que conduzira
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a narrativa, sem saber como, a um clímax imponente. Alçou os olhos. Como muitos outros escritores que submetem a sua obra à apreciação de um ouvinte, gostaria de ser recompensado com uma palavra de louvor. Mas isso não passou de um desejo momentâneo. O fim principal era dissipar as sombrias imaginações do seu amado e venerado superior, lembrando-lhe o mais glorioso incidente da sua carreira. Por mais santo que fosse, não podia deixar de sentir um estremecimento de orgulho ao surgir-lhe ante os olhos do espírito aquele dia magnífico em que relegara aos tormentos eternos tão grande número de amaldiçoados hereges, servindo assim o Senhor, desobrigando a sua consciência e edificando o povo. Padre António ficou surpreendido, mais do que surpreendido, ateimado, quando viu que as lágrimas lhe desciam pelas faces murchas e ele apertava os punhos com força, para conter os soluços que lhe sacudiam o peito.
Atirou ao chão o manuscrito e, saltando do tamborete em que estava sentado, lançou-se aos pés do seu mestre.
- Mas que tem o senhor? - exclamou. - Que fiz eu? Li apenas para distraí-lo...
O bispo afastou-o de si e, pondo-se em pé, estendeu os braços súplices para a cruz negra pregada à parede.
- O grego! - gemeu ele. - O grego!
E, incapaz de se conter por mais tempo, desatou num choro arrebatado. Os dois frades contemplavam-no cheios de consternação. Nunca tinham visto esse homem austero entregar-se a crises emotivas. O bispo secou as lágrimas impacientemente, com a palma da mão.
- Eu sou o culpado - gemeu ele - , terrivelmente culpado.
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Cometi um horrendo pecado e a minha única esperança de perdão está na infinita misericórdia do Senhor.
- Explique pelo amor de Deus, Excelência! Estou absolutamente confuso. Pareço um marinheiro numa tempestade, com o barco desarvorado e o leme perdido. - Com o seu trecho literário ainda a ressoar-lhe nos ouvidos, era impossível a padre António deixar de falar como um livro.
- O grego? Porque Vossa Excelência se refere ao grego? Era um herege e sofreu a justa punição do seu crime.
- Você não sabe o que diz. Não sabe que o meu crime é ainda maior que o dele. Pedi um sinal e o sinal foi-me dado. Tomei-o por um indício da graça divina;; vejo agora que era um indício da Sua cólera. É justo que eu seja humilhado aos olhos dos homens, porque sou um miserável pecador.
Não se voltou para os seus companheiros. Não era a eles que falava, mas à Cruz sobre a qual se imaginara tantas vezes, com as mãos e os pés atravessados por pregos.
- Era um bom velho, caridoso na sua pobreza para com os mais pobres do que ele, e durante os anos que o conheci nunca lhe ouvi pronunciar uma má palavra. Olhava todos os homens com estima e bondade. Possuía a verdadeira nobreza da alma.
- Muitos homens, virtuosos na vida pública e privada, foram justamente condenados pelo Santo Ofício, porquanto a rectidão moral nada pesa na balança contra o pecado mortal da heresia.
O bispo virou-se e considerou padre António. O seu olhar era trágico.
- E o estipêndio do pecado é a morte - murmurou ele. O grego de quem faiavam, Demétrios Ghristopoulos, era
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natural de Chipre e homem de algumas posses, o que lhe permitira dedicar-se aos estudos. Quando os turcos, no reinado de Selim II, invadiram a ilha, tomaram Nicósia, a capital, e passaram a fio de espada vinte mil dos seus habitantes. Famagusta, onde vivia Demétrios Chrastopoulos, foi cercada e rendeu-se após um ano de acirrada resistência. Sucedia isso em 1571. Fugiu ele da cidade condenada! e homiziou-se nos montes até conseguir escapar num bote de pescadores, e depois de muitas aventuras desembarcou na Itália. Estava sem vintém, mas não tardou a arranjar suficiente trabalho, como professor de grego e expositor da filosofia antiga, para não morrer de fome. Numa hora aziaga, porén, fez-se notado por um fidalgo espanhol adido à embaixada do seu país em Roma, o qual durante a sua residência na Itália se rendera ao culto de Platão, então na moda. O nobre levava-o ao seu palácio e os dois liam juntos os imortais diálogos do filósofo. Volvidos alguns anos, no entanto, foi reconduzido à Espanha e convenceu o grego a ir com ele. Foi elevado à vice-realeza do Reino de Valência e nesta cidade veio a monrer. O grego, sem recursos e já à beira da velhice, deixou o palácio do vice-Rei e instalou-se muito modestamente em casa de uma viúva. Tinha adquirido certo renome de erudição e arranjou um precário meio de vida dando lições de grego aos que desejavam adquirir conhecimentos desse nobre idioma.
Frei Blasco de Valeiro ouvira falar dele quando ainda ensinava teologia em Alcalá de Henares. Pouco depois de assumir o cargo de inquisidor em Valência, sabedor de que ele era um homem de boa reputação e vida virtuosa, mandou chamá-lo. Simpatizou com as maneiras suaves e modestas do velho e pediu-lhe que lhe ensinasse a língua em que fora escrito o Novo
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Testamento, a fim de poder lê-lo com maior devoção. Durante nove anos, sempre que os seus múltiplos deveres lhe davam um momento de folga, o inquisidor e o grego trabalharam juntos. Frei Blasco era um aluno diligente e capaz, e ao cabo de alguns meses o grego, que tinha paixão pela grande e antiga literatura do seu país, convenceu-o a enfrentar as obras dos autores clássicos. Era platonista fervoroso e não tardou que se pusessem a ler os "Diálogos". Daí passaram para Aristóteles. O frade não quis ler a "ilíada", que lhe parecia brutal, nem a "Odisseia", que ele achava frívola, mas encontrou muita coisa de admiração nos autores dramáticos. Sempre acabavam, no entanto, por voltar aos "Diálogos".
O inquisidor era um homem de sensibilidade delicada e encantou-o a graça, a piedade religiosa e a profundidade de Platão. Havia nas obras deste muita coisa que um cristão podia aprovar. Era pretexto para que ambos discutissem muitos assuntos sérios. Frei Blasco entrou assim num novo mundo. Sentia um singular deleite na leitura desses grandes livros que lhe proporcionavam um feliz repouso após as ocupações do dia. No seu longo e fecundo convívio com aquele homem que não parecia pertencer a este mundo concebera por ele uma espécie de afeição, e tudo que ouvia dizer do grego, da sua vida simples e honesta, da sua índole bondosa e da sua caridade, aumentava a admiração que lhe inspirava o seu carácter.
Foi um choque terrível para ele quando um holandês luterano, detido pelos familiares da Inquisição por introduzir na Espanha traduções do Novo Testamento, confessou no cavalete haver dado um exemplar ao grego. Prosseguindo o interrogatório, com a assistência de mais uma volta do arrocho, disse
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ter conversado amiúde com ele sobre religião, e que em muitos pontos estavam inteiramente de acordo. Isto era suficiente para que o Santo Ofício se visse obrigado a instaurar um inquérito que, como sempre, foi exaustivo e secreto. O grego foi conservado na ignorância de estar sob suspeita. Ao ler os autos finais do inquérito, frei Blasco ficou horrorizado. Nunca lhe passara pela cabeça que o grego, tão bom, tão humilde, não houvesse, durante os longos anos passados na Itália e depois na Espanha, abjurado as suas opiniões cismáticas e abraçado a fé católica de Roma. Testemunhas juraram ter-lhe ouvido emitir opiniões condenáveis. Demétrios negava que o Espírito Santo procedesse do Filho, rejeitava a supremacia do papa e, embora venerasse a Virgem:, não queria admitir a sua imaculada conceição. A dona da casa em que ele morava ouvira-lhe dizer que as indulgências não tinham valor algum e alguém mais testificou que ele não aceitava a doutrina romana do purgatório.
O colega de frei Blasco, Don Baltasar de Carmona, era doutor em direito e um rígido moralista - homenzinho descarnado, de narigão pontudo, lábios comprimidos, olhos pequenos e desinquietos. Sofria, de uma doença dos intestinos que lhe azedava o temperamento. O seu cargo dava-lhe um poder imenso, que ele exercia com selvagem prazer. Ao ter conhecimento desses factos condenatórios, insistiu em que se prendesse o grego. Frei Blasco fez o que pôde para salvá-lo. Alegou que, na qualidade de cismático, ele não era um herege, e portanto não caía sob a jurisdição do Santo Ofício. Mas não havia só o depoimento do luterano submetido à tortura: um calvinista francês, a quem aquele também incriminara, declarou que ouvira o grego emitir opiniões que cheiravam a protestantismo,
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e ao saber disto frei Blasco viu-se obrigado a cumprir o seu dever de ofício, por mais que tal coisa lhe custasse. Familiares foram buscar o velho a sua casa e levaram-no para o cárcere da Inquisição. Interrogaram-no e confessou-se francamente culpado do que lhe imputavam. Deram-lhe a oportunidade de abjurar as suas falsas crenças e converter-se ao catolicismo, mas com grande consternação de frei Blasco ele recusou fazê-lo. O delito era grave, mas como as provas não fossem concludentes quanto ao protestantismo, frei Blasco quis dar ao grego um ensejo de expiar o seu crime e insistiu junto ao seu colega, partidário de uma condenação imediata, a fim de que o submetessem à tortura, para induzi-lo à conversão e salvar-lhe a alma.
A lei exigia que ambos os inquisidores estivessem presentes à aplicação da tortura, com o representante do bispo diocesano e um notário para registar o ocorrido. Esse espectáculo nunca deixava de inspirar tal horror a frei Blasco que durante noites seguidas era atormentado por sonhos pavorosos.
Trouxeram o grego, desnudaram-lhe o torso e amarraram-no ao cavalete. O seu débil corpo de ancião estava ema-ciado. Rogaram-lhe solenemente que confessasse a verdade, pois os inquisidores não desejavam vê-lo sofrer. Permaneceu calado. Ataram-lhe as pernas aos lados do cavalete, passaram-lhe cordas em volta dos braços, das coxas e das pernas, e as extremidades daquelas foram presas a um arrocho - isto é, um pau mediante o qual podiam ser esticadas. O algoz deu uma vigorosa volta ao arrocho e o grego soltou um grito agudo; outra volta, e as cordas penetraram-lhe na pele e na carne, até aos ossos. Devido à sua idade avançada frei Blasco insistira em que não se dessem mais de quatro voltas, pois
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embora o máximo estabelecido fosse de seis ou sete, raramente se ia além de cinco, ainda quando se tratava de homens robustos. O grego suplicou que o matassem de uma vez e pusessem termo à sua agonia. Embora frei Blasco fosse obrigado a estar presente, não era obrigado a olhar. Mantinha os olhos cravados no chão de pedra, mas os gritos de dor retiniam-lhe nos ouvidos e atassalhavam-lhe os nervos. Aquela era a voz com que o seu amigo havia recitado as graves e nobres passagens de Sófocles; era a mesma voz com que, presa de uma emoção que a custo dominava, ele tinha lido o derradeiro discurso de Sócrates. Antes de cada volta do arrocho ordenava-se ao grego que confessasse a verdade, mas ele cerrava os dentes e não abria a boca. Quando o tiraram do cavalete não podia ter-se em pé e foi preciso carregá-lo de volta ao cárcere do Santo Ofício.
Embora nada houvesse confessado, condenaram-no com base nas suas confissões prévias. Frei Blasco ainda quis salvar-lhe a vida, mas Don Baltasar, o doutor em leis, objectou que ele era tão culpado quanto os outros luteranos condenados à fogueira. O representante do bispo e as demais autoridades a quem consultaram mostraram-se concordes com ele. Como o auto-de-fé só devesse realizar-se algumas semanas depois, frei Blasco teve tempo de escrever ao inquisidor-mor expondo-lhe o caso. O inquisidor-mor respondeu que não via motivo para alterar a decisão do tribunal. Frei Blasco nada mais podia fazer. Mas os gritos desesperados do velho continuavam a ecoar-lhe nos ouvidos e o sofrimento não lhe dava tréguas. Enviava-lhe conselheiros espirituais para tentar convertê-lo, pois embora já fosse impossível salvar-lhe a vida, o arrependimento permitiria que fosse garroteado, poupando-lhe
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assim o suplício da fogueira. Mas o grego mostrou-se contumaz. Apesar da tortura e da longa permanência no cárcere, o seu espírito continuava lúcido e activo. Aos argumentos dos frades respondia com outros argumentos tão subtis que aqueles se enfureciam.
Finalmente chegou a véspera do auto-de-fé. As anteriores solenidades da mesma espécie não haviam feito impressão em frei Blasco, pois os judaizantes relapsos, os mouros que persistiam nas suas práticas diabólicas, os protestantes, eram criminosos perante Deus e os homens, e, levando-se em conta a segurança da Igreja e do Estado, havia todas as razões para fazê-los sofrer. Mas ninguém sabia melhor do que ele quanto o grego era bom, compassivo e prestativo aos necessitados. Apesar da autoridade do seu colega, homem cruel, de alma seca e fria, ele punha em dúvida a legalidade do pavoroso castigo. Tinham trocado palavras acres e Don Baltasar acusara-o de favorecer o criminoso por ser seu amigo. No íntimo, frei Blasco sabia existir pelo menos um fundo de verdade nessa imputação: se ele nunca houvesse encontrado o grego, teria aceite a sentença sem protesto. Já não lhe podia salvar a vida, mas ainda podia salvar a sua alma. Os frades a quem tinha enviado para convencê-lo do seu erro não possuíam a habilidade necessária para tratar com um homem tão instruído. Uma hora antes de romper o dia foi ao cárcere da Inquisição e pediu que o conduzissem à cela do grego. Os dois frades estavam-no ajudando a passar essa última noite na Terra. Frei Blasco mandou-os sair.
- Ele não quis ouvir as nossas exortações - disse um deles.
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Um sorriso bailou nos lábios do grego ao vê-los deixar a cela.
- Sem dúvida alguma, os seus frades são pessoas muito dignas, senhor. Mas não têm grande inteligência.
Estava calmo e, conquanto velho e alquebrado, mantinha uma aparência de dignidade.
- Vossa Reverência há-de perdoar-me se fico na cama. A tortura deixou-me muito fraco e desejo conservar as forças para as cerimónias de hoje.
- Não percamos o tempo em falas ociosas. Dentro de poucas horas você terá de enfrentar um horrível destino. Sabe Deus que eu de bom grado daria dez anos da minha vida para o salvar. As provas eram condenatórias e eu faltaria ao meu juramento se deixasse de cumprir o meu dever.
- Eu jamais desejaria que o senhor fizesse tal coisa.
- Já não lhe posso salvar a vida, mas se consentir em retractar-se e aceitar a conversão, poderei ao menos poupar-lhe o tormento das chamas. Eu estimava-o, Demétrios, e nunca poderei saldar a minha dívida para consigo a não ser salvando a sua alma imortal. Esses frades são ignorantes e tacanhos. Vim aqui fazer uma última tentativa desesperada de convencê-lo do seu erro.
- Perderia o seu tempo, senhor. Nós lhe daríamos muito melhor emprego se conversássemos, como tantas vezes fizemos, sobre a morte de Sócrates. Não me permitiram trazer livros para este calabouço, mas possuo boa memória e tenho encontrado alívio em repetir a mim mesmo aquele discurso em que ele fala com tanta nobreza sobre a alma.
- Não estou a ordenar-lhe agora, Demétrios, estou a suplicar-lhe que me ouça.
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- Não posso negar-lhe esse último acto de cortesia.
Em tom grave, ponto por ponto, com cultura e discrição, o inquisidor expôs os argumentos imaginados pela Igreja para justificar as suas pretensões e refutar as opiniões de hereges e cismáticos. Estava habituado a discutir tais assuntos e expressou-se com habilidade e uma impressionante convicção.
- Eu não merecia muito respeito se, pelo receio de uma morte horrível, fingisse aceitar crenças que considero erróneas - disse o grego depois de ele terminar.
- Não é isso que eu lhe peço. Peço-lhe que creia na verdade com todo o seu coração.
- "Que é a verdade?" perguntou Pôncio Pilatos. É tão impossível ao homem forçar a sua crença como é impossível subjugar as vagas do oceano quando açoitado pela borrasca. Agradeço a Vossa Reverência a bondade de que me dá prova, e esteja certo de que não lhe guardo rancor pelo infortúnio que me aconteceu. O senhor agiu de acordo com a sua consciência e nenhum homem pode fazer mais do que isso. Eu já estou velho e pouca diferença faz que morra hoje ou daqui a um ou dois anos. Só tenho um pedido para lhe fazer. Não abandone, por eu ter desaparecido, os seus estudos da sublime literatura da Grécia antiga. Ela não deixará de ampliar-lhe o espírito e enobrecer-lhe o pensamento.
- Não teme a justa vingança do Senhor contra a sua contumaz obstinação?
- O Senhor possui muitos nomes e uma infinidade de atributos. Tem sido chamado Jeová, Zeus e Brama. Que importância tem o nome que Lhe damos? Mas entre os seus atributos infinitos o principal, como bem o percebeu Sócrates, ainda que pagão, é a justiça. Ele deve saber que o homem
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não acredita naquilo que quer, mas no que pode, e eu não Lhe farei a suma injustiça de supor que Ele condene as suas criaturas por uma coisa de que não são culpadas. Vossa Reverência não me julgue desrespeitoso se lhe peço que me deixe agora a sós com os meus pensamentos.
- Não posso deixá-lo assim. Devo esforçar-me até ao fim para salvar a sua alma imortal das chamas furiosas do Inferno. Diga uma palavra que me dê a esperança de poder salvá-lo ainda. Uma palavra para mostrar que você não continua impenitente, para que eu possa ao menos mitigar o seu castigo aqui na Terra.
O grego sorriu, e é possível que houvesse um toque de ironia nesse sorriso.
- O senhor desempenhará o seu papel, e eu o meu. O seu papel é matar, o meu é morrer sem tremer.
As lágrimas cegaram o inquisidor, que encontrou a custo o caminho da saída.
O bispo referiu este episódio aos frades numa voz embargada, e ao chegar a este ponto cobriu o rosto com as mãos, como se não pudesse suportar a vergonha de contar o resto. Eles escutavam-no compungidos, mas com uma atenção empolgada, e padre António anotava cuidadosamente, na sua memória, cada fala e cada resposta, a fim de registá-las no seu livro.
- Fiz então uma coisa horrível. Don Baltasar estava de cama e eu sabia que ele não se levantaria senão no último momento, pois tinha um medo mortal de que a doença o impedisse de assistir ao auto-de-fé. É um homem ambicioso e queria fazer-se notar pelo príncipe. Eu tinha, pois, liberdade de agir como entendesse. Não podia suportar a ideia
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de ver aquele pobre velho ser devorado pelas chamas cruéis. Ainda me ressoavam ao ouvido os seus gritos ao ser torturado e parecia-me que não cessaria de ouvi-los durante toda a minha vida. Disse às pessoas a quem isso interessava que tinha falado pessoalmente com ele e ele se retractara a ponto de admitir a dupla processão do Espírito Santo. Dei ordem para que o garroteassem antes de queimá-lo e mandei dinheiro por um criado ao algoz para que o despachasse depressa.
Convém explicar que o algoz podia prolongar durante horas a agonia da vítima, apertando-lhe e afrouxando-lhe alternativamente o colar de ferro em torno do pescoço, de modo que era preciso pagar-lhe para dar morte rápida ao infeliz.
- Não ignorava que isso era um pecado. O pesar desvairou-me e mal sabia o que estava a fazer. Foi um pecado que jamais deixarei de censurar a mim mesmo. Disse-o ao meu confessor e cumpri a penitência que ele me impôs. Recebi a absolvição, mas não posso absolver a mim mesmo, e o que sucedeu hoje é o meu castigo.
- Mas, meu senhor, isso foi um acto de compaixão! - obtemperou padre António. - Qual é aquele que, tendo trabalhado consigo tantos anos como eu trabalhei, não conhece a bondade do seu coração, e quem pode censurar-lhe o ter permitido uma vez que essa bondade suplantasse o seu sentimento de justiça?
- Não foi um acto de compaixão. Quem pode afirmar que o grego não ficara abalado pelos meus argumentos e quem sabe se, quando as chamas lhe lambessem a carne, a graça do Senhor não lhe seria concedida, levando-lhe o espírito obstinado a renegar os seus erros? Muitos homens, nesse derradeiro e terrível momento em que estão prestes a encontrar o seu Criador,
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salvaram assim as suas almas. Eu tirei-lhe esse ensejo e com isso o condenei aos tormentos eternos.
Um soluço rouco escapou-se-lhe da garganta - um som que semelhava o grito estrangulado, misterioso, de alguma ave nocturna no tenebroso silêncio da floresta.
- Os tormentos eternos! Quem pode imaginar tal sofrimento? Os réprobos estorcem-se num lago de fogo de onde se desprendem vapores deletérios que eles respiram cheios de angústia. Têm o corpo inçado de vermes. Uma fome e uma sede desesperadas torturam-nos. Chamuscados pelas chamas, os seus gritos formam um tumulto e uma confusão em face dos quais o ribombar do trovão e os bramidos do mar fustigado pela borrasca representam um silêncio mortal. Demónios de medonha aparência zombam e escarnecem deles, batem-lhes com um furor incansável, mais o remorso dilacerados com uma dor mais cruel do que as torturas desses hediondos diabos. O verme da consciência rói-lhes as entranhas. O fogo crucifica-lhes as almas, e comparado com ele o fogo aqui da terra é como o fogo que vemos num quadro, pois é a cólera do Senhor que o ateia e o alimenta, como instrumento terrível da Sua justa vingança por toda a eternidade.
"E a eternidade, como é terrível a eternidade! Tantos milhões de anos passam sobre os réprobos quantas são as gotas de água que têm caído sobre a terra desde o início dos tempos; tantos milhões de anos quantas são as gotas de água de todos os mares e rios do mundo; tantos milhões de anos quantas são as folhas de todas as árvores que existem e quantos são os grãos de areia de todas as praias do oceano; tantos milhões de anos quantas são as lágrimas que os homens têm derramado desde que Deus criou os nossos primeiros pais.
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volvido esse número incalculável de anos, a angústia dessas infelizes criaturas prosseguirá como se apenas houvesse começado, como se fosse ainda o primeiro dia; e a eternidade permanecerá inteira à sua frente, como se nem um segundo houvesse passado. E foi a essa eternidade de sofrimento que eu condenei aquele desgraçado. Que castigo pode reparar um mal tão grande? Oh! tenho medo, tenho medo..."
Estava desesperado. Profundos soluços sacudiam-lhe o peito. Encarava os dois frades com olhos escuros de" terror, e ao fixarem-se messes olhos notaram-lhes no fundo um clarão vermelho, como se visse reflectidas neles, de muito longe, as chamas rubras do Inferno.
- Mandem reunir os monges. Confessar-lhes-ei o meu pecado e, pela salvação da minha alma, ordenar-lhes-ei que me apliquem a disciplina circular.
Era um castigo degradante em que todos os presentes usavam o açoite contra o culpado. Padre António, aterrado, caiu de joelhos e, juntando as mãos como numa prece, implorou ao seu mestre que não insistisse em submeter-se a tão terrível provação.
- Nossos confrades não o vêem com bons olhos, meu senhor, estão furiosos porque Vossa Excelência não os deixou ir à igreja esta manhã. Não o pouparão. Vão açoitá-lo com toda a força. Muitos monges têm morrido sob as suas vergastadas.
- Não quero que me poupem. Se eu morrer, ter-se-á feito justiça. Ordeno-lhe, em nome do seu voto de obediência, que faça o que lhe digo.
O frade pôs-se em pé.
- Vossa Excelência não tem o direito de expor-se
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a tamanha afronta. É bispo de Segóvia. Vai lançar um labéu sobre todo o episcopado da Espanha. Vai diminuir a autoridade de todos aqueles que Deus escolheu para essa alta posição. Tem a certeza de que não há nenhuma ostentação nessa vergonha a que pretende expor-se?
Jamais ousara falar nesse tom peremptório ao seu pai em Deus. O bispo ficou surpreendido. Haveria realmente uma sombra de vanglória no seu desejo de humilhar-se assim em público? Deu um longo olhar ao frade.
- Não sei - disse afinal, lastimavelmente. - Sou como um homem que anda aos tropeções por uma terra desconhecida, nas trevas da noite. Talvez você tenha razão. Eu só pensava em mim, não pensei no efeito que isso produziria nos outros.
Padre António deu um suspiro de alívio.
- Vocês dois aplicar-me-ão a disciplina aqui, em particular.
- Não, não! Não faço isso. Sou incapaz de maltratar o seu sagrado corpo.
- É preciso então lembrar-lhe os seus votos? - perguntou o bispo com a sua velha severidade. - Você tem-me tão pouca estima que hesita em me infligir um castigo insignificante a bem da minha alma? Há açoites debaixo da cama.
Confrangido e em silêncio, o frade foi buscá-los. Estavam manchados de sangue. O bispo despiu a parte superior do hábito, que lhe caiu em volta da cintura. Tirou então a camisa: era feita de lata e perfurada como um ralador, para poder lacerar a carne. Padre António sabia que o bispo usava um cilício de crina - não sempre, pois isso faria com que se acostumasse a ele, mas apenas o número suficiente de vezes
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para que o tormento se renovasse constantemente. Susteve a respiração ao ver aquela horrível camisa de lata, mas ao mesmo tempo sentiu-se edificado. Aquele homem era na verdade um santo. Não deixaria de registar essa particularidade no seu livro. O dorso do bispo mostrava as cicatrizes dos açoites que ele aplicava a si mesmo pelo menos uma vez por semana, e havia chagas abertas que supuravam.
Abraçou-se à fina coluna que sustentava os dois arcos divisórios dos seus aposentos e ofereceu as costas aos dois frades. Cada um deles apanhou em silêncio um açoite e golpeou a carne sangrenta. A cada vergastada o bispo estremecia, mas nem um gemido lhe escapou dos lábios. Não lhe tinham dado mais de uma dúzia de açoites quando ele caiu desmaiado. Levantaram-no e carregaram-no para a cama dura. Jogaram-lhe água em cima, mas como o bispo não recobrasse os sentidos assustaram-se. Padre António disse ao seu colega que mandasse um irmão leigo ir depressa chamar um médico, pois o bispo estava doente, mas ao mesmo tempo recomendou-lhe que avisasse os monges que não deviam incomodá-lo em hipótese alguma. Banhou-lhe as costas laceradas e tomou-lhe ansiosamente o pulso, que vacilava. A princípio julgou que o bispo estivesse à morte. Mas afinal Don Blasco abriu os olhos. Foram precisos alguns instantes para que recobrasse o uso das suas faculdades. Forçou então um sorriso.
- Pobre criatura que eu sou! Desmaiei...
- Não fale, meu senhor. Fique tranquilo. Mas o bispo ergueu-se num dos cotovelos.
- Dê-me a minha camisa.
Padre António olhou com um arrepio para aquele instrumento de tortura.
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- Oh! meu senhor! Não poderia suportá-la agora.
- Dê-ma.
- O médico vem aí. Não lhe conviria ser visto por ele a usar um instrumento de suplício.
O bispo deixou-se cair novamente na dura enxerga.
- Dê-me a minha Cruz - pediu ele.
Afinal chegou o médico, que mandou o doente permanecer na cama e prometeu mandar um remédio. Era um sedativo e dentro em pouco o bispo adormecia.


XVI.

No dia seguinte insistiu em levantar-se. Disse a sua missa. Embora débil e abalado, estava calmo e mergulhou no trabalho como se nada houvesse acontecido.
Pela tarde um irmão leigo veio comunicar-lhe que seu mano Don Manuel estava na sala de visitas e desejava falar-lhe. Supondo que ele tivesse sido informado da sua doença, mandou dizer que lhe ficava agradecido pela visita, mas assuntos urgentes o impediam de recebê-lo. O irmão leigo voltou dizendo que Don Manuel recusava ir embora enquanto o bispo não o recebesse, pois tinha uma comunicação importante para lhe fazer. O bispo soltou um suspiro e disse ao irmão leigo que o mandasse entrar. Desde a chegada a Castel Rodríguez não lhe tinha falado senão nas ocasiões exigidas pela cortesia. Embora censurasse a si próprio a sua falta de caridade, não podia dominar a antipatia que lhe inspirava esse homem vaidoso, brutal e empedernido.
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Don Manuel entrou sumptuosamente trajado, pletórico, ressumbrando saúde e vitalidade agressiva. Caminhava com um ar arrogante. Tinha no rosto uma expressão satisfeita e o bispo julgou notar-lhe malícia e astúcia nos olhos brilhantes e ousados. Teve um sorriso frio ao correr os olhos pela cela nua e austera. O bispo indicou-lhe um tamborete.
- Não tens um assento mais cómodo para me oferecer, mano?
- Não.
- Disseram-me que estavas doente.
- Foi uma indisposição passageira e sem importância. Já voltei ao meu estado normal de saúde.
- Estimo.
Houve um silêncio. Don Manuel continuava a encará-lo com um sorriso levemente zombeteiro.
- Disseste que tinhas uma comunicação para me fazer - falou o bispo afinal.
- E tenho, mano. Parece que a cerimónia de ontem de manhã não correspondeu às tuas esperanças.
- Faze-me o favor de dizer a que vens, Manuel.
- Que te fez pensar que eras tu o instrumento escolhido para curar essa rapariga da sua enfermidade?
O bispo hesitou. O seu primeiro impulso foi não dar resposta, mas, mortificando-se diante daquele homem grosseiro e vulgar, respondeu.
- Garantiram-me que a rapariga tinha falado a verdade e, embora me julgasse indigno, senti-me na obrigação de fazer o que me era solicitado.
- Cometeste um erro, mano. Devias tê-la interrogado mais cuidadosamente. A Santíssima Virgem disse-lhe que o filho
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de Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la. Porque tiraste logo a conclusão de que a Virgem se referia a ti? Não achas que te faltou um pouco de humildade cristã?
O bispo empalideceu.
- Que queres dizer? - exclamou ele. - Segundo ela me informou, Nossa Senhora tinha-lhe dito que era eu.
- É uma rapariga tola e ignorante. Supôs que a pessoa designada fosses tu, porque és bispo e, não sei porquê, o povo desta cidade tem ouvido falar muito da tua santidade e das tuas mortificações.
O bispo fez uma breve oração mental para poder dominar a cólera e a vergonha que lhe causavam as palavras do irmão.
- Como sabes disso? Quem te disse que as palavras da Santíssima Virgem foram essas?
Dom Manuel espirrou uma risada. Aquilo parecia-lhe uma óptima pilhéria.
- Vim a saber que a rapariga tem um tio chamado Domingo. Nós conhecemo-lo em pequenos. Se bem me lembro, estiveste no seminário com ele.
O bispo inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
- Domingo Pérez é um borracho,. Costuma ir a uma taberna frequentada pelos meus criados e fez amizade com eles, sem dúvida esperando que lhe pagassem a bebida. A noite passada tomou um pifão. Como era natural, todos falavam dos acontecimentos da manhã, pois o teu fiasco, mano, é assunto de todas as conversas. Domingo disse-lhes que não esperava outra coisa e tinha procurado prevenir-te, mas não o quiseram receber no convento. Repetiu então exactamente
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as palavras que a Virgem tinha pronunciado, conforme lhe foram repetidas pela sobrinha.
O bispo estava confuso. Não sabia o que dizer. Don Manuel continuou a falar, já com uma expressão de franca zombaria no olhar. O bispo perguntava consigo, lastimosamente, que espécie de homem seria aquele, que podia encontrar um prazer tão cruel em humilhar assim o próprio irmão.
- Não te passou pela cabeça, mano, que ela pudesse referir-se a mim?
- A ti?
O bispo mal podia dar crédito aos seus ouvidos. Se fosse capaz de rir, teria rido nessa ocasião.
- Isso surpreende-te, mano? Durante vinte e quatro anos tenho servido o meu rei. Arrisquei a minha vida uma centena de vezes, bati-me em batalhas gloriosas e o meu corpo traz cicatrizes dos mais honrosos ferimentos. Tenho sofrido fome e sede, o frio rigoroso daqueles malditos Países Baixos e o tórrido calor do Verão. Tu queimaste algumas dúzias de hereges na fogueira enquanto eu, para glória do Senhor, matei milhares desses hereges. Para glória de Deus, assolei-lhes os campos e queimei-lhes as searas. Assediei cidades prósperas e, quando se renderam, passei a fio de espada todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças.
O bispo estremeceu.
- O Santo Ofício só condena os acusados de acordo com as normas do processo judicial. Dá-lhes o ensejo de arrependerem-se e expiarem os seus pecados. Tem o maior cuidado em fazer justiça e, se castiga os culpados, também absolve os inocentes.
- Eu conheço de mais esses holandeses para crer que sejam capazes de arrependimento. Eles têm a heresia no sangue.
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São traidores à sua fé e ao seu rei e merecem a morte. Ninguém que me conheça pode negar que eu tenha servido bem ao Senhor.
O bispo pôs-se a reflectir. A brutalidade e a vanglória do irmão enchiam-no de asco. Parecia incrível que Deus pudesse escolher semelhante instrumento para a Sua obra, e no entanto podia ser que Ele o tivesse feito justamente por ser Manuel quem era, a fim de cobri-lo de vergonha, a ele, Blasco de Valero, por causa do seu pecado que não fora perdoado. Nesse caso, cumpria-lhe baixar a cabeça e aceitar a humilhação.
- Deus sabe que eu tenho consciência da minha indignidade - disse ele por fim. - Se fizesses essa tentativa e fosses mal sucedido, causarias um escândalo na cidade e darias um cruel ensejo aos maldosos para escarnecerem. Suplico-te que não faças nada precipitadamente; é um assunto que exige cuidadosa reflexão.
- Já reflectimos bastante, mano - volveu tranquilamente Don Manuel. - Consultei os meus amigos, que são as pessoas mais importantes da cidade. Pedi a opinião do arcipreste e do prior deste convento. Todos eles estão de acordo comigo.
O bispo tornou a fazer uma pausa. Sabia existir na cidade muita gente que invejava as posições conquistadas por ele e pelo irmão, porque, embora fidalgo de nascença, eram uma família de pouca monta. Bem podia ser que tivessem consentido na absurda pretensão de Don Manuel a fim de lançar descrédito sobre ambos.
- Não deves esquecer a possibilidade de que essa rapariga tenha sido iludida.
- Isso é o que vamos ver. Se eu fracassar, ficará provado
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que a rapariga é uma feiticeira e deve ser entregue à Inquisição para que a) julguem e castiguem.
- Se obtiveste o consentimento das autoridades municipais e estás resolvido a fazer a tentativa, não tenho o poder de impedir-te. Mas peço-te que faças tudo com o maior sigilo possível, para impedir um escândalo ainda maior que o que já tivemos.
- Agradeço-te o conselho, mano. Dar-lhe-ei a atenção que ele merece.
Com estas palavras, Don Manuel retirou-se. O bispo deu um profundo suspiro. Parecia-lhe que a sua taça de amargura se tinha enchido até às bordas. Ajoelhou-se diante da Cruz negra pregada à parede e orou em silêncio. Depois chamou um irmão leigo e mandou que fosse buscar Domingo Pérez.
- Se não o achar em casa, hão-de encontrá-lo na taberna próxima ao palácio em que está hospedado meu irmão, Don Manuel. Peça-lhe que me faça o favor de vir cá sem demora.


XVII.

Pouco depois o irmão leigo introduzia Domingo no oratório do bispo. Os dois homens encararam-se silenciosamente durante algum tempo. Não se encontravam desde quando haviam estudado juntos no seminário de Alcalá de Henares, ainda jovens e pouco mais que meninos. Ambos estavam já idosos, emaciados e devastados pelos anos. Mas a um tinham devastado a austeridade, as longas vigílias, os jejuns e o trabalho
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constante, enquanto o outro fora gasto pela bebida e pela dissipação. Todavia), se alguma semelhança havia na sua aparência, nenhuma tinham na expressão: a do bispo era atribulada e ansiosa, ao passo que a do escrevinhador era despreocupada e bem-humorada. Como clérigo das ordens menores, vestia batina, e esta estava coçada, esverdeada pelo longo uso e coberta, na frente, de nódoas de vinho e de gordura. Ambos, porém, tinham um ar de ascetismo e distinção intelectual.
- Vossa Excelência exprimiu o desejo de falar comigo - disse Domingo.
Um débil mas terno sorriso esboçou-se nos lábios pálidos do bispo.
- Há muito tempo que não nos vemos, Domingo.
- Os nossos caminhos têm-se distanciado muito. Eu cuidava que Vossa Excelência houvesse esquecido há muito a existência de uma criatura tão mesquinha e indigna como Domingo Pérez.
- Nós conhecemo-nos durante toda a vida. Envergonho-me de me ver tratado por ti com tanta cerimónia. Há muitos anos que não ouço um amigo chamar-me Blasco.
Domingo dirigiu-lhe o seu sorriso encantador, que tinha o dom de desarmar.
- Os grandes não têm amigos, meu querido Blasco. Esse é o preço que eles têm de pagar pela sua grandeza.
- Esqueçamos por uma hora esta minha lamentável grandeza e conversemos como os velhos e íntimos camaradas que fomos. Estavas enganado ao pensar que eu te houvesse esquecido. Tivemos demasiadas coisas em comum para que isso fosse possível. Eu mantinha-me informado da tua existência.
- Ela não tem sido muito edificante.
O bispo sentou-se num mocho e fez sinal a Domingo para que tomasse o outro.
- Mais ainda, mantive-me em contacto contigo através das tuas cartas.
- Como pode ser isso?... Eu nunca te escrevi...
- Não da tua própria parte, mas quando éramos rapazes li tantas poesias tuas que fiquei conhecendo muito bem a tua letra. Julgas que eu não a reconhecia nas cartas que meu pai e meu irmão Martin me enviavam? Sabia perfeitamente que eles eram incapazes de expressar-se com tanta elegância e propriedade. Além disso, havia certos modos de dizer, certos torneios de frase e certas reflexões em que eu reconhecia logo o teu espírito travesso.
Domingo riu suavemente.
- Não são muito notáveis os dotes literários de Don Juan e de teu irmão Martin. Depois de dizerem que gozavam saúde, que esperavam que o mesmo se desse contigo e que a colheita tinha sido minguada, não lhes restava mais nada que dizer. Tanto a bem do meu crédito como deles, eu sentia-me na obrigação de avivar essas secas informações com os mexericos da cidade e as agudezas e gracejos irreverentes que me ocorressem no momento.
- Como é lamentável que tenhas malbaratado os teus grandes talentos, Domingo! As coisas que eu tinha de aprender à força de aplicação e diligência, tu adquiria-las como que por intuição. Muitas vezes eu aterrava-me diante da audácia do teu pensamento, dessa abundância de ideias inesperadas que pareciam fluir do teu cérebro com tão pouco esforço como a água que jorra de uma fonte, mas nunca duvidei da tua inteligência. Tu nasceste para brilhar e, se não fosse a tua índole
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irrequieta, serias hoje um luzido armamento da nossa Santa Madre Igreja.
- Ao invés disso - volveu Domingo - , não passo de um pobre letrado, um dramaturgo que não encontra actores para lhe representarem as peças, um literato de aluguel que escreve sermões para padres estúpidos e incapazes de fazê-lo por si, um beberrão sem préstimo. Faltava-me a vocação, meu bom Blasco. A vida fascinava-me. O meu lugar não era nem no claustro nem no lar, mas na estrada real com as suas aventuras e perigos, os seus encontros fortuitos e a sua múltipla variedade. Vivi. Curti fome e sede, criei chagas nos pés, levei bordoada, sofri todos os infortúnios que podem caber em sorte a um homem: em suma, vivi. E mesmo agora que a velhice vai tomando conta de mim, não lamento os anos que desperdicei, pois eu também dormi no Parnaso; e quando vou a uma aldeia distante escrever uma carta para algum lapuz analfabeto, ou quando estou sentado no meu quarto, rodeado pelos meus livros, rimando falas em dramas que jamais serão levados à cena, sinto tamanha exultação que não trocaria de lugar com um cardeal ou mesmo com um papa.
- Não receias a cólera futura do Senhor? O estipêndio do pecado é a morte.
- É o bispo de Segóvia que me faz esta pergunta, ou o meu velho e estimado amigo Blasco de Valero?
- Até hoje não traí nenhum amigo ou inimigo. Enquanto não disseres nada que seja ofensivo à Fé, podes dizer o que quiseres.
- Então será esta a minha resposta: Nós sabemos que os atributos de Deus são infinitos, e sempre achei estranho que ninguém lhe tenha jamais atribuído um pouco de senso comum.
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É difícil acreditar que Ele tivesse criado um mundo tão belo sem desejar que os homens se deleitassem nele. Teria Ele dado às estrelas o seu esplendor, aos pássaros o seu canto mavioso e às flores o seu perfume, se não devêssemos sentir prazer nessas coisas? Eu pequei perante os homens e os homens condenaram-me por isso. Deus fez-me homem, com as paixões de um homem, e ter-me-ia Ele dado essas paixões unicamente para que eu as reprimisse? Foi Ele que me deu este espírito aventuroso e este amor à vida. Espero humildemente que, quando eu me encontrar face a face com o meu Criador, Ele se condoa das minhas imperfeições e me olhe com clemência. O bispo parecia profundamente perturbado. Podia responder ao pobre poeta que nós fomos postos na Terra para desprezar os seus deleites, resistir à tentação, vencer a nós mesmos e carregar a nossa cruz - para que no fim, embora não passemos de miseráveis pecadores, possamos ser considerados dignos da comunhão dos santos. Mas de que serviriam as suas palavras? Nada podia fazer senão rezar para que, antes de vir buscá-lo a morte, a graça de Deus descesse sobre o infortunado homem e ele se arrependesse das suas más acções. Fez-se um silêncio entre ambos.
- Não te mandei chamar para fazer com que te corrigisses - disse o bispo por fim. - Não me seria difícil refutar as tuas opiniões erróneas, mas sei de longa data o quanto és engenhoso em fazer parecer plausíveis os piores argumentos, e conheço também o prazer que sentes em irritar os demais com sofismas. Quero crer que grande parte do que disseste foi dito apenas com o fim de te divertires à minha custa. Tens uma sobrinha.
- Tenho.
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- Qual é a tua opinião sobre essa história que alvoroçou toda a cidade?
- Ela é uma menina virtuosa e verídica. É boa católica, mas não exageradamente religiosa.
- Bem creio nisso, pois estou informado de que ela foi educada por ti.
- Também não é dada a devaneios ociosos. É até, como não podem deixar de ser os pobres, um tanto prosaica. Ninguém poderia acusá-la de possuir a inditosa faculdade da imaginação.
- Acreditas, então, que a Santíssima Virgem lhe tenha aparecido realmente?
- Estive em dúvida até ontem, quando ela me referiu os termos exactos que a Virgem havia empregado. Então convenci-me, e foi por isso que quis falar contigo. Percebi logo qual era a pessoa indicada e quis poupar-te uma intervenção inútil. Mas não me deixaram entrar.
O bispo suspirou.
- Uma das cruzes que temos de carregar, e não a menor delas, é que os nossos companheiros de labutas, na sua solicitude para connosco, impedem que cheguem até nós aqueles a quem seria proveitoso recebermos.
- O tempo não embotou a afeição que me ligava a ti na mocidade, pois, como vês, eu, um pecador, posso dar-me ao luxo de ceder aos cegos impulsos do coração. Queria poupar-te uma humilhação que não podia deixar de ser-te muito amarga. Logo que a rapariga me repetiu as palavras exactas da Virgem Santíssima, eu percebi quem era a pessoa designada para curá-la da sua enfermidade.
- Ela disse-me que Nossa Senhora me tinha designado.
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- Foi um engano natural numa menina que conhecia as tuas mortificações, a tua virtude e austeridade. A Santíssima Virgem disse-lhe que o poder de curá-la estava nas mãos daquele entre os filhos de teu pai que melhor tem servido a Deus.
- Só há pouco vim a saber disso.
- Não sabes então a quem a Virgem se referia? É claro como água da fonte.
O bispo empalideceu e lançou um olhar ansioso a Domingo.
- Meu mano Martin?
- O padeiro.
Gotas de suor cobraram a fronte do bispo. Estremeceu como se alguém lhe pisasse na sepultura.
- Isso é impossível. Ele é sem dúvida um homem de bem, mas completamemte mundano.
- Impossível, por quê? Porque ele não tem instrução? Um dos mistérios da nossa Fé é que o Senhor, que deu a razão ao homem, elevando-o desse modo acima dos brutos, nunca deu, ao que saibamos, grande valor à inteligência. Teu irmão é um homem bom e simples. Tem sido um marido fiel e um pai amoroso. Tem honrado pai e mãe, dando-lhes de comer quando tinham fome e cuidando deles quando estavam doentes. Aguentou submisso o desprezo do pai e a aflição da mãe porque ele, um fidalgo de nascença, adoptou um ofício que o rebaixava na estima dos tolos. Suportou com bom humor o desdém da nobreza e as zombarias do vulgo. Como nosso pai Adão, ganha o seu pão com o suor do seu rosto, sentindo um modesto desvanecimento em saber que o pão que faz é bom. Aceita com gratidão as alegrias da vida e com resignação
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os seus pêsames. Tem socorrido os necessitados. É um homem de trato ameno e sempre bem disposto. Mostra-se amigo de todos. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis e é bem possível que aos olhos divinos, pela sua vida diligente e honesta, a sua inocente alegria, Martim o padeiro O tenha servido melhor do que tu, que buscas a salvação nas orações e na penitência, ou teu irmão Manuel, que faz glória das mulheres e crianças que trucidou e das cidades prósperas que reduziu a desoladas ruínas.
O bispo passou a mão pesadamente pela testa. O seu rosto tinha uma expressão de angústia.
- Tu conheces-me de mais, Domingo - disse ele em voz trémula - , para julgar que eu me tenha abalançado a fazer aquilo sem um ansioso exame de consciência. Eu sabia ser indigno e a minha alma estava aterrada, mas tomei o sinal que me foi concedido por uma ordem de executar aquilo que eu acreditava ser a vontade do Senhor. Enganei-me. E agora meu irmão Manuel está resolvido a tentar aquilo em cuja realização falhei.
- Já em pequeno ele se fazia notar mais pela força corporal do que pelo vigor do entendimento.
- É tão teimoso quanto errado. Os notáveis da cidade estão a animá-lo na sua pretensão para poderem metê-lo à chacota depois. Conseguiu a aprovação do arcipreste e do prior deste convento.
- Deves impedi-lo a todo o custo.
- Não tenho autoridade para tanto.
- Se teu irmão se obstinar nessa loucura, quererá vingar-se da sua decepção naquela infeliz rapariga. O povo tomará o partido dele e não terá compaixão. Em nome da nossa velha
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amizade, suplico-te que a protejas contra a hostilidade e a cega violência do povo.
- Pela Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor, juro-te que darei a minha vida, se preciso for, para salvar a menina de todo o perigo.
Domingo pôs-se em pé.
- Agradeço-te de todo o coração. Adeus, meu caro. Os nossos caminhos são diferentes e não tornaremos a encontrar-nos. Adeus para sempre.
- Adeus. Oh! Domingo, sou um homem bem infeliz! Ora por mim, pede a Deus em todas as tuas orações que me conceda a graça de livrar-me do cruel fardo desta existência.
Estava tão perturbado e tinha uma expressão tão lastimosa que o velho beberrão se compadeceu dele. Levado por um impulso repentino, abraçou o bispo e beijou-o nas duas faces. O pecador estreitou o santo contra o peito e logo se retirou.


XVIII.

Nessa noite aconteceu um facto muito estranho. A lua cheia, prosseguindo na sua rota predeterminada, tinha um brilho tão deslumbrante que o céu límpido estava azul como o manto de veludo que cobria as vestes brancas da Virgem Maria. Os habitantes de Castel Rodríguez dormiam. De repente, todos os sinos da cidade se puseram a badalar com um clamor capaz de ressuscitar os mortos. Despertou os adormecidos e alguns precipitaram-se para as janelas, enquanto outros, semidespidos, apanhando as suas roupas à passagem, corriam para a rua.
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Esse badalar de sinos a uma hora tão insólita significava que o fogo havia irrompido nalguma parte da cidade e as tímidas donas de casa trataram de reunir os seus objectos de valor, pois quando se declarava um incêndio ninguém podia prever até onde se alastraria, e era de bom aviso pôr a salvo tudo quanto se podia antes que as chamas atingissem a casa. Tomados de pânico, alguns foram ao ponto de atirar as roupas de cama pelas janelas e outros começaram a carregar os móveis para fora, depositando-os diante das suas portas.
Os moradores escoavam-se para as ruas, que ficaram regurgitamtes. Levados por um impulso comum, aglomeraram-se na grande praça que constituía o orgulho do lugar. Cada qual perguntava ao seu vizinho onde era o incêndio. Os homens praguejavam e as mulheres torciam as mãos. Corriam de um lado para outro à procura das casas que ardiam. Erguiam os olhos para o céu, buscando o clarão denunciador que devia assinalar o lugar do sinistro. Não se avistava coisa nenhuma. As pessoas que desembocavam na praça, vindas dos diversos quarteirões da cidade, afirmavam que no seu bairro não havia incêndio. Não havia incêndio em parte alguma. Então, como se um vento houvesse soprado de súbito no meio deles, todos tiveram ao mesmo tempo a ideia de que alguns peraltas se estavam divertindo a bater os sinos para fazer o povo sair da cama e meter-lhe medo. Homens furiosos, decididos a moê-los com pancadas, arremessaram-se para as torres das igrejas. Aguardava-os ali um espectáculo pasmoso. As cordas dos sinos esticavam-se e distendiam-se sem que ninguém as puxasse. Contemplaram-nas por um momento, cheios de assombro; depois, carregando tochas e lanternas, subiram a correr as íngremes escadas das torres. Ao alcançarem os campanários,
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o clamor ensurdeceu-os. Os sinos sacudiam-se de um lado para outro muma furiosa oscilação e os badalos atroavam-lhes nos flancos de bronze. Não havia ninguém ali. Homem algum seria capaz de tirar tão violento estrépito daqueles pesados sinos. Dir-se-ia que estes haviam enlouquecido de repente. Tangiam sozinhos.
Anelantes, com o terror nos corações, despenhando-se pelas escadas como se levassem o Diabo nos calcanhares, correram para as ruas e, com palavras doidas e gestos desvairados, contaram o que tinham visto.
Tratava-se de um milagre. Era o Senhor que fazia tanger os sinos, e ninguém sabia se aquilo augurava bem ou mal à cidade. Muitos caíram de joelhos e oraram em altas vozes. Pecadores lembraram-se dos seus pecados e pensaram na cólera divina que os aguardava. Os curas mandaram abrir as portas das igrejas e a multidão invadiu-as, acompanhamdo os padres nas suas preces, em que se suplicava ao Altíssimo piedade para as suas criaturas. Só ao cabo de muito tempo recobraram o sossego e voltaram, silenciosos e mais calmos, para as suas casas.


XIX.

Ninguém sabia onde aquilo tinha começado, se a ideia ocorrera a uma pessoa de grande imaginação ou se fora concebida independentemente por muitas,. Era como a cólera; não se sabe se a trouxe para a cidade um forasteiro vindo de terras estranhas ou se foi um vento funesto que disseminou a doença. Um homem adoece aqui, acolá morre uma mulher, e quando
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despertamos para a consciência do perigo já a epidemia grassa por todas as ruas da cidade e os coveiros não podem cavar sepulturas com a necessária rapidez para enterrar todos os mortos. Ainda pela manhã, espalhara-se pela população de Castel Rodríguez a convicção de que a misteriosa ocorrência da noite anterior tinha uma relação qualquer com o aparecimento da Santa Virgem a Caitalina Pérez. Não se falava de outra coisa. Magistrados discutiam o assunto nas suas câmaras de conselho, sacerdotes nas suas sacristias e nobres nos seus palácios. O povo nas ruas, as donas de casa no mercado e os artífices nas suas oficinas falavam dele, cheios de perplexidade. Os monges nos seus mosteiros e as freiras nos seus conventos não podiam concentrar-se nas suas orações.
Dentro em pouco chegou-se à conclusão de que não podia haver dúvidas quanto à pessoa designada pelas palavras enigmáticas da Santíssima Virgem. Não eram poucos, sobretudo entre o clero secular, os que indagavam se Deus não estaria descontente com a excessiva austeridade do bispo e se um certo elemento de arrogância que havia na sua humildade não incorreria na verdade na reprovação divina. Mas em Dom Manuel de Valero não havia nódoa nem pecha de qualquer sorte. Ele tinha dedicado os melhores anos da sua vida ao serviço do Senhor e de el-Rei. Ao conferir-lhe assinaladas honrarias, Sua Majestade, vice-regente do Todo-Poderoso na terra, apusera o selo da sua aprovação ao valor e à virtude de Don Manuel. Tornara-se manifesto a todos, clérigos e leigos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, que Don Manuel era o homem escolhido para realizar o milagre que a vontade divina ordenara. Uma deputação de eclesiásticos eminentes, membros da aristocracia e pessoas de autoridade no
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conselho municipal, foi visitá-lo para lhe comunicar a sua aprovação unânime. Don Manuel, à sua maneira rude de soldado, respondeu-lhes que estava pronto para colocar-se à sua disposição. Ficou resolvido que a cerimónia se realizaria no da seguinte, na igreja da colegiada. Don Manuel pediu ao arcipreste que o recebesse em confissão naquela tarde e, como pretendia comungar pela manhã, o que só podia fazer em jejum, mandou suspender a ceia que ia oferecer aos seus amigos durante a noite. Era um homem consciencioso e estava decidido a não omitir nada que pudesse tornar a sua intervenção eficaz em ocasião tão solene. Três vezes armado está aquele que, absolvido dos seus pecados e livre de toda a culpa, deposita a sua confiança em Deus.
O prior do convento dominicano informou pessoalmente o bispo da resolução tomada, convidando-o ao mesmo tempo para chefiar os monges que iriam em procissão assistir à cerimónia. Don Blasco percebeu a malícia encoberta sob o oferecimento do prior mas aceitou gravemente, agradecendo-lhe a honra. Não sabia o que fazer. Não ligava importância ao que lhe tinha dito Domingo sobre o seu irmão Martin; conhecia demasiado o gosto de Domingo a quezilar o próximo e o prazer que tinha em defender ideias paradoxais; mas, com tudo isso, tinha a firme convicção de que Don Manuel não era o homem indicado para realizar um milagre. Fugiria de bom grado à obrigação de assistir à sua confusão, mas sabia que se recusasse ir isto seria atribuído ao despeito. Não ficava bem ao seu alto cargo dar aos espíritos maldosos um ensejo de pensar mal dele. Além disso, tinha ainda de cumprir a promessa que fizera a Domingo. Conhecia bem a insensatez e a brutalidade da multidão, quer a constituísse gente bem ou mal nascida,
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e era bem provável que, vendo-se decepcionados na sua esperança de um portento, tirassem vingança na infortunada moça. Achando-se presente, ele poderia salvá-la de tal vandalismo. No da seguinte, pois, com o coração opresso, acompanhado dos seus dois fiéis secretários, dirigiu-se do convento para a igreja à testa dos monges. A igreja achava-se repleta de gente até às portas e contudo o povo, ávido de ver um milagre realizar-se diante dos seus olhos, continuava a fazer força para entrar. Abriram passagem e o bispo, seguido pelos frades, adiantou-se vagarosamente pela nave. Sentou-se numa grande cadeira colocada ao lado e um pouco para a frente do altar-mor. O coro estava cheio de notabilidades locais. Momentos depois Don Manuel entrou com uma comitiva de cavalheiros e sentou-se numa cadeira reservada para ele no outro lado do altar. Vestia uma armadura de parada, o peitoral damasquinado de ouro, e envergava o grande manto da Ordem de Calatrava com a sua cruz verde. Os nobres;, no coro, tinham posto os seus trajes mais sumptuosos. Palestravam e riam, trocando acenos de cabeça e sorrisos entre si. Na nave, a multidão conversava alto e as pessoas chamavam-se umas às outras como se estivessem numa tourada. O bispo observava-os, indignado. Aquilo era um desacato à religião. Estava já disposto a levantar-se e vituperar-lhes aquela irreverente leviandade.
Ao pé dos degraus, apoiando-se na muleta, estava ajoelhada Cattalina.
Ouviram-se os primeiros acordes de um improviso ao órgão, e as floridas notas desceram a bailar jovialmente por sobre as cabeças da congregação. A igreja era de uma arquitectura vasta e simples, mas os sucessivos chefes da grande
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casa de Henríquez tinham-na adornado com um tecto de madeira pintada em estilo "plateresco", encaixando os retábulos em maciças molduras douradas e vestindo as imagens com mantos magnificentes. Os assentos do coro eram lavrados a primor. Nas capelas achavam-se os túmulos - os mais antigos de pedra, austeros e frios, os mais recentes de mármore ricamente esculpido - em que descansavam os restos mortais dos defuntos duques e das suas esposas. Uma luz fosca filtrava-se pelos vitrais e a atmosfera estava pesada de incenso.
Chegaram os sacerdotes, envergando os sumptuosos paramentos que eram usados em tais ocasiões e que tinham sido doados à igreja por damas nobres e devotas. O subdiácono segurava o cálice e a patena, envoltos no véu. A missa foi cantada. Um tremor respeitoso percorreu o vasto concurso de gente, que caiu de joelhos ao ouvir o tinido argentino da campainha que anunciava a elevação da Hóstia e do Cálice. O celebrante, que era o arcipreste, participou da Santa Comunhão e administrou-a sucessivamente a Don Manuel e a Catalina. Tinha chegado afinal o momento que a multidão aguardava com tamanha impaciência. Elevou-se dela um estranho som, que não era um som de vozes nem propriamente um ruído de movimentos ansiosos, mas parecia antes o suspirar do vento nos pinheirais, como se a expectativa da multidão se houvesse tornado audível.
Don Manuel pôs-se em pé e adiantou-se a passos largos para a jovem ajoelhada. Com a sua armadura, o grande manto da ordem a pender dos ombros, formava ele uma figura imponente e magnífica. A cena e a ocasião revestiam-no de uma dignidade desacostumada. Tinha confiança no seu poder. Pousou a mão na cabeça da jovem e, em voz alta, como se
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desse ordem de carregar ao seu regimento, de maneira que foi ouvido com clareza nos mais afastados recantos da igreja, repetiu as palavras que lhe tinham dado para pronunciar:
- Em nome de Deus Padre, Filho e Espírito Santo, ordeno a ti, Catalina Pérez, que te levantes, lances fora essa inútil muleta e caminhes.
A jovem assustada e como que enfeitiçada pela solenidade da ocasião, pôs-se em pé com dificuldade e largou a muleta. Deu um passo à frente e, com um grito de terror, caiu estendida no chão. O milagre falhara mais uma vez.
Levantou-se então uma grande algazarra e dir-se-ia que uma loucura súbita se apoderara da multidão. Homens bradavam, mulheres proferiam gritos agudos. Berravam de fúria.
- Bruxa! Bruxa! À fogueira! À fogueira! Queimem-na!
Arrastados por um impulso repentino, avançaram na direcção do santuário, dispostos a linchar a moça. No seu arrebatamento, arredavam-se uns aos outros do caminho. Alguns caíram e foram brutalmente espezinhados. Os gritos de desespero acresciam o tumulto geral.
O bispo pôs-se em pé de um salto e, com um rápido movimento circular, atravessou o santuário até fazer frente à multidão desvairada. Ergueu os braços acima da cabeça e os seus grandes olhos escuros chamejavam.
- Para trás! para trás! - gritou numa voz de trovão. - Quem sois vós para profanar este lugar? Para trás, digo-vos eu, para trás!
Tão terrificante era o seu aspecto que uma exclamação de horror partiu de todas as gargantas. A multidão estacou de súbito, como se um grande abismo se tivesse aberto diante
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dela. Recuaram. Por um momento o bispo considerou-os com os olhos negros de indignação.
- Vergonha! Vergonha! - gritou ele e, cerrando os punhos, atirou os braços para a frente como se quisesse fulminá-los com o raio da sua cólera. - Ajoelhai, ajoelhai e pedi que vos seja perdoado o insulto que fizestes à casa do Senhor.
A estas palavras, dominados pela força da sua autoridade, muitos caíram de joelhos a soluçar. Outros, como se o atordoamento os paralisasse, ficaram imóveis a contemplar boquiabertos aquela terrível figura. Lentamente, o bispo correu os olhos de um lado para o outro até abranger toda a vasta multidão, e cada um teve a impressão de que esses olhos irados se fixaram particularmente nele. Fez-se silêncio, só cortado pelos soluços histéricos de uma mulher aqui e além.
- Escutai - disse finalmente o bispo. - Escutai o que eu digo. - A sua voz não era já ameaçadora, mas grave, severa e autoritária. - Ouvi. Conheceis as palavras que Nossa Senhora dirigiu a Catalina Pérez e conheceis também os portentos que ocorreram nesta cidade, provocando a confusão e a inquietude nos vossos espíritos. A Santíssima Virgem disse a esta menina que o filho de Dom Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la da sua enfermidade. No nosso condenável orgulho e vaidade, eu que vos falo e meu irmão Don Manuel tivemos a temeridade de julgar que um de nós era a pessoa designada. Fomos amargamente punidos pela nossa presunção. Mas Don Juan de Valero ainda tem outro filho.
A multidão interrompeu-o com risos e vozearia.
- "El panadero"! - gritavam.
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Puseram-se a cantar em tom escarninho, dentro de uma espécie de cadência rude:
- "El panadero, el panadero..."
- Silêncio! - gritou o bispo.
As pessoas da multidão fizeram calar umas às outras.
- Ride! Qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso dos tolos. Que exige Deus de vós senão que sejais justos, ameis a clemência e andeis humildemente nos caminhos do Senhor? Hipócritas e blasfemadores! Impuros! Vergonha, vergonha, vergonha!
Repetiu esta palavra com um tom de desdém cada vez mais pungente, e os que o ouviam recuaram como recuaria um homem a cuja face fosse atirado um copo de água gelada. Era terrível de ver-se a cólera do prelado. Percorreu a multidão com um olhar de causticamte desprezo.
- Estão presentes os familiares do Santo Ofício?
Um som estranho, semelhante a um suspiro de susto, percorreu a multidão, como se todos ao mesmo tempo houvessem sustido o fôlego, pois esses instrumentos da Inquisição provocavam o terror no seio do povo. Ignoravam o significado dessas palavras sinistras e cada qual se pôs a tremer como varas verdes. Vários homens aprumaram-se atrás do Bispo.
- Que se apresentem - disse este.
Como os familiares do Santo Ofício dispunham de poder, influência e sobretudo isenção dos seus terríveis inquéritos, era um cargo muito procurado por homens da mais alta categoria. Havia oito em Castel Rodríguez. Fez-se um silêncio momentâneo,
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enquanto eles se erguiam dos seus assentos e tomavam posição atrás do bispo. Este aguardou até sentir, pelo silenciar dos pés, que todos eles se achavam por trás de si.
- Escutai - disse novamente. O indicador da sua mão estendida parecia acusar cada uma das apavoradas criaturas. - O Santo Ofício nunca procede às pressas nem impelido pela cólera. Faz justiça aos culpados, mas é clemente com o pecador arrependido.
Fez uma pausa, e o silêncio foi medonho.
- Não é a vós, raça de víboras, que compete lançar a mão a esta infeliz menina. Se ela foi iludida ou está possuída de um demónio, é ao Santo Ofício que cumpre tomar conhecimento do facto. Se ela se sair mal na prova, os familiares estão aqui para entregá-la ao tribunal. Mas a prova não se completou ainda. Onde está Martim de Valero?
- Aqui, aqui! - gritaram várias vozes.
- Que ele se apresente.
- Não, não, não!
Era a voz de Martin, o padeiro, que protestava.
- Se ele não vier por sua livre vontade, tragam-no à força - disse rispidamente o bispo.
Houve um arrastar de pés enquanto Martin forcejava com os homens que procuravam arrastá-lo aos puxões e repelões, mas volvidos alguns instantes a multidão abriu alas e ele foi trazido até aos degraus do altar. Os homens voltaram aos seus lugares e deixaram-no consigo mesmo. Viera da oficina ver o milagre de que todos falavam, e estava com a sua roupa de trabalho. Tinha o rosto vermelho do calor dos fornos e pelo vão esforço de escapar às rudes mãos que o arrastavam. O da estava quente e gotas de suor brotavam-lhe da testa. O seu rosto gorducho e bem-humorado estava pesado de consternação.
- Vem - disse o bispo.
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Como que impelido por uma força a que não pudesse resistir, o padeiro subiu os degraus do santuário.
- Mano, mano, a que me queres obrigar? - exclamou ele. - Como poderei eu fazer aquilo que tu não pudeste? Não sou mais do que um homem de trabalho e não sou melhor cristão do que o meu próximo.
- Silêncio!
O bispo não cria em absoluto que o padeiro fosse capaz de realizar um milagre e só pensara nele sob a inspiração do momento, como único meio de salvar Catalina da fúria do populacho. Desejava uma pequena trégua que lhe permitisse apaziguá-los. Sabia que a menina já não correria perigo. Ali estavam os familiares para protegê-la e, como não houvesse cárcere da Inquisição na cidade, conduzi-la-iam para um convento a uma ordem sua e sobraria então tempo para reflectir sobre o que cumpria fazer em seguida. O bispo dirigiu-se mais uma vez ao povo reverente:
- Porventura não "tem o oleiro poder sobre a argila, poder de fazer com o mesmo bloco um vaso de honra e outro de desonra? Deus não faz acepção de pessoas. Aquele que se humilha será exaltado e os soberbos serão humilhados. Tragam a menina.
Catalina jazia no mesmo lugar em que tombara, com o rosto oculto nos braços e o pequeno corpo sacudido de soluços. Ninguém lhe prestava mais atenção do que se ela fosse um cão morto à beira da estrada. Dois familiares puseram-na em pé e colocaram-na em face do bispo. Com a muleta debaixo do braço, ela juntou como melhor pôde as mãos num gesto de súplica. As lágrimas corriam-lhe pdas faces.
- Oh! senhor bispo, senhor bispo, tenha compaixão de
mim! Não tente de novo, suplico-lhe, tudo é inútil! Deixe-me voltar para junto de minha mãe!
- Ajoelha-te - ordenou ele. - Ajoelha-te.
Com um soluço desesperado, a criança deixou-se cair de joelhos.
- Pousa-lhe a mão na cabeça - disse o bispo ao irmão.
- Não posso... Não o farei... Tenho medo!
- Sob pena de excomunhão, ordeno-te que faças o que te digo - tornou o bispo asperamente.
O infeliz foi tomado de um tremor, pois sabia que o irmão não hesitaria em pôr em efeito a sua pavorosa ameaça. Pousou timidamente a mão trémula na cabeça da jovem. Essa mão nem sequer estava limpa.
- Dize agora as palavras que ouviste a teu irmão Manuel pronunciar.
- Não me lembro delas...
- Vou dizê-las, então, e tu as repetirás: "Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero"...
Martin repetiu:
- Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero...
O bispo pronunciou as últimas palavras fatídicas em voz forte e sonora, mas o irmão repetiu-as num tom apenas perceptível. Catallina pôs-se em pé como lhe ordenavam e, com um gesto desesperado, atirou para longe a muleta. Por um instante vacilou, mas não caiu. Ficou em pé. Então, deixando escapar um grito e um soluço, olvidada do lugar e da ocasião, virou-se e desceu a correr os degraus do santuário.
- Mãe, mãe!
Maria Pérez, que estava com Domingo na igreja, delirante de alegria, abriu caminho por entre a multidão e correu ao
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encontro dela. Catalina atirou-se-lhe aos braços e desatou a chorar.
Por um instante a densa multidão ficou tão aturdida que não pôde mover-se. Contemplavam a cena boquiabertos. Formou-se então tal algazarra como jamais se ouviu outra igual.
- Milagre! Milagre!
Gritavam, batiam palmas, mulheres acenavam com os lenços. Os homens gritavam "olé, olé", como faziam nas touradas, quando um dos toureiros executava um passe perigoso; atiravam os chapéus para cima como costumavam atirá-los aos pés do matador de espada quando, seguido da sua "quadrilha", ele dava volta à arena para receber os aplausos do público. Acima do tumulto elevava-se a voz estridente de alguma mulher a entoar aqui e ali, ao compasso de uma estranha melodia semimourisca, um hino à Virgem Santíssima. Dir-se-ia que a balbúrdia não terminaria mais. Desconhecidos abraçavam-se. Homens e mulheres choravam de alegria. Tinham visto um milagre com os seus próprios olhos.
De repente fez-se um silêncio no meio daquela doida confusão e todos os olhos se voltaram para o bispo. Martin, o tímido, mal atinando com o que havia sucedido, recuara modestamente para o fundo e o dominicano ficara sozinho no alto dos degraus do santuário, com as costas viradas para o altar-mor. Emaciado, mas alto e erecto, envolto no seu hábito remendado e puído, formava uma figura imponente. O maravilhoso, porém, é que ele estava banhado em luz. Não era uma simples auréola a cercar-lhe a cabeça, mas um resplendor que parecia vesti-lo da cabeça aos pés.
- Um santo! Um santo! - clamou o povo, com os olhos cravados no estranho e sensacional espectáculo. - Bendita seja
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aquela que te pôs no mundo! - gritavam. - Agora permites que o Teu servo se retire em paz. Oh, ditoso, ditoso dia!
Falavam às tontas, sem saber o que diziam. Estavam desvairados de alegria, amor e medo. Somente Domingo notou que um dos vitrais tinha um caixilho quebrado e, por uma feliz coincidência, um raio de sol passava pela abertura, incidindo no bispo e banhando-o em glória.
O bispo alçou a mão exigindo silêncio e imediatamente a grande algazarra cessou. Ficou um instante a contemplar, com uma expressão triste e severa, aquele mar de rostos que tinha diante de si. Depois, levantando a cabeça, os trágicos olhos cheios de arrebatamento, como se com os olhos do espírito avistasse as hostes celestiais, começou a recitar o Credo de Niceia em voz lenta e solene. As palavras eram familiares a todos os presentes, que as ouviam todos os domingos na missa; e, num zumbido abafado que se assemelhava a um longínquo arrastar de pés, puseram-se a repetir os artigos de fé um após outro. O bispo terminou a recitação do Credo, virou-se e caminhou para o altar-mor. O halo de luz desaparecera. Levantando os olhos para o vitral, Domingo viu que o sol tinha continuado a sua inexorável viagem através do céu e já nenhum raio de luz penetrava pelo vidro quebrado. O bispo prosternou-se diante do altar e deu graças ao Senhor numa oração muda. O seu torturado coração fora aliviado de um grande peso, pois compreendera, sem sombra de dúvida, que, embora tivesse sido Martin quem pousara a mão na cabeça da jovem paralítica, seu irmão não tinha passado de um instrumento de que aprouvera a Deus lançar mão a fim de que ele, Blasco de Valero, obrasse um milagre para Sua eterna glória. Era ademais um sinal, seguro e indubitável, de que o Senhor lhe perdoava
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o grave pecado que cometera ao permitir, num momento de fraqueza, que o grego fosse garroteado antes de o queimarem. Deus, que vê todas as coisas passadas, presentes e futuras, conhecia o duro coração do descrente e por ísho o tinha condenado à morte eterna. Estava bem lamentar os réprobos nos seus tormentos, mas mostrar-se descontente era impugnar a justiça divina.
O bispo pôs-se em pé e retirou-se lentamente do santuário. Caminhava como que em sonho. Os dois religiosos, seus amigos e secretários, perceberam-lhe a intenção e seguiram-no. Vendo isso, o prior fez um sinal aos seus frades para que o seguissem também e pôs-se a caminhar atrás deles. O bispo deteve-se ao alcançar os degraus.
- Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Padre e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Desceu. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e aos religiosos que o acompanhavam. Os frades entoaram o "Te Deum Laudamus". As vozes fortes e profundas ecoaram por toda a igreja. Como que transportado em êxtase, o bispo passou por entre a multidão ajoelhada, dando a sua bênção ao povo enquanto se dirigia para a saída. Não notou o olhar irónico de Domingo.
Nesse momento os sinos começaram a soar no campanário, e dentro em pouco todos os sinos da cidade badalavam. Não havia nisso, porém, nenhuma intervenção sobrenatural. Don Manuel, como o bom soldado que era, tinha atendido a todos os pormenores e tomara disposições para que, ao serem tangidos os sinos da colegiada em celebração do milagre que
ele estava certo de realizar, todos os sinos das demais igrejas se pusessem a bater também.
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As enormes portas abriram-se de par em par à aproximação do bispo e este saiu para o sol deslumbrante do dia de Agosto. A multidão lançou-se em pós dele e seguiu a procissão de frades até estes chegarem ao convento. Ia o bispo entrar quando uma grande gritaria se levantou da turba. Queriam que ele falasse. Junto à parede do convento havia um púlpito, usado quando a cidade era visitada por algum pregador tão famoso que a igreja do convento não podia comportar a vasta congregação desejosa de ouvi-lo. O prior adiantou-se, transmitindo ao bispo o desejo do povo, rogou-lhe que acedesse. Don Blasco correu os olhos em volta de si, como se ignorasse onde estava. Dir-se-ia que até então não se apercebera das devotas e ansiosas criaturas que lhe seguiam os passos. Deteve-se um instante para reunir as ideias e, sem uma palavra, subiu ao púlpito.
Tinha uma voz magnífica, de tom rico, com uma infinita variedade de inflexão. Começou a falar.
- Ninguém pode sondar as profundezas do coração humano, nem perceber as coisas que ele pensa: como encontrar então a Deus, que criou todas essas coisas-, e conhecer-Lhe o pensamento ou compreender os Seus desígnios?
Os gestos do bispo eram vigorosos e expressivos. A sua voz alcançava os últimos confins da cerrada multidão, e quando ele a baixava num tom compassivo, tal era a beleza da sua dicção que nenhuma das suas palavras deixava de ser ouvida. Quando, numa investida apaixonada contra os pecados humanos, ele a erguia, em todo o seu esplendor, era como o trovão a rolar nas desoladas serras. Fazia de súbito uma pausa,
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e o silêncio no meio daquela torrente de eloquência semelhava o estridor do Juízo Final. O povo encolheu-se confrangido quando ele lhes lembrou a brevidade da existência, os acidentes que perseguem os filhos de Adão desde o berço até à sepultura, a transitoriedade dos seus prazeres, a angústia dos seus sofrimentos; tremeram quando ele lhes pintou os horrores do Inferno e as intermináveis torturas dos réprobos; e choraram quando, com a voz apagada de ternura, ele descreveu com inflexões extáticas a comunhão dos santos e as eternas alegrias do Paraíso. Muitos arrependeram-se dos seus pecados e regeneraram-se desse dia em diante. O bispo terminou por uma grande peroração em louvor da Santíssima Virgem e para glória do Senhor. Jamais tinha falado com mais ardente e patética eloquência.
Quando o conduziram à sua cela, estava tão alquebrado que se deixou deitar na cama dura pelos seus dois fiéis assistentes. Sentia-se devastado pela emoção e pela fadiga.

XX.

Nessa noite houve grande regozijo na cidade. Os taberneiros não tinham mãos a medir. A multidão passeava em redor da praça, palrando sobre o portentoso acontecimento daquele dia. Ninguém duvidava de que tivesse sido o santo bispo o realizador do milagre e todos admiravam a sua modéstia em usar o irmão padeiro como instrumento do seu poder. Ensinara-lhes, assim, que na verdade os humildes devem ser exaltados e os soberbos devem ser humilhados. Muitos
afirmavam tê-lo visto elevar-se no ar - a dois pés do chão, segundo alguns, a quatro, segundo outros - e permanecer suspenso dessa forma, rodeado de glória.


C O N T I N U A

Catalina - o cenário desta história é a Espanha do reinado de Filipe III, a trágica Espanha da Inquisição.
Catalina, jovem de dezasseis anos, aleijada de uma perna, está orando ardentemente pela sua cura quando lhe aparece a Virgem Maria.
Qual dos três filhos de Valero melhor servia a Deus? Em páginas repletas de emoção, o leitor verá quem, afinal, realiza o milagre, assim como assistirá a todo o restante e apaixonante entrecho deste romance cheio de contrastes humanos.

 


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I.

Era um grande dia para a cidade de Castel Rodríguez. Já ao amanhecer os habitantes estavam de pé, com as suas melhores roupas. Nos balcões dos velhos e severos palácios dos nobres ostemtavam-se ricos estofos e os galhardetes batiam indolentemente de encontro às hastes. Era a festa da Assunção, dia 15 de Agosro, e o sol escaldava num céu sem nuvens. Sentia-se um alvoroço no ar, pois nesse dia, após muitos anos de ausência,, chegavam duas pessoas eminemtes, naturais da cidade, e grandes festividades tinham sido preparadas em sua honra. Uma delas era Frei Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, e a outra seu irmão Don Manuel, capitão de nomeada nas forças d'El-Rei. Haverá um "Te Deum" na colegiada, banquete na municipalidade, touradas e fogo preso quando anoitecesse. À medida que se adiantava a manhã, um número cada vez maior de pessoas tomava o caminho da Plaza Mayor. Formou-se ali o cortejo que ia esperar os ilustres viajantes a certa distância da cidade. Encabeçavam-no as autoridades civis, vindo
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depois os dignitários da Igreja e, por fim, uma série de pessoas gradas. A multidão abriu alas nas ruas para vê-los passar,, depois colocou-se em ordem para esperar a emtrada dos dois irmãos na cidade, seguidos desses importamtes personagens, no momento em que os sinos de todas as igrejas se punham a repicar em sinal de boas-vindas.
Na capela da Virgem da igreja anexa ao convento das freiras carmelitas, uma jovem aleijada estava a rezar. Fazia-o com devoção apaixonada, diante da imagem da Santíssima Virgem. Ao erguer-se, afinal, ajeitou melhor a muleta debaixo do braço e saiu da igreja. Lá dentro estava fresco e escuro, e aquela claridade súbita do dia quente e abafado ofuscou-a por um momento. Deteve-se a olhar a praça vazia, em baixo. As casas tinham os postigos fechados para não deixar entrar o calor. Reinava ali um grande silêncio. Todos tinham ido ver os festejos e não ficara um cão sem dono para latir. Dir-se-ia uma cidade morta. A jovem olhou para a sua própria casa, um pequeno prédio de dois andares comprimido entre os seus vizinhos, e suspirou desalentada. A sua mãe e seu tío Domingo, que vivia com elas, tinham ido com os demais e só voltavam depois das touradas. Sentia-se muito só e muito infeliz. Como não tivesse ânimo de ir para casa, sentou-se no último degrau da escadaria que descia da porta da igreja à praça e largou a muleta no chão. Pôs-se a chorar. De repente, assoberbada pela mágoa, prostrou-se no patamar de pedra e, mergulhando o rosto nos braços, soluçou como se o seu coração estivesse a ponto de despedaçar-se. O seu movimento brusco dera um impulso à muleta, que caiu com ruído pelos degraus estreitos e íngremes, até em baixo. Era o cúmulo do infortúnio: teria que descer de rastos ou deixar-se escorregar pela escada a fim de ir buscá-la, já que a sua perna paralítica não lhe permitia caminhar sem a muleta. Chorou desconsoladamemte.
De súbito ouviu uma voz.
- Porque choras, minha filha?
Virou-se surpreendida, pois não ouvira ninguém aproximar-se. Viu uma mulher em pé atrás de si. Parecia ter saído da igreja, mas ela própria o fizera naquele momento e lá dento não estava ninguém. A mulher vestia um longo mamto azul, que lhe ia até aos pés, e enquanto Catalina a olhava, afastou o capuz que lhe cobria a cabeça. Devia ter saído da igreja, com efeito, pois para as mulheres era um pecado entrar na casa do Senhor com a cabeça descobertta. Era bastante alta para uma espanhola e moça, tendo a pele do rosto suave e macia, sem rugas por baixo dos olhos escuros. Usava um penteado muito simples, com o cabelo repartido no meio e apanhado num coque frouxo sobre a nuca. Possuía feições pequenas, delicadas, e um olhar bondoso. A jovem paralítica não saberia dizer se se tratava de uma camponesa - esposa, talvez, de algum chacareiro das imediações - ou de uma dama. Tinha certa singeleza de aspecto, e ao mesmo tempo uma dignidade um tanto intimidativa. O comprido manto escondia-lhe as roupas, mas quando ela tirou o capuz a rapariga vislumbrou qualquer coisa branca e deduziu que tal devia ser a cor do seu vestido.
- Enxuga as lágrimas, minha filha, e dize-me o teu nome.
- Catalina.
- Por que vens sentar-te aqui sozinha, a chorar, quando toda a gente foi ver a recepção do bispo e de seu mano, o capitão?
- Sou aleijada e não posso ir longe, senhora. Além disso, que iria fazer no meio de toda essa gente sã e feliz?
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A desconhecida estava atrás de Catalina e esta tivera de virar-se para lhe falar. Relanceou os olhos para a porta da igreja.
- De onde veio, Senhora? Não a vi na igreja.
A desconhecida sorriu. Era um sorriso tão meigo que todo o amargor pareceu dissipar-se no coração da rapariga.
- Pois eu vi-te, minha filha:. Estavas a rezar.
- Estava pedindo à Virgem que me curasse, como venho fazendo noite, e dia desde que fiquei inválida.
- E pensas que ela tem o poder de fazê-lo?
- Se ela quiser...
A senhora tinha uns modos tão doces e tão afectuosos que Catalina sentiu-se impelida a contarnlhe a sua triste história. Aquilo sucedera quando estavam trazendo os novilhos para as touradas da Páscoa e toda a população da cidade se reunira para vê-los chegar, sob a orientação segura dos dois padrinhos. À frente ia um grupo de jovens fidalgos, cujos cavalos curveteavam. De repente, um dos animais escapou-se e enveredou por uma viela. Formou-se um pânico e a multidão espalhou-se para todos os lados. Um homem foi atropelado pelo touro-, que tornou a investir para a frente. Catalina, que corria tão depressa quanto podia, escorregou e caiu no momento em que o amimal ia alcançá-la. Soltou um grito e perdeu os sentidos. Ao voltar a si, disseram-lhe que o touro a tinha pisado na sua doida arremetida, mas continuara a correr impetuosamente. Ela sofrera contusões mas não fora ferida. Disseram-lhe que havia de sarar em pouco tempo, mas um ou dois dias depois, Catalina queixou-se de não poder mexer a perna. Os médicos examinaram o membro e encontraram-no paralisado. Picaram-no com agulhas: Catalina não sentia nada. Sangraram-na, purgaram-na e deram-lhe poções nauseabundas para tomar, mas tudo foi inútil. A perna estava como morta.
- Mas ainda tens o uso das mãos - disse a senhora...
- Graças a Deus, pois se não fosse isso nós morríamos de fome. A senhora perguntou-me porque estava eu a chorar. Eu choro porque, com o uso da perna, perdi também a afeição do meu amado.
- Ele não te podia ter grande amor, se te abandonou na tua desgraça.
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- Amava-me de todo o coração, e eu amo-o mais do que à minha própria alma. Mas nós somos pobres, senhora. Ele é Diego Martínez, o filho do alfaiate, e segue a profissão do pai. Íamos casar quando ele tivesse terminado o aprendizado, mas um homem pobre não pode dar-se ao luxo de desposar uma mulher incapaz de fazer frente às outras mulheres no mercado ou de subir e descer as escadas para dar conta dos trabalhos caseiros. Depois, os homens são sempre homens. Um homem não pode querer uma mulher aleijada. Pedro Álvarez ofereceu-lhe a sua filha Francisca. É feia como o pecado, mas Pedro Álvarez é rico, e assim como poderia ele recusar?
Catalina pôs-se de novo a chorar. A dama considerou-a com um sorriso de compaixão. De repente, ouviu-se ao longe um rufar de tambores e um clangor de trombetas e todos os sinos se puseram a badalar simultaneamente.
- Entraram na cidade: o bispo e seu irmão, o capitão - disse Catalina. - Como se explica, que esteja aqui em lugar de ir vê-los passar, senhora?
- Não me deu vontade de ir.
Isto pareceu tão esquisito a Catalina que lançou um olhar desconfiado à desconhecida.
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- Não mora na cidade, senhora?
- Não.
- Estranhei não a ter visto antes. Creio que não há aqui ninguém a quem eu não conheça:, pelo menos de vista.
A dama não respondeu. Catalina ficou intrigada e olhou-a com mais atenção por baixo dos cílios. Não era crível que fosse moura, pois não tinha a pele bastante escura para isso, mas era bem possível que pertencesse aos cristãos-novos, isto é, a esses judeus que tinham preferido o baptismo à expulsão do país. Mas, como todos sabiam, continuavam a observar em segredo os ritos judaicos, lavando as mãos antes e depois das refeições, jejuando no Dia da Expiação e comendo carne às sextas-feiras. A Inquisição não dormia e, quer se tratasse de mouros baptizados ou de judeus conversos, era perigoso ter quaisquer relações com eles. Havia sempre o risco de caírem nas mãos do Santo Ofício e, submetidos à tortura, incriminarem inocentes. catalina perguntou consigo, ansiosa, se não teria dito alguma coisa que pudesse motivar uma acusação, pois na Espanha daqueles tempos toda a gente vivia no terror do Santo Ofício e uma palavra impensada, um gracejo, podiam constituir motivo suficiente para a prisão, e uma vez no cárcere passavam-se semanas, meses e até anos antes que se conseguisse provar a sua inocência. Catalina achou bom afastar-se dali o quanto antes.
- São horas de ir para casa, senhora - disse ela; e, com a polidez que lhe era natural, acrescentou: - Assim, se me permite, vou deixá-la.
Relanceou os olhos para a muleta, que caíra lá em baixo. Teria a coragem de pedir à senhora que a fosse buscar? Mas esta não prestou atenção no que ela dissera.
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- Não gostaria de recobrar o uso das suas pernas, minha filha,, para poder andar e correr como se nunca houvesse estado doente? - perguntou ela.
Catalina ficou branca. Essa pergunta deixava patente a verdade. A desconhecida não era cristã-nova e sim uma moura, pois ninguém ignorava que os mouros, cristãos apenas no nome, tinham pacto com o demónio e por meio das artes mágicas podiam obrar toda a sorte de malefícios. Não fazia muito que uma pestilência assolara a cidade, e os mouros, acusados de serem os seus causamtes, confessaram-se culpados no cavalete e acabaram morrendo na fogueira. Catalina sentiu tamanho terror que ficou impossibilitada por um momento de falar.
- Então, minha filha?
- Eu daria tudo que tenho no mundo - e não é nada - para me ver livre da minha enfermidade, mas ainda que fosse para recuperar o amor do meu Diego não faria nada que pusesse em perigo a minha alma Imortal ou que constituísse uma ofensa à Santa Madre Igreja.
E, enquanto falava, persignou-se sem tirar os olhos da desconhecida.
- Então eu te direi como podes curar-te. O filho de Juan Suárez de Vataro que melhor tem servido a Deus tem o poder de fazê-lo. Ele te imporá as mãos em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, mandar-te-á atirar fora a muleta e andar. E tu atirarás fora a muleta e andarás.
Não era isto, em absoluto, o que Catalina esperava. O que a senhora dizia era surpreendente, mas falava com tanta calma e segurança que a moça ficou impressionada. Duvidando e esperando ao mesmo tempo, encarava fixamente a misteriosa desconhecida. Necessitava de um momento para tornar a si
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do seu espanto, antes de fazer as perguntas que já iam tomando forma no seu espírito. Mas de súbito os olhos de Catalina quase lhe saltaram das órbitas e a sua boca escancarou-se de assombro, pois no lugar onde estava a senhora já não se via mais nada. Não podia ter entrado na igreja, porquanto Catalina não tirara os olhos dela., nem podia ter-se movido: desvanecera-se no ar, simplesmente. A jovem soltou um grande grito e novas lágrimas, mais lágrimas de outra espécie, correram-lhe em torrente pelas faces.
- Era a Santíssima Virgem! - gritou. - Era a Rainha dos Céus, e eu falei-lhe como teria falado a minha mãe. Era Maria Santíssima, e eu tomei-a por uma moura ou uma judia conversa!
Tal era a sua emoção que sentiu a necessidade urgente de contar aquilo a alguém. Sem reflectir, deixou-se escorregar sobre as costas pela escada abaixo, ajudando-se com as mãos, até alcançar a muleta. Voltou então para casa, mas somente ao chegar à porta se lembrou de que ninguém estava lá. Apesar disso entrou e, como sentisse fome, arranjou um pedaço de pão e algumas azeitonas e tomou um copo de vinho. Este deu-lhe sono, mas continuou sentada, resolvida a não dormir enquanto não chegassem sua mãe e seu tio Domingo. Mal podia esperar para lhes contar a sua história maravilhosa. Foram-se-lhe, porém, cerrando as pálpebras e dentro em pouco dormia profundamente.

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II.

Era Catalina uma linda moça. Tinha dezasseis anos, era alta para a sua idade, já com o busto bem desenvolvido, mãos e pés pequeninos, e antes do acidente caminhava com uma graça sinuosa que encantava todos quantos a olhavam. Tinha olhos grandes e escuros em que brilhava o ardor da mocidade, cabelos pretos que se encrespavam naturalmente e tão compridos que podia sentar-se neles, pele morena e suave, faces de um rosado tépido, lábios vermelhos e húmidos. Quando ria ou sorria - o que era frequente antes do seu infortúnio - mostrava os dentes, parelhos, pequenos e alvíssimos. O seu nome completo era Maria de los Dólares Catalina Orta y Pérez. Seu pai, Pedro Orta, fora fazer fortuna nas Américas pouco depois de nascer Catalina, e desde então não tinham notícias dele. Sua esposa, Maria Pérez por nascimento,, ignorava se ele estava vivo ou morto, mas ainda tinha esperança de vê-lo regressar um dia com uma arca repleta de ouro, enriquecendo-os a todos. Era uma mulher devota e todas as manhãs, à missa, fazia uma oração pela segurança do marido. Enfurecia-se com o mano Domingo quando este lhe dizia que, se Pedro não morrera havia muito tempo, devia estar vivendo com alguma índia ou quem sabe se duas ou três, e não tinha a menor intenção de abandonar os filhos mestiços que indubitavelmente tinha por lá, para voltar à companhia de uma esposa que já perdera a beleza e a mocidade.
Tio Domingo era uma terrível provação para a sua virtuosa mana,, mas esta queria-lhe bem, em parte porque tal era o seu dever de cristã mas também porque, apesar dos seus graves defeitos, Domingo era um homem estimável e ela não podia
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deixar de amá-lo. Não o esquecia também nas suas orações e compraziam em acreditar que era em virtude da eficácia destas, e não por estar envelhecendo, que ele abandonara! ao menos os seus piores costumes. Domingo Pérez fora destinado ao sacerdócio e no seminário de Akallá de Henares, para onde o mandou o pai, tomou as ordens menores e recebeu a tonsura. Um de seus condiscípulos fora Blasco Suárez de Valero, o bispo de Segóvia, cuja chegada os habitantes da cidade estavam festejando naquele dia. Maria Pérez suspirava ao pensar nos destinos tão diferentes que os dois tinham tomado. Domingo era um estrabulega. Desde o começo envolveu-se em complicações no seminário devido ao seu génio teimoso, turbulento e dissipador, e nem as advertências, nem os castigos nem as pancadas conseguiam domá-lo. Já nesse tempo gostava da pinga e quando bebia de mais entoava canções obscenas que ofendiam os seus colegas de seminário e os professores, os quais tinham por missão incutir a honestidade e o decoro naqueles jovens espíritos. Ainda não tinha feito vinte anos, quando deixou grávida uma escrava moura e, ao perceber que a sua má acção seria divulgada, fugiu e ingressou num grupo de actores ambulantes. Vagueou com eles durante dois anos pelo país e ao fim desse tempo apareceu de repente em casa do pai.
Declarou-se arrependido dos seus pecados e prometeu emendar-se. Era evidente que a Providência não o talhara para o sacerdócio. Disse ao pai que, se este lhe desse o dinheiro necessário para não morrer de fome, iria estudar leis numa universidade. O pai estava ansioso por acreditar que o seu filho havia assentado o juízo e como, na verdade, Domingo voltou reduzido a pele e ossos, a existência que levara não parecia ter sido muito fácil e o velho Pérez deixou-se persuadir. Domingo foi para Salamanca, onde ficou oito anos, mas fez os seus estudos de maneira muito irregular. A magra mesada que recebia do pai obrigava-o a viver numa casa de pensão com vários outros estudantes e a comida era o quanto bastava para não morrer de inanição. Posteriormente, costumava divertir os seus companheiros de pândega, nas tabernas que frequentava, com anedotas sobre os horrores do estabelecimento e as astúcias a que tinham de recorrer para completar o mísero passadio. Mas a pobreza não impedia que Domingo gozasse a vida. Tinha uma língua desenvolta, modos encantadores e cantava bem, de forma que era bem recebido em todas as festas. Talvez os dois anos passados com a troupe ambulante não lhe tivessem ensinado a ser bom actor, mas ensinaram-lhe outras coisas que lhe prestavam serviço agora. Aprendera a ganhar às cartas e aos dados,, e quando aparecia na universidade algum jovem rico, Domingo não tardava a travar conhecimento com ele. Constituía-se em seu guia e mentor no tocante aos costumes da cidade e era raro que o recém-vindo não tivesse de pagar bom -preço pela experiência adquirida. era Domingo nessa época um rapaz bem apessoado e de vez em quando tinha a sorte de provocar a paixão de alguma mulher dada às aventuras amorosas. Não estavam elas no viço da mocidade mas eram pessoas abastadas e Domingo achava justo que provissem às suas necessidades em troca dos serviços que lhes prestava.
O período que passara como actor -ambulante inspirara-lhe o desejo de escrever peças de teatro e todas as horas vagas que lhe deixavam os seus divertimentos, ele dedicava-se a essa ocupação. Tinha considerável facilidade e, além de escrever algumas comédias, compunha amiúde um soneto ao objecto das suas lucrativas atenções e fazia versos em honra de alguma
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pessoa grada, a quem os enviava com a esperamça de receber uma recompensa em metal sonante. Foi esse seu dom de rimar que acabou por levá-lo à mina. O reitor da universidade provocara a cólera dos estudantes com uma pnescrição qualquer e, ao encontrarem numa mesa de taberna uns versos indecentes e injuriosos a seu respeito, encheram-se de regozijo. Dentro em pouco andavam cópias de mão em mão. Correu o boato de que o autor era Domingo Pérez e, conquanto este o negasse, fê-lo com tal complacência que era o mesmo que admiti-lo. Amigos serviçais chamaram a atenção do reitor para os versos, indicando-lhe ao mesmo (tempo quem os tinha escrito. Como o original houvesse desaparecido, não foi possível provar a culpa de Domingo com a sua própria letra, mas o reitor fez indagações discretas que o convenceram de que esse indivíduo dissoluto e mau estudante era o responsável pelo insulto. Tinha demasiada astúcia para formular uma acusação difícil de provar, mas, decidido a vingar-se, escolheu um método mais subtil. Não foi difícil descobrir o escândalo provocado por Domingo como seminarista em Alcalá, e a existência que ele levara durante os oito amos passados na universidade eram notoriamente desregrada. Domingo era jogador e todos sabiam que o jogo leva muitas vezes à impiedade; não faltaram testemunhas dispostas a jurar que lhe tinham ouvido proferir as mais horríveis blasfémias, e diante de duas delas ele dissera que acreditar nos Artigos de Fé era, acima de tudo, questão de boa educação. Isto por si era suficiente para justificar um inquérito do Santo Ofício. O reitor depôs nas mãos dos inquisidores as informações que tinha recebido. O Santo Ofício nunca procedia às pressas. Reunia as provas com todo o sigilo e cuidado e enquanto não
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lhe desabava o golpe na cabeça, a vítima raras vezes sabia que estava debaixo de suspeita.
Uma noite, tarde, estando Domingo deitado a dormir, o aguazil bateu-lhe à porta e prendeu-o quando ele veio abrir. Só lhe deu tempo para vestir-se e emalar a sua reduzida bagagem, junto com a roupa de cama, e conduziu-o, não à prisão - pois Domingo tinha as ordens menores e a Inquisição fazia o possível para evitar escândalos no seio da Igreja - mas a um mosteiro, onde foi encarcerado numa cela disciplinar. Deixaram-no ficar alli algumas semanas, fechado a sete chaves, sem permissão de falar a ninguém ou de ler o que quer que fosse, sem uma vela sequer para alumiar-lhe as trevas. Foi então conduzido à presença do tribunal. As coisas estariam mal paradas para ele se não fosse uma feliz circunstância. Poucos dias antes o reitor, homem vaidoso e irrascível, -tivera violenta disputa com os inquisidores sobre uma questão de precedência. Leram os versos de Domingo e riram com malicioso júbilo. Os seus delitos eram manifestos e não podiam ser relevados, mas os juízes perceberam que,, temperando a justiça com a clemência, podiam infligir ao reitor furioso uma afronta que ele sentiria fundo mas teria de tragar. Domingo reconheceu a sua culpa e declarou-se arrependido. Foi sentenciado a ouvir missa na câmara de audiência e exilado de Salamanca e seus arredores, Tinha rapado um bom susto. Achou conveniente ausentar-se da Espanha por algum tempo; foi, pois, para a Itália como soldado e passou lá alguns anos a jogar, a praguejar quando os dados ou as cartas o atraiçoavam, a fornicar e a beber. Tinha quarenta anos quando voltou à sua terra natal, tão pobre como ao deixá-la, com uma ou duas cicatrizes arranjadas
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em rixas entre bêbedos mas com numerosas recordações para emtreter-Lhe as horas vagas.
Seus pais tinham morrido e a única pessoa da família que restava era a mana Maria, abandonada pelo marido, e a sobrinha Catalina, então uma linda criança de nove anos. O marido de Maria esbanjara-lhe o dote e ela nada possuía além da casinha em que morava. Sustentava a si mesmo e à filha com hábeis e difíceis trabalhos de agulha, tecendo adornos de ouro e prata para os mantos de veludo das imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos padroeiros, as quais eram carregadas nas procissões da Semana Santa, e para as capas, casulas e estolas usadas nas cerimónias da Igreja. Na idade a que chegara, Domingo sentia-se disposto a trocar por uma existência tranquila a vida aventurosa que levara durante vinte anos e a irmã, necessitando da protecção de um homem em casa, convidou-o para morar com ela. Ao iniciar-se a nossa história, havia sete anos que ele vivia ali. Já não pesava nas despesas de Maria, pois ganhava dinheiro escrevendo cartas a pedido de pessoas iletradas, sermões para padres preguiçosos ou ignorantes que não queriam compô-los por si, e depoimentos para demandantes em juízo. Era também hábil em traçar genealogias de pessoas que desejavam atestados de sangue limpo, o que queria dizer que durante um século, ao menos, a sua ascendência não fora manchada por qualquer cruzamento com judeus ou mouros. A pequena família teria uma vida assaz remediada se Domingo pudesse livrar-se dos maus hábitos do jogo e da bebida. Também gastava dinheiro em livros, sobretudo volumes de versos e peças dramáticas, pois ao voltar da Itália recomeçara a escrever para o teatro e, embora não conseguisse fazer representar nenhuma das suas produções, contentava-se com o prazer
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de lê-las aos outros beberrões na sua taberna favorita. Ao tornar-se um homem respeitável reassumira a tonsura, uma salvaguarda em meio aos perigos da Espanha daquele tempo, e usava as vestes sóbrias que convinham a um letrado com as ordens menores.
Tomou grande afeição a Catalina, tão alegre, tão vivaz e tão bonita, e via-a transformar-se numa bela moça com uma satisfação inteiramente desinteressada. Encarregou-se da sua educação e ensinou-a a ler e escrever. Ensinou-lhe também o catecismo e assistiu à sua primeira comunhão com todo o orgulho de um pai. Quanto ao resto, porém, limitava o seu ensino a ler-lhe versos e, quando ela teve bastante idade para apreciá-las, as peças dos dramaturgos que começavam a ser tão comentados na Espanha. Mais do que a todos admirava Lope de Vega, a quem proclamava o maior génio que o mundo tinha visto, e antes do acidente que lesou a jovem, ele e Catalina costumavam representar as cenas que mais admiravam. Tinha ela uma memória viva e com o tempo chegou a saber de cor passagens inteiras. Domingo não esquecera que tinha sido actor e ensinou-a a declamar os seus versos, quando devia ser comedida e quando soltar as rédeas à paixão. Domingo tornara-se um homem magro, de movimentos desarticulados, cabelos grisalhos, rosto amarelo e cheio de rugas, mas ainda havia fogo nos seus olhos e ressonância na sua voz; e quando ele e Catalina representavam uma cena emocionante, com Maria por único auditório, Domingo já não era o valdevinos envelhecido, bêbedo e decadente, mas um brioso mancebo, um príncipe de sangue azul, um galã, um herói ou o que se quisesse. Tudo isso terminou, porém, quando Catalina foi pisada pelo touro. O choque manteve-a de cama algumas semanas, durante as
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quais os médicos da cidade empregaram todos os recursos da sua pobre ciência para devolver a vida ao membro paralisado. Afinal confessaram-se impotentes. Era um caso incurável. Diego, seu namorado, já não lhe vinha à janela de noite para lhe fazer a corte através da grade de ferro, e pouco depois sua mãe trazia para casa a notícia de que ele ia casar com a filha de Pedro Álvarez. Domingo ainda lhe lia dramas para distraí-la, mas as cartas de amor faziam-na chorar com tanta amargura que ele tinha de interromper-se.


III.

Catalina dormiu algumas horas e foi despertada afinal pelos ruídos que sua mãe fazia, lidando na cozinha. Pegou na muleta e foi lá.
- Onde está o tio Domingo? - perguntou, pois queria que ele estivesse presente para ouvir o que ela precisava contar com tanta urgência.
- Que pergunta! Está na taberna. Mas, se bem o conheço, voltara para casa à hora de jantar.
Por via de regra como toda a gente;, eles faziam a única refeição quente do dia às doze horas., mas desde a manhã não tinham comido senão um naco de pão barrado de alho, que Maria levara consigo, e ela sabia que Domingo devia estar faminto. Acendeu, pois, o fogo e tratou de preparar a sopa. Catalina não pôde esperar nem um momento mais.
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- Mãe, a Virgem Santíssima apareceu-me.
- Sim, minha querida? - volveu Maria. - Limpa e corta as cenouras para mim, por favor.
- Mas ouve, mãe! Eu vi a Virgem Santíssima, ela falou-me!
- Não sejas tola, menina. Encontrei-te dormindo quando cheguei e não te acordei. Ainda bem que tiveste um sonho bonito. Mas agora que acordaste, podes ajudar-me a preparar o jantar.
- Mas eu não sonhei, isso foi antes de eu dormir!
Referiu, então, a coisa extraordinária que lhe acontecera.
Maria Pérez fora bonita em moça mas engordara com a idade, como muitas vezes sucede às espanholas. Tinha sofrido muito: dois filhos que tivera antes de Catalina haviam morrido; aceitara isso, porém, do mesmo (modo que o abandono do marido, como uma mortificação que lhe era imposta, pois era profundamente religiosa. E, sendo ao mesmo tempo uma mulher prática que não tinha o hábito de lastimar-se inutilmente, encontrara consolação no trabalho aturado, no ofício divino e nos desvelos com a filha e com seu refractário irmão Domingo. Ouviu aterrada a história de Catalina. Era tão circunstanciada, com pormenores tão precisos, que estaria disposta a darnlhe crédito se, ao menos, não fosse incrível. A única explicação possível era que a enfermidade da pobre rapariga e a perda do namorado lhe houvessem dado volta ao juízo. Estivera a rezar dentro da igreja e depois fora sentar-se sob o sol ardente: era muitíssimo provável que qualquer coisa se tivesse desarranjado no seu cérebro e ela houvesse imaginado tudo aquilo com tamanha força que estava convencida da reailidade do acontecimento.
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- O filho de Don Juan de Valeiro que melhor tem servido a Deus é o bispo - disse Catalina ao terminar.
- Quanto a isso, não há dúvida - volveu a mãe. - Ele é um santo.
- Tio Domingo conheceu-o bem quando ambos eram jovens e pode levar-me à presença dele.
- Cala-te, menina. Deixa-me pensar.
A Igreja não via com bons olhos as pessoas que afirmavam ter-se comunicado com Jesus Cristo ou sua Mãe, e punha toda a sua autoridade em desanimar tais pretensões. Alguns anos atrás, um frade franciscano causara grande alvoroço curando enfermos por meios sobrenaturais e era tal o número de pessoas que recorriam a ele que o Santo Ofício fora obrigado a intervir. Prenderam-no e nunca mais se ouviu falar nele. Pelas conversas do convento das carmelitas, para o qual trabalhava de quando em quando, Maria Pérez tinha notícia de uma freira, que havia afirmado que Elias,, o fundador da ordem, lhe aparecera na cela e lhe conferira favores especiais. A superiora do convento mandara açoitá-la imediatamente, até ela confessar que tinha inventado a história para se dar importância. Se, portanto, frades e freiras pagavam caro tais pretensões, era mais do que provável que a Igreja olhasse com extrema severidade a história de Catalina. Maria atemorizou-se.
- Não digas nada a ninguém - aconselhou a Catalina - , nem mesmo ao tio Domingo. Falarei com ele depois do jantar e ele resolverá sobre o melhor caminho a seguir. Mas, pelo amor de Deus, limpa as cenouras, de contrário não teremos sopa hoje.
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Catalina não ficou muito satisfeita com este alvitre, mas a mãe mandou-a calar e fazer o que lhe diziam.
Pouco depois chegava Domingo. Não estava bêbedo, mas tam-pouco estava bem são, e vinha muito alegre. Gostava de ouvir o som da própria voz e, enquanto jantavam, descreveu com loquacidade a Catalina os sucessos do dia. Isso dá-nos uma boa oportunidade de expor ao leitor as razões pelas quais reinava tamanho alvoroço na cidade.


IV.

Don Juan Suárez de Valero era um cristão-velho e, ao contrário de muitas entre as mais nobres famílias espanholas, cujos filhos, antes de Fernando e Isabel terem unido os reinos de Castela e Aragão, haviam desposado herdeiros de judeus ricos e poderosos, ele podia exibir uma ascendência isenta de qualquer aliança espúria. Mas os seus antepassados eram a sua única fortuna. Possuía escassas terras a uma milha da cidade, próximo a uma povoação chamada Valero, e fora antes para se distinguir das demais famílias Suárez do que para se dar importância que ele e seus ascendentes imediatos haviam acrescentado ao seu o nome da povoação. Era muito pobre e a sua aliança com a filha de um fidalgo de Castel Rodríguez pouco contribuiu para melhorar-lhe as circunstâncias. Dona Violante deu ao seu senhor um filho anualmente, pelo espaço de dez anos, mas desses filhos somente três, todos varões, passaram
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da adolescência. Chamavam-se, respectivamente, Blasco, Manuel e Martin.
Blasco, o mais velho, desde a infância deu sinais de uma inteligência excepcional e, por sorte, também de devoção, de maneira que o destinaram para a Igreja. Na idade própria foi posto no seminário de Alcalá de Henares e a seu tempo passou à universidade. Bacharelou-se em Ciências e Letras e doutorou-se em Teologia em tão poucos anos que era evidente poder ele contar com uon futuro brilhante no clero secular. Prometiam-lhe altas distinções. Mas, de súbito, afirmando desejar viver no isolamento do mundo para poder dedicar-se inteiramente aos estudos, à prece e à meditação, ele mostrou o intuito de ingressar na ordem monástica dos dominicanos. Os seus amigos procuraram dissuadi-lo, pois a ordem era austera, com um serviço divino à meia-noite, perpétua abstinência de carne, frequentes mortificações, jejum e silêncios prolongados. Tudo foi inútil, porém, e Blasco de Valero fez-se frade. Tão manifestas eram as suas qualidades que os seus superiores não podiam desconhecê-las, e quando se descobriu que, além de uma bela presença e grande cultura, ele possuía uma voz ao mesmo tempo forte e melodiosa, assim como uma ardente eloquência, enviaram-no a pregar aqui e ali: pois o Papa Inocêncio III tinha mamdado São Domingos pregar aos hereges e desde então os dominicanos tornaram-se conhecidos como missionários e pregadores. Em certa ocasião mandaram-no à sua velha universidade de Alcalá de Henares. Gozava já de uma reputação considerável e toda a cidade correu a ouvi-lo. O sermão que pronunciou foi sensacional. Empregou todos os seus recursos para convencer a numerosa congregação da importância de conservar a fé na sua pureza e exterminar
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por completo os hereges. Em voz trovejante ordenou aos leigos, pela estima que tinham às suas almas e pelo temor aos rigores do Santo Ofício, que denunciassem tudo que lhes viesse ao conhecimento com sabor ao pecado e ao crime de heresia. Incutiu-lhes, com palavras ameaçadoras, que era dever religioso de cada um delatar o seu vizinho, o filho ao pai, a mulher ao marido, pois não havia laços naturais de afeição que pudessem absolver um filho da Igreja de conivência com um mal que era um perigo para o Estado e uma ofensa a Deus. O resultado do sermão foi satisfatório. Houve numerosas deflações e no final três cristãos-novos, contra os quais ficou provado que costumavam retirar a gordura da carne que comiam e mudar de roupa aos sábados, morreram na fogueira. Bom número de acusados foram condenados à prisão perpétua, com a comfiscação de todas as suas posses, e muitos outros açoitados ou submetidos a penas pecuniárias e outras.
A enérgica eloquência do frade produziu impressão tão funda nas autoridades universitárias que pouco depois era ele nomeado professor de Teologia. Alegou o seu pouco mérito e pediu que o dispensassem de aceitar essa posição de responsabilidade, mas os seus superiores na ordem determinaram que aceitasse e ele teve de obedecer. Desempenhou os seus deveres com crédito e as suas prelecções eram tão concorridas que, embora as fizesse no vasto salão da universidade, não havia espaço suficiente para comportar todos aqueles que desejavam ouvi-lo. A sua reputação galgou grandes alturas e ao cabo de alguns anos, com trinta e sete de idade,, fizeram-no inquisidor do Santo Ofício em Valência.
Embora continuasse sinceramente convicto da sua indignidade, aceitou o posto sem se fazer rogar. Era Valência um
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porto marítimo em que amiúde ancoravam navios estrangeiros - ingleses, holandeses ou franceses. Não raro, as suas tripulações eram protestantes e, por esse motivo, objectos muito apropriados para as actividades da Inquisição. Acresce que tentavam com frequência introduzir na Espanha livros proibidos, como bíblias traduzidas em espanhol e as obras heréticas de Erasmo. Blasco de Valeiro percebeu que podia ser muito útil ali. Além disso, havia grande número de mouros em Valência e nos arredores. Tinham sido convertidos à força, mas ninguém ignorava que a maior parte dessas conversões não iam além da superfície e eles continuavam a observar boa parte dos seus costumes mouriscos. Não comiam carne de porco, usavam em casa os trajes proibidos e negavam-se a comer animais que houvessem perecido de morte natural. Apoiada na autoridade régia, a Inquisição tinha conseguido eliminar o judaísmo, e embora os cristãos-novos pudessem ser ainda olhados com desconfiança, o Santo Ofício encontrava cada vez menos ocasiões de proceder contra eles. Mas com os mouros era diferente. Eram laboriosos e não só a agricultura do país se encontrava nas suas mãos mas também todo o comércio - pois os espanhóis eram demasiado preguiçosos, soberbos e dissipados para se dedicarem a ocupações manuais. Em consequência, os mouros tornavam-se cada vez mais ricos e, como fossem muito prolíferos, o seu número aumentava. Muita gente ponderada vaticinava o dia em que toda a riqueza do país passaria às suas mãos e o seu número excederia o da população nativa. Temia-se, como era natural, que nesse dia eles tomassem conta do poder e reduzissem à servidão os indolentes espanhóis. Tornava-se necessário livrar-se deles a qualquer custo e vários planos foram arquitectados com esse fim.
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Um desses planos era entregá-los às mãos do Santo Ofício e processá-los pelas suas notórias heresias, queimando-os em tal quantidade que os restantes se tornassem inofensivos. Outro plano, menos oneroso, consistia em deportá-los; mas o governo não desejava aumentar o poder dos mouros além do estreito de Gibraltar, acrescentando à população daquelas regiões algumas centenas de milhares de homens robustos e industriosos, de modo que alguém apresentou o engenhoso alvitre de fazê-los embarcar em velhas naus, sob pretexto de conduzi-los à África, e então pôr a pique os barcos, de modo que todos morressem afogados.
Ninguém se interessava mais por esse problema do que Frei Blasco de Valero, e talvez o mais famoso dos seus sermões durante a estada em Alcalá de Henares fosse aquele em que propunha o transporte dos mouros em massa para a Terra Nova, castrando-se previamente os machos, tanto jovens quanto velhos, de modo que em pouco acabariam todos por se extinguir. Foi esse sermão., possivelmente, que lhe valeu o alto e honroso cargo de inquisidor na importante cidade de Valência.
Frei Blasco encetou as suas novas funções com a certeza, fortificada por fervorosas preces, de que tinha diante de si a possibilidade de fazer grandes coisas em honra do Santo Ofício e pela maior glória do Senhor. Sabia que teria de fazer frente aos poderosos. Os mouros eram vassalos dos nobres, a quem pagavam tributo em dinheiro, espécie ou serviços, e aqueles tinham interesse em protegê-los. Mas o frade não levava em conta as pessoas e resolveu não permitir a ninguém,, por maior que fosse, perturbar o desempenho do seu dever. Não havia muitas semanas que estava em Valência quando o informaram de que um fidalgo poderoso, Don Hernando de Belmonte,
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duque de Terranova, impedira as autoridades do Santo Ofício de prender alguns ricos vassalos que, em desobediência à lei, usavam trajes mouriscos e tinham banheiras em casa. Mandou os seus familiares armados prender o duque, multou-o em dois mil ducados e condenou-o à reclusão perpétua num convento. Atacar, logo de início, pessoa tão altamente colocada foi um acto de audácia que infundiu terror nos mais corajosos. Ao tornar-se evidente, contudo, que o inquisidor estava decidido a exterminar os mouros, as autoridades municipais foram reunidas interceder com ele. Fizeram-lhe ver que a prosperidade da província dependia deles e que Valência iria à ruína se ele persistisse naquele intento. Mas Frei Blasco repreendeu-os asperamente e ameaçou-os com a excomunhão, forçando-os assim a submeter-se e a apresentar humildes desculpas. Mediante castigos e confiscações, logrou dentro em pouco reduzir os mouros à miséria e à desgraça. Os seus espias andavam por toda a parte e ai daquele espanhol, leigo ou eclesiástico, que desse motivo a suspeita! Como, em seus sermões, ele continuasse a incutir no povo de Valência a obrigação de denunciar todo aquele que, por gracejo ou mau humor, ignorância ou descuido, pronunciasse alguma palavra leviana, não tardou que todos os habitantes da cidade vivessem num terror perpétuo.
Mas o inquisidor era um homem justo. Tinha o cuidado de adequar a punição à falta. Por exemplo: se bem que, como teólogo, condenasse como pecado mortal as relações carnais entre pessoas não unidas pelo matrimónio, como inquisidor o facto só lhe interessava quando as pessoas envolvidas afirmassem não haver aí pecado mortal, caso em que as condenava a receber cem açoites. Por outro lado, punia apenas com 28

uma multa a asserção não menos herética de que a vida matrimonial valia tanto quanto o celibato. Era, ademais, um homem misericordioso. Não desejava a morte do herege e sim a salvação da sua alma. Certa ocasião um inglês, proprietário de um navio, foi preso e confessou pertencer à religião reformada, ante o que foi apreendida a embarcação e confiscada a carga. Submeteu-se o homem à tortura até falecerem-lhe as forças, e então permitiu-se-lhe abraçar o catolicismo. Foi com sincera satisfação que o Inquisidor pôde, assim condená-lo a apenas dez anos de galés e prisão perpétua. Podemos dar dois ou três exemplos mais do seu natural misericordioso. Após a morte de um penitente, em resultado de duzentos açoites que recebera, ele fizera questão de que o número fosse limitado a cem. Quando era necessário aplicar a tortura a uma mulher grávida o inquisidor adiava-a para depois do parto, e era antes o seu coração compassivo do que o respeito à lei que o levava a ter o maior cuidado para que a tortura não acarretasse invalidez permanente nem fractura de ossos, e se, por vezes, ocorria um acidente ou alguém morria) em resultado dos tratos, ninguém poderia lamentar mais amargamente a ocorrência.
A magistratura de Frei Blasco foi altamente bem sucedida. No decurso de dez anos celebrou trinta e sete autos-de-fé em que seiscentas pessoas se penitenciaram e mais de setenta foram queimadas vivas ou em efígie, não só prestando desse modo um serviço a Deus mas também edificando o povo. Um homem menos humilde do que ele teria considerado a última dessas solenidades como a glória suprema da sua carreira, pois ela se realizou em honra do príncipe Filipe, o herdeiro do trono. As várias cerimónias foram conduzidas com tanta propriedade e de tal modo divertiram o príncipe herdeiro que
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este fez a Frei Blasco um presente de duzentos ducados, com uma carta em que lhe dava os parabéns pelo edificante espectáculo e o exortava a continuar servindo a Deus dessa forma, para glória do Santo Ofício e proveito do Estado. Era evidente que o zelo e a piedade do inquisidor haviam produzido funda impressão nele, pois quando Filipe II morreu pouco depois e o príncipe ascendeu ao trono, nomeou-o acto contínuo bispo de Segóvia.
Ele só aceitou essa nova dignidade após uma noite inteira passada de joelhos, a contender com o Senhor, e deixou Valência entre as lamentações de grandes e pequenos. Conquistara a admiração daqueles pelo seu zelo, pela austeridade da sua vida e pela sua escrupulosa honestidade; enquanto a sua caridade fazia dele o ídolo dos pobres. Ganhava pingues emolumentos como inquisidor e a cortezia de Málaga na qual fora provido traziam-lhe benefícios consideráveis; mas ele gastava até ao último vintém em socorrer as necessidades dos pobres. A confiscação das riquezas dos hereges condenados e as multas impostas aos penitentes canailizavam elevadas quantias para os cofres do Santo Ofício e esse dinheiro servia para atender às grandes despesas da organização, mas não era raro que os inquisidores reservassem para si somas consideráveis. Até ao piedoso Torquemada acumulara desse modo uma imensa fortuna, que gastou na construção do mosteiro de S. Tomás de Aquino, em Ávila, e nos acréscimos feitos ao da Santa Cruz, em Segóvia. Mas Blasco de Valero nunca aprovou essa prática e partiu de Valência tão pobre como lá chegara.
Nunca vestiu outra coisa que não fosse o humilde hábito da sua ordem, jamais comia carne nem usava linho sobre o corpo ou nas roupas de cama,, e flagelava-se regularmente,,
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por vezes com tamanho rigor que o sangue espirrava nas paredes Tal era a sua reputação de santidade que, quando teve de adquirir um novo hábito por estar o primeiro demasiadamente gasto, muita gente pagou aos criados do bispo para lhes conseguirem fragmentos do velho hábito posto fora de uso, os quais usavam como amuletos contra a varíola e o mal venéreo. Antes da sua partida, várias pessoas influentes procuraram arrancar-lhe a promessa de lhes conceder, quando afinal aprouvesse ao Altíssimo chamá-lo a Si, o privilégio de enterrar o seu corpo na cidade em que ele levara a efeito obra tão fecunda. Estavam certos de poder exercer suficiente influência em Roma- para conseguir, senão a sua canonização, pelo menos a sua beatificação, e ter-lhe os ossos na catedral seria uma glória para a cidade. Mas o frade, adivinhando-lhes o pensamento, respondeu com severidade e não quis comprometer-se.
Foi escoltado até três milhas além das portas da cidade por uma grande comitiva de dignitários eclesiásticos, magistrados e grande número de nobres cavalheiros. Quando se despediram dele, não havia um só olho enxuto em toda aquela distinta companhia.


V.

Não é necessário estendermo-nos tanto sobre os outros filhos de Juan de Valero.
O segundo filho, Manuel, era vários anos mais novo do que Blasco e, embora não fosse tolo, não tinha nem a inteligência
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nem a operosidade do irmão. Interessava-se mais pelos desportos do campo do que pela aquisição de cultura. Fez-se um moço belo e rijo, dotado de grande força corporal e alta opinião de si mesmo. Tinha audácia, coragem e ambição. Era grande caçador e capaz de montar cavalos que outros achavam indomáveis. Desde a meninice brincava às touradas com os outros garotos do lugar, e com mais idade não perdia um ensejo de saltar para a arena, e fazer a parte do touro. Aos dezasseis anos conseguiu permissão para lutar a cavalo com um touro e, com grande admiração do público, matou o animal à primeira lançada. Havia muito que decidira abraçar a carreira das armas, pois na Espanha daquela época, a menos que se ingressasse na Igreja,, não havia outro meio de elevar-se na vida. Embora pobre, Don Juan de Valero era muito respeitado, e sucede que um dos nobres da cidade era parente afastado do grande duque de Alva. Assim um belo dia, com uma carta de recomendação na algibeira,, o jovem Manuel partiu em busca da fortuna. Encontrou o grande homem num momento favorável, pois, tendo sido desterrado da corte, achava-se ele então retido no seu castelo de Uzeda. Caiu-lhe em graça a bela aparência desse jovem que vinha solicitar o seu patrocínio quando ele havia caído em desfavor, e ao ser chamado pouco depois por Filipe II para assumir o comando do exército na guerra com Portugal, o duque levou-o na sua comitiva. Derrotou o rei Don António e expulsou-o do seu reino. Apreendeu um grande tesouro em Lisboa e deu aos seus soldados permissão de saquear a cidade e os seus arredores. Manuel portou-se com bravura na batalha e mais tarde, no saque, deitou a mão a muitos objectos de valor que prontamente converteu em dinheiro. Como, porém, Alva estivesse
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velho e não pudesse durar muito, vendo o moço ansioso por fazer progressos na carreira militar, deu-lhe cartas de apresentação para alguns dos seus antigos capitães que tinham servido com ele nos Países Baixos e se achavam então sob o comando de Alexandre Farnese.
Durante vinte anos Manuel lutou com mérito nas guerras para fazer voltar as províncias do norte ao domínio do rei de Espanha. Mostrou-se não só corajoso mas astuto e foi promovido primeiro por Alexandre Farnese e depois pelos generais que à morte deste o substituíram. Era tão inescrupuloso quanto intrépido, não menos cruel do que hábil e igualmente devoto e brutal, de forma que com o tempo veio a ser investido em comandos importantes. Não tardara a descobrir que o homem que serve o seu país nunca é recompensado pelos seus méritos, a menos que peça o que deseja. Não hesitava em fazê-lo, e como havia acumulado quantias consideráveis graças à pilhagem das cidades capturadas, à extorsão a que submetia os mercadores das localidades que administrava e à concessão de favores em troca de dinheiro, pôde finalmente consubstanciar os seus direitos de uma forma que tornava difícil deixar de reconhecê-los. Recebeu a cobiçada Ordem de Calatrava e usava com orgulho a sua fita verde. Dois anos depois foi feito conde de San Costanzo, no reino de Nápoles, com o direito de fazer o uso que lhe aprouvesse do título. Os reis de Espanha tinham o proveitoso hábito de recompensar por esse modo as pessoas merecedoras, e como estas podiam vender os títulos a plebeus ricos que desejavam enobrecer-se, a Coroa conseguia assim prover, financeiramente, sem despesa para o Tesouro, aqueles que a tinham servido bem. Mas o cavaleiro de Calatrava dera um emprego judicioso ao seu dinheiro e não necessitava
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de lançar mão desse recurso. Tinha recebido vários ferimentos, o último tão grave que só a sua vigorosa constituição lhe permitiu sobreviver. Esse ferimento dava-lhe um pretexto razoável para deixar o serviço de el-rei. Resolveu voltar para casa e unir-se pelo casamento a uma família da velha aristocracia da sua cidade natal, o que não duvidava poder fazer graças ao seu posto e à sua fortuna, e depois mudar-se para Madrid, onde empregaria a sua energia e o seu talento para a intriga em satisfazer a sua ambição desmedida. Quem sabe se, jogando bem as cartas e cultivando a amizade das pessoas que convinham,, ele não alcançaria grandes alturas? Estava com quarenta anos e era uma bela- figura de homem, com olhos pretos e ousados, bonito bigode, um ar de virilidade insolente e uma língua desembaraçada.


VI.

Quanto ao terceiro filho, Martin, necessitamos dizer ainda menos. Todas as famílias têm a sua ovelha tinhosa e a família de Juan de Valeiro não constituía excepção à regra. Martin, o mais moço dos três e o último filho que Dona Violamte dera ao marido, não possuía nem o zelo ardente graças ao qual Blasco de Valero havia alcançado a eminência na Igreja, nem a ambição e destreza que tinham trazido fama e fortuna a Don Manuel. Parecia contentar-se com o cultivo das escassas e magras terras de cujos produtos viviam seus pais. Naqueles

tempos, devido às guerras constantes e à atracção que a América exercia sobre os espíritos jovens e aventurosos, havia falta de braços na Espanha. Os mouros, inteligentes e trabalhadores, nunca tinham sido numerosos na região e por essa época a sua quase totalidade fora obrigada a abandoná-la. Martin era uma grande decepção para Don Juan, e embora a sua esposa insistisse que tinha as suas vantagens possuir um filho robusto, activo e disposto a enfrentar qualquer espécie de trabalho, ele não cessava de afligir-se.
Mas um golpe ainda maior lhe estava reservado. Aos vinte e três anos Martin casou, e fê-lo com pessoa de classe inferior. É verdade que a sua noiva era uma cristã-velha e estava convincentemente provado que pelo espaço de gerações não houvera aliança com pessoas de sangue judeu ou mouro, mas o pai era padeiro. Consuelo era filha única e herdaria todas as suas posses, mas isso não alterava o facto de ser o homem um mercador. Passaram-se alguns anos. Consuelo teve filhos. Então um novo golpe feriu Don Juan: o padeiro morreu e o velho suspirou aliviado, pois agora seria possível vender a padaria e o estigma dessa conexão com um ofício manual acabaria por se apagar. Mas nem bem o padeiro fora decentemente enterrado quando Marttin informou os pais de que pretendia mudar-se para a cidade e dirigir o estabelecimento em pessoa. Mal podiam dar crédito aos seus ouvidos. Don Juan esbravejou, Dona Violante chorou. O filho fez-lhes ver que, se tinham melhorado um pouco de vida ultimamente, era graças ao dote de Consuelo; esse dote evaporara-se; ele tinha quatro filhos e não havia razão para que não viessem outros quatro; o dinheiro andava escasso na Espanha e a venda do negócio não podia render mais que o suficiente para sustentá-lo ainda
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alguns anos, ao termo dos quais os aguardava a miséria e a fome. Levantou o ridículo argumento de que cozer pão não era mais vergonhoso do que lavrar um campo estéril ou espremer azeitonas.
Martin instalou a família por cima da padaria. Levantava-se muito antes de amanhecer para levar o pão ao forno e depois ia a cavalo à chácara, onde trabalhava até à noite. Prosperou, pois fazia bom pão, e ao cabo de um ano ou dois pôde pagar a um homem para fazer o trabalho da chácara, mas não deixava passar um dia sem ir ver os pais. Era raro que não lhes levasse alguma coisa e dentro em pouco eles puderam comer carne todos os dias permitidos pela Igreja. Estavam adiantados em anos e Don Juan não podia negar que os presentes do filho eram um conforto para a sua velhice. Se bem que houvesse causado certa surpresa na cidade o facto de ter-se o filho de Juan de Valero rebaixado daquela forma,, e os garotos lhe gritassem na rua "panadero" em tom de mofa, o seu bom génio e inconsciência de ter feito qualquer coisa fora do comum não tardaram a desarmar toda a gente. Era caridoso e nenhum pobre lhe aparecia à porta pedindo esmola sem levar um pão fresco. Era religioso, ia à missa todos os domingos e confessavam regularmente quatro vezes por ano. Ao começar a nossa narrativa era um homem forte e disposto, de trinta e quatro anos, algo corpulento, pois gostava da boa mesa e do bom vinho, com um rosto redondo e franco, uma expressão jovial e feliz.
- É óptima pessoa - diziam dele - , não muito inteligente nem muito instruído, mas bom e honesto.
Era de agradável trato, amigo de gracejar e com o correr do tempo, quando Martin passou a ter vida mais folgada,
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homens de posição respeitável vinham muitas vezes à padaria conversar com ele e o estabelecimento tornou-se mesmo uma espécie de ponto de encontro em que os amigos iam ver-se e dar dois dedos de conversa.
Era uma feliz circunstância que ele houvesse tomado a seu cargo o sustento dos pais, visto que Frei Blasco, durante os seus vinte anos de ausência, jamais lhes enviara um vintém - pois distribuía em esmolas tudo quanto tinha - enquanto Don Manuel também não mandava nada porque nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse dar melhor emprego ao seu dinheiro do que ele mesmo. Desse modo, dependiam inteiramente de Martin na velhice. Ainda se envergonhavam dele e não podiam deixar de lastimar o rumo que dera à sua vida. Era uma fonte contínua de irritação o facto de ele parecer inteiramente satisfeito com o seu estado. Tratavam-lhe a esposa plebeia com a cerimoniosa cortesia que lhes parecia exigir o respeito próprio e ganharam afeição aos netos. Mas o seu coração estava com os dois filhos que haviam trazido honra e glória ao seu antigo nome.


VII.

Não é difícil imaginar a alegria com que Don Juan e Dona Violante aguardavam o dia em que tornariam a vê-los após tão prolongada separação. O frade escrevia com raros intervalos, e como nem Don Juan nem o filho padeiro eram
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muito letrados e de qualquer modo sentiam-se incapazes de escrever com a elegância devida a um culto homem de Igreja, tinham pedido a Domingo Pérez que respondesse às cartas. E Domingo fazia-o com plena satisfação tanto dos Valeros como de si próprio, pois orgulhava-se da elegância do seu estilo. Don Manuel, por outro lado, nunca se comunicara com ele a não ser quando estava cabalando para conseguir a Ordem de Calatrava e necessitou apresentar provas da pureza da sua ascendência. Também dessa vez recorreram aos bons serviços de Domingo, que preparou uma genealogia, devidamente autenticada pelos magistrados locais, em que reportava as origens da família, sem a menor mistura de sangue judeu, a Afonso VIII, rei de Castela,, o qual desposara Eleanora, filha de Henrique II da Inglaterra.
O que motivava a vinda dos dois filhos de Don Juan não era apenas o regresso de Don Manuel após os longos anos de serviço nas guerras e a elevação de Frei Blasco à dignidade episcopal, mas também a comemoração das bodas de ouro do velho casal. Combinaram os dois irmãos encontrarem-se numa localidade situada a umas vinte milhas de Castel Rodríguez e realizar juntos a sua entrada solene na cidade. Don Juan comprazia-se em pensar que a grandiosa recepção preparada aos filhos compensaria de certo modo o longo opróbrio da degradação do pobre Martin. Estava, naturalmente, impossibilitado de receber os dois filhos e as respectivas comitivas na sua semi-arruinada granja. Ficou, pois, combinado que o bispo se hospedaria no convento dominicano, enquamto o despenseiro do duque de Castel Rodríguez, na ausência do seu amo, que estava em Madrid, oferecia aposentos a Don Manuel no palácio ducal.
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Chegou o grande dia. Os nobres da cidade puseram-se a caminho, montando os seus cavalos, enquanto os magistrados e os eclesiásticos cavalgavam mulas. Seguiam, numa carruagem que lhes emprestara uma pessoa de qualidade, Don Juan e Dona Violante acompanhados de Martin e da família deste. Pouco depois os visitantes tão ansiosamente esperados foram vistos a aproximar-se pela sinuosa e poeirenta estrada. O bispo, com o hábito dominicano, sobre o lombo de uma mula, cavalgava ao lado do irmão no seu corcel de guerra. Envergava uma maravilhosa armadura, toda marchetada de ouro. Atrás deles vinham os dois secretários do bispo, religiosos da mesma ordem, os seus criados e os do capitão, vestidos de sumptuosa libré. Após saudar os importantes personagens que os tinham vindo receber e após ouvir alguns eloquentes discursos, o bispo perguntou pelo pai e pela mãe. Estes, que se mantinham modestamente atrás dos outros, adiantaram-se então. Dona Violante ia ajoelhar-se para beijar o anel episcopal quando o bispo, com grande admiração dos espectadores, não a deixou fazer e, tomando-a nos braços, beijou-lhe ambas as faces. Ela pôs-se a chorar e muitas pessoas presentes ficaram tão tocadas com aquilo que as lágrimas lhes corriam pelas faces. Beijou ele também o pai e, enquanto os dois velhos se voltavam para o segundo filho, perguntou por Martin.
- "El panadero" - chamou alguém.
Martin avançou então por entre a multidão, com a mulher e os filhos. Todos haviam vestido as suas melhores roupas e o jovial, rubicundo e corpulento homem, tinha excelente aspecto. O bispo saudou-o afectuosamente e Don Manuel com certa condescendência, enquanto Consuelo e os pequenos ajoelhavam no chão e beijavam o anel do bispo. Este felicitou
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amavelmente o irmão pelo número e pela saudável aparência dos seus rebentos. Nas cartas que lhe escreviam, Dom Juan e Dona Violamte haviam falado do casamento do filho mais moço e participado o nascimento das crianças, mas jamais ousaram informá-lo de que Martin se fizera mercador. Observavam o encontro cheios de apreensão. Sabiam que a verdade, infalivelmente, não tardaria a vir à tona, mas estavam ansiosos por evitar qualquer ocorrência que pudesse perturbar o regozijo da ocasião. Ao cabo de muitas disputas, havia assentado quem iria à direita e quem à esquerda dos dois ilustres filhos da cidade, e embora muitos guardassem ressentimento formou-se o cortejo e a cavalgada realizou uma entrada imponente na cidade. Ao transporem as portas os sinos das igrejas puseram-se a repicar, foguetes estouraram, houve um clangor de trombetas e um rufar de tambores. As ruas estavam apinhadas de gente e foi entre vivas e palmas que eles passaram pelas ruas, a caminho da colegiada, onde se cantaria um "Te Deum".
O serviço divino foi seguido de um banquete e os anfitriões notaram que, embora fosse dia de festa da Igreja, o bispo não comia carne nem tomava vinho. Terminada a refeição ele mostrou o desejo de ficar alguns instantes a sós com as pessoas da sua família. Martin foi buscar a mãe, que se recolhera à casa do padeiro com Consuelo e as crianças. Ao voltar, encontrou o mano Blasco a sós com o pai, mas nem bem havia entrado na sala quando surgiu Don Manuel, de sobrolho franzido, os olhos negros de cólera.
- Mano - disse ele, dirigindo-se a Blasco - , tu sabes que esse Martin, filho de um nobre de antiga linhagem,, é um pasteleiro?
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Don Juan e sua esposa estremeceram, mas o bispo limitou-se a sorrir.
- Pastelleiro não, mano: padeiro.
- Quer dizer então que sabias?
- Há anos que sei. Embora os meus sagrados deveres não me permitissem dedicar a meus pais o cuidado que desejava, observava-os de longe e nunca os esquecia nas minhas orações. O prior da nossa ordem nesta cidade mamtinha-me ao par da sua situação.
- Então como consentiste que ele lançasse tamanho labéu sobre a nossa família?
- Nosso irmão Martin é um homem virtuoso e devoto. É um cidadão respeitado e caridoso para os pobres. Tem zelado pelos nossos pais na sua velhice. Não lhe posso censurar o haver tomado uma decisão que lhe era imposta pelas circunstâncias.
- Eu sou um soldado, mano, e ponho a honra acima da vida. Essa história arruinou-me os planos.
- Duvido muito.
- Como podes saber? - esbravejou Don Manuel. - Tu não conheces os meus planos.
O esboço de um sorriso clareou por um instante as feições austeras do bispo.
- Não deves ter muita experiência do mundo,, mano - respondeu ele - , se ignoras que os nossos assuntos pessoais raramente escapam à notícia dos nossos servidores. Esqueces que passámos dois dias debaixo do mesmo tecto, a caminho daqui. Chegou-me aos ouvidos que não vieste apenas cumprir um dever filial, mas também escolher uma esposa entre as famílias nobres da cidade. Apesar da profissão que nosso irmão resolveu seguir, com o título que Sua Majestade houve por bem
conceder-te e o dinheiro que ganhaste a seu serviço creio que não te será difícil alcançar o teu objectivo.
Martin ouvia tudo isso sem o menor sinal de que sentisse vergonha. O seu rosto bem-humorado tinha uma expressão de divertimento.
- Não esqueças, Manuel - disse ele - , que Domingo Pérez repontou as origens de nossa família a um rei de Castela e a um rei de Inglaterra. Isso não pode deixar de ter o seu peso junto à família a que pretendas fazer a honra de lhe desposar a filha. Domingo disse-me que um dos reis ingleses fazia bolos, de modo que talvez não haja grande ignomínia no facto de um descendente de reis fazer pão, sobretudo quando, por opinião unânime, é o melhor pão da cidade.
- Quem é esse Domingo Pérez? - perguntou o soldado, de carramca fechada.
Não era fácil responder a esta pergunta, porém Martin fez o que pôde.
- Um homem instruído e um poeta.
- Recordo-me dele - disse o bispo. - Estivemos juntos no seminário.
Don Manuel fez um gesto agastado e dirigiu-se ao pai.
- Como pôde permitir que ele nos envergonhasse assim?
- Eu não aprovei. Fiz tudo que estava no meu poder para impedi-lo.
Don Manuel voltou-se então severamente para o irmão mais novo.
- E tu ousaste contrariar o desejo de teu pai? Devia representar para ti uma ordem. Dá-me uma razão, uma só, pela qual, mandando a decência à fava, te rebaixaste fazendo-te padeiro.
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- A fome.
A palavra pareceu desabar no chão como um monte de alvenaria. Don Manuel sufocou uma exclamação de nojo e raiva. Mais uma vez, um leve sorriso tremeu nos lábios do bispo. Os próprios santos conservam certa dose de humanidade, e durante os dois dias que tinham passado jumtos Don Blasco chegara à conclusão de que não simpatizava muito com seu mano militar. Censurava-se tal coisa, mas nem toda a sua caridade cristã conseguia vencer a impressão de que Don Manuel era um indivíduo grosseiro, brutal e despótico.
Por felicidade, essa reunião de família foi interrompida pela entrada de algumas pessoas, as quais vinham avisar que estava na hora das touradas. Os dois irmãos receberam lugares de honra. A municipalidade dera-se a despesas para conseguir bons touros e o espectáculo esteve à altura da ocasião. Depois de terminado, o bispo retirou-se para o convento dominicano com os frades que o acompanhavam e Don Manuel dirigiu-se para os aposentos que lhe tinham sido reservados. O povo da cidade voltou para as suas casas ou para as tabernas, a fim de trocar impressões sobre as emocionantes ocorrências do dia, e Domingo Pérez acabou por encontrar o caminho da casa da irmã.


VIII.

Após a ceia, como de hábito, Domingo subiu para o seu quarto. Pouco depois Maria foi ter com ele. Tinha ouvido, lá em baixo, ler em voz sonora e dramática, e quando bateu
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à porta ele não respondeu. Entrou. Era um quarto pequeno e desguarnecido, que não continha mais do que um leito, um baú para a roupa, uma mesa e uma cadeira. Havia uma prateleira cheia de livros e livros espalhados na mesa, no soalho e sobre a arca. A cama estava desarrumada e Domingo atirara para ali a sua batina. Estava de calções e em mangas de camisa. Inúmeros papéis juncavam a mesa e a um canto do quarto via-se grande pilha de manuscritos. Maria suspirou ao ver aquela desordem a que jamais conseguira pôr termo. Sem tomar conhecimento da presença da irmã, ele continuou a declamar as falas de uma peça teatral.
- Quero falar contigo, Domingo - disse ela.
- Não me interrompas,, mulher. Escuta os versos gloriosos do maior génio dos -nossos tempos.
E continuou a vozear. Maria bateu com o pé.
- Larga esse livro, Domingo. Tenho uma coisa muito importante para te dizer.
- Vai-te daqui. Que coisa pode ser mais importante do que a divina inspiração dessa fénix da época, do incomparável Lope de Vega?
- Não sairei enquanto não me ouvires. Domingo atirou o livro, agastado.
- Então dize o que tens para dizer. Dize depressa e vai-te. Ela contou-lhe a história de Catalina: como a Virgem lhe
aparecera e lhe dissera que o bispo, filho de Dom Juan, tinha o poder de curá-la da sua enfermidade.
- Isso foi um sonho, minha pobre Maria - disse ele quando a irmã terminou.
- Foi o que eu lhe disse. Mas afirma que estava bem acordada. Não posso convencê-la do contrário.
Domingo ficou impressionado.
- Vou descer contigo. Quero ouvir essa história dos seus próprios lábios.
Pela segunda vez, Catalina narrou o incidente. A Domingo bastou um olhar para se convencer de que ela acreditava firmemente em cada palavra que dizia.
- Por que motivo estás tão segura de que não dormias, menina?
- Como podia eu pegar no sono àquela hora do dia? Tinha acabado de sair da igreja. Chorei, e quando cheguei a casa o meu lenço estava molhado de lágrimas: como podia enxugar os olhos enquanto dormia? Ouvi tanger os sinos quando o bispo e Don Manuel entraram na cidade. Ouvi as trombetas, os tambores e os gritos do povo.
- Não faltam ardis a Satanás para enganar os desprevenidos. A própria Madre Teresa de Jesus, a freira que fundou tantos conventos, receou por muito tempo que as suas visões fossem obras do demónio.
- Será possível a um demónio simular a doçura e a bondade de Nossa Senhora quando me falou?
- O diabo é bom actor - sorriu Domingo. - Quando Lope de Rueda se impacientava com os componentes da sua "troupe", dizia que, se o diabo quisesse trabalhar para ele, dar-lhe-ia de bom grado, em paga, todas as almas da companhia. Mas ouve, querida: nós sabemos que certas pessoas devotas receberam a graça de ver com seus próprios olhos Nosso Senhor e a Santíssima Virgem, mas receberam essa graça em recompensa de orações, jejuns, mortificações e de uma vida dedicada ao serviço do Senhor. Que fizeste tu para merecer
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um favor que só é concedido a outros ao cabo de longos anos de imolação de si mesmos?
- Nada - respondeu Catalina. - Mas sou pobre e desgraçada, implorei a Nossa Senhora que me socorresse e ela teve piedade de mim.
Domingo guardou silêncio por alguns momentos. Catalina era resoluta e voluntariosa, e ele tinha medo. A moça não fazia ideia dos perigos que corria.
- A Santa Madre Igreja não olha com indulgência as pessoas que afirmam ter comunicação com o Céu. O país está infestado de gente que pretende ter sido contemplada com privilégios sobrenaturais. Alguns são pobres criaturas iludidas que acreditam no que dizem; muitos são impostores que inventam tais coisas a fim de conquistar notoriedade ou ganhar dinheiro. O Santo Ofício persegue-os com razão, pois eles perturbam os ignorantes e muitas vezes levam-nos à heresia. A uns o Santo Ofício põe na prisão, a outros açoita, a uns manda para as galés, a outros para a fogueira, imploro-te, pelo amor que nos tens, que não divulgues nem uma só palavra do que nos contaste.
- Mas tio, querido tio, é toda a minha felicidade que está em jogo! Todos sabem que não há no reino homem mais santo do que o bispo. É coisa sabida que até os pedaços do seu hábito têm uma virtude milagrosa. Como poderei ficar calada, quando a Santíssima Mãe de Deus me disse pessoalmente que ele me pode curar deste mal que me roubou o amor do meu Diego?
- Não é só a ti que isso interessa. Se o Santo Ofício resolver fazer um inquérito, é bem possível que o meu processo seja reaberto, pois o Santo Ofício tem a memória comprida, e se nos puserem nos cárceres da Inquisição esta casa será vendida
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para pagar as despesas do nosso sustento e tua mãe ver-se-á lançada às ruas, onde terá de mendigar o seu pão. Promete-me ao menos que não dirás nada até que tenhamos tempo de reflectir.
Domingo tinha um ar de tamanha consternação, de tão profunda ansiedade, que Catalina cedeu.
- Sim, isso eu prometo.
- És uma excelente menina. Agora deixa que tua mãe te ponha na cama, pois todos nós estamos cansados de um dia tão cheio de acontecimentos.
Beijou-a e deixou as duas mulheres, a sós, mas chamou a irmã do alto da escada. Ela veio atendê-lo.
- Dá-lhe um purgante - murmurou Domingo. - Com os intestinos a funcionar bem ela mostrar-se-á mais razoável, e amanhã poderemos convencê-la de que tudo isso não passou de um sonho muito infeliz.


IX.

Mas o purgante não produziu efeito - pelo menos o efeito desejado. Catalina continuou a asseverar que tinha visto a Virgem Santíssima com os seus próprios olhos e falado com ela. Descrevia-lhe as vestes com tamanha precisão que Maria Pérez encheu-se de assombro. Ora, sucedeu que o dia seguinte era sexta-feira e Maria foi confessar-se. Havia muitos anos que tinha o mesmo confessor, o padre Vergara, e confiava tanto
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na benevolência como na prudência deste. Portanto, depois de receber a absolvição ela contou-lhe a estranha história de Catalina e repetiu-lhe grande parte do que Domingo havia dito. - Seu irmão portou-se com uma discrição e um bom-senso admiráveis, sobretudo porque tais qualidades não seriam de esperar nele. Este assunto deve ser tratado com cautela. Não devemos fazer nada às pressas. É preciso evitar o escândalo e a senhora deve ordenar à sua filha que não fale nisso a ninguém. Vou reflectir e, se necessário, consultarei o meu superior.
O confessor de Maria também o era de Catalina e conhecia a ambas tão bem como só um confessor pode conhecer as suas penitentes. Sabia-as simples, honestas, sem malícia e tementes a Deus. O próprio Domingo não lhes pudera corromper a inocência ou empanar-lhes a candura. Catalina era uma menina sensata, dona de uma cabeça sólida, e se não suportava com resignação a sua invalidez não se podia negar que a suportasse com coragem. Era ingénua de mais para ter inventado aquela história com segundas intenções. Além disso, estava convencido de que a natureza excessivamente material da jovem não era capaz de imaginar um acontecimento espiritual. O padre Vergara era dominicano e fora no seu convento que o bispo se hospedara com a sua comitiva. Homem simples e de medíocre cultura, a história da aventura de Catalina contada pela mãe desta perturbou-o de tal forma que se sentiu na obrigação de referi-la ao seu prior. Este reflectiu e chegou à conclusão de que era preciso informar o bispo; mandou, pois, um noviço perguntar-lhe se podia ouvi-los, a ele e ao padre Vergara, a respeito de um assunto que talvez fosse de importância.
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Daí a pouco o noviço voltou dizendo que o bispo teria prazer em recebê-los.
Tinham-lhe dado a cela mais espaçosa do convento. Uma dupla arcádia com um pilar de suporte separava-a em duas partes, uma das quais servia de alcova e a outra de oratório. Ao entrarem o prior e o padre Vergara, encontraram o bispo a ditar cartas a um dos seus secretários. O prior explicou a que tinham vindo e deixou que o padre Vergara repetisse ponto por ponto o que lhe dissera a sua penitente. O frade começou por expor ao bispo o quanto as duas mulheres eram honestas e devotas, a existência irrepreensível que levavam, depois descreveu o fatal acidente em consequência do qual a infeliz Catalina havia perdido o uso da perna e as atenções do seu namorado, e terminou repetindo a história da aparição da Santíssima Virgem, a qual dissera à menina que o bispo a curaria da sua enfermidade. Pensando bem, resolveu acrescentar que Domingo Pérez, o tio da menina lhe arrancara a promessa de conservar sigilo sobre o episódio enquanto o assunto não fosse devidamente examinado. Quando ele terminou, o rosto do bispo assumira uma expressão de tal severidade que o frade, com a voz estrangulada, suava por todos os poros. Fez-se um silêncio.
- Eu conheço esse Domingo - disse o bispo afinal. - É um homem de má vida, com quem nenhuma pessoa que preze a salvação da sua alma deveria manter relações. Mas não é tolo. Ao exigir da sobrinha a promessa de segredo, agiu com prudência. É também o confessor da menina, padre? - O outro fez uma reverência. - Fará bem em recusar-lhe a absolvição enquanto ela não prometer que não falará nisso a ninguém.
O padre frade arregalou os olhos para o bispo, cheio de
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confusão. Não era ele, pelo consenso geral, um santo? O padre Vergara julgava que ele receberia de braços abertos essa oportunidade de exercer os seus poderes milagrosos, com o que não só glorificaria o Senhor mas conduziria muitos pecadores ao arrependimento. O olhar do bispo era frio. Dir-se-ia que só por um esforço de vontade ele conseguia dominar a sua cólera.
- E agora, se me dão licença, vou prosseguir o meu trabalho - disse ele; e, voltando-se para o secretário: - Leia de novo a última frase que ditei.
Os dois frades retiraram-se timidamente, sem dizer mais uma só palavra.
- Por que estará ele tão vexado? - perguntou o padre Vergara.
- Não devíamos ter-lhe falado nisso. A culpa é minha. Ofendemos a sua humildade. Ele não sabe que grande santo é e não se julga digno de fazer um milagre.
A explicação parecia muito razoável e, como redundava em maior crédito para o bispo, o padre Vergara apressou-se a contar tudo aos seus confrades. Dentro em pouco o convento zumbia de excitação. Alguns louvavam a modéstia do bispo, outros lamentavam que ele não tivesse aproveitado essa ocasião de fazer alguma coisa que tanto exaltaria o seu renome e a boa fama da ordem.
Entrementes, a história havia alcançado outros ouvidos. A igreja em que Catalina estivera a rezar e de onde, a dar-lhe crédito, a Santíssima Virgem tinha saído pertencia, como dissemos, ao convento carmelita da Encarnação. Era o convento ricamente dotado e havia muitos anos que a prioresa tinha o hábito de dar trabalho a Maria Pérez, em parte por caridade
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e em parte por ser ela habilíssima no difícil e trabalhoso ofício que exercia. Maria viera, desse modo,, a fazer amizade com muitas dentre as religiosas. Como se tratasse de um convento de ordem mitigada, gozavam elas de bastante liberdade e não era raro que uma das freiras lhe viesse à casa almoçar e conversar. Dois ou três dias após a confissão de Maria, necessitou esta de ir ao convento e, após cumprir a sua obrigação, pôs-se a tagarelar com a freira que era sua amiga mais íntima. Exigindo-lhe juramento de segredo, contou-lhe o estranho facto que ocorrera à sua filha. As religiosas eram muito palradeiras e semelhante história não podia deixar de ser um grande acontecimento na rotina piedosa mas monótona das suas existências, de modo que ao cabo de vinte e quatro horas todas as moradoras do convento estavam informadas e o caso acabou por chegar aos ouvidos da prioresa. Como esta senhora desempenha um papel de certa importância na nossa narrativa, torna-se necessário contar aqui a sua história, ainda que com risco de aborrecer o leitor.


X.

Beatriz Henríquez y Bragamza, na vida religiosa Beatriz de San Domingo, era filha única do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Tinha grande fortuna e era poderosíssimo. Logrou conservar a confiança do sombrio e desconfiado Filipe II e exerceu com distinção importantes cargos na Espanha e na Itália. Possuía vastas
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propriedades em ambos os países e, embora os seus deveres o forçassem a morar ora aqui ora ali, não havia para ele nada melhor do que viver com a esposa e os filhos - pois tinha três-, dois homens e uma mulher - na cidade em que nascera, com os seus ares saudáveis e as suas grandiosas vistas. Era ali que se originara a sua raça e fora graças à repulsa, por um dos seus antepassados, das tropas mouras que assediavam a cidade, que a família começara por adquirir eminência. Não existia ali ninguém maior do que o duque de Castel Rodríguez, o qual vivia numa propriedade quase régia. Como durante toda a história da família os seus membros houvessem contraído grandes alianças, ela achava-se relacionada com os mais magníficos nobres de Espanha. Ao fazer treze anos sua filha, Beatriz, ele procurou um esposo que lhe conviesse, e após passar em revista vários candidatos possíveis decidiu-se pelo filho único do duque de Anteguera, O qual descendia por vias espúrias de Fernando de Aragão. O duque de Castel Rodríguez prontificava-se a dar à filha um dote magnífico, e assim o assunto foi resolvido sem dificuldade. Realizaram-se os esponsais dos dois jovens, mas como o rapaz não tinha mais de quinze anos combinou-se que só se faria o casamento quando ele alcançasse uma idade apropriada. Beatriz teve permissão de ver o futuro marido em presença dos pais deste e dos seus, dos tios e tias e outros parentes mais distantes. Era um rapazinho atarracado, de estatura não maior que a dela, áspera gaforinha preta, nariz arrebitado e boca mal-humorada. Concebeu uma imediata antipatia por ele, mas sabia que era inútil protestar e contentou-se em lhe fazer caretas. Ele respondeu mostrando-lhe a língua.
Depois dos esponsais o duque mandou-a terminar a sua
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educação no convento carmelita da Encarnação, em Ávila, onde sua irmã era prioresa. Ela achou divertida a vida do convento. Havia ali outras meninas, filhas de famílias nobres, em situação idêntica à sua, e várias senhoras que por uma razão ou por outra viviam como pensionistas no convento sem estar sujeitas à disciplina deste. A regra suavizada das carmelitas era bastante suportável e, embora algumas das freiras se dedicassem à prece e à contemplação, muitas delas, sem negligenciar os seus deveres, saíam e iam visitar as pessoas amigas, ausentando-se por vezes durante semanas inteiras. A sala de visitas estava sempre cheia de pessoas de ambos os sexos, de modo que se fazia ali uma alegre vida social. Armavam-se casamentos, discutia-se o andamento das guerras e permutavam-se os mexericos da cidade. Era uma existência pacífica e inofensiva, com diversões modestas, e para as freiras não representava um caminho muito árduo para a eterna bem-aventurança.
Na idade de dezasseis anos foi Beatriz tirada do convento e desceu com a mãe para Castel Rodríguez, acompanhada de um batalhão de criados. A duquesa não estava bem de saúde e os médicos tinham-lhe recomendado que fosse viver num clima menos rigoroso que o de Madrid. Preso pelos assuntos de estado, o duque ficou a contragosto na capital. Aproximava-se a época em que deveria realizar-se o casamento de Beatriz e seus pais achavam conveniente que ela aprendesse alguma coisa sobre o modo de dirigir um grande solar. A duquesa passou, pois, alguns meses ensinando à filha as normas sociais que ela não podia ter aprendido no convento das carmelitas. Beatriz fizera-se uma jovem alta, de grande beleza, com uma pele clara e sem marcas de bexigas, feições de uma regularidade clássica,
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talhe esguio e flexível. Os espanhóis daquela época apreciavam formas mais opulentas e algumas das senhoras que vinham prestar os seus respeitos à duquesa lamentavam-lhe a magreza, mas a desvanecida mãe respondia que o casamento não tardaria a remediar esse defeito.
Nesse tempo Beatriz era alegre,, apaixonada pela dança e estuante de vitalidade animal. Era travessa e voluntariosa. Já então possuía um génio autoritário, pois haviam-na estragado com mimos, e sempre teve o hábito de impor a sua vontade aos que a cercavam. Desde pequena compreendera que estava destinada pelo nascimento às altas posições de mando e que o resto da humanidade devia submeter-se aos seus caprichos. O seu confessor, bastante preocupado com esse desejo de domínio, falou nisso à duquesa:, mas esta não se mostrou muito impressionada com a advertência.
- Minha filha nasceu para mandar, padre. Não se pode esperar dela o servilismo de uma lavadeira. Se o seu temperamento é excessivamente orgulhoso, o marido, caso tenha carácter, o modificará sem dúvida .alguma, e caso não o tenha o sentimento do que lhe é devido, que não falta a Beatriz, será benéfico para ele também.
No convento, Beatriz tomara-se de entusiasmo pelos romances de cavalaria a que algumas das senhoras pensionistas eram muito afeiçoadas. Embora a freira encarregada de zelar pelas alunas não lhe permitisse lê-los, de quando em quando ela conseguia lançar um olhar furtivo a essas histórias intermináveis. Quando veio para Castel Rodríguez encontrou vários no palácio e, como a mãe estivesse muitas vezes indisposta e a "duena" fosse indulgente, devorou-os com avidez. A sua imaginação juvenil inflamou-se e começou a pensar com fastio no
inevitável casamento com o rapaz que ela ainda via como um garoto achaparrado, mal enjambrado e birrento. Tinha consciência da sua beleza e na missa, na companhia da mãe, não perdia nenhum dos olhares de admiração que lhe deitavam os jovens casquilhos da cidade. Reuniam-se na escadaria da igreja para vê-la sair e, embora Beatriz andasse com os olhos modestamente baixos, ao lado da duquesa, seguida pelos dois lacaios de libré que carregavam as almofadas de veludo sobre as quais se haviam ajoelhado durante o serviço divino, percebia a sensação que causava e o seu ouvido apanhava os elogios que os rapazes, segundo o costume espanhol, diziam à sua passagem. Conquanto nunca olhasse para eles, conhecia-os a todos de vista e não tardou a descobrir-lhes os nomes, a que famílias pertenciam e, na verdade,, tudo que era possível saber a respeito deles. Uma ou duas ocasiões os mais ousados cantaram-lhe serenatas, mas a duquesa mandava imediatamente os criados enxotá-los. Certa feita encontrou uma carta em cima do seu travesseiro. Adivinhou que uma das criadas fora paga para a pôr ali. Abriu o sobrescrito e leu-a duas vezes, depois rasgou-a em pedacinhos e queimou-os à chama das velas. Foi a primeira e a única carta de amor que recebeu na sua vida. Não trazia assinatura e ela não podia adivinhar de quem provinha.
Devido ao mau estado da sua saúde a duquesa achava suficiente assistir à missa nos domingos e dias de festa, mas Beatriz ia todas as manhãs com a "duena". A missa realizava-se muito cedo e eram poucas as pessoas que se encontravam na igreja, mas havia um seminarista que nunca faltava. Era alto e magro, de feições resolutas, olhos escuros e apaixonados.
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Por vezes, quando andava com a "duena" no desempenho de alguma piedosa missão, ela passava pelo moço na rua.
- Quem é esse? - perguntou Beatriz um dia em que o viu caminhar lentamente na sua direcção, a ler um livro.
- Esse? Ora, ninguém. É o filho mais velho de Juan Suárez de Valero. "Hidalguía de gutierra".
Esta expressão, que pode ser traduzida por "nobreza de sarjeta", era o termo desdenhoso aplicado aos fidalgos de nascimento que não tinham meios para viver de acordo com a sua posição. A "duena", uma viúva vagamente aparentada ao duque, era orgulhosa, devota;, criticadora e sem vintém. Residira toda a vida em Castel Rodríguez, até que, ao deixar Beatriz o convento, o duque a tinha escolhido para dama de companhia da filha. Conhecia todos os habitantes da cidade como as palmas das suas mãos, e apesar de muito piedosa não resistia à tendência de falar mal do próximo.
- Que faz ele aqui nesta época do ano? - indagou Beatriz. A "duena" sacudiu os ombros magros. - Adoeceu no seminário por excesso de trabalho e os médicos desesperaram de salvá-lo. Mandaram-no para casa, a ver se recobrava a saúde, e por mercê divina foi o que sucedeu. Dizem-no muito talentoso. Segundo creio, seus pais esperam que ele obtenha um benefício graças à influência do duque seu pai.
Beatriz nada mais disse.
Mas, por alguma razão que os médicos não podiam descobrir, começou a perder o apetite e a animação. Também perdeu a cor fresca das faces e tornou-se pálida. Andava apática e muitas vezes iam encontrá-la banhada em lágrimas. Ela, cuja alegria, cujo carácter encantadoramente caprichoso e irresponsável
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tinham dado vida àquele palácio sombrio e magnificente, andava agora entregue à tristeza e ao desalento. A duquesa não sabia o que fazer e, temendo que a menina fosse de mal a pior, escreveu ao marido pedindo que viesse vê-las, a fim de resolverem sobre o melhor caminho a seguir. Ele veio e ficou estupefacto com a mudança que se operara na filha. Beatriz estava mais (magra do que nunca e tinha manchas negras debaixo dos olhos. Chegaram à conclusão de que o melhor alvitre era casá-la sem demora, mas ao fazerem essa proposta a Beatriz ela teve um acesso de nervos, pondo-se aos gritos, o que os deixou ainda mais alarmados. Desistiram de voltar por ora ao assunto. Deram-lhe mesinhas, alimentaram-na a leite de mula e sangue de boi, mas, se bem que Beatriz engolisse obedientemente tudo quanto lhe davam,, nada produziu efeito. Continuava pálida e desalentada. Fizeram o possível para distraí-la. Pagaram a músicos que tocavam para ela; levaram-na a assistir a uma peça religiosa na colegiada, levaram-na às touradas - apesar de tudo, ela continuava a definhar. A "duena" tomara grande afeição à sua pupila e, como Beatriz já não se interessasse pelos romances que tinham constituído o seu maior entretenimento, ela não encontrava outro modo de divertir a doente senão contando-lhe os mexericos da cidade. Beatriz ouvia polidamente, mas sem interesse. Certa ocasião ela mencionou de passagem que o filho mais velho de Juan Suárez de Valero tinha ingressado na ordem dos dominicanos. Continuou a tagarelar sobre uma pessoa e outra, quando de súbito notou que Beatriz perdera os sentidos. Gritou por socorro e Beatriz foi posta na cama.
Um ou dois dias depois, estando já melhor, pediu permissão para ir confessar-se. Havia várias semanas que recusava
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fazê-lo, dizendo não se sentir muito bem, e o confessor da duquesa, que também o era de Beatriz, concordou em que era preferível não insistir. Dessa vez tanto o pai como a mãe tentaram dissuadi-la, mas a jovem instou e chorou tão amargamente que afinal cederam. Mandaram sair a grande carruagem, usada apenas nas ocasiões solenes, e ela dirigiu-se para a igreja dominicana acompanhada pela "duena". Ao voltar parecia-se mais com a antiga Beatriz. Tinha uma leve cor nas faces pálidas e nos seus bonitos olhos brilhava uma nova luz. Ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe permissão para fazer-se freira. Foi para ele um grande choque, não só porque não queria perder a filha única mas também porque não lhe agradava desistir da importante aliança que havia projectado. Era, no entanto, um homem bondoso e devoto, e respondeu sem aspereza que decisões como aquela não deviam ser tomadas levianamente e, de qualquer modo, o assunto estava fora de cogitação enquanto o estado da sua saúde fosse tão precário. Ela disse-lhe que tinha conversado a respeito com o seu confessor e este dera plena aprovação à ideia.
- Sem dúvida, o padre Garcia é muito digno e muito piedoso - disse o duque,, franzindo de leve o sobrolho - , mas a sua profissão impede-o, talvez, de compreender quanto são grandes as responsabilidades ligadas à nobreza e às altas posições. Falarei amanhã com ele.
Assim, no dia seguinte o frade foi chamado ao palácio ducal e levado à presença do duque e da duquesa. Sabiam estes, naturalmente, que ele não revelaria nada do que Beatriz lhe dissera no confessionário, e não tentaram averiguar se ela lhe dera a conhecer algum motivo capaz de justificar uma resolução que tanto os contrariava, Disseram-lhe, contudo, que
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embora ela observasse os preceitos da Igreja, era de natural alegre, amiga de toda a sorte de diversões, e nunca mostrara qualquer inclinação para a vida religiosa. Falaram-lhe do grande casamento que tinham arranjado para ela e dos transtornos que adviriam da sua ruptura, assim como dos ressentimentos que isso iria causar; e, finalmente, com todo o respeito devido ao seu hábito, insinuaram que não fora prudente da sua parte aprovar um desejo evidentemente nascido da misteriosa doença de Beatriz. Esta era jovem e tinha uma constituição saudável. Não havia razão para supor que continuasse com as mesmas ideias quando recobrasse a saúde. O dominicano mostrou uma singular obstinação. Achava o desejo de Beatriz muito forte para que se lhe pudessem opor e a vocação da jovem parecia-lhe autêntica. Foi ao ponto de dizer a esses grandes personagens que não tinham direito a impedir sua filha de tomar uma resolução que lhe traria a paz neste mundo e a bem-aventurança no outro. Foi essa a primeira de uma série de discussões. Beatriz permaneceu firme na sua decisão e o confessor apoiou-lhe o desejo com todos os argumentos persuasivos de que pôde lançar mão. Por fim o duque prometeu dar a sua anuência se, ao cabo de três meses, ela ainda desejasse entrar para o convento.
A partir de então Beatriz começou a melhorar. Volveram-se os três meses e ela entrou como noviça na comunidade das carmelitas de Ávila. Toda. de veludo e cetim, ataviada com as suas jóias, foi acompanhada ao convento pela família e numerosos cavalheiros,, dos mais nobres da cidade. À porta disse adeus a todos, alegremente, e foi recebida pela porteira. Mas o duque também fizera os seus planos para enfrentar a situação. Em sua própria honra e para maior glória do
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Senhor, resolveu fundar em Castel Rodríguez um convento para onde sua filha pudesse recolher-se logo que terminasse o noviciado e do qual no devido tempo se tornasse superiora. Possuía imóveis na cidade e escolheu junto aos muros um local apropriado para tal fim. Construiu ali uma linda igreja,, um claustro, pavilhões adequados à vida de sociedade, e mandou plantar um jardim. Contratou o melhor arquitecto que se podia encontrar, os melhores escultores, os melhores pintores, e quando tudo ficou pronto Beatriz, conhecida agora como Dona Beatriz de San Domingo, veio instalar-se no palácio com várias freiras de Ávila, escolhidas pela sua virtude, inteligência e importância social. O duque havia determinado que nenhuma freira fosse aceite a menos que pertencesse a família nobre. Escolheu-se uma superiora, ficando entendido que esta se retiraria logo que Beatriz de San Domingo alcançasse a idade necessária para substituí-la. A instâncias do duque, a "duena" entrara num convento de Castel Rodríguez ao mesmo tempo que Beatriz ia para Ávila e estava em condições de reunir-se à sua antiga pupila. O padre Garcia rezou missa, o Santíssimo Sacramento foi entronizado e as freiras instalaram-se na nova instituição.
Na época de que trata a nossa narrativa, havia já alguns anos que Beatriz de San Domingo era prioresa do convento. Conquistara o respeito dos cidadãos de Castel Rodríguez e a admiração, senão o afecto, das suas freiras. Jamais esquecia a sua alta posição, mas também tinha sempre em mente a origem nobre de suas filhas espirituais. No refeitório sentavam-se na devida ordem de precedência, mas quando surgiam disputas a esse respeito, como sucedia algumas vezes, Dona Beatriz procedia com firmeza. Impunha uma disciplina rigorosa e, por
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mais bem nascida que fosse uma freira, não hesitava em mandá-la açoitar quando as suas ordens eram desobedecidas. O convento estava submetido à regra mitigada do Papa Eugénio IV e, contanto que as freiras desempenhassem os seus deveres religiosos, ela não via razão para destituí-las dos privilégios que lhes foram concedidos. Tinham permissão de visitar as pessoas amigas na cidade e, em havendo motivo justificado, até podiam passar longas temporadas com os parentes em outras localidades. Vinham muitas visitas ao convento, tanto leigos como clérigos; várias senhoras, como em Ávila, viviam ali por gosto; havia, desse modo, abundante e agradável intercâmbio social. O silêncio era obrigatório das completas às primas. Irmãs leigas faziam o trabalho do convento, a fim de dar mais tempo às freiras para as devoções e ocupações mais nobres. Mas, apesar de toda essa liberdade e dessas tentações mundanas, jamais um sopro de escândalo empanara o bom nome das virtuosas mulheres. Tal fama desfrutava a comunidade que a superiora não podia atender a todas as candidatas, de forma que tinha ensejo de mostrar-se muito exigente no exame destas.
Levava uma vida atarefada. Além dos seus deveres religiosos, tinha de fiscalizar a economia do convento, vigiar o comportamento das freiras e zelar pela saúde destas, tanto física como espiritual. A instituição fora ricamente dotada de terras, bem como de casas na cidade, e a prioresa tinha de tratar com os feitores que cobravam os aluguéis e com os camponeses que cultivavam as terras. Visitava-os amiúde para ver se tudo corria bem e se as plantações se achavam em bom estado. Como a regra lhe permitia ter propriedades privadas, o duque passara-lhe em vida algumas casas e um belo solar, e por morte
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dele Beatriz herdara muito mais ainda. Administrava tudo tão bem que podia todos os anos distribuir uma soma considerável em esmolas. O restante, gastava-o em aformosear a igreja, o refeitório e a sala de visitas e em construir oratórios no jardim, aos quais as freiras podiam recolher-se para se entregar às suas meditações. A igreja tinha magnífico aspecto. Os vasos sagrados eram de ouro puro e a custódia, cravejada de pedras preciosas. Os retábulos que decoravam os diversos altares tinham ricas molduras de madeira dourada e primorosamente lavrada, e as imagens do Salvador e da Virgem Santíssima vestiam grandes mantos de veludo ricamente bordados de ouro (por Maria Pérez) e as suas coroas chamejavam de pedrarias, preciosas e semipreciosas.
Para celebrar o vigésimo aniversário da sua consagração, Dona Beatriz construíra uma capela, dedicando-a a São Domingos, por quem tinha devoção especial, e ao ouvir dizer a uma das irmãs, natural de Toledo, que existia lá um pintor grego cujos quadros exaltavam extraordinariamente a devoção do fiel, escreveu a seu irmão o actual duque, encomendando um retábulo. Como era uma mulher prática, deu as dimensões exactas. Mas o irmão respondeu que el-rei encomendara a esse mesmo grego um painel de São Maurício e da Legião Tebana para a sua nova igreja do Escurial, mas ao receber a pintura ficara tão descontente com ela que não a deixara instalar. Em tais condições, o duque achava que seria indiscrição da parte dela dar trabalho a esse pintor. Mandava-lhe, por isso, de presente um quadro de Lodovico Cardacci, artista famoso na Itália, quadro que, por coincidência, tinha exactamente as dimensões pedidas.
Ao construir o convento, o falecido duque, seu pai,
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destinara para ela um apartamento que ocuparia quando fosse superiora e que não era menos elegante do que adequado ao seu cargo e posição. Havia num dos andares uma cela a que ninguém era admitido, salvo a irmã encarregada de proceder à sua limpeza e mantê-la em ordem!, e dali uma pequena escada conduzia a um oratório situado no andar de cima. Era nessa cela que ela fazia as suas devoções pessoais, atendia os assuntos do convento e recebia visitas. Era um aposento severo, mas majestoso. Acima do altarzinho diante do qual fazia as suas orações achava-se um grande crucifixo com a figura de Cristo esculpido em madeira, quase em tamanho natural e pintada com muito realismo, enquanto que a sua mesa de trabalho era encimada por um quadro de certo pintor catalão, o qual representava a Virgem cercada de glória. Nessa época, estava Dona Beatriz entre os quarenta e os cinquenta, mulher alta e magra, de olhos grandes e sombrios, quase sem rugas no rosto. A idade afinara-lhe as feições e adelgaçara-lhe os lábios, de modo que tinha a beleza calma e severa dessas esposas de cavaleiros que se vêem nos túmulos góticos. Mantinha-se sempre muito erecta. Havia no seu porte algo de imperioso que dava a entender que ela não considerava a ninguém seu superior e a muito poucos como seus iguais. Tinha uma veia de humorismo austero e mesmo sarcástico, e embora sorrisse muitas vezes, era com uma espécie de grave indulgência. Quando ria, o que era raro, dava a impressão de sofrer.
Tal era, pois, a mulher a cujos ouvidos chegou o rumor de que a Santíssima Virgem tinha aparecido a Catalina Pérez na escadaria da igreja das carmelitas.

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XI.

Dona Beatriz era não somente uma óptima organizadora, como boa cabeça para os negócios, mas também uma mulher de grande inteligência e sensatez. Sempre desfavorecera as visões, êxtases e graças especiais entre as suas freiras. Não lhes permitia dar-se a uma austeridade excessiva nem a mortificações além das prescritas pela Regra. Nada lhe passava despercebido, e quando uma delas mostrava sinais de uma religiosidade que a superiora achasse exagerada,, administrava-lhe logo um purgante, proibiam-na de jejuar e, se isso não bastasse, era mandada passar algumas semanas agradáveis em casa de amigos ou parentes. O rigor de Dona Beatriz nesse ponto tinha raiz na lembrança dos aborrecimentos e do escândalo provocados no convento de Ávila por uma freira que afirmava ter visto Jesus Cristo, a Santíssima Virgem e vários santos e ter recebido deles graças especiais. A superiora não rejeitava a possibilidade de tais ocorrências,, visto ser certo que alguns santos haviam recebido favores análogos, mas não podia crer que a freira de Ávilai, Teresa de Gepeda, com quem falara muitas vezes quando aluna do convento, fosse outra coisa senão a vítima histérica e iludida de uma desenfreada fantasia.
Era altamente improvável que houvesse qualquer coisa de verdadeiro na estranha história de Catalína. Como as freiras, porém, estivessem tão alvoroçadas com aquilo que não falavam de outra coisa, Dona Beatriz achou de bom aviso mandar chamar a jovem e ouvir o caso dos seus próprios lábios. Chamou uma das freiras e disse-lhe que fosse buscar a rapariga.
A freira voltou daí a pouco, informando-a de que Catalina estava disposta a obedecer à ordem da Reverenda Madre, mas que o seu confessor a proibira de repetir a história a quem quer que fosse. Dona Beatriz, pouco habituada a que a contrariassem, franziu o sobrolho, e quando ela o fazia todas as habitantes do convento se punham a tremer.
- A mãe da moça está aqui, Reverenda Madre - disse a freira, sustendo a respiração.
- De que me pode servir a mãe?
- Ela ouviu a história dos lábios da moça logo depois de Nossa Senhora lhe ter aparecido. O padre não pensou em proibi-la também de falar no caso.
Um sorriso austero encrespou os lábios pálidos da prioresa.
- Um homem digno, mas pouco previdente. Você fez bem, minha filha. Vou receber a mulher.
Maria Pérez foi introduzida no oratório. Tinha visto muitas vezes a superiora, mas nunca lhe falara e estava nervosa. Encontrou Dona Beatriz sentada numa cadeira de encosto alto, com assento e costas de couro, cujo topo era decorado com folhas de acanto em madeira dourada. Maria Pérez não cria que uma rainha pudesse parecer mais distante, solene e orgulhosa. Ajoelhou-se e beijou a mão branca e esguia que lhe ofereciam. Depois, como lhe ordenassem que dissesse o que tinha vindo dizer, repetiu palavra por palavra o que lhe contara Catalina. Quando ela terminou, a prioresa inclinou de leve a nobre cabeça.
- Pode ir.
Ficou algum tempo a reflectir, depois sentou-se à mesa e escreveu uma carta rogando ao Bispo de Segóvia que lhe
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fizesse a honra de vir vê-la, pois desejaria falar-lhe sobre um assunto que parecia de importância. Enviou a carta e dentro de uma hora recebeu a resposta. Em tom não menos cerimonioso, dizia o bispo que obedeceria com prazer à ordem da Reverenda Madre, visitando o convento no dia seguinte.
Houve uma comoção entre as freiras quando souberam que uma pessoa tão eminente e santa era esperada ali e imediatamente concluíram, com acerto, que a visita estava relacionada à misteriosa aparição da Virgem Santíssima nos degraus da bela igreja do convento. Veio ele à tarde, depois da sesta que as freiras costumavam fazer no Verão, acompanhado pelos dois frades seus secretários, e foi recebido pela subprioresa na sala de visitas. Com grande pesar seu,, as freiras tinham recebido ordem de permanecer nas suas celas. Tendo beijado o anel do bispo, a subprioresa disse-lhe que ia conduzi-lo à presença da senhora superiora. Os dois frades dispuseram-se a acompanhá-lo.
- A Reverenda Madre deseja falar em particular com Vossa Senhoria - disse ela humildemente.
O bispo hesitou um instante, depois inclinou ao de leve a cabeça, consentindo. Os frades voltaram aos seus lugares e o bispo seguiu a freira pelos corredores btrancos e frescos e subiu o lance de escada que levava ao oratório. Ela abriu a porta e arredou-se para deixá-lo entrar. Dona Beatriz levantou-se para vir ao encontro do bispo e, ajoelhando-se, beijou o anel episcopal. Depois indicou-lhe uma cadeira e sentou-se.
- Esperava que Vossa Senhoria se dignasse visitar o nosso convento, mas como não viesse tomei a liberdade de convidá-lo.
- Meu mestre de teologia em Salamanca aconselhava-me
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que tratasse o menos possível com mulheres, que fosse cortês com elas mas as mantivesse à distância.
Ela não deu a resposta ácida que tinha na ponta da língua,, mas ao invés disso considerou-o com atenção. Ele baixou os olhos e ficou à espera. A superiora não tinha pressa de falar. Fazia quase trinta anos que não o via e essas eram as primeiras palavras que trocavam. Ele vestia um hábito velho e remendado. Tinha a cabeça rapada à navalha, com excepção do anel de cobalto preto,, semeado de raros fios brancos, que simbolizavam a Coroa de Espinhos. As têmporas eram reentrantes, as faces cavadas; o rosto, coberto de rugas profundas, exibia sinais de sofrimento; só restavam os olhos escuros e apaixonados, em que brilhava uma luz estranha, para lembrar-lhe o jovem seminarista a quem tinha conhecido muito tempo atrás - conhecido e amado tão loucamente.
Aquilo começara como uma travessura. Beatriz tinha-o notado a primeira vez que ele servira a missa, como fazia algumas ocasiões, na igreja que ela frequentava com a sua "duena". Já então ele era magro, de cabelos negros e bastos, pois usava apenas a tonsura das ordens menores, tinha feições bem definidas e uma graça singular no porte. Parecia-se com um desses santos que recebiam a vocação em meninos,, tornando-se objectos de veneração para todos e morrendo moços e aureolados de beleza. Quando não estava servindo a missa ia ajoelhar-se na capelinha, entre as poucas pessoas que ali se encontravam àquela hora. Atento às suas devoções, nunca desviava os olhos do altar. Beatriz, naquela época, era uma jovem estouvada e folgazã. Conhecia o poder devastador dos Seus olhos maravilhosos. Pareceu-lhe que seria uma óptima brincadeira fazer com que o jovem seminarista lhe prestasse
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atenção. Fixou nele, pois, o olhar, desejando com todas as suas forças que ele olhasse para o seu lado. Continuou a fazê-lo durante vários dias, em vão, mas certa manhã teve a intuição de que ele estava perturbado. Não saberia dizer o que lhe dava essa impressão, mas tinha a certeza. Esperou, sustendo o fôlego. Ele ergueu os olhos de repente, como se ouvisse um ruído inesperado, e, encontrando o olhar dela, desviou vivamente o rosto. Desde então Beatriz absteve-se de relancear sequer os olhos para ele, mas um ou dois dias depois, embora mantivesse a cabeça baixa como se estivesse a rezar, teve consciência de que ele a fitava. Ficou perfeitamente imóvel, mas semtia-lhe o olhar perplexo, um olhar que ele nunca havia dirigido a ninguém até então. Experimentou um estremecimento de triunfo e, alçando a cabeça, encarou-o de propósito. Como da outra vez, ele desviou os olhos o mais depressa que pôde e Beatriz viu um rubor de vergonha banhar-lhe o rosto.
Por duas ou três ocasiões, ao andar na rua com a "duena", viu-o caminhar na sua direcção, e embora passasse por elas desviando o rosto, Beatriz sabia-o emocionado. Uma vez mesmo, ao avistá-las, ele tinha girado nos calcanhares e voltado pelo mesmo caminho. Beatriz desatou a rir como louca, a ponto de lhe perguntar a "duena" o que achava tão engraçado, e ela teve de dizer a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Certa manhã, sucedeu que ambas entrassem na igreja no momento em que o seminarista mergulhava os dedos na água benta para persignar-se. Beatriz estendeu a mão para tocar-lhe nos dedos, recebendo dessa forma a água benta. Era um acto costumeiro e natural, e ele não podia recusar. Ficou muito pálido e, mais uma vez, os olhos de ambos se encontraram. Foi apenas um instante,, mas nesse instante Beatriz compreendeu
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que ele a amava com um amor humano, o amor que um rapaz apaixonado dedica a uma bela jovem, e ao mesmo tempo sentiu uma dor aguda no coração, como se uma espada o trespassasse, e compreendeu que o amava com o mesmo amor humano, o amor de uma jovem apaixonada a um amável mancebo. Foi invadida pela alegria. Jamais conhecera tamanha felicidade.
Nesse dia ele serviu a missa. Beatriz não lhe tirava os olhos de cima. O coração pulsava-lhe com uma violência quase insuportável, mas a dor, se dor havia, era maior do que qualquer prazer já sentido por ela. Já havia descoberto que o mesmo encargo ou ocupação o obrigava a passar todos os dias diante do palácio ducal a uma hora certa, e tratou de sentar-se a uma janela de onde pudesse observar a rua. Via-o aproximar-se e retardar o passo, como que mau-grado seu, ao passar, depois via-o seguir caminho apressadamente, como se fugisse à tentação. Esperava que ele levantasse o olhar, mas o rapaz nunca o fazia. Uma vez, para apoquentá-lo, deixou cair um cravo no instante em que ele se aproximava. O seminarista alçou os olhos instintivamente, mas Beatriz recuou a fim de poder vê-lo sem ser vista. Ele deteve-se e apanhou a flor. Tomou-a com ambas as mãos, como se fosse uma jóia inestimável, e por um momento contemplou-a como que em êxtase. Depois atirou-a ao chão com um gesto violento, espezinhou-a no pó e fugiu, fugiu a correr tão depressa quanto podia. Beatriz desatou a rir mas, de repente desfez-se em lágrimas.
Como o rapaz passasse vários dias sem ir à missa, ela não pôde mais suportar a sua ansiedade.
- Que aconteceu àquele seminarista que costumava servir a missa?
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- perguntou à "duena". - Não o tenho visto ultimamente.
- Como posso sabê-lo? Imagino que tenha voltado para o seminário.
Nunca mais tornou a vê-lo. Havia compreendido o drama em que terminara a farsa armada por ela e lamentou amargamente a sua tolice. Amava-o com toda a ardente paixão do seu corpo jovem. Nunca fora contrariada em coisa alguma e enraivecia ao pensar que dessa vez a sua vontade seria frustrada. O casamemto que lhe tinham arranjado era um casamento de conveniência e ela aceitara-o como consequência da sua posição. Estava disposta a dar filhos ao marido, como era seu dever, mas resolvera não lhe dar mais importância do que se fosse um lacaio. Agora, porém, a ideia de unir-se àquele anão estúpido enchia-a de asco. Sabia que o seu amor a Blasco de Valero não podia dar em nada. É verdade que, estando ele nas ordens menores, havia a possibilidade de obter a sua secularização, mas Beatriz nem sequer necessitou lembrar-se de que seu pai jamais consentiria em semelhante aliança; o seu próprio orgulho não lhe permitia dar a mão em casamento a esse "fidalgo de sarjeta". E Blasco? Estava segura de que ele a amava, mas tinha ainda maior amor a Deus. Quando ele espezinhara, raivoso, a flor que ela deixara cair aos seus pés, fora para esmagar aquela paixão indigna que o horrorizava. Beatriz tinha sonhos terríveis, apavorantes, em que jazia nos braços dele, a boca contra a sua, o peito de Blasco a comprimir o seu, e acordava cheia de vergonha, angústia e desespero. Foi então que começou a enfermar. Ninguém lhe compreendia a doença, porém ela sabia de que se tratava: estava a morrer de mágoa. Foi ao ter conhecimento de que ele entrara
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numa ordem monástica que teve aquela inspiração. Sabia, como se o próprio Blasco lhe houvesse dito, que ao renunciar ao mundo ele procurava fugir dela; e isso dava-lhe uma estranha alegria, um sentimento de força triunfante. Faria a mesma coisa: o ingresso no convento a libertaria de uma união odiosa, e talvez encontrasse paz no amor divino. Num recanto do seu espírito, sem que a própria palavra interior lhe desse forma senão muito raramente, habitava a ideia de que naquela vida, por mais separados que estivessem, cada um devotado ao serviço do Altíssimo, existia entre ambos uma espécie de união mística. Tudo isso, que levamos tanto tempo a contar, passou como um relâmpago pela mente da fria e severa prioresa. Viu a sua história como se fosse um desses vastos afrescos pintados na longa parede de um claustro, e aos quais, entretanto, podemos abranger com um só olhar. Toda aquela paixão, que na sua tola mocidade ela julgava dever durar para sempre, havia muito que morreria. O tempo, a piedosa monotonia da vida conventual, as orações e os jejuns, os múltiplos deveres da sua posição, haviam-na embotado pouco a pouco e agora não passava de uma lembrança amarga. Ao olhar para esse homem tão gasto e emaciado, com aquela expressão de sofrimento, perguntava consigo se ele se recordaria de ter amado uma vez - contra a vontade,, sim, mas de todo o coração - uma linda jovem a quem nunca falara, mas que atormentava os seus sonhos. O silêncio era pesado ao bispo, que se remexia inquieto na cadeira.
- A Reverenda Madre disse ter um assunto de importância sobre o qual desejava consultar-me - falou ele.
- Sim, mas permita primeiro que apresente as minhas
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felicitações a Vossa Excelência pela dignidade que el-rei houve por bem conferir-lhe.
- Não posso ter senão a esperança de me mostrar à altura dos deveres pertinentes a tão alto cargo.
- Quanto a isso, não pode haver dúvidas no espírito de quem conheça o zelo e a discrição de que Vossa Excelência deu provas durante os dez amos que passou em Valência. Embora vivamos numa remota cidadezinha das montanhas, conseguimos manter-nos inteirados do que se passa nesse grande mundo, e não nos passou despercebida a fama conquistada pela austeridade, pela virtude e pelo incansável labor de Vossa Excelência em prol da pureza da nossa fé.
O bispo olhou-a um instante por baixo das sobrancelhas franzidas.
- Minha senhora, fico-lhe agradecido pela sua cortesia mas devo rogar-lhe que me poupe esses cumprimentos. Nunca senti prazer em ouvir comentários a meu respeito, feitos na minha presença. Ficar-lhe-ei grato se me disser sem mais demora por que razão solicitou a minha visita.
A prioresa não se deixou abater por esta admoestação. Ainda que ele fosse bispo, não deixava de ser um "fidalgo de sarjeta", como dizia a sua velha "duena" que lá estava no seio do Senhor; enquanto ela era a filha do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Uma palavra sua ao irmão, confidente do favorito de Filipe III, podia relegar esse prelado para uma obscura diocese das Canárias.
- Lamento ofender a modéstia de Vossa Excelência - respondeu em tom tranquilo - , mas foi justamente a sua virtude e a sua austeridade - a sua santidade, se assim me posso
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exprimir - que constituiu a causa, imediata do meu pedido para que me fizesse a honra de visitar-me. Está informado do estranho caso que se passou com uma menina chamada Catalina Pérez?
- Estou. O confessor dela, homem digno, sem dúvida, mas de pouca instrução e inteligência, referiu-me essa história. Mandei-o calar. Proibi os frades do convento de mencionar tal coisa na minha presença ou de falar nela entre si. Essa rapariga ou é uma impostora à cata de notoriedade, ou uma simplória iludida.
- Não a conheço, senhor, mas segundo todas as informações é uma menina boa, sensata e piedosa. Pessoas de critério, que a conhecem, estão convencidas de que ela é incapaz de inventar semelhante história. Não costuma mentir e, ao que me dizem, está lomge de ser dada a fantasias.
- Se ela teve uma visão como a que descreve, só pode ter sido por ardil de Satanás. Ninguém ignora que os demónios tem o poder de assumir formas celestes para tentar os desprevenidos e arrastá-los à perdição.
- Essa menina sofre um infortúnio imerecido. Não devemos atribuir ao diabo mais habilidade do que ele possui. Como poderia ele ser estúpido ao ponto de julgar que a alma dessa criança incorre em perigo pelo facto de um santo homem lhe impor a mão em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo?
O bispo, que durante essa conversa mantivera os olhos postos no chão, ergueu-os para a superiora a estas últimas palavras, com uma expressão de angústia.
- Minha senhora, Lúcifer, o filho da manhã, caiu por causa do seu orgulho. Como é possível que pelo orgulho eu,
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um homem tão corrupto e pecador, me atreva a fazer milagres ?
- Está bem que na sua humildade se considere um homem corrupto e pecador, Excelência, mas o resto do mundo bem conhece a sua grande virtude. Ouça, senhor: essa história foi divulgada e a cidade inteira anda a falar nela. Todos estão alvoroçados e em expectativa. É preciso dar uma satisfação qualquer ao povo.
O bispo suspirou.
- Eu sei que o povo está perturbado. Grupos de pessoas conservam-se diante do convénto como se aguardassem alguma coisa, e quando saio eles ajoelham-se à minha passagem pedindo que os abençoe. É necessário fazer alguma coisa para que entrem na razão.
- Vossa Excelência permite que lhe dê um conselho? - disse a prioresa com muito respeito; mas os seus olhos tinham um brilho divertido e irónico que de certo modo ateimava aquele.
- Ficar-lhe-ia muito grato.
- Eu não falei com a rapariga porque o seu confessor lhe deu ordem de não repetir a história a ninguém, mas o senhor bispo tem o poder de revogar essa ordem. Não acha que seria conveniente vê-la? Com o seu discernimento, a sua penetração das almas e a habilidade que adquiriu no Santo Ofício com a inquirição de suspeitos, Vossa Excelência descobriria bem depressa se ela é uma impostora, se foi iludida por Satanás ou, afinal, se foi verdadeiramente a Virgem Santíssima que condescendeu em aparecer-lhe.
O bispo alçou os olhos e contemplou a imagem do Redentor pregado à Cruz, no santuário diante do qual a prioresa
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costumava rezar. O seu rosto tinha uma expressão muito triste. Estava dilacerado pela dúvida.
- É escusado lembrar-lhe, senhor, que este convento se acha sob a protecção especial de Nossa Senhora do Carmelo. Nós, pobres freiras, somos sem dúvida alguma indignas dessa honra, mas é possível que ela olhe com um favor especial esta igreja que meu pai, o duque, lhe erigiu na nossa cidade. Seria uma grande honra e uma grande glória para a nossa casa se, por intercessão de Vossa Excelência, a nossa celeste padroeira curasse essa pobre menina da sua enfermidade.
Durante largo tempo o bispo esteve absorto nos seus pensamentos. Por fim tornou a suspirar.
- Onde poderei ver essa menina?
- Haverá lugar mais próprio do que a capela dedicada ao culto da Santíssima Virgem, na nossa igreja?
- É preferível fazer depressa o que tem de ser feito. Que ela venha amanhã, minha senhora:, e estarei aqui à sua espera.
Levantou-se, e ao curvar-se para se despedir da prioresa havia nos seus lábios a sombra de um sorriso - mas tão pesaroso!...
- Uma triste noite me aguarda, Reverenda Madre. Ela ajoelhou-se mais uma vez e beijou-lhe o anel.


XII.

No dia seguinte, à hora aprazada, o bispo entrou na opulenta igreja acompanhado dos seus dois secretários. Catalina, com uma das freiras, esperava na capela da Virgem.
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Mantinha-se em pé com o auxílio da muleta;, mas quando o bispo apareceu a freira tocou-lhe no braço e Catalina fez um movimento para ajoelhar-se. Ele não a deixou.
- Pode deixar-nos - disse à freira e, quando esta saiu, dirigiu-se aos dois frades: - Podem retirar-se, mas fiquem aqui perto. Quero falar a sós com esta menina.
Eles desapareceram silenciosamente. O bispo observou-lhes a retirada. Sabianos muito curiosos e não queria ser ouvido por eles. Deitou então um longo olhar à inválida. Tinha um coração sensível e a desgraça, a miséria e a doença nunca deixavam de comovê-lo. Ela tremia um pouco e estava muito pálida.
- Não te assustes, minha filha - disse ele com suavidade. - Não tens nada a temer se dizes a verdade.
A jovem pareceu-lhe muito simples e inocente. Notou-lhe a singular beleza das feições, mas fê-lo com a mesma indiferença com que teria observado o pêlo ruão ou tordilho de um cavalo. Começou por lhe fazer perguntas sobre ela própria. Catalina respondeu a princípio com muita timidez, mas, como o bispo continuasse a instá-la com perguntas, acabou por ganhar mais confiança. Tinha uma voz suave e melodiosa e expressava-se com correcção. Contou-lhe a singela história da sua vida. Era a história de todas as moças pobres: duros trabalhos, diversões inofensivas, frequentes visitas à igreja e o seu namoro; contou-a, porém, com tal naturalidade e um ar tão ingénuo que o bispo sentiu-se tocado. Parecia-lhe inconcebível que essa rapariga tivesse inventado qualquer coisa para se fazer importante. Cada uma das suas palavras respirava modéstia e humildade. Contou-lhe então o seu acidente, como ficara com
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a perna paralítica e como Diego, o filho do alfaiate, o seu amado com quem ia casar-se, a tinha abandonado.
- Não o censuro - disse ela. - Vossa Excelência ignora talvez que a vida do pobre é dura, e um homem não deseja ter uma mulher incapaz de trabalhar para ele.
Um sorriso tão terno quanto o permitiam as feições conturbadas do bispo perpassou-lhe rapidamente na face. - Como aprendeste a falar tão bem e com tanto critério, minha filha? - perguntou ele.
- Meu tio Domingo Pérez ensinou-me a ler e a escrever. Deu-se a muito trabalho comigo. Tem sido como um pai para mim.
- Eu conheci-o outrora.
Catalina bem conhecia a má reputação do tio e receou que a sua referência a este a prejudicasse no conceito do santo homem. Houve um silêncio e, por um momento, ela julgou que ele fosse pôr fim à entrevista.
- Conte-me agora, nas suas próprias palavras, a história que referiu a sua mãe - disse ele, fitando-lhe um olhar perscrutador.
Catalina hesitou e o bispo lembrou-se de que o seu confessor lhe dera ordem de não falar naquilo. Informou-a gravemente de que tinha autoridade para tornar sem efeito a proibição do confessor.
Ela repetiu então a história, tal qual a havia contado à mãe. Disse que estava sentada nos degraus da igreja a chorar porque toda a cidade estava em festa e só ela era desgraçada, que uma senhora tinha saído da igreja e lhe falara, que ela lhe tinha dito que Sua Excelência o Bispo tinha o poder de curá-la do seu mal, depois desaparecera diante dos seus próprios olhos,
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e que ela compreendera então que essa senhora era a Virgem Santíssima em pessoa.
Quando terminou de falar, fez-se um longo silêncio. O bispo ficara abalado, mas ao mesmo tempo atormentava-o a decisão. A jovem não era uma impostora - disso estava convencido, pois a sua inocência, a sua sinceridade eram inconfundíveis. Não podia ter sido um sonho, porque ela ouvira bater os sinos, rufar os tambores e soar as trombetas quando ele e seu irmão tinham entrado na cidade, e nesse momento Catalina conversava com a dama, a qual ela não tinha razão para supor fosse coisa diversa do que parecia. Como teria Satanás o poder de assumir uma falsa aparência quando a menina estivera a abrir o seu pobre coraçãozinho diante da Mãe de Deus e a suplicar-lhe que a socorresse na sua aflição? Era uma criatura piedosa e não havia nela a menor presunção. Outros tinham visto as suas orações atendidas, outros tinham recebido a graça espiritual, outros tinham sido curados dos seus males. Se ele recusasse, por medo, fazer aquilo que parecia ser-lhe ordenado, porventura não inconreria em grave pecado de omissão?
"Um sinal!" murmurou de si para si. "Um sinal!" Avançou um ou dois passos e chegou ao pé do altar sobre o qual, envolta num grande manto de veludo azul todo pontoado de ouro, com uma coroa de ouro na cabeça, estava a imagem da Mãe de Deus. Ajoelhou-se e orou, pedindo-lhe que o guiasse. Orou apaixonadamente, mas tinha o coração seco e sentia as trevas da noite envolver-lhe a alma.. Por fim, com um triste Suspiro, ergueu-se e ficou com os braços estendidos numa súplica, fitando o olhar desesperado nos olhos meigos da Santíssima Virgem. De repente Catalina lançou um
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grande grito de espanto. Os dois frades haviam desaparecido, mas embora não pudessem ouvir o que ambos diziam, não estavam fora do alcance da voz, e ao sentir esse grito correram tão depressa como coelhos que ganham a toca. Mas o que viram pareceu chumbá-los ao chão. Ficaram mudos, boquiabertos, como se, a exemplo da mulher de Lot, se houvessem convertido em estátuas de sal. Don Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, alçava-se lentamente no ar, tão lentamente como o azeite que escorrega por uma superfície inclinada muito de leve; elevava-se com um movimento regular, quase imperceptível, como as aguas de um rio em enchente. O bispo subiu até colocar-se rosto a rosto com a imagem que encimava o altar, e por um momento ficou suspenso no ar, qual um falcão que se imobiliza sobre as asas estendidas. Temendo que ele caísse, um dos frades fez menção de avançar, mas o outro - o padre António - reteve-o; e o bispo, muito devagar, tão devagar que mal se percebia o movimento, desceu até os seus pés tornarem a tocar o chão de mármore defronte do altar. Penderam-lhe os braços e ele voltou-se. Os dois frades aproximaram-se a correr e, caindo de joelhos, beijaram-lhe a ourela do hábito. Ele não parecia dar-se conta da presença de ambos. Desceu os três degraus do altar e, como ofuscado, saiu da capela aos tacteios. Os dois frades seguiam-no de muito perto, para acudir-lhe no caso de tropeçar. Catalina ficou esquecida. Saíram da igreja. O bispo deteve-se no alto dos degraus, onde a jovem estivera sentada quando Nossa Senhora lhe apareceu, e olhou para a pracinha que resplandecia ao sol de Agosto. O céu sem nuvens estava tão azul e tão claro, em contraste com a penumbra da igreja, carregada de fumos de incenso, que olhar para ele cegava a vista. As casas brancas, cujos postigos estavam fechados por causa do calor, pareciam cintilar com um brilho próprio, como pedras preciosas. O bispo teve um arrepio, embora o dia estivesse quente como uma fornalha, e tornou a si.
- Façam saber à menina que eu a mandarei chamar. Desceu os degraus, seguido pelos frades a uma distância
respeitável. Atravessou a praça de cabeça baixa. Os dois não ousavam falar-lhe. Quando alcançaram o convento dominicano o bispo parou e votou-se para eles.
- Sob pena de excomunhão, não digam uma só palavra sobre o que viram hoje.
- Foi um milagre, senhor - volveu o padre António. - Acaso é justo que tão conspícuo sinal do favor divino seja ocultado aos nossos irmãos?
- Ao fazer a sua profissão, meu filho, você prestou voto de obediência.
Padre António fora aluno do bispo quando este ensinava teologia em Alcalá, e foi por influência de frei Blasco que ele entrou na Ordem Dominicana. Era vivo e inteligente, e ao ser nomeado inquisidor em Valência, o mestre levou-o consigo na qualidade de secretário. Sentia-se reconhecido ao jovem monge pela sua dedicação e, embora tentasse muitas vezes moderar a excessiva admiração que António tinha por ele, os seus argumentos não faziam senão intensificá-la ainda mais. Padre António, embora fosse tão devoto e zeloso na observância dos seus deveres religiosos quanto podia desejá-lo o Bispo, embora tivesse uma vida impoluta e se mostrasse diligentíssimo no serviço da Igreja, sofria dessa doença que Juvenal chamou "cacoethes soribendi": não se contentando em tomar a vasta correspondência do inquisidor e em redigir
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os inúmeros relatórios, documentos, decisões, etc, necessários à direcção dos negócios do Santo Ofício, passava todos os seus momentos de folga a escrevinhar; e o inquisidor descobriu - como descobria tudo que se relacionava com a sua pessoa ou o seu cargo - que padre António estava mantendo uma crónica minuciosa dos seus actos, de cada palavra que ele pronunciava e dos vários sucessos da sua carreira. Percebia, cheio de humildade, que o secretário lhe dedicava uma estima exagerada, e nos seus exames de consciência perguntava a si mesmo se não lhe incumbiria o dever de pôr termo àquele trabalho, pois muito bem sabia com que fim o frade escrevia. Metera-se naquela cabeça ilustrada, mais tonta, que ele, Frei Blasco de Valero, tinha a fibra de que se fazem os santos e que um documento como o que estava preparando seria valioso para a Cúria quando, após a sua morte, se instaurasse o processo de beatificação. Ainda que perfeitamente cônscio da sua indignidade, o inquisidor não deixava de ser humano e vibrava de piedosa exultação ao considerar a possibilidade, embora remota, de que algum dia viesse a ser contado entre os santos da Igreja. Açoitava-se até fazer correr sangue para punir-se da sua presunção, mas não podia decidir-se a privar aquela boa e piedosa Griatura de uma ocupação evidentemente inofensiva. E quem sabe? Era possível que a simples piedade religiosa do autor lhe permitisse compor uma obra que, apesar da insignificância do assunto, fosse edificante para os fiéis. Nesse instante, lendo no coração do frade, o bispo teve a certeza de que, conquanto os lábios deste não deixassem escapar nem uma palavra sequer do que sucedera na igreja das carmelitas, uma exposição pormenorizada do facto seria incluída no livro. O portentoso fenómeno que hoje conhecemos
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como levitação, e de que ele fora instrumento, tornara-se-lhe familiar através da leitura das vidas de vários santos, e toda a Espanha sabia que em tempos recentes esse sinal de favor divino fora conferido a Pedro de Alcântara, à Madre Teresa de Jesus e a mais de uma freira da ordem das carmelitas descalças. O bispo não podia esperar que padre António omitisse tal ocorrência no seu livro e, mesmo, ignorava se tinha o direito de ordenar-lhe tal coisa. Assim, entrou no convento sem dizer mais uma palavra e dirigiu-se para a sua cela.


XIII.

Não se lembrara, porém, de impor segredo a Catalina, e nem bem os três religiosos tinham deixado a igreja quando ela correu para casa tão depressa quanto lho permitia o seu estado de invalidez. Domingo fora a uma das povoações circunvizinhas a chamado de alguém e só Maria estava em casa. Catalina contou-lhe, em tom aterrado, o portento de que fora testemunha, e depois de terminar contou tudo de novo.
Maria Pérez tinha um pouco do senso dramático que parecia ter sido negado a seu irmão, o dramaturgo. Reprimindo com esforço a sua impaciência, aguardou a hora do recreio no convento, quando todas as freiras estariam reunidas, em palestra com as damas pensionistas e pessoas da cidade; poderia, assim, relatar a assombrosa ocorrência obtendo dela o maior efeito possível. Tinha um público numeroso quando contou a história, e deu-lhe grande satisfação o espanto com
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que a ouviram. Tal foi a impressão causada na subprioresa que esta achou necessário repetir o caso a Dona Beatriz sem perda de um só instante. Daí a pouco Maria Pérez foi chamada à presença da superiora e tornou a desfiar a mesma narrativa; A superiora escutou-a com uma satisfação que não se deu ao trabalho de ocultar.
- Diante disso não é possível hesitar mais - disse ela. - Será uma grande glória não só para este convento, mas para a Ordem de Nossa Senhora do Carmelo.
Despediu as duas mulheres e, apanhando a pena de pato, escreveu ao bispo uma carta em que dizia ter sido informada da graça que lhe fora concedida aquela manhã. Não se faziam mister maiores provas da verdade do que afirmara a jovem Catalina Pérez e de que tal ocorrência não era atribuível a uma maquinação do Inimigo e sim à compaixão de Nossa Senhora. Conjurava-o a pôr de parte as suas dúvidas e incertezas, pois com toda a evidência o seu dever cristão lhe ordenava aceitar a missão que lhe fora imposta. Era uma carta perfeita, sucinta mas bem argumentada, respeitosa mas firme, e a superiora terminava rogando-lhe, com grande humildade, que se dignasse realizar o milagre na mesmo igreja em que lhe fora conferido esse favor divino e à qual era evidente ter a Santíssima Virgem concebido uma afeição especial. Enviou a carta por um mensageiro.
Dois dos cavalheiros que se encontravam na sala de visitas do convento quando Maria Pérez contou a história ficaram tão impressionados que foram acto contínuo ao convento dos dominicanos indagar da sua veracidade. Os frades, naturalmente, nada sabiam, mas não se surpreenderam em absoluto quando o caso lhes foi repetido. Conheciam perfeitamente
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a gramde santidade do bispo e nada era mais natural do que conferir-lhe o Senhor a assinalada honra da levitação. Nesse meio tempo, uma das pensionistas das carmelitas foi visitar pessoas amigas na cidade e relatou-lhes o milagroso acontecimento. Dentro de uma ou duas horas toda a cidade tinha conhecimento do oconrido. Outros cavalheiros dirigiram-se para o convento dos dominicanos, a fim de colher informações de primeira mão. Os frades vibravam de entusiasmo religioso. Finalmente, Padre António viu-se na obrigação de ir dizer ao bispo que, embora nem ele nem o seu companheiro houvessem falado, o facto se tornara conhecido de todos. A carta da prioresa estava aberta em cima da mesa.
- Essas miseráveis mulheres são incapazes de refrear a língua - disse Don Blasco, apontando para ela. - É uma grande humilhação para mim que essa história tenha transpirado.
- Os nossos irmãos deste convento esperam que Vossa Excelência consinta agora em curar a infeliz jovem da sua enfermidade.
Bateram à porta. Padre António foi abri-la. Era um frade com um recado do prior perguntando se podia falar ao bispo.
- Que venha.
Padre António esteve presente à entrevista e escreveu uma relação da mesma, com toda a minúcia. Ao cabo, o bispo deixou-se convencer de que a vontade do Senhor era que ele obedecesse à solicitação da Santíssima Virgem. Formulou, todavia, condições que o prior, muito a contragosto, foi obrigado a aceitar. Queria o prior uma cerimónia com todos os monges reunidos, em presença das notabilidades locais, tanto leigas como eclesiásticas. Mas a isto o Bispo se opôs asperamente.
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Insistiu em que se guardasse sigilo. Estava disposto a ir à igreja das carmelitas e dizer a sua missa ali na manhã seguinte. Deviam fechar-se as portas para que ninguém fosse admitido. Ele próprio só iria acompanhado pelos seus dois secretários. Bastante enraivecido pelo que lhe parecia uma desconsideração à sua dignidade, o prior retirou-se. O bispo mandou então o padre António informar Dona Beatriz da sua decisão. Dava-lhe licença de trazer as suas freiras, mas proibia as damas pensionistas de comparecer. Recomendava-lhe que fizesse Catalina preparar-se para tomar a Santa Comunhão depois da missa e pedia-lhe, a ela e às suas freiras, que orassem por ele aquela noite.
Dentro de uma hora, uma freira toda emocionada veio à casa de Maria Pérez e pediu para ver Catalina, pois tinha algo muito importante para lhe dizer em particular. Depois de chamarem Catalina a freira levou o dedo aos lábios, recomendando discrição.
- É um grande segredo - disse ela. - Não deves contar a ninguém. O senhor bispo vai curar-te e amanhã estarás correndo e pulando sobre os dois pés, como qualquer outro cristão.
Catalina susteve o fôlego e o seu coração pôs-se a bater como doido.
- Amanhã?
- Terás de tomar a Sagrada Comunhão, de modo que não deves comer nada depois da meia-noite.
- Sim, eu sei. Mas de qualquer jeito nunca como nada depois da meia-noite.
- Além disso, deves pôr-te em estado de graça. Depois de comungares ele te deixará tão sã como Nosso Senhor deixou o leproso.
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- A mamã e o tio Domingo podem ir?
- Não me disseram nada a esse respeito. Está claro que podem. Talvez isso também cure o teu pobre tio dos seus maus costumes.
Domingo não voltou do campo senão tarde naquela noite, mas assim que ele entrou em casa Catalina contou-lhe, toda agitada, a emocionante nova. Ele fitou-a cheio de consternação.
- Não ficais contente, tio? - exclamou ela.
Em lugar de responder ele pôs-se a caminhar de um lado para outro. Catalina não podia compreender essa estranha atitude.
- Mas que (tens, tio? Isso não te agrada? Eu pensava que ficarias tão contente como eu. Não queres que eu me cure?
Ele sacudiu os ombros com irritação e continuou a percorrer o quarto de um lado para outro. Ainda não estava plenamente convencido de que a aparição não fora um produto da mente perturbada da sobrinha e temia as consequências para ela se a intervenção do bispo fosse inútil. Em tal caso, o Santo Ofício bem podia achar que o assunto exigia inquérito.
Seria um desastre. Parou de repente e virou-se para Catalina.
Olhou-a com uma expressão severa que a jovem nunca lhe
tinha visto até então.
- Conta-me exactamente o que te disse a Virgem Santíssima.
Ela repetiu a história.
- E então a Virgem disse: "O filho de Juan de Valero que melhor tem servido a Deus possui o poder de curar-te."
Domingo interrompeu-a asperamente.
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- Mas não foi isso que disseste a tua mãe! Disseste-lhe que Blasco de Valero tinha o poder de curar-te.
- Dá no mesmo. O bispo é um santo, todo o mundo sabe disso. Qual dos filhos de Dom Juan tem servido a Deus tão bem como ele?
- Ó tola! - exclamou Domingo. - Ó grande tolinha!
- Tu é que és tolo! - retrucou ela, acalorada.
Não acreditaste que a Santíssima Virgem me tinha aparecido, falado comigo e desaparecido diante dos meus olhos. Pensavas que fosse um sonho. Pois bem, ouve isto.
E contou-lhe como vira o bispo elevar-se do chão, ficar suspenso no ar e descer novamente até ao chão.
- Isso não foi sonho. Os dois frades que lá estavam viram-no com os seus próprios olhos.
- Coisas ainda mais extraordinárias têm acontecido - resmungou ele.
- E contudo não queres acreditar que Nossa Senhora me apareceu.
Ele deitou-lhe um olhar cintilante.
- Não é verdade. Antes não acreditava, mas agora acredito, não por causa do que viste essa manhã mas pelas palavras que te dirigiu a Santíssima Virgem. Há nelas um sentido oculto que me convence.
Catalina ficou perplexa. Não compreendia como a insignificante disparidade entre as duas versões pudesse fazer alguma diferença. Ele afagou-lhe a face com brandura.
- Sou um grande pecador, minha pobre criança, e o que torna desesperada a minha situação é que nunca pude arrepender-me dos meus pecados. Tenho tido uma existência aventurosa e frívola, mas li muitos livros, antigos e modernos,
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e aprendi muita coisa que talvez fosse melhor para a minha alma não conhecer. Mas coragem, minha querida, talvez tudo ainda venha a terminar bem. Apanhou o chapéu.
- Aonde vais, tio?
- Passei um dia muito atarefado e preciso distrair-me. Vou à taberna.
Nisto, porém, Domingo faltava com a verdade, pois em lugar de ir à taberna dirigiu-se para o convento dos dominicanos. Embora ainda estivesse claro, a hora era avançada e o porteiro não o deixou entrar. Domingo insistiu que precisava falar com o bispo sobre um assunto de grande importância, mas o porteiro, falando pelo postigo, negou-se a abrir a porta. Domingo disse-lhe que era o tio de Catallina Pérez e rogou-lhe que chamasse pelo menos um dos secretários de Sua Excelência. O porteiro mostrou-se pouco disposto a atender mesmo a esse pedido, mas tanto insistiu Domingo que ele consentiu afinal. Volvidos alguns minutos, padre António aproximou-se do postigo. Domingo implorou-lhe que o deixasse falar ao bispo, pois tinha uma comunicação da maior importância para este. O frade, evidentemente, estava informado a respeito da sua pessoa e conhecia-lhe a má reputação, pois respondeu com frieza. Disse que era impossível incomodar Sua Excelência, que estava a passar a noite em orações e dera ordens para que não o interrompessem sob pretexto algum.
- Se não me deixar vê-lo será responsável por um terrível infortúnio.
- Bêbedo! - disse padre António desdenhosamente.
- Sou um bêbedo, é verdade, mas não estou embriagado
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agora. Vai lamentar amargamente o facto de não me ter deixado entrar.
- Que mensagem é essa que me pede para transmitir? Domingo hesitou. Não sabia o que dizer.
- Diga-lhe que, pelo amor que lhe tem, Domingo Pérez lhe manda esta mensagem: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo."
- "Hijo de puta!" - gritou padre António, enraivecido por ouvir esse valdevinos, esse dissoluto citar a Santa Escritura.
Bateu-lhe com o postigo na cara. Domingo afastou-se, cheio de melancolia. O hábito orientou-lhe os passos para a taberna. e ele entrou. Era uma criatura sociável e, se não tinha muitos amigos, tinha pelo menos bom número de companheiros de libação. Embebedou-se e, uma vez bêbedo, soltou-se-lhe a língua. Gostava de se ouvir falar e, nessa ocasião como em muitas outras, foi-lhe fácil encontrar ouvintes.


XIV.

Na manhã seguinte, quando, como teria dito Domingo num dos seus poemas, Aurora esfregou os olhos com os dedos rosados e Febo atrelou ao seu carro de ouro os velozes corcéis do sol - ou seja, em prosa, ao romper do dia, três monges dominicanos com os capuzes baixados sobre as cabeças rapadas à navalha, em parte para ocultar-se e em parte para se protegerem dos nocivos vapores da noite que ainda não se acabara de todo, saíram atenciosamente do convento. Mas, embora
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fosse tão cedo, os habitantes da cidade tinham sentido qualquer coisa no ar e já havia um grupo reunido diante do portão do convento. Na alta figura encapuzada que caminhava entre as duas outras, reconheceram de imediato a santa pessoa do bispo. Seguidos a respeitosa distância pelos curiosos, os três frades dirigiram-se rapidamente para a igreja das carmelitas. Outras pessoas esperavam ali. Um dos frades bateu à porta. Esta abriu-se o suficiente para deixá-los passar um após outro e cerrou-se atrás deles. Quando os espectadores tentaram entrar, encontraram-na fechada à chave e, embora batessem, fizeram-no em vão.
Catalina esperava na capela da Virgem. Maria Pérez e Domingo tinham-na acompanhado, mas não os deixaram entrar. Dona Beatriz recebeu o bispo à porta da igreja com as suas freiras, vinte ao todo, pois tal era o limite fixado pelo duque de Castel Rodríguez ao fundar a instituição. O bispo entrou na sacristia com os seus dois auxiliares e envergou as sacras vestimentas. Dirigiu-se devagar para a capela da Virgem. As freiras estavam de joelhos. Apoiando-se na muleta, Catalina ajoelhou-se ao pé dos degraus do altar. O bispo celebrou a missa. As freiras entoaram os responsos em voz baixa e reverente. Ele administrou a Santa Comunhão a Catalina. Após a bênção e a leitura do último Evangelho, ajoelhou-se diante do altar e orou em silêncio. Depois ergueu-se, fitando em Catalina os grandes olhos trágicos, desceu os degraus. Pousou-lhe na cabeça a mão fina e morena.
- Eu, instrumento indigno do Altíssimo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ordeno-te que lances fora essa muleta e caminhes.
Começara em voz trémula e tão sumida que as freiras mal
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podiam ouvi-lo, mas pronunciou as últimas palavras sonoramente, num tom claro de comando. Catalina, com o rosto pálido de emoção, os olhos cintilantes, ergueu-se em pé, largou a muleta!, deu um passo à frente e, com um grito de angústia, caiu redondamente no chão. O milagre havia falhado.
Imediatamente se formou uma balbúrdia entre as freiras. Algumas puseram-se a gritar e duas delas desmaiaram. A prioresa adiantou-se. Relanceou os olhos para Catalina e depois o seu olhar encontrou o do bispo. Por um instante encararam-se fixamente. À retaguarda as freiras soluçavam. Então o bispo saiu da capela, com os dois frades atrás de si, e entrou na sacristia. Não disse uma só palavra. Após tirarem as vestimentas da missa e tornarem a pôr os seus hábitos monásticos, entraram de novo na igreja. A porteira estava à espera para abrir a porta. Com a cabeça novamente coberta pelo capuz, o bispo tornou a sair para o sol claro da manhã de Verão.
Tinha-se espalhado a notícia de que ele estava realizando um milagre naquele momento e as janelas da praça estavam apinhadas de espectadores. Formavam uma multidão compacta nos degraus da igreja e o logradouro estava cheio deles. Durante um instante o bispo ficou aterrado por ver aquele grande concurso de povo - mas só durante um instante. Compôs o hábito e aprumou-se. Assim que ele aparecera, um estremecimento de consternação percorreu o povo, pois de um modo misterioso este compreendeu de imediato, embora não soubesse dizer como, que o milagre falhara. Abriram caminho e o bispo, seguido pelos dois frades, desceu a escadaria da igreja. Aqueles que se encontravam na praça recuavam, comprimindo-se uns aos outros, e ao passar o bispo pela espécie
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de corredor assim formado, com o rosto oculto, a alta figura encolhida no hábito branco e preto da ordem, fazia-se na multidão um temível silêncio. Dir-se-ia que estivessem apavorados ante a iminência de alguma catástrofe inevitável.


XV.

Os monges do convento dominicano tinham-se indignado quando o bispo lhes negou permissão de assistir à cerimónia. Ao regressar com os seus dois secretários, encontrou-os vadiando, à espera para olhá-lo. A notícia já havia alcançado o convento. Passou por eles como se não os visse.
Ao saber que teriam no seu meio um hóspede tão ilustre, haviam provido a sua cela do luxo que lhes parecia condizente com a sua grandeza. Mas ele mandara logo retirar tudo quanto ofendia a sua austeridade. Obrigou-os a trocar o colchão macio da cama por outro de palha, tão fino quanto um cobertor, e pediu que as duas poltronas colocadas no oratório fossem substituídas por mochos de três pés. Tinham-lhe dado uma bela mesa de teca para escrever, mas ele reclamou, em lugar dela, uma mesa de pinho sem pintura. Não aceitava nada que desse prazer aos sentidos. Rejeitou os quadros que hiaviam pendurado nas paredes. Estas ficaram nuas, com excepção de uma simples cruz negra, sem a figura de Nosso Senhor, quer esculpida, quer pintada, e isso a fim de que ele pudesse imaginar-se mais vivamente pregado a ela, sentindo assim no seu corpo o suplício que havia experimentado o Redentor por amor à humanidade.
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Ao entrar na sua cela, o bispo deixou-se cair no duro mocho de madeira e fitou os olhos no pavimento de pedra. Lágrimas lentas e dolorosas escorreram-lhe pelas faces cavadas. Padre António encheu-se de compaixão ao ver o seu mestre mergulhado num sentimento que muito se parecia com o desespero. Cochichou qualquer coisa ao seu companheiro, que no mesmo instante saiu, voltando ao cabo de poucos minutos com uma tigela de sopa. Padre António ofereceu-a ao bispo.
- Coma, senhor.
O bispo desviou o rosto.
- Não poderia engolir nada.
- Mas, Excelência, não tem posto nada na boca desde ontem de manhã! Rogo-lhe que tome pelo menos algumas colheradas.
Ajoelhou-se, encheu uma colher com a sopa fumegante e levou-a aos lábios do bispo.
- Você é muito bom para mim, meu filho - disse este. - Não mereço as atenções que me dedica.
Para não ser grosseiro, engoliu o conteúdo da colher e o monge deu de comer ao humilhado homem como se este fosse uma criança enferma. O bispo não desconhecia o profundo apego que lhe tinha o seu fiel auxiliar e mais de uma vez o advertira do perigo de tal coisa, pois um religioso deve estar sempre em guarda para não tomar afeição a indivíduos particulares, o que não faz senão criar obstáculos à integral devoção para com o Senhor, que é o único objecto verdadeiro de amor. Quanto aos seres humanos, quer clérigos quer leigos, deve tratá-los com boa vontade, pois são criaturas de Deus, mas ao mesmo tempo - visto que são perecíveis - com uma indiferença para a qual tanto faz estarem presentes como
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ausentes. Mas é difícil governar os afectos e, por mais que o tentasse, padre António não conseguia eliminar o amor, a devoção extática de que estava repleto o seu pobre coração. Depois que o bispo comeu, padre António pôs de lado a tigela e, sempre de joelhos, atreveu-se a tomar-lhe a mão.
- Não se amargure tanto, senhor. A menina foi enganada pelo demónio.
- Não, a culpa foi minha. Solicitei um sinal e ele foi-me dado. Na minha vanglória, não me julguei indigno de realizar aquilo que só é concedido aos santos eleitos pelo Senhor. Sou um pecador e fui justamente punido pela minha presunção.
Tão acabrunhado estava o bispo que o frade ousou falar-lhe num tom que jamais teria empregado em outras circunstâncias.
- Todos nós somos pecadores, meu senhor, mas eu tive o privilégio de conviver consigo durante muitos anos e ninguém melhor do que eu conhece a sua constante bondade para com todos os homens, a sua inesgotável caridade e compaixão.
- Quem fala agora, é a sua bondade, meu filho. É a afeição que me tem, contra a qual o tenho advertido tantas vezes e que eu tão pouco mereço.
Padre António considerou com piedade o nosto agoniado do bispo. Continuava a segurar-lhe a mão fria e emaiciada.
- Permite que eu lhe leia um pouco para distraí-lo, meu senhor? - disse ele depois de uma pausa. - Escrevi ultimamente alguma coisa sobre a qual desejaria a sua opinião.
O bispo sabia quão amargurado estava o pobre frade pelo facto de não se haver realizado o milagre que ele aguardara com tão absoluta confiança, e sentiu-se tocado ao ver esse homem simples e estimável vencer a sua própria decepção para
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o atender e consolar. Até então, jamais havia consentido em escutar uma palavra sequer do livro que o seu secretário escrevia com tanta diligência, mas dessa vez não teve coragem de recusar-lhe um prazer que ele tão ardentemente desejava.
- Leia, meu filho. Terei muito gosto em ouvir.
Com as faces rubras de prazer, o padre pôs-se atabalhoadamente em pé e tirou, de entre os numerosos papéis com que o seu cargo o obrigara a lidar, várias folhas manuscritas. Sentou-se num dos mochos. O outro frade sentou-se no chão, pois não havia outro lugar onde sentar-se. Padre António começou a ler.
Escritor erudito e elegante, nenhum artifício de retórica lhe era desconhecido. Tinha um estilo rico em símiles e metáforas, metonímias, sinédoques e catacreses. Nunca soltava um substantivo sem o escoltar com dois robustos adjectivos. As imagens brotavam-lhe na mente tão pingues e profusas como cogumelos após a chuva. Versado como era nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja e dos moralistas latinos, nunca tinha dificuldade em encaixar uma alusão oculta. Conhecia a fundo a estrutura dos períodos, simples, complexos, compostos e compostos-complexos, e não só sabia compô-los de maneira perfeita, com cláusulas e subcláusulas, mas também dar-lhe um fecho sonoro e triunfante que fazia o efeito de uma porta batida na cara do leitor. Esse estilo literário, a que um crítico engenhoso deu o nome de "Mandarim", é muito estimado pelos que o adoptam, mas tem a pequena desvantagem de tomar muito tempo para exprimir aquilo que se pode dizer em poucas palavras. Em todo o caso, ele destoaria da linguagem simples e tosca em que é vasada esta narrativa; de modo que, ao invés de fazer uma inútil tentativa de reproduzir
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a grandiloquência do bom frade, o autor destas páginas achou de bom aviso dar uma súmula do assunto à sua moda singela.
Não sem bastante tacto, padre António escolheu para ler o relato do grande auto-de-fé que havia coroado a carreira de Frei Blasco no Santo Ofício e que, conforme mencionamos anteriormente, causara tanto prazer ao príncipe, agora Filipe III, e a seu tempo ocasionara a elevação do piedoso inquisidor à importante diocese de Segóvia.
A impressionante cerimónia, feita para inspirar respeito à autoridade da Inquisição e edificar o povo, realizou-se num domingo, a fim de que ninguém pudesse pretextar suas ocupações para deixar de comparecer, visto que isso era um dever religioso; e, para conseguir-se um público tão numeroso quanto possível, concederam-se quarenta dias de indulgência a todos quantos assistissem. Três palanques tinham sido erigidos na grande praça da cidade, uma para os penitentes com os seus assistentes espirituais, outro para os inquisidores, autoridades do Santo Ofício e o clero em geral, e um terceiro para as autoridades civis e dignitários locais. As solenidades, no entanto, tiveram início na noite anterior com a procissão da Cruz Verde. Em primeiro lugar, com um estandarte de damasco carmesim em que fora bordado o escudo real, ia uma multidão de familiares e de cavalheiros; depois as ordens religiosas, com a Cruz Branca; a Cruz da igreja da paróquia, carregada pelo clero secular; e finalmente a Cruz Verde, carregada pelo prior dos dominicanos, acompanhado pelos seus frades com tochas. Enquanto caminhavam, cantavam o "Miserere". A Cruz Verde foi plantada acima do altar, no palanque reservado aos inquisidores, e guardada durante a noite pelos dominicanos. A Cruz Branca
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foi conduzida ao local da execução, onde lhe montaram guarda soldados da "Zarza", milícia encarregada de vigiar o "quemadero" ou lugar onde se armavam as fogueiras, e de fornecer lenha para estas.
Um dos deveres dos inquisidores era visitar durante a noite os condenados à morte, informá-los da sentença e designar dois monges que deviam preparar cada um deles para enfrentar o Senhor. Nessa, ocasião, porém, padre Baltasar, o mais moço dos inquisidores, estava acamado com uma cólica e desejando refazer-se o suficiente para tomar parte nas cerimónias do dia seguinte, rogou a Frei Blasco que o escusasse de acompanhá-lo nessa triste missão.
Ao nascer do dia celebrou-se a missa na câmara de audiências do Santo Ofício e diante do altar da Cruz Verde. Serviu-se uma refeição aos prisioneiros e aos frades que tinham feito companhia aos condenados e que, sem dúvida, a acolheram com alegria. Os penitentes foram então dispostos em fileiras, de acordo com a gravidade do seu delito contra a fé, e vestiram-nos com sambenitos. O sambenito era uma túnica amarela num de cujos lados tinham pintado chamas para os condenados à fogueira, e no outro lado estava inscrito o nome, residência e crimes cometidos por cada um. Davam-lhe cruzes verdes para carregar e punham-lhe círios amarelos na mão.
Formou-se outra procissão. Os soldados da "Zarza", que a conduziam eram seguidos de um religioso com uma cruz envolta numa mortalha negra e de um acólito que de tempos a tempos dobrava uma sineta. Vinham então os penitentes, um a um, com um familiar de cada lado; depois, as efígies ou as ossadas daqueles que, pela fuga ou pela morte, tinham esbulhado o Santo Ofício da sua justa presa; em seguida,
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os condenados à morte, acompanhados pelos frades que lhes tinham prestado assistência espiritual durante a noite. Seguiam-se autoridades a cavalo, familiares a avançar dois a dois, os magistrados e os dignitários eclesiásticos, de acordo com a ordem oficial de precedência. Um nobre de alta categoria carregava um estojo de veludo vermelho, franjado de ouro, que continha as sentenças dos condenados. Vinha então o estandarte do Santo Ofício, conduzido pelo prior dos dominicanos, seguido dos seus monges; e, por último, os inquisidores.
Era um belo dia de sol, um desses dias que estimulam o espírito de moços e velhos, fazendo-lhes sentir que a vida é boa.
A procissão avançou lentamente pelas ruas tortuosas até chegar à praça. Havia grande afluência de povo. Muita gente acorrera das férteis fazendas que cercavam a cidade dos arrozais e dos olivais; outros, ainda vinham de Alicante, a terra dos parreirais, e de Elche, a região das tamareiras. As janelas das casas circundantes estavam cheias de pessoas nobres e gradas. O príncipe esperava com a sua comitiva num balcão da municipalidade.
Fizeram os réus sentar-se no palanque erigido para eles, na ordem em que tinham marchado, os menos culpados nos bancos inferiores e os mais criminosos nos superiores. Havia no palanque dois púlpitos em que se acomodou o tribunal, e de um desses púlpitos fez-se uma prédica. Então, numa voz tão alta que todos podiam ouvi-lo, um secretário leu o juramento pelo qual as autoridades e todos os presentes se comprometiam a obedecer ao Santo Ofício e a perseguir os hereges e a heresia. Todos disseram ámen, Em seguida, os dois inquisidores dirigiram-se para a sacada em que se achava o príncipe e, sobre a Cruz
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e os Evangelhos, exigiram-lhe um juramento pelo qual se obrigava a obedecer à fé católica e ao Santo Ofício, a perseguir os hereges e apóstatas e ajudar a Inquisição a capturar e punir, quaisquer que fossem a sua posição e categoria-, os infiéis que rejeitavam a verdadeira religião.
- Eu o juro e prometo pela minha fé e sob a minha palavra real - respondeu solenemente o príncipe.
Havia um banco entre os dois púlpitos, e para ali os penitentes foram conduzidos um a um. Leram-lhes as sentenças, alternativamente, de um e de outro púlpito. Com excepção dos condenados às chamas, era a primeira vez que lhes anunciavam o seu destino, e como alguns perdiam os sentidos ao ouvi-lo o Santo Ofício, na sua misericórdia, havia munido o banco de um gradil para que não se magoassem ao cair. Nessa ocasião um homem, alquebrado pela tortura, morreu ali mesmo do choque. A Última sentença foi lida e os réus entregues ao braço secular. O Santo Ofício não impunha qualquer espécie de pena que implicasse em derramamento de sangue, chegando mesmo ao ponto de instar com as autoridades civis para que poupassem a vida do criminoso. A lei canónica, no entanto, exigia-lhes que punissem prontamente os hereges confiados às suas mãos pela Inquisição e concedia-se uma indulgência aos devotos que trouxessem lenha para a fogueira destinada a queimá-los.
Ficava assim terminada a tarefa dos inquisidores, que se retiraram. Os soldados da "Zarza" entraram na praça e descarregaram os seus mosquetes. Depois cercaram os prisioneiros e marcharam com eles para o local da execução, a fim de protegê-los contra a fúria do populacho, que, no seu ódio à heresia, tê-los-ia maltratado e até seria capaz de matá-los.
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Os frades acompanhavam-nos, esforçando-se até ao fim por lhes arrancar uma palavra de arrependimento e conversão. Entre eles havia quatro mulheres mouras, cuja beleza provocou a admiração de todos, um impenitente mercador holandês que fora apanhado a introduzir no país uma tradução espanhola do Novo Testamento, um mouro culpado de ter morto uma galinha cortando-lhe a cabeça, um bígamo, um mercador que dera asilo a um fugitivo do Santo Ofício, e um grego culpado de defender opiniões condenadas pela Igreja. Um aguazil e um secretário foram com as autoridades civis, para tratar de que as sentenças fossem devidamente executadas. O secretário, nessa ocasião, era padre António, que assim teve oportunidade de fazer um relato completo dos acontecimentos do dia.
O "quemadero" ficava fora da cidade. Garrotes tinham sido presos às estacas, a fim de que aqueles que houvessem manifestado a intenção de morrer na fé cristã, inclusive os que o faziam no último momento, pudessem escapar à morte pelo fogo, perecendo pelo método mais suave do estrangulamento. A multidão precipitara-se em pós dos soldados e dos prisioneiros e grande número de pessoas, a fim de apreciar melhor os trâmites da execução, foram tomar lugar antecipadamente no espaço aberto em que devia verificar-se a cena final. Havia ali enorme assistência, o que era natural, pois tratava-se de um espectáculo digno de ser visto e de um entretenimento muito apropriado a um hóspede de sangue real; além disso, o espectador tinha a satisfação de saber que estava realizando um acto de piedade e um serviço a Deus. Os destinados ao garrote foram garroteados. Depois atearam-se as chamas, e vivos e mortos foram reduzidos a cinzas, a fim de que a sua memória
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desaparecesse para sempre. O povo levantou um clamor e pôs-se a bater palmas ao ver subir as chamas, abafando quase os gritos agudos das vítimas, e aqui e além uma mulher entoava um salmo lamentoso e estridente à Santíssima Virgem ou a Cristo Crucificado. Caiu a noite e a multidão voltou aos grupos para a cidade, fatigada de tanta emoção e tantas horas passadas em pé, mas sentindo que tivera um dia feliz. Dirigiam-se em grande número para as tabernas. Os bordéis tiveram um movimento nunca visto e muito homem pôs à prova nessa noite a eficácia do fragmento do hábito de frei Blasco, que usava num escapulário ao pescoço.
Padre António também estava cansado, mas a sua primeira obrigação era comunicar os acontecimentos aos dois inquisidores. Feito isso, como era um homem consciencioso, apesar da fadiga que o tentava a ir para a cama sentou-se e escreveu uma narrativa circunstanciada de tudo quanto sucedera naquele dia, enquanto tinha todos os pormenores frescos no espírito. Fê-lo com rapidez e uma eloquência que parecia inspirada pelo Céu, e ao reler o que escrevera verificou que não havia necessidade de alterar uma só palavra. Finalmente, ditoso pela consciência de haver cumprido o seu dever e contribuído, além disso, com a sua modesta parte para uma obra piedosa, meteu-se na cama e dormiu o sono inocente de uma criança.
Tudo isso ele o leu ao desalentado bispo em voz forte e sonora, dando uma ênfase dramática aos episódios mais significativos. Lia com os olhos pregados ao papel. Sentia uma estranha exaltação. Era assim que se servia o Senhor e se mantinha a pureza da fé católica. Terminou a leitura. Tinha de reconhecer que fizera justiça à grandiosa solenidade. Ele próprio sentia a vividez da sua descrição e a maneira artística por que conduzira
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a narrativa, sem saber como, a um clímax imponente. Alçou os olhos. Como muitos outros escritores que submetem a sua obra à apreciação de um ouvinte, gostaria de ser recompensado com uma palavra de louvor. Mas isso não passou de um desejo momentâneo. O fim principal era dissipar as sombrias imaginações do seu amado e venerado superior, lembrando-lhe o mais glorioso incidente da sua carreira. Por mais santo que fosse, não podia deixar de sentir um estremecimento de orgulho ao surgir-lhe ante os olhos do espírito aquele dia magnífico em que relegara aos tormentos eternos tão grande número de amaldiçoados hereges, servindo assim o Senhor, desobrigando a sua consciência e edificando o povo. Padre António ficou surpreendido, mais do que surpreendido, ateimado, quando viu que as lágrimas lhe desciam pelas faces murchas e ele apertava os punhos com força, para conter os soluços que lhe sacudiam o peito.
Atirou ao chão o manuscrito e, saltando do tamborete em que estava sentado, lançou-se aos pés do seu mestre.
- Mas que tem o senhor? - exclamou. - Que fiz eu? Li apenas para distraí-lo...
O bispo afastou-o de si e, pondo-se em pé, estendeu os braços súplices para a cruz negra pregada à parede.
- O grego! - gemeu ele. - O grego!
E, incapaz de se conter por mais tempo, desatou num choro arrebatado. Os dois frades contemplavam-no cheios de consternação. Nunca tinham visto esse homem austero entregar-se a crises emotivas. O bispo secou as lágrimas impacientemente, com a palma da mão.
- Eu sou o culpado - gemeu ele - , terrivelmente culpado.
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Cometi um horrendo pecado e a minha única esperança de perdão está na infinita misericórdia do Senhor.
- Explique pelo amor de Deus, Excelência! Estou absolutamente confuso. Pareço um marinheiro numa tempestade, com o barco desarvorado e o leme perdido. - Com o seu trecho literário ainda a ressoar-lhe nos ouvidos, era impossível a padre António deixar de falar como um livro.
- O grego? Porque Vossa Excelência se refere ao grego? Era um herege e sofreu a justa punição do seu crime.
- Você não sabe o que diz. Não sabe que o meu crime é ainda maior que o dele. Pedi um sinal e o sinal foi-me dado. Tomei-o por um indício da graça divina;; vejo agora que era um indício da Sua cólera. É justo que eu seja humilhado aos olhos dos homens, porque sou um miserável pecador.
Não se voltou para os seus companheiros. Não era a eles que falava, mas à Cruz sobre a qual se imaginara tantas vezes, com as mãos e os pés atravessados por pregos.
- Era um bom velho, caridoso na sua pobreza para com os mais pobres do que ele, e durante os anos que o conheci nunca lhe ouvi pronunciar uma má palavra. Olhava todos os homens com estima e bondade. Possuía a verdadeira nobreza da alma.
- Muitos homens, virtuosos na vida pública e privada, foram justamente condenados pelo Santo Ofício, porquanto a rectidão moral nada pesa na balança contra o pecado mortal da heresia.
O bispo virou-se e considerou padre António. O seu olhar era trágico.
- E o estipêndio do pecado é a morte - murmurou ele. O grego de quem faiavam, Demétrios Ghristopoulos, era
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natural de Chipre e homem de algumas posses, o que lhe permitira dedicar-se aos estudos. Quando os turcos, no reinado de Selim II, invadiram a ilha, tomaram Nicósia, a capital, e passaram a fio de espada vinte mil dos seus habitantes. Famagusta, onde vivia Demétrios Chrastopoulos, foi cercada e rendeu-se após um ano de acirrada resistência. Sucedia isso em 1571. Fugiu ele da cidade condenada! e homiziou-se nos montes até conseguir escapar num bote de pescadores, e depois de muitas aventuras desembarcou na Itália. Estava sem vintém, mas não tardou a arranjar suficiente trabalho, como professor de grego e expositor da filosofia antiga, para não morrer de fome. Numa hora aziaga, porén, fez-se notado por um fidalgo espanhol adido à embaixada do seu país em Roma, o qual durante a sua residência na Itália se rendera ao culto de Platão, então na moda. O nobre levava-o ao seu palácio e os dois liam juntos os imortais diálogos do filósofo. Volvidos alguns anos, no entanto, foi reconduzido à Espanha e convenceu o grego a ir com ele. Foi elevado à vice-realeza do Reino de Valência e nesta cidade veio a monrer. O grego, sem recursos e já à beira da velhice, deixou o palácio do vice-Rei e instalou-se muito modestamente em casa de uma viúva. Tinha adquirido certo renome de erudição e arranjou um precário meio de vida dando lições de grego aos que desejavam adquirir conhecimentos desse nobre idioma.
Frei Blasco de Valeiro ouvira falar dele quando ainda ensinava teologia em Alcalá de Henares. Pouco depois de assumir o cargo de inquisidor em Valência, sabedor de que ele era um homem de boa reputação e vida virtuosa, mandou chamá-lo. Simpatizou com as maneiras suaves e modestas do velho e pediu-lhe que lhe ensinasse a língua em que fora escrito o Novo
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Testamento, a fim de poder lê-lo com maior devoção. Durante nove anos, sempre que os seus múltiplos deveres lhe davam um momento de folga, o inquisidor e o grego trabalharam juntos. Frei Blasco era um aluno diligente e capaz, e ao cabo de alguns meses o grego, que tinha paixão pela grande e antiga literatura do seu país, convenceu-o a enfrentar as obras dos autores clássicos. Era platonista fervoroso e não tardou que se pusessem a ler os "Diálogos". Daí passaram para Aristóteles. O frade não quis ler a "ilíada", que lhe parecia brutal, nem a "Odisseia", que ele achava frívola, mas encontrou muita coisa de admiração nos autores dramáticos. Sempre acabavam, no entanto, por voltar aos "Diálogos".
O inquisidor era um homem de sensibilidade delicada e encantou-o a graça, a piedade religiosa e a profundidade de Platão. Havia nas obras deste muita coisa que um cristão podia aprovar. Era pretexto para que ambos discutissem muitos assuntos sérios. Frei Blasco entrou assim num novo mundo. Sentia um singular deleite na leitura desses grandes livros que lhe proporcionavam um feliz repouso após as ocupações do dia. No seu longo e fecundo convívio com aquele homem que não parecia pertencer a este mundo concebera por ele uma espécie de afeição, e tudo que ouvia dizer do grego, da sua vida simples e honesta, da sua índole bondosa e da sua caridade, aumentava a admiração que lhe inspirava o seu carácter.
Foi um choque terrível para ele quando um holandês luterano, detido pelos familiares da Inquisição por introduzir na Espanha traduções do Novo Testamento, confessou no cavalete haver dado um exemplar ao grego. Prosseguindo o interrogatório, com a assistência de mais uma volta do arrocho, disse
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ter conversado amiúde com ele sobre religião, e que em muitos pontos estavam inteiramente de acordo. Isto era suficiente para que o Santo Ofício se visse obrigado a instaurar um inquérito que, como sempre, foi exaustivo e secreto. O grego foi conservado na ignorância de estar sob suspeita. Ao ler os autos finais do inquérito, frei Blasco ficou horrorizado. Nunca lhe passara pela cabeça que o grego, tão bom, tão humilde, não houvesse, durante os longos anos passados na Itália e depois na Espanha, abjurado as suas opiniões cismáticas e abraçado a fé católica de Roma. Testemunhas juraram ter-lhe ouvido emitir opiniões condenáveis. Demétrios negava que o Espírito Santo procedesse do Filho, rejeitava a supremacia do papa e, embora venerasse a Virgem:, não queria admitir a sua imaculada conceição. A dona da casa em que ele morava ouvira-lhe dizer que as indulgências não tinham valor algum e alguém mais testificou que ele não aceitava a doutrina romana do purgatório.
O colega de frei Blasco, Don Baltasar de Carmona, era doutor em direito e um rígido moralista - homenzinho descarnado, de narigão pontudo, lábios comprimidos, olhos pequenos e desinquietos. Sofria, de uma doença dos intestinos que lhe azedava o temperamento. O seu cargo dava-lhe um poder imenso, que ele exercia com selvagem prazer. Ao ter conhecimento desses factos condenatórios, insistiu em que se prendesse o grego. Frei Blasco fez o que pôde para salvá-lo. Alegou que, na qualidade de cismático, ele não era um herege, e portanto não caía sob a jurisdição do Santo Ofício. Mas não havia só o depoimento do luterano submetido à tortura: um calvinista francês, a quem aquele também incriminara, declarou que ouvira o grego emitir opiniões que cheiravam a protestantismo,
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e ao saber disto frei Blasco viu-se obrigado a cumprir o seu dever de ofício, por mais que tal coisa lhe custasse. Familiares foram buscar o velho a sua casa e levaram-no para o cárcere da Inquisição. Interrogaram-no e confessou-se francamente culpado do que lhe imputavam. Deram-lhe a oportunidade de abjurar as suas falsas crenças e converter-se ao catolicismo, mas com grande consternação de frei Blasco ele recusou fazê-lo. O delito era grave, mas como as provas não fossem concludentes quanto ao protestantismo, frei Blasco quis dar ao grego um ensejo de expiar o seu crime e insistiu junto ao seu colega, partidário de uma condenação imediata, a fim de que o submetessem à tortura, para induzi-lo à conversão e salvar-lhe a alma.
A lei exigia que ambos os inquisidores estivessem presentes à aplicação da tortura, com o representante do bispo diocesano e um notário para registar o ocorrido. Esse espectáculo nunca deixava de inspirar tal horror a frei Blasco que durante noites seguidas era atormentado por sonhos pavorosos.
Trouxeram o grego, desnudaram-lhe o torso e amarraram-no ao cavalete. O seu débil corpo de ancião estava ema-ciado. Rogaram-lhe solenemente que confessasse a verdade, pois os inquisidores não desejavam vê-lo sofrer. Permaneceu calado. Ataram-lhe as pernas aos lados do cavalete, passaram-lhe cordas em volta dos braços, das coxas e das pernas, e as extremidades daquelas foram presas a um arrocho - isto é, um pau mediante o qual podiam ser esticadas. O algoz deu uma vigorosa volta ao arrocho e o grego soltou um grito agudo; outra volta, e as cordas penetraram-lhe na pele e na carne, até aos ossos. Devido à sua idade avançada frei Blasco insistira em que não se dessem mais de quatro voltas, pois
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embora o máximo estabelecido fosse de seis ou sete, raramente se ia além de cinco, ainda quando se tratava de homens robustos. O grego suplicou que o matassem de uma vez e pusessem termo à sua agonia. Embora frei Blasco fosse obrigado a estar presente, não era obrigado a olhar. Mantinha os olhos cravados no chão de pedra, mas os gritos de dor retiniam-lhe nos ouvidos e atassalhavam-lhe os nervos. Aquela era a voz com que o seu amigo havia recitado as graves e nobres passagens de Sófocles; era a mesma voz com que, presa de uma emoção que a custo dominava, ele tinha lido o derradeiro discurso de Sócrates. Antes de cada volta do arrocho ordenava-se ao grego que confessasse a verdade, mas ele cerrava os dentes e não abria a boca. Quando o tiraram do cavalete não podia ter-se em pé e foi preciso carregá-lo de volta ao cárcere do Santo Ofício.
Embora nada houvesse confessado, condenaram-no com base nas suas confissões prévias. Frei Blasco ainda quis salvar-lhe a vida, mas Don Baltasar, o doutor em leis, objectou que ele era tão culpado quanto os outros luteranos condenados à fogueira. O representante do bispo e as demais autoridades a quem consultaram mostraram-se concordes com ele. Como o auto-de-fé só devesse realizar-se algumas semanas depois, frei Blasco teve tempo de escrever ao inquisidor-mor expondo-lhe o caso. O inquisidor-mor respondeu que não via motivo para alterar a decisão do tribunal. Frei Blasco nada mais podia fazer. Mas os gritos desesperados do velho continuavam a ecoar-lhe nos ouvidos e o sofrimento não lhe dava tréguas. Enviava-lhe conselheiros espirituais para tentar convertê-lo, pois embora já fosse impossível salvar-lhe a vida, o arrependimento permitiria que fosse garroteado, poupando-lhe
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assim o suplício da fogueira. Mas o grego mostrou-se contumaz. Apesar da tortura e da longa permanência no cárcere, o seu espírito continuava lúcido e activo. Aos argumentos dos frades respondia com outros argumentos tão subtis que aqueles se enfureciam.
Finalmente chegou a véspera do auto-de-fé. As anteriores solenidades da mesma espécie não haviam feito impressão em frei Blasco, pois os judaizantes relapsos, os mouros que persistiam nas suas práticas diabólicas, os protestantes, eram criminosos perante Deus e os homens, e, levando-se em conta a segurança da Igreja e do Estado, havia todas as razões para fazê-los sofrer. Mas ninguém sabia melhor do que ele quanto o grego era bom, compassivo e prestativo aos necessitados. Apesar da autoridade do seu colega, homem cruel, de alma seca e fria, ele punha em dúvida a legalidade do pavoroso castigo. Tinham trocado palavras acres e Don Baltasar acusara-o de favorecer o criminoso por ser seu amigo. No íntimo, frei Blasco sabia existir pelo menos um fundo de verdade nessa imputação: se ele nunca houvesse encontrado o grego, teria aceite a sentença sem protesto. Já não lhe podia salvar a vida, mas ainda podia salvar a sua alma. Os frades a quem tinha enviado para convencê-lo do seu erro não possuíam a habilidade necessária para tratar com um homem tão instruído. Uma hora antes de romper o dia foi ao cárcere da Inquisição e pediu que o conduzissem à cela do grego. Os dois frades estavam-no ajudando a passar essa última noite na Terra. Frei Blasco mandou-os sair.
- Ele não quis ouvir as nossas exortações - disse um deles.
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Um sorriso bailou nos lábios do grego ao vê-los deixar a cela.
- Sem dúvida alguma, os seus frades são pessoas muito dignas, senhor. Mas não têm grande inteligência.
Estava calmo e, conquanto velho e alquebrado, mantinha uma aparência de dignidade.
- Vossa Reverência há-de perdoar-me se fico na cama. A tortura deixou-me muito fraco e desejo conservar as forças para as cerimónias de hoje.
- Não percamos o tempo em falas ociosas. Dentro de poucas horas você terá de enfrentar um horrível destino. Sabe Deus que eu de bom grado daria dez anos da minha vida para o salvar. As provas eram condenatórias e eu faltaria ao meu juramento se deixasse de cumprir o meu dever.
- Eu jamais desejaria que o senhor fizesse tal coisa.
- Já não lhe posso salvar a vida, mas se consentir em retractar-se e aceitar a conversão, poderei ao menos poupar-lhe o tormento das chamas. Eu estimava-o, Demétrios, e nunca poderei saldar a minha dívida para consigo a não ser salvando a sua alma imortal. Esses frades são ignorantes e tacanhos. Vim aqui fazer uma última tentativa desesperada de convencê-lo do seu erro.
- Perderia o seu tempo, senhor. Nós lhe daríamos muito melhor emprego se conversássemos, como tantas vezes fizemos, sobre a morte de Sócrates. Não me permitiram trazer livros para este calabouço, mas possuo boa memória e tenho encontrado alívio em repetir a mim mesmo aquele discurso em que ele fala com tanta nobreza sobre a alma.
- Não estou a ordenar-lhe agora, Demétrios, estou a suplicar-lhe que me ouça.
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- Não posso negar-lhe esse último acto de cortesia.
Em tom grave, ponto por ponto, com cultura e discrição, o inquisidor expôs os argumentos imaginados pela Igreja para justificar as suas pretensões e refutar as opiniões de hereges e cismáticos. Estava habituado a discutir tais assuntos e expressou-se com habilidade e uma impressionante convicção.
- Eu não merecia muito respeito se, pelo receio de uma morte horrível, fingisse aceitar crenças que considero erróneas - disse o grego depois de ele terminar.
- Não é isso que eu lhe peço. Peço-lhe que creia na verdade com todo o seu coração.
- "Que é a verdade?" perguntou Pôncio Pilatos. É tão impossível ao homem forçar a sua crença como é impossível subjugar as vagas do oceano quando açoitado pela borrasca. Agradeço a Vossa Reverência a bondade de que me dá prova, e esteja certo de que não lhe guardo rancor pelo infortúnio que me aconteceu. O senhor agiu de acordo com a sua consciência e nenhum homem pode fazer mais do que isso. Eu já estou velho e pouca diferença faz que morra hoje ou daqui a um ou dois anos. Só tenho um pedido para lhe fazer. Não abandone, por eu ter desaparecido, os seus estudos da sublime literatura da Grécia antiga. Ela não deixará de ampliar-lhe o espírito e enobrecer-lhe o pensamento.
- Não teme a justa vingança do Senhor contra a sua contumaz obstinação?
- O Senhor possui muitos nomes e uma infinidade de atributos. Tem sido chamado Jeová, Zeus e Brama. Que importância tem o nome que Lhe damos? Mas entre os seus atributos infinitos o principal, como bem o percebeu Sócrates, ainda que pagão, é a justiça. Ele deve saber que o homem
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não acredita naquilo que quer, mas no que pode, e eu não Lhe farei a suma injustiça de supor que Ele condene as suas criaturas por uma coisa de que não são culpadas. Vossa Reverência não me julgue desrespeitoso se lhe peço que me deixe agora a sós com os meus pensamentos.
- Não posso deixá-lo assim. Devo esforçar-me até ao fim para salvar a sua alma imortal das chamas furiosas do Inferno. Diga uma palavra que me dê a esperança de poder salvá-lo ainda. Uma palavra para mostrar que você não continua impenitente, para que eu possa ao menos mitigar o seu castigo aqui na Terra.
O grego sorriu, e é possível que houvesse um toque de ironia nesse sorriso.
- O senhor desempenhará o seu papel, e eu o meu. O seu papel é matar, o meu é morrer sem tremer.
As lágrimas cegaram o inquisidor, que encontrou a custo o caminho da saída.
O bispo referiu este episódio aos frades numa voz embargada, e ao chegar a este ponto cobriu o rosto com as mãos, como se não pudesse suportar a vergonha de contar o resto. Eles escutavam-no compungidos, mas com uma atenção empolgada, e padre António anotava cuidadosamente, na sua memória, cada fala e cada resposta, a fim de registá-las no seu livro.
- Fiz então uma coisa horrível. Don Baltasar estava de cama e eu sabia que ele não se levantaria senão no último momento, pois tinha um medo mortal de que a doença o impedisse de assistir ao auto-de-fé. É um homem ambicioso e queria fazer-se notar pelo príncipe. Eu tinha, pois, liberdade de agir como entendesse. Não podia suportar a ideia
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de ver aquele pobre velho ser devorado pelas chamas cruéis. Ainda me ressoavam ao ouvido os seus gritos ao ser torturado e parecia-me que não cessaria de ouvi-los durante toda a minha vida. Disse às pessoas a quem isso interessava que tinha falado pessoalmente com ele e ele se retractara a ponto de admitir a dupla processão do Espírito Santo. Dei ordem para que o garroteassem antes de queimá-lo e mandei dinheiro por um criado ao algoz para que o despachasse depressa.
Convém explicar que o algoz podia prolongar durante horas a agonia da vítima, apertando-lhe e afrouxando-lhe alternativamente o colar de ferro em torno do pescoço, de modo que era preciso pagar-lhe para dar morte rápida ao infeliz.
- Não ignorava que isso era um pecado. O pesar desvairou-me e mal sabia o que estava a fazer. Foi um pecado que jamais deixarei de censurar a mim mesmo. Disse-o ao meu confessor e cumpri a penitência que ele me impôs. Recebi a absolvição, mas não posso absolver a mim mesmo, e o que sucedeu hoje é o meu castigo.
- Mas, meu senhor, isso foi um acto de compaixão! - obtemperou padre António. - Qual é aquele que, tendo trabalhado consigo tantos anos como eu trabalhei, não conhece a bondade do seu coração, e quem pode censurar-lhe o ter permitido uma vez que essa bondade suplantasse o seu sentimento de justiça?
- Não foi um acto de compaixão. Quem pode afirmar que o grego não ficara abalado pelos meus argumentos e quem sabe se, quando as chamas lhe lambessem a carne, a graça do Senhor não lhe seria concedida, levando-lhe o espírito obstinado a renegar os seus erros? Muitos homens, nesse derradeiro e terrível momento em que estão prestes a encontrar o seu Criador,
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salvaram assim as suas almas. Eu tirei-lhe esse ensejo e com isso o condenei aos tormentos eternos.
Um soluço rouco escapou-se-lhe da garganta - um som que semelhava o grito estrangulado, misterioso, de alguma ave nocturna no tenebroso silêncio da floresta.
- Os tormentos eternos! Quem pode imaginar tal sofrimento? Os réprobos estorcem-se num lago de fogo de onde se desprendem vapores deletérios que eles respiram cheios de angústia. Têm o corpo inçado de vermes. Uma fome e uma sede desesperadas torturam-nos. Chamuscados pelas chamas, os seus gritos formam um tumulto e uma confusão em face dos quais o ribombar do trovão e os bramidos do mar fustigado pela borrasca representam um silêncio mortal. Demónios de medonha aparência zombam e escarnecem deles, batem-lhes com um furor incansável, mais o remorso dilacerados com uma dor mais cruel do que as torturas desses hediondos diabos. O verme da consciência rói-lhes as entranhas. O fogo crucifica-lhes as almas, e comparado com ele o fogo aqui da terra é como o fogo que vemos num quadro, pois é a cólera do Senhor que o ateia e o alimenta, como instrumento terrível da Sua justa vingança por toda a eternidade.
"E a eternidade, como é terrível a eternidade! Tantos milhões de anos passam sobre os réprobos quantas são as gotas de água que têm caído sobre a terra desde o início dos tempos; tantos milhões de anos quantas são as gotas de água de todos os mares e rios do mundo; tantos milhões de anos quantas são as folhas de todas as árvores que existem e quantos são os grãos de areia de todas as praias do oceano; tantos milhões de anos quantas são as lágrimas que os homens têm derramado desde que Deus criou os nossos primeiros pais.
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volvido esse número incalculável de anos, a angústia dessas infelizes criaturas prosseguirá como se apenas houvesse começado, como se fosse ainda o primeiro dia; e a eternidade permanecerá inteira à sua frente, como se nem um segundo houvesse passado. E foi a essa eternidade de sofrimento que eu condenei aquele desgraçado. Que castigo pode reparar um mal tão grande? Oh! tenho medo, tenho medo..."
Estava desesperado. Profundos soluços sacudiam-lhe o peito. Encarava os dois frades com olhos escuros de" terror, e ao fixarem-se messes olhos notaram-lhes no fundo um clarão vermelho, como se visse reflectidas neles, de muito longe, as chamas rubras do Inferno.
- Mandem reunir os monges. Confessar-lhes-ei o meu pecado e, pela salvação da minha alma, ordenar-lhes-ei que me apliquem a disciplina circular.
Era um castigo degradante em que todos os presentes usavam o açoite contra o culpado. Padre António, aterrado, caiu de joelhos e, juntando as mãos como numa prece, implorou ao seu mestre que não insistisse em submeter-se a tão terrível provação.
- Nossos confrades não o vêem com bons olhos, meu senhor, estão furiosos porque Vossa Excelência não os deixou ir à igreja esta manhã. Não o pouparão. Vão açoitá-lo com toda a força. Muitos monges têm morrido sob as suas vergastadas.
- Não quero que me poupem. Se eu morrer, ter-se-á feito justiça. Ordeno-lhe, em nome do seu voto de obediência, que faça o que lhe digo.
O frade pôs-se em pé.
- Vossa Excelência não tem o direito de expor-se
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a tamanha afronta. É bispo de Segóvia. Vai lançar um labéu sobre todo o episcopado da Espanha. Vai diminuir a autoridade de todos aqueles que Deus escolheu para essa alta posição. Tem a certeza de que não há nenhuma ostentação nessa vergonha a que pretende expor-se?
Jamais ousara falar nesse tom peremptório ao seu pai em Deus. O bispo ficou surpreendido. Haveria realmente uma sombra de vanglória no seu desejo de humilhar-se assim em público? Deu um longo olhar ao frade.
- Não sei - disse afinal, lastimavelmente. - Sou como um homem que anda aos tropeções por uma terra desconhecida, nas trevas da noite. Talvez você tenha razão. Eu só pensava em mim, não pensei no efeito que isso produziria nos outros.
Padre António deu um suspiro de alívio.
- Vocês dois aplicar-me-ão a disciplina aqui, em particular.
- Não, não! Não faço isso. Sou incapaz de maltratar o seu sagrado corpo.
- É preciso então lembrar-lhe os seus votos? - perguntou o bispo com a sua velha severidade. - Você tem-me tão pouca estima que hesita em me infligir um castigo insignificante a bem da minha alma? Há açoites debaixo da cama.
Confrangido e em silêncio, o frade foi buscá-los. Estavam manchados de sangue. O bispo despiu a parte superior do hábito, que lhe caiu em volta da cintura. Tirou então a camisa: era feita de lata e perfurada como um ralador, para poder lacerar a carne. Padre António sabia que o bispo usava um cilício de crina - não sempre, pois isso faria com que se acostumasse a ele, mas apenas o número suficiente de vezes
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para que o tormento se renovasse constantemente. Susteve a respiração ao ver aquela horrível camisa de lata, mas ao mesmo tempo sentiu-se edificado. Aquele homem era na verdade um santo. Não deixaria de registar essa particularidade no seu livro. O dorso do bispo mostrava as cicatrizes dos açoites que ele aplicava a si mesmo pelo menos uma vez por semana, e havia chagas abertas que supuravam.
Abraçou-se à fina coluna que sustentava os dois arcos divisórios dos seus aposentos e ofereceu as costas aos dois frades. Cada um deles apanhou em silêncio um açoite e golpeou a carne sangrenta. A cada vergastada o bispo estremecia, mas nem um gemido lhe escapou dos lábios. Não lhe tinham dado mais de uma dúzia de açoites quando ele caiu desmaiado. Levantaram-no e carregaram-no para a cama dura. Jogaram-lhe água em cima, mas como o bispo não recobrasse os sentidos assustaram-se. Padre António disse ao seu colega que mandasse um irmão leigo ir depressa chamar um médico, pois o bispo estava doente, mas ao mesmo tempo recomendou-lhe que avisasse os monges que não deviam incomodá-lo em hipótese alguma. Banhou-lhe as costas laceradas e tomou-lhe ansiosamente o pulso, que vacilava. A princípio julgou que o bispo estivesse à morte. Mas afinal Don Blasco abriu os olhos. Foram precisos alguns instantes para que recobrasse o uso das suas faculdades. Forçou então um sorriso.
- Pobre criatura que eu sou! Desmaiei...
- Não fale, meu senhor. Fique tranquilo. Mas o bispo ergueu-se num dos cotovelos.
- Dê-me a minha camisa.
Padre António olhou com um arrepio para aquele instrumento de tortura.
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- Oh! meu senhor! Não poderia suportá-la agora.
- Dê-ma.
- O médico vem aí. Não lhe conviria ser visto por ele a usar um instrumento de suplício.
O bispo deixou-se cair novamente na dura enxerga.
- Dê-me a minha Cruz - pediu ele.
Afinal chegou o médico, que mandou o doente permanecer na cama e prometeu mandar um remédio. Era um sedativo e dentro em pouco o bispo adormecia.


XVI.

No dia seguinte insistiu em levantar-se. Disse a sua missa. Embora débil e abalado, estava calmo e mergulhou no trabalho como se nada houvesse acontecido.
Pela tarde um irmão leigo veio comunicar-lhe que seu mano Don Manuel estava na sala de visitas e desejava falar-lhe. Supondo que ele tivesse sido informado da sua doença, mandou dizer que lhe ficava agradecido pela visita, mas assuntos urgentes o impediam de recebê-lo. O irmão leigo voltou dizendo que Don Manuel recusava ir embora enquanto o bispo não o recebesse, pois tinha uma comunicação importante para lhe fazer. O bispo soltou um suspiro e disse ao irmão leigo que o mandasse entrar. Desde a chegada a Castel Rodríguez não lhe tinha falado senão nas ocasiões exigidas pela cortesia. Embora censurasse a si próprio a sua falta de caridade, não podia dominar a antipatia que lhe inspirava esse homem vaidoso, brutal e empedernido.
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Don Manuel entrou sumptuosamente trajado, pletórico, ressumbrando saúde e vitalidade agressiva. Caminhava com um ar arrogante. Tinha no rosto uma expressão satisfeita e o bispo julgou notar-lhe malícia e astúcia nos olhos brilhantes e ousados. Teve um sorriso frio ao correr os olhos pela cela nua e austera. O bispo indicou-lhe um tamborete.
- Não tens um assento mais cómodo para me oferecer, mano?
- Não.
- Disseram-me que estavas doente.
- Foi uma indisposição passageira e sem importância. Já voltei ao meu estado normal de saúde.
- Estimo.
Houve um silêncio. Don Manuel continuava a encará-lo com um sorriso levemente zombeteiro.
- Disseste que tinhas uma comunicação para me fazer - falou o bispo afinal.
- E tenho, mano. Parece que a cerimónia de ontem de manhã não correspondeu às tuas esperanças.
- Faze-me o favor de dizer a que vens, Manuel.
- Que te fez pensar que eras tu o instrumento escolhido para curar essa rapariga da sua enfermidade?
O bispo hesitou. O seu primeiro impulso foi não dar resposta, mas, mortificando-se diante daquele homem grosseiro e vulgar, respondeu.
- Garantiram-me que a rapariga tinha falado a verdade e, embora me julgasse indigno, senti-me na obrigação de fazer o que me era solicitado.
- Cometeste um erro, mano. Devias tê-la interrogado mais cuidadosamente. A Santíssima Virgem disse-lhe que o filho
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de Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la. Porque tiraste logo a conclusão de que a Virgem se referia a ti? Não achas que te faltou um pouco de humildade cristã?
O bispo empalideceu.
- Que queres dizer? - exclamou ele. - Segundo ela me informou, Nossa Senhora tinha-lhe dito que era eu.
- É uma rapariga tola e ignorante. Supôs que a pessoa designada fosses tu, porque és bispo e, não sei porquê, o povo desta cidade tem ouvido falar muito da tua santidade e das tuas mortificações.
O bispo fez uma breve oração mental para poder dominar a cólera e a vergonha que lhe causavam as palavras do irmão.
- Como sabes disso? Quem te disse que as palavras da Santíssima Virgem foram essas?
Dom Manuel espirrou uma risada. Aquilo parecia-lhe uma óptima pilhéria.
- Vim a saber que a rapariga tem um tio chamado Domingo. Nós conhecemo-lo em pequenos. Se bem me lembro, estiveste no seminário com ele.
O bispo inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
- Domingo Pérez é um borracho,. Costuma ir a uma taberna frequentada pelos meus criados e fez amizade com eles, sem dúvida esperando que lhe pagassem a bebida. A noite passada tomou um pifão. Como era natural, todos falavam dos acontecimentos da manhã, pois o teu fiasco, mano, é assunto de todas as conversas. Domingo disse-lhes que não esperava outra coisa e tinha procurado prevenir-te, mas não o quiseram receber no convento. Repetiu então exactamente
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as palavras que a Virgem tinha pronunciado, conforme lhe foram repetidas pela sobrinha.
O bispo estava confuso. Não sabia o que dizer. Don Manuel continuou a falar, já com uma expressão de franca zombaria no olhar. O bispo perguntava consigo, lastimosamente, que espécie de homem seria aquele, que podia encontrar um prazer tão cruel em humilhar assim o próprio irmão.
- Não te passou pela cabeça, mano, que ela pudesse referir-se a mim?
- A ti?
O bispo mal podia dar crédito aos seus ouvidos. Se fosse capaz de rir, teria rido nessa ocasião.
- Isso surpreende-te, mano? Durante vinte e quatro anos tenho servido o meu rei. Arrisquei a minha vida uma centena de vezes, bati-me em batalhas gloriosas e o meu corpo traz cicatrizes dos mais honrosos ferimentos. Tenho sofrido fome e sede, o frio rigoroso daqueles malditos Países Baixos e o tórrido calor do Verão. Tu queimaste algumas dúzias de hereges na fogueira enquanto eu, para glória do Senhor, matei milhares desses hereges. Para glória de Deus, assolei-lhes os campos e queimei-lhes as searas. Assediei cidades prósperas e, quando se renderam, passei a fio de espada todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças.
O bispo estremeceu.
- O Santo Ofício só condena os acusados de acordo com as normas do processo judicial. Dá-lhes o ensejo de arrependerem-se e expiarem os seus pecados. Tem o maior cuidado em fazer justiça e, se castiga os culpados, também absolve os inocentes.
- Eu conheço de mais esses holandeses para crer que sejam capazes de arrependimento. Eles têm a heresia no sangue.
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São traidores à sua fé e ao seu rei e merecem a morte. Ninguém que me conheça pode negar que eu tenha servido bem ao Senhor.
O bispo pôs-se a reflectir. A brutalidade e a vanglória do irmão enchiam-no de asco. Parecia incrível que Deus pudesse escolher semelhante instrumento para a Sua obra, e no entanto podia ser que Ele o tivesse feito justamente por ser Manuel quem era, a fim de cobri-lo de vergonha, a ele, Blasco de Valero, por causa do seu pecado que não fora perdoado. Nesse caso, cumpria-lhe baixar a cabeça e aceitar a humilhação.
- Deus sabe que eu tenho consciência da minha indignidade - disse ele por fim. - Se fizesses essa tentativa e fosses mal sucedido, causarias um escândalo na cidade e darias um cruel ensejo aos maldosos para escarnecerem. Suplico-te que não faças nada precipitadamente; é um assunto que exige cuidadosa reflexão.
- Já reflectimos bastante, mano - volveu tranquilamente Don Manuel. - Consultei os meus amigos, que são as pessoas mais importantes da cidade. Pedi a opinião do arcipreste e do prior deste convento. Todos eles estão de acordo comigo.
O bispo tornou a fazer uma pausa. Sabia existir na cidade muita gente que invejava as posições conquistadas por ele e pelo irmão, porque, embora fidalgo de nascença, eram uma família de pouca monta. Bem podia ser que tivessem consentido na absurda pretensão de Don Manuel a fim de lançar descrédito sobre ambos.
- Não deves esquecer a possibilidade de que essa rapariga tenha sido iludida.
- Isso é o que vamos ver. Se eu fracassar, ficará provado
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que a rapariga é uma feiticeira e deve ser entregue à Inquisição para que a) julguem e castiguem.
- Se obtiveste o consentimento das autoridades municipais e estás resolvido a fazer a tentativa, não tenho o poder de impedir-te. Mas peço-te que faças tudo com o maior sigilo possível, para impedir um escândalo ainda maior que o que já tivemos.
- Agradeço-te o conselho, mano. Dar-lhe-ei a atenção que ele merece.
Com estas palavras, Don Manuel retirou-se. O bispo deu um profundo suspiro. Parecia-lhe que a sua taça de amargura se tinha enchido até às bordas. Ajoelhou-se diante da Cruz negra pregada à parede e orou em silêncio. Depois chamou um irmão leigo e mandou que fosse buscar Domingo Pérez.
- Se não o achar em casa, hão-de encontrá-lo na taberna próxima ao palácio em que está hospedado meu irmão, Don Manuel. Peça-lhe que me faça o favor de vir cá sem demora.


XVII.

Pouco depois o irmão leigo introduzia Domingo no oratório do bispo. Os dois homens encararam-se silenciosamente durante algum tempo. Não se encontravam desde quando haviam estudado juntos no seminário de Alcalá de Henares, ainda jovens e pouco mais que meninos. Ambos estavam já idosos, emaciados e devastados pelos anos. Mas a um tinham devastado a austeridade, as longas vigílias, os jejuns e o trabalho
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constante, enquanto o outro fora gasto pela bebida e pela dissipação. Todavia), se alguma semelhança havia na sua aparência, nenhuma tinham na expressão: a do bispo era atribulada e ansiosa, ao passo que a do escrevinhador era despreocupada e bem-humorada. Como clérigo das ordens menores, vestia batina, e esta estava coçada, esverdeada pelo longo uso e coberta, na frente, de nódoas de vinho e de gordura. Ambos, porém, tinham um ar de ascetismo e distinção intelectual.
- Vossa Excelência exprimiu o desejo de falar comigo - disse Domingo.
Um débil mas terno sorriso esboçou-se nos lábios pálidos do bispo.
- Há muito tempo que não nos vemos, Domingo.
- Os nossos caminhos têm-se distanciado muito. Eu cuidava que Vossa Excelência houvesse esquecido há muito a existência de uma criatura tão mesquinha e indigna como Domingo Pérez.
- Nós conhecemo-nos durante toda a vida. Envergonho-me de me ver tratado por ti com tanta cerimónia. Há muitos anos que não ouço um amigo chamar-me Blasco.
Domingo dirigiu-lhe o seu sorriso encantador, que tinha o dom de desarmar.
- Os grandes não têm amigos, meu querido Blasco. Esse é o preço que eles têm de pagar pela sua grandeza.
- Esqueçamos por uma hora esta minha lamentável grandeza e conversemos como os velhos e íntimos camaradas que fomos. Estavas enganado ao pensar que eu te houvesse esquecido. Tivemos demasiadas coisas em comum para que isso fosse possível. Eu mantinha-me informado da tua existência.
- Ela não tem sido muito edificante.
O bispo sentou-se num mocho e fez sinal a Domingo para que tomasse o outro.
- Mais ainda, mantive-me em contacto contigo através das tuas cartas.
- Como pode ser isso?... Eu nunca te escrevi...
- Não da tua própria parte, mas quando éramos rapazes li tantas poesias tuas que fiquei conhecendo muito bem a tua letra. Julgas que eu não a reconhecia nas cartas que meu pai e meu irmão Martin me enviavam? Sabia perfeitamente que eles eram incapazes de expressar-se com tanta elegância e propriedade. Além disso, havia certos modos de dizer, certos torneios de frase e certas reflexões em que eu reconhecia logo o teu espírito travesso.
Domingo riu suavemente.
- Não são muito notáveis os dotes literários de Don Juan e de teu irmão Martin. Depois de dizerem que gozavam saúde, que esperavam que o mesmo se desse contigo e que a colheita tinha sido minguada, não lhes restava mais nada que dizer. Tanto a bem do meu crédito como deles, eu sentia-me na obrigação de avivar essas secas informações com os mexericos da cidade e as agudezas e gracejos irreverentes que me ocorressem no momento.
- Como é lamentável que tenhas malbaratado os teus grandes talentos, Domingo! As coisas que eu tinha de aprender à força de aplicação e diligência, tu adquiria-las como que por intuição. Muitas vezes eu aterrava-me diante da audácia do teu pensamento, dessa abundância de ideias inesperadas que pareciam fluir do teu cérebro com tão pouco esforço como a água que jorra de uma fonte, mas nunca duvidei da tua inteligência. Tu nasceste para brilhar e, se não fosse a tua índole
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irrequieta, serias hoje um luzido armamento da nossa Santa Madre Igreja.
- Ao invés disso - volveu Domingo - , não passo de um pobre letrado, um dramaturgo que não encontra actores para lhe representarem as peças, um literato de aluguel que escreve sermões para padres estúpidos e incapazes de fazê-lo por si, um beberrão sem préstimo. Faltava-me a vocação, meu bom Blasco. A vida fascinava-me. O meu lugar não era nem no claustro nem no lar, mas na estrada real com as suas aventuras e perigos, os seus encontros fortuitos e a sua múltipla variedade. Vivi. Curti fome e sede, criei chagas nos pés, levei bordoada, sofri todos os infortúnios que podem caber em sorte a um homem: em suma, vivi. E mesmo agora que a velhice vai tomando conta de mim, não lamento os anos que desperdicei, pois eu também dormi no Parnaso; e quando vou a uma aldeia distante escrever uma carta para algum lapuz analfabeto, ou quando estou sentado no meu quarto, rodeado pelos meus livros, rimando falas em dramas que jamais serão levados à cena, sinto tamanha exultação que não trocaria de lugar com um cardeal ou mesmo com um papa.
- Não receias a cólera futura do Senhor? O estipêndio do pecado é a morte.
- É o bispo de Segóvia que me faz esta pergunta, ou o meu velho e estimado amigo Blasco de Valero?
- Até hoje não traí nenhum amigo ou inimigo. Enquanto não disseres nada que seja ofensivo à Fé, podes dizer o que quiseres.
- Então será esta a minha resposta: Nós sabemos que os atributos de Deus são infinitos, e sempre achei estranho que ninguém lhe tenha jamais atribuído um pouco de senso comum.
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É difícil acreditar que Ele tivesse criado um mundo tão belo sem desejar que os homens se deleitassem nele. Teria Ele dado às estrelas o seu esplendor, aos pássaros o seu canto mavioso e às flores o seu perfume, se não devêssemos sentir prazer nessas coisas? Eu pequei perante os homens e os homens condenaram-me por isso. Deus fez-me homem, com as paixões de um homem, e ter-me-ia Ele dado essas paixões unicamente para que eu as reprimisse? Foi Ele que me deu este espírito aventuroso e este amor à vida. Espero humildemente que, quando eu me encontrar face a face com o meu Criador, Ele se condoa das minhas imperfeições e me olhe com clemência. O bispo parecia profundamente perturbado. Podia responder ao pobre poeta que nós fomos postos na Terra para desprezar os seus deleites, resistir à tentação, vencer a nós mesmos e carregar a nossa cruz - para que no fim, embora não passemos de miseráveis pecadores, possamos ser considerados dignos da comunhão dos santos. Mas de que serviriam as suas palavras? Nada podia fazer senão rezar para que, antes de vir buscá-lo a morte, a graça de Deus descesse sobre o infortunado homem e ele se arrependesse das suas más acções. Fez-se um silêncio entre ambos.
- Não te mandei chamar para fazer com que te corrigisses - disse o bispo por fim. - Não me seria difícil refutar as tuas opiniões erróneas, mas sei de longa data o quanto és engenhoso em fazer parecer plausíveis os piores argumentos, e conheço também o prazer que sentes em irritar os demais com sofismas. Quero crer que grande parte do que disseste foi dito apenas com o fim de te divertires à minha custa. Tens uma sobrinha.
- Tenho.
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- Qual é a tua opinião sobre essa história que alvoroçou toda a cidade?
- Ela é uma menina virtuosa e verídica. É boa católica, mas não exageradamente religiosa.
- Bem creio nisso, pois estou informado de que ela foi educada por ti.
- Também não é dada a devaneios ociosos. É até, como não podem deixar de ser os pobres, um tanto prosaica. Ninguém poderia acusá-la de possuir a inditosa faculdade da imaginação.
- Acreditas, então, que a Santíssima Virgem lhe tenha aparecido realmente?
- Estive em dúvida até ontem, quando ela me referiu os termos exactos que a Virgem havia empregado. Então convenci-me, e foi por isso que quis falar contigo. Percebi logo qual era a pessoa indicada e quis poupar-te uma intervenção inútil. Mas não me deixaram entrar.
O bispo suspirou.
- Uma das cruzes que temos de carregar, e não a menor delas, é que os nossos companheiros de labutas, na sua solicitude para connosco, impedem que cheguem até nós aqueles a quem seria proveitoso recebermos.
- O tempo não embotou a afeição que me ligava a ti na mocidade, pois, como vês, eu, um pecador, posso dar-me ao luxo de ceder aos cegos impulsos do coração. Queria poupar-te uma humilhação que não podia deixar de ser-te muito amarga. Logo que a rapariga me repetiu as palavras exactas da Virgem Santíssima, eu percebi quem era a pessoa designada para curá-la da sua enfermidade.
- Ela disse-me que Nossa Senhora me tinha designado.
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- Foi um engano natural numa menina que conhecia as tuas mortificações, a tua virtude e austeridade. A Santíssima Virgem disse-lhe que o poder de curá-la estava nas mãos daquele entre os filhos de teu pai que melhor tem servido a Deus.
- Só há pouco vim a saber disso.
- Não sabes então a quem a Virgem se referia? É claro como água da fonte.
O bispo empalideceu e lançou um olhar ansioso a Domingo.
- Meu mano Martin?
- O padeiro.
Gotas de suor cobraram a fronte do bispo. Estremeceu como se alguém lhe pisasse na sepultura.
- Isso é impossível. Ele é sem dúvida um homem de bem, mas completamemte mundano.
- Impossível, por quê? Porque ele não tem instrução? Um dos mistérios da nossa Fé é que o Senhor, que deu a razão ao homem, elevando-o desse modo acima dos brutos, nunca deu, ao que saibamos, grande valor à inteligência. Teu irmão é um homem bom e simples. Tem sido um marido fiel e um pai amoroso. Tem honrado pai e mãe, dando-lhes de comer quando tinham fome e cuidando deles quando estavam doentes. Aguentou submisso o desprezo do pai e a aflição da mãe porque ele, um fidalgo de nascença, adoptou um ofício que o rebaixava na estima dos tolos. Suportou com bom humor o desdém da nobreza e as zombarias do vulgo. Como nosso pai Adão, ganha o seu pão com o suor do seu rosto, sentindo um modesto desvanecimento em saber que o pão que faz é bom. Aceita com gratidão as alegrias da vida e com resignação
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os seus pêsames. Tem socorrido os necessitados. É um homem de trato ameno e sempre bem disposto. Mostra-se amigo de todos. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis e é bem possível que aos olhos divinos, pela sua vida diligente e honesta, a sua inocente alegria, Martim o padeiro O tenha servido melhor do que tu, que buscas a salvação nas orações e na penitência, ou teu irmão Manuel, que faz glória das mulheres e crianças que trucidou e das cidades prósperas que reduziu a desoladas ruínas.
O bispo passou a mão pesadamente pela testa. O seu rosto tinha uma expressão de angústia.
- Tu conheces-me de mais, Domingo - disse ele em voz trémula - , para julgar que eu me tenha abalançado a fazer aquilo sem um ansioso exame de consciência. Eu sabia ser indigno e a minha alma estava aterrada, mas tomei o sinal que me foi concedido por uma ordem de executar aquilo que eu acreditava ser a vontade do Senhor. Enganei-me. E agora meu irmão Manuel está resolvido a tentar aquilo em cuja realização falhei.
- Já em pequeno ele se fazia notar mais pela força corporal do que pelo vigor do entendimento.
- É tão teimoso quanto errado. Os notáveis da cidade estão a animá-lo na sua pretensão para poderem metê-lo à chacota depois. Conseguiu a aprovação do arcipreste e do prior deste convento.
- Deves impedi-lo a todo o custo.
- Não tenho autoridade para tanto.
- Se teu irmão se obstinar nessa loucura, quererá vingar-se da sua decepção naquela infeliz rapariga. O povo tomará o partido dele e não terá compaixão. Em nome da nossa velha
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amizade, suplico-te que a protejas contra a hostilidade e a cega violência do povo.
- Pela Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor, juro-te que darei a minha vida, se preciso for, para salvar a menina de todo o perigo.
Domingo pôs-se em pé.
- Agradeço-te de todo o coração. Adeus, meu caro. Os nossos caminhos são diferentes e não tornaremos a encontrar-nos. Adeus para sempre.
- Adeus. Oh! Domingo, sou um homem bem infeliz! Ora por mim, pede a Deus em todas as tuas orações que me conceda a graça de livrar-me do cruel fardo desta existência.
Estava tão perturbado e tinha uma expressão tão lastimosa que o velho beberrão se compadeceu dele. Levado por um impulso repentino, abraçou o bispo e beijou-o nas duas faces. O pecador estreitou o santo contra o peito e logo se retirou.


XVIII.

Nessa noite aconteceu um facto muito estranho. A lua cheia, prosseguindo na sua rota predeterminada, tinha um brilho tão deslumbrante que o céu límpido estava azul como o manto de veludo que cobria as vestes brancas da Virgem Maria. Os habitantes de Castel Rodríguez dormiam. De repente, todos os sinos da cidade se puseram a badalar com um clamor capaz de ressuscitar os mortos. Despertou os adormecidos e alguns precipitaram-se para as janelas, enquanto outros, semidespidos, apanhando as suas roupas à passagem, corriam para a rua.
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Esse badalar de sinos a uma hora tão insólita significava que o fogo havia irrompido nalguma parte da cidade e as tímidas donas de casa trataram de reunir os seus objectos de valor, pois quando se declarava um incêndio ninguém podia prever até onde se alastraria, e era de bom aviso pôr a salvo tudo quanto se podia antes que as chamas atingissem a casa. Tomados de pânico, alguns foram ao ponto de atirar as roupas de cama pelas janelas e outros começaram a carregar os móveis para fora, depositando-os diante das suas portas.
Os moradores escoavam-se para as ruas, que ficaram regurgitamtes. Levados por um impulso comum, aglomeraram-se na grande praça que constituía o orgulho do lugar. Cada qual perguntava ao seu vizinho onde era o incêndio. Os homens praguejavam e as mulheres torciam as mãos. Corriam de um lado para outro à procura das casas que ardiam. Erguiam os olhos para o céu, buscando o clarão denunciador que devia assinalar o lugar do sinistro. Não se avistava coisa nenhuma. As pessoas que desembocavam na praça, vindas dos diversos quarteirões da cidade, afirmavam que no seu bairro não havia incêndio. Não havia incêndio em parte alguma. Então, como se um vento houvesse soprado de súbito no meio deles, todos tiveram ao mesmo tempo a ideia de que alguns peraltas se estavam divertindo a bater os sinos para fazer o povo sair da cama e meter-lhe medo. Homens furiosos, decididos a moê-los com pancadas, arremessaram-se para as torres das igrejas. Aguardava-os ali um espectáculo pasmoso. As cordas dos sinos esticavam-se e distendiam-se sem que ninguém as puxasse. Contemplaram-nas por um momento, cheios de assombro; depois, carregando tochas e lanternas, subiram a correr as íngremes escadas das torres. Ao alcançarem os campanários,
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o clamor ensurdeceu-os. Os sinos sacudiam-se de um lado para outro muma furiosa oscilação e os badalos atroavam-lhes nos flancos de bronze. Não havia ninguém ali. Homem algum seria capaz de tirar tão violento estrépito daqueles pesados sinos. Dir-se-ia que estes haviam enlouquecido de repente. Tangiam sozinhos.
Anelantes, com o terror nos corações, despenhando-se pelas escadas como se levassem o Diabo nos calcanhares, correram para as ruas e, com palavras doidas e gestos desvairados, contaram o que tinham visto.
Tratava-se de um milagre. Era o Senhor que fazia tanger os sinos, e ninguém sabia se aquilo augurava bem ou mal à cidade. Muitos caíram de joelhos e oraram em altas vozes. Pecadores lembraram-se dos seus pecados e pensaram na cólera divina que os aguardava. Os curas mandaram abrir as portas das igrejas e a multidão invadiu-as, acompanhamdo os padres nas suas preces, em que se suplicava ao Altíssimo piedade para as suas criaturas. Só ao cabo de muito tempo recobraram o sossego e voltaram, silenciosos e mais calmos, para as suas casas.


XIX.

Ninguém sabia onde aquilo tinha começado, se a ideia ocorrera a uma pessoa de grande imaginação ou se fora concebida independentemente por muitas,. Era como a cólera; não se sabe se a trouxe para a cidade um forasteiro vindo de terras estranhas ou se foi um vento funesto que disseminou a doença. Um homem adoece aqui, acolá morre uma mulher, e quando
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despertamos para a consciência do perigo já a epidemia grassa por todas as ruas da cidade e os coveiros não podem cavar sepulturas com a necessária rapidez para enterrar todos os mortos. Ainda pela manhã, espalhara-se pela população de Castel Rodríguez a convicção de que a misteriosa ocorrência da noite anterior tinha uma relação qualquer com o aparecimento da Santa Virgem a Caitalina Pérez. Não se falava de outra coisa. Magistrados discutiam o assunto nas suas câmaras de conselho, sacerdotes nas suas sacristias e nobres nos seus palácios. O povo nas ruas, as donas de casa no mercado e os artífices nas suas oficinas falavam dele, cheios de perplexidade. Os monges nos seus mosteiros e as freiras nos seus conventos não podiam concentrar-se nas suas orações.
Dentro em pouco chegou-se à conclusão de que não podia haver dúvidas quanto à pessoa designada pelas palavras enigmáticas da Santíssima Virgem. Não eram poucos, sobretudo entre o clero secular, os que indagavam se Deus não estaria descontente com a excessiva austeridade do bispo e se um certo elemento de arrogância que havia na sua humildade não incorreria na verdade na reprovação divina. Mas em Dom Manuel de Valero não havia nódoa nem pecha de qualquer sorte. Ele tinha dedicado os melhores anos da sua vida ao serviço do Senhor e de el-Rei. Ao conferir-lhe assinaladas honrarias, Sua Majestade, vice-regente do Todo-Poderoso na terra, apusera o selo da sua aprovação ao valor e à virtude de Don Manuel. Tornara-se manifesto a todos, clérigos e leigos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, que Don Manuel era o homem escolhido para realizar o milagre que a vontade divina ordenara. Uma deputação de eclesiásticos eminentes, membros da aristocracia e pessoas de autoridade no
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conselho municipal, foi visitá-lo para lhe comunicar a sua aprovação unânime. Don Manuel, à sua maneira rude de soldado, respondeu-lhes que estava pronto para colocar-se à sua disposição. Ficou resolvido que a cerimónia se realizaria no da seguinte, na igreja da colegiada. Don Manuel pediu ao arcipreste que o recebesse em confissão naquela tarde e, como pretendia comungar pela manhã, o que só podia fazer em jejum, mandou suspender a ceia que ia oferecer aos seus amigos durante a noite. Era um homem consciencioso e estava decidido a não omitir nada que pudesse tornar a sua intervenção eficaz em ocasião tão solene. Três vezes armado está aquele que, absolvido dos seus pecados e livre de toda a culpa, deposita a sua confiança em Deus.
O prior do convento dominicano informou pessoalmente o bispo da resolução tomada, convidando-o ao mesmo tempo para chefiar os monges que iriam em procissão assistir à cerimónia. Don Blasco percebeu a malícia encoberta sob o oferecimento do prior mas aceitou gravemente, agradecendo-lhe a honra. Não sabia o que fazer. Não ligava importância ao que lhe tinha dito Domingo sobre o seu irmão Martin; conhecia demasiado o gosto de Domingo a quezilar o próximo e o prazer que tinha em defender ideias paradoxais; mas, com tudo isso, tinha a firme convicção de que Don Manuel não era o homem indicado para realizar um milagre. Fugiria de bom grado à obrigação de assistir à sua confusão, mas sabia que se recusasse ir isto seria atribuído ao despeito. Não ficava bem ao seu alto cargo dar aos espíritos maldosos um ensejo de pensar mal dele. Além disso, tinha ainda de cumprir a promessa que fizera a Domingo. Conhecia bem a insensatez e a brutalidade da multidão, quer a constituísse gente bem ou mal nascida,
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e era bem provável que, vendo-se decepcionados na sua esperança de um portento, tirassem vingança na infortunada moça. Achando-se presente, ele poderia salvá-la de tal vandalismo. No da seguinte, pois, com o coração opresso, acompanhado dos seus dois fiéis secretários, dirigiu-se do convento para a igreja à testa dos monges. A igreja achava-se repleta de gente até às portas e contudo o povo, ávido de ver um milagre realizar-se diante dos seus olhos, continuava a fazer força para entrar. Abriram passagem e o bispo, seguido pelos frades, adiantou-se vagarosamente pela nave. Sentou-se numa grande cadeira colocada ao lado e um pouco para a frente do altar-mor. O coro estava cheio de notabilidades locais. Momentos depois Don Manuel entrou com uma comitiva de cavalheiros e sentou-se numa cadeira reservada para ele no outro lado do altar. Vestia uma armadura de parada, o peitoral damasquinado de ouro, e envergava o grande manto da Ordem de Calatrava com a sua cruz verde. Os nobres;, no coro, tinham posto os seus trajes mais sumptuosos. Palestravam e riam, trocando acenos de cabeça e sorrisos entre si. Na nave, a multidão conversava alto e as pessoas chamavam-se umas às outras como se estivessem numa tourada. O bispo observava-os, indignado. Aquilo era um desacato à religião. Estava já disposto a levantar-se e vituperar-lhes aquela irreverente leviandade.
Ao pé dos degraus, apoiando-se na muleta, estava ajoelhada Cattalina.
Ouviram-se os primeiros acordes de um improviso ao órgão, e as floridas notas desceram a bailar jovialmente por sobre as cabeças da congregação. A igreja era de uma arquitectura vasta e simples, mas os sucessivos chefes da grande
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casa de Henríquez tinham-na adornado com um tecto de madeira pintada em estilo "plateresco", encaixando os retábulos em maciças molduras douradas e vestindo as imagens com mantos magnificentes. Os assentos do coro eram lavrados a primor. Nas capelas achavam-se os túmulos - os mais antigos de pedra, austeros e frios, os mais recentes de mármore ricamente esculpido - em que descansavam os restos mortais dos defuntos duques e das suas esposas. Uma luz fosca filtrava-se pelos vitrais e a atmosfera estava pesada de incenso.
Chegaram os sacerdotes, envergando os sumptuosos paramentos que eram usados em tais ocasiões e que tinham sido doados à igreja por damas nobres e devotas. O subdiácono segurava o cálice e a patena, envoltos no véu. A missa foi cantada. Um tremor respeitoso percorreu o vasto concurso de gente, que caiu de joelhos ao ouvir o tinido argentino da campainha que anunciava a elevação da Hóstia e do Cálice. O celebrante, que era o arcipreste, participou da Santa Comunhão e administrou-a sucessivamente a Don Manuel e a Catalina. Tinha chegado afinal o momento que a multidão aguardava com tamanha impaciência. Elevou-se dela um estranho som, que não era um som de vozes nem propriamente um ruído de movimentos ansiosos, mas parecia antes o suspirar do vento nos pinheirais, como se a expectativa da multidão se houvesse tornado audível.
Don Manuel pôs-se em pé e adiantou-se a passos largos para a jovem ajoelhada. Com a sua armadura, o grande manto da ordem a pender dos ombros, formava ele uma figura imponente e magnífica. A cena e a ocasião revestiam-no de uma dignidade desacostumada. Tinha confiança no seu poder. Pousou a mão na cabeça da jovem e, em voz alta, como se
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desse ordem de carregar ao seu regimento, de maneira que foi ouvido com clareza nos mais afastados recantos da igreja, repetiu as palavras que lhe tinham dado para pronunciar:
- Em nome de Deus Padre, Filho e Espírito Santo, ordeno a ti, Catalina Pérez, que te levantes, lances fora essa inútil muleta e caminhes.
A jovem assustada e como que enfeitiçada pela solenidade da ocasião, pôs-se em pé com dificuldade e largou a muleta. Deu um passo à frente e, com um grito de terror, caiu estendida no chão. O milagre falhara mais uma vez.
Levantou-se então uma grande algazarra e dir-se-ia que uma loucura súbita se apoderara da multidão. Homens bradavam, mulheres proferiam gritos agudos. Berravam de fúria.
- Bruxa! Bruxa! À fogueira! À fogueira! Queimem-na!
Arrastados por um impulso repentino, avançaram na direcção do santuário, dispostos a linchar a moça. No seu arrebatamento, arredavam-se uns aos outros do caminho. Alguns caíram e foram brutalmente espezinhados. Os gritos de desespero acresciam o tumulto geral.
O bispo pôs-se em pé de um salto e, com um rápido movimento circular, atravessou o santuário até fazer frente à multidão desvairada. Ergueu os braços acima da cabeça e os seus grandes olhos escuros chamejavam.
- Para trás! para trás! - gritou numa voz de trovão. - Quem sois vós para profanar este lugar? Para trás, digo-vos eu, para trás!
Tão terrificante era o seu aspecto que uma exclamação de horror partiu de todas as gargantas. A multidão estacou de súbito, como se um grande abismo se tivesse aberto diante
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dela. Recuaram. Por um momento o bispo considerou-os com os olhos negros de indignação.
- Vergonha! Vergonha! - gritou ele e, cerrando os punhos, atirou os braços para a frente como se quisesse fulminá-los com o raio da sua cólera. - Ajoelhai, ajoelhai e pedi que vos seja perdoado o insulto que fizestes à casa do Senhor.
A estas palavras, dominados pela força da sua autoridade, muitos caíram de joelhos a soluçar. Outros, como se o atordoamento os paralisasse, ficaram imóveis a contemplar boquiabertos aquela terrível figura. Lentamente, o bispo correu os olhos de um lado para o outro até abranger toda a vasta multidão, e cada um teve a impressão de que esses olhos irados se fixaram particularmente nele. Fez-se silêncio, só cortado pelos soluços histéricos de uma mulher aqui e além.
- Escutai - disse finalmente o bispo. - Escutai o que eu digo. - A sua voz não era já ameaçadora, mas grave, severa e autoritária. - Ouvi. Conheceis as palavras que Nossa Senhora dirigiu a Catalina Pérez e conheceis também os portentos que ocorreram nesta cidade, provocando a confusão e a inquietude nos vossos espíritos. A Santíssima Virgem disse a esta menina que o filho de Dom Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la da sua enfermidade. No nosso condenável orgulho e vaidade, eu que vos falo e meu irmão Don Manuel tivemos a temeridade de julgar que um de nós era a pessoa designada. Fomos amargamente punidos pela nossa presunção. Mas Don Juan de Valero ainda tem outro filho.
A multidão interrompeu-o com risos e vozearia.
- "El panadero"! - gritavam.
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Puseram-se a cantar em tom escarninho, dentro de uma espécie de cadência rude:
- "El panadero, el panadero..."
- Silêncio! - gritou o bispo.
As pessoas da multidão fizeram calar umas às outras.
- Ride! Qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso dos tolos. Que exige Deus de vós senão que sejais justos, ameis a clemência e andeis humildemente nos caminhos do Senhor? Hipócritas e blasfemadores! Impuros! Vergonha, vergonha, vergonha!
Repetiu esta palavra com um tom de desdém cada vez mais pungente, e os que o ouviam recuaram como recuaria um homem a cuja face fosse atirado um copo de água gelada. Era terrível de ver-se a cólera do prelado. Percorreu a multidão com um olhar de causticamte desprezo.
- Estão presentes os familiares do Santo Ofício?
Um som estranho, semelhante a um suspiro de susto, percorreu a multidão, como se todos ao mesmo tempo houvessem sustido o fôlego, pois esses instrumentos da Inquisição provocavam o terror no seio do povo. Ignoravam o significado dessas palavras sinistras e cada qual se pôs a tremer como varas verdes. Vários homens aprumaram-se atrás do Bispo.
- Que se apresentem - disse este.
Como os familiares do Santo Ofício dispunham de poder, influência e sobretudo isenção dos seus terríveis inquéritos, era um cargo muito procurado por homens da mais alta categoria. Havia oito em Castel Rodríguez. Fez-se um silêncio momentâneo,
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enquanto eles se erguiam dos seus assentos e tomavam posição atrás do bispo. Este aguardou até sentir, pelo silenciar dos pés, que todos eles se achavam por trás de si.
- Escutai - disse novamente. O indicador da sua mão estendida parecia acusar cada uma das apavoradas criaturas. - O Santo Ofício nunca procede às pressas nem impelido pela cólera. Faz justiça aos culpados, mas é clemente com o pecador arrependido.
Fez uma pausa, e o silêncio foi medonho.
- Não é a vós, raça de víboras, que compete lançar a mão a esta infeliz menina. Se ela foi iludida ou está possuída de um demónio, é ao Santo Ofício que cumpre tomar conhecimento do facto. Se ela se sair mal na prova, os familiares estão aqui para entregá-la ao tribunal. Mas a prova não se completou ainda. Onde está Martim de Valero?
- Aqui, aqui! - gritaram várias vozes.
- Que ele se apresente.
- Não, não, não!
Era a voz de Martin, o padeiro, que protestava.
- Se ele não vier por sua livre vontade, tragam-no à força - disse rispidamente o bispo.
Houve um arrastar de pés enquanto Martin forcejava com os homens que procuravam arrastá-lo aos puxões e repelões, mas volvidos alguns instantes a multidão abriu alas e ele foi trazido até aos degraus do altar. Os homens voltaram aos seus lugares e deixaram-no consigo mesmo. Viera da oficina ver o milagre de que todos falavam, e estava com a sua roupa de trabalho. Tinha o rosto vermelho do calor dos fornos e pelo vão esforço de escapar às rudes mãos que o arrastavam. O da estava quente e gotas de suor brotavam-lhe da testa. O seu rosto gorducho e bem-humorado estava pesado de consternação.
- Vem - disse o bispo.
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Como que impelido por uma força a que não pudesse resistir, o padeiro subiu os degraus do santuário.
- Mano, mano, a que me queres obrigar? - exclamou ele. - Como poderei eu fazer aquilo que tu não pudeste? Não sou mais do que um homem de trabalho e não sou melhor cristão do que o meu próximo.
- Silêncio!
O bispo não cria em absoluto que o padeiro fosse capaz de realizar um milagre e só pensara nele sob a inspiração do momento, como único meio de salvar Catalina da fúria do populacho. Desejava uma pequena trégua que lhe permitisse apaziguá-los. Sabia que a menina já não correria perigo. Ali estavam os familiares para protegê-la e, como não houvesse cárcere da Inquisição na cidade, conduzi-la-iam para um convento a uma ordem sua e sobraria então tempo para reflectir sobre o que cumpria fazer em seguida. O bispo dirigiu-se mais uma vez ao povo reverente:
- Porventura não "tem o oleiro poder sobre a argila, poder de fazer com o mesmo bloco um vaso de honra e outro de desonra? Deus não faz acepção de pessoas. Aquele que se humilha será exaltado e os soberbos serão humilhados. Tragam a menina.
Catalina jazia no mesmo lugar em que tombara, com o rosto oculto nos braços e o pequeno corpo sacudido de soluços. Ninguém lhe prestava mais atenção do que se ela fosse um cão morto à beira da estrada. Dois familiares puseram-na em pé e colocaram-na em face do bispo. Com a muleta debaixo do braço, ela juntou como melhor pôde as mãos num gesto de súplica. As lágrimas corriam-lhe pdas faces.
- Oh! senhor bispo, senhor bispo, tenha compaixão de
mim! Não tente de novo, suplico-lhe, tudo é inútil! Deixe-me voltar para junto de minha mãe!
- Ajoelha-te - ordenou ele. - Ajoelha-te.
Com um soluço desesperado, a criança deixou-se cair de joelhos.
- Pousa-lhe a mão na cabeça - disse o bispo ao irmão.
- Não posso... Não o farei... Tenho medo!
- Sob pena de excomunhão, ordeno-te que faças o que te digo - tornou o bispo asperamente.
O infeliz foi tomado de um tremor, pois sabia que o irmão não hesitaria em pôr em efeito a sua pavorosa ameaça. Pousou timidamente a mão trémula na cabeça da jovem. Essa mão nem sequer estava limpa.
- Dize agora as palavras que ouviste a teu irmão Manuel pronunciar.
- Não me lembro delas...
- Vou dizê-las, então, e tu as repetirás: "Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero"...
Martin repetiu:
- Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero...
O bispo pronunciou as últimas palavras fatídicas em voz forte e sonora, mas o irmão repetiu-as num tom apenas perceptível. Catallina pôs-se em pé como lhe ordenavam e, com um gesto desesperado, atirou para longe a muleta. Por um instante vacilou, mas não caiu. Ficou em pé. Então, deixando escapar um grito e um soluço, olvidada do lugar e da ocasião, virou-se e desceu a correr os degraus do santuário.
- Mãe, mãe!
Maria Pérez, que estava com Domingo na igreja, delirante de alegria, abriu caminho por entre a multidão e correu ao
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encontro dela. Catalina atirou-se-lhe aos braços e desatou a chorar.
Por um instante a densa multidão ficou tão aturdida que não pôde mover-se. Contemplavam a cena boquiabertos. Formou-se então tal algazarra como jamais se ouviu outra igual.
- Milagre! Milagre!
Gritavam, batiam palmas, mulheres acenavam com os lenços. Os homens gritavam "olé, olé", como faziam nas touradas, quando um dos toureiros executava um passe perigoso; atiravam os chapéus para cima como costumavam atirá-los aos pés do matador de espada quando, seguido da sua "quadrilha", ele dava volta à arena para receber os aplausos do público. Acima do tumulto elevava-se a voz estridente de alguma mulher a entoar aqui e ali, ao compasso de uma estranha melodia semimourisca, um hino à Virgem Santíssima. Dir-se-ia que a balbúrdia não terminaria mais. Desconhecidos abraçavam-se. Homens e mulheres choravam de alegria. Tinham visto um milagre com os seus próprios olhos.
De repente fez-se um silêncio no meio daquela doida confusão e todos os olhos se voltaram para o bispo. Martin, o tímido, mal atinando com o que havia sucedido, recuara modestamente para o fundo e o dominicano ficara sozinho no alto dos degraus do santuário, com as costas viradas para o altar-mor. Emaciado, mas alto e erecto, envolto no seu hábito remendado e puído, formava uma figura imponente. O maravilhoso, porém, é que ele estava banhado em luz. Não era uma simples auréola a cercar-lhe a cabeça, mas um resplendor que parecia vesti-lo da cabeça aos pés.
- Um santo! Um santo! - clamou o povo, com os olhos cravados no estranho e sensacional espectáculo. - Bendita seja
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aquela que te pôs no mundo! - gritavam. - Agora permites que o Teu servo se retire em paz. Oh, ditoso, ditoso dia!
Falavam às tontas, sem saber o que diziam. Estavam desvairados de alegria, amor e medo. Somente Domingo notou que um dos vitrais tinha um caixilho quebrado e, por uma feliz coincidência, um raio de sol passava pela abertura, incidindo no bispo e banhando-o em glória.
O bispo alçou a mão exigindo silêncio e imediatamente a grande algazarra cessou. Ficou um instante a contemplar, com uma expressão triste e severa, aquele mar de rostos que tinha diante de si. Depois, levantando a cabeça, os trágicos olhos cheios de arrebatamento, como se com os olhos do espírito avistasse as hostes celestiais, começou a recitar o Credo de Niceia em voz lenta e solene. As palavras eram familiares a todos os presentes, que as ouviam todos os domingos na missa; e, num zumbido abafado que se assemelhava a um longínquo arrastar de pés, puseram-se a repetir os artigos de fé um após outro. O bispo terminou a recitação do Credo, virou-se e caminhou para o altar-mor. O halo de luz desaparecera. Levantando os olhos para o vitral, Domingo viu que o sol tinha continuado a sua inexorável viagem através do céu e já nenhum raio de luz penetrava pelo vidro quebrado. O bispo prosternou-se diante do altar e deu graças ao Senhor numa oração muda. O seu torturado coração fora aliviado de um grande peso, pois compreendera, sem sombra de dúvida, que, embora tivesse sido Martin quem pousara a mão na cabeça da jovem paralítica, seu irmão não tinha passado de um instrumento de que aprouvera a Deus lançar mão a fim de que ele, Blasco de Valero, obrasse um milagre para Sua eterna glória. Era ademais um sinal, seguro e indubitável, de que o Senhor lhe perdoava
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o grave pecado que cometera ao permitir, num momento de fraqueza, que o grego fosse garroteado antes de o queimarem. Deus, que vê todas as coisas passadas, presentes e futuras, conhecia o duro coração do descrente e por ísho o tinha condenado à morte eterna. Estava bem lamentar os réprobos nos seus tormentos, mas mostrar-se descontente era impugnar a justiça divina.
O bispo pôs-se em pé e retirou-se lentamente do santuário. Caminhava como que em sonho. Os dois religiosos, seus amigos e secretários, perceberam-lhe a intenção e seguiram-no. Vendo isso, o prior fez um sinal aos seus frades para que o seguissem também e pôs-se a caminhar atrás deles. O bispo deteve-se ao alcançar os degraus.
- Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Padre e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Desceu. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e aos religiosos que o acompanhavam. Os frades entoaram o "Te Deum Laudamus". As vozes fortes e profundas ecoaram por toda a igreja. Como que transportado em êxtase, o bispo passou por entre a multidão ajoelhada, dando a sua bênção ao povo enquanto se dirigia para a saída. Não notou o olhar irónico de Domingo.
Nesse momento os sinos começaram a soar no campanário, e dentro em pouco todos os sinos da cidade badalavam. Não havia nisso, porém, nenhuma intervenção sobrenatural. Don Manuel, como o bom soldado que era, tinha atendido a todos os pormenores e tomara disposições para que, ao serem tangidos os sinos da colegiada em celebração do milagre que
ele estava certo de realizar, todos os sinos das demais igrejas se pusessem a bater também.
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As enormes portas abriram-se de par em par à aproximação do bispo e este saiu para o sol deslumbrante do dia de Agosto. A multidão lançou-se em pós dele e seguiu a procissão de frades até estes chegarem ao convento. Ia o bispo entrar quando uma grande gritaria se levantou da turba. Queriam que ele falasse. Junto à parede do convento havia um púlpito, usado quando a cidade era visitada por algum pregador tão famoso que a igreja do convento não podia comportar a vasta congregação desejosa de ouvi-lo. O prior adiantou-se, transmitindo ao bispo o desejo do povo, rogou-lhe que acedesse. Don Blasco correu os olhos em volta de si, como se ignorasse onde estava. Dir-se-ia que até então não se apercebera das devotas e ansiosas criaturas que lhe seguiam os passos. Deteve-se um instante para reunir as ideias e, sem uma palavra, subiu ao púlpito.
Tinha uma voz magnífica, de tom rico, com uma infinita variedade de inflexão. Começou a falar.
- Ninguém pode sondar as profundezas do coração humano, nem perceber as coisas que ele pensa: como encontrar então a Deus, que criou todas essas coisas-, e conhecer-Lhe o pensamento ou compreender os Seus desígnios?
Os gestos do bispo eram vigorosos e expressivos. A sua voz alcançava os últimos confins da cerrada multidão, e quando ele a baixava num tom compassivo, tal era a beleza da sua dicção que nenhuma das suas palavras deixava de ser ouvida. Quando, numa investida apaixonada contra os pecados humanos, ele a erguia, em todo o seu esplendor, era como o trovão a rolar nas desoladas serras. Fazia de súbito uma pausa,
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e o silêncio no meio daquela torrente de eloquência semelhava o estridor do Juízo Final. O povo encolheu-se confrangido quando ele lhes lembrou a brevidade da existência, os acidentes que perseguem os filhos de Adão desde o berço até à sepultura, a transitoriedade dos seus prazeres, a angústia dos seus sofrimentos; tremeram quando ele lhes pintou os horrores do Inferno e as intermináveis torturas dos réprobos; e choraram quando, com a voz apagada de ternura, ele descreveu com inflexões extáticas a comunhão dos santos e as eternas alegrias do Paraíso. Muitos arrependeram-se dos seus pecados e regeneraram-se desse dia em diante. O bispo terminou por uma grande peroração em louvor da Santíssima Virgem e para glória do Senhor. Jamais tinha falado com mais ardente e patética eloquência.
Quando o conduziram à sua cela, estava tão alquebrado que se deixou deitar na cama dura pelos seus dois fiéis assistentes. Sentia-se devastado pela emoção e pela fadiga.

XX.

Nessa noite houve grande regozijo na cidade. Os taberneiros não tinham mãos a medir. A multidão passeava em redor da praça, palrando sobre o portentoso acontecimento daquele dia. Ninguém duvidava de que tivesse sido o santo bispo o realizador do milagre e todos admiravam a sua modéstia em usar o irmão padeiro como instrumento do seu poder. Ensinara-lhes, assim, que na verdade os humildes devem ser exaltados e os soberbos devem ser humilhados. Muitos
afirmavam tê-lo visto elevar-se no ar - a dois pés do chão, segundo alguns, a quatro, segundo outros - e permanecer suspenso dessa forma, rodeado de glória.


C O N T I N U A

Catalina - o cenário desta história é a Espanha do reinado de Filipe III, a trágica Espanha da Inquisição.
Catalina, jovem de dezasseis anos, aleijada de uma perna, está orando ardentemente pela sua cura quando lhe aparece a Virgem Maria.
Qual dos três filhos de Valero melhor servia a Deus? Em páginas repletas de emoção, o leitor verá quem, afinal, realiza o milagre, assim como assistirá a todo o restante e apaixonante entrecho deste romance cheio de contrastes humanos.

 


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I.

Era um grande dia para a cidade de Castel Rodríguez. Já ao amanhecer os habitantes estavam de pé, com as suas melhores roupas. Nos balcões dos velhos e severos palácios dos nobres ostemtavam-se ricos estofos e os galhardetes batiam indolentemente de encontro às hastes. Era a festa da Assunção, dia 15 de Agosro, e o sol escaldava num céu sem nuvens. Sentia-se um alvoroço no ar, pois nesse dia, após muitos anos de ausência,, chegavam duas pessoas eminemtes, naturais da cidade, e grandes festividades tinham sido preparadas em sua honra. Uma delas era Frei Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, e a outra seu irmão Don Manuel, capitão de nomeada nas forças d'El-Rei. Haverá um "Te Deum" na colegiada, banquete na municipalidade, touradas e fogo preso quando anoitecesse. À medida que se adiantava a manhã, um número cada vez maior de pessoas tomava o caminho da Plaza Mayor. Formou-se ali o cortejo que ia esperar os ilustres viajantes a certa distância da cidade. Encabeçavam-no as autoridades civis, vindo
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depois os dignitários da Igreja e, por fim, uma série de pessoas gradas. A multidão abriu alas nas ruas para vê-los passar,, depois colocou-se em ordem para esperar a emtrada dos dois irmãos na cidade, seguidos desses importamtes personagens, no momento em que os sinos de todas as igrejas se punham a repicar em sinal de boas-vindas.
Na capela da Virgem da igreja anexa ao convento das freiras carmelitas, uma jovem aleijada estava a rezar. Fazia-o com devoção apaixonada, diante da imagem da Santíssima Virgem. Ao erguer-se, afinal, ajeitou melhor a muleta debaixo do braço e saiu da igreja. Lá dentro estava fresco e escuro, e aquela claridade súbita do dia quente e abafado ofuscou-a por um momento. Deteve-se a olhar a praça vazia, em baixo. As casas tinham os postigos fechados para não deixar entrar o calor. Reinava ali um grande silêncio. Todos tinham ido ver os festejos e não ficara um cão sem dono para latir. Dir-se-ia uma cidade morta. A jovem olhou para a sua própria casa, um pequeno prédio de dois andares comprimido entre os seus vizinhos, e suspirou desalentada. A sua mãe e seu tío Domingo, que vivia com elas, tinham ido com os demais e só voltavam depois das touradas. Sentia-se muito só e muito infeliz. Como não tivesse ânimo de ir para casa, sentou-se no último degrau da escadaria que descia da porta da igreja à praça e largou a muleta no chão. Pôs-se a chorar. De repente, assoberbada pela mágoa, prostrou-se no patamar de pedra e, mergulhando o rosto nos braços, soluçou como se o seu coração estivesse a ponto de despedaçar-se. O seu movimento brusco dera um impulso à muleta, que caiu com ruído pelos degraus estreitos e íngremes, até em baixo. Era o cúmulo do infortúnio: teria que descer de rastos ou deixar-se escorregar pela escada a fim de ir buscá-la, já que a sua perna paralítica não lhe permitia caminhar sem a muleta. Chorou desconsoladamemte.
De súbito ouviu uma voz.
- Porque choras, minha filha?
Virou-se surpreendida, pois não ouvira ninguém aproximar-se. Viu uma mulher em pé atrás de si. Parecia ter saído da igreja, mas ela própria o fizera naquele momento e lá dento não estava ninguém. A mulher vestia um longo mamto azul, que lhe ia até aos pés, e enquanto Catalina a olhava, afastou o capuz que lhe cobria a cabeça. Devia ter saído da igreja, com efeito, pois para as mulheres era um pecado entrar na casa do Senhor com a cabeça descobertta. Era bastante alta para uma espanhola e moça, tendo a pele do rosto suave e macia, sem rugas por baixo dos olhos escuros. Usava um penteado muito simples, com o cabelo repartido no meio e apanhado num coque frouxo sobre a nuca. Possuía feições pequenas, delicadas, e um olhar bondoso. A jovem paralítica não saberia dizer se se tratava de uma camponesa - esposa, talvez, de algum chacareiro das imediações - ou de uma dama. Tinha certa singeleza de aspecto, e ao mesmo tempo uma dignidade um tanto intimidativa. O comprido manto escondia-lhe as roupas, mas quando ela tirou o capuz a rapariga vislumbrou qualquer coisa branca e deduziu que tal devia ser a cor do seu vestido.
- Enxuga as lágrimas, minha filha, e dize-me o teu nome.
- Catalina.
- Por que vens sentar-te aqui sozinha, a chorar, quando toda a gente foi ver a recepção do bispo e de seu mano, o capitão?
- Sou aleijada e não posso ir longe, senhora. Além disso, que iria fazer no meio de toda essa gente sã e feliz?
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A desconhecida estava atrás de Catalina e esta tivera de virar-se para lhe falar. Relanceou os olhos para a porta da igreja.
- De onde veio, Senhora? Não a vi na igreja.
A desconhecida sorriu. Era um sorriso tão meigo que todo o amargor pareceu dissipar-se no coração da rapariga.
- Pois eu vi-te, minha filha:. Estavas a rezar.
- Estava pedindo à Virgem que me curasse, como venho fazendo noite, e dia desde que fiquei inválida.
- E pensas que ela tem o poder de fazê-lo?
- Se ela quiser...
A senhora tinha uns modos tão doces e tão afectuosos que Catalina sentiu-se impelida a contarnlhe a sua triste história. Aquilo sucedera quando estavam trazendo os novilhos para as touradas da Páscoa e toda a população da cidade se reunira para vê-los chegar, sob a orientação segura dos dois padrinhos. À frente ia um grupo de jovens fidalgos, cujos cavalos curveteavam. De repente, um dos animais escapou-se e enveredou por uma viela. Formou-se um pânico e a multidão espalhou-se para todos os lados. Um homem foi atropelado pelo touro-, que tornou a investir para a frente. Catalina, que corria tão depressa quanto podia, escorregou e caiu no momento em que o amimal ia alcançá-la. Soltou um grito e perdeu os sentidos. Ao voltar a si, disseram-lhe que o touro a tinha pisado na sua doida arremetida, mas continuara a correr impetuosamente. Ela sofrera contusões mas não fora ferida. Disseram-lhe que havia de sarar em pouco tempo, mas um ou dois dias depois, Catalina queixou-se de não poder mexer a perna. Os médicos examinaram o membro e encontraram-no paralisado. Picaram-no com agulhas: Catalina não sentia nada. Sangraram-na, purgaram-na e deram-lhe poções nauseabundas para tomar, mas tudo foi inútil. A perna estava como morta.
- Mas ainda tens o uso das mãos - disse a senhora...
- Graças a Deus, pois se não fosse isso nós morríamos de fome. A senhora perguntou-me porque estava eu a chorar. Eu choro porque, com o uso da perna, perdi também a afeição do meu amado.
- Ele não te podia ter grande amor, se te abandonou na tua desgraça.
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- Amava-me de todo o coração, e eu amo-o mais do que à minha própria alma. Mas nós somos pobres, senhora. Ele é Diego Martínez, o filho do alfaiate, e segue a profissão do pai. Íamos casar quando ele tivesse terminado o aprendizado, mas um homem pobre não pode dar-se ao luxo de desposar uma mulher incapaz de fazer frente às outras mulheres no mercado ou de subir e descer as escadas para dar conta dos trabalhos caseiros. Depois, os homens são sempre homens. Um homem não pode querer uma mulher aleijada. Pedro Álvarez ofereceu-lhe a sua filha Francisca. É feia como o pecado, mas Pedro Álvarez é rico, e assim como poderia ele recusar?
Catalina pôs-se de novo a chorar. A dama considerou-a com um sorriso de compaixão. De repente, ouviu-se ao longe um rufar de tambores e um clangor de trombetas e todos os sinos se puseram a badalar simultaneamente.
- Entraram na cidade: o bispo e seu irmão, o capitão - disse Catalina. - Como se explica, que esteja aqui em lugar de ir vê-los passar, senhora?
- Não me deu vontade de ir.
Isto pareceu tão esquisito a Catalina que lançou um olhar desconfiado à desconhecida.
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- Não mora na cidade, senhora?
- Não.
- Estranhei não a ter visto antes. Creio que não há aqui ninguém a quem eu não conheça:, pelo menos de vista.
A dama não respondeu. Catalina ficou intrigada e olhou-a com mais atenção por baixo dos cílios. Não era crível que fosse moura, pois não tinha a pele bastante escura para isso, mas era bem possível que pertencesse aos cristãos-novos, isto é, a esses judeus que tinham preferido o baptismo à expulsão do país. Mas, como todos sabiam, continuavam a observar em segredo os ritos judaicos, lavando as mãos antes e depois das refeições, jejuando no Dia da Expiação e comendo carne às sextas-feiras. A Inquisição não dormia e, quer se tratasse de mouros baptizados ou de judeus conversos, era perigoso ter quaisquer relações com eles. Havia sempre o risco de caírem nas mãos do Santo Ofício e, submetidos à tortura, incriminarem inocentes. catalina perguntou consigo, ansiosa, se não teria dito alguma coisa que pudesse motivar uma acusação, pois na Espanha daqueles tempos toda a gente vivia no terror do Santo Ofício e uma palavra impensada, um gracejo, podiam constituir motivo suficiente para a prisão, e uma vez no cárcere passavam-se semanas, meses e até anos antes que se conseguisse provar a sua inocência. Catalina achou bom afastar-se dali o quanto antes.
- São horas de ir para casa, senhora - disse ela; e, com a polidez que lhe era natural, acrescentou: - Assim, se me permite, vou deixá-la.
Relanceou os olhos para a muleta, que caíra lá em baixo. Teria a coragem de pedir à senhora que a fosse buscar? Mas esta não prestou atenção no que ela dissera.
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- Não gostaria de recobrar o uso das suas pernas, minha filha,, para poder andar e correr como se nunca houvesse estado doente? - perguntou ela.
Catalina ficou branca. Essa pergunta deixava patente a verdade. A desconhecida não era cristã-nova e sim uma moura, pois ninguém ignorava que os mouros, cristãos apenas no nome, tinham pacto com o demónio e por meio das artes mágicas podiam obrar toda a sorte de malefícios. Não fazia muito que uma pestilência assolara a cidade, e os mouros, acusados de serem os seus causamtes, confessaram-se culpados no cavalete e acabaram morrendo na fogueira. Catalina sentiu tamanho terror que ficou impossibilitada por um momento de falar.
- Então, minha filha?
- Eu daria tudo que tenho no mundo - e não é nada - para me ver livre da minha enfermidade, mas ainda que fosse para recuperar o amor do meu Diego não faria nada que pusesse em perigo a minha alma Imortal ou que constituísse uma ofensa à Santa Madre Igreja.
E, enquanto falava, persignou-se sem tirar os olhos da desconhecida.
- Então eu te direi como podes curar-te. O filho de Juan Suárez de Vataro que melhor tem servido a Deus tem o poder de fazê-lo. Ele te imporá as mãos em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, mandar-te-á atirar fora a muleta e andar. E tu atirarás fora a muleta e andarás.
Não era isto, em absoluto, o que Catalina esperava. O que a senhora dizia era surpreendente, mas falava com tanta calma e segurança que a moça ficou impressionada. Duvidando e esperando ao mesmo tempo, encarava fixamente a misteriosa desconhecida. Necessitava de um momento para tornar a si
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do seu espanto, antes de fazer as perguntas que já iam tomando forma no seu espírito. Mas de súbito os olhos de Catalina quase lhe saltaram das órbitas e a sua boca escancarou-se de assombro, pois no lugar onde estava a senhora já não se via mais nada. Não podia ter entrado na igreja, porquanto Catalina não tirara os olhos dela., nem podia ter-se movido: desvanecera-se no ar, simplesmente. A jovem soltou um grande grito e novas lágrimas, mais lágrimas de outra espécie, correram-lhe em torrente pelas faces.
- Era a Santíssima Virgem! - gritou. - Era a Rainha dos Céus, e eu falei-lhe como teria falado a minha mãe. Era Maria Santíssima, e eu tomei-a por uma moura ou uma judia conversa!
Tal era a sua emoção que sentiu a necessidade urgente de contar aquilo a alguém. Sem reflectir, deixou-se escorregar sobre as costas pela escada abaixo, ajudando-se com as mãos, até alcançar a muleta. Voltou então para casa, mas somente ao chegar à porta se lembrou de que ninguém estava lá. Apesar disso entrou e, como sentisse fome, arranjou um pedaço de pão e algumas azeitonas e tomou um copo de vinho. Este deu-lhe sono, mas continuou sentada, resolvida a não dormir enquanto não chegassem sua mãe e seu tio Domingo. Mal podia esperar para lhes contar a sua história maravilhosa. Foram-se-lhe, porém, cerrando as pálpebras e dentro em pouco dormia profundamente.

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II.

Era Catalina uma linda moça. Tinha dezasseis anos, era alta para a sua idade, já com o busto bem desenvolvido, mãos e pés pequeninos, e antes do acidente caminhava com uma graça sinuosa que encantava todos quantos a olhavam. Tinha olhos grandes e escuros em que brilhava o ardor da mocidade, cabelos pretos que se encrespavam naturalmente e tão compridos que podia sentar-se neles, pele morena e suave, faces de um rosado tépido, lábios vermelhos e húmidos. Quando ria ou sorria - o que era frequente antes do seu infortúnio - mostrava os dentes, parelhos, pequenos e alvíssimos. O seu nome completo era Maria de los Dólares Catalina Orta y Pérez. Seu pai, Pedro Orta, fora fazer fortuna nas Américas pouco depois de nascer Catalina, e desde então não tinham notícias dele. Sua esposa, Maria Pérez por nascimento,, ignorava se ele estava vivo ou morto, mas ainda tinha esperança de vê-lo regressar um dia com uma arca repleta de ouro, enriquecendo-os a todos. Era uma mulher devota e todas as manhãs, à missa, fazia uma oração pela segurança do marido. Enfurecia-se com o mano Domingo quando este lhe dizia que, se Pedro não morrera havia muito tempo, devia estar vivendo com alguma índia ou quem sabe se duas ou três, e não tinha a menor intenção de abandonar os filhos mestiços que indubitavelmente tinha por lá, para voltar à companhia de uma esposa que já perdera a beleza e a mocidade.
Tio Domingo era uma terrível provação para a sua virtuosa mana,, mas esta queria-lhe bem, em parte porque tal era o seu dever de cristã mas também porque, apesar dos seus graves defeitos, Domingo era um homem estimável e ela não podia
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deixar de amá-lo. Não o esquecia também nas suas orações e compraziam em acreditar que era em virtude da eficácia destas, e não por estar envelhecendo, que ele abandonara! ao menos os seus piores costumes. Domingo Pérez fora destinado ao sacerdócio e no seminário de Akallá de Henares, para onde o mandou o pai, tomou as ordens menores e recebeu a tonsura. Um de seus condiscípulos fora Blasco Suárez de Valero, o bispo de Segóvia, cuja chegada os habitantes da cidade estavam festejando naquele dia. Maria Pérez suspirava ao pensar nos destinos tão diferentes que os dois tinham tomado. Domingo era um estrabulega. Desde o começo envolveu-se em complicações no seminário devido ao seu génio teimoso, turbulento e dissipador, e nem as advertências, nem os castigos nem as pancadas conseguiam domá-lo. Já nesse tempo gostava da pinga e quando bebia de mais entoava canções obscenas que ofendiam os seus colegas de seminário e os professores, os quais tinham por missão incutir a honestidade e o decoro naqueles jovens espíritos. Ainda não tinha feito vinte anos, quando deixou grávida uma escrava moura e, ao perceber que a sua má acção seria divulgada, fugiu e ingressou num grupo de actores ambulantes. Vagueou com eles durante dois anos pelo país e ao fim desse tempo apareceu de repente em casa do pai.
Declarou-se arrependido dos seus pecados e prometeu emendar-se. Era evidente que a Providência não o talhara para o sacerdócio. Disse ao pai que, se este lhe desse o dinheiro necessário para não morrer de fome, iria estudar leis numa universidade. O pai estava ansioso por acreditar que o seu filho havia assentado o juízo e como, na verdade, Domingo voltou reduzido a pele e ossos, a existência que levara não parecia ter sido muito fácil e o velho Pérez deixou-se persuadir. Domingo foi para Salamanca, onde ficou oito anos, mas fez os seus estudos de maneira muito irregular. A magra mesada que recebia do pai obrigava-o a viver numa casa de pensão com vários outros estudantes e a comida era o quanto bastava para não morrer de inanição. Posteriormente, costumava divertir os seus companheiros de pândega, nas tabernas que frequentava, com anedotas sobre os horrores do estabelecimento e as astúcias a que tinham de recorrer para completar o mísero passadio. Mas a pobreza não impedia que Domingo gozasse a vida. Tinha uma língua desenvolta, modos encantadores e cantava bem, de forma que era bem recebido em todas as festas. Talvez os dois anos passados com a troupe ambulante não lhe tivessem ensinado a ser bom actor, mas ensinaram-lhe outras coisas que lhe prestavam serviço agora. Aprendera a ganhar às cartas e aos dados,, e quando aparecia na universidade algum jovem rico, Domingo não tardava a travar conhecimento com ele. Constituía-se em seu guia e mentor no tocante aos costumes da cidade e era raro que o recém-vindo não tivesse de pagar bom -preço pela experiência adquirida. era Domingo nessa época um rapaz bem apessoado e de vez em quando tinha a sorte de provocar a paixão de alguma mulher dada às aventuras amorosas. Não estavam elas no viço da mocidade mas eram pessoas abastadas e Domingo achava justo que provissem às suas necessidades em troca dos serviços que lhes prestava.
O período que passara como actor -ambulante inspirara-lhe o desejo de escrever peças de teatro e todas as horas vagas que lhe deixavam os seus divertimentos, ele dedicava-se a essa ocupação. Tinha considerável facilidade e, além de escrever algumas comédias, compunha amiúde um soneto ao objecto das suas lucrativas atenções e fazia versos em honra de alguma
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pessoa grada, a quem os enviava com a esperamça de receber uma recompensa em metal sonante. Foi esse seu dom de rimar que acabou por levá-lo à mina. O reitor da universidade provocara a cólera dos estudantes com uma pnescrição qualquer e, ao encontrarem numa mesa de taberna uns versos indecentes e injuriosos a seu respeito, encheram-se de regozijo. Dentro em pouco andavam cópias de mão em mão. Correu o boato de que o autor era Domingo Pérez e, conquanto este o negasse, fê-lo com tal complacência que era o mesmo que admiti-lo. Amigos serviçais chamaram a atenção do reitor para os versos, indicando-lhe ao mesmo (tempo quem os tinha escrito. Como o original houvesse desaparecido, não foi possível provar a culpa de Domingo com a sua própria letra, mas o reitor fez indagações discretas que o convenceram de que esse indivíduo dissoluto e mau estudante era o responsável pelo insulto. Tinha demasiada astúcia para formular uma acusação difícil de provar, mas, decidido a vingar-se, escolheu um método mais subtil. Não foi difícil descobrir o escândalo provocado por Domingo como seminarista em Alcalá, e a existência que ele levara durante os oito amos passados na universidade eram notoriamente desregrada. Domingo era jogador e todos sabiam que o jogo leva muitas vezes à impiedade; não faltaram testemunhas dispostas a jurar que lhe tinham ouvido proferir as mais horríveis blasfémias, e diante de duas delas ele dissera que acreditar nos Artigos de Fé era, acima de tudo, questão de boa educação. Isto por si era suficiente para justificar um inquérito do Santo Ofício. O reitor depôs nas mãos dos inquisidores as informações que tinha recebido. O Santo Ofício nunca procedia às pressas. Reunia as provas com todo o sigilo e cuidado e enquanto não
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lhe desabava o golpe na cabeça, a vítima raras vezes sabia que estava debaixo de suspeita.
Uma noite, tarde, estando Domingo deitado a dormir, o aguazil bateu-lhe à porta e prendeu-o quando ele veio abrir. Só lhe deu tempo para vestir-se e emalar a sua reduzida bagagem, junto com a roupa de cama, e conduziu-o, não à prisão - pois Domingo tinha as ordens menores e a Inquisição fazia o possível para evitar escândalos no seio da Igreja - mas a um mosteiro, onde foi encarcerado numa cela disciplinar. Deixaram-no ficar alli algumas semanas, fechado a sete chaves, sem permissão de falar a ninguém ou de ler o que quer que fosse, sem uma vela sequer para alumiar-lhe as trevas. Foi então conduzido à presença do tribunal. As coisas estariam mal paradas para ele se não fosse uma feliz circunstância. Poucos dias antes o reitor, homem vaidoso e irrascível, -tivera violenta disputa com os inquisidores sobre uma questão de precedência. Leram os versos de Domingo e riram com malicioso júbilo. Os seus delitos eram manifestos e não podiam ser relevados, mas os juízes perceberam que,, temperando a justiça com a clemência, podiam infligir ao reitor furioso uma afronta que ele sentiria fundo mas teria de tragar. Domingo reconheceu a sua culpa e declarou-se arrependido. Foi sentenciado a ouvir missa na câmara de audiência e exilado de Salamanca e seus arredores, Tinha rapado um bom susto. Achou conveniente ausentar-se da Espanha por algum tempo; foi, pois, para a Itália como soldado e passou lá alguns anos a jogar, a praguejar quando os dados ou as cartas o atraiçoavam, a fornicar e a beber. Tinha quarenta anos quando voltou à sua terra natal, tão pobre como ao deixá-la, com uma ou duas cicatrizes arranjadas
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em rixas entre bêbedos mas com numerosas recordações para emtreter-Lhe as horas vagas.
Seus pais tinham morrido e a única pessoa da família que restava era a mana Maria, abandonada pelo marido, e a sobrinha Catalina, então uma linda criança de nove anos. O marido de Maria esbanjara-lhe o dote e ela nada possuía além da casinha em que morava. Sustentava a si mesmo e à filha com hábeis e difíceis trabalhos de agulha, tecendo adornos de ouro e prata para os mantos de veludo das imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos padroeiros, as quais eram carregadas nas procissões da Semana Santa, e para as capas, casulas e estolas usadas nas cerimónias da Igreja. Na idade a que chegara, Domingo sentia-se disposto a trocar por uma existência tranquila a vida aventurosa que levara durante vinte anos e a irmã, necessitando da protecção de um homem em casa, convidou-o para morar com ela. Ao iniciar-se a nossa história, havia sete anos que ele vivia ali. Já não pesava nas despesas de Maria, pois ganhava dinheiro escrevendo cartas a pedido de pessoas iletradas, sermões para padres preguiçosos ou ignorantes que não queriam compô-los por si, e depoimentos para demandantes em juízo. Era também hábil em traçar genealogias de pessoas que desejavam atestados de sangue limpo, o que queria dizer que durante um século, ao menos, a sua ascendência não fora manchada por qualquer cruzamento com judeus ou mouros. A pequena família teria uma vida assaz remediada se Domingo pudesse livrar-se dos maus hábitos do jogo e da bebida. Também gastava dinheiro em livros, sobretudo volumes de versos e peças dramáticas, pois ao voltar da Itália recomeçara a escrever para o teatro e, embora não conseguisse fazer representar nenhuma das suas produções, contentava-se com o prazer
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de lê-las aos outros beberrões na sua taberna favorita. Ao tornar-se um homem respeitável reassumira a tonsura, uma salvaguarda em meio aos perigos da Espanha daquele tempo, e usava as vestes sóbrias que convinham a um letrado com as ordens menores.
Tomou grande afeição a Catalina, tão alegre, tão vivaz e tão bonita, e via-a transformar-se numa bela moça com uma satisfação inteiramente desinteressada. Encarregou-se da sua educação e ensinou-a a ler e escrever. Ensinou-lhe também o catecismo e assistiu à sua primeira comunhão com todo o orgulho de um pai. Quanto ao resto, porém, limitava o seu ensino a ler-lhe versos e, quando ela teve bastante idade para apreciá-las, as peças dos dramaturgos que começavam a ser tão comentados na Espanha. Mais do que a todos admirava Lope de Vega, a quem proclamava o maior génio que o mundo tinha visto, e antes do acidente que lesou a jovem, ele e Catalina costumavam representar as cenas que mais admiravam. Tinha ela uma memória viva e com o tempo chegou a saber de cor passagens inteiras. Domingo não esquecera que tinha sido actor e ensinou-a a declamar os seus versos, quando devia ser comedida e quando soltar as rédeas à paixão. Domingo tornara-se um homem magro, de movimentos desarticulados, cabelos grisalhos, rosto amarelo e cheio de rugas, mas ainda havia fogo nos seus olhos e ressonância na sua voz; e quando ele e Catalina representavam uma cena emocionante, com Maria por único auditório, Domingo já não era o valdevinos envelhecido, bêbedo e decadente, mas um brioso mancebo, um príncipe de sangue azul, um galã, um herói ou o que se quisesse. Tudo isso terminou, porém, quando Catalina foi pisada pelo touro. O choque manteve-a de cama algumas semanas, durante as
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quais os médicos da cidade empregaram todos os recursos da sua pobre ciência para devolver a vida ao membro paralisado. Afinal confessaram-se impotentes. Era um caso incurável. Diego, seu namorado, já não lhe vinha à janela de noite para lhe fazer a corte através da grade de ferro, e pouco depois sua mãe trazia para casa a notícia de que ele ia casar com a filha de Pedro Álvarez. Domingo ainda lhe lia dramas para distraí-la, mas as cartas de amor faziam-na chorar com tanta amargura que ele tinha de interromper-se.


III.

Catalina dormiu algumas horas e foi despertada afinal pelos ruídos que sua mãe fazia, lidando na cozinha. Pegou na muleta e foi lá.
- Onde está o tio Domingo? - perguntou, pois queria que ele estivesse presente para ouvir o que ela precisava contar com tanta urgência.
- Que pergunta! Está na taberna. Mas, se bem o conheço, voltara para casa à hora de jantar.
Por via de regra como toda a gente;, eles faziam a única refeição quente do dia às doze horas., mas desde a manhã não tinham comido senão um naco de pão barrado de alho, que Maria levara consigo, e ela sabia que Domingo devia estar faminto. Acendeu, pois, o fogo e tratou de preparar a sopa. Catalina não pôde esperar nem um momento mais.
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- Mãe, a Virgem Santíssima apareceu-me.
- Sim, minha querida? - volveu Maria. - Limpa e corta as cenouras para mim, por favor.
- Mas ouve, mãe! Eu vi a Virgem Santíssima, ela falou-me!
- Não sejas tola, menina. Encontrei-te dormindo quando cheguei e não te acordei. Ainda bem que tiveste um sonho bonito. Mas agora que acordaste, podes ajudar-me a preparar o jantar.
- Mas eu não sonhei, isso foi antes de eu dormir!
Referiu, então, a coisa extraordinária que lhe acontecera.
Maria Pérez fora bonita em moça mas engordara com a idade, como muitas vezes sucede às espanholas. Tinha sofrido muito: dois filhos que tivera antes de Catalina haviam morrido; aceitara isso, porém, do mesmo (modo que o abandono do marido, como uma mortificação que lhe era imposta, pois era profundamente religiosa. E, sendo ao mesmo tempo uma mulher prática que não tinha o hábito de lastimar-se inutilmente, encontrara consolação no trabalho aturado, no ofício divino e nos desvelos com a filha e com seu refractário irmão Domingo. Ouviu aterrada a história de Catalina. Era tão circunstanciada, com pormenores tão precisos, que estaria disposta a darnlhe crédito se, ao menos, não fosse incrível. A única explicação possível era que a enfermidade da pobre rapariga e a perda do namorado lhe houvessem dado volta ao juízo. Estivera a rezar dentro da igreja e depois fora sentar-se sob o sol ardente: era muitíssimo provável que qualquer coisa se tivesse desarranjado no seu cérebro e ela houvesse imaginado tudo aquilo com tamanha força que estava convencida da reailidade do acontecimento.
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- O filho de Don Juan de Valeiro que melhor tem servido a Deus é o bispo - disse Catalina ao terminar.
- Quanto a isso, não há dúvida - volveu a mãe. - Ele é um santo.
- Tio Domingo conheceu-o bem quando ambos eram jovens e pode levar-me à presença dele.
- Cala-te, menina. Deixa-me pensar.
A Igreja não via com bons olhos as pessoas que afirmavam ter-se comunicado com Jesus Cristo ou sua Mãe, e punha toda a sua autoridade em desanimar tais pretensões. Alguns anos atrás, um frade franciscano causara grande alvoroço curando enfermos por meios sobrenaturais e era tal o número de pessoas que recorriam a ele que o Santo Ofício fora obrigado a intervir. Prenderam-no e nunca mais se ouviu falar nele. Pelas conversas do convento das carmelitas, para o qual trabalhava de quando em quando, Maria Pérez tinha notícia de uma freira, que havia afirmado que Elias,, o fundador da ordem, lhe aparecera na cela e lhe conferira favores especiais. A superiora do convento mandara açoitá-la imediatamente, até ela confessar que tinha inventado a história para se dar importância. Se, portanto, frades e freiras pagavam caro tais pretensões, era mais do que provável que a Igreja olhasse com extrema severidade a história de Catalina. Maria atemorizou-se.
- Não digas nada a ninguém - aconselhou a Catalina - , nem mesmo ao tio Domingo. Falarei com ele depois do jantar e ele resolverá sobre o melhor caminho a seguir. Mas, pelo amor de Deus, limpa as cenouras, de contrário não teremos sopa hoje.
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Catalina não ficou muito satisfeita com este alvitre, mas a mãe mandou-a calar e fazer o que lhe diziam.
Pouco depois chegava Domingo. Não estava bêbedo, mas tam-pouco estava bem são, e vinha muito alegre. Gostava de ouvir o som da própria voz e, enquanto jantavam, descreveu com loquacidade a Catalina os sucessos do dia. Isso dá-nos uma boa oportunidade de expor ao leitor as razões pelas quais reinava tamanho alvoroço na cidade.


IV.

Don Juan Suárez de Valero era um cristão-velho e, ao contrário de muitas entre as mais nobres famílias espanholas, cujos filhos, antes de Fernando e Isabel terem unido os reinos de Castela e Aragão, haviam desposado herdeiros de judeus ricos e poderosos, ele podia exibir uma ascendência isenta de qualquer aliança espúria. Mas os seus antepassados eram a sua única fortuna. Possuía escassas terras a uma milha da cidade, próximo a uma povoação chamada Valero, e fora antes para se distinguir das demais famílias Suárez do que para se dar importância que ele e seus ascendentes imediatos haviam acrescentado ao seu o nome da povoação. Era muito pobre e a sua aliança com a filha de um fidalgo de Castel Rodríguez pouco contribuiu para melhorar-lhe as circunstâncias. Dona Violante deu ao seu senhor um filho anualmente, pelo espaço de dez anos, mas desses filhos somente três, todos varões, passaram
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da adolescência. Chamavam-se, respectivamente, Blasco, Manuel e Martin.
Blasco, o mais velho, desde a infância deu sinais de uma inteligência excepcional e, por sorte, também de devoção, de maneira que o destinaram para a Igreja. Na idade própria foi posto no seminário de Alcalá de Henares e a seu tempo passou à universidade. Bacharelou-se em Ciências e Letras e doutorou-se em Teologia em tão poucos anos que era evidente poder ele contar com uon futuro brilhante no clero secular. Prometiam-lhe altas distinções. Mas, de súbito, afirmando desejar viver no isolamento do mundo para poder dedicar-se inteiramente aos estudos, à prece e à meditação, ele mostrou o intuito de ingressar na ordem monástica dos dominicanos. Os seus amigos procuraram dissuadi-lo, pois a ordem era austera, com um serviço divino à meia-noite, perpétua abstinência de carne, frequentes mortificações, jejum e silêncios prolongados. Tudo foi inútil, porém, e Blasco de Valero fez-se frade. Tão manifestas eram as suas qualidades que os seus superiores não podiam desconhecê-las, e quando se descobriu que, além de uma bela presença e grande cultura, ele possuía uma voz ao mesmo tempo forte e melodiosa, assim como uma ardente eloquência, enviaram-no a pregar aqui e ali: pois o Papa Inocêncio III tinha mamdado São Domingos pregar aos hereges e desde então os dominicanos tornaram-se conhecidos como missionários e pregadores. Em certa ocasião mandaram-no à sua velha universidade de Alcalá de Henares. Gozava já de uma reputação considerável e toda a cidade correu a ouvi-lo. O sermão que pronunciou foi sensacional. Empregou todos os seus recursos para convencer a numerosa congregação da importância de conservar a fé na sua pureza e exterminar
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por completo os hereges. Em voz trovejante ordenou aos leigos, pela estima que tinham às suas almas e pelo temor aos rigores do Santo Ofício, que denunciassem tudo que lhes viesse ao conhecimento com sabor ao pecado e ao crime de heresia. Incutiu-lhes, com palavras ameaçadoras, que era dever religioso de cada um delatar o seu vizinho, o filho ao pai, a mulher ao marido, pois não havia laços naturais de afeição que pudessem absolver um filho da Igreja de conivência com um mal que era um perigo para o Estado e uma ofensa a Deus. O resultado do sermão foi satisfatório. Houve numerosas deflações e no final três cristãos-novos, contra os quais ficou provado que costumavam retirar a gordura da carne que comiam e mudar de roupa aos sábados, morreram na fogueira. Bom número de acusados foram condenados à prisão perpétua, com a comfiscação de todas as suas posses, e muitos outros açoitados ou submetidos a penas pecuniárias e outras.
A enérgica eloquência do frade produziu impressão tão funda nas autoridades universitárias que pouco depois era ele nomeado professor de Teologia. Alegou o seu pouco mérito e pediu que o dispensassem de aceitar essa posição de responsabilidade, mas os seus superiores na ordem determinaram que aceitasse e ele teve de obedecer. Desempenhou os seus deveres com crédito e as suas prelecções eram tão concorridas que, embora as fizesse no vasto salão da universidade, não havia espaço suficiente para comportar todos aqueles que desejavam ouvi-lo. A sua reputação galgou grandes alturas e ao cabo de alguns anos, com trinta e sete de idade,, fizeram-no inquisidor do Santo Ofício em Valência.
Embora continuasse sinceramente convicto da sua indignidade, aceitou o posto sem se fazer rogar. Era Valência um
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porto marítimo em que amiúde ancoravam navios estrangeiros - ingleses, holandeses ou franceses. Não raro, as suas tripulações eram protestantes e, por esse motivo, objectos muito apropriados para as actividades da Inquisição. Acresce que tentavam com frequência introduzir na Espanha livros proibidos, como bíblias traduzidas em espanhol e as obras heréticas de Erasmo. Blasco de Valeiro percebeu que podia ser muito útil ali. Além disso, havia grande número de mouros em Valência e nos arredores. Tinham sido convertidos à força, mas ninguém ignorava que a maior parte dessas conversões não iam além da superfície e eles continuavam a observar boa parte dos seus costumes mouriscos. Não comiam carne de porco, usavam em casa os trajes proibidos e negavam-se a comer animais que houvessem perecido de morte natural. Apoiada na autoridade régia, a Inquisição tinha conseguido eliminar o judaísmo, e embora os cristãos-novos pudessem ser ainda olhados com desconfiança, o Santo Ofício encontrava cada vez menos ocasiões de proceder contra eles. Mas com os mouros era diferente. Eram laboriosos e não só a agricultura do país se encontrava nas suas mãos mas também todo o comércio - pois os espanhóis eram demasiado preguiçosos, soberbos e dissipados para se dedicarem a ocupações manuais. Em consequência, os mouros tornavam-se cada vez mais ricos e, como fossem muito prolíferos, o seu número aumentava. Muita gente ponderada vaticinava o dia em que toda a riqueza do país passaria às suas mãos e o seu número excederia o da população nativa. Temia-se, como era natural, que nesse dia eles tomassem conta do poder e reduzissem à servidão os indolentes espanhóis. Tornava-se necessário livrar-se deles a qualquer custo e vários planos foram arquitectados com esse fim.
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Um desses planos era entregá-los às mãos do Santo Ofício e processá-los pelas suas notórias heresias, queimando-os em tal quantidade que os restantes se tornassem inofensivos. Outro plano, menos oneroso, consistia em deportá-los; mas o governo não desejava aumentar o poder dos mouros além do estreito de Gibraltar, acrescentando à população daquelas regiões algumas centenas de milhares de homens robustos e industriosos, de modo que alguém apresentou o engenhoso alvitre de fazê-los embarcar em velhas naus, sob pretexto de conduzi-los à África, e então pôr a pique os barcos, de modo que todos morressem afogados.
Ninguém se interessava mais por esse problema do que Frei Blasco de Valero, e talvez o mais famoso dos seus sermões durante a estada em Alcalá de Henares fosse aquele em que propunha o transporte dos mouros em massa para a Terra Nova, castrando-se previamente os machos, tanto jovens quanto velhos, de modo que em pouco acabariam todos por se extinguir. Foi esse sermão., possivelmente, que lhe valeu o alto e honroso cargo de inquisidor na importante cidade de Valência.
Frei Blasco encetou as suas novas funções com a certeza, fortificada por fervorosas preces, de que tinha diante de si a possibilidade de fazer grandes coisas em honra do Santo Ofício e pela maior glória do Senhor. Sabia que teria de fazer frente aos poderosos. Os mouros eram vassalos dos nobres, a quem pagavam tributo em dinheiro, espécie ou serviços, e aqueles tinham interesse em protegê-los. Mas o frade não levava em conta as pessoas e resolveu não permitir a ninguém,, por maior que fosse, perturbar o desempenho do seu dever. Não havia muitas semanas que estava em Valência quando o informaram de que um fidalgo poderoso, Don Hernando de Belmonte,
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duque de Terranova, impedira as autoridades do Santo Ofício de prender alguns ricos vassalos que, em desobediência à lei, usavam trajes mouriscos e tinham banheiras em casa. Mandou os seus familiares armados prender o duque, multou-o em dois mil ducados e condenou-o à reclusão perpétua num convento. Atacar, logo de início, pessoa tão altamente colocada foi um acto de audácia que infundiu terror nos mais corajosos. Ao tornar-se evidente, contudo, que o inquisidor estava decidido a exterminar os mouros, as autoridades municipais foram reunidas interceder com ele. Fizeram-lhe ver que a prosperidade da província dependia deles e que Valência iria à ruína se ele persistisse naquele intento. Mas Frei Blasco repreendeu-os asperamente e ameaçou-os com a excomunhão, forçando-os assim a submeter-se e a apresentar humildes desculpas. Mediante castigos e confiscações, logrou dentro em pouco reduzir os mouros à miséria e à desgraça. Os seus espias andavam por toda a parte e ai daquele espanhol, leigo ou eclesiástico, que desse motivo a suspeita! Como, em seus sermões, ele continuasse a incutir no povo de Valência a obrigação de denunciar todo aquele que, por gracejo ou mau humor, ignorância ou descuido, pronunciasse alguma palavra leviana, não tardou que todos os habitantes da cidade vivessem num terror perpétuo.
Mas o inquisidor era um homem justo. Tinha o cuidado de adequar a punição à falta. Por exemplo: se bem que, como teólogo, condenasse como pecado mortal as relações carnais entre pessoas não unidas pelo matrimónio, como inquisidor o facto só lhe interessava quando as pessoas envolvidas afirmassem não haver aí pecado mortal, caso em que as condenava a receber cem açoites. Por outro lado, punia apenas com 28

uma multa a asserção não menos herética de que a vida matrimonial valia tanto quanto o celibato. Era, ademais, um homem misericordioso. Não desejava a morte do herege e sim a salvação da sua alma. Certa ocasião um inglês, proprietário de um navio, foi preso e confessou pertencer à religião reformada, ante o que foi apreendida a embarcação e confiscada a carga. Submeteu-se o homem à tortura até falecerem-lhe as forças, e então permitiu-se-lhe abraçar o catolicismo. Foi com sincera satisfação que o Inquisidor pôde, assim condená-lo a apenas dez anos de galés e prisão perpétua. Podemos dar dois ou três exemplos mais do seu natural misericordioso. Após a morte de um penitente, em resultado de duzentos açoites que recebera, ele fizera questão de que o número fosse limitado a cem. Quando era necessário aplicar a tortura a uma mulher grávida o inquisidor adiava-a para depois do parto, e era antes o seu coração compassivo do que o respeito à lei que o levava a ter o maior cuidado para que a tortura não acarretasse invalidez permanente nem fractura de ossos, e se, por vezes, ocorria um acidente ou alguém morria) em resultado dos tratos, ninguém poderia lamentar mais amargamente a ocorrência.
A magistratura de Frei Blasco foi altamente bem sucedida. No decurso de dez anos celebrou trinta e sete autos-de-fé em que seiscentas pessoas se penitenciaram e mais de setenta foram queimadas vivas ou em efígie, não só prestando desse modo um serviço a Deus mas também edificando o povo. Um homem menos humilde do que ele teria considerado a última dessas solenidades como a glória suprema da sua carreira, pois ela se realizou em honra do príncipe Filipe, o herdeiro do trono. As várias cerimónias foram conduzidas com tanta propriedade e de tal modo divertiram o príncipe herdeiro que
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este fez a Frei Blasco um presente de duzentos ducados, com uma carta em que lhe dava os parabéns pelo edificante espectáculo e o exortava a continuar servindo a Deus dessa forma, para glória do Santo Ofício e proveito do Estado. Era evidente que o zelo e a piedade do inquisidor haviam produzido funda impressão nele, pois quando Filipe II morreu pouco depois e o príncipe ascendeu ao trono, nomeou-o acto contínuo bispo de Segóvia.
Ele só aceitou essa nova dignidade após uma noite inteira passada de joelhos, a contender com o Senhor, e deixou Valência entre as lamentações de grandes e pequenos. Conquistara a admiração daqueles pelo seu zelo, pela austeridade da sua vida e pela sua escrupulosa honestidade; enquanto a sua caridade fazia dele o ídolo dos pobres. Ganhava pingues emolumentos como inquisidor e a cortezia de Málaga na qual fora provido traziam-lhe benefícios consideráveis; mas ele gastava até ao último vintém em socorrer as necessidades dos pobres. A confiscação das riquezas dos hereges condenados e as multas impostas aos penitentes canailizavam elevadas quantias para os cofres do Santo Ofício e esse dinheiro servia para atender às grandes despesas da organização, mas não era raro que os inquisidores reservassem para si somas consideráveis. Até ao piedoso Torquemada acumulara desse modo uma imensa fortuna, que gastou na construção do mosteiro de S. Tomás de Aquino, em Ávila, e nos acréscimos feitos ao da Santa Cruz, em Segóvia. Mas Blasco de Valero nunca aprovou essa prática e partiu de Valência tão pobre como lá chegara.
Nunca vestiu outra coisa que não fosse o humilde hábito da sua ordem, jamais comia carne nem usava linho sobre o corpo ou nas roupas de cama,, e flagelava-se regularmente,,
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por vezes com tamanho rigor que o sangue espirrava nas paredes Tal era a sua reputação de santidade que, quando teve de adquirir um novo hábito por estar o primeiro demasiadamente gasto, muita gente pagou aos criados do bispo para lhes conseguirem fragmentos do velho hábito posto fora de uso, os quais usavam como amuletos contra a varíola e o mal venéreo. Antes da sua partida, várias pessoas influentes procuraram arrancar-lhe a promessa de lhes conceder, quando afinal aprouvesse ao Altíssimo chamá-lo a Si, o privilégio de enterrar o seu corpo na cidade em que ele levara a efeito obra tão fecunda. Estavam certos de poder exercer suficiente influência em Roma- para conseguir, senão a sua canonização, pelo menos a sua beatificação, e ter-lhe os ossos na catedral seria uma glória para a cidade. Mas o frade, adivinhando-lhes o pensamento, respondeu com severidade e não quis comprometer-se.
Foi escoltado até três milhas além das portas da cidade por uma grande comitiva de dignitários eclesiásticos, magistrados e grande número de nobres cavalheiros. Quando se despediram dele, não havia um só olho enxuto em toda aquela distinta companhia.


V.

Não é necessário estendermo-nos tanto sobre os outros filhos de Juan de Valero.
O segundo filho, Manuel, era vários anos mais novo do que Blasco e, embora não fosse tolo, não tinha nem a inteligência
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nem a operosidade do irmão. Interessava-se mais pelos desportos do campo do que pela aquisição de cultura. Fez-se um moço belo e rijo, dotado de grande força corporal e alta opinião de si mesmo. Tinha audácia, coragem e ambição. Era grande caçador e capaz de montar cavalos que outros achavam indomáveis. Desde a meninice brincava às touradas com os outros garotos do lugar, e com mais idade não perdia um ensejo de saltar para a arena, e fazer a parte do touro. Aos dezasseis anos conseguiu permissão para lutar a cavalo com um touro e, com grande admiração do público, matou o animal à primeira lançada. Havia muito que decidira abraçar a carreira das armas, pois na Espanha daquela época, a menos que se ingressasse na Igreja,, não havia outro meio de elevar-se na vida. Embora pobre, Don Juan de Valero era muito respeitado, e sucede que um dos nobres da cidade era parente afastado do grande duque de Alva. Assim um belo dia, com uma carta de recomendação na algibeira,, o jovem Manuel partiu em busca da fortuna. Encontrou o grande homem num momento favorável, pois, tendo sido desterrado da corte, achava-se ele então retido no seu castelo de Uzeda. Caiu-lhe em graça a bela aparência desse jovem que vinha solicitar o seu patrocínio quando ele havia caído em desfavor, e ao ser chamado pouco depois por Filipe II para assumir o comando do exército na guerra com Portugal, o duque levou-o na sua comitiva. Derrotou o rei Don António e expulsou-o do seu reino. Apreendeu um grande tesouro em Lisboa e deu aos seus soldados permissão de saquear a cidade e os seus arredores. Manuel portou-se com bravura na batalha e mais tarde, no saque, deitou a mão a muitos objectos de valor que prontamente converteu em dinheiro. Como, porém, Alva estivesse
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velho e não pudesse durar muito, vendo o moço ansioso por fazer progressos na carreira militar, deu-lhe cartas de apresentação para alguns dos seus antigos capitães que tinham servido com ele nos Países Baixos e se achavam então sob o comando de Alexandre Farnese.
Durante vinte anos Manuel lutou com mérito nas guerras para fazer voltar as províncias do norte ao domínio do rei de Espanha. Mostrou-se não só corajoso mas astuto e foi promovido primeiro por Alexandre Farnese e depois pelos generais que à morte deste o substituíram. Era tão inescrupuloso quanto intrépido, não menos cruel do que hábil e igualmente devoto e brutal, de forma que com o tempo veio a ser investido em comandos importantes. Não tardara a descobrir que o homem que serve o seu país nunca é recompensado pelos seus méritos, a menos que peça o que deseja. Não hesitava em fazê-lo, e como havia acumulado quantias consideráveis graças à pilhagem das cidades capturadas, à extorsão a que submetia os mercadores das localidades que administrava e à concessão de favores em troca de dinheiro, pôde finalmente consubstanciar os seus direitos de uma forma que tornava difícil deixar de reconhecê-los. Recebeu a cobiçada Ordem de Calatrava e usava com orgulho a sua fita verde. Dois anos depois foi feito conde de San Costanzo, no reino de Nápoles, com o direito de fazer o uso que lhe aprouvesse do título. Os reis de Espanha tinham o proveitoso hábito de recompensar por esse modo as pessoas merecedoras, e como estas podiam vender os títulos a plebeus ricos que desejavam enobrecer-se, a Coroa conseguia assim prover, financeiramente, sem despesa para o Tesouro, aqueles que a tinham servido bem. Mas o cavaleiro de Calatrava dera um emprego judicioso ao seu dinheiro e não necessitava
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de lançar mão desse recurso. Tinha recebido vários ferimentos, o último tão grave que só a sua vigorosa constituição lhe permitiu sobreviver. Esse ferimento dava-lhe um pretexto razoável para deixar o serviço de el-rei. Resolveu voltar para casa e unir-se pelo casamento a uma família da velha aristocracia da sua cidade natal, o que não duvidava poder fazer graças ao seu posto e à sua fortuna, e depois mudar-se para Madrid, onde empregaria a sua energia e o seu talento para a intriga em satisfazer a sua ambição desmedida. Quem sabe se, jogando bem as cartas e cultivando a amizade das pessoas que convinham,, ele não alcançaria grandes alturas? Estava com quarenta anos e era uma bela- figura de homem, com olhos pretos e ousados, bonito bigode, um ar de virilidade insolente e uma língua desembaraçada.


VI.

Quanto ao terceiro filho, Martin, necessitamos dizer ainda menos. Todas as famílias têm a sua ovelha tinhosa e a família de Juan de Valeiro não constituía excepção à regra. Martin, o mais moço dos três e o último filho que Dona Violamte dera ao marido, não possuía nem o zelo ardente graças ao qual Blasco de Valero havia alcançado a eminência na Igreja, nem a ambição e destreza que tinham trazido fama e fortuna a Don Manuel. Parecia contentar-se com o cultivo das escassas e magras terras de cujos produtos viviam seus pais. Naqueles

tempos, devido às guerras constantes e à atracção que a América exercia sobre os espíritos jovens e aventurosos, havia falta de braços na Espanha. Os mouros, inteligentes e trabalhadores, nunca tinham sido numerosos na região e por essa época a sua quase totalidade fora obrigada a abandoná-la. Martin era uma grande decepção para Don Juan, e embora a sua esposa insistisse que tinha as suas vantagens possuir um filho robusto, activo e disposto a enfrentar qualquer espécie de trabalho, ele não cessava de afligir-se.
Mas um golpe ainda maior lhe estava reservado. Aos vinte e três anos Martin casou, e fê-lo com pessoa de classe inferior. É verdade que a sua noiva era uma cristã-velha e estava convincentemente provado que pelo espaço de gerações não houvera aliança com pessoas de sangue judeu ou mouro, mas o pai era padeiro. Consuelo era filha única e herdaria todas as suas posses, mas isso não alterava o facto de ser o homem um mercador. Passaram-se alguns anos. Consuelo teve filhos. Então um novo golpe feriu Don Juan: o padeiro morreu e o velho suspirou aliviado, pois agora seria possível vender a padaria e o estigma dessa conexão com um ofício manual acabaria por se apagar. Mas nem bem o padeiro fora decentemente enterrado quando Marttin informou os pais de que pretendia mudar-se para a cidade e dirigir o estabelecimento em pessoa. Mal podiam dar crédito aos seus ouvidos. Don Juan esbravejou, Dona Violante chorou. O filho fez-lhes ver que, se tinham melhorado um pouco de vida ultimamente, era graças ao dote de Consuelo; esse dote evaporara-se; ele tinha quatro filhos e não havia razão para que não viessem outros quatro; o dinheiro andava escasso na Espanha e a venda do negócio não podia render mais que o suficiente para sustentá-lo ainda
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alguns anos, ao termo dos quais os aguardava a miséria e a fome. Levantou o ridículo argumento de que cozer pão não era mais vergonhoso do que lavrar um campo estéril ou espremer azeitonas.
Martin instalou a família por cima da padaria. Levantava-se muito antes de amanhecer para levar o pão ao forno e depois ia a cavalo à chácara, onde trabalhava até à noite. Prosperou, pois fazia bom pão, e ao cabo de um ano ou dois pôde pagar a um homem para fazer o trabalho da chácara, mas não deixava passar um dia sem ir ver os pais. Era raro que não lhes levasse alguma coisa e dentro em pouco eles puderam comer carne todos os dias permitidos pela Igreja. Estavam adiantados em anos e Don Juan não podia negar que os presentes do filho eram um conforto para a sua velhice. Se bem que houvesse causado certa surpresa na cidade o facto de ter-se o filho de Juan de Valero rebaixado daquela forma,, e os garotos lhe gritassem na rua "panadero" em tom de mofa, o seu bom génio e inconsciência de ter feito qualquer coisa fora do comum não tardaram a desarmar toda a gente. Era caridoso e nenhum pobre lhe aparecia à porta pedindo esmola sem levar um pão fresco. Era religioso, ia à missa todos os domingos e confessavam regularmente quatro vezes por ano. Ao começar a nossa narrativa era um homem forte e disposto, de trinta e quatro anos, algo corpulento, pois gostava da boa mesa e do bom vinho, com um rosto redondo e franco, uma expressão jovial e feliz.
- É óptima pessoa - diziam dele - , não muito inteligente nem muito instruído, mas bom e honesto.
Era de agradável trato, amigo de gracejar e com o correr do tempo, quando Martin passou a ter vida mais folgada,
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homens de posição respeitável vinham muitas vezes à padaria conversar com ele e o estabelecimento tornou-se mesmo uma espécie de ponto de encontro em que os amigos iam ver-se e dar dois dedos de conversa.
Era uma feliz circunstância que ele houvesse tomado a seu cargo o sustento dos pais, visto que Frei Blasco, durante os seus vinte anos de ausência, jamais lhes enviara um vintém - pois distribuía em esmolas tudo quanto tinha - enquanto Don Manuel também não mandava nada porque nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse dar melhor emprego ao seu dinheiro do que ele mesmo. Desse modo, dependiam inteiramente de Martin na velhice. Ainda se envergonhavam dele e não podiam deixar de lastimar o rumo que dera à sua vida. Era uma fonte contínua de irritação o facto de ele parecer inteiramente satisfeito com o seu estado. Tratavam-lhe a esposa plebeia com a cerimoniosa cortesia que lhes parecia exigir o respeito próprio e ganharam afeição aos netos. Mas o seu coração estava com os dois filhos que haviam trazido honra e glória ao seu antigo nome.


VII.

Não é difícil imaginar a alegria com que Don Juan e Dona Violante aguardavam o dia em que tornariam a vê-los após tão prolongada separação. O frade escrevia com raros intervalos, e como nem Don Juan nem o filho padeiro eram
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muito letrados e de qualquer modo sentiam-se incapazes de escrever com a elegância devida a um culto homem de Igreja, tinham pedido a Domingo Pérez que respondesse às cartas. E Domingo fazia-o com plena satisfação tanto dos Valeros como de si próprio, pois orgulhava-se da elegância do seu estilo. Don Manuel, por outro lado, nunca se comunicara com ele a não ser quando estava cabalando para conseguir a Ordem de Calatrava e necessitou apresentar provas da pureza da sua ascendência. Também dessa vez recorreram aos bons serviços de Domingo, que preparou uma genealogia, devidamente autenticada pelos magistrados locais, em que reportava as origens da família, sem a menor mistura de sangue judeu, a Afonso VIII, rei de Castela,, o qual desposara Eleanora, filha de Henrique II da Inglaterra.
O que motivava a vinda dos dois filhos de Don Juan não era apenas o regresso de Don Manuel após os longos anos de serviço nas guerras e a elevação de Frei Blasco à dignidade episcopal, mas também a comemoração das bodas de ouro do velho casal. Combinaram os dois irmãos encontrarem-se numa localidade situada a umas vinte milhas de Castel Rodríguez e realizar juntos a sua entrada solene na cidade. Don Juan comprazia-se em pensar que a grandiosa recepção preparada aos filhos compensaria de certo modo o longo opróbrio da degradação do pobre Martin. Estava, naturalmente, impossibilitado de receber os dois filhos e as respectivas comitivas na sua semi-arruinada granja. Ficou, pois, combinado que o bispo se hospedaria no convento dominicano, enquamto o despenseiro do duque de Castel Rodríguez, na ausência do seu amo, que estava em Madrid, oferecia aposentos a Don Manuel no palácio ducal.
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Chegou o grande dia. Os nobres da cidade puseram-se a caminho, montando os seus cavalos, enquanto os magistrados e os eclesiásticos cavalgavam mulas. Seguiam, numa carruagem que lhes emprestara uma pessoa de qualidade, Don Juan e Dona Violante acompanhados de Martin e da família deste. Pouco depois os visitantes tão ansiosamente esperados foram vistos a aproximar-se pela sinuosa e poeirenta estrada. O bispo, com o hábito dominicano, sobre o lombo de uma mula, cavalgava ao lado do irmão no seu corcel de guerra. Envergava uma maravilhosa armadura, toda marchetada de ouro. Atrás deles vinham os dois secretários do bispo, religiosos da mesma ordem, os seus criados e os do capitão, vestidos de sumptuosa libré. Após saudar os importantes personagens que os tinham vindo receber e após ouvir alguns eloquentes discursos, o bispo perguntou pelo pai e pela mãe. Estes, que se mantinham modestamente atrás dos outros, adiantaram-se então. Dona Violante ia ajoelhar-se para beijar o anel episcopal quando o bispo, com grande admiração dos espectadores, não a deixou fazer e, tomando-a nos braços, beijou-lhe ambas as faces. Ela pôs-se a chorar e muitas pessoas presentes ficaram tão tocadas com aquilo que as lágrimas lhes corriam pelas faces. Beijou ele também o pai e, enquanto os dois velhos se voltavam para o segundo filho, perguntou por Martin.
- "El panadero" - chamou alguém.
Martin avançou então por entre a multidão, com a mulher e os filhos. Todos haviam vestido as suas melhores roupas e o jovial, rubicundo e corpulento homem, tinha excelente aspecto. O bispo saudou-o afectuosamente e Don Manuel com certa condescendência, enquanto Consuelo e os pequenos ajoelhavam no chão e beijavam o anel do bispo. Este felicitou
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amavelmente o irmão pelo número e pela saudável aparência dos seus rebentos. Nas cartas que lhe escreviam, Dom Juan e Dona Violamte haviam falado do casamento do filho mais moço e participado o nascimento das crianças, mas jamais ousaram informá-lo de que Martin se fizera mercador. Observavam o encontro cheios de apreensão. Sabiam que a verdade, infalivelmente, não tardaria a vir à tona, mas estavam ansiosos por evitar qualquer ocorrência que pudesse perturbar o regozijo da ocasião. Ao cabo de muitas disputas, havia assentado quem iria à direita e quem à esquerda dos dois ilustres filhos da cidade, e embora muitos guardassem ressentimento formou-se o cortejo e a cavalgada realizou uma entrada imponente na cidade. Ao transporem as portas os sinos das igrejas puseram-se a repicar, foguetes estouraram, houve um clangor de trombetas e um rufar de tambores. As ruas estavam apinhadas de gente e foi entre vivas e palmas que eles passaram pelas ruas, a caminho da colegiada, onde se cantaria um "Te Deum".
O serviço divino foi seguido de um banquete e os anfitriões notaram que, embora fosse dia de festa da Igreja, o bispo não comia carne nem tomava vinho. Terminada a refeição ele mostrou o desejo de ficar alguns instantes a sós com as pessoas da sua família. Martin foi buscar a mãe, que se recolhera à casa do padeiro com Consuelo e as crianças. Ao voltar, encontrou o mano Blasco a sós com o pai, mas nem bem havia entrado na sala quando surgiu Don Manuel, de sobrolho franzido, os olhos negros de cólera.
- Mano - disse ele, dirigindo-se a Blasco - , tu sabes que esse Martin, filho de um nobre de antiga linhagem,, é um pasteleiro?
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Don Juan e sua esposa estremeceram, mas o bispo limitou-se a sorrir.
- Pastelleiro não, mano: padeiro.
- Quer dizer então que sabias?
- Há anos que sei. Embora os meus sagrados deveres não me permitissem dedicar a meus pais o cuidado que desejava, observava-os de longe e nunca os esquecia nas minhas orações. O prior da nossa ordem nesta cidade mamtinha-me ao par da sua situação.
- Então como consentiste que ele lançasse tamanho labéu sobre a nossa família?
- Nosso irmão Martin é um homem virtuoso e devoto. É um cidadão respeitado e caridoso para os pobres. Tem zelado pelos nossos pais na sua velhice. Não lhe posso censurar o haver tomado uma decisão que lhe era imposta pelas circunstâncias.
- Eu sou um soldado, mano, e ponho a honra acima da vida. Essa história arruinou-me os planos.
- Duvido muito.
- Como podes saber? - esbravejou Don Manuel. - Tu não conheces os meus planos.
O esboço de um sorriso clareou por um instante as feições austeras do bispo.
- Não deves ter muita experiência do mundo,, mano - respondeu ele - , se ignoras que os nossos assuntos pessoais raramente escapam à notícia dos nossos servidores. Esqueces que passámos dois dias debaixo do mesmo tecto, a caminho daqui. Chegou-me aos ouvidos que não vieste apenas cumprir um dever filial, mas também escolher uma esposa entre as famílias nobres da cidade. Apesar da profissão que nosso irmão resolveu seguir, com o título que Sua Majestade houve por bem
conceder-te e o dinheiro que ganhaste a seu serviço creio que não te será difícil alcançar o teu objectivo.
Martin ouvia tudo isso sem o menor sinal de que sentisse vergonha. O seu rosto bem-humorado tinha uma expressão de divertimento.
- Não esqueças, Manuel - disse ele - , que Domingo Pérez repontou as origens de nossa família a um rei de Castela e a um rei de Inglaterra. Isso não pode deixar de ter o seu peso junto à família a que pretendas fazer a honra de lhe desposar a filha. Domingo disse-me que um dos reis ingleses fazia bolos, de modo que talvez não haja grande ignomínia no facto de um descendente de reis fazer pão, sobretudo quando, por opinião unânime, é o melhor pão da cidade.
- Quem é esse Domingo Pérez? - perguntou o soldado, de carramca fechada.
Não era fácil responder a esta pergunta, porém Martin fez o que pôde.
- Um homem instruído e um poeta.
- Recordo-me dele - disse o bispo. - Estivemos juntos no seminário.
Don Manuel fez um gesto agastado e dirigiu-se ao pai.
- Como pôde permitir que ele nos envergonhasse assim?
- Eu não aprovei. Fiz tudo que estava no meu poder para impedi-lo.
Don Manuel voltou-se então severamente para o irmão mais novo.
- E tu ousaste contrariar o desejo de teu pai? Devia representar para ti uma ordem. Dá-me uma razão, uma só, pela qual, mandando a decência à fava, te rebaixaste fazendo-te padeiro.
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- A fome.
A palavra pareceu desabar no chão como um monte de alvenaria. Don Manuel sufocou uma exclamação de nojo e raiva. Mais uma vez, um leve sorriso tremeu nos lábios do bispo. Os próprios santos conservam certa dose de humanidade, e durante os dois dias que tinham passado jumtos Don Blasco chegara à conclusão de que não simpatizava muito com seu mano militar. Censurava-se tal coisa, mas nem toda a sua caridade cristã conseguia vencer a impressão de que Don Manuel era um indivíduo grosseiro, brutal e despótico.
Por felicidade, essa reunião de família foi interrompida pela entrada de algumas pessoas, as quais vinham avisar que estava na hora das touradas. Os dois irmãos receberam lugares de honra. A municipalidade dera-se a despesas para conseguir bons touros e o espectáculo esteve à altura da ocasião. Depois de terminado, o bispo retirou-se para o convento dominicano com os frades que o acompanhavam e Don Manuel dirigiu-se para os aposentos que lhe tinham sido reservados. O povo da cidade voltou para as suas casas ou para as tabernas, a fim de trocar impressões sobre as emocionantes ocorrências do dia, e Domingo Pérez acabou por encontrar o caminho da casa da irmã.


VIII.

Após a ceia, como de hábito, Domingo subiu para o seu quarto. Pouco depois Maria foi ter com ele. Tinha ouvido, lá em baixo, ler em voz sonora e dramática, e quando bateu
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à porta ele não respondeu. Entrou. Era um quarto pequeno e desguarnecido, que não continha mais do que um leito, um baú para a roupa, uma mesa e uma cadeira. Havia uma prateleira cheia de livros e livros espalhados na mesa, no soalho e sobre a arca. A cama estava desarrumada e Domingo atirara para ali a sua batina. Estava de calções e em mangas de camisa. Inúmeros papéis juncavam a mesa e a um canto do quarto via-se grande pilha de manuscritos. Maria suspirou ao ver aquela desordem a que jamais conseguira pôr termo. Sem tomar conhecimento da presença da irmã, ele continuou a declamar as falas de uma peça teatral.
- Quero falar contigo, Domingo - disse ela.
- Não me interrompas,, mulher. Escuta os versos gloriosos do maior génio dos -nossos tempos.
E continuou a vozear. Maria bateu com o pé.
- Larga esse livro, Domingo. Tenho uma coisa muito importante para te dizer.
- Vai-te daqui. Que coisa pode ser mais importante do que a divina inspiração dessa fénix da época, do incomparável Lope de Vega?
- Não sairei enquanto não me ouvires. Domingo atirou o livro, agastado.
- Então dize o que tens para dizer. Dize depressa e vai-te. Ela contou-lhe a história de Catalina: como a Virgem lhe
aparecera e lhe dissera que o bispo, filho de Dom Juan, tinha o poder de curá-la da sua enfermidade.
- Isso foi um sonho, minha pobre Maria - disse ele quando a irmã terminou.
- Foi o que eu lhe disse. Mas afirma que estava bem acordada. Não posso convencê-la do contrário.
Domingo ficou impressionado.
- Vou descer contigo. Quero ouvir essa história dos seus próprios lábios.
Pela segunda vez, Catalina narrou o incidente. A Domingo bastou um olhar para se convencer de que ela acreditava firmemente em cada palavra que dizia.
- Por que motivo estás tão segura de que não dormias, menina?
- Como podia eu pegar no sono àquela hora do dia? Tinha acabado de sair da igreja. Chorei, e quando cheguei a casa o meu lenço estava molhado de lágrimas: como podia enxugar os olhos enquanto dormia? Ouvi tanger os sinos quando o bispo e Don Manuel entraram na cidade. Ouvi as trombetas, os tambores e os gritos do povo.
- Não faltam ardis a Satanás para enganar os desprevenidos. A própria Madre Teresa de Jesus, a freira que fundou tantos conventos, receou por muito tempo que as suas visões fossem obras do demónio.
- Será possível a um demónio simular a doçura e a bondade de Nossa Senhora quando me falou?
- O diabo é bom actor - sorriu Domingo. - Quando Lope de Rueda se impacientava com os componentes da sua "troupe", dizia que, se o diabo quisesse trabalhar para ele, dar-lhe-ia de bom grado, em paga, todas as almas da companhia. Mas ouve, querida: nós sabemos que certas pessoas devotas receberam a graça de ver com seus próprios olhos Nosso Senhor e a Santíssima Virgem, mas receberam essa graça em recompensa de orações, jejuns, mortificações e de uma vida dedicada ao serviço do Senhor. Que fizeste tu para merecer
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um favor que só é concedido a outros ao cabo de longos anos de imolação de si mesmos?
- Nada - respondeu Catalina. - Mas sou pobre e desgraçada, implorei a Nossa Senhora que me socorresse e ela teve piedade de mim.
Domingo guardou silêncio por alguns momentos. Catalina era resoluta e voluntariosa, e ele tinha medo. A moça não fazia ideia dos perigos que corria.
- A Santa Madre Igreja não olha com indulgência as pessoas que afirmam ter comunicação com o Céu. O país está infestado de gente que pretende ter sido contemplada com privilégios sobrenaturais. Alguns são pobres criaturas iludidas que acreditam no que dizem; muitos são impostores que inventam tais coisas a fim de conquistar notoriedade ou ganhar dinheiro. O Santo Ofício persegue-os com razão, pois eles perturbam os ignorantes e muitas vezes levam-nos à heresia. A uns o Santo Ofício põe na prisão, a outros açoita, a uns manda para as galés, a outros para a fogueira, imploro-te, pelo amor que nos tens, que não divulgues nem uma só palavra do que nos contaste.
- Mas tio, querido tio, é toda a minha felicidade que está em jogo! Todos sabem que não há no reino homem mais santo do que o bispo. É coisa sabida que até os pedaços do seu hábito têm uma virtude milagrosa. Como poderei ficar calada, quando a Santíssima Mãe de Deus me disse pessoalmente que ele me pode curar deste mal que me roubou o amor do meu Diego?
- Não é só a ti que isso interessa. Se o Santo Ofício resolver fazer um inquérito, é bem possível que o meu processo seja reaberto, pois o Santo Ofício tem a memória comprida, e se nos puserem nos cárceres da Inquisição esta casa será vendida
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para pagar as despesas do nosso sustento e tua mãe ver-se-á lançada às ruas, onde terá de mendigar o seu pão. Promete-me ao menos que não dirás nada até que tenhamos tempo de reflectir.
Domingo tinha um ar de tamanha consternação, de tão profunda ansiedade, que Catalina cedeu.
- Sim, isso eu prometo.
- És uma excelente menina. Agora deixa que tua mãe te ponha na cama, pois todos nós estamos cansados de um dia tão cheio de acontecimentos.
Beijou-a e deixou as duas mulheres, a sós, mas chamou a irmã do alto da escada. Ela veio atendê-lo.
- Dá-lhe um purgante - murmurou Domingo. - Com os intestinos a funcionar bem ela mostrar-se-á mais razoável, e amanhã poderemos convencê-la de que tudo isso não passou de um sonho muito infeliz.


IX.

Mas o purgante não produziu efeito - pelo menos o efeito desejado. Catalina continuou a asseverar que tinha visto a Virgem Santíssima com os seus próprios olhos e falado com ela. Descrevia-lhe as vestes com tamanha precisão que Maria Pérez encheu-se de assombro. Ora, sucedeu que o dia seguinte era sexta-feira e Maria foi confessar-se. Havia muitos anos que tinha o mesmo confessor, o padre Vergara, e confiava tanto
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na benevolência como na prudência deste. Portanto, depois de receber a absolvição ela contou-lhe a estranha história de Catalina e repetiu-lhe grande parte do que Domingo havia dito. - Seu irmão portou-se com uma discrição e um bom-senso admiráveis, sobretudo porque tais qualidades não seriam de esperar nele. Este assunto deve ser tratado com cautela. Não devemos fazer nada às pressas. É preciso evitar o escândalo e a senhora deve ordenar à sua filha que não fale nisso a ninguém. Vou reflectir e, se necessário, consultarei o meu superior.
O confessor de Maria também o era de Catalina e conhecia a ambas tão bem como só um confessor pode conhecer as suas penitentes. Sabia-as simples, honestas, sem malícia e tementes a Deus. O próprio Domingo não lhes pudera corromper a inocência ou empanar-lhes a candura. Catalina era uma menina sensata, dona de uma cabeça sólida, e se não suportava com resignação a sua invalidez não se podia negar que a suportasse com coragem. Era ingénua de mais para ter inventado aquela história com segundas intenções. Além disso, estava convencido de que a natureza excessivamente material da jovem não era capaz de imaginar um acontecimento espiritual. O padre Vergara era dominicano e fora no seu convento que o bispo se hospedara com a sua comitiva. Homem simples e de medíocre cultura, a história da aventura de Catalina contada pela mãe desta perturbou-o de tal forma que se sentiu na obrigação de referi-la ao seu prior. Este reflectiu e chegou à conclusão de que era preciso informar o bispo; mandou, pois, um noviço perguntar-lhe se podia ouvi-los, a ele e ao padre Vergara, a respeito de um assunto que talvez fosse de importância.
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Daí a pouco o noviço voltou dizendo que o bispo teria prazer em recebê-los.
Tinham-lhe dado a cela mais espaçosa do convento. Uma dupla arcádia com um pilar de suporte separava-a em duas partes, uma das quais servia de alcova e a outra de oratório. Ao entrarem o prior e o padre Vergara, encontraram o bispo a ditar cartas a um dos seus secretários. O prior explicou a que tinham vindo e deixou que o padre Vergara repetisse ponto por ponto o que lhe dissera a sua penitente. O frade começou por expor ao bispo o quanto as duas mulheres eram honestas e devotas, a existência irrepreensível que levavam, depois descreveu o fatal acidente em consequência do qual a infeliz Catalina havia perdido o uso da perna e as atenções do seu namorado, e terminou repetindo a história da aparição da Santíssima Virgem, a qual dissera à menina que o bispo a curaria da sua enfermidade. Pensando bem, resolveu acrescentar que Domingo Pérez, o tio da menina lhe arrancara a promessa de conservar sigilo sobre o episódio enquanto o assunto não fosse devidamente examinado. Quando ele terminou, o rosto do bispo assumira uma expressão de tal severidade que o frade, com a voz estrangulada, suava por todos os poros. Fez-se um silêncio.
- Eu conheço esse Domingo - disse o bispo afinal. - É um homem de má vida, com quem nenhuma pessoa que preze a salvação da sua alma deveria manter relações. Mas não é tolo. Ao exigir da sobrinha a promessa de segredo, agiu com prudência. É também o confessor da menina, padre? - O outro fez uma reverência. - Fará bem em recusar-lhe a absolvição enquanto ela não prometer que não falará nisso a ninguém.
O padre frade arregalou os olhos para o bispo, cheio de
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confusão. Não era ele, pelo consenso geral, um santo? O padre Vergara julgava que ele receberia de braços abertos essa oportunidade de exercer os seus poderes milagrosos, com o que não só glorificaria o Senhor mas conduziria muitos pecadores ao arrependimento. O olhar do bispo era frio. Dir-se-ia que só por um esforço de vontade ele conseguia dominar a sua cólera.
- E agora, se me dão licença, vou prosseguir o meu trabalho - disse ele; e, voltando-se para o secretário: - Leia de novo a última frase que ditei.
Os dois frades retiraram-se timidamente, sem dizer mais uma só palavra.
- Por que estará ele tão vexado? - perguntou o padre Vergara.
- Não devíamos ter-lhe falado nisso. A culpa é minha. Ofendemos a sua humildade. Ele não sabe que grande santo é e não se julga digno de fazer um milagre.
A explicação parecia muito razoável e, como redundava em maior crédito para o bispo, o padre Vergara apressou-se a contar tudo aos seus confrades. Dentro em pouco o convento zumbia de excitação. Alguns louvavam a modéstia do bispo, outros lamentavam que ele não tivesse aproveitado essa ocasião de fazer alguma coisa que tanto exaltaria o seu renome e a boa fama da ordem.
Entrementes, a história havia alcançado outros ouvidos. A igreja em que Catalina estivera a rezar e de onde, a dar-lhe crédito, a Santíssima Virgem tinha saído pertencia, como dissemos, ao convento carmelita da Encarnação. Era o convento ricamente dotado e havia muitos anos que a prioresa tinha o hábito de dar trabalho a Maria Pérez, em parte por caridade
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e em parte por ser ela habilíssima no difícil e trabalhoso ofício que exercia. Maria viera, desse modo,, a fazer amizade com muitas dentre as religiosas. Como se tratasse de um convento de ordem mitigada, gozavam elas de bastante liberdade e não era raro que uma das freiras lhe viesse à casa almoçar e conversar. Dois ou três dias após a confissão de Maria, necessitou esta de ir ao convento e, após cumprir a sua obrigação, pôs-se a tagarelar com a freira que era sua amiga mais íntima. Exigindo-lhe juramento de segredo, contou-lhe o estranho facto que ocorrera à sua filha. As religiosas eram muito palradeiras e semelhante história não podia deixar de ser um grande acontecimento na rotina piedosa mas monótona das suas existências, de modo que ao cabo de vinte e quatro horas todas as moradoras do convento estavam informadas e o caso acabou por chegar aos ouvidos da prioresa. Como esta senhora desempenha um papel de certa importância na nossa narrativa, torna-se necessário contar aqui a sua história, ainda que com risco de aborrecer o leitor.


X.

Beatriz Henríquez y Bragamza, na vida religiosa Beatriz de San Domingo, era filha única do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Tinha grande fortuna e era poderosíssimo. Logrou conservar a confiança do sombrio e desconfiado Filipe II e exerceu com distinção importantes cargos na Espanha e na Itália. Possuía vastas
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propriedades em ambos os países e, embora os seus deveres o forçassem a morar ora aqui ora ali, não havia para ele nada melhor do que viver com a esposa e os filhos - pois tinha três-, dois homens e uma mulher - na cidade em que nascera, com os seus ares saudáveis e as suas grandiosas vistas. Era ali que se originara a sua raça e fora graças à repulsa, por um dos seus antepassados, das tropas mouras que assediavam a cidade, que a família começara por adquirir eminência. Não existia ali ninguém maior do que o duque de Castel Rodríguez, o qual vivia numa propriedade quase régia. Como durante toda a história da família os seus membros houvessem contraído grandes alianças, ela achava-se relacionada com os mais magníficos nobres de Espanha. Ao fazer treze anos sua filha, Beatriz, ele procurou um esposo que lhe conviesse, e após passar em revista vários candidatos possíveis decidiu-se pelo filho único do duque de Anteguera, O qual descendia por vias espúrias de Fernando de Aragão. O duque de Castel Rodríguez prontificava-se a dar à filha um dote magnífico, e assim o assunto foi resolvido sem dificuldade. Realizaram-se os esponsais dos dois jovens, mas como o rapaz não tinha mais de quinze anos combinou-se que só se faria o casamento quando ele alcançasse uma idade apropriada. Beatriz teve permissão de ver o futuro marido em presença dos pais deste e dos seus, dos tios e tias e outros parentes mais distantes. Era um rapazinho atarracado, de estatura não maior que a dela, áspera gaforinha preta, nariz arrebitado e boca mal-humorada. Concebeu uma imediata antipatia por ele, mas sabia que era inútil protestar e contentou-se em lhe fazer caretas. Ele respondeu mostrando-lhe a língua.
Depois dos esponsais o duque mandou-a terminar a sua
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educação no convento carmelita da Encarnação, em Ávila, onde sua irmã era prioresa. Ela achou divertida a vida do convento. Havia ali outras meninas, filhas de famílias nobres, em situação idêntica à sua, e várias senhoras que por uma razão ou por outra viviam como pensionistas no convento sem estar sujeitas à disciplina deste. A regra suavizada das carmelitas era bastante suportável e, embora algumas das freiras se dedicassem à prece e à contemplação, muitas delas, sem negligenciar os seus deveres, saíam e iam visitar as pessoas amigas, ausentando-se por vezes durante semanas inteiras. A sala de visitas estava sempre cheia de pessoas de ambos os sexos, de modo que se fazia ali uma alegre vida social. Armavam-se casamentos, discutia-se o andamento das guerras e permutavam-se os mexericos da cidade. Era uma existência pacífica e inofensiva, com diversões modestas, e para as freiras não representava um caminho muito árduo para a eterna bem-aventurança.
Na idade de dezasseis anos foi Beatriz tirada do convento e desceu com a mãe para Castel Rodríguez, acompanhada de um batalhão de criados. A duquesa não estava bem de saúde e os médicos tinham-lhe recomendado que fosse viver num clima menos rigoroso que o de Madrid. Preso pelos assuntos de estado, o duque ficou a contragosto na capital. Aproximava-se a época em que deveria realizar-se o casamento de Beatriz e seus pais achavam conveniente que ela aprendesse alguma coisa sobre o modo de dirigir um grande solar. A duquesa passou, pois, alguns meses ensinando à filha as normas sociais que ela não podia ter aprendido no convento das carmelitas. Beatriz fizera-se uma jovem alta, de grande beleza, com uma pele clara e sem marcas de bexigas, feições de uma regularidade clássica,
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talhe esguio e flexível. Os espanhóis daquela época apreciavam formas mais opulentas e algumas das senhoras que vinham prestar os seus respeitos à duquesa lamentavam-lhe a magreza, mas a desvanecida mãe respondia que o casamento não tardaria a remediar esse defeito.
Nesse tempo Beatriz era alegre,, apaixonada pela dança e estuante de vitalidade animal. Era travessa e voluntariosa. Já então possuía um génio autoritário, pois haviam-na estragado com mimos, e sempre teve o hábito de impor a sua vontade aos que a cercavam. Desde pequena compreendera que estava destinada pelo nascimento às altas posições de mando e que o resto da humanidade devia submeter-se aos seus caprichos. O seu confessor, bastante preocupado com esse desejo de domínio, falou nisso à duquesa:, mas esta não se mostrou muito impressionada com a advertência.
- Minha filha nasceu para mandar, padre. Não se pode esperar dela o servilismo de uma lavadeira. Se o seu temperamento é excessivamente orgulhoso, o marido, caso tenha carácter, o modificará sem dúvida .alguma, e caso não o tenha o sentimento do que lhe é devido, que não falta a Beatriz, será benéfico para ele também.
No convento, Beatriz tomara-se de entusiasmo pelos romances de cavalaria a que algumas das senhoras pensionistas eram muito afeiçoadas. Embora a freira encarregada de zelar pelas alunas não lhe permitisse lê-los, de quando em quando ela conseguia lançar um olhar furtivo a essas histórias intermináveis. Quando veio para Castel Rodríguez encontrou vários no palácio e, como a mãe estivesse muitas vezes indisposta e a "duena" fosse indulgente, devorou-os com avidez. A sua imaginação juvenil inflamou-se e começou a pensar com fastio no
inevitável casamento com o rapaz que ela ainda via como um garoto achaparrado, mal enjambrado e birrento. Tinha consciência da sua beleza e na missa, na companhia da mãe, não perdia nenhum dos olhares de admiração que lhe deitavam os jovens casquilhos da cidade. Reuniam-se na escadaria da igreja para vê-la sair e, embora Beatriz andasse com os olhos modestamente baixos, ao lado da duquesa, seguida pelos dois lacaios de libré que carregavam as almofadas de veludo sobre as quais se haviam ajoelhado durante o serviço divino, percebia a sensação que causava e o seu ouvido apanhava os elogios que os rapazes, segundo o costume espanhol, diziam à sua passagem. Conquanto nunca olhasse para eles, conhecia-os a todos de vista e não tardou a descobrir-lhes os nomes, a que famílias pertenciam e, na verdade,, tudo que era possível saber a respeito deles. Uma ou duas ocasiões os mais ousados cantaram-lhe serenatas, mas a duquesa mandava imediatamente os criados enxotá-los. Certa feita encontrou uma carta em cima do seu travesseiro. Adivinhou que uma das criadas fora paga para a pôr ali. Abriu o sobrescrito e leu-a duas vezes, depois rasgou-a em pedacinhos e queimou-os à chama das velas. Foi a primeira e a única carta de amor que recebeu na sua vida. Não trazia assinatura e ela não podia adivinhar de quem provinha.
Devido ao mau estado da sua saúde a duquesa achava suficiente assistir à missa nos domingos e dias de festa, mas Beatriz ia todas as manhãs com a "duena". A missa realizava-se muito cedo e eram poucas as pessoas que se encontravam na igreja, mas havia um seminarista que nunca faltava. Era alto e magro, de feições resolutas, olhos escuros e apaixonados.
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Por vezes, quando andava com a "duena" no desempenho de alguma piedosa missão, ela passava pelo moço na rua.
- Quem é esse? - perguntou Beatriz um dia em que o viu caminhar lentamente na sua direcção, a ler um livro.
- Esse? Ora, ninguém. É o filho mais velho de Juan Suárez de Valero. "Hidalguía de gutierra".
Esta expressão, que pode ser traduzida por "nobreza de sarjeta", era o termo desdenhoso aplicado aos fidalgos de nascimento que não tinham meios para viver de acordo com a sua posição. A "duena", uma viúva vagamente aparentada ao duque, era orgulhosa, devota;, criticadora e sem vintém. Residira toda a vida em Castel Rodríguez, até que, ao deixar Beatriz o convento, o duque a tinha escolhido para dama de companhia da filha. Conhecia todos os habitantes da cidade como as palmas das suas mãos, e apesar de muito piedosa não resistia à tendência de falar mal do próximo.
- Que faz ele aqui nesta época do ano? - indagou Beatriz. A "duena" sacudiu os ombros magros. - Adoeceu no seminário por excesso de trabalho e os médicos desesperaram de salvá-lo. Mandaram-no para casa, a ver se recobrava a saúde, e por mercê divina foi o que sucedeu. Dizem-no muito talentoso. Segundo creio, seus pais esperam que ele obtenha um benefício graças à influência do duque seu pai.
Beatriz nada mais disse.
Mas, por alguma razão que os médicos não podiam descobrir, começou a perder o apetite e a animação. Também perdeu a cor fresca das faces e tornou-se pálida. Andava apática e muitas vezes iam encontrá-la banhada em lágrimas. Ela, cuja alegria, cujo carácter encantadoramente caprichoso e irresponsável
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tinham dado vida àquele palácio sombrio e magnificente, andava agora entregue à tristeza e ao desalento. A duquesa não sabia o que fazer e, temendo que a menina fosse de mal a pior, escreveu ao marido pedindo que viesse vê-las, a fim de resolverem sobre o melhor caminho a seguir. Ele veio e ficou estupefacto com a mudança que se operara na filha. Beatriz estava mais (magra do que nunca e tinha manchas negras debaixo dos olhos. Chegaram à conclusão de que o melhor alvitre era casá-la sem demora, mas ao fazerem essa proposta a Beatriz ela teve um acesso de nervos, pondo-se aos gritos, o que os deixou ainda mais alarmados. Desistiram de voltar por ora ao assunto. Deram-lhe mesinhas, alimentaram-na a leite de mula e sangue de boi, mas, se bem que Beatriz engolisse obedientemente tudo quanto lhe davam,, nada produziu efeito. Continuava pálida e desalentada. Fizeram o possível para distraí-la. Pagaram a músicos que tocavam para ela; levaram-na a assistir a uma peça religiosa na colegiada, levaram-na às touradas - apesar de tudo, ela continuava a definhar. A "duena" tomara grande afeição à sua pupila e, como Beatriz já não se interessasse pelos romances que tinham constituído o seu maior entretenimento, ela não encontrava outro modo de divertir a doente senão contando-lhe os mexericos da cidade. Beatriz ouvia polidamente, mas sem interesse. Certa ocasião ela mencionou de passagem que o filho mais velho de Juan Suárez de Valero tinha ingressado na ordem dos dominicanos. Continuou a tagarelar sobre uma pessoa e outra, quando de súbito notou que Beatriz perdera os sentidos. Gritou por socorro e Beatriz foi posta na cama.
Um ou dois dias depois, estando já melhor, pediu permissão para ir confessar-se. Havia várias semanas que recusava
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fazê-lo, dizendo não se sentir muito bem, e o confessor da duquesa, que também o era de Beatriz, concordou em que era preferível não insistir. Dessa vez tanto o pai como a mãe tentaram dissuadi-la, mas a jovem instou e chorou tão amargamente que afinal cederam. Mandaram sair a grande carruagem, usada apenas nas ocasiões solenes, e ela dirigiu-se para a igreja dominicana acompanhada pela "duena". Ao voltar parecia-se mais com a antiga Beatriz. Tinha uma leve cor nas faces pálidas e nos seus bonitos olhos brilhava uma nova luz. Ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe permissão para fazer-se freira. Foi para ele um grande choque, não só porque não queria perder a filha única mas também porque não lhe agradava desistir da importante aliança que havia projectado. Era, no entanto, um homem bondoso e devoto, e respondeu sem aspereza que decisões como aquela não deviam ser tomadas levianamente e, de qualquer modo, o assunto estava fora de cogitação enquanto o estado da sua saúde fosse tão precário. Ela disse-lhe que tinha conversado a respeito com o seu confessor e este dera plena aprovação à ideia.
- Sem dúvida, o padre Garcia é muito digno e muito piedoso - disse o duque,, franzindo de leve o sobrolho - , mas a sua profissão impede-o, talvez, de compreender quanto são grandes as responsabilidades ligadas à nobreza e às altas posições. Falarei amanhã com ele.
Assim, no dia seguinte o frade foi chamado ao palácio ducal e levado à presença do duque e da duquesa. Sabiam estes, naturalmente, que ele não revelaria nada do que Beatriz lhe dissera no confessionário, e não tentaram averiguar se ela lhe dera a conhecer algum motivo capaz de justificar uma resolução que tanto os contrariava, Disseram-lhe, contudo, que
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embora ela observasse os preceitos da Igreja, era de natural alegre, amiga de toda a sorte de diversões, e nunca mostrara qualquer inclinação para a vida religiosa. Falaram-lhe do grande casamento que tinham arranjado para ela e dos transtornos que adviriam da sua ruptura, assim como dos ressentimentos que isso iria causar; e, finalmente, com todo o respeito devido ao seu hábito, insinuaram que não fora prudente da sua parte aprovar um desejo evidentemente nascido da misteriosa doença de Beatriz. Esta era jovem e tinha uma constituição saudável. Não havia razão para supor que continuasse com as mesmas ideias quando recobrasse a saúde. O dominicano mostrou uma singular obstinação. Achava o desejo de Beatriz muito forte para que se lhe pudessem opor e a vocação da jovem parecia-lhe autêntica. Foi ao ponto de dizer a esses grandes personagens que não tinham direito a impedir sua filha de tomar uma resolução que lhe traria a paz neste mundo e a bem-aventurança no outro. Foi essa a primeira de uma série de discussões. Beatriz permaneceu firme na sua decisão e o confessor apoiou-lhe o desejo com todos os argumentos persuasivos de que pôde lançar mão. Por fim o duque prometeu dar a sua anuência se, ao cabo de três meses, ela ainda desejasse entrar para o convento.
A partir de então Beatriz começou a melhorar. Volveram-se os três meses e ela entrou como noviça na comunidade das carmelitas de Ávila. Toda. de veludo e cetim, ataviada com as suas jóias, foi acompanhada ao convento pela família e numerosos cavalheiros,, dos mais nobres da cidade. À porta disse adeus a todos, alegremente, e foi recebida pela porteira. Mas o duque também fizera os seus planos para enfrentar a situação. Em sua própria honra e para maior glória do
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Senhor, resolveu fundar em Castel Rodríguez um convento para onde sua filha pudesse recolher-se logo que terminasse o noviciado e do qual no devido tempo se tornasse superiora. Possuía imóveis na cidade e escolheu junto aos muros um local apropriado para tal fim. Construiu ali uma linda igreja,, um claustro, pavilhões adequados à vida de sociedade, e mandou plantar um jardim. Contratou o melhor arquitecto que se podia encontrar, os melhores escultores, os melhores pintores, e quando tudo ficou pronto Beatriz, conhecida agora como Dona Beatriz de San Domingo, veio instalar-se no palácio com várias freiras de Ávila, escolhidas pela sua virtude, inteligência e importância social. O duque havia determinado que nenhuma freira fosse aceite a menos que pertencesse a família nobre. Escolheu-se uma superiora, ficando entendido que esta se retiraria logo que Beatriz de San Domingo alcançasse a idade necessária para substituí-la. A instâncias do duque, a "duena" entrara num convento de Castel Rodríguez ao mesmo tempo que Beatriz ia para Ávila e estava em condições de reunir-se à sua antiga pupila. O padre Garcia rezou missa, o Santíssimo Sacramento foi entronizado e as freiras instalaram-se na nova instituição.
Na época de que trata a nossa narrativa, havia já alguns anos que Beatriz de San Domingo era prioresa do convento. Conquistara o respeito dos cidadãos de Castel Rodríguez e a admiração, senão o afecto, das suas freiras. Jamais esquecia a sua alta posição, mas também tinha sempre em mente a origem nobre de suas filhas espirituais. No refeitório sentavam-se na devida ordem de precedência, mas quando surgiam disputas a esse respeito, como sucedia algumas vezes, Dona Beatriz procedia com firmeza. Impunha uma disciplina rigorosa e, por
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mais bem nascida que fosse uma freira, não hesitava em mandá-la açoitar quando as suas ordens eram desobedecidas. O convento estava submetido à regra mitigada do Papa Eugénio IV e, contanto que as freiras desempenhassem os seus deveres religiosos, ela não via razão para destituí-las dos privilégios que lhes foram concedidos. Tinham permissão de visitar as pessoas amigas na cidade e, em havendo motivo justificado, até podiam passar longas temporadas com os parentes em outras localidades. Vinham muitas visitas ao convento, tanto leigos como clérigos; várias senhoras, como em Ávila, viviam ali por gosto; havia, desse modo, abundante e agradável intercâmbio social. O silêncio era obrigatório das completas às primas. Irmãs leigas faziam o trabalho do convento, a fim de dar mais tempo às freiras para as devoções e ocupações mais nobres. Mas, apesar de toda essa liberdade e dessas tentações mundanas, jamais um sopro de escândalo empanara o bom nome das virtuosas mulheres. Tal fama desfrutava a comunidade que a superiora não podia atender a todas as candidatas, de forma que tinha ensejo de mostrar-se muito exigente no exame destas.
Levava uma vida atarefada. Além dos seus deveres religiosos, tinha de fiscalizar a economia do convento, vigiar o comportamento das freiras e zelar pela saúde destas, tanto física como espiritual. A instituição fora ricamente dotada de terras, bem como de casas na cidade, e a prioresa tinha de tratar com os feitores que cobravam os aluguéis e com os camponeses que cultivavam as terras. Visitava-os amiúde para ver se tudo corria bem e se as plantações se achavam em bom estado. Como a regra lhe permitia ter propriedades privadas, o duque passara-lhe em vida algumas casas e um belo solar, e por morte
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dele Beatriz herdara muito mais ainda. Administrava tudo tão bem que podia todos os anos distribuir uma soma considerável em esmolas. O restante, gastava-o em aformosear a igreja, o refeitório e a sala de visitas e em construir oratórios no jardim, aos quais as freiras podiam recolher-se para se entregar às suas meditações. A igreja tinha magnífico aspecto. Os vasos sagrados eram de ouro puro e a custódia, cravejada de pedras preciosas. Os retábulos que decoravam os diversos altares tinham ricas molduras de madeira dourada e primorosamente lavrada, e as imagens do Salvador e da Virgem Santíssima vestiam grandes mantos de veludo ricamente bordados de ouro (por Maria Pérez) e as suas coroas chamejavam de pedrarias, preciosas e semipreciosas.
Para celebrar o vigésimo aniversário da sua consagração, Dona Beatriz construíra uma capela, dedicando-a a São Domingos, por quem tinha devoção especial, e ao ouvir dizer a uma das irmãs, natural de Toledo, que existia lá um pintor grego cujos quadros exaltavam extraordinariamente a devoção do fiel, escreveu a seu irmão o actual duque, encomendando um retábulo. Como era uma mulher prática, deu as dimensões exactas. Mas o irmão respondeu que el-rei encomendara a esse mesmo grego um painel de São Maurício e da Legião Tebana para a sua nova igreja do Escurial, mas ao receber a pintura ficara tão descontente com ela que não a deixara instalar. Em tais condições, o duque achava que seria indiscrição da parte dela dar trabalho a esse pintor. Mandava-lhe, por isso, de presente um quadro de Lodovico Cardacci, artista famoso na Itália, quadro que, por coincidência, tinha exactamente as dimensões pedidas.
Ao construir o convento, o falecido duque, seu pai,
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destinara para ela um apartamento que ocuparia quando fosse superiora e que não era menos elegante do que adequado ao seu cargo e posição. Havia num dos andares uma cela a que ninguém era admitido, salvo a irmã encarregada de proceder à sua limpeza e mantê-la em ordem!, e dali uma pequena escada conduzia a um oratório situado no andar de cima. Era nessa cela que ela fazia as suas devoções pessoais, atendia os assuntos do convento e recebia visitas. Era um aposento severo, mas majestoso. Acima do altarzinho diante do qual fazia as suas orações achava-se um grande crucifixo com a figura de Cristo esculpido em madeira, quase em tamanho natural e pintada com muito realismo, enquanto que a sua mesa de trabalho era encimada por um quadro de certo pintor catalão, o qual representava a Virgem cercada de glória. Nessa época, estava Dona Beatriz entre os quarenta e os cinquenta, mulher alta e magra, de olhos grandes e sombrios, quase sem rugas no rosto. A idade afinara-lhe as feições e adelgaçara-lhe os lábios, de modo que tinha a beleza calma e severa dessas esposas de cavaleiros que se vêem nos túmulos góticos. Mantinha-se sempre muito erecta. Havia no seu porte algo de imperioso que dava a entender que ela não considerava a ninguém seu superior e a muito poucos como seus iguais. Tinha uma veia de humorismo austero e mesmo sarcástico, e embora sorrisse muitas vezes, era com uma espécie de grave indulgência. Quando ria, o que era raro, dava a impressão de sofrer.
Tal era, pois, a mulher a cujos ouvidos chegou o rumor de que a Santíssima Virgem tinha aparecido a Catalina Pérez na escadaria da igreja das carmelitas.

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XI.

Dona Beatriz era não somente uma óptima organizadora, como boa cabeça para os negócios, mas também uma mulher de grande inteligência e sensatez. Sempre desfavorecera as visões, êxtases e graças especiais entre as suas freiras. Não lhes permitia dar-se a uma austeridade excessiva nem a mortificações além das prescritas pela Regra. Nada lhe passava despercebido, e quando uma delas mostrava sinais de uma religiosidade que a superiora achasse exagerada,, administrava-lhe logo um purgante, proibiam-na de jejuar e, se isso não bastasse, era mandada passar algumas semanas agradáveis em casa de amigos ou parentes. O rigor de Dona Beatriz nesse ponto tinha raiz na lembrança dos aborrecimentos e do escândalo provocados no convento de Ávila por uma freira que afirmava ter visto Jesus Cristo, a Santíssima Virgem e vários santos e ter recebido deles graças especiais. A superiora não rejeitava a possibilidade de tais ocorrências,, visto ser certo que alguns santos haviam recebido favores análogos, mas não podia crer que a freira de Ávilai, Teresa de Gepeda, com quem falara muitas vezes quando aluna do convento, fosse outra coisa senão a vítima histérica e iludida de uma desenfreada fantasia.
Era altamente improvável que houvesse qualquer coisa de verdadeiro na estranha história de Catalína. Como as freiras, porém, estivessem tão alvoroçadas com aquilo que não falavam de outra coisa, Dona Beatriz achou de bom aviso mandar chamar a jovem e ouvir o caso dos seus próprios lábios. Chamou uma das freiras e disse-lhe que fosse buscar a rapariga.
A freira voltou daí a pouco, informando-a de que Catalina estava disposta a obedecer à ordem da Reverenda Madre, mas que o seu confessor a proibira de repetir a história a quem quer que fosse. Dona Beatriz, pouco habituada a que a contrariassem, franziu o sobrolho, e quando ela o fazia todas as habitantes do convento se punham a tremer.
- A mãe da moça está aqui, Reverenda Madre - disse a freira, sustendo a respiração.
- De que me pode servir a mãe?
- Ela ouviu a história dos lábios da moça logo depois de Nossa Senhora lhe ter aparecido. O padre não pensou em proibi-la também de falar no caso.
Um sorriso austero encrespou os lábios pálidos da prioresa.
- Um homem digno, mas pouco previdente. Você fez bem, minha filha. Vou receber a mulher.
Maria Pérez foi introduzida no oratório. Tinha visto muitas vezes a superiora, mas nunca lhe falara e estava nervosa. Encontrou Dona Beatriz sentada numa cadeira de encosto alto, com assento e costas de couro, cujo topo era decorado com folhas de acanto em madeira dourada. Maria Pérez não cria que uma rainha pudesse parecer mais distante, solene e orgulhosa. Ajoelhou-se e beijou a mão branca e esguia que lhe ofereciam. Depois, como lhe ordenassem que dissesse o que tinha vindo dizer, repetiu palavra por palavra o que lhe contara Catalina. Quando ela terminou, a prioresa inclinou de leve a nobre cabeça.
- Pode ir.
Ficou algum tempo a reflectir, depois sentou-se à mesa e escreveu uma carta rogando ao Bispo de Segóvia que lhe
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fizesse a honra de vir vê-la, pois desejaria falar-lhe sobre um assunto que parecia de importância. Enviou a carta e dentro de uma hora recebeu a resposta. Em tom não menos cerimonioso, dizia o bispo que obedeceria com prazer à ordem da Reverenda Madre, visitando o convento no dia seguinte.
Houve uma comoção entre as freiras quando souberam que uma pessoa tão eminente e santa era esperada ali e imediatamente concluíram, com acerto, que a visita estava relacionada à misteriosa aparição da Virgem Santíssima nos degraus da bela igreja do convento. Veio ele à tarde, depois da sesta que as freiras costumavam fazer no Verão, acompanhado pelos dois frades seus secretários, e foi recebido pela subprioresa na sala de visitas. Com grande pesar seu,, as freiras tinham recebido ordem de permanecer nas suas celas. Tendo beijado o anel do bispo, a subprioresa disse-lhe que ia conduzi-lo à presença da senhora superiora. Os dois frades dispuseram-se a acompanhá-lo.
- A Reverenda Madre deseja falar em particular com Vossa Senhoria - disse ela humildemente.
O bispo hesitou um instante, depois inclinou ao de leve a cabeça, consentindo. Os frades voltaram aos seus lugares e o bispo seguiu a freira pelos corredores btrancos e frescos e subiu o lance de escada que levava ao oratório. Ela abriu a porta e arredou-se para deixá-lo entrar. Dona Beatriz levantou-se para vir ao encontro do bispo e, ajoelhando-se, beijou o anel episcopal. Depois indicou-lhe uma cadeira e sentou-se.
- Esperava que Vossa Senhoria se dignasse visitar o nosso convento, mas como não viesse tomei a liberdade de convidá-lo.
- Meu mestre de teologia em Salamanca aconselhava-me
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que tratasse o menos possível com mulheres, que fosse cortês com elas mas as mantivesse à distância.
Ela não deu a resposta ácida que tinha na ponta da língua,, mas ao invés disso considerou-o com atenção. Ele baixou os olhos e ficou à espera. A superiora não tinha pressa de falar. Fazia quase trinta anos que não o via e essas eram as primeiras palavras que trocavam. Ele vestia um hábito velho e remendado. Tinha a cabeça rapada à navalha, com excepção do anel de cobalto preto,, semeado de raros fios brancos, que simbolizavam a Coroa de Espinhos. As têmporas eram reentrantes, as faces cavadas; o rosto, coberto de rugas profundas, exibia sinais de sofrimento; só restavam os olhos escuros e apaixonados, em que brilhava uma luz estranha, para lembrar-lhe o jovem seminarista a quem tinha conhecido muito tempo atrás - conhecido e amado tão loucamente.
Aquilo começara como uma travessura. Beatriz tinha-o notado a primeira vez que ele servira a missa, como fazia algumas ocasiões, na igreja que ela frequentava com a sua "duena". Já então ele era magro, de cabelos negros e bastos, pois usava apenas a tonsura das ordens menores, tinha feições bem definidas e uma graça singular no porte. Parecia-se com um desses santos que recebiam a vocação em meninos,, tornando-se objectos de veneração para todos e morrendo moços e aureolados de beleza. Quando não estava servindo a missa ia ajoelhar-se na capelinha, entre as poucas pessoas que ali se encontravam àquela hora. Atento às suas devoções, nunca desviava os olhos do altar. Beatriz, naquela época, era uma jovem estouvada e folgazã. Conhecia o poder devastador dos Seus olhos maravilhosos. Pareceu-lhe que seria uma óptima brincadeira fazer com que o jovem seminarista lhe prestasse
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atenção. Fixou nele, pois, o olhar, desejando com todas as suas forças que ele olhasse para o seu lado. Continuou a fazê-lo durante vários dias, em vão, mas certa manhã teve a intuição de que ele estava perturbado. Não saberia dizer o que lhe dava essa impressão, mas tinha a certeza. Esperou, sustendo o fôlego. Ele ergueu os olhos de repente, como se ouvisse um ruído inesperado, e, encontrando o olhar dela, desviou vivamente o rosto. Desde então Beatriz absteve-se de relancear sequer os olhos para ele, mas um ou dois dias depois, embora mantivesse a cabeça baixa como se estivesse a rezar, teve consciência de que ele a fitava. Ficou perfeitamente imóvel, mas semtia-lhe o olhar perplexo, um olhar que ele nunca havia dirigido a ninguém até então. Experimentou um estremecimento de triunfo e, alçando a cabeça, encarou-o de propósito. Como da outra vez, ele desviou os olhos o mais depressa que pôde e Beatriz viu um rubor de vergonha banhar-lhe o rosto.
Por duas ou três ocasiões, ao andar na rua com a "duena", viu-o caminhar na sua direcção, e embora passasse por elas desviando o rosto, Beatriz sabia-o emocionado. Uma vez mesmo, ao avistá-las, ele tinha girado nos calcanhares e voltado pelo mesmo caminho. Beatriz desatou a rir como louca, a ponto de lhe perguntar a "duena" o que achava tão engraçado, e ela teve de dizer a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Certa manhã, sucedeu que ambas entrassem na igreja no momento em que o seminarista mergulhava os dedos na água benta para persignar-se. Beatriz estendeu a mão para tocar-lhe nos dedos, recebendo dessa forma a água benta. Era um acto costumeiro e natural, e ele não podia recusar. Ficou muito pálido e, mais uma vez, os olhos de ambos se encontraram. Foi apenas um instante,, mas nesse instante Beatriz compreendeu
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que ele a amava com um amor humano, o amor que um rapaz apaixonado dedica a uma bela jovem, e ao mesmo tempo sentiu uma dor aguda no coração, como se uma espada o trespassasse, e compreendeu que o amava com o mesmo amor humano, o amor de uma jovem apaixonada a um amável mancebo. Foi invadida pela alegria. Jamais conhecera tamanha felicidade.
Nesse dia ele serviu a missa. Beatriz não lhe tirava os olhos de cima. O coração pulsava-lhe com uma violência quase insuportável, mas a dor, se dor havia, era maior do que qualquer prazer já sentido por ela. Já havia descoberto que o mesmo encargo ou ocupação o obrigava a passar todos os dias diante do palácio ducal a uma hora certa, e tratou de sentar-se a uma janela de onde pudesse observar a rua. Via-o aproximar-se e retardar o passo, como que mau-grado seu, ao passar, depois via-o seguir caminho apressadamente, como se fugisse à tentação. Esperava que ele levantasse o olhar, mas o rapaz nunca o fazia. Uma vez, para apoquentá-lo, deixou cair um cravo no instante em que ele se aproximava. O seminarista alçou os olhos instintivamente, mas Beatriz recuou a fim de poder vê-lo sem ser vista. Ele deteve-se e apanhou a flor. Tomou-a com ambas as mãos, como se fosse uma jóia inestimável, e por um momento contemplou-a como que em êxtase. Depois atirou-a ao chão com um gesto violento, espezinhou-a no pó e fugiu, fugiu a correr tão depressa quanto podia. Beatriz desatou a rir mas, de repente desfez-se em lágrimas.
Como o rapaz passasse vários dias sem ir à missa, ela não pôde mais suportar a sua ansiedade.
- Que aconteceu àquele seminarista que costumava servir a missa?
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- perguntou à "duena". - Não o tenho visto ultimamente.
- Como posso sabê-lo? Imagino que tenha voltado para o seminário.
Nunca mais tornou a vê-lo. Havia compreendido o drama em que terminara a farsa armada por ela e lamentou amargamente a sua tolice. Amava-o com toda a ardente paixão do seu corpo jovem. Nunca fora contrariada em coisa alguma e enraivecia ao pensar que dessa vez a sua vontade seria frustrada. O casamemto que lhe tinham arranjado era um casamento de conveniência e ela aceitara-o como consequência da sua posição. Estava disposta a dar filhos ao marido, como era seu dever, mas resolvera não lhe dar mais importância do que se fosse um lacaio. Agora, porém, a ideia de unir-se àquele anão estúpido enchia-a de asco. Sabia que o seu amor a Blasco de Valero não podia dar em nada. É verdade que, estando ele nas ordens menores, havia a possibilidade de obter a sua secularização, mas Beatriz nem sequer necessitou lembrar-se de que seu pai jamais consentiria em semelhante aliança; o seu próprio orgulho não lhe permitia dar a mão em casamento a esse "fidalgo de sarjeta". E Blasco? Estava segura de que ele a amava, mas tinha ainda maior amor a Deus. Quando ele espezinhara, raivoso, a flor que ela deixara cair aos seus pés, fora para esmagar aquela paixão indigna que o horrorizava. Beatriz tinha sonhos terríveis, apavorantes, em que jazia nos braços dele, a boca contra a sua, o peito de Blasco a comprimir o seu, e acordava cheia de vergonha, angústia e desespero. Foi então que começou a enfermar. Ninguém lhe compreendia a doença, porém ela sabia de que se tratava: estava a morrer de mágoa. Foi ao ter conhecimento de que ele entrara
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numa ordem monástica que teve aquela inspiração. Sabia, como se o próprio Blasco lhe houvesse dito, que ao renunciar ao mundo ele procurava fugir dela; e isso dava-lhe uma estranha alegria, um sentimento de força triunfante. Faria a mesma coisa: o ingresso no convento a libertaria de uma união odiosa, e talvez encontrasse paz no amor divino. Num recanto do seu espírito, sem que a própria palavra interior lhe desse forma senão muito raramente, habitava a ideia de que naquela vida, por mais separados que estivessem, cada um devotado ao serviço do Altíssimo, existia entre ambos uma espécie de união mística. Tudo isso, que levamos tanto tempo a contar, passou como um relâmpago pela mente da fria e severa prioresa. Viu a sua história como se fosse um desses vastos afrescos pintados na longa parede de um claustro, e aos quais, entretanto, podemos abranger com um só olhar. Toda aquela paixão, que na sua tola mocidade ela julgava dever durar para sempre, havia muito que morreria. O tempo, a piedosa monotonia da vida conventual, as orações e os jejuns, os múltiplos deveres da sua posição, haviam-na embotado pouco a pouco e agora não passava de uma lembrança amarga. Ao olhar para esse homem tão gasto e emaciado, com aquela expressão de sofrimento, perguntava consigo se ele se recordaria de ter amado uma vez - contra a vontade,, sim, mas de todo o coração - uma linda jovem a quem nunca falara, mas que atormentava os seus sonhos. O silêncio era pesado ao bispo, que se remexia inquieto na cadeira.
- A Reverenda Madre disse ter um assunto de importância sobre o qual desejava consultar-me - falou ele.
- Sim, mas permita primeiro que apresente as minhas
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felicitações a Vossa Excelência pela dignidade que el-rei houve por bem conferir-lhe.
- Não posso ter senão a esperança de me mostrar à altura dos deveres pertinentes a tão alto cargo.
- Quanto a isso, não pode haver dúvidas no espírito de quem conheça o zelo e a discrição de que Vossa Excelência deu provas durante os dez amos que passou em Valência. Embora vivamos numa remota cidadezinha das montanhas, conseguimos manter-nos inteirados do que se passa nesse grande mundo, e não nos passou despercebida a fama conquistada pela austeridade, pela virtude e pelo incansável labor de Vossa Excelência em prol da pureza da nossa fé.
O bispo olhou-a um instante por baixo das sobrancelhas franzidas.
- Minha senhora, fico-lhe agradecido pela sua cortesia mas devo rogar-lhe que me poupe esses cumprimentos. Nunca senti prazer em ouvir comentários a meu respeito, feitos na minha presença. Ficar-lhe-ei grato se me disser sem mais demora por que razão solicitou a minha visita.
A prioresa não se deixou abater por esta admoestação. Ainda que ele fosse bispo, não deixava de ser um "fidalgo de sarjeta", como dizia a sua velha "duena" que lá estava no seio do Senhor; enquanto ela era a filha do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Uma palavra sua ao irmão, confidente do favorito de Filipe III, podia relegar esse prelado para uma obscura diocese das Canárias.
- Lamento ofender a modéstia de Vossa Excelência - respondeu em tom tranquilo - , mas foi justamente a sua virtude e a sua austeridade - a sua santidade, se assim me posso
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exprimir - que constituiu a causa, imediata do meu pedido para que me fizesse a honra de visitar-me. Está informado do estranho caso que se passou com uma menina chamada Catalina Pérez?
- Estou. O confessor dela, homem digno, sem dúvida, mas de pouca instrução e inteligência, referiu-me essa história. Mandei-o calar. Proibi os frades do convento de mencionar tal coisa na minha presença ou de falar nela entre si. Essa rapariga ou é uma impostora à cata de notoriedade, ou uma simplória iludida.
- Não a conheço, senhor, mas segundo todas as informações é uma menina boa, sensata e piedosa. Pessoas de critério, que a conhecem, estão convencidas de que ela é incapaz de inventar semelhante história. Não costuma mentir e, ao que me dizem, está lomge de ser dada a fantasias.
- Se ela teve uma visão como a que descreve, só pode ter sido por ardil de Satanás. Ninguém ignora que os demónios tem o poder de assumir formas celestes para tentar os desprevenidos e arrastá-los à perdição.
- Essa menina sofre um infortúnio imerecido. Não devemos atribuir ao diabo mais habilidade do que ele possui. Como poderia ele ser estúpido ao ponto de julgar que a alma dessa criança incorre em perigo pelo facto de um santo homem lhe impor a mão em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo?
O bispo, que durante essa conversa mantivera os olhos postos no chão, ergueu-os para a superiora a estas últimas palavras, com uma expressão de angústia.
- Minha senhora, Lúcifer, o filho da manhã, caiu por causa do seu orgulho. Como é possível que pelo orgulho eu,
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um homem tão corrupto e pecador, me atreva a fazer milagres ?
- Está bem que na sua humildade se considere um homem corrupto e pecador, Excelência, mas o resto do mundo bem conhece a sua grande virtude. Ouça, senhor: essa história foi divulgada e a cidade inteira anda a falar nela. Todos estão alvoroçados e em expectativa. É preciso dar uma satisfação qualquer ao povo.
O bispo suspirou.
- Eu sei que o povo está perturbado. Grupos de pessoas conservam-se diante do convénto como se aguardassem alguma coisa, e quando saio eles ajoelham-se à minha passagem pedindo que os abençoe. É necessário fazer alguma coisa para que entrem na razão.
- Vossa Excelência permite que lhe dê um conselho? - disse a prioresa com muito respeito; mas os seus olhos tinham um brilho divertido e irónico que de certo modo ateimava aquele.
- Ficar-lhe-ia muito grato.
- Eu não falei com a rapariga porque o seu confessor lhe deu ordem de não repetir a história a ninguém, mas o senhor bispo tem o poder de revogar essa ordem. Não acha que seria conveniente vê-la? Com o seu discernimento, a sua penetração das almas e a habilidade que adquiriu no Santo Ofício com a inquirição de suspeitos, Vossa Excelência descobriria bem depressa se ela é uma impostora, se foi iludida por Satanás ou, afinal, se foi verdadeiramente a Virgem Santíssima que condescendeu em aparecer-lhe.
O bispo alçou os olhos e contemplou a imagem do Redentor pregado à Cruz, no santuário diante do qual a prioresa
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costumava rezar. O seu rosto tinha uma expressão muito triste. Estava dilacerado pela dúvida.
- É escusado lembrar-lhe, senhor, que este convento se acha sob a protecção especial de Nossa Senhora do Carmelo. Nós, pobres freiras, somos sem dúvida alguma indignas dessa honra, mas é possível que ela olhe com um favor especial esta igreja que meu pai, o duque, lhe erigiu na nossa cidade. Seria uma grande honra e uma grande glória para a nossa casa se, por intercessão de Vossa Excelência, a nossa celeste padroeira curasse essa pobre menina da sua enfermidade.
Durante largo tempo o bispo esteve absorto nos seus pensamentos. Por fim tornou a suspirar.
- Onde poderei ver essa menina?
- Haverá lugar mais próprio do que a capela dedicada ao culto da Santíssima Virgem, na nossa igreja?
- É preferível fazer depressa o que tem de ser feito. Que ela venha amanhã, minha senhora:, e estarei aqui à sua espera.
Levantou-se, e ao curvar-se para se despedir da prioresa havia nos seus lábios a sombra de um sorriso - mas tão pesaroso!...
- Uma triste noite me aguarda, Reverenda Madre. Ela ajoelhou-se mais uma vez e beijou-lhe o anel.


XII.

No dia seguinte, à hora aprazada, o bispo entrou na opulenta igreja acompanhado dos seus dois secretários. Catalina, com uma das freiras, esperava na capela da Virgem.
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Mantinha-se em pé com o auxílio da muleta;, mas quando o bispo apareceu a freira tocou-lhe no braço e Catalina fez um movimento para ajoelhar-se. Ele não a deixou.
- Pode deixar-nos - disse à freira e, quando esta saiu, dirigiu-se aos dois frades: - Podem retirar-se, mas fiquem aqui perto. Quero falar a sós com esta menina.
Eles desapareceram silenciosamente. O bispo observou-lhes a retirada. Sabianos muito curiosos e não queria ser ouvido por eles. Deitou então um longo olhar à inválida. Tinha um coração sensível e a desgraça, a miséria e a doença nunca deixavam de comovê-lo. Ela tremia um pouco e estava muito pálida.
- Não te assustes, minha filha - disse ele com suavidade. - Não tens nada a temer se dizes a verdade.
A jovem pareceu-lhe muito simples e inocente. Notou-lhe a singular beleza das feições, mas fê-lo com a mesma indiferença com que teria observado o pêlo ruão ou tordilho de um cavalo. Começou por lhe fazer perguntas sobre ela própria. Catalina respondeu a princípio com muita timidez, mas, como o bispo continuasse a instá-la com perguntas, acabou por ganhar mais confiança. Tinha uma voz suave e melodiosa e expressava-se com correcção. Contou-lhe a singela história da sua vida. Era a história de todas as moças pobres: duros trabalhos, diversões inofensivas, frequentes visitas à igreja e o seu namoro; contou-a, porém, com tal naturalidade e um ar tão ingénuo que o bispo sentiu-se tocado. Parecia-lhe inconcebível que essa rapariga tivesse inventado qualquer coisa para se fazer importante. Cada uma das suas palavras respirava modéstia e humildade. Contou-lhe então o seu acidente, como ficara com
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a perna paralítica e como Diego, o filho do alfaiate, o seu amado com quem ia casar-se, a tinha abandonado.
- Não o censuro - disse ela. - Vossa Excelência ignora talvez que a vida do pobre é dura, e um homem não deseja ter uma mulher incapaz de trabalhar para ele.
Um sorriso tão terno quanto o permitiam as feições conturbadas do bispo perpassou-lhe rapidamente na face. - Como aprendeste a falar tão bem e com tanto critério, minha filha? - perguntou ele.
- Meu tio Domingo Pérez ensinou-me a ler e a escrever. Deu-se a muito trabalho comigo. Tem sido como um pai para mim.
- Eu conheci-o outrora.
Catalina bem conhecia a má reputação do tio e receou que a sua referência a este a prejudicasse no conceito do santo homem. Houve um silêncio e, por um momento, ela julgou que ele fosse pôr fim à entrevista.
- Conte-me agora, nas suas próprias palavras, a história que referiu a sua mãe - disse ele, fitando-lhe um olhar perscrutador.
Catalina hesitou e o bispo lembrou-se de que o seu confessor lhe dera ordem de não falar naquilo. Informou-a gravemente de que tinha autoridade para tornar sem efeito a proibição do confessor.
Ela repetiu então a história, tal qual a havia contado à mãe. Disse que estava sentada nos degraus da igreja a chorar porque toda a cidade estava em festa e só ela era desgraçada, que uma senhora tinha saído da igreja e lhe falara, que ela lhe tinha dito que Sua Excelência o Bispo tinha o poder de curá-la do seu mal, depois desaparecera diante dos seus próprios olhos,
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e que ela compreendera então que essa senhora era a Virgem Santíssima em pessoa.
Quando terminou de falar, fez-se um longo silêncio. O bispo ficara abalado, mas ao mesmo tempo atormentava-o a decisão. A jovem não era uma impostora - disso estava convencido, pois a sua inocência, a sua sinceridade eram inconfundíveis. Não podia ter sido um sonho, porque ela ouvira bater os sinos, rufar os tambores e soar as trombetas quando ele e seu irmão tinham entrado na cidade, e nesse momento Catalina conversava com a dama, a qual ela não tinha razão para supor fosse coisa diversa do que parecia. Como teria Satanás o poder de assumir uma falsa aparência quando a menina estivera a abrir o seu pobre coraçãozinho diante da Mãe de Deus e a suplicar-lhe que a socorresse na sua aflição? Era uma criatura piedosa e não havia nela a menor presunção. Outros tinham visto as suas orações atendidas, outros tinham recebido a graça espiritual, outros tinham sido curados dos seus males. Se ele recusasse, por medo, fazer aquilo que parecia ser-lhe ordenado, porventura não inconreria em grave pecado de omissão?
"Um sinal!" murmurou de si para si. "Um sinal!" Avançou um ou dois passos e chegou ao pé do altar sobre o qual, envolta num grande manto de veludo azul todo pontoado de ouro, com uma coroa de ouro na cabeça, estava a imagem da Mãe de Deus. Ajoelhou-se e orou, pedindo-lhe que o guiasse. Orou apaixonadamente, mas tinha o coração seco e sentia as trevas da noite envolver-lhe a alma.. Por fim, com um triste Suspiro, ergueu-se e ficou com os braços estendidos numa súplica, fitando o olhar desesperado nos olhos meigos da Santíssima Virgem. De repente Catalina lançou um
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grande grito de espanto. Os dois frades haviam desaparecido, mas embora não pudessem ouvir o que ambos diziam, não estavam fora do alcance da voz, e ao sentir esse grito correram tão depressa como coelhos que ganham a toca. Mas o que viram pareceu chumbá-los ao chão. Ficaram mudos, boquiabertos, como se, a exemplo da mulher de Lot, se houvessem convertido em estátuas de sal. Don Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, alçava-se lentamente no ar, tão lentamente como o azeite que escorrega por uma superfície inclinada muito de leve; elevava-se com um movimento regular, quase imperceptível, como as aguas de um rio em enchente. O bispo subiu até colocar-se rosto a rosto com a imagem que encimava o altar, e por um momento ficou suspenso no ar, qual um falcão que se imobiliza sobre as asas estendidas. Temendo que ele caísse, um dos frades fez menção de avançar, mas o outro - o padre António - reteve-o; e o bispo, muito devagar, tão devagar que mal se percebia o movimento, desceu até os seus pés tornarem a tocar o chão de mármore defronte do altar. Penderam-lhe os braços e ele voltou-se. Os dois frades aproximaram-se a correr e, caindo de joelhos, beijaram-lhe a ourela do hábito. Ele não parecia dar-se conta da presença de ambos. Desceu os três degraus do altar e, como ofuscado, saiu da capela aos tacteios. Os dois frades seguiam-no de muito perto, para acudir-lhe no caso de tropeçar. Catalina ficou esquecida. Saíram da igreja. O bispo deteve-se no alto dos degraus, onde a jovem estivera sentada quando Nossa Senhora lhe apareceu, e olhou para a pracinha que resplandecia ao sol de Agosto. O céu sem nuvens estava tão azul e tão claro, em contraste com a penumbra da igreja, carregada de fumos de incenso, que olhar para ele cegava a vista. As casas brancas, cujos postigos estavam fechados por causa do calor, pareciam cintilar com um brilho próprio, como pedras preciosas. O bispo teve um arrepio, embora o dia estivesse quente como uma fornalha, e tornou a si.
- Façam saber à menina que eu a mandarei chamar. Desceu os degraus, seguido pelos frades a uma distância
respeitável. Atravessou a praça de cabeça baixa. Os dois não ousavam falar-lhe. Quando alcançaram o convento dominicano o bispo parou e votou-se para eles.
- Sob pena de excomunhão, não digam uma só palavra sobre o que viram hoje.
- Foi um milagre, senhor - volveu o padre António. - Acaso é justo que tão conspícuo sinal do favor divino seja ocultado aos nossos irmãos?
- Ao fazer a sua profissão, meu filho, você prestou voto de obediência.
Padre António fora aluno do bispo quando este ensinava teologia em Alcalá, e foi por influência de frei Blasco que ele entrou na Ordem Dominicana. Era vivo e inteligente, e ao ser nomeado inquisidor em Valência, o mestre levou-o consigo na qualidade de secretário. Sentia-se reconhecido ao jovem monge pela sua dedicação e, embora tentasse muitas vezes moderar a excessiva admiração que António tinha por ele, os seus argumentos não faziam senão intensificá-la ainda mais. Padre António, embora fosse tão devoto e zeloso na observância dos seus deveres religiosos quanto podia desejá-lo o Bispo, embora tivesse uma vida impoluta e se mostrasse diligentíssimo no serviço da Igreja, sofria dessa doença que Juvenal chamou "cacoethes soribendi": não se contentando em tomar a vasta correspondência do inquisidor e em redigir
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os inúmeros relatórios, documentos, decisões, etc, necessários à direcção dos negócios do Santo Ofício, passava todos os seus momentos de folga a escrevinhar; e o inquisidor descobriu - como descobria tudo que se relacionava com a sua pessoa ou o seu cargo - que padre António estava mantendo uma crónica minuciosa dos seus actos, de cada palavra que ele pronunciava e dos vários sucessos da sua carreira. Percebia, cheio de humildade, que o secretário lhe dedicava uma estima exagerada, e nos seus exames de consciência perguntava a si mesmo se não lhe incumbiria o dever de pôr termo àquele trabalho, pois muito bem sabia com que fim o frade escrevia. Metera-se naquela cabeça ilustrada, mais tonta, que ele, Frei Blasco de Valero, tinha a fibra de que se fazem os santos e que um documento como o que estava preparando seria valioso para a Cúria quando, após a sua morte, se instaurasse o processo de beatificação. Ainda que perfeitamente cônscio da sua indignidade, o inquisidor não deixava de ser humano e vibrava de piedosa exultação ao considerar a possibilidade, embora remota, de que algum dia viesse a ser contado entre os santos da Igreja. Açoitava-se até fazer correr sangue para punir-se da sua presunção, mas não podia decidir-se a privar aquela boa e piedosa Griatura de uma ocupação evidentemente inofensiva. E quem sabe? Era possível que a simples piedade religiosa do autor lhe permitisse compor uma obra que, apesar da insignificância do assunto, fosse edificante para os fiéis. Nesse instante, lendo no coração do frade, o bispo teve a certeza de que, conquanto os lábios deste não deixassem escapar nem uma palavra sequer do que sucedera na igreja das carmelitas, uma exposição pormenorizada do facto seria incluída no livro. O portentoso fenómeno que hoje conhecemos
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como levitação, e de que ele fora instrumento, tornara-se-lhe familiar através da leitura das vidas de vários santos, e toda a Espanha sabia que em tempos recentes esse sinal de favor divino fora conferido a Pedro de Alcântara, à Madre Teresa de Jesus e a mais de uma freira da ordem das carmelitas descalças. O bispo não podia esperar que padre António omitisse tal ocorrência no seu livro e, mesmo, ignorava se tinha o direito de ordenar-lhe tal coisa. Assim, entrou no convento sem dizer mais uma palavra e dirigiu-se para a sua cela.


XIII.

Não se lembrara, porém, de impor segredo a Catalina, e nem bem os três religiosos tinham deixado a igreja quando ela correu para casa tão depressa quanto lho permitia o seu estado de invalidez. Domingo fora a uma das povoações circunvizinhas a chamado de alguém e só Maria estava em casa. Catalina contou-lhe, em tom aterrado, o portento de que fora testemunha, e depois de terminar contou tudo de novo.
Maria Pérez tinha um pouco do senso dramático que parecia ter sido negado a seu irmão, o dramaturgo. Reprimindo com esforço a sua impaciência, aguardou a hora do recreio no convento, quando todas as freiras estariam reunidas, em palestra com as damas pensionistas e pessoas da cidade; poderia, assim, relatar a assombrosa ocorrência obtendo dela o maior efeito possível. Tinha um público numeroso quando contou a história, e deu-lhe grande satisfação o espanto com
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que a ouviram. Tal foi a impressão causada na subprioresa que esta achou necessário repetir o caso a Dona Beatriz sem perda de um só instante. Daí a pouco Maria Pérez foi chamada à presença da superiora e tornou a desfiar a mesma narrativa; A superiora escutou-a com uma satisfação que não se deu ao trabalho de ocultar.
- Diante disso não é possível hesitar mais - disse ela. - Será uma grande glória não só para este convento, mas para a Ordem de Nossa Senhora do Carmelo.
Despediu as duas mulheres e, apanhando a pena de pato, escreveu ao bispo uma carta em que dizia ter sido informada da graça que lhe fora concedida aquela manhã. Não se faziam mister maiores provas da verdade do que afirmara a jovem Catalina Pérez e de que tal ocorrência não era atribuível a uma maquinação do Inimigo e sim à compaixão de Nossa Senhora. Conjurava-o a pôr de parte as suas dúvidas e incertezas, pois com toda a evidência o seu dever cristão lhe ordenava aceitar a missão que lhe fora imposta. Era uma carta perfeita, sucinta mas bem argumentada, respeitosa mas firme, e a superiora terminava rogando-lhe, com grande humildade, que se dignasse realizar o milagre na mesmo igreja em que lhe fora conferido esse favor divino e à qual era evidente ter a Santíssima Virgem concebido uma afeição especial. Enviou a carta por um mensageiro.
Dois dos cavalheiros que se encontravam na sala de visitas do convento quando Maria Pérez contou a história ficaram tão impressionados que foram acto contínuo ao convento dos dominicanos indagar da sua veracidade. Os frades, naturalmente, nada sabiam, mas não se surpreenderam em absoluto quando o caso lhes foi repetido. Conheciam perfeitamente
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a gramde santidade do bispo e nada era mais natural do que conferir-lhe o Senhor a assinalada honra da levitação. Nesse meio tempo, uma das pensionistas das carmelitas foi visitar pessoas amigas na cidade e relatou-lhes o milagroso acontecimento. Dentro de uma ou duas horas toda a cidade tinha conhecimento do oconrido. Outros cavalheiros dirigiram-se para o convento dos dominicanos, a fim de colher informações de primeira mão. Os frades vibravam de entusiasmo religioso. Finalmente, Padre António viu-se na obrigação de ir dizer ao bispo que, embora nem ele nem o seu companheiro houvessem falado, o facto se tornara conhecido de todos. A carta da prioresa estava aberta em cima da mesa.
- Essas miseráveis mulheres são incapazes de refrear a língua - disse Don Blasco, apontando para ela. - É uma grande humilhação para mim que essa história tenha transpirado.
- Os nossos irmãos deste convento esperam que Vossa Excelência consinta agora em curar a infeliz jovem da sua enfermidade.
Bateram à porta. Padre António foi abri-la. Era um frade com um recado do prior perguntando se podia falar ao bispo.
- Que venha.
Padre António esteve presente à entrevista e escreveu uma relação da mesma, com toda a minúcia. Ao cabo, o bispo deixou-se convencer de que a vontade do Senhor era que ele obedecesse à solicitação da Santíssima Virgem. Formulou, todavia, condições que o prior, muito a contragosto, foi obrigado a aceitar. Queria o prior uma cerimónia com todos os monges reunidos, em presença das notabilidades locais, tanto leigas como eclesiásticas. Mas a isto o Bispo se opôs asperamente.
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Insistiu em que se guardasse sigilo. Estava disposto a ir à igreja das carmelitas e dizer a sua missa ali na manhã seguinte. Deviam fechar-se as portas para que ninguém fosse admitido. Ele próprio só iria acompanhado pelos seus dois secretários. Bastante enraivecido pelo que lhe parecia uma desconsideração à sua dignidade, o prior retirou-se. O bispo mandou então o padre António informar Dona Beatriz da sua decisão. Dava-lhe licença de trazer as suas freiras, mas proibia as damas pensionistas de comparecer. Recomendava-lhe que fizesse Catalina preparar-se para tomar a Santa Comunhão depois da missa e pedia-lhe, a ela e às suas freiras, que orassem por ele aquela noite.
Dentro de uma hora, uma freira toda emocionada veio à casa de Maria Pérez e pediu para ver Catalina, pois tinha algo muito importante para lhe dizer em particular. Depois de chamarem Catalina a freira levou o dedo aos lábios, recomendando discrição.
- É um grande segredo - disse ela. - Não deves contar a ninguém. O senhor bispo vai curar-te e amanhã estarás correndo e pulando sobre os dois pés, como qualquer outro cristão.
Catalina susteve o fôlego e o seu coração pôs-se a bater como doido.
- Amanhã?
- Terás de tomar a Sagrada Comunhão, de modo que não deves comer nada depois da meia-noite.
- Sim, eu sei. Mas de qualquer jeito nunca como nada depois da meia-noite.
- Além disso, deves pôr-te em estado de graça. Depois de comungares ele te deixará tão sã como Nosso Senhor deixou o leproso.
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- A mamã e o tio Domingo podem ir?
- Não me disseram nada a esse respeito. Está claro que podem. Talvez isso também cure o teu pobre tio dos seus maus costumes.
Domingo não voltou do campo senão tarde naquela noite, mas assim que ele entrou em casa Catalina contou-lhe, toda agitada, a emocionante nova. Ele fitou-a cheio de consternação.
- Não ficais contente, tio? - exclamou ela.
Em lugar de responder ele pôs-se a caminhar de um lado para outro. Catalina não podia compreender essa estranha atitude.
- Mas que (tens, tio? Isso não te agrada? Eu pensava que ficarias tão contente como eu. Não queres que eu me cure?
Ele sacudiu os ombros com irritação e continuou a percorrer o quarto de um lado para outro. Ainda não estava plenamente convencido de que a aparição não fora um produto da mente perturbada da sobrinha e temia as consequências para ela se a intervenção do bispo fosse inútil. Em tal caso, o Santo Ofício bem podia achar que o assunto exigia inquérito.
Seria um desastre. Parou de repente e virou-se para Catalina.
Olhou-a com uma expressão severa que a jovem nunca lhe
tinha visto até então.
- Conta-me exactamente o que te disse a Virgem Santíssima.
Ela repetiu a história.
- E então a Virgem disse: "O filho de Juan de Valero que melhor tem servido a Deus possui o poder de curar-te."
Domingo interrompeu-a asperamente.
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- Mas não foi isso que disseste a tua mãe! Disseste-lhe que Blasco de Valero tinha o poder de curar-te.
- Dá no mesmo. O bispo é um santo, todo o mundo sabe disso. Qual dos filhos de Dom Juan tem servido a Deus tão bem como ele?
- Ó tola! - exclamou Domingo. - Ó grande tolinha!
- Tu é que és tolo! - retrucou ela, acalorada.
Não acreditaste que a Santíssima Virgem me tinha aparecido, falado comigo e desaparecido diante dos meus olhos. Pensavas que fosse um sonho. Pois bem, ouve isto.
E contou-lhe como vira o bispo elevar-se do chão, ficar suspenso no ar e descer novamente até ao chão.
- Isso não foi sonho. Os dois frades que lá estavam viram-no com os seus próprios olhos.
- Coisas ainda mais extraordinárias têm acontecido - resmungou ele.
- E contudo não queres acreditar que Nossa Senhora me apareceu.
Ele deitou-lhe um olhar cintilante.
- Não é verdade. Antes não acreditava, mas agora acredito, não por causa do que viste essa manhã mas pelas palavras que te dirigiu a Santíssima Virgem. Há nelas um sentido oculto que me convence.
Catalina ficou perplexa. Não compreendia como a insignificante disparidade entre as duas versões pudesse fazer alguma diferença. Ele afagou-lhe a face com brandura.
- Sou um grande pecador, minha pobre criança, e o que torna desesperada a minha situação é que nunca pude arrepender-me dos meus pecados. Tenho tido uma existência aventurosa e frívola, mas li muitos livros, antigos e modernos,
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e aprendi muita coisa que talvez fosse melhor para a minha alma não conhecer. Mas coragem, minha querida, talvez tudo ainda venha a terminar bem. Apanhou o chapéu.
- Aonde vais, tio?
- Passei um dia muito atarefado e preciso distrair-me. Vou à taberna.
Nisto, porém, Domingo faltava com a verdade, pois em lugar de ir à taberna dirigiu-se para o convento dos dominicanos. Embora ainda estivesse claro, a hora era avançada e o porteiro não o deixou entrar. Domingo insistiu que precisava falar com o bispo sobre um assunto de grande importância, mas o porteiro, falando pelo postigo, negou-se a abrir a porta. Domingo disse-lhe que era o tio de Catallina Pérez e rogou-lhe que chamasse pelo menos um dos secretários de Sua Excelência. O porteiro mostrou-se pouco disposto a atender mesmo a esse pedido, mas tanto insistiu Domingo que ele consentiu afinal. Volvidos alguns minutos, padre António aproximou-se do postigo. Domingo implorou-lhe que o deixasse falar ao bispo, pois tinha uma comunicação da maior importância para este. O frade, evidentemente, estava informado a respeito da sua pessoa e conhecia-lhe a má reputação, pois respondeu com frieza. Disse que era impossível incomodar Sua Excelência, que estava a passar a noite em orações e dera ordens para que não o interrompessem sob pretexto algum.
- Se não me deixar vê-lo será responsável por um terrível infortúnio.
- Bêbedo! - disse padre António desdenhosamente.
- Sou um bêbedo, é verdade, mas não estou embriagado
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agora. Vai lamentar amargamente o facto de não me ter deixado entrar.
- Que mensagem é essa que me pede para transmitir? Domingo hesitou. Não sabia o que dizer.
- Diga-lhe que, pelo amor que lhe tem, Domingo Pérez lhe manda esta mensagem: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo."
- "Hijo de puta!" - gritou padre António, enraivecido por ouvir esse valdevinos, esse dissoluto citar a Santa Escritura.
Bateu-lhe com o postigo na cara. Domingo afastou-se, cheio de melancolia. O hábito orientou-lhe os passos para a taberna. e ele entrou. Era uma criatura sociável e, se não tinha muitos amigos, tinha pelo menos bom número de companheiros de libação. Embebedou-se e, uma vez bêbedo, soltou-se-lhe a língua. Gostava de se ouvir falar e, nessa ocasião como em muitas outras, foi-lhe fácil encontrar ouvintes.


XIV.

Na manhã seguinte, quando, como teria dito Domingo num dos seus poemas, Aurora esfregou os olhos com os dedos rosados e Febo atrelou ao seu carro de ouro os velozes corcéis do sol - ou seja, em prosa, ao romper do dia, três monges dominicanos com os capuzes baixados sobre as cabeças rapadas à navalha, em parte para ocultar-se e em parte para se protegerem dos nocivos vapores da noite que ainda não se acabara de todo, saíram atenciosamente do convento. Mas, embora
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fosse tão cedo, os habitantes da cidade tinham sentido qualquer coisa no ar e já havia um grupo reunido diante do portão do convento. Na alta figura encapuzada que caminhava entre as duas outras, reconheceram de imediato a santa pessoa do bispo. Seguidos a respeitosa distância pelos curiosos, os três frades dirigiram-se rapidamente para a igreja das carmelitas. Outras pessoas esperavam ali. Um dos frades bateu à porta. Esta abriu-se o suficiente para deixá-los passar um após outro e cerrou-se atrás deles. Quando os espectadores tentaram entrar, encontraram-na fechada à chave e, embora batessem, fizeram-no em vão.
Catalina esperava na capela da Virgem. Maria Pérez e Domingo tinham-na acompanhado, mas não os deixaram entrar. Dona Beatriz recebeu o bispo à porta da igreja com as suas freiras, vinte ao todo, pois tal era o limite fixado pelo duque de Castel Rodríguez ao fundar a instituição. O bispo entrou na sacristia com os seus dois auxiliares e envergou as sacras vestimentas. Dirigiu-se devagar para a capela da Virgem. As freiras estavam de joelhos. Apoiando-se na muleta, Catalina ajoelhou-se ao pé dos degraus do altar. O bispo celebrou a missa. As freiras entoaram os responsos em voz baixa e reverente. Ele administrou a Santa Comunhão a Catalina. Após a bênção e a leitura do último Evangelho, ajoelhou-se diante do altar e orou em silêncio. Depois ergueu-se, fitando em Catalina os grandes olhos trágicos, desceu os degraus. Pousou-lhe na cabeça a mão fina e morena.
- Eu, instrumento indigno do Altíssimo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ordeno-te que lances fora essa muleta e caminhes.
Começara em voz trémula e tão sumida que as freiras mal
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podiam ouvi-lo, mas pronunciou as últimas palavras sonoramente, num tom claro de comando. Catalina, com o rosto pálido de emoção, os olhos cintilantes, ergueu-se em pé, largou a muleta!, deu um passo à frente e, com um grito de angústia, caiu redondamente no chão. O milagre havia falhado.
Imediatamente se formou uma balbúrdia entre as freiras. Algumas puseram-se a gritar e duas delas desmaiaram. A prioresa adiantou-se. Relanceou os olhos para Catalina e depois o seu olhar encontrou o do bispo. Por um instante encararam-se fixamente. À retaguarda as freiras soluçavam. Então o bispo saiu da capela, com os dois frades atrás de si, e entrou na sacristia. Não disse uma só palavra. Após tirarem as vestimentas da missa e tornarem a pôr os seus hábitos monásticos, entraram de novo na igreja. A porteira estava à espera para abrir a porta. Com a cabeça novamente coberta pelo capuz, o bispo tornou a sair para o sol claro da manhã de Verão.
Tinha-se espalhado a notícia de que ele estava realizando um milagre naquele momento e as janelas da praça estavam apinhadas de espectadores. Formavam uma multidão compacta nos degraus da igreja e o logradouro estava cheio deles. Durante um instante o bispo ficou aterrado por ver aquele grande concurso de povo - mas só durante um instante. Compôs o hábito e aprumou-se. Assim que ele aparecera, um estremecimento de consternação percorreu o povo, pois de um modo misterioso este compreendeu de imediato, embora não soubesse dizer como, que o milagre falhara. Abriram caminho e o bispo, seguido pelos dois frades, desceu a escadaria da igreja. Aqueles que se encontravam na praça recuavam, comprimindo-se uns aos outros, e ao passar o bispo pela espécie
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de corredor assim formado, com o rosto oculto, a alta figura encolhida no hábito branco e preto da ordem, fazia-se na multidão um temível silêncio. Dir-se-ia que estivessem apavorados ante a iminência de alguma catástrofe inevitável.


XV.

Os monges do convento dominicano tinham-se indignado quando o bispo lhes negou permissão de assistir à cerimónia. Ao regressar com os seus dois secretários, encontrou-os vadiando, à espera para olhá-lo. A notícia já havia alcançado o convento. Passou por eles como se não os visse.
Ao saber que teriam no seu meio um hóspede tão ilustre, haviam provido a sua cela do luxo que lhes parecia condizente com a sua grandeza. Mas ele mandara logo retirar tudo quanto ofendia a sua austeridade. Obrigou-os a trocar o colchão macio da cama por outro de palha, tão fino quanto um cobertor, e pediu que as duas poltronas colocadas no oratório fossem substituídas por mochos de três pés. Tinham-lhe dado uma bela mesa de teca para escrever, mas ele reclamou, em lugar dela, uma mesa de pinho sem pintura. Não aceitava nada que desse prazer aos sentidos. Rejeitou os quadros que hiaviam pendurado nas paredes. Estas ficaram nuas, com excepção de uma simples cruz negra, sem a figura de Nosso Senhor, quer esculpida, quer pintada, e isso a fim de que ele pudesse imaginar-se mais vivamente pregado a ela, sentindo assim no seu corpo o suplício que havia experimentado o Redentor por amor à humanidade.
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Ao entrar na sua cela, o bispo deixou-se cair no duro mocho de madeira e fitou os olhos no pavimento de pedra. Lágrimas lentas e dolorosas escorreram-lhe pelas faces cavadas. Padre António encheu-se de compaixão ao ver o seu mestre mergulhado num sentimento que muito se parecia com o desespero. Cochichou qualquer coisa ao seu companheiro, que no mesmo instante saiu, voltando ao cabo de poucos minutos com uma tigela de sopa. Padre António ofereceu-a ao bispo.
- Coma, senhor.
O bispo desviou o rosto.
- Não poderia engolir nada.
- Mas, Excelência, não tem posto nada na boca desde ontem de manhã! Rogo-lhe que tome pelo menos algumas colheradas.
Ajoelhou-se, encheu uma colher com a sopa fumegante e levou-a aos lábios do bispo.
- Você é muito bom para mim, meu filho - disse este. - Não mereço as atenções que me dedica.
Para não ser grosseiro, engoliu o conteúdo da colher e o monge deu de comer ao humilhado homem como se este fosse uma criança enferma. O bispo não desconhecia o profundo apego que lhe tinha o seu fiel auxiliar e mais de uma vez o advertira do perigo de tal coisa, pois um religioso deve estar sempre em guarda para não tomar afeição a indivíduos particulares, o que não faz senão criar obstáculos à integral devoção para com o Senhor, que é o único objecto verdadeiro de amor. Quanto aos seres humanos, quer clérigos quer leigos, deve tratá-los com boa vontade, pois são criaturas de Deus, mas ao mesmo tempo - visto que são perecíveis - com uma indiferença para a qual tanto faz estarem presentes como
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ausentes. Mas é difícil governar os afectos e, por mais que o tentasse, padre António não conseguia eliminar o amor, a devoção extática de que estava repleto o seu pobre coração. Depois que o bispo comeu, padre António pôs de lado a tigela e, sempre de joelhos, atreveu-se a tomar-lhe a mão.
- Não se amargure tanto, senhor. A menina foi enganada pelo demónio.
- Não, a culpa foi minha. Solicitei um sinal e ele foi-me dado. Na minha vanglória, não me julguei indigno de realizar aquilo que só é concedido aos santos eleitos pelo Senhor. Sou um pecador e fui justamente punido pela minha presunção.
Tão acabrunhado estava o bispo que o frade ousou falar-lhe num tom que jamais teria empregado em outras circunstâncias.
- Todos nós somos pecadores, meu senhor, mas eu tive o privilégio de conviver consigo durante muitos anos e ninguém melhor do que eu conhece a sua constante bondade para com todos os homens, a sua inesgotável caridade e compaixão.
- Quem fala agora, é a sua bondade, meu filho. É a afeição que me tem, contra a qual o tenho advertido tantas vezes e que eu tão pouco mereço.
Padre António considerou com piedade o nosto agoniado do bispo. Continuava a segurar-lhe a mão fria e emaiciada.
- Permite que eu lhe leia um pouco para distraí-lo, meu senhor? - disse ele depois de uma pausa. - Escrevi ultimamente alguma coisa sobre a qual desejaria a sua opinião.
O bispo sabia quão amargurado estava o pobre frade pelo facto de não se haver realizado o milagre que ele aguardara com tão absoluta confiança, e sentiu-se tocado ao ver esse homem simples e estimável vencer a sua própria decepção para
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o atender e consolar. Até então, jamais havia consentido em escutar uma palavra sequer do livro que o seu secretário escrevia com tanta diligência, mas dessa vez não teve coragem de recusar-lhe um prazer que ele tão ardentemente desejava.
- Leia, meu filho. Terei muito gosto em ouvir.
Com as faces rubras de prazer, o padre pôs-se atabalhoadamente em pé e tirou, de entre os numerosos papéis com que o seu cargo o obrigara a lidar, várias folhas manuscritas. Sentou-se num dos mochos. O outro frade sentou-se no chão, pois não havia outro lugar onde sentar-se. Padre António começou a ler.
Escritor erudito e elegante, nenhum artifício de retórica lhe era desconhecido. Tinha um estilo rico em símiles e metáforas, metonímias, sinédoques e catacreses. Nunca soltava um substantivo sem o escoltar com dois robustos adjectivos. As imagens brotavam-lhe na mente tão pingues e profusas como cogumelos após a chuva. Versado como era nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja e dos moralistas latinos, nunca tinha dificuldade em encaixar uma alusão oculta. Conhecia a fundo a estrutura dos períodos, simples, complexos, compostos e compostos-complexos, e não só sabia compô-los de maneira perfeita, com cláusulas e subcláusulas, mas também dar-lhe um fecho sonoro e triunfante que fazia o efeito de uma porta batida na cara do leitor. Esse estilo literário, a que um crítico engenhoso deu o nome de "Mandarim", é muito estimado pelos que o adoptam, mas tem a pequena desvantagem de tomar muito tempo para exprimir aquilo que se pode dizer em poucas palavras. Em todo o caso, ele destoaria da linguagem simples e tosca em que é vasada esta narrativa; de modo que, ao invés de fazer uma inútil tentativa de reproduzir
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a grandiloquência do bom frade, o autor destas páginas achou de bom aviso dar uma súmula do assunto à sua moda singela.
Não sem bastante tacto, padre António escolheu para ler o relato do grande auto-de-fé que havia coroado a carreira de Frei Blasco no Santo Ofício e que, conforme mencionamos anteriormente, causara tanto prazer ao príncipe, agora Filipe III, e a seu tempo ocasionara a elevação do piedoso inquisidor à importante diocese de Segóvia.
A impressionante cerimónia, feita para inspirar respeito à autoridade da Inquisição e edificar o povo, realizou-se num domingo, a fim de que ninguém pudesse pretextar suas ocupações para deixar de comparecer, visto que isso era um dever religioso; e, para conseguir-se um público tão numeroso quanto possível, concederam-se quarenta dias de indulgência a todos quantos assistissem. Três palanques tinham sido erigidos na grande praça da cidade, uma para os penitentes com os seus assistentes espirituais, outro para os inquisidores, autoridades do Santo Ofício e o clero em geral, e um terceiro para as autoridades civis e dignitários locais. As solenidades, no entanto, tiveram início na noite anterior com a procissão da Cruz Verde. Em primeiro lugar, com um estandarte de damasco carmesim em que fora bordado o escudo real, ia uma multidão de familiares e de cavalheiros; depois as ordens religiosas, com a Cruz Branca; a Cruz da igreja da paróquia, carregada pelo clero secular; e finalmente a Cruz Verde, carregada pelo prior dos dominicanos, acompanhado pelos seus frades com tochas. Enquanto caminhavam, cantavam o "Miserere". A Cruz Verde foi plantada acima do altar, no palanque reservado aos inquisidores, e guardada durante a noite pelos dominicanos. A Cruz Branca
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foi conduzida ao local da execução, onde lhe montaram guarda soldados da "Zarza", milícia encarregada de vigiar o "quemadero" ou lugar onde se armavam as fogueiras, e de fornecer lenha para estas.
Um dos deveres dos inquisidores era visitar durante a noite os condenados à morte, informá-los da sentença e designar dois monges que deviam preparar cada um deles para enfrentar o Senhor. Nessa, ocasião, porém, padre Baltasar, o mais moço dos inquisidores, estava acamado com uma cólica e desejando refazer-se o suficiente para tomar parte nas cerimónias do dia seguinte, rogou a Frei Blasco que o escusasse de acompanhá-lo nessa triste missão.
Ao nascer do dia celebrou-se a missa na câmara de audiências do Santo Ofício e diante do altar da Cruz Verde. Serviu-se uma refeição aos prisioneiros e aos frades que tinham feito companhia aos condenados e que, sem dúvida, a acolheram com alegria. Os penitentes foram então dispostos em fileiras, de acordo com a gravidade do seu delito contra a fé, e vestiram-nos com sambenitos. O sambenito era uma túnica amarela num de cujos lados tinham pintado chamas para os condenados à fogueira, e no outro lado estava inscrito o nome, residência e crimes cometidos por cada um. Davam-lhe cruzes verdes para carregar e punham-lhe círios amarelos na mão.
Formou-se outra procissão. Os soldados da "Zarza", que a conduziam eram seguidos de um religioso com uma cruz envolta numa mortalha negra e de um acólito que de tempos a tempos dobrava uma sineta. Vinham então os penitentes, um a um, com um familiar de cada lado; depois, as efígies ou as ossadas daqueles que, pela fuga ou pela morte, tinham esbulhado o Santo Ofício da sua justa presa; em seguida,
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os condenados à morte, acompanhados pelos frades que lhes tinham prestado assistência espiritual durante a noite. Seguiam-se autoridades a cavalo, familiares a avançar dois a dois, os magistrados e os dignitários eclesiásticos, de acordo com a ordem oficial de precedência. Um nobre de alta categoria carregava um estojo de veludo vermelho, franjado de ouro, que continha as sentenças dos condenados. Vinha então o estandarte do Santo Ofício, conduzido pelo prior dos dominicanos, seguido dos seus monges; e, por último, os inquisidores.
Era um belo dia de sol, um desses dias que estimulam o espírito de moços e velhos, fazendo-lhes sentir que a vida é boa.
A procissão avançou lentamente pelas ruas tortuosas até chegar à praça. Havia grande afluência de povo. Muita gente acorrera das férteis fazendas que cercavam a cidade dos arrozais e dos olivais; outros, ainda vinham de Alicante, a terra dos parreirais, e de Elche, a região das tamareiras. As janelas das casas circundantes estavam cheias de pessoas nobres e gradas. O príncipe esperava com a sua comitiva num balcão da municipalidade.
Fizeram os réus sentar-se no palanque erigido para eles, na ordem em que tinham marchado, os menos culpados nos bancos inferiores e os mais criminosos nos superiores. Havia no palanque dois púlpitos em que se acomodou o tribunal, e de um desses púlpitos fez-se uma prédica. Então, numa voz tão alta que todos podiam ouvi-lo, um secretário leu o juramento pelo qual as autoridades e todos os presentes se comprometiam a obedecer ao Santo Ofício e a perseguir os hereges e a heresia. Todos disseram ámen, Em seguida, os dois inquisidores dirigiram-se para a sacada em que se achava o príncipe e, sobre a Cruz
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e os Evangelhos, exigiram-lhe um juramento pelo qual se obrigava a obedecer à fé católica e ao Santo Ofício, a perseguir os hereges e apóstatas e ajudar a Inquisição a capturar e punir, quaisquer que fossem a sua posição e categoria-, os infiéis que rejeitavam a verdadeira religião.
- Eu o juro e prometo pela minha fé e sob a minha palavra real - respondeu solenemente o príncipe.
Havia um banco entre os dois púlpitos, e para ali os penitentes foram conduzidos um a um. Leram-lhes as sentenças, alternativamente, de um e de outro púlpito. Com excepção dos condenados às chamas, era a primeira vez que lhes anunciavam o seu destino, e como alguns perdiam os sentidos ao ouvi-lo o Santo Ofício, na sua misericórdia, havia munido o banco de um gradil para que não se magoassem ao cair. Nessa ocasião um homem, alquebrado pela tortura, morreu ali mesmo do choque. A Última sentença foi lida e os réus entregues ao braço secular. O Santo Ofício não impunha qualquer espécie de pena que implicasse em derramamento de sangue, chegando mesmo ao ponto de instar com as autoridades civis para que poupassem a vida do criminoso. A lei canónica, no entanto, exigia-lhes que punissem prontamente os hereges confiados às suas mãos pela Inquisição e concedia-se uma indulgência aos devotos que trouxessem lenha para a fogueira destinada a queimá-los.
Ficava assim terminada a tarefa dos inquisidores, que se retiraram. Os soldados da "Zarza" entraram na praça e descarregaram os seus mosquetes. Depois cercaram os prisioneiros e marcharam com eles para o local da execução, a fim de protegê-los contra a fúria do populacho, que, no seu ódio à heresia, tê-los-ia maltratado e até seria capaz de matá-los.
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Os frades acompanhavam-nos, esforçando-se até ao fim por lhes arrancar uma palavra de arrependimento e conversão. Entre eles havia quatro mulheres mouras, cuja beleza provocou a admiração de todos, um impenitente mercador holandês que fora apanhado a introduzir no país uma tradução espanhola do Novo Testamento, um mouro culpado de ter morto uma galinha cortando-lhe a cabeça, um bígamo, um mercador que dera asilo a um fugitivo do Santo Ofício, e um grego culpado de defender opiniões condenadas pela Igreja. Um aguazil e um secretário foram com as autoridades civis, para tratar de que as sentenças fossem devidamente executadas. O secretário, nessa ocasião, era padre António, que assim teve oportunidade de fazer um relato completo dos acontecimentos do dia.
O "quemadero" ficava fora da cidade. Garrotes tinham sido presos às estacas, a fim de que aqueles que houvessem manifestado a intenção de morrer na fé cristã, inclusive os que o faziam no último momento, pudessem escapar à morte pelo fogo, perecendo pelo método mais suave do estrangulamento. A multidão precipitara-se em pós dos soldados e dos prisioneiros e grande número de pessoas, a fim de apreciar melhor os trâmites da execução, foram tomar lugar antecipadamente no espaço aberto em que devia verificar-se a cena final. Havia ali enorme assistência, o que era natural, pois tratava-se de um espectáculo digno de ser visto e de um entretenimento muito apropriado a um hóspede de sangue real; além disso, o espectador tinha a satisfação de saber que estava realizando um acto de piedade e um serviço a Deus. Os destinados ao garrote foram garroteados. Depois atearam-se as chamas, e vivos e mortos foram reduzidos a cinzas, a fim de que a sua memória
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desaparecesse para sempre. O povo levantou um clamor e pôs-se a bater palmas ao ver subir as chamas, abafando quase os gritos agudos das vítimas, e aqui e além uma mulher entoava um salmo lamentoso e estridente à Santíssima Virgem ou a Cristo Crucificado. Caiu a noite e a multidão voltou aos grupos para a cidade, fatigada de tanta emoção e tantas horas passadas em pé, mas sentindo que tivera um dia feliz. Dirigiam-se em grande número para as tabernas. Os bordéis tiveram um movimento nunca visto e muito homem pôs à prova nessa noite a eficácia do fragmento do hábito de frei Blasco, que usava num escapulário ao pescoço.
Padre António também estava cansado, mas a sua primeira obrigação era comunicar os acontecimentos aos dois inquisidores. Feito isso, como era um homem consciencioso, apesar da fadiga que o tentava a ir para a cama sentou-se e escreveu uma narrativa circunstanciada de tudo quanto sucedera naquele dia, enquanto tinha todos os pormenores frescos no espírito. Fê-lo com rapidez e uma eloquência que parecia inspirada pelo Céu, e ao reler o que escrevera verificou que não havia necessidade de alterar uma só palavra. Finalmente, ditoso pela consciência de haver cumprido o seu dever e contribuído, além disso, com a sua modesta parte para uma obra piedosa, meteu-se na cama e dormiu o sono inocente de uma criança.
Tudo isso ele o leu ao desalentado bispo em voz forte e sonora, dando uma ênfase dramática aos episódios mais significativos. Lia com os olhos pregados ao papel. Sentia uma estranha exaltação. Era assim que se servia o Senhor e se mantinha a pureza da fé católica. Terminou a leitura. Tinha de reconhecer que fizera justiça à grandiosa solenidade. Ele próprio sentia a vividez da sua descrição e a maneira artística por que conduzira
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a narrativa, sem saber como, a um clímax imponente. Alçou os olhos. Como muitos outros escritores que submetem a sua obra à apreciação de um ouvinte, gostaria de ser recompensado com uma palavra de louvor. Mas isso não passou de um desejo momentâneo. O fim principal era dissipar as sombrias imaginações do seu amado e venerado superior, lembrando-lhe o mais glorioso incidente da sua carreira. Por mais santo que fosse, não podia deixar de sentir um estremecimento de orgulho ao surgir-lhe ante os olhos do espírito aquele dia magnífico em que relegara aos tormentos eternos tão grande número de amaldiçoados hereges, servindo assim o Senhor, desobrigando a sua consciência e edificando o povo. Padre António ficou surpreendido, mais do que surpreendido, ateimado, quando viu que as lágrimas lhe desciam pelas faces murchas e ele apertava os punhos com força, para conter os soluços que lhe sacudiam o peito.
Atirou ao chão o manuscrito e, saltando do tamborete em que estava sentado, lançou-se aos pés do seu mestre.
- Mas que tem o senhor? - exclamou. - Que fiz eu? Li apenas para distraí-lo...
O bispo afastou-o de si e, pondo-se em pé, estendeu os braços súplices para a cruz negra pregada à parede.
- O grego! - gemeu ele. - O grego!
E, incapaz de se conter por mais tempo, desatou num choro arrebatado. Os dois frades contemplavam-no cheios de consternação. Nunca tinham visto esse homem austero entregar-se a crises emotivas. O bispo secou as lágrimas impacientemente, com a palma da mão.
- Eu sou o culpado - gemeu ele - , terrivelmente culpado.
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Cometi um horrendo pecado e a minha única esperança de perdão está na infinita misericórdia do Senhor.
- Explique pelo amor de Deus, Excelência! Estou absolutamente confuso. Pareço um marinheiro numa tempestade, com o barco desarvorado e o leme perdido. - Com o seu trecho literário ainda a ressoar-lhe nos ouvidos, era impossível a padre António deixar de falar como um livro.
- O grego? Porque Vossa Excelência se refere ao grego? Era um herege e sofreu a justa punição do seu crime.
- Você não sabe o que diz. Não sabe que o meu crime é ainda maior que o dele. Pedi um sinal e o sinal foi-me dado. Tomei-o por um indício da graça divina;; vejo agora que era um indício da Sua cólera. É justo que eu seja humilhado aos olhos dos homens, porque sou um miserável pecador.
Não se voltou para os seus companheiros. Não era a eles que falava, mas à Cruz sobre a qual se imaginara tantas vezes, com as mãos e os pés atravessados por pregos.
- Era um bom velho, caridoso na sua pobreza para com os mais pobres do que ele, e durante os anos que o conheci nunca lhe ouvi pronunciar uma má palavra. Olhava todos os homens com estima e bondade. Possuía a verdadeira nobreza da alma.
- Muitos homens, virtuosos na vida pública e privada, foram justamente condenados pelo Santo Ofício, porquanto a rectidão moral nada pesa na balança contra o pecado mortal da heresia.
O bispo virou-se e considerou padre António. O seu olhar era trágico.
- E o estipêndio do pecado é a morte - murmurou ele. O grego de quem faiavam, Demétrios Ghristopoulos, era
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natural de Chipre e homem de algumas posses, o que lhe permitira dedicar-se aos estudos. Quando os turcos, no reinado de Selim II, invadiram a ilha, tomaram Nicósia, a capital, e passaram a fio de espada vinte mil dos seus habitantes. Famagusta, onde vivia Demétrios Chrastopoulos, foi cercada e rendeu-se após um ano de acirrada resistência. Sucedia isso em 1571. Fugiu ele da cidade condenada! e homiziou-se nos montes até conseguir escapar num bote de pescadores, e depois de muitas aventuras desembarcou na Itália. Estava sem vintém, mas não tardou a arranjar suficiente trabalho, como professor de grego e expositor da filosofia antiga, para não morrer de fome. Numa hora aziaga, porén, fez-se notado por um fidalgo espanhol adido à embaixada do seu país em Roma, o qual durante a sua residência na Itália se rendera ao culto de Platão, então na moda. O nobre levava-o ao seu palácio e os dois liam juntos os imortais diálogos do filósofo. Volvidos alguns anos, no entanto, foi reconduzido à Espanha e convenceu o grego a ir com ele. Foi elevado à vice-realeza do Reino de Valência e nesta cidade veio a monrer. O grego, sem recursos e já à beira da velhice, deixou o palácio do vice-Rei e instalou-se muito modestamente em casa de uma viúva. Tinha adquirido certo renome de erudição e arranjou um precário meio de vida dando lições de grego aos que desejavam adquirir conhecimentos desse nobre idioma.
Frei Blasco de Valeiro ouvira falar dele quando ainda ensinava teologia em Alcalá de Henares. Pouco depois de assumir o cargo de inquisidor em Valência, sabedor de que ele era um homem de boa reputação e vida virtuosa, mandou chamá-lo. Simpatizou com as maneiras suaves e modestas do velho e pediu-lhe que lhe ensinasse a língua em que fora escrito o Novo
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Testamento, a fim de poder lê-lo com maior devoção. Durante nove anos, sempre que os seus múltiplos deveres lhe davam um momento de folga, o inquisidor e o grego trabalharam juntos. Frei Blasco era um aluno diligente e capaz, e ao cabo de alguns meses o grego, que tinha paixão pela grande e antiga literatura do seu país, convenceu-o a enfrentar as obras dos autores clássicos. Era platonista fervoroso e não tardou que se pusessem a ler os "Diálogos". Daí passaram para Aristóteles. O frade não quis ler a "ilíada", que lhe parecia brutal, nem a "Odisseia", que ele achava frívola, mas encontrou muita coisa de admiração nos autores dramáticos. Sempre acabavam, no entanto, por voltar aos "Diálogos".
O inquisidor era um homem de sensibilidade delicada e encantou-o a graça, a piedade religiosa e a profundidade de Platão. Havia nas obras deste muita coisa que um cristão podia aprovar. Era pretexto para que ambos discutissem muitos assuntos sérios. Frei Blasco entrou assim num novo mundo. Sentia um singular deleite na leitura desses grandes livros que lhe proporcionavam um feliz repouso após as ocupações do dia. No seu longo e fecundo convívio com aquele homem que não parecia pertencer a este mundo concebera por ele uma espécie de afeição, e tudo que ouvia dizer do grego, da sua vida simples e honesta, da sua índole bondosa e da sua caridade, aumentava a admiração que lhe inspirava o seu carácter.
Foi um choque terrível para ele quando um holandês luterano, detido pelos familiares da Inquisição por introduzir na Espanha traduções do Novo Testamento, confessou no cavalete haver dado um exemplar ao grego. Prosseguindo o interrogatório, com a assistência de mais uma volta do arrocho, disse
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ter conversado amiúde com ele sobre religião, e que em muitos pontos estavam inteiramente de acordo. Isto era suficiente para que o Santo Ofício se visse obrigado a instaurar um inquérito que, como sempre, foi exaustivo e secreto. O grego foi conservado na ignorância de estar sob suspeita. Ao ler os autos finais do inquérito, frei Blasco ficou horrorizado. Nunca lhe passara pela cabeça que o grego, tão bom, tão humilde, não houvesse, durante os longos anos passados na Itália e depois na Espanha, abjurado as suas opiniões cismáticas e abraçado a fé católica de Roma. Testemunhas juraram ter-lhe ouvido emitir opiniões condenáveis. Demétrios negava que o Espírito Santo procedesse do Filho, rejeitava a supremacia do papa e, embora venerasse a Virgem:, não queria admitir a sua imaculada conceição. A dona da casa em que ele morava ouvira-lhe dizer que as indulgências não tinham valor algum e alguém mais testificou que ele não aceitava a doutrina romana do purgatório.
O colega de frei Blasco, Don Baltasar de Carmona, era doutor em direito e um rígido moralista - homenzinho descarnado, de narigão pontudo, lábios comprimidos, olhos pequenos e desinquietos. Sofria, de uma doença dos intestinos que lhe azedava o temperamento. O seu cargo dava-lhe um poder imenso, que ele exercia com selvagem prazer. Ao ter conhecimento desses factos condenatórios, insistiu em que se prendesse o grego. Frei Blasco fez o que pôde para salvá-lo. Alegou que, na qualidade de cismático, ele não era um herege, e portanto não caía sob a jurisdição do Santo Ofício. Mas não havia só o depoimento do luterano submetido à tortura: um calvinista francês, a quem aquele também incriminara, declarou que ouvira o grego emitir opiniões que cheiravam a protestantismo,
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e ao saber disto frei Blasco viu-se obrigado a cumprir o seu dever de ofício, por mais que tal coisa lhe custasse. Familiares foram buscar o velho a sua casa e levaram-no para o cárcere da Inquisição. Interrogaram-no e confessou-se francamente culpado do que lhe imputavam. Deram-lhe a oportunidade de abjurar as suas falsas crenças e converter-se ao catolicismo, mas com grande consternação de frei Blasco ele recusou fazê-lo. O delito era grave, mas como as provas não fossem concludentes quanto ao protestantismo, frei Blasco quis dar ao grego um ensejo de expiar o seu crime e insistiu junto ao seu colega, partidário de uma condenação imediata, a fim de que o submetessem à tortura, para induzi-lo à conversão e salvar-lhe a alma.
A lei exigia que ambos os inquisidores estivessem presentes à aplicação da tortura, com o representante do bispo diocesano e um notário para registar o ocorrido. Esse espectáculo nunca deixava de inspirar tal horror a frei Blasco que durante noites seguidas era atormentado por sonhos pavorosos.
Trouxeram o grego, desnudaram-lhe o torso e amarraram-no ao cavalete. O seu débil corpo de ancião estava ema-ciado. Rogaram-lhe solenemente que confessasse a verdade, pois os inquisidores não desejavam vê-lo sofrer. Permaneceu calado. Ataram-lhe as pernas aos lados do cavalete, passaram-lhe cordas em volta dos braços, das coxas e das pernas, e as extremidades daquelas foram presas a um arrocho - isto é, um pau mediante o qual podiam ser esticadas. O algoz deu uma vigorosa volta ao arrocho e o grego soltou um grito agudo; outra volta, e as cordas penetraram-lhe na pele e na carne, até aos ossos. Devido à sua idade avançada frei Blasco insistira em que não se dessem mais de quatro voltas, pois
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embora o máximo estabelecido fosse de seis ou sete, raramente se ia além de cinco, ainda quando se tratava de homens robustos. O grego suplicou que o matassem de uma vez e pusessem termo à sua agonia. Embora frei Blasco fosse obrigado a estar presente, não era obrigado a olhar. Mantinha os olhos cravados no chão de pedra, mas os gritos de dor retiniam-lhe nos ouvidos e atassalhavam-lhe os nervos. Aquela era a voz com que o seu amigo havia recitado as graves e nobres passagens de Sófocles; era a mesma voz com que, presa de uma emoção que a custo dominava, ele tinha lido o derradeiro discurso de Sócrates. Antes de cada volta do arrocho ordenava-se ao grego que confessasse a verdade, mas ele cerrava os dentes e não abria a boca. Quando o tiraram do cavalete não podia ter-se em pé e foi preciso carregá-lo de volta ao cárcere do Santo Ofício.
Embora nada houvesse confessado, condenaram-no com base nas suas confissões prévias. Frei Blasco ainda quis salvar-lhe a vida, mas Don Baltasar, o doutor em leis, objectou que ele era tão culpado quanto os outros luteranos condenados à fogueira. O representante do bispo e as demais autoridades a quem consultaram mostraram-se concordes com ele. Como o auto-de-fé só devesse realizar-se algumas semanas depois, frei Blasco teve tempo de escrever ao inquisidor-mor expondo-lhe o caso. O inquisidor-mor respondeu que não via motivo para alterar a decisão do tribunal. Frei Blasco nada mais podia fazer. Mas os gritos desesperados do velho continuavam a ecoar-lhe nos ouvidos e o sofrimento não lhe dava tréguas. Enviava-lhe conselheiros espirituais para tentar convertê-lo, pois embora já fosse impossível salvar-lhe a vida, o arrependimento permitiria que fosse garroteado, poupando-lhe
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assim o suplício da fogueira. Mas o grego mostrou-se contumaz. Apesar da tortura e da longa permanência no cárcere, o seu espírito continuava lúcido e activo. Aos argumentos dos frades respondia com outros argumentos tão subtis que aqueles se enfureciam.
Finalmente chegou a véspera do auto-de-fé. As anteriores solenidades da mesma espécie não haviam feito impressão em frei Blasco, pois os judaizantes relapsos, os mouros que persistiam nas suas práticas diabólicas, os protestantes, eram criminosos perante Deus e os homens, e, levando-se em conta a segurança da Igreja e do Estado, havia todas as razões para fazê-los sofrer. Mas ninguém sabia melhor do que ele quanto o grego era bom, compassivo e prestativo aos necessitados. Apesar da autoridade do seu colega, homem cruel, de alma seca e fria, ele punha em dúvida a legalidade do pavoroso castigo. Tinham trocado palavras acres e Don Baltasar acusara-o de favorecer o criminoso por ser seu amigo. No íntimo, frei Blasco sabia existir pelo menos um fundo de verdade nessa imputação: se ele nunca houvesse encontrado o grego, teria aceite a sentença sem protesto. Já não lhe podia salvar a vida, mas ainda podia salvar a sua alma. Os frades a quem tinha enviado para convencê-lo do seu erro não possuíam a habilidade necessária para tratar com um homem tão instruído. Uma hora antes de romper o dia foi ao cárcere da Inquisição e pediu que o conduzissem à cela do grego. Os dois frades estavam-no ajudando a passar essa última noite na Terra. Frei Blasco mandou-os sair.
- Ele não quis ouvir as nossas exortações - disse um deles.
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Um sorriso bailou nos lábios do grego ao vê-los deixar a cela.
- Sem dúvida alguma, os seus frades são pessoas muito dignas, senhor. Mas não têm grande inteligência.
Estava calmo e, conquanto velho e alquebrado, mantinha uma aparência de dignidade.
- Vossa Reverência há-de perdoar-me se fico na cama. A tortura deixou-me muito fraco e desejo conservar as forças para as cerimónias de hoje.
- Não percamos o tempo em falas ociosas. Dentro de poucas horas você terá de enfrentar um horrível destino. Sabe Deus que eu de bom grado daria dez anos da minha vida para o salvar. As provas eram condenatórias e eu faltaria ao meu juramento se deixasse de cumprir o meu dever.
- Eu jamais desejaria que o senhor fizesse tal coisa.
- Já não lhe posso salvar a vida, mas se consentir em retractar-se e aceitar a conversão, poderei ao menos poupar-lhe o tormento das chamas. Eu estimava-o, Demétrios, e nunca poderei saldar a minha dívida para consigo a não ser salvando a sua alma imortal. Esses frades são ignorantes e tacanhos. Vim aqui fazer uma última tentativa desesperada de convencê-lo do seu erro.
- Perderia o seu tempo, senhor. Nós lhe daríamos muito melhor emprego se conversássemos, como tantas vezes fizemos, sobre a morte de Sócrates. Não me permitiram trazer livros para este calabouço, mas possuo boa memória e tenho encontrado alívio em repetir a mim mesmo aquele discurso em que ele fala com tanta nobreza sobre a alma.
- Não estou a ordenar-lhe agora, Demétrios, estou a suplicar-lhe que me ouça.
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- Não posso negar-lhe esse último acto de cortesia.
Em tom grave, ponto por ponto, com cultura e discrição, o inquisidor expôs os argumentos imaginados pela Igreja para justificar as suas pretensões e refutar as opiniões de hereges e cismáticos. Estava habituado a discutir tais assuntos e expressou-se com habilidade e uma impressionante convicção.
- Eu não merecia muito respeito se, pelo receio de uma morte horrível, fingisse aceitar crenças que considero erróneas - disse o grego depois de ele terminar.
- Não é isso que eu lhe peço. Peço-lhe que creia na verdade com todo o seu coração.
- "Que é a verdade?" perguntou Pôncio Pilatos. É tão impossível ao homem forçar a sua crença como é impossível subjugar as vagas do oceano quando açoitado pela borrasca. Agradeço a Vossa Reverência a bondade de que me dá prova, e esteja certo de que não lhe guardo rancor pelo infortúnio que me aconteceu. O senhor agiu de acordo com a sua consciência e nenhum homem pode fazer mais do que isso. Eu já estou velho e pouca diferença faz que morra hoje ou daqui a um ou dois anos. Só tenho um pedido para lhe fazer. Não abandone, por eu ter desaparecido, os seus estudos da sublime literatura da Grécia antiga. Ela não deixará de ampliar-lhe o espírito e enobrecer-lhe o pensamento.
- Não teme a justa vingança do Senhor contra a sua contumaz obstinação?
- O Senhor possui muitos nomes e uma infinidade de atributos. Tem sido chamado Jeová, Zeus e Brama. Que importância tem o nome que Lhe damos? Mas entre os seus atributos infinitos o principal, como bem o percebeu Sócrates, ainda que pagão, é a justiça. Ele deve saber que o homem
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não acredita naquilo que quer, mas no que pode, e eu não Lhe farei a suma injustiça de supor que Ele condene as suas criaturas por uma coisa de que não são culpadas. Vossa Reverência não me julgue desrespeitoso se lhe peço que me deixe agora a sós com os meus pensamentos.
- Não posso deixá-lo assim. Devo esforçar-me até ao fim para salvar a sua alma imortal das chamas furiosas do Inferno. Diga uma palavra que me dê a esperança de poder salvá-lo ainda. Uma palavra para mostrar que você não continua impenitente, para que eu possa ao menos mitigar o seu castigo aqui na Terra.
O grego sorriu, e é possível que houvesse um toque de ironia nesse sorriso.
- O senhor desempenhará o seu papel, e eu o meu. O seu papel é matar, o meu é morrer sem tremer.
As lágrimas cegaram o inquisidor, que encontrou a custo o caminho da saída.
O bispo referiu este episódio aos frades numa voz embargada, e ao chegar a este ponto cobriu o rosto com as mãos, como se não pudesse suportar a vergonha de contar o resto. Eles escutavam-no compungidos, mas com uma atenção empolgada, e padre António anotava cuidadosamente, na sua memória, cada fala e cada resposta, a fim de registá-las no seu livro.
- Fiz então uma coisa horrível. Don Baltasar estava de cama e eu sabia que ele não se levantaria senão no último momento, pois tinha um medo mortal de que a doença o impedisse de assistir ao auto-de-fé. É um homem ambicioso e queria fazer-se notar pelo príncipe. Eu tinha, pois, liberdade de agir como entendesse. Não podia suportar a ideia
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de ver aquele pobre velho ser devorado pelas chamas cruéis. Ainda me ressoavam ao ouvido os seus gritos ao ser torturado e parecia-me que não cessaria de ouvi-los durante toda a minha vida. Disse às pessoas a quem isso interessava que tinha falado pessoalmente com ele e ele se retractara a ponto de admitir a dupla processão do Espírito Santo. Dei ordem para que o garroteassem antes de queimá-lo e mandei dinheiro por um criado ao algoz para que o despachasse depressa.
Convém explicar que o algoz podia prolongar durante horas a agonia da vítima, apertando-lhe e afrouxando-lhe alternativamente o colar de ferro em torno do pescoço, de modo que era preciso pagar-lhe para dar morte rápida ao infeliz.
- Não ignorava que isso era um pecado. O pesar desvairou-me e mal sabia o que estava a fazer. Foi um pecado que jamais deixarei de censurar a mim mesmo. Disse-o ao meu confessor e cumpri a penitência que ele me impôs. Recebi a absolvição, mas não posso absolver a mim mesmo, e o que sucedeu hoje é o meu castigo.
- Mas, meu senhor, isso foi um acto de compaixão! - obtemperou padre António. - Qual é aquele que, tendo trabalhado consigo tantos anos como eu trabalhei, não conhece a bondade do seu coração, e quem pode censurar-lhe o ter permitido uma vez que essa bondade suplantasse o seu sentimento de justiça?
- Não foi um acto de compaixão. Quem pode afirmar que o grego não ficara abalado pelos meus argumentos e quem sabe se, quando as chamas lhe lambessem a carne, a graça do Senhor não lhe seria concedida, levando-lhe o espírito obstinado a renegar os seus erros? Muitos homens, nesse derradeiro e terrível momento em que estão prestes a encontrar o seu Criador,
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salvaram assim as suas almas. Eu tirei-lhe esse ensejo e com isso o condenei aos tormentos eternos.
Um soluço rouco escapou-se-lhe da garganta - um som que semelhava o grito estrangulado, misterioso, de alguma ave nocturna no tenebroso silêncio da floresta.
- Os tormentos eternos! Quem pode imaginar tal sofrimento? Os réprobos estorcem-se num lago de fogo de onde se desprendem vapores deletérios que eles respiram cheios de angústia. Têm o corpo inçado de vermes. Uma fome e uma sede desesperadas torturam-nos. Chamuscados pelas chamas, os seus gritos formam um tumulto e uma confusão em face dos quais o ribombar do trovão e os bramidos do mar fustigado pela borrasca representam um silêncio mortal. Demónios de medonha aparência zombam e escarnecem deles, batem-lhes com um furor incansável, mais o remorso dilacerados com uma dor mais cruel do que as torturas desses hediondos diabos. O verme da consciência rói-lhes as entranhas. O fogo crucifica-lhes as almas, e comparado com ele o fogo aqui da terra é como o fogo que vemos num quadro, pois é a cólera do Senhor que o ateia e o alimenta, como instrumento terrível da Sua justa vingança por toda a eternidade.
"E a eternidade, como é terrível a eternidade! Tantos milhões de anos passam sobre os réprobos quantas são as gotas de água que têm caído sobre a terra desde o início dos tempos; tantos milhões de anos quantas são as gotas de água de todos os mares e rios do mundo; tantos milhões de anos quantas são as folhas de todas as árvores que existem e quantos são os grãos de areia de todas as praias do oceano; tantos milhões de anos quantas são as lágrimas que os homens têm derramado desde que Deus criou os nossos primeiros pais.
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volvido esse número incalculável de anos, a angústia dessas infelizes criaturas prosseguirá como se apenas houvesse começado, como se fosse ainda o primeiro dia; e a eternidade permanecerá inteira à sua frente, como se nem um segundo houvesse passado. E foi a essa eternidade de sofrimento que eu condenei aquele desgraçado. Que castigo pode reparar um mal tão grande? Oh! tenho medo, tenho medo..."
Estava desesperado. Profundos soluços sacudiam-lhe o peito. Encarava os dois frades com olhos escuros de" terror, e ao fixarem-se messes olhos notaram-lhes no fundo um clarão vermelho, como se visse reflectidas neles, de muito longe, as chamas rubras do Inferno.
- Mandem reunir os monges. Confessar-lhes-ei o meu pecado e, pela salvação da minha alma, ordenar-lhes-ei que me apliquem a disciplina circular.
Era um castigo degradante em que todos os presentes usavam o açoite contra o culpado. Padre António, aterrado, caiu de joelhos e, juntando as mãos como numa prece, implorou ao seu mestre que não insistisse em submeter-se a tão terrível provação.
- Nossos confrades não o vêem com bons olhos, meu senhor, estão furiosos porque Vossa Excelência não os deixou ir à igreja esta manhã. Não o pouparão. Vão açoitá-lo com toda a força. Muitos monges têm morrido sob as suas vergastadas.
- Não quero que me poupem. Se eu morrer, ter-se-á feito justiça. Ordeno-lhe, em nome do seu voto de obediência, que faça o que lhe digo.
O frade pôs-se em pé.
- Vossa Excelência não tem o direito de expor-se
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a tamanha afronta. É bispo de Segóvia. Vai lançar um labéu sobre todo o episcopado da Espanha. Vai diminuir a autoridade de todos aqueles que Deus escolheu para essa alta posição. Tem a certeza de que não há nenhuma ostentação nessa vergonha a que pretende expor-se?
Jamais ousara falar nesse tom peremptório ao seu pai em Deus. O bispo ficou surpreendido. Haveria realmente uma sombra de vanglória no seu desejo de humilhar-se assim em público? Deu um longo olhar ao frade.
- Não sei - disse afinal, lastimavelmente. - Sou como um homem que anda aos tropeções por uma terra desconhecida, nas trevas da noite. Talvez você tenha razão. Eu só pensava em mim, não pensei no efeito que isso produziria nos outros.
Padre António deu um suspiro de alívio.
- Vocês dois aplicar-me-ão a disciplina aqui, em particular.
- Não, não! Não faço isso. Sou incapaz de maltratar o seu sagrado corpo.
- É preciso então lembrar-lhe os seus votos? - perguntou o bispo com a sua velha severidade. - Você tem-me tão pouca estima que hesita em me infligir um castigo insignificante a bem da minha alma? Há açoites debaixo da cama.
Confrangido e em silêncio, o frade foi buscá-los. Estavam manchados de sangue. O bispo despiu a parte superior do hábito, que lhe caiu em volta da cintura. Tirou então a camisa: era feita de lata e perfurada como um ralador, para poder lacerar a carne. Padre António sabia que o bispo usava um cilício de crina - não sempre, pois isso faria com que se acostumasse a ele, mas apenas o número suficiente de vezes
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para que o tormento se renovasse constantemente. Susteve a respiração ao ver aquela horrível camisa de lata, mas ao mesmo tempo sentiu-se edificado. Aquele homem era na verdade um santo. Não deixaria de registar essa particularidade no seu livro. O dorso do bispo mostrava as cicatrizes dos açoites que ele aplicava a si mesmo pelo menos uma vez por semana, e havia chagas abertas que supuravam.
Abraçou-se à fina coluna que sustentava os dois arcos divisórios dos seus aposentos e ofereceu as costas aos dois frades. Cada um deles apanhou em silêncio um açoite e golpeou a carne sangrenta. A cada vergastada o bispo estremecia, mas nem um gemido lhe escapou dos lábios. Não lhe tinham dado mais de uma dúzia de açoites quando ele caiu desmaiado. Levantaram-no e carregaram-no para a cama dura. Jogaram-lhe água em cima, mas como o bispo não recobrasse os sentidos assustaram-se. Padre António disse ao seu colega que mandasse um irmão leigo ir depressa chamar um médico, pois o bispo estava doente, mas ao mesmo tempo recomendou-lhe que avisasse os monges que não deviam incomodá-lo em hipótese alguma. Banhou-lhe as costas laceradas e tomou-lhe ansiosamente o pulso, que vacilava. A princípio julgou que o bispo estivesse à morte. Mas afinal Don Blasco abriu os olhos. Foram precisos alguns instantes para que recobrasse o uso das suas faculdades. Forçou então um sorriso.
- Pobre criatura que eu sou! Desmaiei...
- Não fale, meu senhor. Fique tranquilo. Mas o bispo ergueu-se num dos cotovelos.
- Dê-me a minha camisa.
Padre António olhou com um arrepio para aquele instrumento de tortura.
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- Oh! meu senhor! Não poderia suportá-la agora.
- Dê-ma.
- O médico vem aí. Não lhe conviria ser visto por ele a usar um instrumento de suplício.
O bispo deixou-se cair novamente na dura enxerga.
- Dê-me a minha Cruz - pediu ele.
Afinal chegou o médico, que mandou o doente permanecer na cama e prometeu mandar um remédio. Era um sedativo e dentro em pouco o bispo adormecia.


XVI.

No dia seguinte insistiu em levantar-se. Disse a sua missa. Embora débil e abalado, estava calmo e mergulhou no trabalho como se nada houvesse acontecido.
Pela tarde um irmão leigo veio comunicar-lhe que seu mano Don Manuel estava na sala de visitas e desejava falar-lhe. Supondo que ele tivesse sido informado da sua doença, mandou dizer que lhe ficava agradecido pela visita, mas assuntos urgentes o impediam de recebê-lo. O irmão leigo voltou dizendo que Don Manuel recusava ir embora enquanto o bispo não o recebesse, pois tinha uma comunicação importante para lhe fazer. O bispo soltou um suspiro e disse ao irmão leigo que o mandasse entrar. Desde a chegada a Castel Rodríguez não lhe tinha falado senão nas ocasiões exigidas pela cortesia. Embora censurasse a si próprio a sua falta de caridade, não podia dominar a antipatia que lhe inspirava esse homem vaidoso, brutal e empedernido.
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Don Manuel entrou sumptuosamente trajado, pletórico, ressumbrando saúde e vitalidade agressiva. Caminhava com um ar arrogante. Tinha no rosto uma expressão satisfeita e o bispo julgou notar-lhe malícia e astúcia nos olhos brilhantes e ousados. Teve um sorriso frio ao correr os olhos pela cela nua e austera. O bispo indicou-lhe um tamborete.
- Não tens um assento mais cómodo para me oferecer, mano?
- Não.
- Disseram-me que estavas doente.
- Foi uma indisposição passageira e sem importância. Já voltei ao meu estado normal de saúde.
- Estimo.
Houve um silêncio. Don Manuel continuava a encará-lo com um sorriso levemente zombeteiro.
- Disseste que tinhas uma comunicação para me fazer - falou o bispo afinal.
- E tenho, mano. Parece que a cerimónia de ontem de manhã não correspondeu às tuas esperanças.
- Faze-me o favor de dizer a que vens, Manuel.
- Que te fez pensar que eras tu o instrumento escolhido para curar essa rapariga da sua enfermidade?
O bispo hesitou. O seu primeiro impulso foi não dar resposta, mas, mortificando-se diante daquele homem grosseiro e vulgar, respondeu.
- Garantiram-me que a rapariga tinha falado a verdade e, embora me julgasse indigno, senti-me na obrigação de fazer o que me era solicitado.
- Cometeste um erro, mano. Devias tê-la interrogado mais cuidadosamente. A Santíssima Virgem disse-lhe que o filho
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de Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la. Porque tiraste logo a conclusão de que a Virgem se referia a ti? Não achas que te faltou um pouco de humildade cristã?
O bispo empalideceu.
- Que queres dizer? - exclamou ele. - Segundo ela me informou, Nossa Senhora tinha-lhe dito que era eu.
- É uma rapariga tola e ignorante. Supôs que a pessoa designada fosses tu, porque és bispo e, não sei porquê, o povo desta cidade tem ouvido falar muito da tua santidade e das tuas mortificações.
O bispo fez uma breve oração mental para poder dominar a cólera e a vergonha que lhe causavam as palavras do irmão.
- Como sabes disso? Quem te disse que as palavras da Santíssima Virgem foram essas?
Dom Manuel espirrou uma risada. Aquilo parecia-lhe uma óptima pilhéria.
- Vim a saber que a rapariga tem um tio chamado Domingo. Nós conhecemo-lo em pequenos. Se bem me lembro, estiveste no seminário com ele.
O bispo inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
- Domingo Pérez é um borracho,. Costuma ir a uma taberna frequentada pelos meus criados e fez amizade com eles, sem dúvida esperando que lhe pagassem a bebida. A noite passada tomou um pifão. Como era natural, todos falavam dos acontecimentos da manhã, pois o teu fiasco, mano, é assunto de todas as conversas. Domingo disse-lhes que não esperava outra coisa e tinha procurado prevenir-te, mas não o quiseram receber no convento. Repetiu então exactamente
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as palavras que a Virgem tinha pronunciado, conforme lhe foram repetidas pela sobrinha.
O bispo estava confuso. Não sabia o que dizer. Don Manuel continuou a falar, já com uma expressão de franca zombaria no olhar. O bispo perguntava consigo, lastimosamente, que espécie de homem seria aquele, que podia encontrar um prazer tão cruel em humilhar assim o próprio irmão.
- Não te passou pela cabeça, mano, que ela pudesse referir-se a mim?
- A ti?
O bispo mal podia dar crédito aos seus ouvidos. Se fosse capaz de rir, teria rido nessa ocasião.
- Isso surpreende-te, mano? Durante vinte e quatro anos tenho servido o meu rei. Arrisquei a minha vida uma centena de vezes, bati-me em batalhas gloriosas e o meu corpo traz cicatrizes dos mais honrosos ferimentos. Tenho sofrido fome e sede, o frio rigoroso daqueles malditos Países Baixos e o tórrido calor do Verão. Tu queimaste algumas dúzias de hereges na fogueira enquanto eu, para glória do Senhor, matei milhares desses hereges. Para glória de Deus, assolei-lhes os campos e queimei-lhes as searas. Assediei cidades prósperas e, quando se renderam, passei a fio de espada todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças.
O bispo estremeceu.
- O Santo Ofício só condena os acusados de acordo com as normas do processo judicial. Dá-lhes o ensejo de arrependerem-se e expiarem os seus pecados. Tem o maior cuidado em fazer justiça e, se castiga os culpados, também absolve os inocentes.
- Eu conheço de mais esses holandeses para crer que sejam capazes de arrependimento. Eles têm a heresia no sangue.
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São traidores à sua fé e ao seu rei e merecem a morte. Ninguém que me conheça pode negar que eu tenha servido bem ao Senhor.
O bispo pôs-se a reflectir. A brutalidade e a vanglória do irmão enchiam-no de asco. Parecia incrível que Deus pudesse escolher semelhante instrumento para a Sua obra, e no entanto podia ser que Ele o tivesse feito justamente por ser Manuel quem era, a fim de cobri-lo de vergonha, a ele, Blasco de Valero, por causa do seu pecado que não fora perdoado. Nesse caso, cumpria-lhe baixar a cabeça e aceitar a humilhação.
- Deus sabe que eu tenho consciência da minha indignidade - disse ele por fim. - Se fizesses essa tentativa e fosses mal sucedido, causarias um escândalo na cidade e darias um cruel ensejo aos maldosos para escarnecerem. Suplico-te que não faças nada precipitadamente; é um assunto que exige cuidadosa reflexão.
- Já reflectimos bastante, mano - volveu tranquilamente Don Manuel. - Consultei os meus amigos, que são as pessoas mais importantes da cidade. Pedi a opinião do arcipreste e do prior deste convento. Todos eles estão de acordo comigo.
O bispo tornou a fazer uma pausa. Sabia existir na cidade muita gente que invejava as posições conquistadas por ele e pelo irmão, porque, embora fidalgo de nascença, eram uma família de pouca monta. Bem podia ser que tivessem consentido na absurda pretensão de Don Manuel a fim de lançar descrédito sobre ambos.
- Não deves esquecer a possibilidade de que essa rapariga tenha sido iludida.
- Isso é o que vamos ver. Se eu fracassar, ficará provado
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que a rapariga é uma feiticeira e deve ser entregue à Inquisição para que a) julguem e castiguem.
- Se obtiveste o consentimento das autoridades municipais e estás resolvido a fazer a tentativa, não tenho o poder de impedir-te. Mas peço-te que faças tudo com o maior sigilo possível, para impedir um escândalo ainda maior que o que já tivemos.
- Agradeço-te o conselho, mano. Dar-lhe-ei a atenção que ele merece.
Com estas palavras, Don Manuel retirou-se. O bispo deu um profundo suspiro. Parecia-lhe que a sua taça de amargura se tinha enchido até às bordas. Ajoelhou-se diante da Cruz negra pregada à parede e orou em silêncio. Depois chamou um irmão leigo e mandou que fosse buscar Domingo Pérez.
- Se não o achar em casa, hão-de encontrá-lo na taberna próxima ao palácio em que está hospedado meu irmão, Don Manuel. Peça-lhe que me faça o favor de vir cá sem demora.


XVII.

Pouco depois o irmão leigo introduzia Domingo no oratório do bispo. Os dois homens encararam-se silenciosamente durante algum tempo. Não se encontravam desde quando haviam estudado juntos no seminário de Alcalá de Henares, ainda jovens e pouco mais que meninos. Ambos estavam já idosos, emaciados e devastados pelos anos. Mas a um tinham devastado a austeridade, as longas vigílias, os jejuns e o trabalho
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constante, enquanto o outro fora gasto pela bebida e pela dissipação. Todavia), se alguma semelhança havia na sua aparência, nenhuma tinham na expressão: a do bispo era atribulada e ansiosa, ao passo que a do escrevinhador era despreocupada e bem-humorada. Como clérigo das ordens menores, vestia batina, e esta estava coçada, esverdeada pelo longo uso e coberta, na frente, de nódoas de vinho e de gordura. Ambos, porém, tinham um ar de ascetismo e distinção intelectual.
- Vossa Excelência exprimiu o desejo de falar comigo - disse Domingo.
Um débil mas terno sorriso esboçou-se nos lábios pálidos do bispo.
- Há muito tempo que não nos vemos, Domingo.
- Os nossos caminhos têm-se distanciado muito. Eu cuidava que Vossa Excelência houvesse esquecido há muito a existência de uma criatura tão mesquinha e indigna como Domingo Pérez.
- Nós conhecemo-nos durante toda a vida. Envergonho-me de me ver tratado por ti com tanta cerimónia. Há muitos anos que não ouço um amigo chamar-me Blasco.
Domingo dirigiu-lhe o seu sorriso encantador, que tinha o dom de desarmar.
- Os grandes não têm amigos, meu querido Blasco. Esse é o preço que eles têm de pagar pela sua grandeza.
- Esqueçamos por uma hora esta minha lamentável grandeza e conversemos como os velhos e íntimos camaradas que fomos. Estavas enganado ao pensar que eu te houvesse esquecido. Tivemos demasiadas coisas em comum para que isso fosse possível. Eu mantinha-me informado da tua existência.
- Ela não tem sido muito edificante.
O bispo sentou-se num mocho e fez sinal a Domingo para que tomasse o outro.
- Mais ainda, mantive-me em contacto contigo através das tuas cartas.
- Como pode ser isso?... Eu nunca te escrevi...
- Não da tua própria parte, mas quando éramos rapazes li tantas poesias tuas que fiquei conhecendo muito bem a tua letra. Julgas que eu não a reconhecia nas cartas que meu pai e meu irmão Martin me enviavam? Sabia perfeitamente que eles eram incapazes de expressar-se com tanta elegância e propriedade. Além disso, havia certos modos de dizer, certos torneios de frase e certas reflexões em que eu reconhecia logo o teu espírito travesso.
Domingo riu suavemente.
- Não são muito notáveis os dotes literários de Don Juan e de teu irmão Martin. Depois de dizerem que gozavam saúde, que esperavam que o mesmo se desse contigo e que a colheita tinha sido minguada, não lhes restava mais nada que dizer. Tanto a bem do meu crédito como deles, eu sentia-me na obrigação de avivar essas secas informações com os mexericos da cidade e as agudezas e gracejos irreverentes que me ocorressem no momento.
- Como é lamentável que tenhas malbaratado os teus grandes talentos, Domingo! As coisas que eu tinha de aprender à força de aplicação e diligência, tu adquiria-las como que por intuição. Muitas vezes eu aterrava-me diante da audácia do teu pensamento, dessa abundância de ideias inesperadas que pareciam fluir do teu cérebro com tão pouco esforço como a água que jorra de uma fonte, mas nunca duvidei da tua inteligência. Tu nasceste para brilhar e, se não fosse a tua índole
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irrequieta, serias hoje um luzido armamento da nossa Santa Madre Igreja.
- Ao invés disso - volveu Domingo - , não passo de um pobre letrado, um dramaturgo que não encontra actores para lhe representarem as peças, um literato de aluguel que escreve sermões para padres estúpidos e incapazes de fazê-lo por si, um beberrão sem préstimo. Faltava-me a vocação, meu bom Blasco. A vida fascinava-me. O meu lugar não era nem no claustro nem no lar, mas na estrada real com as suas aventuras e perigos, os seus encontros fortuitos e a sua múltipla variedade. Vivi. Curti fome e sede, criei chagas nos pés, levei bordoada, sofri todos os infortúnios que podem caber em sorte a um homem: em suma, vivi. E mesmo agora que a velhice vai tomando conta de mim, não lamento os anos que desperdicei, pois eu também dormi no Parnaso; e quando vou a uma aldeia distante escrever uma carta para algum lapuz analfabeto, ou quando estou sentado no meu quarto, rodeado pelos meus livros, rimando falas em dramas que jamais serão levados à cena, sinto tamanha exultação que não trocaria de lugar com um cardeal ou mesmo com um papa.
- Não receias a cólera futura do Senhor? O estipêndio do pecado é a morte.
- É o bispo de Segóvia que me faz esta pergunta, ou o meu velho e estimado amigo Blasco de Valero?
- Até hoje não traí nenhum amigo ou inimigo. Enquanto não disseres nada que seja ofensivo à Fé, podes dizer o que quiseres.
- Então será esta a minha resposta: Nós sabemos que os atributos de Deus são infinitos, e sempre achei estranho que ninguém lhe tenha jamais atribuído um pouco de senso comum.
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É difícil acreditar que Ele tivesse criado um mundo tão belo sem desejar que os homens se deleitassem nele. Teria Ele dado às estrelas o seu esplendor, aos pássaros o seu canto mavioso e às flores o seu perfume, se não devêssemos sentir prazer nessas coisas? Eu pequei perante os homens e os homens condenaram-me por isso. Deus fez-me homem, com as paixões de um homem, e ter-me-ia Ele dado essas paixões unicamente para que eu as reprimisse? Foi Ele que me deu este espírito aventuroso e este amor à vida. Espero humildemente que, quando eu me encontrar face a face com o meu Criador, Ele se condoa das minhas imperfeições e me olhe com clemência. O bispo parecia profundamente perturbado. Podia responder ao pobre poeta que nós fomos postos na Terra para desprezar os seus deleites, resistir à tentação, vencer a nós mesmos e carregar a nossa cruz - para que no fim, embora não passemos de miseráveis pecadores, possamos ser considerados dignos da comunhão dos santos. Mas de que serviriam as suas palavras? Nada podia fazer senão rezar para que, antes de vir buscá-lo a morte, a graça de Deus descesse sobre o infortunado homem e ele se arrependesse das suas más acções. Fez-se um silêncio entre ambos.
- Não te mandei chamar para fazer com que te corrigisses - disse o bispo por fim. - Não me seria difícil refutar as tuas opiniões erróneas, mas sei de longa data o quanto és engenhoso em fazer parecer plausíveis os piores argumentos, e conheço também o prazer que sentes em irritar os demais com sofismas. Quero crer que grande parte do que disseste foi dito apenas com o fim de te divertires à minha custa. Tens uma sobrinha.
- Tenho.
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- Qual é a tua opinião sobre essa história que alvoroçou toda a cidade?
- Ela é uma menina virtuosa e verídica. É boa católica, mas não exageradamente religiosa.
- Bem creio nisso, pois estou informado de que ela foi educada por ti.
- Também não é dada a devaneios ociosos. É até, como não podem deixar de ser os pobres, um tanto prosaica. Ninguém poderia acusá-la de possuir a inditosa faculdade da imaginação.
- Acreditas, então, que a Santíssima Virgem lhe tenha aparecido realmente?
- Estive em dúvida até ontem, quando ela me referiu os termos exactos que a Virgem havia empregado. Então convenci-me, e foi por isso que quis falar contigo. Percebi logo qual era a pessoa indicada e quis poupar-te uma intervenção inútil. Mas não me deixaram entrar.
O bispo suspirou.
- Uma das cruzes que temos de carregar, e não a menor delas, é que os nossos companheiros de labutas, na sua solicitude para connosco, impedem que cheguem até nós aqueles a quem seria proveitoso recebermos.
- O tempo não embotou a afeição que me ligava a ti na mocidade, pois, como vês, eu, um pecador, posso dar-me ao luxo de ceder aos cegos impulsos do coração. Queria poupar-te uma humilhação que não podia deixar de ser-te muito amarga. Logo que a rapariga me repetiu as palavras exactas da Virgem Santíssima, eu percebi quem era a pessoa designada para curá-la da sua enfermidade.
- Ela disse-me que Nossa Senhora me tinha designado.
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- Foi um engano natural numa menina que conhecia as tuas mortificações, a tua virtude e austeridade. A Santíssima Virgem disse-lhe que o poder de curá-la estava nas mãos daquele entre os filhos de teu pai que melhor tem servido a Deus.
- Só há pouco vim a saber disso.
- Não sabes então a quem a Virgem se referia? É claro como água da fonte.
O bispo empalideceu e lançou um olhar ansioso a Domingo.
- Meu mano Martin?
- O padeiro.
Gotas de suor cobraram a fronte do bispo. Estremeceu como se alguém lhe pisasse na sepultura.
- Isso é impossível. Ele é sem dúvida um homem de bem, mas completamemte mundano.
- Impossível, por quê? Porque ele não tem instrução? Um dos mistérios da nossa Fé é que o Senhor, que deu a razão ao homem, elevando-o desse modo acima dos brutos, nunca deu, ao que saibamos, grande valor à inteligência. Teu irmão é um homem bom e simples. Tem sido um marido fiel e um pai amoroso. Tem honrado pai e mãe, dando-lhes de comer quando tinham fome e cuidando deles quando estavam doentes. Aguentou submisso o desprezo do pai e a aflição da mãe porque ele, um fidalgo de nascença, adoptou um ofício que o rebaixava na estima dos tolos. Suportou com bom humor o desdém da nobreza e as zombarias do vulgo. Como nosso pai Adão, ganha o seu pão com o suor do seu rosto, sentindo um modesto desvanecimento em saber que o pão que faz é bom. Aceita com gratidão as alegrias da vida e com resignação
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os seus pêsames. Tem socorrido os necessitados. É um homem de trato ameno e sempre bem disposto. Mostra-se amigo de todos. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis e é bem possível que aos olhos divinos, pela sua vida diligente e honesta, a sua inocente alegria, Martim o padeiro O tenha servido melhor do que tu, que buscas a salvação nas orações e na penitência, ou teu irmão Manuel, que faz glória das mulheres e crianças que trucidou e das cidades prósperas que reduziu a desoladas ruínas.
O bispo passou a mão pesadamente pela testa. O seu rosto tinha uma expressão de angústia.
- Tu conheces-me de mais, Domingo - disse ele em voz trémula - , para julgar que eu me tenha abalançado a fazer aquilo sem um ansioso exame de consciência. Eu sabia ser indigno e a minha alma estava aterrada, mas tomei o sinal que me foi concedido por uma ordem de executar aquilo que eu acreditava ser a vontade do Senhor. Enganei-me. E agora meu irmão Manuel está resolvido a tentar aquilo em cuja realização falhei.
- Já em pequeno ele se fazia notar mais pela força corporal do que pelo vigor do entendimento.
- É tão teimoso quanto errado. Os notáveis da cidade estão a animá-lo na sua pretensão para poderem metê-lo à chacota depois. Conseguiu a aprovação do arcipreste e do prior deste convento.
- Deves impedi-lo a todo o custo.
- Não tenho autoridade para tanto.
- Se teu irmão se obstinar nessa loucura, quererá vingar-se da sua decepção naquela infeliz rapariga. O povo tomará o partido dele e não terá compaixão. Em nome da nossa velha
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amizade, suplico-te que a protejas contra a hostilidade e a cega violência do povo.
- Pela Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor, juro-te que darei a minha vida, se preciso for, para salvar a menina de todo o perigo.
Domingo pôs-se em pé.
- Agradeço-te de todo o coração. Adeus, meu caro. Os nossos caminhos são diferentes e não tornaremos a encontrar-nos. Adeus para sempre.
- Adeus. Oh! Domingo, sou um homem bem infeliz! Ora por mim, pede a Deus em todas as tuas orações que me conceda a graça de livrar-me do cruel fardo desta existência.
Estava tão perturbado e tinha uma expressão tão lastimosa que o velho beberrão se compadeceu dele. Levado por um impulso repentino, abraçou o bispo e beijou-o nas duas faces. O pecador estreitou o santo contra o peito e logo se retirou.


XVIII.

Nessa noite aconteceu um facto muito estranho. A lua cheia, prosseguindo na sua rota predeterminada, tinha um brilho tão deslumbrante que o céu límpido estava azul como o manto de veludo que cobria as vestes brancas da Virgem Maria. Os habitantes de Castel Rodríguez dormiam. De repente, todos os sinos da cidade se puseram a badalar com um clamor capaz de ressuscitar os mortos. Despertou os adormecidos e alguns precipitaram-se para as janelas, enquanto outros, semidespidos, apanhando as suas roupas à passagem, corriam para a rua.
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Esse badalar de sinos a uma hora tão insólita significava que o fogo havia irrompido nalguma parte da cidade e as tímidas donas de casa trataram de reunir os seus objectos de valor, pois quando se declarava um incêndio ninguém podia prever até onde se alastraria, e era de bom aviso pôr a salvo tudo quanto se podia antes que as chamas atingissem a casa. Tomados de pânico, alguns foram ao ponto de atirar as roupas de cama pelas janelas e outros começaram a carregar os móveis para fora, depositando-os diante das suas portas.
Os moradores escoavam-se para as ruas, que ficaram regurgitamtes. Levados por um impulso comum, aglomeraram-se na grande praça que constituía o orgulho do lugar. Cada qual perguntava ao seu vizinho onde era o incêndio. Os homens praguejavam e as mulheres torciam as mãos. Corriam de um lado para outro à procura das casas que ardiam. Erguiam os olhos para o céu, buscando o clarão denunciador que devia assinalar o lugar do sinistro. Não se avistava coisa nenhuma. As pessoas que desembocavam na praça, vindas dos diversos quarteirões da cidade, afirmavam que no seu bairro não havia incêndio. Não havia incêndio em parte alguma. Então, como se um vento houvesse soprado de súbito no meio deles, todos tiveram ao mesmo tempo a ideia de que alguns peraltas se estavam divertindo a bater os sinos para fazer o povo sair da cama e meter-lhe medo. Homens furiosos, decididos a moê-los com pancadas, arremessaram-se para as torres das igrejas. Aguardava-os ali um espectáculo pasmoso. As cordas dos sinos esticavam-se e distendiam-se sem que ninguém as puxasse. Contemplaram-nas por um momento, cheios de assombro; depois, carregando tochas e lanternas, subiram a correr as íngremes escadas das torres. Ao alcançarem os campanários,
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o clamor ensurdeceu-os. Os sinos sacudiam-se de um lado para outro muma furiosa oscilação e os badalos atroavam-lhes nos flancos de bronze. Não havia ninguém ali. Homem algum seria capaz de tirar tão violento estrépito daqueles pesados sinos. Dir-se-ia que estes haviam enlouquecido de repente. Tangiam sozinhos.
Anelantes, com o terror nos corações, despenhando-se pelas escadas como se levassem o Diabo nos calcanhares, correram para as ruas e, com palavras doidas e gestos desvairados, contaram o que tinham visto.
Tratava-se de um milagre. Era o Senhor que fazia tanger os sinos, e ninguém sabia se aquilo augurava bem ou mal à cidade. Muitos caíram de joelhos e oraram em altas vozes. Pecadores lembraram-se dos seus pecados e pensaram na cólera divina que os aguardava. Os curas mandaram abrir as portas das igrejas e a multidão invadiu-as, acompanhamdo os padres nas suas preces, em que se suplicava ao Altíssimo piedade para as suas criaturas. Só ao cabo de muito tempo recobraram o sossego e voltaram, silenciosos e mais calmos, para as suas casas.


XIX.

Ninguém sabia onde aquilo tinha começado, se a ideia ocorrera a uma pessoa de grande imaginação ou se fora concebida independentemente por muitas,. Era como a cólera; não se sabe se a trouxe para a cidade um forasteiro vindo de terras estranhas ou se foi um vento funesto que disseminou a doença. Um homem adoece aqui, acolá morre uma mulher, e quando
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despertamos para a consciência do perigo já a epidemia grassa por todas as ruas da cidade e os coveiros não podem cavar sepulturas com a necessária rapidez para enterrar todos os mortos. Ainda pela manhã, espalhara-se pela população de Castel Rodríguez a convicção de que a misteriosa ocorrência da noite anterior tinha uma relação qualquer com o aparecimento da Santa Virgem a Caitalina Pérez. Não se falava de outra coisa. Magistrados discutiam o assunto nas suas câmaras de conselho, sacerdotes nas suas sacristias e nobres nos seus palácios. O povo nas ruas, as donas de casa no mercado e os artífices nas suas oficinas falavam dele, cheios de perplexidade. Os monges nos seus mosteiros e as freiras nos seus conventos não podiam concentrar-se nas suas orações.
Dentro em pouco chegou-se à conclusão de que não podia haver dúvidas quanto à pessoa designada pelas palavras enigmáticas da Santíssima Virgem. Não eram poucos, sobretudo entre o clero secular, os que indagavam se Deus não estaria descontente com a excessiva austeridade do bispo e se um certo elemento de arrogância que havia na sua humildade não incorreria na verdade na reprovação divina. Mas em Dom Manuel de Valero não havia nódoa nem pecha de qualquer sorte. Ele tinha dedicado os melhores anos da sua vida ao serviço do Senhor e de el-Rei. Ao conferir-lhe assinaladas honrarias, Sua Majestade, vice-regente do Todo-Poderoso na terra, apusera o selo da sua aprovação ao valor e à virtude de Don Manuel. Tornara-se manifesto a todos, clérigos e leigos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, que Don Manuel era o homem escolhido para realizar o milagre que a vontade divina ordenara. Uma deputação de eclesiásticos eminentes, membros da aristocracia e pessoas de autoridade no
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conselho municipal, foi visitá-lo para lhe comunicar a sua aprovação unânime. Don Manuel, à sua maneira rude de soldado, respondeu-lhes que estava pronto para colocar-se à sua disposição. Ficou resolvido que a cerimónia se realizaria no da seguinte, na igreja da colegiada. Don Manuel pediu ao arcipreste que o recebesse em confissão naquela tarde e, como pretendia comungar pela manhã, o que só podia fazer em jejum, mandou suspender a ceia que ia oferecer aos seus amigos durante a noite. Era um homem consciencioso e estava decidido a não omitir nada que pudesse tornar a sua intervenção eficaz em ocasião tão solene. Três vezes armado está aquele que, absolvido dos seus pecados e livre de toda a culpa, deposita a sua confiança em Deus.
O prior do convento dominicano informou pessoalmente o bispo da resolução tomada, convidando-o ao mesmo tempo para chefiar os monges que iriam em procissão assistir à cerimónia. Don Blasco percebeu a malícia encoberta sob o oferecimento do prior mas aceitou gravemente, agradecendo-lhe a honra. Não sabia o que fazer. Não ligava importância ao que lhe tinha dito Domingo sobre o seu irmão Martin; conhecia demasiado o gosto de Domingo a quezilar o próximo e o prazer que tinha em defender ideias paradoxais; mas, com tudo isso, tinha a firme convicção de que Don Manuel não era o homem indicado para realizar um milagre. Fugiria de bom grado à obrigação de assistir à sua confusão, mas sabia que se recusasse ir isto seria atribuído ao despeito. Não ficava bem ao seu alto cargo dar aos espíritos maldosos um ensejo de pensar mal dele. Além disso, tinha ainda de cumprir a promessa que fizera a Domingo. Conhecia bem a insensatez e a brutalidade da multidão, quer a constituísse gente bem ou mal nascida,
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e era bem provável que, vendo-se decepcionados na sua esperança de um portento, tirassem vingança na infortunada moça. Achando-se presente, ele poderia salvá-la de tal vandalismo. No da seguinte, pois, com o coração opresso, acompanhado dos seus dois fiéis secretários, dirigiu-se do convento para a igreja à testa dos monges. A igreja achava-se repleta de gente até às portas e contudo o povo, ávido de ver um milagre realizar-se diante dos seus olhos, continuava a fazer força para entrar. Abriram passagem e o bispo, seguido pelos frades, adiantou-se vagarosamente pela nave. Sentou-se numa grande cadeira colocada ao lado e um pouco para a frente do altar-mor. O coro estava cheio de notabilidades locais. Momentos depois Don Manuel entrou com uma comitiva de cavalheiros e sentou-se numa cadeira reservada para ele no outro lado do altar. Vestia uma armadura de parada, o peitoral damasquinado de ouro, e envergava o grande manto da Ordem de Calatrava com a sua cruz verde. Os nobres;, no coro, tinham posto os seus trajes mais sumptuosos. Palestravam e riam, trocando acenos de cabeça e sorrisos entre si. Na nave, a multidão conversava alto e as pessoas chamavam-se umas às outras como se estivessem numa tourada. O bispo observava-os, indignado. Aquilo era um desacato à religião. Estava já disposto a levantar-se e vituperar-lhes aquela irreverente leviandade.
Ao pé dos degraus, apoiando-se na muleta, estava ajoelhada Cattalina.
Ouviram-se os primeiros acordes de um improviso ao órgão, e as floridas notas desceram a bailar jovialmente por sobre as cabeças da congregação. A igreja era de uma arquitectura vasta e simples, mas os sucessivos chefes da grande
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casa de Henríquez tinham-na adornado com um tecto de madeira pintada em estilo "plateresco", encaixando os retábulos em maciças molduras douradas e vestindo as imagens com mantos magnificentes. Os assentos do coro eram lavrados a primor. Nas capelas achavam-se os túmulos - os mais antigos de pedra, austeros e frios, os mais recentes de mármore ricamente esculpido - em que descansavam os restos mortais dos defuntos duques e das suas esposas. Uma luz fosca filtrava-se pelos vitrais e a atmosfera estava pesada de incenso.
Chegaram os sacerdotes, envergando os sumptuosos paramentos que eram usados em tais ocasiões e que tinham sido doados à igreja por damas nobres e devotas. O subdiácono segurava o cálice e a patena, envoltos no véu. A missa foi cantada. Um tremor respeitoso percorreu o vasto concurso de gente, que caiu de joelhos ao ouvir o tinido argentino da campainha que anunciava a elevação da Hóstia e do Cálice. O celebrante, que era o arcipreste, participou da Santa Comunhão e administrou-a sucessivamente a Don Manuel e a Catalina. Tinha chegado afinal o momento que a multidão aguardava com tamanha impaciência. Elevou-se dela um estranho som, que não era um som de vozes nem propriamente um ruído de movimentos ansiosos, mas parecia antes o suspirar do vento nos pinheirais, como se a expectativa da multidão se houvesse tornado audível.
Don Manuel pôs-se em pé e adiantou-se a passos largos para a jovem ajoelhada. Com a sua armadura, o grande manto da ordem a pender dos ombros, formava ele uma figura imponente e magnífica. A cena e a ocasião revestiam-no de uma dignidade desacostumada. Tinha confiança no seu poder. Pousou a mão na cabeça da jovem e, em voz alta, como se
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desse ordem de carregar ao seu regimento, de maneira que foi ouvido com clareza nos mais afastados recantos da igreja, repetiu as palavras que lhe tinham dado para pronunciar:
- Em nome de Deus Padre, Filho e Espírito Santo, ordeno a ti, Catalina Pérez, que te levantes, lances fora essa inútil muleta e caminhes.
A jovem assustada e como que enfeitiçada pela solenidade da ocasião, pôs-se em pé com dificuldade e largou a muleta. Deu um passo à frente e, com um grito de terror, caiu estendida no chão. O milagre falhara mais uma vez.
Levantou-se então uma grande algazarra e dir-se-ia que uma loucura súbita se apoderara da multidão. Homens bradavam, mulheres proferiam gritos agudos. Berravam de fúria.
- Bruxa! Bruxa! À fogueira! À fogueira! Queimem-na!
Arrastados por um impulso repentino, avançaram na direcção do santuário, dispostos a linchar a moça. No seu arrebatamento, arredavam-se uns aos outros do caminho. Alguns caíram e foram brutalmente espezinhados. Os gritos de desespero acresciam o tumulto geral.
O bispo pôs-se em pé de um salto e, com um rápido movimento circular, atravessou o santuário até fazer frente à multidão desvairada. Ergueu os braços acima da cabeça e os seus grandes olhos escuros chamejavam.
- Para trás! para trás! - gritou numa voz de trovão. - Quem sois vós para profanar este lugar? Para trás, digo-vos eu, para trás!
Tão terrificante era o seu aspecto que uma exclamação de horror partiu de todas as gargantas. A multidão estacou de súbito, como se um grande abismo se tivesse aberto diante
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dela. Recuaram. Por um momento o bispo considerou-os com os olhos negros de indignação.
- Vergonha! Vergonha! - gritou ele e, cerrando os punhos, atirou os braços para a frente como se quisesse fulminá-los com o raio da sua cólera. - Ajoelhai, ajoelhai e pedi que vos seja perdoado o insulto que fizestes à casa do Senhor.
A estas palavras, dominados pela força da sua autoridade, muitos caíram de joelhos a soluçar. Outros, como se o atordoamento os paralisasse, ficaram imóveis a contemplar boquiabertos aquela terrível figura. Lentamente, o bispo correu os olhos de um lado para o outro até abranger toda a vasta multidão, e cada um teve a impressão de que esses olhos irados se fixaram particularmente nele. Fez-se silêncio, só cortado pelos soluços histéricos de uma mulher aqui e além.
- Escutai - disse finalmente o bispo. - Escutai o que eu digo. - A sua voz não era já ameaçadora, mas grave, severa e autoritária. - Ouvi. Conheceis as palavras que Nossa Senhora dirigiu a Catalina Pérez e conheceis também os portentos que ocorreram nesta cidade, provocando a confusão e a inquietude nos vossos espíritos. A Santíssima Virgem disse a esta menina que o filho de Dom Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la da sua enfermidade. No nosso condenável orgulho e vaidade, eu que vos falo e meu irmão Don Manuel tivemos a temeridade de julgar que um de nós era a pessoa designada. Fomos amargamente punidos pela nossa presunção. Mas Don Juan de Valero ainda tem outro filho.
A multidão interrompeu-o com risos e vozearia.
- "El panadero"! - gritavam.
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Puseram-se a cantar em tom escarninho, dentro de uma espécie de cadência rude:
- "El panadero, el panadero..."
- Silêncio! - gritou o bispo.
As pessoas da multidão fizeram calar umas às outras.
- Ride! Qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso dos tolos. Que exige Deus de vós senão que sejais justos, ameis a clemência e andeis humildemente nos caminhos do Senhor? Hipócritas e blasfemadores! Impuros! Vergonha, vergonha, vergonha!
Repetiu esta palavra com um tom de desdém cada vez mais pungente, e os que o ouviam recuaram como recuaria um homem a cuja face fosse atirado um copo de água gelada. Era terrível de ver-se a cólera do prelado. Percorreu a multidão com um olhar de causticamte desprezo.
- Estão presentes os familiares do Santo Ofício?
Um som estranho, semelhante a um suspiro de susto, percorreu a multidão, como se todos ao mesmo tempo houvessem sustido o fôlego, pois esses instrumentos da Inquisição provocavam o terror no seio do povo. Ignoravam o significado dessas palavras sinistras e cada qual se pôs a tremer como varas verdes. Vários homens aprumaram-se atrás do Bispo.
- Que se apresentem - disse este.
Como os familiares do Santo Ofício dispunham de poder, influência e sobretudo isenção dos seus terríveis inquéritos, era um cargo muito procurado por homens da mais alta categoria. Havia oito em Castel Rodríguez. Fez-se um silêncio momentâneo,
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enquanto eles se erguiam dos seus assentos e tomavam posição atrás do bispo. Este aguardou até sentir, pelo silenciar dos pés, que todos eles se achavam por trás de si.
- Escutai - disse novamente. O indicador da sua mão estendida parecia acusar cada uma das apavoradas criaturas. - O Santo Ofício nunca procede às pressas nem impelido pela cólera. Faz justiça aos culpados, mas é clemente com o pecador arrependido.
Fez uma pausa, e o silêncio foi medonho.
- Não é a vós, raça de víboras, que compete lançar a mão a esta infeliz menina. Se ela foi iludida ou está possuída de um demónio, é ao Santo Ofício que cumpre tomar conhecimento do facto. Se ela se sair mal na prova, os familiares estão aqui para entregá-la ao tribunal. Mas a prova não se completou ainda. Onde está Martim de Valero?
- Aqui, aqui! - gritaram várias vozes.
- Que ele se apresente.
- Não, não, não!
Era a voz de Martin, o padeiro, que protestava.
- Se ele não vier por sua livre vontade, tragam-no à força - disse rispidamente o bispo.
Houve um arrastar de pés enquanto Martin forcejava com os homens que procuravam arrastá-lo aos puxões e repelões, mas volvidos alguns instantes a multidão abriu alas e ele foi trazido até aos degraus do altar. Os homens voltaram aos seus lugares e deixaram-no consigo mesmo. Viera da oficina ver o milagre de que todos falavam, e estava com a sua roupa de trabalho. Tinha o rosto vermelho do calor dos fornos e pelo vão esforço de escapar às rudes mãos que o arrastavam. O da estava quente e gotas de suor brotavam-lhe da testa. O seu rosto gorducho e bem-humorado estava pesado de consternação.
- Vem - disse o bispo.
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Como que impelido por uma força a que não pudesse resistir, o padeiro subiu os degraus do santuário.
- Mano, mano, a que me queres obrigar? - exclamou ele. - Como poderei eu fazer aquilo que tu não pudeste? Não sou mais do que um homem de trabalho e não sou melhor cristão do que o meu próximo.
- Silêncio!
O bispo não cria em absoluto que o padeiro fosse capaz de realizar um milagre e só pensara nele sob a inspiração do momento, como único meio de salvar Catalina da fúria do populacho. Desejava uma pequena trégua que lhe permitisse apaziguá-los. Sabia que a menina já não correria perigo. Ali estavam os familiares para protegê-la e, como não houvesse cárcere da Inquisição na cidade, conduzi-la-iam para um convento a uma ordem sua e sobraria então tempo para reflectir sobre o que cumpria fazer em seguida. O bispo dirigiu-se mais uma vez ao povo reverente:
- Porventura não "tem o oleiro poder sobre a argila, poder de fazer com o mesmo bloco um vaso de honra e outro de desonra? Deus não faz acepção de pessoas. Aquele que se humilha será exaltado e os soberbos serão humilhados. Tragam a menina.
Catalina jazia no mesmo lugar em que tombara, com o rosto oculto nos braços e o pequeno corpo sacudido de soluços. Ninguém lhe prestava mais atenção do que se ela fosse um cão morto à beira da estrada. Dois familiares puseram-na em pé e colocaram-na em face do bispo. Com a muleta debaixo do braço, ela juntou como melhor pôde as mãos num gesto de súplica. As lágrimas corriam-lhe pdas faces.
- Oh! senhor bispo, senhor bispo, tenha compaixão de
mim! Não tente de novo, suplico-lhe, tudo é inútil! Deixe-me voltar para junto de minha mãe!
- Ajoelha-te - ordenou ele. - Ajoelha-te.
Com um soluço desesperado, a criança deixou-se cair de joelhos.
- Pousa-lhe a mão na cabeça - disse o bispo ao irmão.
- Não posso... Não o farei... Tenho medo!
- Sob pena de excomunhão, ordeno-te que faças o que te digo - tornou o bispo asperamente.
O infeliz foi tomado de um tremor, pois sabia que o irmão não hesitaria em pôr em efeito a sua pavorosa ameaça. Pousou timidamente a mão trémula na cabeça da jovem. Essa mão nem sequer estava limpa.
- Dize agora as palavras que ouviste a teu irmão Manuel pronunciar.
- Não me lembro delas...
- Vou dizê-las, então, e tu as repetirás: "Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero"...
Martin repetiu:
- Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero...
O bispo pronunciou as últimas palavras fatídicas em voz forte e sonora, mas o irmão repetiu-as num tom apenas perceptível. Catallina pôs-se em pé como lhe ordenavam e, com um gesto desesperado, atirou para longe a muleta. Por um instante vacilou, mas não caiu. Ficou em pé. Então, deixando escapar um grito e um soluço, olvidada do lugar e da ocasião, virou-se e desceu a correr os degraus do santuário.
- Mãe, mãe!
Maria Pérez, que estava com Domingo na igreja, delirante de alegria, abriu caminho por entre a multidão e correu ao
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encontro dela. Catalina atirou-se-lhe aos braços e desatou a chorar.
Por um instante a densa multidão ficou tão aturdida que não pôde mover-se. Contemplavam a cena boquiabertos. Formou-se então tal algazarra como jamais se ouviu outra igual.
- Milagre! Milagre!
Gritavam, batiam palmas, mulheres acenavam com os lenços. Os homens gritavam "olé, olé", como faziam nas touradas, quando um dos toureiros executava um passe perigoso; atiravam os chapéus para cima como costumavam atirá-los aos pés do matador de espada quando, seguido da sua "quadrilha", ele dava volta à arena para receber os aplausos do público. Acima do tumulto elevava-se a voz estridente de alguma mulher a entoar aqui e ali, ao compasso de uma estranha melodia semimourisca, um hino à Virgem Santíssima. Dir-se-ia que a balbúrdia não terminaria mais. Desconhecidos abraçavam-se. Homens e mulheres choravam de alegria. Tinham visto um milagre com os seus próprios olhos.
De repente fez-se um silêncio no meio daquela doida confusão e todos os olhos se voltaram para o bispo. Martin, o tímido, mal atinando com o que havia sucedido, recuara modestamente para o fundo e o dominicano ficara sozinho no alto dos degraus do santuário, com as costas viradas para o altar-mor. Emaciado, mas alto e erecto, envolto no seu hábito remendado e puído, formava uma figura imponente. O maravilhoso, porém, é que ele estava banhado em luz. Não era uma simples auréola a cercar-lhe a cabeça, mas um resplendor que parecia vesti-lo da cabeça aos pés.
- Um santo! Um santo! - clamou o povo, com os olhos cravados no estranho e sensacional espectáculo. - Bendita seja
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aquela que te pôs no mundo! - gritavam. - Agora permites que o Teu servo se retire em paz. Oh, ditoso, ditoso dia!
Falavam às tontas, sem saber o que diziam. Estavam desvairados de alegria, amor e medo. Somente Domingo notou que um dos vitrais tinha um caixilho quebrado e, por uma feliz coincidência, um raio de sol passava pela abertura, incidindo no bispo e banhando-o em glória.
O bispo alçou a mão exigindo silêncio e imediatamente a grande algazarra cessou. Ficou um instante a contemplar, com uma expressão triste e severa, aquele mar de rostos que tinha diante de si. Depois, levantando a cabeça, os trágicos olhos cheios de arrebatamento, como se com os olhos do espírito avistasse as hostes celestiais, começou a recitar o Credo de Niceia em voz lenta e solene. As palavras eram familiares a todos os presentes, que as ouviam todos os domingos na missa; e, num zumbido abafado que se assemelhava a um longínquo arrastar de pés, puseram-se a repetir os artigos de fé um após outro. O bispo terminou a recitação do Credo, virou-se e caminhou para o altar-mor. O halo de luz desaparecera. Levantando os olhos para o vitral, Domingo viu que o sol tinha continuado a sua inexorável viagem através do céu e já nenhum raio de luz penetrava pelo vidro quebrado. O bispo prosternou-se diante do altar e deu graças ao Senhor numa oração muda. O seu torturado coração fora aliviado de um grande peso, pois compreendera, sem sombra de dúvida, que, embora tivesse sido Martin quem pousara a mão na cabeça da jovem paralítica, seu irmão não tinha passado de um instrumento de que aprouvera a Deus lançar mão a fim de que ele, Blasco de Valero, obrasse um milagre para Sua eterna glória. Era ademais um sinal, seguro e indubitável, de que o Senhor lhe perdoava
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o grave pecado que cometera ao permitir, num momento de fraqueza, que o grego fosse garroteado antes de o queimarem. Deus, que vê todas as coisas passadas, presentes e futuras, conhecia o duro coração do descrente e por ísho o tinha condenado à morte eterna. Estava bem lamentar os réprobos nos seus tormentos, mas mostrar-se descontente era impugnar a justiça divina.
O bispo pôs-se em pé e retirou-se lentamente do santuário. Caminhava como que em sonho. Os dois religiosos, seus amigos e secretários, perceberam-lhe a intenção e seguiram-no. Vendo isso, o prior fez um sinal aos seus frades para que o seguissem também e pôs-se a caminhar atrás deles. O bispo deteve-se ao alcançar os degraus.
- Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Padre e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Desceu. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e aos religiosos que o acompanhavam. Os frades entoaram o "Te Deum Laudamus". As vozes fortes e profundas ecoaram por toda a igreja. Como que transportado em êxtase, o bispo passou por entre a multidão ajoelhada, dando a sua bênção ao povo enquanto se dirigia para a saída. Não notou o olhar irónico de Domingo.
Nesse momento os sinos começaram a soar no campanário, e dentro em pouco todos os sinos da cidade badalavam. Não havia nisso, porém, nenhuma intervenção sobrenatural. Don Manuel, como o bom soldado que era, tinha atendido a todos os pormenores e tomara disposições para que, ao serem tangidos os sinos da colegiada em celebração do milagre que
ele estava certo de realizar, todos os sinos das demais igrejas se pusessem a bater também.
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As enormes portas abriram-se de par em par à aproximação do bispo e este saiu para o sol deslumbrante do dia de Agosto. A multidão lançou-se em pós dele e seguiu a procissão de frades até estes chegarem ao convento. Ia o bispo entrar quando uma grande gritaria se levantou da turba. Queriam que ele falasse. Junto à parede do convento havia um púlpito, usado quando a cidade era visitada por algum pregador tão famoso que a igreja do convento não podia comportar a vasta congregação desejosa de ouvi-lo. O prior adiantou-se, transmitindo ao bispo o desejo do povo, rogou-lhe que acedesse. Don Blasco correu os olhos em volta de si, como se ignorasse onde estava. Dir-se-ia que até então não se apercebera das devotas e ansiosas criaturas que lhe seguiam os passos. Deteve-se um instante para reunir as ideias e, sem uma palavra, subiu ao púlpito.
Tinha uma voz magnífica, de tom rico, com uma infinita variedade de inflexão. Começou a falar.
- Ninguém pode sondar as profundezas do coração humano, nem perceber as coisas que ele pensa: como encontrar então a Deus, que criou todas essas coisas-, e conhecer-Lhe o pensamento ou compreender os Seus desígnios?
Os gestos do bispo eram vigorosos e expressivos. A sua voz alcançava os últimos confins da cerrada multidão, e quando ele a baixava num tom compassivo, tal era a beleza da sua dicção que nenhuma das suas palavras deixava de ser ouvida. Quando, numa investida apaixonada contra os pecados humanos, ele a erguia, em todo o seu esplendor, era como o trovão a rolar nas desoladas serras. Fazia de súbito uma pausa,
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e o silêncio no meio daquela torrente de eloquência semelhava o estridor do Juízo Final. O povo encolheu-se confrangido quando ele lhes lembrou a brevidade da existência, os acidentes que perseguem os filhos de Adão desde o berço até à sepultura, a transitoriedade dos seus prazeres, a angústia dos seus sofrimentos; tremeram quando ele lhes pintou os horrores do Inferno e as intermináveis torturas dos réprobos; e choraram quando, com a voz apagada de ternura, ele descreveu com inflexões extáticas a comunhão dos santos e as eternas alegrias do Paraíso. Muitos arrependeram-se dos seus pecados e regeneraram-se desse dia em diante. O bispo terminou por uma grande peroração em louvor da Santíssima Virgem e para glória do Senhor. Jamais tinha falado com mais ardente e patética eloquência.
Quando o conduziram à sua cela, estava tão alquebrado que se deixou deitar na cama dura pelos seus dois fiéis assistentes. Sentia-se devastado pela emoção e pela fadiga.

XX.

Nessa noite houve grande regozijo na cidade. Os taberneiros não tinham mãos a medir. A multidão passeava em redor da praça, palrando sobre o portentoso acontecimento daquele dia. Ninguém duvidava de que tivesse sido o santo bispo o realizador do milagre e todos admiravam a sua modéstia em usar o irmão padeiro como instrumento do seu poder. Ensinara-lhes, assim, que na verdade os humildes devem ser exaltados e os soberbos devem ser humilhados. Muitos
afirmavam tê-lo visto elevar-se no ar - a dois pés do chão, segundo alguns, a quatro, segundo outros - e permanecer suspenso dessa forma, rodeado de glória.


C O N T I N U A

Catalina - o cenário desta história é a Espanha do reinado de Filipe III, a trágica Espanha da Inquisição.
Catalina, jovem de dezasseis anos, aleijada de uma perna, está orando ardentemente pela sua cura quando lhe aparece a Virgem Maria.
Qual dos três filhos de Valero melhor servia a Deus? Em páginas repletas de emoção, o leitor verá quem, afinal, realiza o milagre, assim como assistirá a todo o restante e apaixonante entrecho deste romance cheio de contrastes humanos.

 


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I.

Era um grande dia para a cidade de Castel Rodríguez. Já ao amanhecer os habitantes estavam de pé, com as suas melhores roupas. Nos balcões dos velhos e severos palácios dos nobres ostemtavam-se ricos estofos e os galhardetes batiam indolentemente de encontro às hastes. Era a festa da Assunção, dia 15 de Agosro, e o sol escaldava num céu sem nuvens. Sentia-se um alvoroço no ar, pois nesse dia, após muitos anos de ausência,, chegavam duas pessoas eminemtes, naturais da cidade, e grandes festividades tinham sido preparadas em sua honra. Uma delas era Frei Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, e a outra seu irmão Don Manuel, capitão de nomeada nas forças d'El-Rei. Haverá um "Te Deum" na colegiada, banquete na municipalidade, touradas e fogo preso quando anoitecesse. À medida que se adiantava a manhã, um número cada vez maior de pessoas tomava o caminho da Plaza Mayor. Formou-se ali o cortejo que ia esperar os ilustres viajantes a certa distância da cidade. Encabeçavam-no as autoridades civis, vindo
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depois os dignitários da Igreja e, por fim, uma série de pessoas gradas. A multidão abriu alas nas ruas para vê-los passar,, depois colocou-se em ordem para esperar a emtrada dos dois irmãos na cidade, seguidos desses importamtes personagens, no momento em que os sinos de todas as igrejas se punham a repicar em sinal de boas-vindas.
Na capela da Virgem da igreja anexa ao convento das freiras carmelitas, uma jovem aleijada estava a rezar. Fazia-o com devoção apaixonada, diante da imagem da Santíssima Virgem. Ao erguer-se, afinal, ajeitou melhor a muleta debaixo do braço e saiu da igreja. Lá dentro estava fresco e escuro, e aquela claridade súbita do dia quente e abafado ofuscou-a por um momento. Deteve-se a olhar a praça vazia, em baixo. As casas tinham os postigos fechados para não deixar entrar o calor. Reinava ali um grande silêncio. Todos tinham ido ver os festejos e não ficara um cão sem dono para latir. Dir-se-ia uma cidade morta. A jovem olhou para a sua própria casa, um pequeno prédio de dois andares comprimido entre os seus vizinhos, e suspirou desalentada. A sua mãe e seu tío Domingo, que vivia com elas, tinham ido com os demais e só voltavam depois das touradas. Sentia-se muito só e muito infeliz. Como não tivesse ânimo de ir para casa, sentou-se no último degrau da escadaria que descia da porta da igreja à praça e largou a muleta no chão. Pôs-se a chorar. De repente, assoberbada pela mágoa, prostrou-se no patamar de pedra e, mergulhando o rosto nos braços, soluçou como se o seu coração estivesse a ponto de despedaçar-se. O seu movimento brusco dera um impulso à muleta, que caiu com ruído pelos degraus estreitos e íngremes, até em baixo. Era o cúmulo do infortúnio: teria que descer de rastos ou deixar-se escorregar pela escada a fim de ir buscá-la, já que a sua perna paralítica não lhe permitia caminhar sem a muleta. Chorou desconsoladamemte.
De súbito ouviu uma voz.
- Porque choras, minha filha?
Virou-se surpreendida, pois não ouvira ninguém aproximar-se. Viu uma mulher em pé atrás de si. Parecia ter saído da igreja, mas ela própria o fizera naquele momento e lá dento não estava ninguém. A mulher vestia um longo mamto azul, que lhe ia até aos pés, e enquanto Catalina a olhava, afastou o capuz que lhe cobria a cabeça. Devia ter saído da igreja, com efeito, pois para as mulheres era um pecado entrar na casa do Senhor com a cabeça descobertta. Era bastante alta para uma espanhola e moça, tendo a pele do rosto suave e macia, sem rugas por baixo dos olhos escuros. Usava um penteado muito simples, com o cabelo repartido no meio e apanhado num coque frouxo sobre a nuca. Possuía feições pequenas, delicadas, e um olhar bondoso. A jovem paralítica não saberia dizer se se tratava de uma camponesa - esposa, talvez, de algum chacareiro das imediações - ou de uma dama. Tinha certa singeleza de aspecto, e ao mesmo tempo uma dignidade um tanto intimidativa. O comprido manto escondia-lhe as roupas, mas quando ela tirou o capuz a rapariga vislumbrou qualquer coisa branca e deduziu que tal devia ser a cor do seu vestido.
- Enxuga as lágrimas, minha filha, e dize-me o teu nome.
- Catalina.
- Por que vens sentar-te aqui sozinha, a chorar, quando toda a gente foi ver a recepção do bispo e de seu mano, o capitão?
- Sou aleijada e não posso ir longe, senhora. Além disso, que iria fazer no meio de toda essa gente sã e feliz?
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A desconhecida estava atrás de Catalina e esta tivera de virar-se para lhe falar. Relanceou os olhos para a porta da igreja.
- De onde veio, Senhora? Não a vi na igreja.
A desconhecida sorriu. Era um sorriso tão meigo que todo o amargor pareceu dissipar-se no coração da rapariga.
- Pois eu vi-te, minha filha:. Estavas a rezar.
- Estava pedindo à Virgem que me curasse, como venho fazendo noite, e dia desde que fiquei inválida.
- E pensas que ela tem o poder de fazê-lo?
- Se ela quiser...
A senhora tinha uns modos tão doces e tão afectuosos que Catalina sentiu-se impelida a contarnlhe a sua triste história. Aquilo sucedera quando estavam trazendo os novilhos para as touradas da Páscoa e toda a população da cidade se reunira para vê-los chegar, sob a orientação segura dos dois padrinhos. À frente ia um grupo de jovens fidalgos, cujos cavalos curveteavam. De repente, um dos animais escapou-se e enveredou por uma viela. Formou-se um pânico e a multidão espalhou-se para todos os lados. Um homem foi atropelado pelo touro-, que tornou a investir para a frente. Catalina, que corria tão depressa quanto podia, escorregou e caiu no momento em que o amimal ia alcançá-la. Soltou um grito e perdeu os sentidos. Ao voltar a si, disseram-lhe que o touro a tinha pisado na sua doida arremetida, mas continuara a correr impetuosamente. Ela sofrera contusões mas não fora ferida. Disseram-lhe que havia de sarar em pouco tempo, mas um ou dois dias depois, Catalina queixou-se de não poder mexer a perna. Os médicos examinaram o membro e encontraram-no paralisado. Picaram-no com agulhas: Catalina não sentia nada. Sangraram-na, purgaram-na e deram-lhe poções nauseabundas para tomar, mas tudo foi inútil. A perna estava como morta.
- Mas ainda tens o uso das mãos - disse a senhora...
- Graças a Deus, pois se não fosse isso nós morríamos de fome. A senhora perguntou-me porque estava eu a chorar. Eu choro porque, com o uso da perna, perdi também a afeição do meu amado.
- Ele não te podia ter grande amor, se te abandonou na tua desgraça.
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- Amava-me de todo o coração, e eu amo-o mais do que à minha própria alma. Mas nós somos pobres, senhora. Ele é Diego Martínez, o filho do alfaiate, e segue a profissão do pai. Íamos casar quando ele tivesse terminado o aprendizado, mas um homem pobre não pode dar-se ao luxo de desposar uma mulher incapaz de fazer frente às outras mulheres no mercado ou de subir e descer as escadas para dar conta dos trabalhos caseiros. Depois, os homens são sempre homens. Um homem não pode querer uma mulher aleijada. Pedro Álvarez ofereceu-lhe a sua filha Francisca. É feia como o pecado, mas Pedro Álvarez é rico, e assim como poderia ele recusar?
Catalina pôs-se de novo a chorar. A dama considerou-a com um sorriso de compaixão. De repente, ouviu-se ao longe um rufar de tambores e um clangor de trombetas e todos os sinos se puseram a badalar simultaneamente.
- Entraram na cidade: o bispo e seu irmão, o capitão - disse Catalina. - Como se explica, que esteja aqui em lugar de ir vê-los passar, senhora?
- Não me deu vontade de ir.
Isto pareceu tão esquisito a Catalina que lançou um olhar desconfiado à desconhecida.
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- Não mora na cidade, senhora?
- Não.
- Estranhei não a ter visto antes. Creio que não há aqui ninguém a quem eu não conheça:, pelo menos de vista.
A dama não respondeu. Catalina ficou intrigada e olhou-a com mais atenção por baixo dos cílios. Não era crível que fosse moura, pois não tinha a pele bastante escura para isso, mas era bem possível que pertencesse aos cristãos-novos, isto é, a esses judeus que tinham preferido o baptismo à expulsão do país. Mas, como todos sabiam, continuavam a observar em segredo os ritos judaicos, lavando as mãos antes e depois das refeições, jejuando no Dia da Expiação e comendo carne às sextas-feiras. A Inquisição não dormia e, quer se tratasse de mouros baptizados ou de judeus conversos, era perigoso ter quaisquer relações com eles. Havia sempre o risco de caírem nas mãos do Santo Ofício e, submetidos à tortura, incriminarem inocentes. catalina perguntou consigo, ansiosa, se não teria dito alguma coisa que pudesse motivar uma acusação, pois na Espanha daqueles tempos toda a gente vivia no terror do Santo Ofício e uma palavra impensada, um gracejo, podiam constituir motivo suficiente para a prisão, e uma vez no cárcere passavam-se semanas, meses e até anos antes que se conseguisse provar a sua inocência. Catalina achou bom afastar-se dali o quanto antes.
- São horas de ir para casa, senhora - disse ela; e, com a polidez que lhe era natural, acrescentou: - Assim, se me permite, vou deixá-la.
Relanceou os olhos para a muleta, que caíra lá em baixo. Teria a coragem de pedir à senhora que a fosse buscar? Mas esta não prestou atenção no que ela dissera.
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- Não gostaria de recobrar o uso das suas pernas, minha filha,, para poder andar e correr como se nunca houvesse estado doente? - perguntou ela.
Catalina ficou branca. Essa pergunta deixava patente a verdade. A desconhecida não era cristã-nova e sim uma moura, pois ninguém ignorava que os mouros, cristãos apenas no nome, tinham pacto com o demónio e por meio das artes mágicas podiam obrar toda a sorte de malefícios. Não fazia muito que uma pestilência assolara a cidade, e os mouros, acusados de serem os seus causamtes, confessaram-se culpados no cavalete e acabaram morrendo na fogueira. Catalina sentiu tamanho terror que ficou impossibilitada por um momento de falar.
- Então, minha filha?
- Eu daria tudo que tenho no mundo - e não é nada - para me ver livre da minha enfermidade, mas ainda que fosse para recuperar o amor do meu Diego não faria nada que pusesse em perigo a minha alma Imortal ou que constituísse uma ofensa à Santa Madre Igreja.
E, enquanto falava, persignou-se sem tirar os olhos da desconhecida.
- Então eu te direi como podes curar-te. O filho de Juan Suárez de Vataro que melhor tem servido a Deus tem o poder de fazê-lo. Ele te imporá as mãos em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, mandar-te-á atirar fora a muleta e andar. E tu atirarás fora a muleta e andarás.
Não era isto, em absoluto, o que Catalina esperava. O que a senhora dizia era surpreendente, mas falava com tanta calma e segurança que a moça ficou impressionada. Duvidando e esperando ao mesmo tempo, encarava fixamente a misteriosa desconhecida. Necessitava de um momento para tornar a si
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do seu espanto, antes de fazer as perguntas que já iam tomando forma no seu espírito. Mas de súbito os olhos de Catalina quase lhe saltaram das órbitas e a sua boca escancarou-se de assombro, pois no lugar onde estava a senhora já não se via mais nada. Não podia ter entrado na igreja, porquanto Catalina não tirara os olhos dela., nem podia ter-se movido: desvanecera-se no ar, simplesmente. A jovem soltou um grande grito e novas lágrimas, mais lágrimas de outra espécie, correram-lhe em torrente pelas faces.
- Era a Santíssima Virgem! - gritou. - Era a Rainha dos Céus, e eu falei-lhe como teria falado a minha mãe. Era Maria Santíssima, e eu tomei-a por uma moura ou uma judia conversa!
Tal era a sua emoção que sentiu a necessidade urgente de contar aquilo a alguém. Sem reflectir, deixou-se escorregar sobre as costas pela escada abaixo, ajudando-se com as mãos, até alcançar a muleta. Voltou então para casa, mas somente ao chegar à porta se lembrou de que ninguém estava lá. Apesar disso entrou e, como sentisse fome, arranjou um pedaço de pão e algumas azeitonas e tomou um copo de vinho. Este deu-lhe sono, mas continuou sentada, resolvida a não dormir enquanto não chegassem sua mãe e seu tio Domingo. Mal podia esperar para lhes contar a sua história maravilhosa. Foram-se-lhe, porém, cerrando as pálpebras e dentro em pouco dormia profundamente.

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II.

Era Catalina uma linda moça. Tinha dezasseis anos, era alta para a sua idade, já com o busto bem desenvolvido, mãos e pés pequeninos, e antes do acidente caminhava com uma graça sinuosa que encantava todos quantos a olhavam. Tinha olhos grandes e escuros em que brilhava o ardor da mocidade, cabelos pretos que se encrespavam naturalmente e tão compridos que podia sentar-se neles, pele morena e suave, faces de um rosado tépido, lábios vermelhos e húmidos. Quando ria ou sorria - o que era frequente antes do seu infortúnio - mostrava os dentes, parelhos, pequenos e alvíssimos. O seu nome completo era Maria de los Dólares Catalina Orta y Pérez. Seu pai, Pedro Orta, fora fazer fortuna nas Américas pouco depois de nascer Catalina, e desde então não tinham notícias dele. Sua esposa, Maria Pérez por nascimento,, ignorava se ele estava vivo ou morto, mas ainda tinha esperança de vê-lo regressar um dia com uma arca repleta de ouro, enriquecendo-os a todos. Era uma mulher devota e todas as manhãs, à missa, fazia uma oração pela segurança do marido. Enfurecia-se com o mano Domingo quando este lhe dizia que, se Pedro não morrera havia muito tempo, devia estar vivendo com alguma índia ou quem sabe se duas ou três, e não tinha a menor intenção de abandonar os filhos mestiços que indubitavelmente tinha por lá, para voltar à companhia de uma esposa que já perdera a beleza e a mocidade.
Tio Domingo era uma terrível provação para a sua virtuosa mana,, mas esta queria-lhe bem, em parte porque tal era o seu dever de cristã mas também porque, apesar dos seus graves defeitos, Domingo era um homem estimável e ela não podia
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deixar de amá-lo. Não o esquecia também nas suas orações e compraziam em acreditar que era em virtude da eficácia destas, e não por estar envelhecendo, que ele abandonara! ao menos os seus piores costumes. Domingo Pérez fora destinado ao sacerdócio e no seminário de Akallá de Henares, para onde o mandou o pai, tomou as ordens menores e recebeu a tonsura. Um de seus condiscípulos fora Blasco Suárez de Valero, o bispo de Segóvia, cuja chegada os habitantes da cidade estavam festejando naquele dia. Maria Pérez suspirava ao pensar nos destinos tão diferentes que os dois tinham tomado. Domingo era um estrabulega. Desde o começo envolveu-se em complicações no seminário devido ao seu génio teimoso, turbulento e dissipador, e nem as advertências, nem os castigos nem as pancadas conseguiam domá-lo. Já nesse tempo gostava da pinga e quando bebia de mais entoava canções obscenas que ofendiam os seus colegas de seminário e os professores, os quais tinham por missão incutir a honestidade e o decoro naqueles jovens espíritos. Ainda não tinha feito vinte anos, quando deixou grávida uma escrava moura e, ao perceber que a sua má acção seria divulgada, fugiu e ingressou num grupo de actores ambulantes. Vagueou com eles durante dois anos pelo país e ao fim desse tempo apareceu de repente em casa do pai.
Declarou-se arrependido dos seus pecados e prometeu emendar-se. Era evidente que a Providência não o talhara para o sacerdócio. Disse ao pai que, se este lhe desse o dinheiro necessário para não morrer de fome, iria estudar leis numa universidade. O pai estava ansioso por acreditar que o seu filho havia assentado o juízo e como, na verdade, Domingo voltou reduzido a pele e ossos, a existência que levara não parecia ter sido muito fácil e o velho Pérez deixou-se persuadir. Domingo foi para Salamanca, onde ficou oito anos, mas fez os seus estudos de maneira muito irregular. A magra mesada que recebia do pai obrigava-o a viver numa casa de pensão com vários outros estudantes e a comida era o quanto bastava para não morrer de inanição. Posteriormente, costumava divertir os seus companheiros de pândega, nas tabernas que frequentava, com anedotas sobre os horrores do estabelecimento e as astúcias a que tinham de recorrer para completar o mísero passadio. Mas a pobreza não impedia que Domingo gozasse a vida. Tinha uma língua desenvolta, modos encantadores e cantava bem, de forma que era bem recebido em todas as festas. Talvez os dois anos passados com a troupe ambulante não lhe tivessem ensinado a ser bom actor, mas ensinaram-lhe outras coisas que lhe prestavam serviço agora. Aprendera a ganhar às cartas e aos dados,, e quando aparecia na universidade algum jovem rico, Domingo não tardava a travar conhecimento com ele. Constituía-se em seu guia e mentor no tocante aos costumes da cidade e era raro que o recém-vindo não tivesse de pagar bom -preço pela experiência adquirida. era Domingo nessa época um rapaz bem apessoado e de vez em quando tinha a sorte de provocar a paixão de alguma mulher dada às aventuras amorosas. Não estavam elas no viço da mocidade mas eram pessoas abastadas e Domingo achava justo que provissem às suas necessidades em troca dos serviços que lhes prestava.
O período que passara como actor -ambulante inspirara-lhe o desejo de escrever peças de teatro e todas as horas vagas que lhe deixavam os seus divertimentos, ele dedicava-se a essa ocupação. Tinha considerável facilidade e, além de escrever algumas comédias, compunha amiúde um soneto ao objecto das suas lucrativas atenções e fazia versos em honra de alguma
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pessoa grada, a quem os enviava com a esperamça de receber uma recompensa em metal sonante. Foi esse seu dom de rimar que acabou por levá-lo à mina. O reitor da universidade provocara a cólera dos estudantes com uma pnescrição qualquer e, ao encontrarem numa mesa de taberna uns versos indecentes e injuriosos a seu respeito, encheram-se de regozijo. Dentro em pouco andavam cópias de mão em mão. Correu o boato de que o autor era Domingo Pérez e, conquanto este o negasse, fê-lo com tal complacência que era o mesmo que admiti-lo. Amigos serviçais chamaram a atenção do reitor para os versos, indicando-lhe ao mesmo (tempo quem os tinha escrito. Como o original houvesse desaparecido, não foi possível provar a culpa de Domingo com a sua própria letra, mas o reitor fez indagações discretas que o convenceram de que esse indivíduo dissoluto e mau estudante era o responsável pelo insulto. Tinha demasiada astúcia para formular uma acusação difícil de provar, mas, decidido a vingar-se, escolheu um método mais subtil. Não foi difícil descobrir o escândalo provocado por Domingo como seminarista em Alcalá, e a existência que ele levara durante os oito amos passados na universidade eram notoriamente desregrada. Domingo era jogador e todos sabiam que o jogo leva muitas vezes à impiedade; não faltaram testemunhas dispostas a jurar que lhe tinham ouvido proferir as mais horríveis blasfémias, e diante de duas delas ele dissera que acreditar nos Artigos de Fé era, acima de tudo, questão de boa educação. Isto por si era suficiente para justificar um inquérito do Santo Ofício. O reitor depôs nas mãos dos inquisidores as informações que tinha recebido. O Santo Ofício nunca procedia às pressas. Reunia as provas com todo o sigilo e cuidado e enquanto não
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lhe desabava o golpe na cabeça, a vítima raras vezes sabia que estava debaixo de suspeita.
Uma noite, tarde, estando Domingo deitado a dormir, o aguazil bateu-lhe à porta e prendeu-o quando ele veio abrir. Só lhe deu tempo para vestir-se e emalar a sua reduzida bagagem, junto com a roupa de cama, e conduziu-o, não à prisão - pois Domingo tinha as ordens menores e a Inquisição fazia o possível para evitar escândalos no seio da Igreja - mas a um mosteiro, onde foi encarcerado numa cela disciplinar. Deixaram-no ficar alli algumas semanas, fechado a sete chaves, sem permissão de falar a ninguém ou de ler o que quer que fosse, sem uma vela sequer para alumiar-lhe as trevas. Foi então conduzido à presença do tribunal. As coisas estariam mal paradas para ele se não fosse uma feliz circunstância. Poucos dias antes o reitor, homem vaidoso e irrascível, -tivera violenta disputa com os inquisidores sobre uma questão de precedência. Leram os versos de Domingo e riram com malicioso júbilo. Os seus delitos eram manifestos e não podiam ser relevados, mas os juízes perceberam que,, temperando a justiça com a clemência, podiam infligir ao reitor furioso uma afronta que ele sentiria fundo mas teria de tragar. Domingo reconheceu a sua culpa e declarou-se arrependido. Foi sentenciado a ouvir missa na câmara de audiência e exilado de Salamanca e seus arredores, Tinha rapado um bom susto. Achou conveniente ausentar-se da Espanha por algum tempo; foi, pois, para a Itália como soldado e passou lá alguns anos a jogar, a praguejar quando os dados ou as cartas o atraiçoavam, a fornicar e a beber. Tinha quarenta anos quando voltou à sua terra natal, tão pobre como ao deixá-la, com uma ou duas cicatrizes arranjadas
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em rixas entre bêbedos mas com numerosas recordações para emtreter-Lhe as horas vagas.
Seus pais tinham morrido e a única pessoa da família que restava era a mana Maria, abandonada pelo marido, e a sobrinha Catalina, então uma linda criança de nove anos. O marido de Maria esbanjara-lhe o dote e ela nada possuía além da casinha em que morava. Sustentava a si mesmo e à filha com hábeis e difíceis trabalhos de agulha, tecendo adornos de ouro e prata para os mantos de veludo das imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos padroeiros, as quais eram carregadas nas procissões da Semana Santa, e para as capas, casulas e estolas usadas nas cerimónias da Igreja. Na idade a que chegara, Domingo sentia-se disposto a trocar por uma existência tranquila a vida aventurosa que levara durante vinte anos e a irmã, necessitando da protecção de um homem em casa, convidou-o para morar com ela. Ao iniciar-se a nossa história, havia sete anos que ele vivia ali. Já não pesava nas despesas de Maria, pois ganhava dinheiro escrevendo cartas a pedido de pessoas iletradas, sermões para padres preguiçosos ou ignorantes que não queriam compô-los por si, e depoimentos para demandantes em juízo. Era também hábil em traçar genealogias de pessoas que desejavam atestados de sangue limpo, o que queria dizer que durante um século, ao menos, a sua ascendência não fora manchada por qualquer cruzamento com judeus ou mouros. A pequena família teria uma vida assaz remediada se Domingo pudesse livrar-se dos maus hábitos do jogo e da bebida. Também gastava dinheiro em livros, sobretudo volumes de versos e peças dramáticas, pois ao voltar da Itália recomeçara a escrever para o teatro e, embora não conseguisse fazer representar nenhuma das suas produções, contentava-se com o prazer
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de lê-las aos outros beberrões na sua taberna favorita. Ao tornar-se um homem respeitável reassumira a tonsura, uma salvaguarda em meio aos perigos da Espanha daquele tempo, e usava as vestes sóbrias que convinham a um letrado com as ordens menores.
Tomou grande afeição a Catalina, tão alegre, tão vivaz e tão bonita, e via-a transformar-se numa bela moça com uma satisfação inteiramente desinteressada. Encarregou-se da sua educação e ensinou-a a ler e escrever. Ensinou-lhe também o catecismo e assistiu à sua primeira comunhão com todo o orgulho de um pai. Quanto ao resto, porém, limitava o seu ensino a ler-lhe versos e, quando ela teve bastante idade para apreciá-las, as peças dos dramaturgos que começavam a ser tão comentados na Espanha. Mais do que a todos admirava Lope de Vega, a quem proclamava o maior génio que o mundo tinha visto, e antes do acidente que lesou a jovem, ele e Catalina costumavam representar as cenas que mais admiravam. Tinha ela uma memória viva e com o tempo chegou a saber de cor passagens inteiras. Domingo não esquecera que tinha sido actor e ensinou-a a declamar os seus versos, quando devia ser comedida e quando soltar as rédeas à paixão. Domingo tornara-se um homem magro, de movimentos desarticulados, cabelos grisalhos, rosto amarelo e cheio de rugas, mas ainda havia fogo nos seus olhos e ressonância na sua voz; e quando ele e Catalina representavam uma cena emocionante, com Maria por único auditório, Domingo já não era o valdevinos envelhecido, bêbedo e decadente, mas um brioso mancebo, um príncipe de sangue azul, um galã, um herói ou o que se quisesse. Tudo isso terminou, porém, quando Catalina foi pisada pelo touro. O choque manteve-a de cama algumas semanas, durante as
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quais os médicos da cidade empregaram todos os recursos da sua pobre ciência para devolver a vida ao membro paralisado. Afinal confessaram-se impotentes. Era um caso incurável. Diego, seu namorado, já não lhe vinha à janela de noite para lhe fazer a corte através da grade de ferro, e pouco depois sua mãe trazia para casa a notícia de que ele ia casar com a filha de Pedro Álvarez. Domingo ainda lhe lia dramas para distraí-la, mas as cartas de amor faziam-na chorar com tanta amargura que ele tinha de interromper-se.


III.

Catalina dormiu algumas horas e foi despertada afinal pelos ruídos que sua mãe fazia, lidando na cozinha. Pegou na muleta e foi lá.
- Onde está o tio Domingo? - perguntou, pois queria que ele estivesse presente para ouvir o que ela precisava contar com tanta urgência.
- Que pergunta! Está na taberna. Mas, se bem o conheço, voltara para casa à hora de jantar.
Por via de regra como toda a gente;, eles faziam a única refeição quente do dia às doze horas., mas desde a manhã não tinham comido senão um naco de pão barrado de alho, que Maria levara consigo, e ela sabia que Domingo devia estar faminto. Acendeu, pois, o fogo e tratou de preparar a sopa. Catalina não pôde esperar nem um momento mais.
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- Mãe, a Virgem Santíssima apareceu-me.
- Sim, minha querida? - volveu Maria. - Limpa e corta as cenouras para mim, por favor.
- Mas ouve, mãe! Eu vi a Virgem Santíssima, ela falou-me!
- Não sejas tola, menina. Encontrei-te dormindo quando cheguei e não te acordei. Ainda bem que tiveste um sonho bonito. Mas agora que acordaste, podes ajudar-me a preparar o jantar.
- Mas eu não sonhei, isso foi antes de eu dormir!
Referiu, então, a coisa extraordinária que lhe acontecera.
Maria Pérez fora bonita em moça mas engordara com a idade, como muitas vezes sucede às espanholas. Tinha sofrido muito: dois filhos que tivera antes de Catalina haviam morrido; aceitara isso, porém, do mesmo (modo que o abandono do marido, como uma mortificação que lhe era imposta, pois era profundamente religiosa. E, sendo ao mesmo tempo uma mulher prática que não tinha o hábito de lastimar-se inutilmente, encontrara consolação no trabalho aturado, no ofício divino e nos desvelos com a filha e com seu refractário irmão Domingo. Ouviu aterrada a história de Catalina. Era tão circunstanciada, com pormenores tão precisos, que estaria disposta a darnlhe crédito se, ao menos, não fosse incrível. A única explicação possível era que a enfermidade da pobre rapariga e a perda do namorado lhe houvessem dado volta ao juízo. Estivera a rezar dentro da igreja e depois fora sentar-se sob o sol ardente: era muitíssimo provável que qualquer coisa se tivesse desarranjado no seu cérebro e ela houvesse imaginado tudo aquilo com tamanha força que estava convencida da reailidade do acontecimento.
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- O filho de Don Juan de Valeiro que melhor tem servido a Deus é o bispo - disse Catalina ao terminar.
- Quanto a isso, não há dúvida - volveu a mãe. - Ele é um santo.
- Tio Domingo conheceu-o bem quando ambos eram jovens e pode levar-me à presença dele.
- Cala-te, menina. Deixa-me pensar.
A Igreja não via com bons olhos as pessoas que afirmavam ter-se comunicado com Jesus Cristo ou sua Mãe, e punha toda a sua autoridade em desanimar tais pretensões. Alguns anos atrás, um frade franciscano causara grande alvoroço curando enfermos por meios sobrenaturais e era tal o número de pessoas que recorriam a ele que o Santo Ofício fora obrigado a intervir. Prenderam-no e nunca mais se ouviu falar nele. Pelas conversas do convento das carmelitas, para o qual trabalhava de quando em quando, Maria Pérez tinha notícia de uma freira, que havia afirmado que Elias,, o fundador da ordem, lhe aparecera na cela e lhe conferira favores especiais. A superiora do convento mandara açoitá-la imediatamente, até ela confessar que tinha inventado a história para se dar importância. Se, portanto, frades e freiras pagavam caro tais pretensões, era mais do que provável que a Igreja olhasse com extrema severidade a história de Catalina. Maria atemorizou-se.
- Não digas nada a ninguém - aconselhou a Catalina - , nem mesmo ao tio Domingo. Falarei com ele depois do jantar e ele resolverá sobre o melhor caminho a seguir. Mas, pelo amor de Deus, limpa as cenouras, de contrário não teremos sopa hoje.
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Catalina não ficou muito satisfeita com este alvitre, mas a mãe mandou-a calar e fazer o que lhe diziam.
Pouco depois chegava Domingo. Não estava bêbedo, mas tam-pouco estava bem são, e vinha muito alegre. Gostava de ouvir o som da própria voz e, enquanto jantavam, descreveu com loquacidade a Catalina os sucessos do dia. Isso dá-nos uma boa oportunidade de expor ao leitor as razões pelas quais reinava tamanho alvoroço na cidade.


IV.

Don Juan Suárez de Valero era um cristão-velho e, ao contrário de muitas entre as mais nobres famílias espanholas, cujos filhos, antes de Fernando e Isabel terem unido os reinos de Castela e Aragão, haviam desposado herdeiros de judeus ricos e poderosos, ele podia exibir uma ascendência isenta de qualquer aliança espúria. Mas os seus antepassados eram a sua única fortuna. Possuía escassas terras a uma milha da cidade, próximo a uma povoação chamada Valero, e fora antes para se distinguir das demais famílias Suárez do que para se dar importância que ele e seus ascendentes imediatos haviam acrescentado ao seu o nome da povoação. Era muito pobre e a sua aliança com a filha de um fidalgo de Castel Rodríguez pouco contribuiu para melhorar-lhe as circunstâncias. Dona Violante deu ao seu senhor um filho anualmente, pelo espaço de dez anos, mas desses filhos somente três, todos varões, passaram
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da adolescência. Chamavam-se, respectivamente, Blasco, Manuel e Martin.
Blasco, o mais velho, desde a infância deu sinais de uma inteligência excepcional e, por sorte, também de devoção, de maneira que o destinaram para a Igreja. Na idade própria foi posto no seminário de Alcalá de Henares e a seu tempo passou à universidade. Bacharelou-se em Ciências e Letras e doutorou-se em Teologia em tão poucos anos que era evidente poder ele contar com uon futuro brilhante no clero secular. Prometiam-lhe altas distinções. Mas, de súbito, afirmando desejar viver no isolamento do mundo para poder dedicar-se inteiramente aos estudos, à prece e à meditação, ele mostrou o intuito de ingressar na ordem monástica dos dominicanos. Os seus amigos procuraram dissuadi-lo, pois a ordem era austera, com um serviço divino à meia-noite, perpétua abstinência de carne, frequentes mortificações, jejum e silêncios prolongados. Tudo foi inútil, porém, e Blasco de Valero fez-se frade. Tão manifestas eram as suas qualidades que os seus superiores não podiam desconhecê-las, e quando se descobriu que, além de uma bela presença e grande cultura, ele possuía uma voz ao mesmo tempo forte e melodiosa, assim como uma ardente eloquência, enviaram-no a pregar aqui e ali: pois o Papa Inocêncio III tinha mamdado São Domingos pregar aos hereges e desde então os dominicanos tornaram-se conhecidos como missionários e pregadores. Em certa ocasião mandaram-no à sua velha universidade de Alcalá de Henares. Gozava já de uma reputação considerável e toda a cidade correu a ouvi-lo. O sermão que pronunciou foi sensacional. Empregou todos os seus recursos para convencer a numerosa congregação da importância de conservar a fé na sua pureza e exterminar
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por completo os hereges. Em voz trovejante ordenou aos leigos, pela estima que tinham às suas almas e pelo temor aos rigores do Santo Ofício, que denunciassem tudo que lhes viesse ao conhecimento com sabor ao pecado e ao crime de heresia. Incutiu-lhes, com palavras ameaçadoras, que era dever religioso de cada um delatar o seu vizinho, o filho ao pai, a mulher ao marido, pois não havia laços naturais de afeição que pudessem absolver um filho da Igreja de conivência com um mal que era um perigo para o Estado e uma ofensa a Deus. O resultado do sermão foi satisfatório. Houve numerosas deflações e no final três cristãos-novos, contra os quais ficou provado que costumavam retirar a gordura da carne que comiam e mudar de roupa aos sábados, morreram na fogueira. Bom número de acusados foram condenados à prisão perpétua, com a comfiscação de todas as suas posses, e muitos outros açoitados ou submetidos a penas pecuniárias e outras.
A enérgica eloquência do frade produziu impressão tão funda nas autoridades universitárias que pouco depois era ele nomeado professor de Teologia. Alegou o seu pouco mérito e pediu que o dispensassem de aceitar essa posição de responsabilidade, mas os seus superiores na ordem determinaram que aceitasse e ele teve de obedecer. Desempenhou os seus deveres com crédito e as suas prelecções eram tão concorridas que, embora as fizesse no vasto salão da universidade, não havia espaço suficiente para comportar todos aqueles que desejavam ouvi-lo. A sua reputação galgou grandes alturas e ao cabo de alguns anos, com trinta e sete de idade,, fizeram-no inquisidor do Santo Ofício em Valência.
Embora continuasse sinceramente convicto da sua indignidade, aceitou o posto sem se fazer rogar. Era Valência um
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porto marítimo em que amiúde ancoravam navios estrangeiros - ingleses, holandeses ou franceses. Não raro, as suas tripulações eram protestantes e, por esse motivo, objectos muito apropriados para as actividades da Inquisição. Acresce que tentavam com frequência introduzir na Espanha livros proibidos, como bíblias traduzidas em espanhol e as obras heréticas de Erasmo. Blasco de Valeiro percebeu que podia ser muito útil ali. Além disso, havia grande número de mouros em Valência e nos arredores. Tinham sido convertidos à força, mas ninguém ignorava que a maior parte dessas conversões não iam além da superfície e eles continuavam a observar boa parte dos seus costumes mouriscos. Não comiam carne de porco, usavam em casa os trajes proibidos e negavam-se a comer animais que houvessem perecido de morte natural. Apoiada na autoridade régia, a Inquisição tinha conseguido eliminar o judaísmo, e embora os cristãos-novos pudessem ser ainda olhados com desconfiança, o Santo Ofício encontrava cada vez menos ocasiões de proceder contra eles. Mas com os mouros era diferente. Eram laboriosos e não só a agricultura do país se encontrava nas suas mãos mas também todo o comércio - pois os espanhóis eram demasiado preguiçosos, soberbos e dissipados para se dedicarem a ocupações manuais. Em consequência, os mouros tornavam-se cada vez mais ricos e, como fossem muito prolíferos, o seu número aumentava. Muita gente ponderada vaticinava o dia em que toda a riqueza do país passaria às suas mãos e o seu número excederia o da população nativa. Temia-se, como era natural, que nesse dia eles tomassem conta do poder e reduzissem à servidão os indolentes espanhóis. Tornava-se necessário livrar-se deles a qualquer custo e vários planos foram arquitectados com esse fim.
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Um desses planos era entregá-los às mãos do Santo Ofício e processá-los pelas suas notórias heresias, queimando-os em tal quantidade que os restantes se tornassem inofensivos. Outro plano, menos oneroso, consistia em deportá-los; mas o governo não desejava aumentar o poder dos mouros além do estreito de Gibraltar, acrescentando à população daquelas regiões algumas centenas de milhares de homens robustos e industriosos, de modo que alguém apresentou o engenhoso alvitre de fazê-los embarcar em velhas naus, sob pretexto de conduzi-los à África, e então pôr a pique os barcos, de modo que todos morressem afogados.
Ninguém se interessava mais por esse problema do que Frei Blasco de Valero, e talvez o mais famoso dos seus sermões durante a estada em Alcalá de Henares fosse aquele em que propunha o transporte dos mouros em massa para a Terra Nova, castrando-se previamente os machos, tanto jovens quanto velhos, de modo que em pouco acabariam todos por se extinguir. Foi esse sermão., possivelmente, que lhe valeu o alto e honroso cargo de inquisidor na importante cidade de Valência.
Frei Blasco encetou as suas novas funções com a certeza, fortificada por fervorosas preces, de que tinha diante de si a possibilidade de fazer grandes coisas em honra do Santo Ofício e pela maior glória do Senhor. Sabia que teria de fazer frente aos poderosos. Os mouros eram vassalos dos nobres, a quem pagavam tributo em dinheiro, espécie ou serviços, e aqueles tinham interesse em protegê-los. Mas o frade não levava em conta as pessoas e resolveu não permitir a ninguém,, por maior que fosse, perturbar o desempenho do seu dever. Não havia muitas semanas que estava em Valência quando o informaram de que um fidalgo poderoso, Don Hernando de Belmonte,
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duque de Terranova, impedira as autoridades do Santo Ofício de prender alguns ricos vassalos que, em desobediência à lei, usavam trajes mouriscos e tinham banheiras em casa. Mandou os seus familiares armados prender o duque, multou-o em dois mil ducados e condenou-o à reclusão perpétua num convento. Atacar, logo de início, pessoa tão altamente colocada foi um acto de audácia que infundiu terror nos mais corajosos. Ao tornar-se evidente, contudo, que o inquisidor estava decidido a exterminar os mouros, as autoridades municipais foram reunidas interceder com ele. Fizeram-lhe ver que a prosperidade da província dependia deles e que Valência iria à ruína se ele persistisse naquele intento. Mas Frei Blasco repreendeu-os asperamente e ameaçou-os com a excomunhão, forçando-os assim a submeter-se e a apresentar humildes desculpas. Mediante castigos e confiscações, logrou dentro em pouco reduzir os mouros à miséria e à desgraça. Os seus espias andavam por toda a parte e ai daquele espanhol, leigo ou eclesiástico, que desse motivo a suspeita! Como, em seus sermões, ele continuasse a incutir no povo de Valência a obrigação de denunciar todo aquele que, por gracejo ou mau humor, ignorância ou descuido, pronunciasse alguma palavra leviana, não tardou que todos os habitantes da cidade vivessem num terror perpétuo.
Mas o inquisidor era um homem justo. Tinha o cuidado de adequar a punição à falta. Por exemplo: se bem que, como teólogo, condenasse como pecado mortal as relações carnais entre pessoas não unidas pelo matrimónio, como inquisidor o facto só lhe interessava quando as pessoas envolvidas afirmassem não haver aí pecado mortal, caso em que as condenava a receber cem açoites. Por outro lado, punia apenas com 28

uma multa a asserção não menos herética de que a vida matrimonial valia tanto quanto o celibato. Era, ademais, um homem misericordioso. Não desejava a morte do herege e sim a salvação da sua alma. Certa ocasião um inglês, proprietário de um navio, foi preso e confessou pertencer à religião reformada, ante o que foi apreendida a embarcação e confiscada a carga. Submeteu-se o homem à tortura até falecerem-lhe as forças, e então permitiu-se-lhe abraçar o catolicismo. Foi com sincera satisfação que o Inquisidor pôde, assim condená-lo a apenas dez anos de galés e prisão perpétua. Podemos dar dois ou três exemplos mais do seu natural misericordioso. Após a morte de um penitente, em resultado de duzentos açoites que recebera, ele fizera questão de que o número fosse limitado a cem. Quando era necessário aplicar a tortura a uma mulher grávida o inquisidor adiava-a para depois do parto, e era antes o seu coração compassivo do que o respeito à lei que o levava a ter o maior cuidado para que a tortura não acarretasse invalidez permanente nem fractura de ossos, e se, por vezes, ocorria um acidente ou alguém morria) em resultado dos tratos, ninguém poderia lamentar mais amargamente a ocorrência.
A magistratura de Frei Blasco foi altamente bem sucedida. No decurso de dez anos celebrou trinta e sete autos-de-fé em que seiscentas pessoas se penitenciaram e mais de setenta foram queimadas vivas ou em efígie, não só prestando desse modo um serviço a Deus mas também edificando o povo. Um homem menos humilde do que ele teria considerado a última dessas solenidades como a glória suprema da sua carreira, pois ela se realizou em honra do príncipe Filipe, o herdeiro do trono. As várias cerimónias foram conduzidas com tanta propriedade e de tal modo divertiram o príncipe herdeiro que
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este fez a Frei Blasco um presente de duzentos ducados, com uma carta em que lhe dava os parabéns pelo edificante espectáculo e o exortava a continuar servindo a Deus dessa forma, para glória do Santo Ofício e proveito do Estado. Era evidente que o zelo e a piedade do inquisidor haviam produzido funda impressão nele, pois quando Filipe II morreu pouco depois e o príncipe ascendeu ao trono, nomeou-o acto contínuo bispo de Segóvia.
Ele só aceitou essa nova dignidade após uma noite inteira passada de joelhos, a contender com o Senhor, e deixou Valência entre as lamentações de grandes e pequenos. Conquistara a admiração daqueles pelo seu zelo, pela austeridade da sua vida e pela sua escrupulosa honestidade; enquanto a sua caridade fazia dele o ídolo dos pobres. Ganhava pingues emolumentos como inquisidor e a cortezia de Málaga na qual fora provido traziam-lhe benefícios consideráveis; mas ele gastava até ao último vintém em socorrer as necessidades dos pobres. A confiscação das riquezas dos hereges condenados e as multas impostas aos penitentes canailizavam elevadas quantias para os cofres do Santo Ofício e esse dinheiro servia para atender às grandes despesas da organização, mas não era raro que os inquisidores reservassem para si somas consideráveis. Até ao piedoso Torquemada acumulara desse modo uma imensa fortuna, que gastou na construção do mosteiro de S. Tomás de Aquino, em Ávila, e nos acréscimos feitos ao da Santa Cruz, em Segóvia. Mas Blasco de Valero nunca aprovou essa prática e partiu de Valência tão pobre como lá chegara.
Nunca vestiu outra coisa que não fosse o humilde hábito da sua ordem, jamais comia carne nem usava linho sobre o corpo ou nas roupas de cama,, e flagelava-se regularmente,,
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por vezes com tamanho rigor que o sangue espirrava nas paredes Tal era a sua reputação de santidade que, quando teve de adquirir um novo hábito por estar o primeiro demasiadamente gasto, muita gente pagou aos criados do bispo para lhes conseguirem fragmentos do velho hábito posto fora de uso, os quais usavam como amuletos contra a varíola e o mal venéreo. Antes da sua partida, várias pessoas influentes procuraram arrancar-lhe a promessa de lhes conceder, quando afinal aprouvesse ao Altíssimo chamá-lo a Si, o privilégio de enterrar o seu corpo na cidade em que ele levara a efeito obra tão fecunda. Estavam certos de poder exercer suficiente influência em Roma- para conseguir, senão a sua canonização, pelo menos a sua beatificação, e ter-lhe os ossos na catedral seria uma glória para a cidade. Mas o frade, adivinhando-lhes o pensamento, respondeu com severidade e não quis comprometer-se.
Foi escoltado até três milhas além das portas da cidade por uma grande comitiva de dignitários eclesiásticos, magistrados e grande número de nobres cavalheiros. Quando se despediram dele, não havia um só olho enxuto em toda aquela distinta companhia.


V.

Não é necessário estendermo-nos tanto sobre os outros filhos de Juan de Valero.
O segundo filho, Manuel, era vários anos mais novo do que Blasco e, embora não fosse tolo, não tinha nem a inteligência
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nem a operosidade do irmão. Interessava-se mais pelos desportos do campo do que pela aquisição de cultura. Fez-se um moço belo e rijo, dotado de grande força corporal e alta opinião de si mesmo. Tinha audácia, coragem e ambição. Era grande caçador e capaz de montar cavalos que outros achavam indomáveis. Desde a meninice brincava às touradas com os outros garotos do lugar, e com mais idade não perdia um ensejo de saltar para a arena, e fazer a parte do touro. Aos dezasseis anos conseguiu permissão para lutar a cavalo com um touro e, com grande admiração do público, matou o animal à primeira lançada. Havia muito que decidira abraçar a carreira das armas, pois na Espanha daquela época, a menos que se ingressasse na Igreja,, não havia outro meio de elevar-se na vida. Embora pobre, Don Juan de Valero era muito respeitado, e sucede que um dos nobres da cidade era parente afastado do grande duque de Alva. Assim um belo dia, com uma carta de recomendação na algibeira,, o jovem Manuel partiu em busca da fortuna. Encontrou o grande homem num momento favorável, pois, tendo sido desterrado da corte, achava-se ele então retido no seu castelo de Uzeda. Caiu-lhe em graça a bela aparência desse jovem que vinha solicitar o seu patrocínio quando ele havia caído em desfavor, e ao ser chamado pouco depois por Filipe II para assumir o comando do exército na guerra com Portugal, o duque levou-o na sua comitiva. Derrotou o rei Don António e expulsou-o do seu reino. Apreendeu um grande tesouro em Lisboa e deu aos seus soldados permissão de saquear a cidade e os seus arredores. Manuel portou-se com bravura na batalha e mais tarde, no saque, deitou a mão a muitos objectos de valor que prontamente converteu em dinheiro. Como, porém, Alva estivesse
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velho e não pudesse durar muito, vendo o moço ansioso por fazer progressos na carreira militar, deu-lhe cartas de apresentação para alguns dos seus antigos capitães que tinham servido com ele nos Países Baixos e se achavam então sob o comando de Alexandre Farnese.
Durante vinte anos Manuel lutou com mérito nas guerras para fazer voltar as províncias do norte ao domínio do rei de Espanha. Mostrou-se não só corajoso mas astuto e foi promovido primeiro por Alexandre Farnese e depois pelos generais que à morte deste o substituíram. Era tão inescrupuloso quanto intrépido, não menos cruel do que hábil e igualmente devoto e brutal, de forma que com o tempo veio a ser investido em comandos importantes. Não tardara a descobrir que o homem que serve o seu país nunca é recompensado pelos seus méritos, a menos que peça o que deseja. Não hesitava em fazê-lo, e como havia acumulado quantias consideráveis graças à pilhagem das cidades capturadas, à extorsão a que submetia os mercadores das localidades que administrava e à concessão de favores em troca de dinheiro, pôde finalmente consubstanciar os seus direitos de uma forma que tornava difícil deixar de reconhecê-los. Recebeu a cobiçada Ordem de Calatrava e usava com orgulho a sua fita verde. Dois anos depois foi feito conde de San Costanzo, no reino de Nápoles, com o direito de fazer o uso que lhe aprouvesse do título. Os reis de Espanha tinham o proveitoso hábito de recompensar por esse modo as pessoas merecedoras, e como estas podiam vender os títulos a plebeus ricos que desejavam enobrecer-se, a Coroa conseguia assim prover, financeiramente, sem despesa para o Tesouro, aqueles que a tinham servido bem. Mas o cavaleiro de Calatrava dera um emprego judicioso ao seu dinheiro e não necessitava
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de lançar mão desse recurso. Tinha recebido vários ferimentos, o último tão grave que só a sua vigorosa constituição lhe permitiu sobreviver. Esse ferimento dava-lhe um pretexto razoável para deixar o serviço de el-rei. Resolveu voltar para casa e unir-se pelo casamento a uma família da velha aristocracia da sua cidade natal, o que não duvidava poder fazer graças ao seu posto e à sua fortuna, e depois mudar-se para Madrid, onde empregaria a sua energia e o seu talento para a intriga em satisfazer a sua ambição desmedida. Quem sabe se, jogando bem as cartas e cultivando a amizade das pessoas que convinham,, ele não alcançaria grandes alturas? Estava com quarenta anos e era uma bela- figura de homem, com olhos pretos e ousados, bonito bigode, um ar de virilidade insolente e uma língua desembaraçada.


VI.

Quanto ao terceiro filho, Martin, necessitamos dizer ainda menos. Todas as famílias têm a sua ovelha tinhosa e a família de Juan de Valeiro não constituía excepção à regra. Martin, o mais moço dos três e o último filho que Dona Violamte dera ao marido, não possuía nem o zelo ardente graças ao qual Blasco de Valero havia alcançado a eminência na Igreja, nem a ambição e destreza que tinham trazido fama e fortuna a Don Manuel. Parecia contentar-se com o cultivo das escassas e magras terras de cujos produtos viviam seus pais. Naqueles

tempos, devido às guerras constantes e à atracção que a América exercia sobre os espíritos jovens e aventurosos, havia falta de braços na Espanha. Os mouros, inteligentes e trabalhadores, nunca tinham sido numerosos na região e por essa época a sua quase totalidade fora obrigada a abandoná-la. Martin era uma grande decepção para Don Juan, e embora a sua esposa insistisse que tinha as suas vantagens possuir um filho robusto, activo e disposto a enfrentar qualquer espécie de trabalho, ele não cessava de afligir-se.
Mas um golpe ainda maior lhe estava reservado. Aos vinte e três anos Martin casou, e fê-lo com pessoa de classe inferior. É verdade que a sua noiva era uma cristã-velha e estava convincentemente provado que pelo espaço de gerações não houvera aliança com pessoas de sangue judeu ou mouro, mas o pai era padeiro. Consuelo era filha única e herdaria todas as suas posses, mas isso não alterava o facto de ser o homem um mercador. Passaram-se alguns anos. Consuelo teve filhos. Então um novo golpe feriu Don Juan: o padeiro morreu e o velho suspirou aliviado, pois agora seria possível vender a padaria e o estigma dessa conexão com um ofício manual acabaria por se apagar. Mas nem bem o padeiro fora decentemente enterrado quando Marttin informou os pais de que pretendia mudar-se para a cidade e dirigir o estabelecimento em pessoa. Mal podiam dar crédito aos seus ouvidos. Don Juan esbravejou, Dona Violante chorou. O filho fez-lhes ver que, se tinham melhorado um pouco de vida ultimamente, era graças ao dote de Consuelo; esse dote evaporara-se; ele tinha quatro filhos e não havia razão para que não viessem outros quatro; o dinheiro andava escasso na Espanha e a venda do negócio não podia render mais que o suficiente para sustentá-lo ainda
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alguns anos, ao termo dos quais os aguardava a miséria e a fome. Levantou o ridículo argumento de que cozer pão não era mais vergonhoso do que lavrar um campo estéril ou espremer azeitonas.
Martin instalou a família por cima da padaria. Levantava-se muito antes de amanhecer para levar o pão ao forno e depois ia a cavalo à chácara, onde trabalhava até à noite. Prosperou, pois fazia bom pão, e ao cabo de um ano ou dois pôde pagar a um homem para fazer o trabalho da chácara, mas não deixava passar um dia sem ir ver os pais. Era raro que não lhes levasse alguma coisa e dentro em pouco eles puderam comer carne todos os dias permitidos pela Igreja. Estavam adiantados em anos e Don Juan não podia negar que os presentes do filho eram um conforto para a sua velhice. Se bem que houvesse causado certa surpresa na cidade o facto de ter-se o filho de Juan de Valero rebaixado daquela forma,, e os garotos lhe gritassem na rua "panadero" em tom de mofa, o seu bom génio e inconsciência de ter feito qualquer coisa fora do comum não tardaram a desarmar toda a gente. Era caridoso e nenhum pobre lhe aparecia à porta pedindo esmola sem levar um pão fresco. Era religioso, ia à missa todos os domingos e confessavam regularmente quatro vezes por ano. Ao começar a nossa narrativa era um homem forte e disposto, de trinta e quatro anos, algo corpulento, pois gostava da boa mesa e do bom vinho, com um rosto redondo e franco, uma expressão jovial e feliz.
- É óptima pessoa - diziam dele - , não muito inteligente nem muito instruído, mas bom e honesto.
Era de agradável trato, amigo de gracejar e com o correr do tempo, quando Martin passou a ter vida mais folgada,
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homens de posição respeitável vinham muitas vezes à padaria conversar com ele e o estabelecimento tornou-se mesmo uma espécie de ponto de encontro em que os amigos iam ver-se e dar dois dedos de conversa.
Era uma feliz circunstância que ele houvesse tomado a seu cargo o sustento dos pais, visto que Frei Blasco, durante os seus vinte anos de ausência, jamais lhes enviara um vintém - pois distribuía em esmolas tudo quanto tinha - enquanto Don Manuel também não mandava nada porque nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse dar melhor emprego ao seu dinheiro do que ele mesmo. Desse modo, dependiam inteiramente de Martin na velhice. Ainda se envergonhavam dele e não podiam deixar de lastimar o rumo que dera à sua vida. Era uma fonte contínua de irritação o facto de ele parecer inteiramente satisfeito com o seu estado. Tratavam-lhe a esposa plebeia com a cerimoniosa cortesia que lhes parecia exigir o respeito próprio e ganharam afeição aos netos. Mas o seu coração estava com os dois filhos que haviam trazido honra e glória ao seu antigo nome.


VII.

Não é difícil imaginar a alegria com que Don Juan e Dona Violante aguardavam o dia em que tornariam a vê-los após tão prolongada separação. O frade escrevia com raros intervalos, e como nem Don Juan nem o filho padeiro eram
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muito letrados e de qualquer modo sentiam-se incapazes de escrever com a elegância devida a um culto homem de Igreja, tinham pedido a Domingo Pérez que respondesse às cartas. E Domingo fazia-o com plena satisfação tanto dos Valeros como de si próprio, pois orgulhava-se da elegância do seu estilo. Don Manuel, por outro lado, nunca se comunicara com ele a não ser quando estava cabalando para conseguir a Ordem de Calatrava e necessitou apresentar provas da pureza da sua ascendência. Também dessa vez recorreram aos bons serviços de Domingo, que preparou uma genealogia, devidamente autenticada pelos magistrados locais, em que reportava as origens da família, sem a menor mistura de sangue judeu, a Afonso VIII, rei de Castela,, o qual desposara Eleanora, filha de Henrique II da Inglaterra.
O que motivava a vinda dos dois filhos de Don Juan não era apenas o regresso de Don Manuel após os longos anos de serviço nas guerras e a elevação de Frei Blasco à dignidade episcopal, mas também a comemoração das bodas de ouro do velho casal. Combinaram os dois irmãos encontrarem-se numa localidade situada a umas vinte milhas de Castel Rodríguez e realizar juntos a sua entrada solene na cidade. Don Juan comprazia-se em pensar que a grandiosa recepção preparada aos filhos compensaria de certo modo o longo opróbrio da degradação do pobre Martin. Estava, naturalmente, impossibilitado de receber os dois filhos e as respectivas comitivas na sua semi-arruinada granja. Ficou, pois, combinado que o bispo se hospedaria no convento dominicano, enquamto o despenseiro do duque de Castel Rodríguez, na ausência do seu amo, que estava em Madrid, oferecia aposentos a Don Manuel no palácio ducal.
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Chegou o grande dia. Os nobres da cidade puseram-se a caminho, montando os seus cavalos, enquanto os magistrados e os eclesiásticos cavalgavam mulas. Seguiam, numa carruagem que lhes emprestara uma pessoa de qualidade, Don Juan e Dona Violante acompanhados de Martin e da família deste. Pouco depois os visitantes tão ansiosamente esperados foram vistos a aproximar-se pela sinuosa e poeirenta estrada. O bispo, com o hábito dominicano, sobre o lombo de uma mula, cavalgava ao lado do irmão no seu corcel de guerra. Envergava uma maravilhosa armadura, toda marchetada de ouro. Atrás deles vinham os dois secretários do bispo, religiosos da mesma ordem, os seus criados e os do capitão, vestidos de sumptuosa libré. Após saudar os importantes personagens que os tinham vindo receber e após ouvir alguns eloquentes discursos, o bispo perguntou pelo pai e pela mãe. Estes, que se mantinham modestamente atrás dos outros, adiantaram-se então. Dona Violante ia ajoelhar-se para beijar o anel episcopal quando o bispo, com grande admiração dos espectadores, não a deixou fazer e, tomando-a nos braços, beijou-lhe ambas as faces. Ela pôs-se a chorar e muitas pessoas presentes ficaram tão tocadas com aquilo que as lágrimas lhes corriam pelas faces. Beijou ele também o pai e, enquanto os dois velhos se voltavam para o segundo filho, perguntou por Martin.
- "El panadero" - chamou alguém.
Martin avançou então por entre a multidão, com a mulher e os filhos. Todos haviam vestido as suas melhores roupas e o jovial, rubicundo e corpulento homem, tinha excelente aspecto. O bispo saudou-o afectuosamente e Don Manuel com certa condescendência, enquanto Consuelo e os pequenos ajoelhavam no chão e beijavam o anel do bispo. Este felicitou
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amavelmente o irmão pelo número e pela saudável aparência dos seus rebentos. Nas cartas que lhe escreviam, Dom Juan e Dona Violamte haviam falado do casamento do filho mais moço e participado o nascimento das crianças, mas jamais ousaram informá-lo de que Martin se fizera mercador. Observavam o encontro cheios de apreensão. Sabiam que a verdade, infalivelmente, não tardaria a vir à tona, mas estavam ansiosos por evitar qualquer ocorrência que pudesse perturbar o regozijo da ocasião. Ao cabo de muitas disputas, havia assentado quem iria à direita e quem à esquerda dos dois ilustres filhos da cidade, e embora muitos guardassem ressentimento formou-se o cortejo e a cavalgada realizou uma entrada imponente na cidade. Ao transporem as portas os sinos das igrejas puseram-se a repicar, foguetes estouraram, houve um clangor de trombetas e um rufar de tambores. As ruas estavam apinhadas de gente e foi entre vivas e palmas que eles passaram pelas ruas, a caminho da colegiada, onde se cantaria um "Te Deum".
O serviço divino foi seguido de um banquete e os anfitriões notaram que, embora fosse dia de festa da Igreja, o bispo não comia carne nem tomava vinho. Terminada a refeição ele mostrou o desejo de ficar alguns instantes a sós com as pessoas da sua família. Martin foi buscar a mãe, que se recolhera à casa do padeiro com Consuelo e as crianças. Ao voltar, encontrou o mano Blasco a sós com o pai, mas nem bem havia entrado na sala quando surgiu Don Manuel, de sobrolho franzido, os olhos negros de cólera.
- Mano - disse ele, dirigindo-se a Blasco - , tu sabes que esse Martin, filho de um nobre de antiga linhagem,, é um pasteleiro?
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Don Juan e sua esposa estremeceram, mas o bispo limitou-se a sorrir.
- Pastelleiro não, mano: padeiro.
- Quer dizer então que sabias?
- Há anos que sei. Embora os meus sagrados deveres não me permitissem dedicar a meus pais o cuidado que desejava, observava-os de longe e nunca os esquecia nas minhas orações. O prior da nossa ordem nesta cidade mamtinha-me ao par da sua situação.
- Então como consentiste que ele lançasse tamanho labéu sobre a nossa família?
- Nosso irmão Martin é um homem virtuoso e devoto. É um cidadão respeitado e caridoso para os pobres. Tem zelado pelos nossos pais na sua velhice. Não lhe posso censurar o haver tomado uma decisão que lhe era imposta pelas circunstâncias.
- Eu sou um soldado, mano, e ponho a honra acima da vida. Essa história arruinou-me os planos.
- Duvido muito.
- Como podes saber? - esbravejou Don Manuel. - Tu não conheces os meus planos.
O esboço de um sorriso clareou por um instante as feições austeras do bispo.
- Não deves ter muita experiência do mundo,, mano - respondeu ele - , se ignoras que os nossos assuntos pessoais raramente escapam à notícia dos nossos servidores. Esqueces que passámos dois dias debaixo do mesmo tecto, a caminho daqui. Chegou-me aos ouvidos que não vieste apenas cumprir um dever filial, mas também escolher uma esposa entre as famílias nobres da cidade. Apesar da profissão que nosso irmão resolveu seguir, com o título que Sua Majestade houve por bem
conceder-te e o dinheiro que ganhaste a seu serviço creio que não te será difícil alcançar o teu objectivo.
Martin ouvia tudo isso sem o menor sinal de que sentisse vergonha. O seu rosto bem-humorado tinha uma expressão de divertimento.
- Não esqueças, Manuel - disse ele - , que Domingo Pérez repontou as origens de nossa família a um rei de Castela e a um rei de Inglaterra. Isso não pode deixar de ter o seu peso junto à família a que pretendas fazer a honra de lhe desposar a filha. Domingo disse-me que um dos reis ingleses fazia bolos, de modo que talvez não haja grande ignomínia no facto de um descendente de reis fazer pão, sobretudo quando, por opinião unânime, é o melhor pão da cidade.
- Quem é esse Domingo Pérez? - perguntou o soldado, de carramca fechada.
Não era fácil responder a esta pergunta, porém Martin fez o que pôde.
- Um homem instruído e um poeta.
- Recordo-me dele - disse o bispo. - Estivemos juntos no seminário.
Don Manuel fez um gesto agastado e dirigiu-se ao pai.
- Como pôde permitir que ele nos envergonhasse assim?
- Eu não aprovei. Fiz tudo que estava no meu poder para impedi-lo.
Don Manuel voltou-se então severamente para o irmão mais novo.
- E tu ousaste contrariar o desejo de teu pai? Devia representar para ti uma ordem. Dá-me uma razão, uma só, pela qual, mandando a decência à fava, te rebaixaste fazendo-te padeiro.
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- A fome.
A palavra pareceu desabar no chão como um monte de alvenaria. Don Manuel sufocou uma exclamação de nojo e raiva. Mais uma vez, um leve sorriso tremeu nos lábios do bispo. Os próprios santos conservam certa dose de humanidade, e durante os dois dias que tinham passado jumtos Don Blasco chegara à conclusão de que não simpatizava muito com seu mano militar. Censurava-se tal coisa, mas nem toda a sua caridade cristã conseguia vencer a impressão de que Don Manuel era um indivíduo grosseiro, brutal e despótico.
Por felicidade, essa reunião de família foi interrompida pela entrada de algumas pessoas, as quais vinham avisar que estava na hora das touradas. Os dois irmãos receberam lugares de honra. A municipalidade dera-se a despesas para conseguir bons touros e o espectáculo esteve à altura da ocasião. Depois de terminado, o bispo retirou-se para o convento dominicano com os frades que o acompanhavam e Don Manuel dirigiu-se para os aposentos que lhe tinham sido reservados. O povo da cidade voltou para as suas casas ou para as tabernas, a fim de trocar impressões sobre as emocionantes ocorrências do dia, e Domingo Pérez acabou por encontrar o caminho da casa da irmã.


VIII.

Após a ceia, como de hábito, Domingo subiu para o seu quarto. Pouco depois Maria foi ter com ele. Tinha ouvido, lá em baixo, ler em voz sonora e dramática, e quando bateu
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à porta ele não respondeu. Entrou. Era um quarto pequeno e desguarnecido, que não continha mais do que um leito, um baú para a roupa, uma mesa e uma cadeira. Havia uma prateleira cheia de livros e livros espalhados na mesa, no soalho e sobre a arca. A cama estava desarrumada e Domingo atirara para ali a sua batina. Estava de calções e em mangas de camisa. Inúmeros papéis juncavam a mesa e a um canto do quarto via-se grande pilha de manuscritos. Maria suspirou ao ver aquela desordem a que jamais conseguira pôr termo. Sem tomar conhecimento da presença da irmã, ele continuou a declamar as falas de uma peça teatral.
- Quero falar contigo, Domingo - disse ela.
- Não me interrompas,, mulher. Escuta os versos gloriosos do maior génio dos -nossos tempos.
E continuou a vozear. Maria bateu com o pé.
- Larga esse livro, Domingo. Tenho uma coisa muito importante para te dizer.
- Vai-te daqui. Que coisa pode ser mais importante do que a divina inspiração dessa fénix da época, do incomparável Lope de Vega?
- Não sairei enquanto não me ouvires. Domingo atirou o livro, agastado.
- Então dize o que tens para dizer. Dize depressa e vai-te. Ela contou-lhe a história de Catalina: como a Virgem lhe
aparecera e lhe dissera que o bispo, filho de Dom Juan, tinha o poder de curá-la da sua enfermidade.
- Isso foi um sonho, minha pobre Maria - disse ele quando a irmã terminou.
- Foi o que eu lhe disse. Mas afirma que estava bem acordada. Não posso convencê-la do contrário.
Domingo ficou impressionado.
- Vou descer contigo. Quero ouvir essa história dos seus próprios lábios.
Pela segunda vez, Catalina narrou o incidente. A Domingo bastou um olhar para se convencer de que ela acreditava firmemente em cada palavra que dizia.
- Por que motivo estás tão segura de que não dormias, menina?
- Como podia eu pegar no sono àquela hora do dia? Tinha acabado de sair da igreja. Chorei, e quando cheguei a casa o meu lenço estava molhado de lágrimas: como podia enxugar os olhos enquanto dormia? Ouvi tanger os sinos quando o bispo e Don Manuel entraram na cidade. Ouvi as trombetas, os tambores e os gritos do povo.
- Não faltam ardis a Satanás para enganar os desprevenidos. A própria Madre Teresa de Jesus, a freira que fundou tantos conventos, receou por muito tempo que as suas visões fossem obras do demónio.
- Será possível a um demónio simular a doçura e a bondade de Nossa Senhora quando me falou?
- O diabo é bom actor - sorriu Domingo. - Quando Lope de Rueda se impacientava com os componentes da sua "troupe", dizia que, se o diabo quisesse trabalhar para ele, dar-lhe-ia de bom grado, em paga, todas as almas da companhia. Mas ouve, querida: nós sabemos que certas pessoas devotas receberam a graça de ver com seus próprios olhos Nosso Senhor e a Santíssima Virgem, mas receberam essa graça em recompensa de orações, jejuns, mortificações e de uma vida dedicada ao serviço do Senhor. Que fizeste tu para merecer
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um favor que só é concedido a outros ao cabo de longos anos de imolação de si mesmos?
- Nada - respondeu Catalina. - Mas sou pobre e desgraçada, implorei a Nossa Senhora que me socorresse e ela teve piedade de mim.
Domingo guardou silêncio por alguns momentos. Catalina era resoluta e voluntariosa, e ele tinha medo. A moça não fazia ideia dos perigos que corria.
- A Santa Madre Igreja não olha com indulgência as pessoas que afirmam ter comunicação com o Céu. O país está infestado de gente que pretende ter sido contemplada com privilégios sobrenaturais. Alguns são pobres criaturas iludidas que acreditam no que dizem; muitos são impostores que inventam tais coisas a fim de conquistar notoriedade ou ganhar dinheiro. O Santo Ofício persegue-os com razão, pois eles perturbam os ignorantes e muitas vezes levam-nos à heresia. A uns o Santo Ofício põe na prisão, a outros açoita, a uns manda para as galés, a outros para a fogueira, imploro-te, pelo amor que nos tens, que não divulgues nem uma só palavra do que nos contaste.
- Mas tio, querido tio, é toda a minha felicidade que está em jogo! Todos sabem que não há no reino homem mais santo do que o bispo. É coisa sabida que até os pedaços do seu hábito têm uma virtude milagrosa. Como poderei ficar calada, quando a Santíssima Mãe de Deus me disse pessoalmente que ele me pode curar deste mal que me roubou o amor do meu Diego?
- Não é só a ti que isso interessa. Se o Santo Ofício resolver fazer um inquérito, é bem possível que o meu processo seja reaberto, pois o Santo Ofício tem a memória comprida, e se nos puserem nos cárceres da Inquisição esta casa será vendida
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para pagar as despesas do nosso sustento e tua mãe ver-se-á lançada às ruas, onde terá de mendigar o seu pão. Promete-me ao menos que não dirás nada até que tenhamos tempo de reflectir.
Domingo tinha um ar de tamanha consternação, de tão profunda ansiedade, que Catalina cedeu.
- Sim, isso eu prometo.
- És uma excelente menina. Agora deixa que tua mãe te ponha na cama, pois todos nós estamos cansados de um dia tão cheio de acontecimentos.
Beijou-a e deixou as duas mulheres, a sós, mas chamou a irmã do alto da escada. Ela veio atendê-lo.
- Dá-lhe um purgante - murmurou Domingo. - Com os intestinos a funcionar bem ela mostrar-se-á mais razoável, e amanhã poderemos convencê-la de que tudo isso não passou de um sonho muito infeliz.


IX.

Mas o purgante não produziu efeito - pelo menos o efeito desejado. Catalina continuou a asseverar que tinha visto a Virgem Santíssima com os seus próprios olhos e falado com ela. Descrevia-lhe as vestes com tamanha precisão que Maria Pérez encheu-se de assombro. Ora, sucedeu que o dia seguinte era sexta-feira e Maria foi confessar-se. Havia muitos anos que tinha o mesmo confessor, o padre Vergara, e confiava tanto
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na benevolência como na prudência deste. Portanto, depois de receber a absolvição ela contou-lhe a estranha história de Catalina e repetiu-lhe grande parte do que Domingo havia dito. - Seu irmão portou-se com uma discrição e um bom-senso admiráveis, sobretudo porque tais qualidades não seriam de esperar nele. Este assunto deve ser tratado com cautela. Não devemos fazer nada às pressas. É preciso evitar o escândalo e a senhora deve ordenar à sua filha que não fale nisso a ninguém. Vou reflectir e, se necessário, consultarei o meu superior.
O confessor de Maria também o era de Catalina e conhecia a ambas tão bem como só um confessor pode conhecer as suas penitentes. Sabia-as simples, honestas, sem malícia e tementes a Deus. O próprio Domingo não lhes pudera corromper a inocência ou empanar-lhes a candura. Catalina era uma menina sensata, dona de uma cabeça sólida, e se não suportava com resignação a sua invalidez não se podia negar que a suportasse com coragem. Era ingénua de mais para ter inventado aquela história com segundas intenções. Além disso, estava convencido de que a natureza excessivamente material da jovem não era capaz de imaginar um acontecimento espiritual. O padre Vergara era dominicano e fora no seu convento que o bispo se hospedara com a sua comitiva. Homem simples e de medíocre cultura, a história da aventura de Catalina contada pela mãe desta perturbou-o de tal forma que se sentiu na obrigação de referi-la ao seu prior. Este reflectiu e chegou à conclusão de que era preciso informar o bispo; mandou, pois, um noviço perguntar-lhe se podia ouvi-los, a ele e ao padre Vergara, a respeito de um assunto que talvez fosse de importância.
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Daí a pouco o noviço voltou dizendo que o bispo teria prazer em recebê-los.
Tinham-lhe dado a cela mais espaçosa do convento. Uma dupla arcádia com um pilar de suporte separava-a em duas partes, uma das quais servia de alcova e a outra de oratório. Ao entrarem o prior e o padre Vergara, encontraram o bispo a ditar cartas a um dos seus secretários. O prior explicou a que tinham vindo e deixou que o padre Vergara repetisse ponto por ponto o que lhe dissera a sua penitente. O frade começou por expor ao bispo o quanto as duas mulheres eram honestas e devotas, a existência irrepreensível que levavam, depois descreveu o fatal acidente em consequência do qual a infeliz Catalina havia perdido o uso da perna e as atenções do seu namorado, e terminou repetindo a história da aparição da Santíssima Virgem, a qual dissera à menina que o bispo a curaria da sua enfermidade. Pensando bem, resolveu acrescentar que Domingo Pérez, o tio da menina lhe arrancara a promessa de conservar sigilo sobre o episódio enquanto o assunto não fosse devidamente examinado. Quando ele terminou, o rosto do bispo assumira uma expressão de tal severidade que o frade, com a voz estrangulada, suava por todos os poros. Fez-se um silêncio.
- Eu conheço esse Domingo - disse o bispo afinal. - É um homem de má vida, com quem nenhuma pessoa que preze a salvação da sua alma deveria manter relações. Mas não é tolo. Ao exigir da sobrinha a promessa de segredo, agiu com prudência. É também o confessor da menina, padre? - O outro fez uma reverência. - Fará bem em recusar-lhe a absolvição enquanto ela não prometer que não falará nisso a ninguém.
O padre frade arregalou os olhos para o bispo, cheio de
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confusão. Não era ele, pelo consenso geral, um santo? O padre Vergara julgava que ele receberia de braços abertos essa oportunidade de exercer os seus poderes milagrosos, com o que não só glorificaria o Senhor mas conduziria muitos pecadores ao arrependimento. O olhar do bispo era frio. Dir-se-ia que só por um esforço de vontade ele conseguia dominar a sua cólera.
- E agora, se me dão licença, vou prosseguir o meu trabalho - disse ele; e, voltando-se para o secretário: - Leia de novo a última frase que ditei.
Os dois frades retiraram-se timidamente, sem dizer mais uma só palavra.
- Por que estará ele tão vexado? - perguntou o padre Vergara.
- Não devíamos ter-lhe falado nisso. A culpa é minha. Ofendemos a sua humildade. Ele não sabe que grande santo é e não se julga digno de fazer um milagre.
A explicação parecia muito razoável e, como redundava em maior crédito para o bispo, o padre Vergara apressou-se a contar tudo aos seus confrades. Dentro em pouco o convento zumbia de excitação. Alguns louvavam a modéstia do bispo, outros lamentavam que ele não tivesse aproveitado essa ocasião de fazer alguma coisa que tanto exaltaria o seu renome e a boa fama da ordem.
Entrementes, a história havia alcançado outros ouvidos. A igreja em que Catalina estivera a rezar e de onde, a dar-lhe crédito, a Santíssima Virgem tinha saído pertencia, como dissemos, ao convento carmelita da Encarnação. Era o convento ricamente dotado e havia muitos anos que a prioresa tinha o hábito de dar trabalho a Maria Pérez, em parte por caridade
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e em parte por ser ela habilíssima no difícil e trabalhoso ofício que exercia. Maria viera, desse modo,, a fazer amizade com muitas dentre as religiosas. Como se tratasse de um convento de ordem mitigada, gozavam elas de bastante liberdade e não era raro que uma das freiras lhe viesse à casa almoçar e conversar. Dois ou três dias após a confissão de Maria, necessitou esta de ir ao convento e, após cumprir a sua obrigação, pôs-se a tagarelar com a freira que era sua amiga mais íntima. Exigindo-lhe juramento de segredo, contou-lhe o estranho facto que ocorrera à sua filha. As religiosas eram muito palradeiras e semelhante história não podia deixar de ser um grande acontecimento na rotina piedosa mas monótona das suas existências, de modo que ao cabo de vinte e quatro horas todas as moradoras do convento estavam informadas e o caso acabou por chegar aos ouvidos da prioresa. Como esta senhora desempenha um papel de certa importância na nossa narrativa, torna-se necessário contar aqui a sua história, ainda que com risco de aborrecer o leitor.


X.

Beatriz Henríquez y Bragamza, na vida religiosa Beatriz de San Domingo, era filha única do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Tinha grande fortuna e era poderosíssimo. Logrou conservar a confiança do sombrio e desconfiado Filipe II e exerceu com distinção importantes cargos na Espanha e na Itália. Possuía vastas
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propriedades em ambos os países e, embora os seus deveres o forçassem a morar ora aqui ora ali, não havia para ele nada melhor do que viver com a esposa e os filhos - pois tinha três-, dois homens e uma mulher - na cidade em que nascera, com os seus ares saudáveis e as suas grandiosas vistas. Era ali que se originara a sua raça e fora graças à repulsa, por um dos seus antepassados, das tropas mouras que assediavam a cidade, que a família começara por adquirir eminência. Não existia ali ninguém maior do que o duque de Castel Rodríguez, o qual vivia numa propriedade quase régia. Como durante toda a história da família os seus membros houvessem contraído grandes alianças, ela achava-se relacionada com os mais magníficos nobres de Espanha. Ao fazer treze anos sua filha, Beatriz, ele procurou um esposo que lhe conviesse, e após passar em revista vários candidatos possíveis decidiu-se pelo filho único do duque de Anteguera, O qual descendia por vias espúrias de Fernando de Aragão. O duque de Castel Rodríguez prontificava-se a dar à filha um dote magnífico, e assim o assunto foi resolvido sem dificuldade. Realizaram-se os esponsais dos dois jovens, mas como o rapaz não tinha mais de quinze anos combinou-se que só se faria o casamento quando ele alcançasse uma idade apropriada. Beatriz teve permissão de ver o futuro marido em presença dos pais deste e dos seus, dos tios e tias e outros parentes mais distantes. Era um rapazinho atarracado, de estatura não maior que a dela, áspera gaforinha preta, nariz arrebitado e boca mal-humorada. Concebeu uma imediata antipatia por ele, mas sabia que era inútil protestar e contentou-se em lhe fazer caretas. Ele respondeu mostrando-lhe a língua.
Depois dos esponsais o duque mandou-a terminar a sua
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educação no convento carmelita da Encarnação, em Ávila, onde sua irmã era prioresa. Ela achou divertida a vida do convento. Havia ali outras meninas, filhas de famílias nobres, em situação idêntica à sua, e várias senhoras que por uma razão ou por outra viviam como pensionistas no convento sem estar sujeitas à disciplina deste. A regra suavizada das carmelitas era bastante suportável e, embora algumas das freiras se dedicassem à prece e à contemplação, muitas delas, sem negligenciar os seus deveres, saíam e iam visitar as pessoas amigas, ausentando-se por vezes durante semanas inteiras. A sala de visitas estava sempre cheia de pessoas de ambos os sexos, de modo que se fazia ali uma alegre vida social. Armavam-se casamentos, discutia-se o andamento das guerras e permutavam-se os mexericos da cidade. Era uma existência pacífica e inofensiva, com diversões modestas, e para as freiras não representava um caminho muito árduo para a eterna bem-aventurança.
Na idade de dezasseis anos foi Beatriz tirada do convento e desceu com a mãe para Castel Rodríguez, acompanhada de um batalhão de criados. A duquesa não estava bem de saúde e os médicos tinham-lhe recomendado que fosse viver num clima menos rigoroso que o de Madrid. Preso pelos assuntos de estado, o duque ficou a contragosto na capital. Aproximava-se a época em que deveria realizar-se o casamento de Beatriz e seus pais achavam conveniente que ela aprendesse alguma coisa sobre o modo de dirigir um grande solar. A duquesa passou, pois, alguns meses ensinando à filha as normas sociais que ela não podia ter aprendido no convento das carmelitas. Beatriz fizera-se uma jovem alta, de grande beleza, com uma pele clara e sem marcas de bexigas, feições de uma regularidade clássica,
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talhe esguio e flexível. Os espanhóis daquela época apreciavam formas mais opulentas e algumas das senhoras que vinham prestar os seus respeitos à duquesa lamentavam-lhe a magreza, mas a desvanecida mãe respondia que o casamento não tardaria a remediar esse defeito.
Nesse tempo Beatriz era alegre,, apaixonada pela dança e estuante de vitalidade animal. Era travessa e voluntariosa. Já então possuía um génio autoritário, pois haviam-na estragado com mimos, e sempre teve o hábito de impor a sua vontade aos que a cercavam. Desde pequena compreendera que estava destinada pelo nascimento às altas posições de mando e que o resto da humanidade devia submeter-se aos seus caprichos. O seu confessor, bastante preocupado com esse desejo de domínio, falou nisso à duquesa:, mas esta não se mostrou muito impressionada com a advertência.
- Minha filha nasceu para mandar, padre. Não se pode esperar dela o servilismo de uma lavadeira. Se o seu temperamento é excessivamente orgulhoso, o marido, caso tenha carácter, o modificará sem dúvida .alguma, e caso não o tenha o sentimento do que lhe é devido, que não falta a Beatriz, será benéfico para ele também.
No convento, Beatriz tomara-se de entusiasmo pelos romances de cavalaria a que algumas das senhoras pensionistas eram muito afeiçoadas. Embora a freira encarregada de zelar pelas alunas não lhe permitisse lê-los, de quando em quando ela conseguia lançar um olhar furtivo a essas histórias intermináveis. Quando veio para Castel Rodríguez encontrou vários no palácio e, como a mãe estivesse muitas vezes indisposta e a "duena" fosse indulgente, devorou-os com avidez. A sua imaginação juvenil inflamou-se e começou a pensar com fastio no
inevitável casamento com o rapaz que ela ainda via como um garoto achaparrado, mal enjambrado e birrento. Tinha consciência da sua beleza e na missa, na companhia da mãe, não perdia nenhum dos olhares de admiração que lhe deitavam os jovens casquilhos da cidade. Reuniam-se na escadaria da igreja para vê-la sair e, embora Beatriz andasse com os olhos modestamente baixos, ao lado da duquesa, seguida pelos dois lacaios de libré que carregavam as almofadas de veludo sobre as quais se haviam ajoelhado durante o serviço divino, percebia a sensação que causava e o seu ouvido apanhava os elogios que os rapazes, segundo o costume espanhol, diziam à sua passagem. Conquanto nunca olhasse para eles, conhecia-os a todos de vista e não tardou a descobrir-lhes os nomes, a que famílias pertenciam e, na verdade,, tudo que era possível saber a respeito deles. Uma ou duas ocasiões os mais ousados cantaram-lhe serenatas, mas a duquesa mandava imediatamente os criados enxotá-los. Certa feita encontrou uma carta em cima do seu travesseiro. Adivinhou que uma das criadas fora paga para a pôr ali. Abriu o sobrescrito e leu-a duas vezes, depois rasgou-a em pedacinhos e queimou-os à chama das velas. Foi a primeira e a única carta de amor que recebeu na sua vida. Não trazia assinatura e ela não podia adivinhar de quem provinha.
Devido ao mau estado da sua saúde a duquesa achava suficiente assistir à missa nos domingos e dias de festa, mas Beatriz ia todas as manhãs com a "duena". A missa realizava-se muito cedo e eram poucas as pessoas que se encontravam na igreja, mas havia um seminarista que nunca faltava. Era alto e magro, de feições resolutas, olhos escuros e apaixonados.
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Por vezes, quando andava com a "duena" no desempenho de alguma piedosa missão, ela passava pelo moço na rua.
- Quem é esse? - perguntou Beatriz um dia em que o viu caminhar lentamente na sua direcção, a ler um livro.
- Esse? Ora, ninguém. É o filho mais velho de Juan Suárez de Valero. "Hidalguía de gutierra".
Esta expressão, que pode ser traduzida por "nobreza de sarjeta", era o termo desdenhoso aplicado aos fidalgos de nascimento que não tinham meios para viver de acordo com a sua posição. A "duena", uma viúva vagamente aparentada ao duque, era orgulhosa, devota;, criticadora e sem vintém. Residira toda a vida em Castel Rodríguez, até que, ao deixar Beatriz o convento, o duque a tinha escolhido para dama de companhia da filha. Conhecia todos os habitantes da cidade como as palmas das suas mãos, e apesar de muito piedosa não resistia à tendência de falar mal do próximo.
- Que faz ele aqui nesta época do ano? - indagou Beatriz. A "duena" sacudiu os ombros magros. - Adoeceu no seminário por excesso de trabalho e os médicos desesperaram de salvá-lo. Mandaram-no para casa, a ver se recobrava a saúde, e por mercê divina foi o que sucedeu. Dizem-no muito talentoso. Segundo creio, seus pais esperam que ele obtenha um benefício graças à influência do duque seu pai.
Beatriz nada mais disse.
Mas, por alguma razão que os médicos não podiam descobrir, começou a perder o apetite e a animação. Também perdeu a cor fresca das faces e tornou-se pálida. Andava apática e muitas vezes iam encontrá-la banhada em lágrimas. Ela, cuja alegria, cujo carácter encantadoramente caprichoso e irresponsável
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tinham dado vida àquele palácio sombrio e magnificente, andava agora entregue à tristeza e ao desalento. A duquesa não sabia o que fazer e, temendo que a menina fosse de mal a pior, escreveu ao marido pedindo que viesse vê-las, a fim de resolverem sobre o melhor caminho a seguir. Ele veio e ficou estupefacto com a mudança que se operara na filha. Beatriz estava mais (magra do que nunca e tinha manchas negras debaixo dos olhos. Chegaram à conclusão de que o melhor alvitre era casá-la sem demora, mas ao fazerem essa proposta a Beatriz ela teve um acesso de nervos, pondo-se aos gritos, o que os deixou ainda mais alarmados. Desistiram de voltar por ora ao assunto. Deram-lhe mesinhas, alimentaram-na a leite de mula e sangue de boi, mas, se bem que Beatriz engolisse obedientemente tudo quanto lhe davam,, nada produziu efeito. Continuava pálida e desalentada. Fizeram o possível para distraí-la. Pagaram a músicos que tocavam para ela; levaram-na a assistir a uma peça religiosa na colegiada, levaram-na às touradas - apesar de tudo, ela continuava a definhar. A "duena" tomara grande afeição à sua pupila e, como Beatriz já não se interessasse pelos romances que tinham constituído o seu maior entretenimento, ela não encontrava outro modo de divertir a doente senão contando-lhe os mexericos da cidade. Beatriz ouvia polidamente, mas sem interesse. Certa ocasião ela mencionou de passagem que o filho mais velho de Juan Suárez de Valero tinha ingressado na ordem dos dominicanos. Continuou a tagarelar sobre uma pessoa e outra, quando de súbito notou que Beatriz perdera os sentidos. Gritou por socorro e Beatriz foi posta na cama.
Um ou dois dias depois, estando já melhor, pediu permissão para ir confessar-se. Havia várias semanas que recusava
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fazê-lo, dizendo não se sentir muito bem, e o confessor da duquesa, que também o era de Beatriz, concordou em que era preferível não insistir. Dessa vez tanto o pai como a mãe tentaram dissuadi-la, mas a jovem instou e chorou tão amargamente que afinal cederam. Mandaram sair a grande carruagem, usada apenas nas ocasiões solenes, e ela dirigiu-se para a igreja dominicana acompanhada pela "duena". Ao voltar parecia-se mais com a antiga Beatriz. Tinha uma leve cor nas faces pálidas e nos seus bonitos olhos brilhava uma nova luz. Ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe permissão para fazer-se freira. Foi para ele um grande choque, não só porque não queria perder a filha única mas também porque não lhe agradava desistir da importante aliança que havia projectado. Era, no entanto, um homem bondoso e devoto, e respondeu sem aspereza que decisões como aquela não deviam ser tomadas levianamente e, de qualquer modo, o assunto estava fora de cogitação enquanto o estado da sua saúde fosse tão precário. Ela disse-lhe que tinha conversado a respeito com o seu confessor e este dera plena aprovação à ideia.
- Sem dúvida, o padre Garcia é muito digno e muito piedoso - disse o duque,, franzindo de leve o sobrolho - , mas a sua profissão impede-o, talvez, de compreender quanto são grandes as responsabilidades ligadas à nobreza e às altas posições. Falarei amanhã com ele.
Assim, no dia seguinte o frade foi chamado ao palácio ducal e levado à presença do duque e da duquesa. Sabiam estes, naturalmente, que ele não revelaria nada do que Beatriz lhe dissera no confessionário, e não tentaram averiguar se ela lhe dera a conhecer algum motivo capaz de justificar uma resolução que tanto os contrariava, Disseram-lhe, contudo, que
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embora ela observasse os preceitos da Igreja, era de natural alegre, amiga de toda a sorte de diversões, e nunca mostrara qualquer inclinação para a vida religiosa. Falaram-lhe do grande casamento que tinham arranjado para ela e dos transtornos que adviriam da sua ruptura, assim como dos ressentimentos que isso iria causar; e, finalmente, com todo o respeito devido ao seu hábito, insinuaram que não fora prudente da sua parte aprovar um desejo evidentemente nascido da misteriosa doença de Beatriz. Esta era jovem e tinha uma constituição saudável. Não havia razão para supor que continuasse com as mesmas ideias quando recobrasse a saúde. O dominicano mostrou uma singular obstinação. Achava o desejo de Beatriz muito forte para que se lhe pudessem opor e a vocação da jovem parecia-lhe autêntica. Foi ao ponto de dizer a esses grandes personagens que não tinham direito a impedir sua filha de tomar uma resolução que lhe traria a paz neste mundo e a bem-aventurança no outro. Foi essa a primeira de uma série de discussões. Beatriz permaneceu firme na sua decisão e o confessor apoiou-lhe o desejo com todos os argumentos persuasivos de que pôde lançar mão. Por fim o duque prometeu dar a sua anuência se, ao cabo de três meses, ela ainda desejasse entrar para o convento.
A partir de então Beatriz começou a melhorar. Volveram-se os três meses e ela entrou como noviça na comunidade das carmelitas de Ávila. Toda. de veludo e cetim, ataviada com as suas jóias, foi acompanhada ao convento pela família e numerosos cavalheiros,, dos mais nobres da cidade. À porta disse adeus a todos, alegremente, e foi recebida pela porteira. Mas o duque também fizera os seus planos para enfrentar a situação. Em sua própria honra e para maior glória do
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Senhor, resolveu fundar em Castel Rodríguez um convento para onde sua filha pudesse recolher-se logo que terminasse o noviciado e do qual no devido tempo se tornasse superiora. Possuía imóveis na cidade e escolheu junto aos muros um local apropriado para tal fim. Construiu ali uma linda igreja,, um claustro, pavilhões adequados à vida de sociedade, e mandou plantar um jardim. Contratou o melhor arquitecto que se podia encontrar, os melhores escultores, os melhores pintores, e quando tudo ficou pronto Beatriz, conhecida agora como Dona Beatriz de San Domingo, veio instalar-se no palácio com várias freiras de Ávila, escolhidas pela sua virtude, inteligência e importância social. O duque havia determinado que nenhuma freira fosse aceite a menos que pertencesse a família nobre. Escolheu-se uma superiora, ficando entendido que esta se retiraria logo que Beatriz de San Domingo alcançasse a idade necessária para substituí-la. A instâncias do duque, a "duena" entrara num convento de Castel Rodríguez ao mesmo tempo que Beatriz ia para Ávila e estava em condições de reunir-se à sua antiga pupila. O padre Garcia rezou missa, o Santíssimo Sacramento foi entronizado e as freiras instalaram-se na nova instituição.
Na época de que trata a nossa narrativa, havia já alguns anos que Beatriz de San Domingo era prioresa do convento. Conquistara o respeito dos cidadãos de Castel Rodríguez e a admiração, senão o afecto, das suas freiras. Jamais esquecia a sua alta posição, mas também tinha sempre em mente a origem nobre de suas filhas espirituais. No refeitório sentavam-se na devida ordem de precedência, mas quando surgiam disputas a esse respeito, como sucedia algumas vezes, Dona Beatriz procedia com firmeza. Impunha uma disciplina rigorosa e, por
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mais bem nascida que fosse uma freira, não hesitava em mandá-la açoitar quando as suas ordens eram desobedecidas. O convento estava submetido à regra mitigada do Papa Eugénio IV e, contanto que as freiras desempenhassem os seus deveres religiosos, ela não via razão para destituí-las dos privilégios que lhes foram concedidos. Tinham permissão de visitar as pessoas amigas na cidade e, em havendo motivo justificado, até podiam passar longas temporadas com os parentes em outras localidades. Vinham muitas visitas ao convento, tanto leigos como clérigos; várias senhoras, como em Ávila, viviam ali por gosto; havia, desse modo, abundante e agradável intercâmbio social. O silêncio era obrigatório das completas às primas. Irmãs leigas faziam o trabalho do convento, a fim de dar mais tempo às freiras para as devoções e ocupações mais nobres. Mas, apesar de toda essa liberdade e dessas tentações mundanas, jamais um sopro de escândalo empanara o bom nome das virtuosas mulheres. Tal fama desfrutava a comunidade que a superiora não podia atender a todas as candidatas, de forma que tinha ensejo de mostrar-se muito exigente no exame destas.
Levava uma vida atarefada. Além dos seus deveres religiosos, tinha de fiscalizar a economia do convento, vigiar o comportamento das freiras e zelar pela saúde destas, tanto física como espiritual. A instituição fora ricamente dotada de terras, bem como de casas na cidade, e a prioresa tinha de tratar com os feitores que cobravam os aluguéis e com os camponeses que cultivavam as terras. Visitava-os amiúde para ver se tudo corria bem e se as plantações se achavam em bom estado. Como a regra lhe permitia ter propriedades privadas, o duque passara-lhe em vida algumas casas e um belo solar, e por morte
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dele Beatriz herdara muito mais ainda. Administrava tudo tão bem que podia todos os anos distribuir uma soma considerável em esmolas. O restante, gastava-o em aformosear a igreja, o refeitório e a sala de visitas e em construir oratórios no jardim, aos quais as freiras podiam recolher-se para se entregar às suas meditações. A igreja tinha magnífico aspecto. Os vasos sagrados eram de ouro puro e a custódia, cravejada de pedras preciosas. Os retábulos que decoravam os diversos altares tinham ricas molduras de madeira dourada e primorosamente lavrada, e as imagens do Salvador e da Virgem Santíssima vestiam grandes mantos de veludo ricamente bordados de ouro (por Maria Pérez) e as suas coroas chamejavam de pedrarias, preciosas e semipreciosas.
Para celebrar o vigésimo aniversário da sua consagração, Dona Beatriz construíra uma capela, dedicando-a a São Domingos, por quem tinha devoção especial, e ao ouvir dizer a uma das irmãs, natural de Toledo, que existia lá um pintor grego cujos quadros exaltavam extraordinariamente a devoção do fiel, escreveu a seu irmão o actual duque, encomendando um retábulo. Como era uma mulher prática, deu as dimensões exactas. Mas o irmão respondeu que el-rei encomendara a esse mesmo grego um painel de São Maurício e da Legião Tebana para a sua nova igreja do Escurial, mas ao receber a pintura ficara tão descontente com ela que não a deixara instalar. Em tais condições, o duque achava que seria indiscrição da parte dela dar trabalho a esse pintor. Mandava-lhe, por isso, de presente um quadro de Lodovico Cardacci, artista famoso na Itália, quadro que, por coincidência, tinha exactamente as dimensões pedidas.
Ao construir o convento, o falecido duque, seu pai,
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destinara para ela um apartamento que ocuparia quando fosse superiora e que não era menos elegante do que adequado ao seu cargo e posição. Havia num dos andares uma cela a que ninguém era admitido, salvo a irmã encarregada de proceder à sua limpeza e mantê-la em ordem!, e dali uma pequena escada conduzia a um oratório situado no andar de cima. Era nessa cela que ela fazia as suas devoções pessoais, atendia os assuntos do convento e recebia visitas. Era um aposento severo, mas majestoso. Acima do altarzinho diante do qual fazia as suas orações achava-se um grande crucifixo com a figura de Cristo esculpido em madeira, quase em tamanho natural e pintada com muito realismo, enquanto que a sua mesa de trabalho era encimada por um quadro de certo pintor catalão, o qual representava a Virgem cercada de glória. Nessa época, estava Dona Beatriz entre os quarenta e os cinquenta, mulher alta e magra, de olhos grandes e sombrios, quase sem rugas no rosto. A idade afinara-lhe as feições e adelgaçara-lhe os lábios, de modo que tinha a beleza calma e severa dessas esposas de cavaleiros que se vêem nos túmulos góticos. Mantinha-se sempre muito erecta. Havia no seu porte algo de imperioso que dava a entender que ela não considerava a ninguém seu superior e a muito poucos como seus iguais. Tinha uma veia de humorismo austero e mesmo sarcástico, e embora sorrisse muitas vezes, era com uma espécie de grave indulgência. Quando ria, o que era raro, dava a impressão de sofrer.
Tal era, pois, a mulher a cujos ouvidos chegou o rumor de que a Santíssima Virgem tinha aparecido a Catalina Pérez na escadaria da igreja das carmelitas.

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XI.

Dona Beatriz era não somente uma óptima organizadora, como boa cabeça para os negócios, mas também uma mulher de grande inteligência e sensatez. Sempre desfavorecera as visões, êxtases e graças especiais entre as suas freiras. Não lhes permitia dar-se a uma austeridade excessiva nem a mortificações além das prescritas pela Regra. Nada lhe passava despercebido, e quando uma delas mostrava sinais de uma religiosidade que a superiora achasse exagerada,, administrava-lhe logo um purgante, proibiam-na de jejuar e, se isso não bastasse, era mandada passar algumas semanas agradáveis em casa de amigos ou parentes. O rigor de Dona Beatriz nesse ponto tinha raiz na lembrança dos aborrecimentos e do escândalo provocados no convento de Ávila por uma freira que afirmava ter visto Jesus Cristo, a Santíssima Virgem e vários santos e ter recebido deles graças especiais. A superiora não rejeitava a possibilidade de tais ocorrências,, visto ser certo que alguns santos haviam recebido favores análogos, mas não podia crer que a freira de Ávilai, Teresa de Gepeda, com quem falara muitas vezes quando aluna do convento, fosse outra coisa senão a vítima histérica e iludida de uma desenfreada fantasia.
Era altamente improvável que houvesse qualquer coisa de verdadeiro na estranha história de Catalína. Como as freiras, porém, estivessem tão alvoroçadas com aquilo que não falavam de outra coisa, Dona Beatriz achou de bom aviso mandar chamar a jovem e ouvir o caso dos seus próprios lábios. Chamou uma das freiras e disse-lhe que fosse buscar a rapariga.
A freira voltou daí a pouco, informando-a de que Catalina estava disposta a obedecer à ordem da Reverenda Madre, mas que o seu confessor a proibira de repetir a história a quem quer que fosse. Dona Beatriz, pouco habituada a que a contrariassem, franziu o sobrolho, e quando ela o fazia todas as habitantes do convento se punham a tremer.
- A mãe da moça está aqui, Reverenda Madre - disse a freira, sustendo a respiração.
- De que me pode servir a mãe?
- Ela ouviu a história dos lábios da moça logo depois de Nossa Senhora lhe ter aparecido. O padre não pensou em proibi-la também de falar no caso.
Um sorriso austero encrespou os lábios pálidos da prioresa.
- Um homem digno, mas pouco previdente. Você fez bem, minha filha. Vou receber a mulher.
Maria Pérez foi introduzida no oratório. Tinha visto muitas vezes a superiora, mas nunca lhe falara e estava nervosa. Encontrou Dona Beatriz sentada numa cadeira de encosto alto, com assento e costas de couro, cujo topo era decorado com folhas de acanto em madeira dourada. Maria Pérez não cria que uma rainha pudesse parecer mais distante, solene e orgulhosa. Ajoelhou-se e beijou a mão branca e esguia que lhe ofereciam. Depois, como lhe ordenassem que dissesse o que tinha vindo dizer, repetiu palavra por palavra o que lhe contara Catalina. Quando ela terminou, a prioresa inclinou de leve a nobre cabeça.
- Pode ir.
Ficou algum tempo a reflectir, depois sentou-se à mesa e escreveu uma carta rogando ao Bispo de Segóvia que lhe
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fizesse a honra de vir vê-la, pois desejaria falar-lhe sobre um assunto que parecia de importância. Enviou a carta e dentro de uma hora recebeu a resposta. Em tom não menos cerimonioso, dizia o bispo que obedeceria com prazer à ordem da Reverenda Madre, visitando o convento no dia seguinte.
Houve uma comoção entre as freiras quando souberam que uma pessoa tão eminente e santa era esperada ali e imediatamente concluíram, com acerto, que a visita estava relacionada à misteriosa aparição da Virgem Santíssima nos degraus da bela igreja do convento. Veio ele à tarde, depois da sesta que as freiras costumavam fazer no Verão, acompanhado pelos dois frades seus secretários, e foi recebido pela subprioresa na sala de visitas. Com grande pesar seu,, as freiras tinham recebido ordem de permanecer nas suas celas. Tendo beijado o anel do bispo, a subprioresa disse-lhe que ia conduzi-lo à presença da senhora superiora. Os dois frades dispuseram-se a acompanhá-lo.
- A Reverenda Madre deseja falar em particular com Vossa Senhoria - disse ela humildemente.
O bispo hesitou um instante, depois inclinou ao de leve a cabeça, consentindo. Os frades voltaram aos seus lugares e o bispo seguiu a freira pelos corredores btrancos e frescos e subiu o lance de escada que levava ao oratório. Ela abriu a porta e arredou-se para deixá-lo entrar. Dona Beatriz levantou-se para vir ao encontro do bispo e, ajoelhando-se, beijou o anel episcopal. Depois indicou-lhe uma cadeira e sentou-se.
- Esperava que Vossa Senhoria se dignasse visitar o nosso convento, mas como não viesse tomei a liberdade de convidá-lo.
- Meu mestre de teologia em Salamanca aconselhava-me
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que tratasse o menos possível com mulheres, que fosse cortês com elas mas as mantivesse à distância.
Ela não deu a resposta ácida que tinha na ponta da língua,, mas ao invés disso considerou-o com atenção. Ele baixou os olhos e ficou à espera. A superiora não tinha pressa de falar. Fazia quase trinta anos que não o via e essas eram as primeiras palavras que trocavam. Ele vestia um hábito velho e remendado. Tinha a cabeça rapada à navalha, com excepção do anel de cobalto preto,, semeado de raros fios brancos, que simbolizavam a Coroa de Espinhos. As têmporas eram reentrantes, as faces cavadas; o rosto, coberto de rugas profundas, exibia sinais de sofrimento; só restavam os olhos escuros e apaixonados, em que brilhava uma luz estranha, para lembrar-lhe o jovem seminarista a quem tinha conhecido muito tempo atrás - conhecido e amado tão loucamente.
Aquilo começara como uma travessura. Beatriz tinha-o notado a primeira vez que ele servira a missa, como fazia algumas ocasiões, na igreja que ela frequentava com a sua "duena". Já então ele era magro, de cabelos negros e bastos, pois usava apenas a tonsura das ordens menores, tinha feições bem definidas e uma graça singular no porte. Parecia-se com um desses santos que recebiam a vocação em meninos,, tornando-se objectos de veneração para todos e morrendo moços e aureolados de beleza. Quando não estava servindo a missa ia ajoelhar-se na capelinha, entre as poucas pessoas que ali se encontravam àquela hora. Atento às suas devoções, nunca desviava os olhos do altar. Beatriz, naquela época, era uma jovem estouvada e folgazã. Conhecia o poder devastador dos Seus olhos maravilhosos. Pareceu-lhe que seria uma óptima brincadeira fazer com que o jovem seminarista lhe prestasse
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atenção. Fixou nele, pois, o olhar, desejando com todas as suas forças que ele olhasse para o seu lado. Continuou a fazê-lo durante vários dias, em vão, mas certa manhã teve a intuição de que ele estava perturbado. Não saberia dizer o que lhe dava essa impressão, mas tinha a certeza. Esperou, sustendo o fôlego. Ele ergueu os olhos de repente, como se ouvisse um ruído inesperado, e, encontrando o olhar dela, desviou vivamente o rosto. Desde então Beatriz absteve-se de relancear sequer os olhos para ele, mas um ou dois dias depois, embora mantivesse a cabeça baixa como se estivesse a rezar, teve consciência de que ele a fitava. Ficou perfeitamente imóvel, mas semtia-lhe o olhar perplexo, um olhar que ele nunca havia dirigido a ninguém até então. Experimentou um estremecimento de triunfo e, alçando a cabeça, encarou-o de propósito. Como da outra vez, ele desviou os olhos o mais depressa que pôde e Beatriz viu um rubor de vergonha banhar-lhe o rosto.
Por duas ou três ocasiões, ao andar na rua com a "duena", viu-o caminhar na sua direcção, e embora passasse por elas desviando o rosto, Beatriz sabia-o emocionado. Uma vez mesmo, ao avistá-las, ele tinha girado nos calcanhares e voltado pelo mesmo caminho. Beatriz desatou a rir como louca, a ponto de lhe perguntar a "duena" o que achava tão engraçado, e ela teve de dizer a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Certa manhã, sucedeu que ambas entrassem na igreja no momento em que o seminarista mergulhava os dedos na água benta para persignar-se. Beatriz estendeu a mão para tocar-lhe nos dedos, recebendo dessa forma a água benta. Era um acto costumeiro e natural, e ele não podia recusar. Ficou muito pálido e, mais uma vez, os olhos de ambos se encontraram. Foi apenas um instante,, mas nesse instante Beatriz compreendeu
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que ele a amava com um amor humano, o amor que um rapaz apaixonado dedica a uma bela jovem, e ao mesmo tempo sentiu uma dor aguda no coração, como se uma espada o trespassasse, e compreendeu que o amava com o mesmo amor humano, o amor de uma jovem apaixonada a um amável mancebo. Foi invadida pela alegria. Jamais conhecera tamanha felicidade.
Nesse dia ele serviu a missa. Beatriz não lhe tirava os olhos de cima. O coração pulsava-lhe com uma violência quase insuportável, mas a dor, se dor havia, era maior do que qualquer prazer já sentido por ela. Já havia descoberto que o mesmo encargo ou ocupação o obrigava a passar todos os dias diante do palácio ducal a uma hora certa, e tratou de sentar-se a uma janela de onde pudesse observar a rua. Via-o aproximar-se e retardar o passo, como que mau-grado seu, ao passar, depois via-o seguir caminho apressadamente, como se fugisse à tentação. Esperava que ele levantasse o olhar, mas o rapaz nunca o fazia. Uma vez, para apoquentá-lo, deixou cair um cravo no instante em que ele se aproximava. O seminarista alçou os olhos instintivamente, mas Beatriz recuou a fim de poder vê-lo sem ser vista. Ele deteve-se e apanhou a flor. Tomou-a com ambas as mãos, como se fosse uma jóia inestimável, e por um momento contemplou-a como que em êxtase. Depois atirou-a ao chão com um gesto violento, espezinhou-a no pó e fugiu, fugiu a correr tão depressa quanto podia. Beatriz desatou a rir mas, de repente desfez-se em lágrimas.
Como o rapaz passasse vários dias sem ir à missa, ela não pôde mais suportar a sua ansiedade.
- Que aconteceu àquele seminarista que costumava servir a missa?
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- perguntou à "duena". - Não o tenho visto ultimamente.
- Como posso sabê-lo? Imagino que tenha voltado para o seminário.
Nunca mais tornou a vê-lo. Havia compreendido o drama em que terminara a farsa armada por ela e lamentou amargamente a sua tolice. Amava-o com toda a ardente paixão do seu corpo jovem. Nunca fora contrariada em coisa alguma e enraivecia ao pensar que dessa vez a sua vontade seria frustrada. O casamemto que lhe tinham arranjado era um casamento de conveniência e ela aceitara-o como consequência da sua posição. Estava disposta a dar filhos ao marido, como era seu dever, mas resolvera não lhe dar mais importância do que se fosse um lacaio. Agora, porém, a ideia de unir-se àquele anão estúpido enchia-a de asco. Sabia que o seu amor a Blasco de Valero não podia dar em nada. É verdade que, estando ele nas ordens menores, havia a possibilidade de obter a sua secularização, mas Beatriz nem sequer necessitou lembrar-se de que seu pai jamais consentiria em semelhante aliança; o seu próprio orgulho não lhe permitia dar a mão em casamento a esse "fidalgo de sarjeta". E Blasco? Estava segura de que ele a amava, mas tinha ainda maior amor a Deus. Quando ele espezinhara, raivoso, a flor que ela deixara cair aos seus pés, fora para esmagar aquela paixão indigna que o horrorizava. Beatriz tinha sonhos terríveis, apavorantes, em que jazia nos braços dele, a boca contra a sua, o peito de Blasco a comprimir o seu, e acordava cheia de vergonha, angústia e desespero. Foi então que começou a enfermar. Ninguém lhe compreendia a doença, porém ela sabia de que se tratava: estava a morrer de mágoa. Foi ao ter conhecimento de que ele entrara
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numa ordem monástica que teve aquela inspiração. Sabia, como se o próprio Blasco lhe houvesse dito, que ao renunciar ao mundo ele procurava fugir dela; e isso dava-lhe uma estranha alegria, um sentimento de força triunfante. Faria a mesma coisa: o ingresso no convento a libertaria de uma união odiosa, e talvez encontrasse paz no amor divino. Num recanto do seu espírito, sem que a própria palavra interior lhe desse forma senão muito raramente, habitava a ideia de que naquela vida, por mais separados que estivessem, cada um devotado ao serviço do Altíssimo, existia entre ambos uma espécie de união mística. Tudo isso, que levamos tanto tempo a contar, passou como um relâmpago pela mente da fria e severa prioresa. Viu a sua história como se fosse um desses vastos afrescos pintados na longa parede de um claustro, e aos quais, entretanto, podemos abranger com um só olhar. Toda aquela paixão, que na sua tola mocidade ela julgava dever durar para sempre, havia muito que morreria. O tempo, a piedosa monotonia da vida conventual, as orações e os jejuns, os múltiplos deveres da sua posição, haviam-na embotado pouco a pouco e agora não passava de uma lembrança amarga. Ao olhar para esse homem tão gasto e emaciado, com aquela expressão de sofrimento, perguntava consigo se ele se recordaria de ter amado uma vez - contra a vontade,, sim, mas de todo o coração - uma linda jovem a quem nunca falara, mas que atormentava os seus sonhos. O silêncio era pesado ao bispo, que se remexia inquieto na cadeira.
- A Reverenda Madre disse ter um assunto de importância sobre o qual desejava consultar-me - falou ele.
- Sim, mas permita primeiro que apresente as minhas
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felicitações a Vossa Excelência pela dignidade que el-rei houve por bem conferir-lhe.
- Não posso ter senão a esperança de me mostrar à altura dos deveres pertinentes a tão alto cargo.
- Quanto a isso, não pode haver dúvidas no espírito de quem conheça o zelo e a discrição de que Vossa Excelência deu provas durante os dez amos que passou em Valência. Embora vivamos numa remota cidadezinha das montanhas, conseguimos manter-nos inteirados do que se passa nesse grande mundo, e não nos passou despercebida a fama conquistada pela austeridade, pela virtude e pelo incansável labor de Vossa Excelência em prol da pureza da nossa fé.
O bispo olhou-a um instante por baixo das sobrancelhas franzidas.
- Minha senhora, fico-lhe agradecido pela sua cortesia mas devo rogar-lhe que me poupe esses cumprimentos. Nunca senti prazer em ouvir comentários a meu respeito, feitos na minha presença. Ficar-lhe-ei grato se me disser sem mais demora por que razão solicitou a minha visita.
A prioresa não se deixou abater por esta admoestação. Ainda que ele fosse bispo, não deixava de ser um "fidalgo de sarjeta", como dizia a sua velha "duena" que lá estava no seio do Senhor; enquanto ela era a filha do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Uma palavra sua ao irmão, confidente do favorito de Filipe III, podia relegar esse prelado para uma obscura diocese das Canárias.
- Lamento ofender a modéstia de Vossa Excelência - respondeu em tom tranquilo - , mas foi justamente a sua virtude e a sua austeridade - a sua santidade, se assim me posso
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exprimir - que constituiu a causa, imediata do meu pedido para que me fizesse a honra de visitar-me. Está informado do estranho caso que se passou com uma menina chamada Catalina Pérez?
- Estou. O confessor dela, homem digno, sem dúvida, mas de pouca instrução e inteligência, referiu-me essa história. Mandei-o calar. Proibi os frades do convento de mencionar tal coisa na minha presença ou de falar nela entre si. Essa rapariga ou é uma impostora à cata de notoriedade, ou uma simplória iludida.
- Não a conheço, senhor, mas segundo todas as informações é uma menina boa, sensata e piedosa. Pessoas de critério, que a conhecem, estão convencidas de que ela é incapaz de inventar semelhante história. Não costuma mentir e, ao que me dizem, está lomge de ser dada a fantasias.
- Se ela teve uma visão como a que descreve, só pode ter sido por ardil de Satanás. Ninguém ignora que os demónios tem o poder de assumir formas celestes para tentar os desprevenidos e arrastá-los à perdição.
- Essa menina sofre um infortúnio imerecido. Não devemos atribuir ao diabo mais habilidade do que ele possui. Como poderia ele ser estúpido ao ponto de julgar que a alma dessa criança incorre em perigo pelo facto de um santo homem lhe impor a mão em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo?
O bispo, que durante essa conversa mantivera os olhos postos no chão, ergueu-os para a superiora a estas últimas palavras, com uma expressão de angústia.
- Minha senhora, Lúcifer, o filho da manhã, caiu por causa do seu orgulho. Como é possível que pelo orgulho eu,
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um homem tão corrupto e pecador, me atreva a fazer milagres ?
- Está bem que na sua humildade se considere um homem corrupto e pecador, Excelência, mas o resto do mundo bem conhece a sua grande virtude. Ouça, senhor: essa história foi divulgada e a cidade inteira anda a falar nela. Todos estão alvoroçados e em expectativa. É preciso dar uma satisfação qualquer ao povo.
O bispo suspirou.
- Eu sei que o povo está perturbado. Grupos de pessoas conservam-se diante do convénto como se aguardassem alguma coisa, e quando saio eles ajoelham-se à minha passagem pedindo que os abençoe. É necessário fazer alguma coisa para que entrem na razão.
- Vossa Excelência permite que lhe dê um conselho? - disse a prioresa com muito respeito; mas os seus olhos tinham um brilho divertido e irónico que de certo modo ateimava aquele.
- Ficar-lhe-ia muito grato.
- Eu não falei com a rapariga porque o seu confessor lhe deu ordem de não repetir a história a ninguém, mas o senhor bispo tem o poder de revogar essa ordem. Não acha que seria conveniente vê-la? Com o seu discernimento, a sua penetração das almas e a habilidade que adquiriu no Santo Ofício com a inquirição de suspeitos, Vossa Excelência descobriria bem depressa se ela é uma impostora, se foi iludida por Satanás ou, afinal, se foi verdadeiramente a Virgem Santíssima que condescendeu em aparecer-lhe.
O bispo alçou os olhos e contemplou a imagem do Redentor pregado à Cruz, no santuário diante do qual a prioresa
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costumava rezar. O seu rosto tinha uma expressão muito triste. Estava dilacerado pela dúvida.
- É escusado lembrar-lhe, senhor, que este convento se acha sob a protecção especial de Nossa Senhora do Carmelo. Nós, pobres freiras, somos sem dúvida alguma indignas dessa honra, mas é possível que ela olhe com um favor especial esta igreja que meu pai, o duque, lhe erigiu na nossa cidade. Seria uma grande honra e uma grande glória para a nossa casa se, por intercessão de Vossa Excelência, a nossa celeste padroeira curasse essa pobre menina da sua enfermidade.
Durante largo tempo o bispo esteve absorto nos seus pensamentos. Por fim tornou a suspirar.
- Onde poderei ver essa menina?
- Haverá lugar mais próprio do que a capela dedicada ao culto da Santíssima Virgem, na nossa igreja?
- É preferível fazer depressa o que tem de ser feito. Que ela venha amanhã, minha senhora:, e estarei aqui à sua espera.
Levantou-se, e ao curvar-se para se despedir da prioresa havia nos seus lábios a sombra de um sorriso - mas tão pesaroso!...
- Uma triste noite me aguarda, Reverenda Madre. Ela ajoelhou-se mais uma vez e beijou-lhe o anel.


XII.

No dia seguinte, à hora aprazada, o bispo entrou na opulenta igreja acompanhado dos seus dois secretários. Catalina, com uma das freiras, esperava na capela da Virgem.
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Mantinha-se em pé com o auxílio da muleta;, mas quando o bispo apareceu a freira tocou-lhe no braço e Catalina fez um movimento para ajoelhar-se. Ele não a deixou.
- Pode deixar-nos - disse à freira e, quando esta saiu, dirigiu-se aos dois frades: - Podem retirar-se, mas fiquem aqui perto. Quero falar a sós com esta menina.
Eles desapareceram silenciosamente. O bispo observou-lhes a retirada. Sabianos muito curiosos e não queria ser ouvido por eles. Deitou então um longo olhar à inválida. Tinha um coração sensível e a desgraça, a miséria e a doença nunca deixavam de comovê-lo. Ela tremia um pouco e estava muito pálida.
- Não te assustes, minha filha - disse ele com suavidade. - Não tens nada a temer se dizes a verdade.
A jovem pareceu-lhe muito simples e inocente. Notou-lhe a singular beleza das feições, mas fê-lo com a mesma indiferença com que teria observado o pêlo ruão ou tordilho de um cavalo. Começou por lhe fazer perguntas sobre ela própria. Catalina respondeu a princípio com muita timidez, mas, como o bispo continuasse a instá-la com perguntas, acabou por ganhar mais confiança. Tinha uma voz suave e melodiosa e expressava-se com correcção. Contou-lhe a singela história da sua vida. Era a história de todas as moças pobres: duros trabalhos, diversões inofensivas, frequentes visitas à igreja e o seu namoro; contou-a, porém, com tal naturalidade e um ar tão ingénuo que o bispo sentiu-se tocado. Parecia-lhe inconcebível que essa rapariga tivesse inventado qualquer coisa para se fazer importante. Cada uma das suas palavras respirava modéstia e humildade. Contou-lhe então o seu acidente, como ficara com
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a perna paralítica e como Diego, o filho do alfaiate, o seu amado com quem ia casar-se, a tinha abandonado.
- Não o censuro - disse ela. - Vossa Excelência ignora talvez que a vida do pobre é dura, e um homem não deseja ter uma mulher incapaz de trabalhar para ele.
Um sorriso tão terno quanto o permitiam as feições conturbadas do bispo perpassou-lhe rapidamente na face. - Como aprendeste a falar tão bem e com tanto critério, minha filha? - perguntou ele.
- Meu tio Domingo Pérez ensinou-me a ler e a escrever. Deu-se a muito trabalho comigo. Tem sido como um pai para mim.
- Eu conheci-o outrora.
Catalina bem conhecia a má reputação do tio e receou que a sua referência a este a prejudicasse no conceito do santo homem. Houve um silêncio e, por um momento, ela julgou que ele fosse pôr fim à entrevista.
- Conte-me agora, nas suas próprias palavras, a história que referiu a sua mãe - disse ele, fitando-lhe um olhar perscrutador.
Catalina hesitou e o bispo lembrou-se de que o seu confessor lhe dera ordem de não falar naquilo. Informou-a gravemente de que tinha autoridade para tornar sem efeito a proibição do confessor.
Ela repetiu então a história, tal qual a havia contado à mãe. Disse que estava sentada nos degraus da igreja a chorar porque toda a cidade estava em festa e só ela era desgraçada, que uma senhora tinha saído da igreja e lhe falara, que ela lhe tinha dito que Sua Excelência o Bispo tinha o poder de curá-la do seu mal, depois desaparecera diante dos seus próprios olhos,
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e que ela compreendera então que essa senhora era a Virgem Santíssima em pessoa.
Quando terminou de falar, fez-se um longo silêncio. O bispo ficara abalado, mas ao mesmo tempo atormentava-o a decisão. A jovem não era uma impostora - disso estava convencido, pois a sua inocência, a sua sinceridade eram inconfundíveis. Não podia ter sido um sonho, porque ela ouvira bater os sinos, rufar os tambores e soar as trombetas quando ele e seu irmão tinham entrado na cidade, e nesse momento Catalina conversava com a dama, a qual ela não tinha razão para supor fosse coisa diversa do que parecia. Como teria Satanás o poder de assumir uma falsa aparência quando a menina estivera a abrir o seu pobre coraçãozinho diante da Mãe de Deus e a suplicar-lhe que a socorresse na sua aflição? Era uma criatura piedosa e não havia nela a menor presunção. Outros tinham visto as suas orações atendidas, outros tinham recebido a graça espiritual, outros tinham sido curados dos seus males. Se ele recusasse, por medo, fazer aquilo que parecia ser-lhe ordenado, porventura não inconreria em grave pecado de omissão?
"Um sinal!" murmurou de si para si. "Um sinal!" Avançou um ou dois passos e chegou ao pé do altar sobre o qual, envolta num grande manto de veludo azul todo pontoado de ouro, com uma coroa de ouro na cabeça, estava a imagem da Mãe de Deus. Ajoelhou-se e orou, pedindo-lhe que o guiasse. Orou apaixonadamente, mas tinha o coração seco e sentia as trevas da noite envolver-lhe a alma.. Por fim, com um triste Suspiro, ergueu-se e ficou com os braços estendidos numa súplica, fitando o olhar desesperado nos olhos meigos da Santíssima Virgem. De repente Catalina lançou um
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grande grito de espanto. Os dois frades haviam desaparecido, mas embora não pudessem ouvir o que ambos diziam, não estavam fora do alcance da voz, e ao sentir esse grito correram tão depressa como coelhos que ganham a toca. Mas o que viram pareceu chumbá-los ao chão. Ficaram mudos, boquiabertos, como se, a exemplo da mulher de Lot, se houvessem convertido em estátuas de sal. Don Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, alçava-se lentamente no ar, tão lentamente como o azeite que escorrega por uma superfície inclinada muito de leve; elevava-se com um movimento regular, quase imperceptível, como as aguas de um rio em enchente. O bispo subiu até colocar-se rosto a rosto com a imagem que encimava o altar, e por um momento ficou suspenso no ar, qual um falcão que se imobiliza sobre as asas estendidas. Temendo que ele caísse, um dos frades fez menção de avançar, mas o outro - o padre António - reteve-o; e o bispo, muito devagar, tão devagar que mal se percebia o movimento, desceu até os seus pés tornarem a tocar o chão de mármore defronte do altar. Penderam-lhe os braços e ele voltou-se. Os dois frades aproximaram-se a correr e, caindo de joelhos, beijaram-lhe a ourela do hábito. Ele não parecia dar-se conta da presença de ambos. Desceu os três degraus do altar e, como ofuscado, saiu da capela aos tacteios. Os dois frades seguiam-no de muito perto, para acudir-lhe no caso de tropeçar. Catalina ficou esquecida. Saíram da igreja. O bispo deteve-se no alto dos degraus, onde a jovem estivera sentada quando Nossa Senhora lhe apareceu, e olhou para a pracinha que resplandecia ao sol de Agosto. O céu sem nuvens estava tão azul e tão claro, em contraste com a penumbra da igreja, carregada de fumos de incenso, que olhar para ele cegava a vista. As casas brancas, cujos postigos estavam fechados por causa do calor, pareciam cintilar com um brilho próprio, como pedras preciosas. O bispo teve um arrepio, embora o dia estivesse quente como uma fornalha, e tornou a si.
- Façam saber à menina que eu a mandarei chamar. Desceu os degraus, seguido pelos frades a uma distância
respeitável. Atravessou a praça de cabeça baixa. Os dois não ousavam falar-lhe. Quando alcançaram o convento dominicano o bispo parou e votou-se para eles.
- Sob pena de excomunhão, não digam uma só palavra sobre o que viram hoje.
- Foi um milagre, senhor - volveu o padre António. - Acaso é justo que tão conspícuo sinal do favor divino seja ocultado aos nossos irmãos?
- Ao fazer a sua profissão, meu filho, você prestou voto de obediência.
Padre António fora aluno do bispo quando este ensinava teologia em Alcalá, e foi por influência de frei Blasco que ele entrou na Ordem Dominicana. Era vivo e inteligente, e ao ser nomeado inquisidor em Valência, o mestre levou-o consigo na qualidade de secretário. Sentia-se reconhecido ao jovem monge pela sua dedicação e, embora tentasse muitas vezes moderar a excessiva admiração que António tinha por ele, os seus argumentos não faziam senão intensificá-la ainda mais. Padre António, embora fosse tão devoto e zeloso na observância dos seus deveres religiosos quanto podia desejá-lo o Bispo, embora tivesse uma vida impoluta e se mostrasse diligentíssimo no serviço da Igreja, sofria dessa doença que Juvenal chamou "cacoethes soribendi": não se contentando em tomar a vasta correspondência do inquisidor e em redigir
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os inúmeros relatórios, documentos, decisões, etc, necessários à direcção dos negócios do Santo Ofício, passava todos os seus momentos de folga a escrevinhar; e o inquisidor descobriu - como descobria tudo que se relacionava com a sua pessoa ou o seu cargo - que padre António estava mantendo uma crónica minuciosa dos seus actos, de cada palavra que ele pronunciava e dos vários sucessos da sua carreira. Percebia, cheio de humildade, que o secretário lhe dedicava uma estima exagerada, e nos seus exames de consciência perguntava a si mesmo se não lhe incumbiria o dever de pôr termo àquele trabalho, pois muito bem sabia com que fim o frade escrevia. Metera-se naquela cabeça ilustrada, mais tonta, que ele, Frei Blasco de Valero, tinha a fibra de que se fazem os santos e que um documento como o que estava preparando seria valioso para a Cúria quando, após a sua morte, se instaurasse o processo de beatificação. Ainda que perfeitamente cônscio da sua indignidade, o inquisidor não deixava de ser humano e vibrava de piedosa exultação ao considerar a possibilidade, embora remota, de que algum dia viesse a ser contado entre os santos da Igreja. Açoitava-se até fazer correr sangue para punir-se da sua presunção, mas não podia decidir-se a privar aquela boa e piedosa Griatura de uma ocupação evidentemente inofensiva. E quem sabe? Era possível que a simples piedade religiosa do autor lhe permitisse compor uma obra que, apesar da insignificância do assunto, fosse edificante para os fiéis. Nesse instante, lendo no coração do frade, o bispo teve a certeza de que, conquanto os lábios deste não deixassem escapar nem uma palavra sequer do que sucedera na igreja das carmelitas, uma exposição pormenorizada do facto seria incluída no livro. O portentoso fenómeno que hoje conhecemos
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como levitação, e de que ele fora instrumento, tornara-se-lhe familiar através da leitura das vidas de vários santos, e toda a Espanha sabia que em tempos recentes esse sinal de favor divino fora conferido a Pedro de Alcântara, à Madre Teresa de Jesus e a mais de uma freira da ordem das carmelitas descalças. O bispo não podia esperar que padre António omitisse tal ocorrência no seu livro e, mesmo, ignorava se tinha o direito de ordenar-lhe tal coisa. Assim, entrou no convento sem dizer mais uma palavra e dirigiu-se para a sua cela.


XIII.

Não se lembrara, porém, de impor segredo a Catalina, e nem bem os três religiosos tinham deixado a igreja quando ela correu para casa tão depressa quanto lho permitia o seu estado de invalidez. Domingo fora a uma das povoações circunvizinhas a chamado de alguém e só Maria estava em casa. Catalina contou-lhe, em tom aterrado, o portento de que fora testemunha, e depois de terminar contou tudo de novo.
Maria Pérez tinha um pouco do senso dramático que parecia ter sido negado a seu irmão, o dramaturgo. Reprimindo com esforço a sua impaciência, aguardou a hora do recreio no convento, quando todas as freiras estariam reunidas, em palestra com as damas pensionistas e pessoas da cidade; poderia, assim, relatar a assombrosa ocorrência obtendo dela o maior efeito possível. Tinha um público numeroso quando contou a história, e deu-lhe grande satisfação o espanto com
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que a ouviram. Tal foi a impressão causada na subprioresa que esta achou necessário repetir o caso a Dona Beatriz sem perda de um só instante. Daí a pouco Maria Pérez foi chamada à presença da superiora e tornou a desfiar a mesma narrativa; A superiora escutou-a com uma satisfação que não se deu ao trabalho de ocultar.
- Diante disso não é possível hesitar mais - disse ela. - Será uma grande glória não só para este convento, mas para a Ordem de Nossa Senhora do Carmelo.
Despediu as duas mulheres e, apanhando a pena de pato, escreveu ao bispo uma carta em que dizia ter sido informada da graça que lhe fora concedida aquela manhã. Não se faziam mister maiores provas da verdade do que afirmara a jovem Catalina Pérez e de que tal ocorrência não era atribuível a uma maquinação do Inimigo e sim à compaixão de Nossa Senhora. Conjurava-o a pôr de parte as suas dúvidas e incertezas, pois com toda a evidência o seu dever cristão lhe ordenava aceitar a missão que lhe fora imposta. Era uma carta perfeita, sucinta mas bem argumentada, respeitosa mas firme, e a superiora terminava rogando-lhe, com grande humildade, que se dignasse realizar o milagre na mesmo igreja em que lhe fora conferido esse favor divino e à qual era evidente ter a Santíssima Virgem concebido uma afeição especial. Enviou a carta por um mensageiro.
Dois dos cavalheiros que se encontravam na sala de visitas do convento quando Maria Pérez contou a história ficaram tão impressionados que foram acto contínuo ao convento dos dominicanos indagar da sua veracidade. Os frades, naturalmente, nada sabiam, mas não se surpreenderam em absoluto quando o caso lhes foi repetido. Conheciam perfeitamente
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a gramde santidade do bispo e nada era mais natural do que conferir-lhe o Senhor a assinalada honra da levitação. Nesse meio tempo, uma das pensionistas das carmelitas foi visitar pessoas amigas na cidade e relatou-lhes o milagroso acontecimento. Dentro de uma ou duas horas toda a cidade tinha conhecimento do oconrido. Outros cavalheiros dirigiram-se para o convento dos dominicanos, a fim de colher informações de primeira mão. Os frades vibravam de entusiasmo religioso. Finalmente, Padre António viu-se na obrigação de ir dizer ao bispo que, embora nem ele nem o seu companheiro houvessem falado, o facto se tornara conhecido de todos. A carta da prioresa estava aberta em cima da mesa.
- Essas miseráveis mulheres são incapazes de refrear a língua - disse Don Blasco, apontando para ela. - É uma grande humilhação para mim que essa história tenha transpirado.
- Os nossos irmãos deste convento esperam que Vossa Excelência consinta agora em curar a infeliz jovem da sua enfermidade.
Bateram à porta. Padre António foi abri-la. Era um frade com um recado do prior perguntando se podia falar ao bispo.
- Que venha.
Padre António esteve presente à entrevista e escreveu uma relação da mesma, com toda a minúcia. Ao cabo, o bispo deixou-se convencer de que a vontade do Senhor era que ele obedecesse à solicitação da Santíssima Virgem. Formulou, todavia, condições que o prior, muito a contragosto, foi obrigado a aceitar. Queria o prior uma cerimónia com todos os monges reunidos, em presença das notabilidades locais, tanto leigas como eclesiásticas. Mas a isto o Bispo se opôs asperamente.
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Insistiu em que se guardasse sigilo. Estava disposto a ir à igreja das carmelitas e dizer a sua missa ali na manhã seguinte. Deviam fechar-se as portas para que ninguém fosse admitido. Ele próprio só iria acompanhado pelos seus dois secretários. Bastante enraivecido pelo que lhe parecia uma desconsideração à sua dignidade, o prior retirou-se. O bispo mandou então o padre António informar Dona Beatriz da sua decisão. Dava-lhe licença de trazer as suas freiras, mas proibia as damas pensionistas de comparecer. Recomendava-lhe que fizesse Catalina preparar-se para tomar a Santa Comunhão depois da missa e pedia-lhe, a ela e às suas freiras, que orassem por ele aquela noite.
Dentro de uma hora, uma freira toda emocionada veio à casa de Maria Pérez e pediu para ver Catalina, pois tinha algo muito importante para lhe dizer em particular. Depois de chamarem Catalina a freira levou o dedo aos lábios, recomendando discrição.
- É um grande segredo - disse ela. - Não deves contar a ninguém. O senhor bispo vai curar-te e amanhã estarás correndo e pulando sobre os dois pés, como qualquer outro cristão.
Catalina susteve o fôlego e o seu coração pôs-se a bater como doido.
- Amanhã?
- Terás de tomar a Sagrada Comunhão, de modo que não deves comer nada depois da meia-noite.
- Sim, eu sei. Mas de qualquer jeito nunca como nada depois da meia-noite.
- Além disso, deves pôr-te em estado de graça. Depois de comungares ele te deixará tão sã como Nosso Senhor deixou o leproso.
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- A mamã e o tio Domingo podem ir?
- Não me disseram nada a esse respeito. Está claro que podem. Talvez isso também cure o teu pobre tio dos seus maus costumes.
Domingo não voltou do campo senão tarde naquela noite, mas assim que ele entrou em casa Catalina contou-lhe, toda agitada, a emocionante nova. Ele fitou-a cheio de consternação.
- Não ficais contente, tio? - exclamou ela.
Em lugar de responder ele pôs-se a caminhar de um lado para outro. Catalina não podia compreender essa estranha atitude.
- Mas que (tens, tio? Isso não te agrada? Eu pensava que ficarias tão contente como eu. Não queres que eu me cure?
Ele sacudiu os ombros com irritação e continuou a percorrer o quarto de um lado para outro. Ainda não estava plenamente convencido de que a aparição não fora um produto da mente perturbada da sobrinha e temia as consequências para ela se a intervenção do bispo fosse inútil. Em tal caso, o Santo Ofício bem podia achar que o assunto exigia inquérito.
Seria um desastre. Parou de repente e virou-se para Catalina.
Olhou-a com uma expressão severa que a jovem nunca lhe
tinha visto até então.
- Conta-me exactamente o que te disse a Virgem Santíssima.
Ela repetiu a história.
- E então a Virgem disse: "O filho de Juan de Valero que melhor tem servido a Deus possui o poder de curar-te."
Domingo interrompeu-a asperamente.
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- Mas não foi isso que disseste a tua mãe! Disseste-lhe que Blasco de Valero tinha o poder de curar-te.
- Dá no mesmo. O bispo é um santo, todo o mundo sabe disso. Qual dos filhos de Dom Juan tem servido a Deus tão bem como ele?
- Ó tola! - exclamou Domingo. - Ó grande tolinha!
- Tu é que és tolo! - retrucou ela, acalorada.
Não acreditaste que a Santíssima Virgem me tinha aparecido, falado comigo e desaparecido diante dos meus olhos. Pensavas que fosse um sonho. Pois bem, ouve isto.
E contou-lhe como vira o bispo elevar-se do chão, ficar suspenso no ar e descer novamente até ao chão.
- Isso não foi sonho. Os dois frades que lá estavam viram-no com os seus próprios olhos.
- Coisas ainda mais extraordinárias têm acontecido - resmungou ele.
- E contudo não queres acreditar que Nossa Senhora me apareceu.
Ele deitou-lhe um olhar cintilante.
- Não é verdade. Antes não acreditava, mas agora acredito, não por causa do que viste essa manhã mas pelas palavras que te dirigiu a Santíssima Virgem. Há nelas um sentido oculto que me convence.
Catalina ficou perplexa. Não compreendia como a insignificante disparidade entre as duas versões pudesse fazer alguma diferença. Ele afagou-lhe a face com brandura.
- Sou um grande pecador, minha pobre criança, e o que torna desesperada a minha situação é que nunca pude arrepender-me dos meus pecados. Tenho tido uma existência aventurosa e frívola, mas li muitos livros, antigos e modernos,
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e aprendi muita coisa que talvez fosse melhor para a minha alma não conhecer. Mas coragem, minha querida, talvez tudo ainda venha a terminar bem. Apanhou o chapéu.
- Aonde vais, tio?
- Passei um dia muito atarefado e preciso distrair-me. Vou à taberna.
Nisto, porém, Domingo faltava com a verdade, pois em lugar de ir à taberna dirigiu-se para o convento dos dominicanos. Embora ainda estivesse claro, a hora era avançada e o porteiro não o deixou entrar. Domingo insistiu que precisava falar com o bispo sobre um assunto de grande importância, mas o porteiro, falando pelo postigo, negou-se a abrir a porta. Domingo disse-lhe que era o tio de Catallina Pérez e rogou-lhe que chamasse pelo menos um dos secretários de Sua Excelência. O porteiro mostrou-se pouco disposto a atender mesmo a esse pedido, mas tanto insistiu Domingo que ele consentiu afinal. Volvidos alguns minutos, padre António aproximou-se do postigo. Domingo implorou-lhe que o deixasse falar ao bispo, pois tinha uma comunicação da maior importância para este. O frade, evidentemente, estava informado a respeito da sua pessoa e conhecia-lhe a má reputação, pois respondeu com frieza. Disse que era impossível incomodar Sua Excelência, que estava a passar a noite em orações e dera ordens para que não o interrompessem sob pretexto algum.
- Se não me deixar vê-lo será responsável por um terrível infortúnio.
- Bêbedo! - disse padre António desdenhosamente.
- Sou um bêbedo, é verdade, mas não estou embriagado
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agora. Vai lamentar amargamente o facto de não me ter deixado entrar.
- Que mensagem é essa que me pede para transmitir? Domingo hesitou. Não sabia o que dizer.
- Diga-lhe que, pelo amor que lhe tem, Domingo Pérez lhe manda esta mensagem: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo."
- "Hijo de puta!" - gritou padre António, enraivecido por ouvir esse valdevinos, esse dissoluto citar a Santa Escritura.
Bateu-lhe com o postigo na cara. Domingo afastou-se, cheio de melancolia. O hábito orientou-lhe os passos para a taberna. e ele entrou. Era uma criatura sociável e, se não tinha muitos amigos, tinha pelo menos bom número de companheiros de libação. Embebedou-se e, uma vez bêbedo, soltou-se-lhe a língua. Gostava de se ouvir falar e, nessa ocasião como em muitas outras, foi-lhe fácil encontrar ouvintes.


XIV.

Na manhã seguinte, quando, como teria dito Domingo num dos seus poemas, Aurora esfregou os olhos com os dedos rosados e Febo atrelou ao seu carro de ouro os velozes corcéis do sol - ou seja, em prosa, ao romper do dia, três monges dominicanos com os capuzes baixados sobre as cabeças rapadas à navalha, em parte para ocultar-se e em parte para se protegerem dos nocivos vapores da noite que ainda não se acabara de todo, saíram atenciosamente do convento. Mas, embora
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fosse tão cedo, os habitantes da cidade tinham sentido qualquer coisa no ar e já havia um grupo reunido diante do portão do convento. Na alta figura encapuzada que caminhava entre as duas outras, reconheceram de imediato a santa pessoa do bispo. Seguidos a respeitosa distância pelos curiosos, os três frades dirigiram-se rapidamente para a igreja das carmelitas. Outras pessoas esperavam ali. Um dos frades bateu à porta. Esta abriu-se o suficiente para deixá-los passar um após outro e cerrou-se atrás deles. Quando os espectadores tentaram entrar, encontraram-na fechada à chave e, embora batessem, fizeram-no em vão.
Catalina esperava na capela da Virgem. Maria Pérez e Domingo tinham-na acompanhado, mas não os deixaram entrar. Dona Beatriz recebeu o bispo à porta da igreja com as suas freiras, vinte ao todo, pois tal era o limite fixado pelo duque de Castel Rodríguez ao fundar a instituição. O bispo entrou na sacristia com os seus dois auxiliares e envergou as sacras vestimentas. Dirigiu-se devagar para a capela da Virgem. As freiras estavam de joelhos. Apoiando-se na muleta, Catalina ajoelhou-se ao pé dos degraus do altar. O bispo celebrou a missa. As freiras entoaram os responsos em voz baixa e reverente. Ele administrou a Santa Comunhão a Catalina. Após a bênção e a leitura do último Evangelho, ajoelhou-se diante do altar e orou em silêncio. Depois ergueu-se, fitando em Catalina os grandes olhos trágicos, desceu os degraus. Pousou-lhe na cabeça a mão fina e morena.
- Eu, instrumento indigno do Altíssimo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ordeno-te que lances fora essa muleta e caminhes.
Começara em voz trémula e tão sumida que as freiras mal
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podiam ouvi-lo, mas pronunciou as últimas palavras sonoramente, num tom claro de comando. Catalina, com o rosto pálido de emoção, os olhos cintilantes, ergueu-se em pé, largou a muleta!, deu um passo à frente e, com um grito de angústia, caiu redondamente no chão. O milagre havia falhado.
Imediatamente se formou uma balbúrdia entre as freiras. Algumas puseram-se a gritar e duas delas desmaiaram. A prioresa adiantou-se. Relanceou os olhos para Catalina e depois o seu olhar encontrou o do bispo. Por um instante encararam-se fixamente. À retaguarda as freiras soluçavam. Então o bispo saiu da capela, com os dois frades atrás de si, e entrou na sacristia. Não disse uma só palavra. Após tirarem as vestimentas da missa e tornarem a pôr os seus hábitos monásticos, entraram de novo na igreja. A porteira estava à espera para abrir a porta. Com a cabeça novamente coberta pelo capuz, o bispo tornou a sair para o sol claro da manhã de Verão.
Tinha-se espalhado a notícia de que ele estava realizando um milagre naquele momento e as janelas da praça estavam apinhadas de espectadores. Formavam uma multidão compacta nos degraus da igreja e o logradouro estava cheio deles. Durante um instante o bispo ficou aterrado por ver aquele grande concurso de povo - mas só durante um instante. Compôs o hábito e aprumou-se. Assim que ele aparecera, um estremecimento de consternação percorreu o povo, pois de um modo misterioso este compreendeu de imediato, embora não soubesse dizer como, que o milagre falhara. Abriram caminho e o bispo, seguido pelos dois frades, desceu a escadaria da igreja. Aqueles que se encontravam na praça recuavam, comprimindo-se uns aos outros, e ao passar o bispo pela espécie
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de corredor assim formado, com o rosto oculto, a alta figura encolhida no hábito branco e preto da ordem, fazia-se na multidão um temível silêncio. Dir-se-ia que estivessem apavorados ante a iminência de alguma catástrofe inevitável.


XV.

Os monges do convento dominicano tinham-se indignado quando o bispo lhes negou permissão de assistir à cerimónia. Ao regressar com os seus dois secretários, encontrou-os vadiando, à espera para olhá-lo. A notícia já havia alcançado o convento. Passou por eles como se não os visse.
Ao saber que teriam no seu meio um hóspede tão ilustre, haviam provido a sua cela do luxo que lhes parecia condizente com a sua grandeza. Mas ele mandara logo retirar tudo quanto ofendia a sua austeridade. Obrigou-os a trocar o colchão macio da cama por outro de palha, tão fino quanto um cobertor, e pediu que as duas poltronas colocadas no oratório fossem substituídas por mochos de três pés. Tinham-lhe dado uma bela mesa de teca para escrever, mas ele reclamou, em lugar dela, uma mesa de pinho sem pintura. Não aceitava nada que desse prazer aos sentidos. Rejeitou os quadros que hiaviam pendurado nas paredes. Estas ficaram nuas, com excepção de uma simples cruz negra, sem a figura de Nosso Senhor, quer esculpida, quer pintada, e isso a fim de que ele pudesse imaginar-se mais vivamente pregado a ela, sentindo assim no seu corpo o suplício que havia experimentado o Redentor por amor à humanidade.
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Ao entrar na sua cela, o bispo deixou-se cair no duro mocho de madeira e fitou os olhos no pavimento de pedra. Lágrimas lentas e dolorosas escorreram-lhe pelas faces cavadas. Padre António encheu-se de compaixão ao ver o seu mestre mergulhado num sentimento que muito se parecia com o desespero. Cochichou qualquer coisa ao seu companheiro, que no mesmo instante saiu, voltando ao cabo de poucos minutos com uma tigela de sopa. Padre António ofereceu-a ao bispo.
- Coma, senhor.
O bispo desviou o rosto.
- Não poderia engolir nada.
- Mas, Excelência, não tem posto nada na boca desde ontem de manhã! Rogo-lhe que tome pelo menos algumas colheradas.
Ajoelhou-se, encheu uma colher com a sopa fumegante e levou-a aos lábios do bispo.
- Você é muito bom para mim, meu filho - disse este. - Não mereço as atenções que me dedica.
Para não ser grosseiro, engoliu o conteúdo da colher e o monge deu de comer ao humilhado homem como se este fosse uma criança enferma. O bispo não desconhecia o profundo apego que lhe tinha o seu fiel auxiliar e mais de uma vez o advertira do perigo de tal coisa, pois um religioso deve estar sempre em guarda para não tomar afeição a indivíduos particulares, o que não faz senão criar obstáculos à integral devoção para com o Senhor, que é o único objecto verdadeiro de amor. Quanto aos seres humanos, quer clérigos quer leigos, deve tratá-los com boa vontade, pois são criaturas de Deus, mas ao mesmo tempo - visto que são perecíveis - com uma indiferença para a qual tanto faz estarem presentes como
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ausentes. Mas é difícil governar os afectos e, por mais que o tentasse, padre António não conseguia eliminar o amor, a devoção extática de que estava repleto o seu pobre coração. Depois que o bispo comeu, padre António pôs de lado a tigela e, sempre de joelhos, atreveu-se a tomar-lhe a mão.
- Não se amargure tanto, senhor. A menina foi enganada pelo demónio.
- Não, a culpa foi minha. Solicitei um sinal e ele foi-me dado. Na minha vanglória, não me julguei indigno de realizar aquilo que só é concedido aos santos eleitos pelo Senhor. Sou um pecador e fui justamente punido pela minha presunção.
Tão acabrunhado estava o bispo que o frade ousou falar-lhe num tom que jamais teria empregado em outras circunstâncias.
- Todos nós somos pecadores, meu senhor, mas eu tive o privilégio de conviver consigo durante muitos anos e ninguém melhor do que eu conhece a sua constante bondade para com todos os homens, a sua inesgotável caridade e compaixão.
- Quem fala agora, é a sua bondade, meu filho. É a afeição que me tem, contra a qual o tenho advertido tantas vezes e que eu tão pouco mereço.
Padre António considerou com piedade o nosto agoniado do bispo. Continuava a segurar-lhe a mão fria e emaiciada.
- Permite que eu lhe leia um pouco para distraí-lo, meu senhor? - disse ele depois de uma pausa. - Escrevi ultimamente alguma coisa sobre a qual desejaria a sua opinião.
O bispo sabia quão amargurado estava o pobre frade pelo facto de não se haver realizado o milagre que ele aguardara com tão absoluta confiança, e sentiu-se tocado ao ver esse homem simples e estimável vencer a sua própria decepção para
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o atender e consolar. Até então, jamais havia consentido em escutar uma palavra sequer do livro que o seu secretário escrevia com tanta diligência, mas dessa vez não teve coragem de recusar-lhe um prazer que ele tão ardentemente desejava.
- Leia, meu filho. Terei muito gosto em ouvir.
Com as faces rubras de prazer, o padre pôs-se atabalhoadamente em pé e tirou, de entre os numerosos papéis com que o seu cargo o obrigara a lidar, várias folhas manuscritas. Sentou-se num dos mochos. O outro frade sentou-se no chão, pois não havia outro lugar onde sentar-se. Padre António começou a ler.
Escritor erudito e elegante, nenhum artifício de retórica lhe era desconhecido. Tinha um estilo rico em símiles e metáforas, metonímias, sinédoques e catacreses. Nunca soltava um substantivo sem o escoltar com dois robustos adjectivos. As imagens brotavam-lhe na mente tão pingues e profusas como cogumelos após a chuva. Versado como era nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja e dos moralistas latinos, nunca tinha dificuldade em encaixar uma alusão oculta. Conhecia a fundo a estrutura dos períodos, simples, complexos, compostos e compostos-complexos, e não só sabia compô-los de maneira perfeita, com cláusulas e subcláusulas, mas também dar-lhe um fecho sonoro e triunfante que fazia o efeito de uma porta batida na cara do leitor. Esse estilo literário, a que um crítico engenhoso deu o nome de "Mandarim", é muito estimado pelos que o adoptam, mas tem a pequena desvantagem de tomar muito tempo para exprimir aquilo que se pode dizer em poucas palavras. Em todo o caso, ele destoaria da linguagem simples e tosca em que é vasada esta narrativa; de modo que, ao invés de fazer uma inútil tentativa de reproduzir
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a grandiloquência do bom frade, o autor destas páginas achou de bom aviso dar uma súmula do assunto à sua moda singela.
Não sem bastante tacto, padre António escolheu para ler o relato do grande auto-de-fé que havia coroado a carreira de Frei Blasco no Santo Ofício e que, conforme mencionamos anteriormente, causara tanto prazer ao príncipe, agora Filipe III, e a seu tempo ocasionara a elevação do piedoso inquisidor à importante diocese de Segóvia.
A impressionante cerimónia, feita para inspirar respeito à autoridade da Inquisição e edificar o povo, realizou-se num domingo, a fim de que ninguém pudesse pretextar suas ocupações para deixar de comparecer, visto que isso era um dever religioso; e, para conseguir-se um público tão numeroso quanto possível, concederam-se quarenta dias de indulgência a todos quantos assistissem. Três palanques tinham sido erigidos na grande praça da cidade, uma para os penitentes com os seus assistentes espirituais, outro para os inquisidores, autoridades do Santo Ofício e o clero em geral, e um terceiro para as autoridades civis e dignitários locais. As solenidades, no entanto, tiveram início na noite anterior com a procissão da Cruz Verde. Em primeiro lugar, com um estandarte de damasco carmesim em que fora bordado o escudo real, ia uma multidão de familiares e de cavalheiros; depois as ordens religiosas, com a Cruz Branca; a Cruz da igreja da paróquia, carregada pelo clero secular; e finalmente a Cruz Verde, carregada pelo prior dos dominicanos, acompanhado pelos seus frades com tochas. Enquanto caminhavam, cantavam o "Miserere". A Cruz Verde foi plantada acima do altar, no palanque reservado aos inquisidores, e guardada durante a noite pelos dominicanos. A Cruz Branca
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foi conduzida ao local da execução, onde lhe montaram guarda soldados da "Zarza", milícia encarregada de vigiar o "quemadero" ou lugar onde se armavam as fogueiras, e de fornecer lenha para estas.
Um dos deveres dos inquisidores era visitar durante a noite os condenados à morte, informá-los da sentença e designar dois monges que deviam preparar cada um deles para enfrentar o Senhor. Nessa, ocasião, porém, padre Baltasar, o mais moço dos inquisidores, estava acamado com uma cólica e desejando refazer-se o suficiente para tomar parte nas cerimónias do dia seguinte, rogou a Frei Blasco que o escusasse de acompanhá-lo nessa triste missão.
Ao nascer do dia celebrou-se a missa na câmara de audiências do Santo Ofício e diante do altar da Cruz Verde. Serviu-se uma refeição aos prisioneiros e aos frades que tinham feito companhia aos condenados e que, sem dúvida, a acolheram com alegria. Os penitentes foram então dispostos em fileiras, de acordo com a gravidade do seu delito contra a fé, e vestiram-nos com sambenitos. O sambenito era uma túnica amarela num de cujos lados tinham pintado chamas para os condenados à fogueira, e no outro lado estava inscrito o nome, residência e crimes cometidos por cada um. Davam-lhe cruzes verdes para carregar e punham-lhe círios amarelos na mão.
Formou-se outra procissão. Os soldados da "Zarza", que a conduziam eram seguidos de um religioso com uma cruz envolta numa mortalha negra e de um acólito que de tempos a tempos dobrava uma sineta. Vinham então os penitentes, um a um, com um familiar de cada lado; depois, as efígies ou as ossadas daqueles que, pela fuga ou pela morte, tinham esbulhado o Santo Ofício da sua justa presa; em seguida,
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os condenados à morte, acompanhados pelos frades que lhes tinham prestado assistência espiritual durante a noite. Seguiam-se autoridades a cavalo, familiares a avançar dois a dois, os magistrados e os dignitários eclesiásticos, de acordo com a ordem oficial de precedência. Um nobre de alta categoria carregava um estojo de veludo vermelho, franjado de ouro, que continha as sentenças dos condenados. Vinha então o estandarte do Santo Ofício, conduzido pelo prior dos dominicanos, seguido dos seus monges; e, por último, os inquisidores.
Era um belo dia de sol, um desses dias que estimulam o espírito de moços e velhos, fazendo-lhes sentir que a vida é boa.
A procissão avançou lentamente pelas ruas tortuosas até chegar à praça. Havia grande afluência de povo. Muita gente acorrera das férteis fazendas que cercavam a cidade dos arrozais e dos olivais; outros, ainda vinham de Alicante, a terra dos parreirais, e de Elche, a região das tamareiras. As janelas das casas circundantes estavam cheias de pessoas nobres e gradas. O príncipe esperava com a sua comitiva num balcão da municipalidade.
Fizeram os réus sentar-se no palanque erigido para eles, na ordem em que tinham marchado, os menos culpados nos bancos inferiores e os mais criminosos nos superiores. Havia no palanque dois púlpitos em que se acomodou o tribunal, e de um desses púlpitos fez-se uma prédica. Então, numa voz tão alta que todos podiam ouvi-lo, um secretário leu o juramento pelo qual as autoridades e todos os presentes se comprometiam a obedecer ao Santo Ofício e a perseguir os hereges e a heresia. Todos disseram ámen, Em seguida, os dois inquisidores dirigiram-se para a sacada em que se achava o príncipe e, sobre a Cruz
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e os Evangelhos, exigiram-lhe um juramento pelo qual se obrigava a obedecer à fé católica e ao Santo Ofício, a perseguir os hereges e apóstatas e ajudar a Inquisição a capturar e punir, quaisquer que fossem a sua posição e categoria-, os infiéis que rejeitavam a verdadeira religião.
- Eu o juro e prometo pela minha fé e sob a minha palavra real - respondeu solenemente o príncipe.
Havia um banco entre os dois púlpitos, e para ali os penitentes foram conduzidos um a um. Leram-lhes as sentenças, alternativamente, de um e de outro púlpito. Com excepção dos condenados às chamas, era a primeira vez que lhes anunciavam o seu destino, e como alguns perdiam os sentidos ao ouvi-lo o Santo Ofício, na sua misericórdia, havia munido o banco de um gradil para que não se magoassem ao cair. Nessa ocasião um homem, alquebrado pela tortura, morreu ali mesmo do choque. A Última sentença foi lida e os réus entregues ao braço secular. O Santo Ofício não impunha qualquer espécie de pena que implicasse em derramamento de sangue, chegando mesmo ao ponto de instar com as autoridades civis para que poupassem a vida do criminoso. A lei canónica, no entanto, exigia-lhes que punissem prontamente os hereges confiados às suas mãos pela Inquisição e concedia-se uma indulgência aos devotos que trouxessem lenha para a fogueira destinada a queimá-los.
Ficava assim terminada a tarefa dos inquisidores, que se retiraram. Os soldados da "Zarza" entraram na praça e descarregaram os seus mosquetes. Depois cercaram os prisioneiros e marcharam com eles para o local da execução, a fim de protegê-los contra a fúria do populacho, que, no seu ódio à heresia, tê-los-ia maltratado e até seria capaz de matá-los.
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Os frades acompanhavam-nos, esforçando-se até ao fim por lhes arrancar uma palavra de arrependimento e conversão. Entre eles havia quatro mulheres mouras, cuja beleza provocou a admiração de todos, um impenitente mercador holandês que fora apanhado a introduzir no país uma tradução espanhola do Novo Testamento, um mouro culpado de ter morto uma galinha cortando-lhe a cabeça, um bígamo, um mercador que dera asilo a um fugitivo do Santo Ofício, e um grego culpado de defender opiniões condenadas pela Igreja. Um aguazil e um secretário foram com as autoridades civis, para tratar de que as sentenças fossem devidamente executadas. O secretário, nessa ocasião, era padre António, que assim teve oportunidade de fazer um relato completo dos acontecimentos do dia.
O "quemadero" ficava fora da cidade. Garrotes tinham sido presos às estacas, a fim de que aqueles que houvessem manifestado a intenção de morrer na fé cristã, inclusive os que o faziam no último momento, pudessem escapar à morte pelo fogo, perecendo pelo método mais suave do estrangulamento. A multidão precipitara-se em pós dos soldados e dos prisioneiros e grande número de pessoas, a fim de apreciar melhor os trâmites da execução, foram tomar lugar antecipadamente no espaço aberto em que devia verificar-se a cena final. Havia ali enorme assistência, o que era natural, pois tratava-se de um espectáculo digno de ser visto e de um entretenimento muito apropriado a um hóspede de sangue real; além disso, o espectador tinha a satisfação de saber que estava realizando um acto de piedade e um serviço a Deus. Os destinados ao garrote foram garroteados. Depois atearam-se as chamas, e vivos e mortos foram reduzidos a cinzas, a fim de que a sua memória
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desaparecesse para sempre. O povo levantou um clamor e pôs-se a bater palmas ao ver subir as chamas, abafando quase os gritos agudos das vítimas, e aqui e além uma mulher entoava um salmo lamentoso e estridente à Santíssima Virgem ou a Cristo Crucificado. Caiu a noite e a multidão voltou aos grupos para a cidade, fatigada de tanta emoção e tantas horas passadas em pé, mas sentindo que tivera um dia feliz. Dirigiam-se em grande número para as tabernas. Os bordéis tiveram um movimento nunca visto e muito homem pôs à prova nessa noite a eficácia do fragmento do hábito de frei Blasco, que usava num escapulário ao pescoço.
Padre António também estava cansado, mas a sua primeira obrigação era comunicar os acontecimentos aos dois inquisidores. Feito isso, como era um homem consciencioso, apesar da fadiga que o tentava a ir para a cama sentou-se e escreveu uma narrativa circunstanciada de tudo quanto sucedera naquele dia, enquanto tinha todos os pormenores frescos no espírito. Fê-lo com rapidez e uma eloquência que parecia inspirada pelo Céu, e ao reler o que escrevera verificou que não havia necessidade de alterar uma só palavra. Finalmente, ditoso pela consciência de haver cumprido o seu dever e contribuído, além disso, com a sua modesta parte para uma obra piedosa, meteu-se na cama e dormiu o sono inocente de uma criança.
Tudo isso ele o leu ao desalentado bispo em voz forte e sonora, dando uma ênfase dramática aos episódios mais significativos. Lia com os olhos pregados ao papel. Sentia uma estranha exaltação. Era assim que se servia o Senhor e se mantinha a pureza da fé católica. Terminou a leitura. Tinha de reconhecer que fizera justiça à grandiosa solenidade. Ele próprio sentia a vividez da sua descrição e a maneira artística por que conduzira
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a narrativa, sem saber como, a um clímax imponente. Alçou os olhos. Como muitos outros escritores que submetem a sua obra à apreciação de um ouvinte, gostaria de ser recompensado com uma palavra de louvor. Mas isso não passou de um desejo momentâneo. O fim principal era dissipar as sombrias imaginações do seu amado e venerado superior, lembrando-lhe o mais glorioso incidente da sua carreira. Por mais santo que fosse, não podia deixar de sentir um estremecimento de orgulho ao surgir-lhe ante os olhos do espírito aquele dia magnífico em que relegara aos tormentos eternos tão grande número de amaldiçoados hereges, servindo assim o Senhor, desobrigando a sua consciência e edificando o povo. Padre António ficou surpreendido, mais do que surpreendido, ateimado, quando viu que as lágrimas lhe desciam pelas faces murchas e ele apertava os punhos com força, para conter os soluços que lhe sacudiam o peito.
Atirou ao chão o manuscrito e, saltando do tamborete em que estava sentado, lançou-se aos pés do seu mestre.
- Mas que tem o senhor? - exclamou. - Que fiz eu? Li apenas para distraí-lo...
O bispo afastou-o de si e, pondo-se em pé, estendeu os braços súplices para a cruz negra pregada à parede.
- O grego! - gemeu ele. - O grego!
E, incapaz de se conter por mais tempo, desatou num choro arrebatado. Os dois frades contemplavam-no cheios de consternação. Nunca tinham visto esse homem austero entregar-se a crises emotivas. O bispo secou as lágrimas impacientemente, com a palma da mão.
- Eu sou o culpado - gemeu ele - , terrivelmente culpado.
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Cometi um horrendo pecado e a minha única esperança de perdão está na infinita misericórdia do Senhor.
- Explique pelo amor de Deus, Excelência! Estou absolutamente confuso. Pareço um marinheiro numa tempestade, com o barco desarvorado e o leme perdido. - Com o seu trecho literário ainda a ressoar-lhe nos ouvidos, era impossível a padre António deixar de falar como um livro.
- O grego? Porque Vossa Excelência se refere ao grego? Era um herege e sofreu a justa punição do seu crime.
- Você não sabe o que diz. Não sabe que o meu crime é ainda maior que o dele. Pedi um sinal e o sinal foi-me dado. Tomei-o por um indício da graça divina;; vejo agora que era um indício da Sua cólera. É justo que eu seja humilhado aos olhos dos homens, porque sou um miserável pecador.
Não se voltou para os seus companheiros. Não era a eles que falava, mas à Cruz sobre a qual se imaginara tantas vezes, com as mãos e os pés atravessados por pregos.
- Era um bom velho, caridoso na sua pobreza para com os mais pobres do que ele, e durante os anos que o conheci nunca lhe ouvi pronunciar uma má palavra. Olhava todos os homens com estima e bondade. Possuía a verdadeira nobreza da alma.
- Muitos homens, virtuosos na vida pública e privada, foram justamente condenados pelo Santo Ofício, porquanto a rectidão moral nada pesa na balança contra o pecado mortal da heresia.
O bispo virou-se e considerou padre António. O seu olhar era trágico.
- E o estipêndio do pecado é a morte - murmurou ele. O grego de quem faiavam, Demétrios Ghristopoulos, era
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natural de Chipre e homem de algumas posses, o que lhe permitira dedicar-se aos estudos. Quando os turcos, no reinado de Selim II, invadiram a ilha, tomaram Nicósia, a capital, e passaram a fio de espada vinte mil dos seus habitantes. Famagusta, onde vivia Demétrios Chrastopoulos, foi cercada e rendeu-se após um ano de acirrada resistência. Sucedia isso em 1571. Fugiu ele da cidade condenada! e homiziou-se nos montes até conseguir escapar num bote de pescadores, e depois de muitas aventuras desembarcou na Itália. Estava sem vintém, mas não tardou a arranjar suficiente trabalho, como professor de grego e expositor da filosofia antiga, para não morrer de fome. Numa hora aziaga, porén, fez-se notado por um fidalgo espanhol adido à embaixada do seu país em Roma, o qual durante a sua residência na Itália se rendera ao culto de Platão, então na moda. O nobre levava-o ao seu palácio e os dois liam juntos os imortais diálogos do filósofo. Volvidos alguns anos, no entanto, foi reconduzido à Espanha e convenceu o grego a ir com ele. Foi elevado à vice-realeza do Reino de Valência e nesta cidade veio a monrer. O grego, sem recursos e já à beira da velhice, deixou o palácio do vice-Rei e instalou-se muito modestamente em casa de uma viúva. Tinha adquirido certo renome de erudição e arranjou um precário meio de vida dando lições de grego aos que desejavam adquirir conhecimentos desse nobre idioma.
Frei Blasco de Valeiro ouvira falar dele quando ainda ensinava teologia em Alcalá de Henares. Pouco depois de assumir o cargo de inquisidor em Valência, sabedor de que ele era um homem de boa reputação e vida virtuosa, mandou chamá-lo. Simpatizou com as maneiras suaves e modestas do velho e pediu-lhe que lhe ensinasse a língua em que fora escrito o Novo
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Testamento, a fim de poder lê-lo com maior devoção. Durante nove anos, sempre que os seus múltiplos deveres lhe davam um momento de folga, o inquisidor e o grego trabalharam juntos. Frei Blasco era um aluno diligente e capaz, e ao cabo de alguns meses o grego, que tinha paixão pela grande e antiga literatura do seu país, convenceu-o a enfrentar as obras dos autores clássicos. Era platonista fervoroso e não tardou que se pusessem a ler os "Diálogos". Daí passaram para Aristóteles. O frade não quis ler a "ilíada", que lhe parecia brutal, nem a "Odisseia", que ele achava frívola, mas encontrou muita coisa de admiração nos autores dramáticos. Sempre acabavam, no entanto, por voltar aos "Diálogos".
O inquisidor era um homem de sensibilidade delicada e encantou-o a graça, a piedade religiosa e a profundidade de Platão. Havia nas obras deste muita coisa que um cristão podia aprovar. Era pretexto para que ambos discutissem muitos assuntos sérios. Frei Blasco entrou assim num novo mundo. Sentia um singular deleite na leitura desses grandes livros que lhe proporcionavam um feliz repouso após as ocupações do dia. No seu longo e fecundo convívio com aquele homem que não parecia pertencer a este mundo concebera por ele uma espécie de afeição, e tudo que ouvia dizer do grego, da sua vida simples e honesta, da sua índole bondosa e da sua caridade, aumentava a admiração que lhe inspirava o seu carácter.
Foi um choque terrível para ele quando um holandês luterano, detido pelos familiares da Inquisição por introduzir na Espanha traduções do Novo Testamento, confessou no cavalete haver dado um exemplar ao grego. Prosseguindo o interrogatório, com a assistência de mais uma volta do arrocho, disse
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ter conversado amiúde com ele sobre religião, e que em muitos pontos estavam inteiramente de acordo. Isto era suficiente para que o Santo Ofício se visse obrigado a instaurar um inquérito que, como sempre, foi exaustivo e secreto. O grego foi conservado na ignorância de estar sob suspeita. Ao ler os autos finais do inquérito, frei Blasco ficou horrorizado. Nunca lhe passara pela cabeça que o grego, tão bom, tão humilde, não houvesse, durante os longos anos passados na Itália e depois na Espanha, abjurado as suas opiniões cismáticas e abraçado a fé católica de Roma. Testemunhas juraram ter-lhe ouvido emitir opiniões condenáveis. Demétrios negava que o Espírito Santo procedesse do Filho, rejeitava a supremacia do papa e, embora venerasse a Virgem:, não queria admitir a sua imaculada conceição. A dona da casa em que ele morava ouvira-lhe dizer que as indulgências não tinham valor algum e alguém mais testificou que ele não aceitava a doutrina romana do purgatório.
O colega de frei Blasco, Don Baltasar de Carmona, era doutor em direito e um rígido moralista - homenzinho descarnado, de narigão pontudo, lábios comprimidos, olhos pequenos e desinquietos. Sofria, de uma doença dos intestinos que lhe azedava o temperamento. O seu cargo dava-lhe um poder imenso, que ele exercia com selvagem prazer. Ao ter conhecimento desses factos condenatórios, insistiu em que se prendesse o grego. Frei Blasco fez o que pôde para salvá-lo. Alegou que, na qualidade de cismático, ele não era um herege, e portanto não caía sob a jurisdição do Santo Ofício. Mas não havia só o depoimento do luterano submetido à tortura: um calvinista francês, a quem aquele também incriminara, declarou que ouvira o grego emitir opiniões que cheiravam a protestantismo,
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e ao saber disto frei Blasco viu-se obrigado a cumprir o seu dever de ofício, por mais que tal coisa lhe custasse. Familiares foram buscar o velho a sua casa e levaram-no para o cárcere da Inquisição. Interrogaram-no e confessou-se francamente culpado do que lhe imputavam. Deram-lhe a oportunidade de abjurar as suas falsas crenças e converter-se ao catolicismo, mas com grande consternação de frei Blasco ele recusou fazê-lo. O delito era grave, mas como as provas não fossem concludentes quanto ao protestantismo, frei Blasco quis dar ao grego um ensejo de expiar o seu crime e insistiu junto ao seu colega, partidário de uma condenação imediata, a fim de que o submetessem à tortura, para induzi-lo à conversão e salvar-lhe a alma.
A lei exigia que ambos os inquisidores estivessem presentes à aplicação da tortura, com o representante do bispo diocesano e um notário para registar o ocorrido. Esse espectáculo nunca deixava de inspirar tal horror a frei Blasco que durante noites seguidas era atormentado por sonhos pavorosos.
Trouxeram o grego, desnudaram-lhe o torso e amarraram-no ao cavalete. O seu débil corpo de ancião estava ema-ciado. Rogaram-lhe solenemente que confessasse a verdade, pois os inquisidores não desejavam vê-lo sofrer. Permaneceu calado. Ataram-lhe as pernas aos lados do cavalete, passaram-lhe cordas em volta dos braços, das coxas e das pernas, e as extremidades daquelas foram presas a um arrocho - isto é, um pau mediante o qual podiam ser esticadas. O algoz deu uma vigorosa volta ao arrocho e o grego soltou um grito agudo; outra volta, e as cordas penetraram-lhe na pele e na carne, até aos ossos. Devido à sua idade avançada frei Blasco insistira em que não se dessem mais de quatro voltas, pois
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embora o máximo estabelecido fosse de seis ou sete, raramente se ia além de cinco, ainda quando se tratava de homens robustos. O grego suplicou que o matassem de uma vez e pusessem termo à sua agonia. Embora frei Blasco fosse obrigado a estar presente, não era obrigado a olhar. Mantinha os olhos cravados no chão de pedra, mas os gritos de dor retiniam-lhe nos ouvidos e atassalhavam-lhe os nervos. Aquela era a voz com que o seu amigo havia recitado as graves e nobres passagens de Sófocles; era a mesma voz com que, presa de uma emoção que a custo dominava, ele tinha lido o derradeiro discurso de Sócrates. Antes de cada volta do arrocho ordenava-se ao grego que confessasse a verdade, mas ele cerrava os dentes e não abria a boca. Quando o tiraram do cavalete não podia ter-se em pé e foi preciso carregá-lo de volta ao cárcere do Santo Ofício.
Embora nada houvesse confessado, condenaram-no com base nas suas confissões prévias. Frei Blasco ainda quis salvar-lhe a vida, mas Don Baltasar, o doutor em leis, objectou que ele era tão culpado quanto os outros luteranos condenados à fogueira. O representante do bispo e as demais autoridades a quem consultaram mostraram-se concordes com ele. Como o auto-de-fé só devesse realizar-se algumas semanas depois, frei Blasco teve tempo de escrever ao inquisidor-mor expondo-lhe o caso. O inquisidor-mor respondeu que não via motivo para alterar a decisão do tribunal. Frei Blasco nada mais podia fazer. Mas os gritos desesperados do velho continuavam a ecoar-lhe nos ouvidos e o sofrimento não lhe dava tréguas. Enviava-lhe conselheiros espirituais para tentar convertê-lo, pois embora já fosse impossível salvar-lhe a vida, o arrependimento permitiria que fosse garroteado, poupando-lhe
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assim o suplício da fogueira. Mas o grego mostrou-se contumaz. Apesar da tortura e da longa permanência no cárcere, o seu espírito continuava lúcido e activo. Aos argumentos dos frades respondia com outros argumentos tão subtis que aqueles se enfureciam.
Finalmente chegou a véspera do auto-de-fé. As anteriores solenidades da mesma espécie não haviam feito impressão em frei Blasco, pois os judaizantes relapsos, os mouros que persistiam nas suas práticas diabólicas, os protestantes, eram criminosos perante Deus e os homens, e, levando-se em conta a segurança da Igreja e do Estado, havia todas as razões para fazê-los sofrer. Mas ninguém sabia melhor do que ele quanto o grego era bom, compassivo e prestativo aos necessitados. Apesar da autoridade do seu colega, homem cruel, de alma seca e fria, ele punha em dúvida a legalidade do pavoroso castigo. Tinham trocado palavras acres e Don Baltasar acusara-o de favorecer o criminoso por ser seu amigo. No íntimo, frei Blasco sabia existir pelo menos um fundo de verdade nessa imputação: se ele nunca houvesse encontrado o grego, teria aceite a sentença sem protesto. Já não lhe podia salvar a vida, mas ainda podia salvar a sua alma. Os frades a quem tinha enviado para convencê-lo do seu erro não possuíam a habilidade necessária para tratar com um homem tão instruído. Uma hora antes de romper o dia foi ao cárcere da Inquisição e pediu que o conduzissem à cela do grego. Os dois frades estavam-no ajudando a passar essa última noite na Terra. Frei Blasco mandou-os sair.
- Ele não quis ouvir as nossas exortações - disse um deles.
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Um sorriso bailou nos lábios do grego ao vê-los deixar a cela.
- Sem dúvida alguma, os seus frades são pessoas muito dignas, senhor. Mas não têm grande inteligência.
Estava calmo e, conquanto velho e alquebrado, mantinha uma aparência de dignidade.
- Vossa Reverência há-de perdoar-me se fico na cama. A tortura deixou-me muito fraco e desejo conservar as forças para as cerimónias de hoje.
- Não percamos o tempo em falas ociosas. Dentro de poucas horas você terá de enfrentar um horrível destino. Sabe Deus que eu de bom grado daria dez anos da minha vida para o salvar. As provas eram condenatórias e eu faltaria ao meu juramento se deixasse de cumprir o meu dever.
- Eu jamais desejaria que o senhor fizesse tal coisa.
- Já não lhe posso salvar a vida, mas se consentir em retractar-se e aceitar a conversão, poderei ao menos poupar-lhe o tormento das chamas. Eu estimava-o, Demétrios, e nunca poderei saldar a minha dívida para consigo a não ser salvando a sua alma imortal. Esses frades são ignorantes e tacanhos. Vim aqui fazer uma última tentativa desesperada de convencê-lo do seu erro.
- Perderia o seu tempo, senhor. Nós lhe daríamos muito melhor emprego se conversássemos, como tantas vezes fizemos, sobre a morte de Sócrates. Não me permitiram trazer livros para este calabouço, mas possuo boa memória e tenho encontrado alívio em repetir a mim mesmo aquele discurso em que ele fala com tanta nobreza sobre a alma.
- Não estou a ordenar-lhe agora, Demétrios, estou a suplicar-lhe que me ouça.
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- Não posso negar-lhe esse último acto de cortesia.
Em tom grave, ponto por ponto, com cultura e discrição, o inquisidor expôs os argumentos imaginados pela Igreja para justificar as suas pretensões e refutar as opiniões de hereges e cismáticos. Estava habituado a discutir tais assuntos e expressou-se com habilidade e uma impressionante convicção.
- Eu não merecia muito respeito se, pelo receio de uma morte horrível, fingisse aceitar crenças que considero erróneas - disse o grego depois de ele terminar.
- Não é isso que eu lhe peço. Peço-lhe que creia na verdade com todo o seu coração.
- "Que é a verdade?" perguntou Pôncio Pilatos. É tão impossível ao homem forçar a sua crença como é impossível subjugar as vagas do oceano quando açoitado pela borrasca. Agradeço a Vossa Reverência a bondade de que me dá prova, e esteja certo de que não lhe guardo rancor pelo infortúnio que me aconteceu. O senhor agiu de acordo com a sua consciência e nenhum homem pode fazer mais do que isso. Eu já estou velho e pouca diferença faz que morra hoje ou daqui a um ou dois anos. Só tenho um pedido para lhe fazer. Não abandone, por eu ter desaparecido, os seus estudos da sublime literatura da Grécia antiga. Ela não deixará de ampliar-lhe o espírito e enobrecer-lhe o pensamento.
- Não teme a justa vingança do Senhor contra a sua contumaz obstinação?
- O Senhor possui muitos nomes e uma infinidade de atributos. Tem sido chamado Jeová, Zeus e Brama. Que importância tem o nome que Lhe damos? Mas entre os seus atributos infinitos o principal, como bem o percebeu Sócrates, ainda que pagão, é a justiça. Ele deve saber que o homem
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não acredita naquilo que quer, mas no que pode, e eu não Lhe farei a suma injustiça de supor que Ele condene as suas criaturas por uma coisa de que não são culpadas. Vossa Reverência não me julgue desrespeitoso se lhe peço que me deixe agora a sós com os meus pensamentos.
- Não posso deixá-lo assim. Devo esforçar-me até ao fim para salvar a sua alma imortal das chamas furiosas do Inferno. Diga uma palavra que me dê a esperança de poder salvá-lo ainda. Uma palavra para mostrar que você não continua impenitente, para que eu possa ao menos mitigar o seu castigo aqui na Terra.
O grego sorriu, e é possível que houvesse um toque de ironia nesse sorriso.
- O senhor desempenhará o seu papel, e eu o meu. O seu papel é matar, o meu é morrer sem tremer.
As lágrimas cegaram o inquisidor, que encontrou a custo o caminho da saída.
O bispo referiu este episódio aos frades numa voz embargada, e ao chegar a este ponto cobriu o rosto com as mãos, como se não pudesse suportar a vergonha de contar o resto. Eles escutavam-no compungidos, mas com uma atenção empolgada, e padre António anotava cuidadosamente, na sua memória, cada fala e cada resposta, a fim de registá-las no seu livro.
- Fiz então uma coisa horrível. Don Baltasar estava de cama e eu sabia que ele não se levantaria senão no último momento, pois tinha um medo mortal de que a doença o impedisse de assistir ao auto-de-fé. É um homem ambicioso e queria fazer-se notar pelo príncipe. Eu tinha, pois, liberdade de agir como entendesse. Não podia suportar a ideia
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de ver aquele pobre velho ser devorado pelas chamas cruéis. Ainda me ressoavam ao ouvido os seus gritos ao ser torturado e parecia-me que não cessaria de ouvi-los durante toda a minha vida. Disse às pessoas a quem isso interessava que tinha falado pessoalmente com ele e ele se retractara a ponto de admitir a dupla processão do Espírito Santo. Dei ordem para que o garroteassem antes de queimá-lo e mandei dinheiro por um criado ao algoz para que o despachasse depressa.
Convém explicar que o algoz podia prolongar durante horas a agonia da vítima, apertando-lhe e afrouxando-lhe alternativamente o colar de ferro em torno do pescoço, de modo que era preciso pagar-lhe para dar morte rápida ao infeliz.
- Não ignorava que isso era um pecado. O pesar desvairou-me e mal sabia o que estava a fazer. Foi um pecado que jamais deixarei de censurar a mim mesmo. Disse-o ao meu confessor e cumpri a penitência que ele me impôs. Recebi a absolvição, mas não posso absolver a mim mesmo, e o que sucedeu hoje é o meu castigo.
- Mas, meu senhor, isso foi um acto de compaixão! - obtemperou padre António. - Qual é aquele que, tendo trabalhado consigo tantos anos como eu trabalhei, não conhece a bondade do seu coração, e quem pode censurar-lhe o ter permitido uma vez que essa bondade suplantasse o seu sentimento de justiça?
- Não foi um acto de compaixão. Quem pode afirmar que o grego não ficara abalado pelos meus argumentos e quem sabe se, quando as chamas lhe lambessem a carne, a graça do Senhor não lhe seria concedida, levando-lhe o espírito obstinado a renegar os seus erros? Muitos homens, nesse derradeiro e terrível momento em que estão prestes a encontrar o seu Criador,
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salvaram assim as suas almas. Eu tirei-lhe esse ensejo e com isso o condenei aos tormentos eternos.
Um soluço rouco escapou-se-lhe da garganta - um som que semelhava o grito estrangulado, misterioso, de alguma ave nocturna no tenebroso silêncio da floresta.
- Os tormentos eternos! Quem pode imaginar tal sofrimento? Os réprobos estorcem-se num lago de fogo de onde se desprendem vapores deletérios que eles respiram cheios de angústia. Têm o corpo inçado de vermes. Uma fome e uma sede desesperadas torturam-nos. Chamuscados pelas chamas, os seus gritos formam um tumulto e uma confusão em face dos quais o ribombar do trovão e os bramidos do mar fustigado pela borrasca representam um silêncio mortal. Demónios de medonha aparência zombam e escarnecem deles, batem-lhes com um furor incansável, mais o remorso dilacerados com uma dor mais cruel do que as torturas desses hediondos diabos. O verme da consciência rói-lhes as entranhas. O fogo crucifica-lhes as almas, e comparado com ele o fogo aqui da terra é como o fogo que vemos num quadro, pois é a cólera do Senhor que o ateia e o alimenta, como instrumento terrível da Sua justa vingança por toda a eternidade.
"E a eternidade, como é terrível a eternidade! Tantos milhões de anos passam sobre os réprobos quantas são as gotas de água que têm caído sobre a terra desde o início dos tempos; tantos milhões de anos quantas são as gotas de água de todos os mares e rios do mundo; tantos milhões de anos quantas são as folhas de todas as árvores que existem e quantos são os grãos de areia de todas as praias do oceano; tantos milhões de anos quantas são as lágrimas que os homens têm derramado desde que Deus criou os nossos primeiros pais.
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volvido esse número incalculável de anos, a angústia dessas infelizes criaturas prosseguirá como se apenas houvesse começado, como se fosse ainda o primeiro dia; e a eternidade permanecerá inteira à sua frente, como se nem um segundo houvesse passado. E foi a essa eternidade de sofrimento que eu condenei aquele desgraçado. Que castigo pode reparar um mal tão grande? Oh! tenho medo, tenho medo..."
Estava desesperado. Profundos soluços sacudiam-lhe o peito. Encarava os dois frades com olhos escuros de" terror, e ao fixarem-se messes olhos notaram-lhes no fundo um clarão vermelho, como se visse reflectidas neles, de muito longe, as chamas rubras do Inferno.
- Mandem reunir os monges. Confessar-lhes-ei o meu pecado e, pela salvação da minha alma, ordenar-lhes-ei que me apliquem a disciplina circular.
Era um castigo degradante em que todos os presentes usavam o açoite contra o culpado. Padre António, aterrado, caiu de joelhos e, juntando as mãos como numa prece, implorou ao seu mestre que não insistisse em submeter-se a tão terrível provação.
- Nossos confrades não o vêem com bons olhos, meu senhor, estão furiosos porque Vossa Excelência não os deixou ir à igreja esta manhã. Não o pouparão. Vão açoitá-lo com toda a força. Muitos monges têm morrido sob as suas vergastadas.
- Não quero que me poupem. Se eu morrer, ter-se-á feito justiça. Ordeno-lhe, em nome do seu voto de obediência, que faça o que lhe digo.
O frade pôs-se em pé.
- Vossa Excelência não tem o direito de expor-se
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a tamanha afronta. É bispo de Segóvia. Vai lançar um labéu sobre todo o episcopado da Espanha. Vai diminuir a autoridade de todos aqueles que Deus escolheu para essa alta posição. Tem a certeza de que não há nenhuma ostentação nessa vergonha a que pretende expor-se?
Jamais ousara falar nesse tom peremptório ao seu pai em Deus. O bispo ficou surpreendido. Haveria realmente uma sombra de vanglória no seu desejo de humilhar-se assim em público? Deu um longo olhar ao frade.
- Não sei - disse afinal, lastimavelmente. - Sou como um homem que anda aos tropeções por uma terra desconhecida, nas trevas da noite. Talvez você tenha razão. Eu só pensava em mim, não pensei no efeito que isso produziria nos outros.
Padre António deu um suspiro de alívio.
- Vocês dois aplicar-me-ão a disciplina aqui, em particular.
- Não, não! Não faço isso. Sou incapaz de maltratar o seu sagrado corpo.
- É preciso então lembrar-lhe os seus votos? - perguntou o bispo com a sua velha severidade. - Você tem-me tão pouca estima que hesita em me infligir um castigo insignificante a bem da minha alma? Há açoites debaixo da cama.
Confrangido e em silêncio, o frade foi buscá-los. Estavam manchados de sangue. O bispo despiu a parte superior do hábito, que lhe caiu em volta da cintura. Tirou então a camisa: era feita de lata e perfurada como um ralador, para poder lacerar a carne. Padre António sabia que o bispo usava um cilício de crina - não sempre, pois isso faria com que se acostumasse a ele, mas apenas o número suficiente de vezes
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para que o tormento se renovasse constantemente. Susteve a respiração ao ver aquela horrível camisa de lata, mas ao mesmo tempo sentiu-se edificado. Aquele homem era na verdade um santo. Não deixaria de registar essa particularidade no seu livro. O dorso do bispo mostrava as cicatrizes dos açoites que ele aplicava a si mesmo pelo menos uma vez por semana, e havia chagas abertas que supuravam.
Abraçou-se à fina coluna que sustentava os dois arcos divisórios dos seus aposentos e ofereceu as costas aos dois frades. Cada um deles apanhou em silêncio um açoite e golpeou a carne sangrenta. A cada vergastada o bispo estremecia, mas nem um gemido lhe escapou dos lábios. Não lhe tinham dado mais de uma dúzia de açoites quando ele caiu desmaiado. Levantaram-no e carregaram-no para a cama dura. Jogaram-lhe água em cima, mas como o bispo não recobrasse os sentidos assustaram-se. Padre António disse ao seu colega que mandasse um irmão leigo ir depressa chamar um médico, pois o bispo estava doente, mas ao mesmo tempo recomendou-lhe que avisasse os monges que não deviam incomodá-lo em hipótese alguma. Banhou-lhe as costas laceradas e tomou-lhe ansiosamente o pulso, que vacilava. A princípio julgou que o bispo estivesse à morte. Mas afinal Don Blasco abriu os olhos. Foram precisos alguns instantes para que recobrasse o uso das suas faculdades. Forçou então um sorriso.
- Pobre criatura que eu sou! Desmaiei...
- Não fale, meu senhor. Fique tranquilo. Mas o bispo ergueu-se num dos cotovelos.
- Dê-me a minha camisa.
Padre António olhou com um arrepio para aquele instrumento de tortura.
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- Oh! meu senhor! Não poderia suportá-la agora.
- Dê-ma.
- O médico vem aí. Não lhe conviria ser visto por ele a usar um instrumento de suplício.
O bispo deixou-se cair novamente na dura enxerga.
- Dê-me a minha Cruz - pediu ele.
Afinal chegou o médico, que mandou o doente permanecer na cama e prometeu mandar um remédio. Era um sedativo e dentro em pouco o bispo adormecia.


XVI.

No dia seguinte insistiu em levantar-se. Disse a sua missa. Embora débil e abalado, estava calmo e mergulhou no trabalho como se nada houvesse acontecido.
Pela tarde um irmão leigo veio comunicar-lhe que seu mano Don Manuel estava na sala de visitas e desejava falar-lhe. Supondo que ele tivesse sido informado da sua doença, mandou dizer que lhe ficava agradecido pela visita, mas assuntos urgentes o impediam de recebê-lo. O irmão leigo voltou dizendo que Don Manuel recusava ir embora enquanto o bispo não o recebesse, pois tinha uma comunicação importante para lhe fazer. O bispo soltou um suspiro e disse ao irmão leigo que o mandasse entrar. Desde a chegada a Castel Rodríguez não lhe tinha falado senão nas ocasiões exigidas pela cortesia. Embora censurasse a si próprio a sua falta de caridade, não podia dominar a antipatia que lhe inspirava esse homem vaidoso, brutal e empedernido.
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Don Manuel entrou sumptuosamente trajado, pletórico, ressumbrando saúde e vitalidade agressiva. Caminhava com um ar arrogante. Tinha no rosto uma expressão satisfeita e o bispo julgou notar-lhe malícia e astúcia nos olhos brilhantes e ousados. Teve um sorriso frio ao correr os olhos pela cela nua e austera. O bispo indicou-lhe um tamborete.
- Não tens um assento mais cómodo para me oferecer, mano?
- Não.
- Disseram-me que estavas doente.
- Foi uma indisposição passageira e sem importância. Já voltei ao meu estado normal de saúde.
- Estimo.
Houve um silêncio. Don Manuel continuava a encará-lo com um sorriso levemente zombeteiro.
- Disseste que tinhas uma comunicação para me fazer - falou o bispo afinal.
- E tenho, mano. Parece que a cerimónia de ontem de manhã não correspondeu às tuas esperanças.
- Faze-me o favor de dizer a que vens, Manuel.
- Que te fez pensar que eras tu o instrumento escolhido para curar essa rapariga da sua enfermidade?
O bispo hesitou. O seu primeiro impulso foi não dar resposta, mas, mortificando-se diante daquele homem grosseiro e vulgar, respondeu.
- Garantiram-me que a rapariga tinha falado a verdade e, embora me julgasse indigno, senti-me na obrigação de fazer o que me era solicitado.
- Cometeste um erro, mano. Devias tê-la interrogado mais cuidadosamente. A Santíssima Virgem disse-lhe que o filho
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de Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la. Porque tiraste logo a conclusão de que a Virgem se referia a ti? Não achas que te faltou um pouco de humildade cristã?
O bispo empalideceu.
- Que queres dizer? - exclamou ele. - Segundo ela me informou, Nossa Senhora tinha-lhe dito que era eu.
- É uma rapariga tola e ignorante. Supôs que a pessoa designada fosses tu, porque és bispo e, não sei porquê, o povo desta cidade tem ouvido falar muito da tua santidade e das tuas mortificações.
O bispo fez uma breve oração mental para poder dominar a cólera e a vergonha que lhe causavam as palavras do irmão.
- Como sabes disso? Quem te disse que as palavras da Santíssima Virgem foram essas?
Dom Manuel espirrou uma risada. Aquilo parecia-lhe uma óptima pilhéria.
- Vim a saber que a rapariga tem um tio chamado Domingo. Nós conhecemo-lo em pequenos. Se bem me lembro, estiveste no seminário com ele.
O bispo inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
- Domingo Pérez é um borracho,. Costuma ir a uma taberna frequentada pelos meus criados e fez amizade com eles, sem dúvida esperando que lhe pagassem a bebida. A noite passada tomou um pifão. Como era natural, todos falavam dos acontecimentos da manhã, pois o teu fiasco, mano, é assunto de todas as conversas. Domingo disse-lhes que não esperava outra coisa e tinha procurado prevenir-te, mas não o quiseram receber no convento. Repetiu então exactamente
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as palavras que a Virgem tinha pronunciado, conforme lhe foram repetidas pela sobrinha.
O bispo estava confuso. Não sabia o que dizer. Don Manuel continuou a falar, já com uma expressão de franca zombaria no olhar. O bispo perguntava consigo, lastimosamente, que espécie de homem seria aquele, que podia encontrar um prazer tão cruel em humilhar assim o próprio irmão.
- Não te passou pela cabeça, mano, que ela pudesse referir-se a mim?
- A ti?
O bispo mal podia dar crédito aos seus ouvidos. Se fosse capaz de rir, teria rido nessa ocasião.
- Isso surpreende-te, mano? Durante vinte e quatro anos tenho servido o meu rei. Arrisquei a minha vida uma centena de vezes, bati-me em batalhas gloriosas e o meu corpo traz cicatrizes dos mais honrosos ferimentos. Tenho sofrido fome e sede, o frio rigoroso daqueles malditos Países Baixos e o tórrido calor do Verão. Tu queimaste algumas dúzias de hereges na fogueira enquanto eu, para glória do Senhor, matei milhares desses hereges. Para glória de Deus, assolei-lhes os campos e queimei-lhes as searas. Assediei cidades prósperas e, quando se renderam, passei a fio de espada todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças.
O bispo estremeceu.
- O Santo Ofício só condena os acusados de acordo com as normas do processo judicial. Dá-lhes o ensejo de arrependerem-se e expiarem os seus pecados. Tem o maior cuidado em fazer justiça e, se castiga os culpados, também absolve os inocentes.
- Eu conheço de mais esses holandeses para crer que sejam capazes de arrependimento. Eles têm a heresia no sangue.
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São traidores à sua fé e ao seu rei e merecem a morte. Ninguém que me conheça pode negar que eu tenha servido bem ao Senhor.
O bispo pôs-se a reflectir. A brutalidade e a vanglória do irmão enchiam-no de asco. Parecia incrível que Deus pudesse escolher semelhante instrumento para a Sua obra, e no entanto podia ser que Ele o tivesse feito justamente por ser Manuel quem era, a fim de cobri-lo de vergonha, a ele, Blasco de Valero, por causa do seu pecado que não fora perdoado. Nesse caso, cumpria-lhe baixar a cabeça e aceitar a humilhação.
- Deus sabe que eu tenho consciência da minha indignidade - disse ele por fim. - Se fizesses essa tentativa e fosses mal sucedido, causarias um escândalo na cidade e darias um cruel ensejo aos maldosos para escarnecerem. Suplico-te que não faças nada precipitadamente; é um assunto que exige cuidadosa reflexão.
- Já reflectimos bastante, mano - volveu tranquilamente Don Manuel. - Consultei os meus amigos, que são as pessoas mais importantes da cidade. Pedi a opinião do arcipreste e do prior deste convento. Todos eles estão de acordo comigo.
O bispo tornou a fazer uma pausa. Sabia existir na cidade muita gente que invejava as posições conquistadas por ele e pelo irmão, porque, embora fidalgo de nascença, eram uma família de pouca monta. Bem podia ser que tivessem consentido na absurda pretensão de Don Manuel a fim de lançar descrédito sobre ambos.
- Não deves esquecer a possibilidade de que essa rapariga tenha sido iludida.
- Isso é o que vamos ver. Se eu fracassar, ficará provado
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que a rapariga é uma feiticeira e deve ser entregue à Inquisição para que a) julguem e castiguem.
- Se obtiveste o consentimento das autoridades municipais e estás resolvido a fazer a tentativa, não tenho o poder de impedir-te. Mas peço-te que faças tudo com o maior sigilo possível, para impedir um escândalo ainda maior que o que já tivemos.
- Agradeço-te o conselho, mano. Dar-lhe-ei a atenção que ele merece.
Com estas palavras, Don Manuel retirou-se. O bispo deu um profundo suspiro. Parecia-lhe que a sua taça de amargura se tinha enchido até às bordas. Ajoelhou-se diante da Cruz negra pregada à parede e orou em silêncio. Depois chamou um irmão leigo e mandou que fosse buscar Domingo Pérez.
- Se não o achar em casa, hão-de encontrá-lo na taberna próxima ao palácio em que está hospedado meu irmão, Don Manuel. Peça-lhe que me faça o favor de vir cá sem demora.


XVII.

Pouco depois o irmão leigo introduzia Domingo no oratório do bispo. Os dois homens encararam-se silenciosamente durante algum tempo. Não se encontravam desde quando haviam estudado juntos no seminário de Alcalá de Henares, ainda jovens e pouco mais que meninos. Ambos estavam já idosos, emaciados e devastados pelos anos. Mas a um tinham devastado a austeridade, as longas vigílias, os jejuns e o trabalho
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constante, enquanto o outro fora gasto pela bebida e pela dissipação. Todavia), se alguma semelhança havia na sua aparência, nenhuma tinham na expressão: a do bispo era atribulada e ansiosa, ao passo que a do escrevinhador era despreocupada e bem-humorada. Como clérigo das ordens menores, vestia batina, e esta estava coçada, esverdeada pelo longo uso e coberta, na frente, de nódoas de vinho e de gordura. Ambos, porém, tinham um ar de ascetismo e distinção intelectual.
- Vossa Excelência exprimiu o desejo de falar comigo - disse Domingo.
Um débil mas terno sorriso esboçou-se nos lábios pálidos do bispo.
- Há muito tempo que não nos vemos, Domingo.
- Os nossos caminhos têm-se distanciado muito. Eu cuidava que Vossa Excelência houvesse esquecido há muito a existência de uma criatura tão mesquinha e indigna como Domingo Pérez.
- Nós conhecemo-nos durante toda a vida. Envergonho-me de me ver tratado por ti com tanta cerimónia. Há muitos anos que não ouço um amigo chamar-me Blasco.
Domingo dirigiu-lhe o seu sorriso encantador, que tinha o dom de desarmar.
- Os grandes não têm amigos, meu querido Blasco. Esse é o preço que eles têm de pagar pela sua grandeza.
- Esqueçamos por uma hora esta minha lamentável grandeza e conversemos como os velhos e íntimos camaradas que fomos. Estavas enganado ao pensar que eu te houvesse esquecido. Tivemos demasiadas coisas em comum para que isso fosse possível. Eu mantinha-me informado da tua existência.
- Ela não tem sido muito edificante.
O bispo sentou-se num mocho e fez sinal a Domingo para que tomasse o outro.
- Mais ainda, mantive-me em contacto contigo através das tuas cartas.
- Como pode ser isso?... Eu nunca te escrevi...
- Não da tua própria parte, mas quando éramos rapazes li tantas poesias tuas que fiquei conhecendo muito bem a tua letra. Julgas que eu não a reconhecia nas cartas que meu pai e meu irmão Martin me enviavam? Sabia perfeitamente que eles eram incapazes de expressar-se com tanta elegância e propriedade. Além disso, havia certos modos de dizer, certos torneios de frase e certas reflexões em que eu reconhecia logo o teu espírito travesso.
Domingo riu suavemente.
- Não são muito notáveis os dotes literários de Don Juan e de teu irmão Martin. Depois de dizerem que gozavam saúde, que esperavam que o mesmo se desse contigo e que a colheita tinha sido minguada, não lhes restava mais nada que dizer. Tanto a bem do meu crédito como deles, eu sentia-me na obrigação de avivar essas secas informações com os mexericos da cidade e as agudezas e gracejos irreverentes que me ocorressem no momento.
- Como é lamentável que tenhas malbaratado os teus grandes talentos, Domingo! As coisas que eu tinha de aprender à força de aplicação e diligência, tu adquiria-las como que por intuição. Muitas vezes eu aterrava-me diante da audácia do teu pensamento, dessa abundância de ideias inesperadas que pareciam fluir do teu cérebro com tão pouco esforço como a água que jorra de uma fonte, mas nunca duvidei da tua inteligência. Tu nasceste para brilhar e, se não fosse a tua índole
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irrequieta, serias hoje um luzido armamento da nossa Santa Madre Igreja.
- Ao invés disso - volveu Domingo - , não passo de um pobre letrado, um dramaturgo que não encontra actores para lhe representarem as peças, um literato de aluguel que escreve sermões para padres estúpidos e incapazes de fazê-lo por si, um beberrão sem préstimo. Faltava-me a vocação, meu bom Blasco. A vida fascinava-me. O meu lugar não era nem no claustro nem no lar, mas na estrada real com as suas aventuras e perigos, os seus encontros fortuitos e a sua múltipla variedade. Vivi. Curti fome e sede, criei chagas nos pés, levei bordoada, sofri todos os infortúnios que podem caber em sorte a um homem: em suma, vivi. E mesmo agora que a velhice vai tomando conta de mim, não lamento os anos que desperdicei, pois eu também dormi no Parnaso; e quando vou a uma aldeia distante escrever uma carta para algum lapuz analfabeto, ou quando estou sentado no meu quarto, rodeado pelos meus livros, rimando falas em dramas que jamais serão levados à cena, sinto tamanha exultação que não trocaria de lugar com um cardeal ou mesmo com um papa.
- Não receias a cólera futura do Senhor? O estipêndio do pecado é a morte.
- É o bispo de Segóvia que me faz esta pergunta, ou o meu velho e estimado amigo Blasco de Valero?
- Até hoje não traí nenhum amigo ou inimigo. Enquanto não disseres nada que seja ofensivo à Fé, podes dizer o que quiseres.
- Então será esta a minha resposta: Nós sabemos que os atributos de Deus são infinitos, e sempre achei estranho que ninguém lhe tenha jamais atribuído um pouco de senso comum.
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É difícil acreditar que Ele tivesse criado um mundo tão belo sem desejar que os homens se deleitassem nele. Teria Ele dado às estrelas o seu esplendor, aos pássaros o seu canto mavioso e às flores o seu perfume, se não devêssemos sentir prazer nessas coisas? Eu pequei perante os homens e os homens condenaram-me por isso. Deus fez-me homem, com as paixões de um homem, e ter-me-ia Ele dado essas paixões unicamente para que eu as reprimisse? Foi Ele que me deu este espírito aventuroso e este amor à vida. Espero humildemente que, quando eu me encontrar face a face com o meu Criador, Ele se condoa das minhas imperfeições e me olhe com clemência. O bispo parecia profundamente perturbado. Podia responder ao pobre poeta que nós fomos postos na Terra para desprezar os seus deleites, resistir à tentação, vencer a nós mesmos e carregar a nossa cruz - para que no fim, embora não passemos de miseráveis pecadores, possamos ser considerados dignos da comunhão dos santos. Mas de que serviriam as suas palavras? Nada podia fazer senão rezar para que, antes de vir buscá-lo a morte, a graça de Deus descesse sobre o infortunado homem e ele se arrependesse das suas más acções. Fez-se um silêncio entre ambos.
- Não te mandei chamar para fazer com que te corrigisses - disse o bispo por fim. - Não me seria difícil refutar as tuas opiniões erróneas, mas sei de longa data o quanto és engenhoso em fazer parecer plausíveis os piores argumentos, e conheço também o prazer que sentes em irritar os demais com sofismas. Quero crer que grande parte do que disseste foi dito apenas com o fim de te divertires à minha custa. Tens uma sobrinha.
- Tenho.
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- Qual é a tua opinião sobre essa história que alvoroçou toda a cidade?
- Ela é uma menina virtuosa e verídica. É boa católica, mas não exageradamente religiosa.
- Bem creio nisso, pois estou informado de que ela foi educada por ti.
- Também não é dada a devaneios ociosos. É até, como não podem deixar de ser os pobres, um tanto prosaica. Ninguém poderia acusá-la de possuir a inditosa faculdade da imaginação.
- Acreditas, então, que a Santíssima Virgem lhe tenha aparecido realmente?
- Estive em dúvida até ontem, quando ela me referiu os termos exactos que a Virgem havia empregado. Então convenci-me, e foi por isso que quis falar contigo. Percebi logo qual era a pessoa indicada e quis poupar-te uma intervenção inútil. Mas não me deixaram entrar.
O bispo suspirou.
- Uma das cruzes que temos de carregar, e não a menor delas, é que os nossos companheiros de labutas, na sua solicitude para connosco, impedem que cheguem até nós aqueles a quem seria proveitoso recebermos.
- O tempo não embotou a afeição que me ligava a ti na mocidade, pois, como vês, eu, um pecador, posso dar-me ao luxo de ceder aos cegos impulsos do coração. Queria poupar-te uma humilhação que não podia deixar de ser-te muito amarga. Logo que a rapariga me repetiu as palavras exactas da Virgem Santíssima, eu percebi quem era a pessoa designada para curá-la da sua enfermidade.
- Ela disse-me que Nossa Senhora me tinha designado.
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- Foi um engano natural numa menina que conhecia as tuas mortificações, a tua virtude e austeridade. A Santíssima Virgem disse-lhe que o poder de curá-la estava nas mãos daquele entre os filhos de teu pai que melhor tem servido a Deus.
- Só há pouco vim a saber disso.
- Não sabes então a quem a Virgem se referia? É claro como água da fonte.
O bispo empalideceu e lançou um olhar ansioso a Domingo.
- Meu mano Martin?
- O padeiro.
Gotas de suor cobraram a fronte do bispo. Estremeceu como se alguém lhe pisasse na sepultura.
- Isso é impossível. Ele é sem dúvida um homem de bem, mas completamemte mundano.
- Impossível, por quê? Porque ele não tem instrução? Um dos mistérios da nossa Fé é que o Senhor, que deu a razão ao homem, elevando-o desse modo acima dos brutos, nunca deu, ao que saibamos, grande valor à inteligência. Teu irmão é um homem bom e simples. Tem sido um marido fiel e um pai amoroso. Tem honrado pai e mãe, dando-lhes de comer quando tinham fome e cuidando deles quando estavam doentes. Aguentou submisso o desprezo do pai e a aflição da mãe porque ele, um fidalgo de nascença, adoptou um ofício que o rebaixava na estima dos tolos. Suportou com bom humor o desdém da nobreza e as zombarias do vulgo. Como nosso pai Adão, ganha o seu pão com o suor do seu rosto, sentindo um modesto desvanecimento em saber que o pão que faz é bom. Aceita com gratidão as alegrias da vida e com resignação
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os seus pêsames. Tem socorrido os necessitados. É um homem de trato ameno e sempre bem disposto. Mostra-se amigo de todos. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis e é bem possível que aos olhos divinos, pela sua vida diligente e honesta, a sua inocente alegria, Martim o padeiro O tenha servido melhor do que tu, que buscas a salvação nas orações e na penitência, ou teu irmão Manuel, que faz glória das mulheres e crianças que trucidou e das cidades prósperas que reduziu a desoladas ruínas.
O bispo passou a mão pesadamente pela testa. O seu rosto tinha uma expressão de angústia.
- Tu conheces-me de mais, Domingo - disse ele em voz trémula - , para julgar que eu me tenha abalançado a fazer aquilo sem um ansioso exame de consciência. Eu sabia ser indigno e a minha alma estava aterrada, mas tomei o sinal que me foi concedido por uma ordem de executar aquilo que eu acreditava ser a vontade do Senhor. Enganei-me. E agora meu irmão Manuel está resolvido a tentar aquilo em cuja realização falhei.
- Já em pequeno ele se fazia notar mais pela força corporal do que pelo vigor do entendimento.
- É tão teimoso quanto errado. Os notáveis da cidade estão a animá-lo na sua pretensão para poderem metê-lo à chacota depois. Conseguiu a aprovação do arcipreste e do prior deste convento.
- Deves impedi-lo a todo o custo.
- Não tenho autoridade para tanto.
- Se teu irmão se obstinar nessa loucura, quererá vingar-se da sua decepção naquela infeliz rapariga. O povo tomará o partido dele e não terá compaixão. Em nome da nossa velha
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amizade, suplico-te que a protejas contra a hostilidade e a cega violência do povo.
- Pela Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor, juro-te que darei a minha vida, se preciso for, para salvar a menina de todo o perigo.
Domingo pôs-se em pé.
- Agradeço-te de todo o coração. Adeus, meu caro. Os nossos caminhos são diferentes e não tornaremos a encontrar-nos. Adeus para sempre.
- Adeus. Oh! Domingo, sou um homem bem infeliz! Ora por mim, pede a Deus em todas as tuas orações que me conceda a graça de livrar-me do cruel fardo desta existência.
Estava tão perturbado e tinha uma expressão tão lastimosa que o velho beberrão se compadeceu dele. Levado por um impulso repentino, abraçou o bispo e beijou-o nas duas faces. O pecador estreitou o santo contra o peito e logo se retirou.


XVIII.

Nessa noite aconteceu um facto muito estranho. A lua cheia, prosseguindo na sua rota predeterminada, tinha um brilho tão deslumbrante que o céu límpido estava azul como o manto de veludo que cobria as vestes brancas da Virgem Maria. Os habitantes de Castel Rodríguez dormiam. De repente, todos os sinos da cidade se puseram a badalar com um clamor capaz de ressuscitar os mortos. Despertou os adormecidos e alguns precipitaram-se para as janelas, enquanto outros, semidespidos, apanhando as suas roupas à passagem, corriam para a rua.
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Esse badalar de sinos a uma hora tão insólita significava que o fogo havia irrompido nalguma parte da cidade e as tímidas donas de casa trataram de reunir os seus objectos de valor, pois quando se declarava um incêndio ninguém podia prever até onde se alastraria, e era de bom aviso pôr a salvo tudo quanto se podia antes que as chamas atingissem a casa. Tomados de pânico, alguns foram ao ponto de atirar as roupas de cama pelas janelas e outros começaram a carregar os móveis para fora, depositando-os diante das suas portas.
Os moradores escoavam-se para as ruas, que ficaram regurgitamtes. Levados por um impulso comum, aglomeraram-se na grande praça que constituía o orgulho do lugar. Cada qual perguntava ao seu vizinho onde era o incêndio. Os homens praguejavam e as mulheres torciam as mãos. Corriam de um lado para outro à procura das casas que ardiam. Erguiam os olhos para o céu, buscando o clarão denunciador que devia assinalar o lugar do sinistro. Não se avistava coisa nenhuma. As pessoas que desembocavam na praça, vindas dos diversos quarteirões da cidade, afirmavam que no seu bairro não havia incêndio. Não havia incêndio em parte alguma. Então, como se um vento houvesse soprado de súbito no meio deles, todos tiveram ao mesmo tempo a ideia de que alguns peraltas se estavam divertindo a bater os sinos para fazer o povo sair da cama e meter-lhe medo. Homens furiosos, decididos a moê-los com pancadas, arremessaram-se para as torres das igrejas. Aguardava-os ali um espectáculo pasmoso. As cordas dos sinos esticavam-se e distendiam-se sem que ninguém as puxasse. Contemplaram-nas por um momento, cheios de assombro; depois, carregando tochas e lanternas, subiram a correr as íngremes escadas das torres. Ao alcançarem os campanários,
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o clamor ensurdeceu-os. Os sinos sacudiam-se de um lado para outro muma furiosa oscilação e os badalos atroavam-lhes nos flancos de bronze. Não havia ninguém ali. Homem algum seria capaz de tirar tão violento estrépito daqueles pesados sinos. Dir-se-ia que estes haviam enlouquecido de repente. Tangiam sozinhos.
Anelantes, com o terror nos corações, despenhando-se pelas escadas como se levassem o Diabo nos calcanhares, correram para as ruas e, com palavras doidas e gestos desvairados, contaram o que tinham visto.
Tratava-se de um milagre. Era o Senhor que fazia tanger os sinos, e ninguém sabia se aquilo augurava bem ou mal à cidade. Muitos caíram de joelhos e oraram em altas vozes. Pecadores lembraram-se dos seus pecados e pensaram na cólera divina que os aguardava. Os curas mandaram abrir as portas das igrejas e a multidão invadiu-as, acompanhamdo os padres nas suas preces, em que se suplicava ao Altíssimo piedade para as suas criaturas. Só ao cabo de muito tempo recobraram o sossego e voltaram, silenciosos e mais calmos, para as suas casas.


XIX.

Ninguém sabia onde aquilo tinha começado, se a ideia ocorrera a uma pessoa de grande imaginação ou se fora concebida independentemente por muitas,. Era como a cólera; não se sabe se a trouxe para a cidade um forasteiro vindo de terras estranhas ou se foi um vento funesto que disseminou a doença. Um homem adoece aqui, acolá morre uma mulher, e quando
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despertamos para a consciência do perigo já a epidemia grassa por todas as ruas da cidade e os coveiros não podem cavar sepulturas com a necessária rapidez para enterrar todos os mortos. Ainda pela manhã, espalhara-se pela população de Castel Rodríguez a convicção de que a misteriosa ocorrência da noite anterior tinha uma relação qualquer com o aparecimento da Santa Virgem a Caitalina Pérez. Não se falava de outra coisa. Magistrados discutiam o assunto nas suas câmaras de conselho, sacerdotes nas suas sacristias e nobres nos seus palácios. O povo nas ruas, as donas de casa no mercado e os artífices nas suas oficinas falavam dele, cheios de perplexidade. Os monges nos seus mosteiros e as freiras nos seus conventos não podiam concentrar-se nas suas orações.
Dentro em pouco chegou-se à conclusão de que não podia haver dúvidas quanto à pessoa designada pelas palavras enigmáticas da Santíssima Virgem. Não eram poucos, sobretudo entre o clero secular, os que indagavam se Deus não estaria descontente com a excessiva austeridade do bispo e se um certo elemento de arrogância que havia na sua humildade não incorreria na verdade na reprovação divina. Mas em Dom Manuel de Valero não havia nódoa nem pecha de qualquer sorte. Ele tinha dedicado os melhores anos da sua vida ao serviço do Senhor e de el-Rei. Ao conferir-lhe assinaladas honrarias, Sua Majestade, vice-regente do Todo-Poderoso na terra, apusera o selo da sua aprovação ao valor e à virtude de Don Manuel. Tornara-se manifesto a todos, clérigos e leigos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, que Don Manuel era o homem escolhido para realizar o milagre que a vontade divina ordenara. Uma deputação de eclesiásticos eminentes, membros da aristocracia e pessoas de autoridade no
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conselho municipal, foi visitá-lo para lhe comunicar a sua aprovação unânime. Don Manuel, à sua maneira rude de soldado, respondeu-lhes que estava pronto para colocar-se à sua disposição. Ficou resolvido que a cerimónia se realizaria no da seguinte, na igreja da colegiada. Don Manuel pediu ao arcipreste que o recebesse em confissão naquela tarde e, como pretendia comungar pela manhã, o que só podia fazer em jejum, mandou suspender a ceia que ia oferecer aos seus amigos durante a noite. Era um homem consciencioso e estava decidido a não omitir nada que pudesse tornar a sua intervenção eficaz em ocasião tão solene. Três vezes armado está aquele que, absolvido dos seus pecados e livre de toda a culpa, deposita a sua confiança em Deus.
O prior do convento dominicano informou pessoalmente o bispo da resolução tomada, convidando-o ao mesmo tempo para chefiar os monges que iriam em procissão assistir à cerimónia. Don Blasco percebeu a malícia encoberta sob o oferecimento do prior mas aceitou gravemente, agradecendo-lhe a honra. Não sabia o que fazer. Não ligava importância ao que lhe tinha dito Domingo sobre o seu irmão Martin; conhecia demasiado o gosto de Domingo a quezilar o próximo e o prazer que tinha em defender ideias paradoxais; mas, com tudo isso, tinha a firme convicção de que Don Manuel não era o homem indicado para realizar um milagre. Fugiria de bom grado à obrigação de assistir à sua confusão, mas sabia que se recusasse ir isto seria atribuído ao despeito. Não ficava bem ao seu alto cargo dar aos espíritos maldosos um ensejo de pensar mal dele. Além disso, tinha ainda de cumprir a promessa que fizera a Domingo. Conhecia bem a insensatez e a brutalidade da multidão, quer a constituísse gente bem ou mal nascida,
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e era bem provável que, vendo-se decepcionados na sua esperança de um portento, tirassem vingança na infortunada moça. Achando-se presente, ele poderia salvá-la de tal vandalismo. No da seguinte, pois, com o coração opresso, acompanhado dos seus dois fiéis secretários, dirigiu-se do convento para a igreja à testa dos monges. A igreja achava-se repleta de gente até às portas e contudo o povo, ávido de ver um milagre realizar-se diante dos seus olhos, continuava a fazer força para entrar. Abriram passagem e o bispo, seguido pelos frades, adiantou-se vagarosamente pela nave. Sentou-se numa grande cadeira colocada ao lado e um pouco para a frente do altar-mor. O coro estava cheio de notabilidades locais. Momentos depois Don Manuel entrou com uma comitiva de cavalheiros e sentou-se numa cadeira reservada para ele no outro lado do altar. Vestia uma armadura de parada, o peitoral damasquinado de ouro, e envergava o grande manto da Ordem de Calatrava com a sua cruz verde. Os nobres;, no coro, tinham posto os seus trajes mais sumptuosos. Palestravam e riam, trocando acenos de cabeça e sorrisos entre si. Na nave, a multidão conversava alto e as pessoas chamavam-se umas às outras como se estivessem numa tourada. O bispo observava-os, indignado. Aquilo era um desacato à religião. Estava já disposto a levantar-se e vituperar-lhes aquela irreverente leviandade.
Ao pé dos degraus, apoiando-se na muleta, estava ajoelhada Cattalina.
Ouviram-se os primeiros acordes de um improviso ao órgão, e as floridas notas desceram a bailar jovialmente por sobre as cabeças da congregação. A igreja era de uma arquitectura vasta e simples, mas os sucessivos chefes da grande
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casa de Henríquez tinham-na adornado com um tecto de madeira pintada em estilo "plateresco", encaixando os retábulos em maciças molduras douradas e vestindo as imagens com mantos magnificentes. Os assentos do coro eram lavrados a primor. Nas capelas achavam-se os túmulos - os mais antigos de pedra, austeros e frios, os mais recentes de mármore ricamente esculpido - em que descansavam os restos mortais dos defuntos duques e das suas esposas. Uma luz fosca filtrava-se pelos vitrais e a atmosfera estava pesada de incenso.
Chegaram os sacerdotes, envergando os sumptuosos paramentos que eram usados em tais ocasiões e que tinham sido doados à igreja por damas nobres e devotas. O subdiácono segurava o cálice e a patena, envoltos no véu. A missa foi cantada. Um tremor respeitoso percorreu o vasto concurso de gente, que caiu de joelhos ao ouvir o tinido argentino da campainha que anunciava a elevação da Hóstia e do Cálice. O celebrante, que era o arcipreste, participou da Santa Comunhão e administrou-a sucessivamente a Don Manuel e a Catalina. Tinha chegado afinal o momento que a multidão aguardava com tamanha impaciência. Elevou-se dela um estranho som, que não era um som de vozes nem propriamente um ruído de movimentos ansiosos, mas parecia antes o suspirar do vento nos pinheirais, como se a expectativa da multidão se houvesse tornado audível.
Don Manuel pôs-se em pé e adiantou-se a passos largos para a jovem ajoelhada. Com a sua armadura, o grande manto da ordem a pender dos ombros, formava ele uma figura imponente e magnífica. A cena e a ocasião revestiam-no de uma dignidade desacostumada. Tinha confiança no seu poder. Pousou a mão na cabeça da jovem e, em voz alta, como se
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desse ordem de carregar ao seu regimento, de maneira que foi ouvido com clareza nos mais afastados recantos da igreja, repetiu as palavras que lhe tinham dado para pronunciar:
- Em nome de Deus Padre, Filho e Espírito Santo, ordeno a ti, Catalina Pérez, que te levantes, lances fora essa inútil muleta e caminhes.
A jovem assustada e como que enfeitiçada pela solenidade da ocasião, pôs-se em pé com dificuldade e largou a muleta. Deu um passo à frente e, com um grito de terror, caiu estendida no chão. O milagre falhara mais uma vez.
Levantou-se então uma grande algazarra e dir-se-ia que uma loucura súbita se apoderara da multidão. Homens bradavam, mulheres proferiam gritos agudos. Berravam de fúria.
- Bruxa! Bruxa! À fogueira! À fogueira! Queimem-na!
Arrastados por um impulso repentino, avançaram na direcção do santuário, dispostos a linchar a moça. No seu arrebatamento, arredavam-se uns aos outros do caminho. Alguns caíram e foram brutalmente espezinhados. Os gritos de desespero acresciam o tumulto geral.
O bispo pôs-se em pé de um salto e, com um rápido movimento circular, atravessou o santuário até fazer frente à multidão desvairada. Ergueu os braços acima da cabeça e os seus grandes olhos escuros chamejavam.
- Para trás! para trás! - gritou numa voz de trovão. - Quem sois vós para profanar este lugar? Para trás, digo-vos eu, para trás!
Tão terrificante era o seu aspecto que uma exclamação de horror partiu de todas as gargantas. A multidão estacou de súbito, como se um grande abismo se tivesse aberto diante
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dela. Recuaram. Por um momento o bispo considerou-os com os olhos negros de indignação.
- Vergonha! Vergonha! - gritou ele e, cerrando os punhos, atirou os braços para a frente como se quisesse fulminá-los com o raio da sua cólera. - Ajoelhai, ajoelhai e pedi que vos seja perdoado o insulto que fizestes à casa do Senhor.
A estas palavras, dominados pela força da sua autoridade, muitos caíram de joelhos a soluçar. Outros, como se o atordoamento os paralisasse, ficaram imóveis a contemplar boquiabertos aquela terrível figura. Lentamente, o bispo correu os olhos de um lado para o outro até abranger toda a vasta multidão, e cada um teve a impressão de que esses olhos irados se fixaram particularmente nele. Fez-se silêncio, só cortado pelos soluços histéricos de uma mulher aqui e além.
- Escutai - disse finalmente o bispo. - Escutai o que eu digo. - A sua voz não era já ameaçadora, mas grave, severa e autoritária. - Ouvi. Conheceis as palavras que Nossa Senhora dirigiu a Catalina Pérez e conheceis também os portentos que ocorreram nesta cidade, provocando a confusão e a inquietude nos vossos espíritos. A Santíssima Virgem disse a esta menina que o filho de Dom Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la da sua enfermidade. No nosso condenável orgulho e vaidade, eu que vos falo e meu irmão Don Manuel tivemos a temeridade de julgar que um de nós era a pessoa designada. Fomos amargamente punidos pela nossa presunção. Mas Don Juan de Valero ainda tem outro filho.
A multidão interrompeu-o com risos e vozearia.
- "El panadero"! - gritavam.
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Puseram-se a cantar em tom escarninho, dentro de uma espécie de cadência rude:
- "El panadero, el panadero..."
- Silêncio! - gritou o bispo.
As pessoas da multidão fizeram calar umas às outras.
- Ride! Qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso dos tolos. Que exige Deus de vós senão que sejais justos, ameis a clemência e andeis humildemente nos caminhos do Senhor? Hipócritas e blasfemadores! Impuros! Vergonha, vergonha, vergonha!
Repetiu esta palavra com um tom de desdém cada vez mais pungente, e os que o ouviam recuaram como recuaria um homem a cuja face fosse atirado um copo de água gelada. Era terrível de ver-se a cólera do prelado. Percorreu a multidão com um olhar de causticamte desprezo.
- Estão presentes os familiares do Santo Ofício?
Um som estranho, semelhante a um suspiro de susto, percorreu a multidão, como se todos ao mesmo tempo houvessem sustido o fôlego, pois esses instrumentos da Inquisição provocavam o terror no seio do povo. Ignoravam o significado dessas palavras sinistras e cada qual se pôs a tremer como varas verdes. Vários homens aprumaram-se atrás do Bispo.
- Que se apresentem - disse este.
Como os familiares do Santo Ofício dispunham de poder, influência e sobretudo isenção dos seus terríveis inquéritos, era um cargo muito procurado por homens da mais alta categoria. Havia oito em Castel Rodríguez. Fez-se um silêncio momentâneo,
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enquanto eles se erguiam dos seus assentos e tomavam posição atrás do bispo. Este aguardou até sentir, pelo silenciar dos pés, que todos eles se achavam por trás de si.
- Escutai - disse novamente. O indicador da sua mão estendida parecia acusar cada uma das apavoradas criaturas. - O Santo Ofício nunca procede às pressas nem impelido pela cólera. Faz justiça aos culpados, mas é clemente com o pecador arrependido.
Fez uma pausa, e o silêncio foi medonho.
- Não é a vós, raça de víboras, que compete lançar a mão a esta infeliz menina. Se ela foi iludida ou está possuída de um demónio, é ao Santo Ofício que cumpre tomar conhecimento do facto. Se ela se sair mal na prova, os familiares estão aqui para entregá-la ao tribunal. Mas a prova não se completou ainda. Onde está Martim de Valero?
- Aqui, aqui! - gritaram várias vozes.
- Que ele se apresente.
- Não, não, não!
Era a voz de Martin, o padeiro, que protestava.
- Se ele não vier por sua livre vontade, tragam-no à força - disse rispidamente o bispo.
Houve um arrastar de pés enquanto Martin forcejava com os homens que procuravam arrastá-lo aos puxões e repelões, mas volvidos alguns instantes a multidão abriu alas e ele foi trazido até aos degraus do altar. Os homens voltaram aos seus lugares e deixaram-no consigo mesmo. Viera da oficina ver o milagre de que todos falavam, e estava com a sua roupa de trabalho. Tinha o rosto vermelho do calor dos fornos e pelo vão esforço de escapar às rudes mãos que o arrastavam. O da estava quente e gotas de suor brotavam-lhe da testa. O seu rosto gorducho e bem-humorado estava pesado de consternação.
- Vem - disse o bispo.
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Como que impelido por uma força a que não pudesse resistir, o padeiro subiu os degraus do santuário.
- Mano, mano, a que me queres obrigar? - exclamou ele. - Como poderei eu fazer aquilo que tu não pudeste? Não sou mais do que um homem de trabalho e não sou melhor cristão do que o meu próximo.
- Silêncio!
O bispo não cria em absoluto que o padeiro fosse capaz de realizar um milagre e só pensara nele sob a inspiração do momento, como único meio de salvar Catalina da fúria do populacho. Desejava uma pequena trégua que lhe permitisse apaziguá-los. Sabia que a menina já não correria perigo. Ali estavam os familiares para protegê-la e, como não houvesse cárcere da Inquisição na cidade, conduzi-la-iam para um convento a uma ordem sua e sobraria então tempo para reflectir sobre o que cumpria fazer em seguida. O bispo dirigiu-se mais uma vez ao povo reverente:
- Porventura não "tem o oleiro poder sobre a argila, poder de fazer com o mesmo bloco um vaso de honra e outro de desonra? Deus não faz acepção de pessoas. Aquele que se humilha será exaltado e os soberbos serão humilhados. Tragam a menina.
Catalina jazia no mesmo lugar em que tombara, com o rosto oculto nos braços e o pequeno corpo sacudido de soluços. Ninguém lhe prestava mais atenção do que se ela fosse um cão morto à beira da estrada. Dois familiares puseram-na em pé e colocaram-na em face do bispo. Com a muleta debaixo do braço, ela juntou como melhor pôde as mãos num gesto de súplica. As lágrimas corriam-lhe pdas faces.
- Oh! senhor bispo, senhor bispo, tenha compaixão de
mim! Não tente de novo, suplico-lhe, tudo é inútil! Deixe-me voltar para junto de minha mãe!
- Ajoelha-te - ordenou ele. - Ajoelha-te.
Com um soluço desesperado, a criança deixou-se cair de joelhos.
- Pousa-lhe a mão na cabeça - disse o bispo ao irmão.
- Não posso... Não o farei... Tenho medo!
- Sob pena de excomunhão, ordeno-te que faças o que te digo - tornou o bispo asperamente.
O infeliz foi tomado de um tremor, pois sabia que o irmão não hesitaria em pôr em efeito a sua pavorosa ameaça. Pousou timidamente a mão trémula na cabeça da jovem. Essa mão nem sequer estava limpa.
- Dize agora as palavras que ouviste a teu irmão Manuel pronunciar.
- Não me lembro delas...
- Vou dizê-las, então, e tu as repetirás: "Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero"...
Martin repetiu:
- Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero...
O bispo pronunciou as últimas palavras fatídicas em voz forte e sonora, mas o irmão repetiu-as num tom apenas perceptível. Catallina pôs-se em pé como lhe ordenavam e, com um gesto desesperado, atirou para longe a muleta. Por um instante vacilou, mas não caiu. Ficou em pé. Então, deixando escapar um grito e um soluço, olvidada do lugar e da ocasião, virou-se e desceu a correr os degraus do santuário.
- Mãe, mãe!
Maria Pérez, que estava com Domingo na igreja, delirante de alegria, abriu caminho por entre a multidão e correu ao
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encontro dela. Catalina atirou-se-lhe aos braços e desatou a chorar.
Por um instante a densa multidão ficou tão aturdida que não pôde mover-se. Contemplavam a cena boquiabertos. Formou-se então tal algazarra como jamais se ouviu outra igual.
- Milagre! Milagre!
Gritavam, batiam palmas, mulheres acenavam com os lenços. Os homens gritavam "olé, olé", como faziam nas touradas, quando um dos toureiros executava um passe perigoso; atiravam os chapéus para cima como costumavam atirá-los aos pés do matador de espada quando, seguido da sua "quadrilha", ele dava volta à arena para receber os aplausos do público. Acima do tumulto elevava-se a voz estridente de alguma mulher a entoar aqui e ali, ao compasso de uma estranha melodia semimourisca, um hino à Virgem Santíssima. Dir-se-ia que a balbúrdia não terminaria mais. Desconhecidos abraçavam-se. Homens e mulheres choravam de alegria. Tinham visto um milagre com os seus próprios olhos.
De repente fez-se um silêncio no meio daquela doida confusão e todos os olhos se voltaram para o bispo. Martin, o tímido, mal atinando com o que havia sucedido, recuara modestamente para o fundo e o dominicano ficara sozinho no alto dos degraus do santuário, com as costas viradas para o altar-mor. Emaciado, mas alto e erecto, envolto no seu hábito remendado e puído, formava uma figura imponente. O maravilhoso, porém, é que ele estava banhado em luz. Não era uma simples auréola a cercar-lhe a cabeça, mas um resplendor que parecia vesti-lo da cabeça aos pés.
- Um santo! Um santo! - clamou o povo, com os olhos cravados no estranho e sensacional espectáculo. - Bendita seja
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aquela que te pôs no mundo! - gritavam. - Agora permites que o Teu servo se retire em paz. Oh, ditoso, ditoso dia!
Falavam às tontas, sem saber o que diziam. Estavam desvairados de alegria, amor e medo. Somente Domingo notou que um dos vitrais tinha um caixilho quebrado e, por uma feliz coincidência, um raio de sol passava pela abertura, incidindo no bispo e banhando-o em glória.
O bispo alçou a mão exigindo silêncio e imediatamente a grande algazarra cessou. Ficou um instante a contemplar, com uma expressão triste e severa, aquele mar de rostos que tinha diante de si. Depois, levantando a cabeça, os trágicos olhos cheios de arrebatamento, como se com os olhos do espírito avistasse as hostes celestiais, começou a recitar o Credo de Niceia em voz lenta e solene. As palavras eram familiares a todos os presentes, que as ouviam todos os domingos na missa; e, num zumbido abafado que se assemelhava a um longínquo arrastar de pés, puseram-se a repetir os artigos de fé um após outro. O bispo terminou a recitação do Credo, virou-se e caminhou para o altar-mor. O halo de luz desaparecera. Levantando os olhos para o vitral, Domingo viu que o sol tinha continuado a sua inexorável viagem através do céu e já nenhum raio de luz penetrava pelo vidro quebrado. O bispo prosternou-se diante do altar e deu graças ao Senhor numa oração muda. O seu torturado coração fora aliviado de um grande peso, pois compreendera, sem sombra de dúvida, que, embora tivesse sido Martin quem pousara a mão na cabeça da jovem paralítica, seu irmão não tinha passado de um instrumento de que aprouvera a Deus lançar mão a fim de que ele, Blasco de Valero, obrasse um milagre para Sua eterna glória. Era ademais um sinal, seguro e indubitável, de que o Senhor lhe perdoava
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o grave pecado que cometera ao permitir, num momento de fraqueza, que o grego fosse garroteado antes de o queimarem. Deus, que vê todas as coisas passadas, presentes e futuras, conhecia o duro coração do descrente e por ísho o tinha condenado à morte eterna. Estava bem lamentar os réprobos nos seus tormentos, mas mostrar-se descontente era impugnar a justiça divina.
O bispo pôs-se em pé e retirou-se lentamente do santuário. Caminhava como que em sonho. Os dois religiosos, seus amigos e secretários, perceberam-lhe a intenção e seguiram-no. Vendo isso, o prior fez um sinal aos seus frades para que o seguissem também e pôs-se a caminhar atrás deles. O bispo deteve-se ao alcançar os degraus.
- Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Padre e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Desceu. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e aos religiosos que o acompanhavam. Os frades entoaram o "Te Deum Laudamus". As vozes fortes e profundas ecoaram por toda a igreja. Como que transportado em êxtase, o bispo passou por entre a multidão ajoelhada, dando a sua bênção ao povo enquanto se dirigia para a saída. Não notou o olhar irónico de Domingo.
Nesse momento os sinos começaram a soar no campanário, e dentro em pouco todos os sinos da cidade badalavam. Não havia nisso, porém, nenhuma intervenção sobrenatural. Don Manuel, como o bom soldado que era, tinha atendido a todos os pormenores e tomara disposições para que, ao serem tangidos os sinos da colegiada em celebração do milagre que
ele estava certo de realizar, todos os sinos das demais igrejas se pusessem a bater também.
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As enormes portas abriram-se de par em par à aproximação do bispo e este saiu para o sol deslumbrante do dia de Agosto. A multidão lançou-se em pós dele e seguiu a procissão de frades até estes chegarem ao convento. Ia o bispo entrar quando uma grande gritaria se levantou da turba. Queriam que ele falasse. Junto à parede do convento havia um púlpito, usado quando a cidade era visitada por algum pregador tão famoso que a igreja do convento não podia comportar a vasta congregação desejosa de ouvi-lo. O prior adiantou-se, transmitindo ao bispo o desejo do povo, rogou-lhe que acedesse. Don Blasco correu os olhos em volta de si, como se ignorasse onde estava. Dir-se-ia que até então não se apercebera das devotas e ansiosas criaturas que lhe seguiam os passos. Deteve-se um instante para reunir as ideias e, sem uma palavra, subiu ao púlpito.
Tinha uma voz magnífica, de tom rico, com uma infinita variedade de inflexão. Começou a falar.
- Ninguém pode sondar as profundezas do coração humano, nem perceber as coisas que ele pensa: como encontrar então a Deus, que criou todas essas coisas-, e conhecer-Lhe o pensamento ou compreender os Seus desígnios?
Os gestos do bispo eram vigorosos e expressivos. A sua voz alcançava os últimos confins da cerrada multidão, e quando ele a baixava num tom compassivo, tal era a beleza da sua dicção que nenhuma das suas palavras deixava de ser ouvida. Quando, numa investida apaixonada contra os pecados humanos, ele a erguia, em todo o seu esplendor, era como o trovão a rolar nas desoladas serras. Fazia de súbito uma pausa,
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e o silêncio no meio daquela torrente de eloquência semelhava o estridor do Juízo Final. O povo encolheu-se confrangido quando ele lhes lembrou a brevidade da existência, os acidentes que perseguem os filhos de Adão desde o berço até à sepultura, a transitoriedade dos seus prazeres, a angústia dos seus sofrimentos; tremeram quando ele lhes pintou os horrores do Inferno e as intermináveis torturas dos réprobos; e choraram quando, com a voz apagada de ternura, ele descreveu com inflexões extáticas a comunhão dos santos e as eternas alegrias do Paraíso. Muitos arrependeram-se dos seus pecados e regeneraram-se desse dia em diante. O bispo terminou por uma grande peroração em louvor da Santíssima Virgem e para glória do Senhor. Jamais tinha falado com mais ardente e patética eloquência.
Quando o conduziram à sua cela, estava tão alquebrado que se deixou deitar na cama dura pelos seus dois fiéis assistentes. Sentia-se devastado pela emoção e pela fadiga.

XX.

Nessa noite houve grande regozijo na cidade. Os taberneiros não tinham mãos a medir. A multidão passeava em redor da praça, palrando sobre o portentoso acontecimento daquele dia. Ninguém duvidava de que tivesse sido o santo bispo o realizador do milagre e todos admiravam a sua modéstia em usar o irmão padeiro como instrumento do seu poder. Ensinara-lhes, assim, que na verdade os humildes devem ser exaltados e os soberbos devem ser humilhados. Muitos
afirmavam tê-lo visto elevar-se no ar - a dois pés do chão, segundo alguns, a quatro, segundo outros - e permanecer suspenso dessa forma, rodeado de glória.


C O N T I N U A

Catalina - o cenário desta história é a Espanha do reinado de Filipe III, a trágica Espanha da Inquisição.
Catalina, jovem de dezasseis anos, aleijada de uma perna, está orando ardentemente pela sua cura quando lhe aparece a Virgem Maria.
Qual dos três filhos de Valero melhor servia a Deus? Em páginas repletas de emoção, o leitor verá quem, afinal, realiza o milagre, assim como assistirá a todo o restante e apaixonante entrecho deste romance cheio de contrastes humanos.

 


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I.

Era um grande dia para a cidade de Castel Rodríguez. Já ao amanhecer os habitantes estavam de pé, com as suas melhores roupas. Nos balcões dos velhos e severos palácios dos nobres ostemtavam-se ricos estofos e os galhardetes batiam indolentemente de encontro às hastes. Era a festa da Assunção, dia 15 de Agosro, e o sol escaldava num céu sem nuvens. Sentia-se um alvoroço no ar, pois nesse dia, após muitos anos de ausência,, chegavam duas pessoas eminemtes, naturais da cidade, e grandes festividades tinham sido preparadas em sua honra. Uma delas era Frei Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, e a outra seu irmão Don Manuel, capitão de nomeada nas forças d'El-Rei. Haverá um "Te Deum" na colegiada, banquete na municipalidade, touradas e fogo preso quando anoitecesse. À medida que se adiantava a manhã, um número cada vez maior de pessoas tomava o caminho da Plaza Mayor. Formou-se ali o cortejo que ia esperar os ilustres viajantes a certa distância da cidade. Encabeçavam-no as autoridades civis, vindo
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depois os dignitários da Igreja e, por fim, uma série de pessoas gradas. A multidão abriu alas nas ruas para vê-los passar,, depois colocou-se em ordem para esperar a emtrada dos dois irmãos na cidade, seguidos desses importamtes personagens, no momento em que os sinos de todas as igrejas se punham a repicar em sinal de boas-vindas.
Na capela da Virgem da igreja anexa ao convento das freiras carmelitas, uma jovem aleijada estava a rezar. Fazia-o com devoção apaixonada, diante da imagem da Santíssima Virgem. Ao erguer-se, afinal, ajeitou melhor a muleta debaixo do braço e saiu da igreja. Lá dentro estava fresco e escuro, e aquela claridade súbita do dia quente e abafado ofuscou-a por um momento. Deteve-se a olhar a praça vazia, em baixo. As casas tinham os postigos fechados para não deixar entrar o calor. Reinava ali um grande silêncio. Todos tinham ido ver os festejos e não ficara um cão sem dono para latir. Dir-se-ia uma cidade morta. A jovem olhou para a sua própria casa, um pequeno prédio de dois andares comprimido entre os seus vizinhos, e suspirou desalentada. A sua mãe e seu tío Domingo, que vivia com elas, tinham ido com os demais e só voltavam depois das touradas. Sentia-se muito só e muito infeliz. Como não tivesse ânimo de ir para casa, sentou-se no último degrau da escadaria que descia da porta da igreja à praça e largou a muleta no chão. Pôs-se a chorar. De repente, assoberbada pela mágoa, prostrou-se no patamar de pedra e, mergulhando o rosto nos braços, soluçou como se o seu coração estivesse a ponto de despedaçar-se. O seu movimento brusco dera um impulso à muleta, que caiu com ruído pelos degraus estreitos e íngremes, até em baixo. Era o cúmulo do infortúnio: teria que descer de rastos ou deixar-se escorregar pela escada a fim de ir buscá-la, já que a sua perna paralítica não lhe permitia caminhar sem a muleta. Chorou desconsoladamemte.
De súbito ouviu uma voz.
- Porque choras, minha filha?
Virou-se surpreendida, pois não ouvira ninguém aproximar-se. Viu uma mulher em pé atrás de si. Parecia ter saído da igreja, mas ela própria o fizera naquele momento e lá dento não estava ninguém. A mulher vestia um longo mamto azul, que lhe ia até aos pés, e enquanto Catalina a olhava, afastou o capuz que lhe cobria a cabeça. Devia ter saído da igreja, com efeito, pois para as mulheres era um pecado entrar na casa do Senhor com a cabeça descobertta. Era bastante alta para uma espanhola e moça, tendo a pele do rosto suave e macia, sem rugas por baixo dos olhos escuros. Usava um penteado muito simples, com o cabelo repartido no meio e apanhado num coque frouxo sobre a nuca. Possuía feições pequenas, delicadas, e um olhar bondoso. A jovem paralítica não saberia dizer se se tratava de uma camponesa - esposa, talvez, de algum chacareiro das imediações - ou de uma dama. Tinha certa singeleza de aspecto, e ao mesmo tempo uma dignidade um tanto intimidativa. O comprido manto escondia-lhe as roupas, mas quando ela tirou o capuz a rapariga vislumbrou qualquer coisa branca e deduziu que tal devia ser a cor do seu vestido.
- Enxuga as lágrimas, minha filha, e dize-me o teu nome.
- Catalina.
- Por que vens sentar-te aqui sozinha, a chorar, quando toda a gente foi ver a recepção do bispo e de seu mano, o capitão?
- Sou aleijada e não posso ir longe, senhora. Além disso, que iria fazer no meio de toda essa gente sã e feliz?
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A desconhecida estava atrás de Catalina e esta tivera de virar-se para lhe falar. Relanceou os olhos para a porta da igreja.
- De onde veio, Senhora? Não a vi na igreja.
A desconhecida sorriu. Era um sorriso tão meigo que todo o amargor pareceu dissipar-se no coração da rapariga.
- Pois eu vi-te, minha filha:. Estavas a rezar.
- Estava pedindo à Virgem que me curasse, como venho fazendo noite, e dia desde que fiquei inválida.
- E pensas que ela tem o poder de fazê-lo?
- Se ela quiser...
A senhora tinha uns modos tão doces e tão afectuosos que Catalina sentiu-se impelida a contarnlhe a sua triste história. Aquilo sucedera quando estavam trazendo os novilhos para as touradas da Páscoa e toda a população da cidade se reunira para vê-los chegar, sob a orientação segura dos dois padrinhos. À frente ia um grupo de jovens fidalgos, cujos cavalos curveteavam. De repente, um dos animais escapou-se e enveredou por uma viela. Formou-se um pânico e a multidão espalhou-se para todos os lados. Um homem foi atropelado pelo touro-, que tornou a investir para a frente. Catalina, que corria tão depressa quanto podia, escorregou e caiu no momento em que o amimal ia alcançá-la. Soltou um grito e perdeu os sentidos. Ao voltar a si, disseram-lhe que o touro a tinha pisado na sua doida arremetida, mas continuara a correr impetuosamente. Ela sofrera contusões mas não fora ferida. Disseram-lhe que havia de sarar em pouco tempo, mas um ou dois dias depois, Catalina queixou-se de não poder mexer a perna. Os médicos examinaram o membro e encontraram-no paralisado. Picaram-no com agulhas: Catalina não sentia nada. Sangraram-na, purgaram-na e deram-lhe poções nauseabundas para tomar, mas tudo foi inútil. A perna estava como morta.
- Mas ainda tens o uso das mãos - disse a senhora...
- Graças a Deus, pois se não fosse isso nós morríamos de fome. A senhora perguntou-me porque estava eu a chorar. Eu choro porque, com o uso da perna, perdi também a afeição do meu amado.
- Ele não te podia ter grande amor, se te abandonou na tua desgraça.
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- Amava-me de todo o coração, e eu amo-o mais do que à minha própria alma. Mas nós somos pobres, senhora. Ele é Diego Martínez, o filho do alfaiate, e segue a profissão do pai. Íamos casar quando ele tivesse terminado o aprendizado, mas um homem pobre não pode dar-se ao luxo de desposar uma mulher incapaz de fazer frente às outras mulheres no mercado ou de subir e descer as escadas para dar conta dos trabalhos caseiros. Depois, os homens são sempre homens. Um homem não pode querer uma mulher aleijada. Pedro Álvarez ofereceu-lhe a sua filha Francisca. É feia como o pecado, mas Pedro Álvarez é rico, e assim como poderia ele recusar?
Catalina pôs-se de novo a chorar. A dama considerou-a com um sorriso de compaixão. De repente, ouviu-se ao longe um rufar de tambores e um clangor de trombetas e todos os sinos se puseram a badalar simultaneamente.
- Entraram na cidade: o bispo e seu irmão, o capitão - disse Catalina. - Como se explica, que esteja aqui em lugar de ir vê-los passar, senhora?
- Não me deu vontade de ir.
Isto pareceu tão esquisito a Catalina que lançou um olhar desconfiado à desconhecida.
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- Não mora na cidade, senhora?
- Não.
- Estranhei não a ter visto antes. Creio que não há aqui ninguém a quem eu não conheça:, pelo menos de vista.
A dama não respondeu. Catalina ficou intrigada e olhou-a com mais atenção por baixo dos cílios. Não era crível que fosse moura, pois não tinha a pele bastante escura para isso, mas era bem possível que pertencesse aos cristãos-novos, isto é, a esses judeus que tinham preferido o baptismo à expulsão do país. Mas, como todos sabiam, continuavam a observar em segredo os ritos judaicos, lavando as mãos antes e depois das refeições, jejuando no Dia da Expiação e comendo carne às sextas-feiras. A Inquisição não dormia e, quer se tratasse de mouros baptizados ou de judeus conversos, era perigoso ter quaisquer relações com eles. Havia sempre o risco de caírem nas mãos do Santo Ofício e, submetidos à tortura, incriminarem inocentes. catalina perguntou consigo, ansiosa, se não teria dito alguma coisa que pudesse motivar uma acusação, pois na Espanha daqueles tempos toda a gente vivia no terror do Santo Ofício e uma palavra impensada, um gracejo, podiam constituir motivo suficiente para a prisão, e uma vez no cárcere passavam-se semanas, meses e até anos antes que se conseguisse provar a sua inocência. Catalina achou bom afastar-se dali o quanto antes.
- São horas de ir para casa, senhora - disse ela; e, com a polidez que lhe era natural, acrescentou: - Assim, se me permite, vou deixá-la.
Relanceou os olhos para a muleta, que caíra lá em baixo. Teria a coragem de pedir à senhora que a fosse buscar? Mas esta não prestou atenção no que ela dissera.
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- Não gostaria de recobrar o uso das suas pernas, minha filha,, para poder andar e correr como se nunca houvesse estado doente? - perguntou ela.
Catalina ficou branca. Essa pergunta deixava patente a verdade. A desconhecida não era cristã-nova e sim uma moura, pois ninguém ignorava que os mouros, cristãos apenas no nome, tinham pacto com o demónio e por meio das artes mágicas podiam obrar toda a sorte de malefícios. Não fazia muito que uma pestilência assolara a cidade, e os mouros, acusados de serem os seus causamtes, confessaram-se culpados no cavalete e acabaram morrendo na fogueira. Catalina sentiu tamanho terror que ficou impossibilitada por um momento de falar.
- Então, minha filha?
- Eu daria tudo que tenho no mundo - e não é nada - para me ver livre da minha enfermidade, mas ainda que fosse para recuperar o amor do meu Diego não faria nada que pusesse em perigo a minha alma Imortal ou que constituísse uma ofensa à Santa Madre Igreja.
E, enquanto falava, persignou-se sem tirar os olhos da desconhecida.
- Então eu te direi como podes curar-te. O filho de Juan Suárez de Vataro que melhor tem servido a Deus tem o poder de fazê-lo. Ele te imporá as mãos em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, mandar-te-á atirar fora a muleta e andar. E tu atirarás fora a muleta e andarás.
Não era isto, em absoluto, o que Catalina esperava. O que a senhora dizia era surpreendente, mas falava com tanta calma e segurança que a moça ficou impressionada. Duvidando e esperando ao mesmo tempo, encarava fixamente a misteriosa desconhecida. Necessitava de um momento para tornar a si
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do seu espanto, antes de fazer as perguntas que já iam tomando forma no seu espírito. Mas de súbito os olhos de Catalina quase lhe saltaram das órbitas e a sua boca escancarou-se de assombro, pois no lugar onde estava a senhora já não se via mais nada. Não podia ter entrado na igreja, porquanto Catalina não tirara os olhos dela., nem podia ter-se movido: desvanecera-se no ar, simplesmente. A jovem soltou um grande grito e novas lágrimas, mais lágrimas de outra espécie, correram-lhe em torrente pelas faces.
- Era a Santíssima Virgem! - gritou. - Era a Rainha dos Céus, e eu falei-lhe como teria falado a minha mãe. Era Maria Santíssima, e eu tomei-a por uma moura ou uma judia conversa!
Tal era a sua emoção que sentiu a necessidade urgente de contar aquilo a alguém. Sem reflectir, deixou-se escorregar sobre as costas pela escada abaixo, ajudando-se com as mãos, até alcançar a muleta. Voltou então para casa, mas somente ao chegar à porta se lembrou de que ninguém estava lá. Apesar disso entrou e, como sentisse fome, arranjou um pedaço de pão e algumas azeitonas e tomou um copo de vinho. Este deu-lhe sono, mas continuou sentada, resolvida a não dormir enquanto não chegassem sua mãe e seu tio Domingo. Mal podia esperar para lhes contar a sua história maravilhosa. Foram-se-lhe, porém, cerrando as pálpebras e dentro em pouco dormia profundamente.

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II.

Era Catalina uma linda moça. Tinha dezasseis anos, era alta para a sua idade, já com o busto bem desenvolvido, mãos e pés pequeninos, e antes do acidente caminhava com uma graça sinuosa que encantava todos quantos a olhavam. Tinha olhos grandes e escuros em que brilhava o ardor da mocidade, cabelos pretos que se encrespavam naturalmente e tão compridos que podia sentar-se neles, pele morena e suave, faces de um rosado tépido, lábios vermelhos e húmidos. Quando ria ou sorria - o que era frequente antes do seu infortúnio - mostrava os dentes, parelhos, pequenos e alvíssimos. O seu nome completo era Maria de los Dólares Catalina Orta y Pérez. Seu pai, Pedro Orta, fora fazer fortuna nas Américas pouco depois de nascer Catalina, e desde então não tinham notícias dele. Sua esposa, Maria Pérez por nascimento,, ignorava se ele estava vivo ou morto, mas ainda tinha esperança de vê-lo regressar um dia com uma arca repleta de ouro, enriquecendo-os a todos. Era uma mulher devota e todas as manhãs, à missa, fazia uma oração pela segurança do marido. Enfurecia-se com o mano Domingo quando este lhe dizia que, se Pedro não morrera havia muito tempo, devia estar vivendo com alguma índia ou quem sabe se duas ou três, e não tinha a menor intenção de abandonar os filhos mestiços que indubitavelmente tinha por lá, para voltar à companhia de uma esposa que já perdera a beleza e a mocidade.
Tio Domingo era uma terrível provação para a sua virtuosa mana,, mas esta queria-lhe bem, em parte porque tal era o seu dever de cristã mas também porque, apesar dos seus graves defeitos, Domingo era um homem estimável e ela não podia
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deixar de amá-lo. Não o esquecia também nas suas orações e compraziam em acreditar que era em virtude da eficácia destas, e não por estar envelhecendo, que ele abandonara! ao menos os seus piores costumes. Domingo Pérez fora destinado ao sacerdócio e no seminário de Akallá de Henares, para onde o mandou o pai, tomou as ordens menores e recebeu a tonsura. Um de seus condiscípulos fora Blasco Suárez de Valero, o bispo de Segóvia, cuja chegada os habitantes da cidade estavam festejando naquele dia. Maria Pérez suspirava ao pensar nos destinos tão diferentes que os dois tinham tomado. Domingo era um estrabulega. Desde o começo envolveu-se em complicações no seminário devido ao seu génio teimoso, turbulento e dissipador, e nem as advertências, nem os castigos nem as pancadas conseguiam domá-lo. Já nesse tempo gostava da pinga e quando bebia de mais entoava canções obscenas que ofendiam os seus colegas de seminário e os professores, os quais tinham por missão incutir a honestidade e o decoro naqueles jovens espíritos. Ainda não tinha feito vinte anos, quando deixou grávida uma escrava moura e, ao perceber que a sua má acção seria divulgada, fugiu e ingressou num grupo de actores ambulantes. Vagueou com eles durante dois anos pelo país e ao fim desse tempo apareceu de repente em casa do pai.
Declarou-se arrependido dos seus pecados e prometeu emendar-se. Era evidente que a Providência não o talhara para o sacerdócio. Disse ao pai que, se este lhe desse o dinheiro necessário para não morrer de fome, iria estudar leis numa universidade. O pai estava ansioso por acreditar que o seu filho havia assentado o juízo e como, na verdade, Domingo voltou reduzido a pele e ossos, a existência que levara não parecia ter sido muito fácil e o velho Pérez deixou-se persuadir. Domingo foi para Salamanca, onde ficou oito anos, mas fez os seus estudos de maneira muito irregular. A magra mesada que recebia do pai obrigava-o a viver numa casa de pensão com vários outros estudantes e a comida era o quanto bastava para não morrer de inanição. Posteriormente, costumava divertir os seus companheiros de pândega, nas tabernas que frequentava, com anedotas sobre os horrores do estabelecimento e as astúcias a que tinham de recorrer para completar o mísero passadio. Mas a pobreza não impedia que Domingo gozasse a vida. Tinha uma língua desenvolta, modos encantadores e cantava bem, de forma que era bem recebido em todas as festas. Talvez os dois anos passados com a troupe ambulante não lhe tivessem ensinado a ser bom actor, mas ensinaram-lhe outras coisas que lhe prestavam serviço agora. Aprendera a ganhar às cartas e aos dados,, e quando aparecia na universidade algum jovem rico, Domingo não tardava a travar conhecimento com ele. Constituía-se em seu guia e mentor no tocante aos costumes da cidade e era raro que o recém-vindo não tivesse de pagar bom -preço pela experiência adquirida. era Domingo nessa época um rapaz bem apessoado e de vez em quando tinha a sorte de provocar a paixão de alguma mulher dada às aventuras amorosas. Não estavam elas no viço da mocidade mas eram pessoas abastadas e Domingo achava justo que provissem às suas necessidades em troca dos serviços que lhes prestava.
O período que passara como actor -ambulante inspirara-lhe o desejo de escrever peças de teatro e todas as horas vagas que lhe deixavam os seus divertimentos, ele dedicava-se a essa ocupação. Tinha considerável facilidade e, além de escrever algumas comédias, compunha amiúde um soneto ao objecto das suas lucrativas atenções e fazia versos em honra de alguma
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pessoa grada, a quem os enviava com a esperamça de receber uma recompensa em metal sonante. Foi esse seu dom de rimar que acabou por levá-lo à mina. O reitor da universidade provocara a cólera dos estudantes com uma pnescrição qualquer e, ao encontrarem numa mesa de taberna uns versos indecentes e injuriosos a seu respeito, encheram-se de regozijo. Dentro em pouco andavam cópias de mão em mão. Correu o boato de que o autor era Domingo Pérez e, conquanto este o negasse, fê-lo com tal complacência que era o mesmo que admiti-lo. Amigos serviçais chamaram a atenção do reitor para os versos, indicando-lhe ao mesmo (tempo quem os tinha escrito. Como o original houvesse desaparecido, não foi possível provar a culpa de Domingo com a sua própria letra, mas o reitor fez indagações discretas que o convenceram de que esse indivíduo dissoluto e mau estudante era o responsável pelo insulto. Tinha demasiada astúcia para formular uma acusação difícil de provar, mas, decidido a vingar-se, escolheu um método mais subtil. Não foi difícil descobrir o escândalo provocado por Domingo como seminarista em Alcalá, e a existência que ele levara durante os oito amos passados na universidade eram notoriamente desregrada. Domingo era jogador e todos sabiam que o jogo leva muitas vezes à impiedade; não faltaram testemunhas dispostas a jurar que lhe tinham ouvido proferir as mais horríveis blasfémias, e diante de duas delas ele dissera que acreditar nos Artigos de Fé era, acima de tudo, questão de boa educação. Isto por si era suficiente para justificar um inquérito do Santo Ofício. O reitor depôs nas mãos dos inquisidores as informações que tinha recebido. O Santo Ofício nunca procedia às pressas. Reunia as provas com todo o sigilo e cuidado e enquanto não
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lhe desabava o golpe na cabeça, a vítima raras vezes sabia que estava debaixo de suspeita.
Uma noite, tarde, estando Domingo deitado a dormir, o aguazil bateu-lhe à porta e prendeu-o quando ele veio abrir. Só lhe deu tempo para vestir-se e emalar a sua reduzida bagagem, junto com a roupa de cama, e conduziu-o, não à prisão - pois Domingo tinha as ordens menores e a Inquisição fazia o possível para evitar escândalos no seio da Igreja - mas a um mosteiro, onde foi encarcerado numa cela disciplinar. Deixaram-no ficar alli algumas semanas, fechado a sete chaves, sem permissão de falar a ninguém ou de ler o que quer que fosse, sem uma vela sequer para alumiar-lhe as trevas. Foi então conduzido à presença do tribunal. As coisas estariam mal paradas para ele se não fosse uma feliz circunstância. Poucos dias antes o reitor, homem vaidoso e irrascível, -tivera violenta disputa com os inquisidores sobre uma questão de precedência. Leram os versos de Domingo e riram com malicioso júbilo. Os seus delitos eram manifestos e não podiam ser relevados, mas os juízes perceberam que,, temperando a justiça com a clemência, podiam infligir ao reitor furioso uma afronta que ele sentiria fundo mas teria de tragar. Domingo reconheceu a sua culpa e declarou-se arrependido. Foi sentenciado a ouvir missa na câmara de audiência e exilado de Salamanca e seus arredores, Tinha rapado um bom susto. Achou conveniente ausentar-se da Espanha por algum tempo; foi, pois, para a Itália como soldado e passou lá alguns anos a jogar, a praguejar quando os dados ou as cartas o atraiçoavam, a fornicar e a beber. Tinha quarenta anos quando voltou à sua terra natal, tão pobre como ao deixá-la, com uma ou duas cicatrizes arranjadas
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em rixas entre bêbedos mas com numerosas recordações para emtreter-Lhe as horas vagas.
Seus pais tinham morrido e a única pessoa da família que restava era a mana Maria, abandonada pelo marido, e a sobrinha Catalina, então uma linda criança de nove anos. O marido de Maria esbanjara-lhe o dote e ela nada possuía além da casinha em que morava. Sustentava a si mesmo e à filha com hábeis e difíceis trabalhos de agulha, tecendo adornos de ouro e prata para os mantos de veludo das imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos padroeiros, as quais eram carregadas nas procissões da Semana Santa, e para as capas, casulas e estolas usadas nas cerimónias da Igreja. Na idade a que chegara, Domingo sentia-se disposto a trocar por uma existência tranquila a vida aventurosa que levara durante vinte anos e a irmã, necessitando da protecção de um homem em casa, convidou-o para morar com ela. Ao iniciar-se a nossa história, havia sete anos que ele vivia ali. Já não pesava nas despesas de Maria, pois ganhava dinheiro escrevendo cartas a pedido de pessoas iletradas, sermões para padres preguiçosos ou ignorantes que não queriam compô-los por si, e depoimentos para demandantes em juízo. Era também hábil em traçar genealogias de pessoas que desejavam atestados de sangue limpo, o que queria dizer que durante um século, ao menos, a sua ascendência não fora manchada por qualquer cruzamento com judeus ou mouros. A pequena família teria uma vida assaz remediada se Domingo pudesse livrar-se dos maus hábitos do jogo e da bebida. Também gastava dinheiro em livros, sobretudo volumes de versos e peças dramáticas, pois ao voltar da Itália recomeçara a escrever para o teatro e, embora não conseguisse fazer representar nenhuma das suas produções, contentava-se com o prazer
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de lê-las aos outros beberrões na sua taberna favorita. Ao tornar-se um homem respeitável reassumira a tonsura, uma salvaguarda em meio aos perigos da Espanha daquele tempo, e usava as vestes sóbrias que convinham a um letrado com as ordens menores.
Tomou grande afeição a Catalina, tão alegre, tão vivaz e tão bonita, e via-a transformar-se numa bela moça com uma satisfação inteiramente desinteressada. Encarregou-se da sua educação e ensinou-a a ler e escrever. Ensinou-lhe também o catecismo e assistiu à sua primeira comunhão com todo o orgulho de um pai. Quanto ao resto, porém, limitava o seu ensino a ler-lhe versos e, quando ela teve bastante idade para apreciá-las, as peças dos dramaturgos que começavam a ser tão comentados na Espanha. Mais do que a todos admirava Lope de Vega, a quem proclamava o maior génio que o mundo tinha visto, e antes do acidente que lesou a jovem, ele e Catalina costumavam representar as cenas que mais admiravam. Tinha ela uma memória viva e com o tempo chegou a saber de cor passagens inteiras. Domingo não esquecera que tinha sido actor e ensinou-a a declamar os seus versos, quando devia ser comedida e quando soltar as rédeas à paixão. Domingo tornara-se um homem magro, de movimentos desarticulados, cabelos grisalhos, rosto amarelo e cheio de rugas, mas ainda havia fogo nos seus olhos e ressonância na sua voz; e quando ele e Catalina representavam uma cena emocionante, com Maria por único auditório, Domingo já não era o valdevinos envelhecido, bêbedo e decadente, mas um brioso mancebo, um príncipe de sangue azul, um galã, um herói ou o que se quisesse. Tudo isso terminou, porém, quando Catalina foi pisada pelo touro. O choque manteve-a de cama algumas semanas, durante as
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quais os médicos da cidade empregaram todos os recursos da sua pobre ciência para devolver a vida ao membro paralisado. Afinal confessaram-se impotentes. Era um caso incurável. Diego, seu namorado, já não lhe vinha à janela de noite para lhe fazer a corte através da grade de ferro, e pouco depois sua mãe trazia para casa a notícia de que ele ia casar com a filha de Pedro Álvarez. Domingo ainda lhe lia dramas para distraí-la, mas as cartas de amor faziam-na chorar com tanta amargura que ele tinha de interromper-se.


III.

Catalina dormiu algumas horas e foi despertada afinal pelos ruídos que sua mãe fazia, lidando na cozinha. Pegou na muleta e foi lá.
- Onde está o tio Domingo? - perguntou, pois queria que ele estivesse presente para ouvir o que ela precisava contar com tanta urgência.
- Que pergunta! Está na taberna. Mas, se bem o conheço, voltara para casa à hora de jantar.
Por via de regra como toda a gente;, eles faziam a única refeição quente do dia às doze horas., mas desde a manhã não tinham comido senão um naco de pão barrado de alho, que Maria levara consigo, e ela sabia que Domingo devia estar faminto. Acendeu, pois, o fogo e tratou de preparar a sopa. Catalina não pôde esperar nem um momento mais.
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- Mãe, a Virgem Santíssima apareceu-me.
- Sim, minha querida? - volveu Maria. - Limpa e corta as cenouras para mim, por favor.
- Mas ouve, mãe! Eu vi a Virgem Santíssima, ela falou-me!
- Não sejas tola, menina. Encontrei-te dormindo quando cheguei e não te acordei. Ainda bem que tiveste um sonho bonito. Mas agora que acordaste, podes ajudar-me a preparar o jantar.
- Mas eu não sonhei, isso foi antes de eu dormir!
Referiu, então, a coisa extraordinária que lhe acontecera.
Maria Pérez fora bonita em moça mas engordara com a idade, como muitas vezes sucede às espanholas. Tinha sofrido muito: dois filhos que tivera antes de Catalina haviam morrido; aceitara isso, porém, do mesmo (modo que o abandono do marido, como uma mortificação que lhe era imposta, pois era profundamente religiosa. E, sendo ao mesmo tempo uma mulher prática que não tinha o hábito de lastimar-se inutilmente, encontrara consolação no trabalho aturado, no ofício divino e nos desvelos com a filha e com seu refractário irmão Domingo. Ouviu aterrada a história de Catalina. Era tão circunstanciada, com pormenores tão precisos, que estaria disposta a darnlhe crédito se, ao menos, não fosse incrível. A única explicação possível era que a enfermidade da pobre rapariga e a perda do namorado lhe houvessem dado volta ao juízo. Estivera a rezar dentro da igreja e depois fora sentar-se sob o sol ardente: era muitíssimo provável que qualquer coisa se tivesse desarranjado no seu cérebro e ela houvesse imaginado tudo aquilo com tamanha força que estava convencida da reailidade do acontecimento.
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- O filho de Don Juan de Valeiro que melhor tem servido a Deus é o bispo - disse Catalina ao terminar.
- Quanto a isso, não há dúvida - volveu a mãe. - Ele é um santo.
- Tio Domingo conheceu-o bem quando ambos eram jovens e pode levar-me à presença dele.
- Cala-te, menina. Deixa-me pensar.
A Igreja não via com bons olhos as pessoas que afirmavam ter-se comunicado com Jesus Cristo ou sua Mãe, e punha toda a sua autoridade em desanimar tais pretensões. Alguns anos atrás, um frade franciscano causara grande alvoroço curando enfermos por meios sobrenaturais e era tal o número de pessoas que recorriam a ele que o Santo Ofício fora obrigado a intervir. Prenderam-no e nunca mais se ouviu falar nele. Pelas conversas do convento das carmelitas, para o qual trabalhava de quando em quando, Maria Pérez tinha notícia de uma freira, que havia afirmado que Elias,, o fundador da ordem, lhe aparecera na cela e lhe conferira favores especiais. A superiora do convento mandara açoitá-la imediatamente, até ela confessar que tinha inventado a história para se dar importância. Se, portanto, frades e freiras pagavam caro tais pretensões, era mais do que provável que a Igreja olhasse com extrema severidade a história de Catalina. Maria atemorizou-se.
- Não digas nada a ninguém - aconselhou a Catalina - , nem mesmo ao tio Domingo. Falarei com ele depois do jantar e ele resolverá sobre o melhor caminho a seguir. Mas, pelo amor de Deus, limpa as cenouras, de contrário não teremos sopa hoje.
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Catalina não ficou muito satisfeita com este alvitre, mas a mãe mandou-a calar e fazer o que lhe diziam.
Pouco depois chegava Domingo. Não estava bêbedo, mas tam-pouco estava bem são, e vinha muito alegre. Gostava de ouvir o som da própria voz e, enquanto jantavam, descreveu com loquacidade a Catalina os sucessos do dia. Isso dá-nos uma boa oportunidade de expor ao leitor as razões pelas quais reinava tamanho alvoroço na cidade.


IV.

Don Juan Suárez de Valero era um cristão-velho e, ao contrário de muitas entre as mais nobres famílias espanholas, cujos filhos, antes de Fernando e Isabel terem unido os reinos de Castela e Aragão, haviam desposado herdeiros de judeus ricos e poderosos, ele podia exibir uma ascendência isenta de qualquer aliança espúria. Mas os seus antepassados eram a sua única fortuna. Possuía escassas terras a uma milha da cidade, próximo a uma povoação chamada Valero, e fora antes para se distinguir das demais famílias Suárez do que para se dar importância que ele e seus ascendentes imediatos haviam acrescentado ao seu o nome da povoação. Era muito pobre e a sua aliança com a filha de um fidalgo de Castel Rodríguez pouco contribuiu para melhorar-lhe as circunstâncias. Dona Violante deu ao seu senhor um filho anualmente, pelo espaço de dez anos, mas desses filhos somente três, todos varões, passaram
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da adolescência. Chamavam-se, respectivamente, Blasco, Manuel e Martin.
Blasco, o mais velho, desde a infância deu sinais de uma inteligência excepcional e, por sorte, também de devoção, de maneira que o destinaram para a Igreja. Na idade própria foi posto no seminário de Alcalá de Henares e a seu tempo passou à universidade. Bacharelou-se em Ciências e Letras e doutorou-se em Teologia em tão poucos anos que era evidente poder ele contar com uon futuro brilhante no clero secular. Prometiam-lhe altas distinções. Mas, de súbito, afirmando desejar viver no isolamento do mundo para poder dedicar-se inteiramente aos estudos, à prece e à meditação, ele mostrou o intuito de ingressar na ordem monástica dos dominicanos. Os seus amigos procuraram dissuadi-lo, pois a ordem era austera, com um serviço divino à meia-noite, perpétua abstinência de carne, frequentes mortificações, jejum e silêncios prolongados. Tudo foi inútil, porém, e Blasco de Valero fez-se frade. Tão manifestas eram as suas qualidades que os seus superiores não podiam desconhecê-las, e quando se descobriu que, além de uma bela presença e grande cultura, ele possuía uma voz ao mesmo tempo forte e melodiosa, assim como uma ardente eloquência, enviaram-no a pregar aqui e ali: pois o Papa Inocêncio III tinha mamdado São Domingos pregar aos hereges e desde então os dominicanos tornaram-se conhecidos como missionários e pregadores. Em certa ocasião mandaram-no à sua velha universidade de Alcalá de Henares. Gozava já de uma reputação considerável e toda a cidade correu a ouvi-lo. O sermão que pronunciou foi sensacional. Empregou todos os seus recursos para convencer a numerosa congregação da importância de conservar a fé na sua pureza e exterminar
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por completo os hereges. Em voz trovejante ordenou aos leigos, pela estima que tinham às suas almas e pelo temor aos rigores do Santo Ofício, que denunciassem tudo que lhes viesse ao conhecimento com sabor ao pecado e ao crime de heresia. Incutiu-lhes, com palavras ameaçadoras, que era dever religioso de cada um delatar o seu vizinho, o filho ao pai, a mulher ao marido, pois não havia laços naturais de afeição que pudessem absolver um filho da Igreja de conivência com um mal que era um perigo para o Estado e uma ofensa a Deus. O resultado do sermão foi satisfatório. Houve numerosas deflações e no final três cristãos-novos, contra os quais ficou provado que costumavam retirar a gordura da carne que comiam e mudar de roupa aos sábados, morreram na fogueira. Bom número de acusados foram condenados à prisão perpétua, com a comfiscação de todas as suas posses, e muitos outros açoitados ou submetidos a penas pecuniárias e outras.
A enérgica eloquência do frade produziu impressão tão funda nas autoridades universitárias que pouco depois era ele nomeado professor de Teologia. Alegou o seu pouco mérito e pediu que o dispensassem de aceitar essa posição de responsabilidade, mas os seus superiores na ordem determinaram que aceitasse e ele teve de obedecer. Desempenhou os seus deveres com crédito e as suas prelecções eram tão concorridas que, embora as fizesse no vasto salão da universidade, não havia espaço suficiente para comportar todos aqueles que desejavam ouvi-lo. A sua reputação galgou grandes alturas e ao cabo de alguns anos, com trinta e sete de idade,, fizeram-no inquisidor do Santo Ofício em Valência.
Embora continuasse sinceramente convicto da sua indignidade, aceitou o posto sem se fazer rogar. Era Valência um
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porto marítimo em que amiúde ancoravam navios estrangeiros - ingleses, holandeses ou franceses. Não raro, as suas tripulações eram protestantes e, por esse motivo, objectos muito apropriados para as actividades da Inquisição. Acresce que tentavam com frequência introduzir na Espanha livros proibidos, como bíblias traduzidas em espanhol e as obras heréticas de Erasmo. Blasco de Valeiro percebeu que podia ser muito útil ali. Além disso, havia grande número de mouros em Valência e nos arredores. Tinham sido convertidos à força, mas ninguém ignorava que a maior parte dessas conversões não iam além da superfície e eles continuavam a observar boa parte dos seus costumes mouriscos. Não comiam carne de porco, usavam em casa os trajes proibidos e negavam-se a comer animais que houvessem perecido de morte natural. Apoiada na autoridade régia, a Inquisição tinha conseguido eliminar o judaísmo, e embora os cristãos-novos pudessem ser ainda olhados com desconfiança, o Santo Ofício encontrava cada vez menos ocasiões de proceder contra eles. Mas com os mouros era diferente. Eram laboriosos e não só a agricultura do país se encontrava nas suas mãos mas também todo o comércio - pois os espanhóis eram demasiado preguiçosos, soberbos e dissipados para se dedicarem a ocupações manuais. Em consequência, os mouros tornavam-se cada vez mais ricos e, como fossem muito prolíferos, o seu número aumentava. Muita gente ponderada vaticinava o dia em que toda a riqueza do país passaria às suas mãos e o seu número excederia o da população nativa. Temia-se, como era natural, que nesse dia eles tomassem conta do poder e reduzissem à servidão os indolentes espanhóis. Tornava-se necessário livrar-se deles a qualquer custo e vários planos foram arquitectados com esse fim.
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Um desses planos era entregá-los às mãos do Santo Ofício e processá-los pelas suas notórias heresias, queimando-os em tal quantidade que os restantes se tornassem inofensivos. Outro plano, menos oneroso, consistia em deportá-los; mas o governo não desejava aumentar o poder dos mouros além do estreito de Gibraltar, acrescentando à população daquelas regiões algumas centenas de milhares de homens robustos e industriosos, de modo que alguém apresentou o engenhoso alvitre de fazê-los embarcar em velhas naus, sob pretexto de conduzi-los à África, e então pôr a pique os barcos, de modo que todos morressem afogados.
Ninguém se interessava mais por esse problema do que Frei Blasco de Valero, e talvez o mais famoso dos seus sermões durante a estada em Alcalá de Henares fosse aquele em que propunha o transporte dos mouros em massa para a Terra Nova, castrando-se previamente os machos, tanto jovens quanto velhos, de modo que em pouco acabariam todos por se extinguir. Foi esse sermão., possivelmente, que lhe valeu o alto e honroso cargo de inquisidor na importante cidade de Valência.
Frei Blasco encetou as suas novas funções com a certeza, fortificada por fervorosas preces, de que tinha diante de si a possibilidade de fazer grandes coisas em honra do Santo Ofício e pela maior glória do Senhor. Sabia que teria de fazer frente aos poderosos. Os mouros eram vassalos dos nobres, a quem pagavam tributo em dinheiro, espécie ou serviços, e aqueles tinham interesse em protegê-los. Mas o frade não levava em conta as pessoas e resolveu não permitir a ninguém,, por maior que fosse, perturbar o desempenho do seu dever. Não havia muitas semanas que estava em Valência quando o informaram de que um fidalgo poderoso, Don Hernando de Belmonte,
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duque de Terranova, impedira as autoridades do Santo Ofício de prender alguns ricos vassalos que, em desobediência à lei, usavam trajes mouriscos e tinham banheiras em casa. Mandou os seus familiares armados prender o duque, multou-o em dois mil ducados e condenou-o à reclusão perpétua num convento. Atacar, logo de início, pessoa tão altamente colocada foi um acto de audácia que infundiu terror nos mais corajosos. Ao tornar-se evidente, contudo, que o inquisidor estava decidido a exterminar os mouros, as autoridades municipais foram reunidas interceder com ele. Fizeram-lhe ver que a prosperidade da província dependia deles e que Valência iria à ruína se ele persistisse naquele intento. Mas Frei Blasco repreendeu-os asperamente e ameaçou-os com a excomunhão, forçando-os assim a submeter-se e a apresentar humildes desculpas. Mediante castigos e confiscações, logrou dentro em pouco reduzir os mouros à miséria e à desgraça. Os seus espias andavam por toda a parte e ai daquele espanhol, leigo ou eclesiástico, que desse motivo a suspeita! Como, em seus sermões, ele continuasse a incutir no povo de Valência a obrigação de denunciar todo aquele que, por gracejo ou mau humor, ignorância ou descuido, pronunciasse alguma palavra leviana, não tardou que todos os habitantes da cidade vivessem num terror perpétuo.
Mas o inquisidor era um homem justo. Tinha o cuidado de adequar a punição à falta. Por exemplo: se bem que, como teólogo, condenasse como pecado mortal as relações carnais entre pessoas não unidas pelo matrimónio, como inquisidor o facto só lhe interessava quando as pessoas envolvidas afirmassem não haver aí pecado mortal, caso em que as condenava a receber cem açoites. Por outro lado, punia apenas com 28

uma multa a asserção não menos herética de que a vida matrimonial valia tanto quanto o celibato. Era, ademais, um homem misericordioso. Não desejava a morte do herege e sim a salvação da sua alma. Certa ocasião um inglês, proprietário de um navio, foi preso e confessou pertencer à religião reformada, ante o que foi apreendida a embarcação e confiscada a carga. Submeteu-se o homem à tortura até falecerem-lhe as forças, e então permitiu-se-lhe abraçar o catolicismo. Foi com sincera satisfação que o Inquisidor pôde, assim condená-lo a apenas dez anos de galés e prisão perpétua. Podemos dar dois ou três exemplos mais do seu natural misericordioso. Após a morte de um penitente, em resultado de duzentos açoites que recebera, ele fizera questão de que o número fosse limitado a cem. Quando era necessário aplicar a tortura a uma mulher grávida o inquisidor adiava-a para depois do parto, e era antes o seu coração compassivo do que o respeito à lei que o levava a ter o maior cuidado para que a tortura não acarretasse invalidez permanente nem fractura de ossos, e se, por vezes, ocorria um acidente ou alguém morria) em resultado dos tratos, ninguém poderia lamentar mais amargamente a ocorrência.
A magistratura de Frei Blasco foi altamente bem sucedida. No decurso de dez anos celebrou trinta e sete autos-de-fé em que seiscentas pessoas se penitenciaram e mais de setenta foram queimadas vivas ou em efígie, não só prestando desse modo um serviço a Deus mas também edificando o povo. Um homem menos humilde do que ele teria considerado a última dessas solenidades como a glória suprema da sua carreira, pois ela se realizou em honra do príncipe Filipe, o herdeiro do trono. As várias cerimónias foram conduzidas com tanta propriedade e de tal modo divertiram o príncipe herdeiro que
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este fez a Frei Blasco um presente de duzentos ducados, com uma carta em que lhe dava os parabéns pelo edificante espectáculo e o exortava a continuar servindo a Deus dessa forma, para glória do Santo Ofício e proveito do Estado. Era evidente que o zelo e a piedade do inquisidor haviam produzido funda impressão nele, pois quando Filipe II morreu pouco depois e o príncipe ascendeu ao trono, nomeou-o acto contínuo bispo de Segóvia.
Ele só aceitou essa nova dignidade após uma noite inteira passada de joelhos, a contender com o Senhor, e deixou Valência entre as lamentações de grandes e pequenos. Conquistara a admiração daqueles pelo seu zelo, pela austeridade da sua vida e pela sua escrupulosa honestidade; enquanto a sua caridade fazia dele o ídolo dos pobres. Ganhava pingues emolumentos como inquisidor e a cortezia de Málaga na qual fora provido traziam-lhe benefícios consideráveis; mas ele gastava até ao último vintém em socorrer as necessidades dos pobres. A confiscação das riquezas dos hereges condenados e as multas impostas aos penitentes canailizavam elevadas quantias para os cofres do Santo Ofício e esse dinheiro servia para atender às grandes despesas da organização, mas não era raro que os inquisidores reservassem para si somas consideráveis. Até ao piedoso Torquemada acumulara desse modo uma imensa fortuna, que gastou na construção do mosteiro de S. Tomás de Aquino, em Ávila, e nos acréscimos feitos ao da Santa Cruz, em Segóvia. Mas Blasco de Valero nunca aprovou essa prática e partiu de Valência tão pobre como lá chegara.
Nunca vestiu outra coisa que não fosse o humilde hábito da sua ordem, jamais comia carne nem usava linho sobre o corpo ou nas roupas de cama,, e flagelava-se regularmente,,
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por vezes com tamanho rigor que o sangue espirrava nas paredes Tal era a sua reputação de santidade que, quando teve de adquirir um novo hábito por estar o primeiro demasiadamente gasto, muita gente pagou aos criados do bispo para lhes conseguirem fragmentos do velho hábito posto fora de uso, os quais usavam como amuletos contra a varíola e o mal venéreo. Antes da sua partida, várias pessoas influentes procuraram arrancar-lhe a promessa de lhes conceder, quando afinal aprouvesse ao Altíssimo chamá-lo a Si, o privilégio de enterrar o seu corpo na cidade em que ele levara a efeito obra tão fecunda. Estavam certos de poder exercer suficiente influência em Roma- para conseguir, senão a sua canonização, pelo menos a sua beatificação, e ter-lhe os ossos na catedral seria uma glória para a cidade. Mas o frade, adivinhando-lhes o pensamento, respondeu com severidade e não quis comprometer-se.
Foi escoltado até três milhas além das portas da cidade por uma grande comitiva de dignitários eclesiásticos, magistrados e grande número de nobres cavalheiros. Quando se despediram dele, não havia um só olho enxuto em toda aquela distinta companhia.


V.

Não é necessário estendermo-nos tanto sobre os outros filhos de Juan de Valero.
O segundo filho, Manuel, era vários anos mais novo do que Blasco e, embora não fosse tolo, não tinha nem a inteligência
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nem a operosidade do irmão. Interessava-se mais pelos desportos do campo do que pela aquisição de cultura. Fez-se um moço belo e rijo, dotado de grande força corporal e alta opinião de si mesmo. Tinha audácia, coragem e ambição. Era grande caçador e capaz de montar cavalos que outros achavam indomáveis. Desde a meninice brincava às touradas com os outros garotos do lugar, e com mais idade não perdia um ensejo de saltar para a arena, e fazer a parte do touro. Aos dezasseis anos conseguiu permissão para lutar a cavalo com um touro e, com grande admiração do público, matou o animal à primeira lançada. Havia muito que decidira abraçar a carreira das armas, pois na Espanha daquela época, a menos que se ingressasse na Igreja,, não havia outro meio de elevar-se na vida. Embora pobre, Don Juan de Valero era muito respeitado, e sucede que um dos nobres da cidade era parente afastado do grande duque de Alva. Assim um belo dia, com uma carta de recomendação na algibeira,, o jovem Manuel partiu em busca da fortuna. Encontrou o grande homem num momento favorável, pois, tendo sido desterrado da corte, achava-se ele então retido no seu castelo de Uzeda. Caiu-lhe em graça a bela aparência desse jovem que vinha solicitar o seu patrocínio quando ele havia caído em desfavor, e ao ser chamado pouco depois por Filipe II para assumir o comando do exército na guerra com Portugal, o duque levou-o na sua comitiva. Derrotou o rei Don António e expulsou-o do seu reino. Apreendeu um grande tesouro em Lisboa e deu aos seus soldados permissão de saquear a cidade e os seus arredores. Manuel portou-se com bravura na batalha e mais tarde, no saque, deitou a mão a muitos objectos de valor que prontamente converteu em dinheiro. Como, porém, Alva estivesse
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velho e não pudesse durar muito, vendo o moço ansioso por fazer progressos na carreira militar, deu-lhe cartas de apresentação para alguns dos seus antigos capitães que tinham servido com ele nos Países Baixos e se achavam então sob o comando de Alexandre Farnese.
Durante vinte anos Manuel lutou com mérito nas guerras para fazer voltar as províncias do norte ao domínio do rei de Espanha. Mostrou-se não só corajoso mas astuto e foi promovido primeiro por Alexandre Farnese e depois pelos generais que à morte deste o substituíram. Era tão inescrupuloso quanto intrépido, não menos cruel do que hábil e igualmente devoto e brutal, de forma que com o tempo veio a ser investido em comandos importantes. Não tardara a descobrir que o homem que serve o seu país nunca é recompensado pelos seus méritos, a menos que peça o que deseja. Não hesitava em fazê-lo, e como havia acumulado quantias consideráveis graças à pilhagem das cidades capturadas, à extorsão a que submetia os mercadores das localidades que administrava e à concessão de favores em troca de dinheiro, pôde finalmente consubstanciar os seus direitos de uma forma que tornava difícil deixar de reconhecê-los. Recebeu a cobiçada Ordem de Calatrava e usava com orgulho a sua fita verde. Dois anos depois foi feito conde de San Costanzo, no reino de Nápoles, com o direito de fazer o uso que lhe aprouvesse do título. Os reis de Espanha tinham o proveitoso hábito de recompensar por esse modo as pessoas merecedoras, e como estas podiam vender os títulos a plebeus ricos que desejavam enobrecer-se, a Coroa conseguia assim prover, financeiramente, sem despesa para o Tesouro, aqueles que a tinham servido bem. Mas o cavaleiro de Calatrava dera um emprego judicioso ao seu dinheiro e não necessitava
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de lançar mão desse recurso. Tinha recebido vários ferimentos, o último tão grave que só a sua vigorosa constituição lhe permitiu sobreviver. Esse ferimento dava-lhe um pretexto razoável para deixar o serviço de el-rei. Resolveu voltar para casa e unir-se pelo casamento a uma família da velha aristocracia da sua cidade natal, o que não duvidava poder fazer graças ao seu posto e à sua fortuna, e depois mudar-se para Madrid, onde empregaria a sua energia e o seu talento para a intriga em satisfazer a sua ambição desmedida. Quem sabe se, jogando bem as cartas e cultivando a amizade das pessoas que convinham,, ele não alcançaria grandes alturas? Estava com quarenta anos e era uma bela- figura de homem, com olhos pretos e ousados, bonito bigode, um ar de virilidade insolente e uma língua desembaraçada.


VI.

Quanto ao terceiro filho, Martin, necessitamos dizer ainda menos. Todas as famílias têm a sua ovelha tinhosa e a família de Juan de Valeiro não constituía excepção à regra. Martin, o mais moço dos três e o último filho que Dona Violamte dera ao marido, não possuía nem o zelo ardente graças ao qual Blasco de Valero havia alcançado a eminência na Igreja, nem a ambição e destreza que tinham trazido fama e fortuna a Don Manuel. Parecia contentar-se com o cultivo das escassas e magras terras de cujos produtos viviam seus pais. Naqueles

tempos, devido às guerras constantes e à atracção que a América exercia sobre os espíritos jovens e aventurosos, havia falta de braços na Espanha. Os mouros, inteligentes e trabalhadores, nunca tinham sido numerosos na região e por essa época a sua quase totalidade fora obrigada a abandoná-la. Martin era uma grande decepção para Don Juan, e embora a sua esposa insistisse que tinha as suas vantagens possuir um filho robusto, activo e disposto a enfrentar qualquer espécie de trabalho, ele não cessava de afligir-se.
Mas um golpe ainda maior lhe estava reservado. Aos vinte e três anos Martin casou, e fê-lo com pessoa de classe inferior. É verdade que a sua noiva era uma cristã-velha e estava convincentemente provado que pelo espaço de gerações não houvera aliança com pessoas de sangue judeu ou mouro, mas o pai era padeiro. Consuelo era filha única e herdaria todas as suas posses, mas isso não alterava o facto de ser o homem um mercador. Passaram-se alguns anos. Consuelo teve filhos. Então um novo golpe feriu Don Juan: o padeiro morreu e o velho suspirou aliviado, pois agora seria possível vender a padaria e o estigma dessa conexão com um ofício manual acabaria por se apagar. Mas nem bem o padeiro fora decentemente enterrado quando Marttin informou os pais de que pretendia mudar-se para a cidade e dirigir o estabelecimento em pessoa. Mal podiam dar crédito aos seus ouvidos. Don Juan esbravejou, Dona Violante chorou. O filho fez-lhes ver que, se tinham melhorado um pouco de vida ultimamente, era graças ao dote de Consuelo; esse dote evaporara-se; ele tinha quatro filhos e não havia razão para que não viessem outros quatro; o dinheiro andava escasso na Espanha e a venda do negócio não podia render mais que o suficiente para sustentá-lo ainda
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alguns anos, ao termo dos quais os aguardava a miséria e a fome. Levantou o ridículo argumento de que cozer pão não era mais vergonhoso do que lavrar um campo estéril ou espremer azeitonas.
Martin instalou a família por cima da padaria. Levantava-se muito antes de amanhecer para levar o pão ao forno e depois ia a cavalo à chácara, onde trabalhava até à noite. Prosperou, pois fazia bom pão, e ao cabo de um ano ou dois pôde pagar a um homem para fazer o trabalho da chácara, mas não deixava passar um dia sem ir ver os pais. Era raro que não lhes levasse alguma coisa e dentro em pouco eles puderam comer carne todos os dias permitidos pela Igreja. Estavam adiantados em anos e Don Juan não podia negar que os presentes do filho eram um conforto para a sua velhice. Se bem que houvesse causado certa surpresa na cidade o facto de ter-se o filho de Juan de Valero rebaixado daquela forma,, e os garotos lhe gritassem na rua "panadero" em tom de mofa, o seu bom génio e inconsciência de ter feito qualquer coisa fora do comum não tardaram a desarmar toda a gente. Era caridoso e nenhum pobre lhe aparecia à porta pedindo esmola sem levar um pão fresco. Era religioso, ia à missa todos os domingos e confessavam regularmente quatro vezes por ano. Ao começar a nossa narrativa era um homem forte e disposto, de trinta e quatro anos, algo corpulento, pois gostava da boa mesa e do bom vinho, com um rosto redondo e franco, uma expressão jovial e feliz.
- É óptima pessoa - diziam dele - , não muito inteligente nem muito instruído, mas bom e honesto.
Era de agradável trato, amigo de gracejar e com o correr do tempo, quando Martin passou a ter vida mais folgada,
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homens de posição respeitável vinham muitas vezes à padaria conversar com ele e o estabelecimento tornou-se mesmo uma espécie de ponto de encontro em que os amigos iam ver-se e dar dois dedos de conversa.
Era uma feliz circunstância que ele houvesse tomado a seu cargo o sustento dos pais, visto que Frei Blasco, durante os seus vinte anos de ausência, jamais lhes enviara um vintém - pois distribuía em esmolas tudo quanto tinha - enquanto Don Manuel também não mandava nada porque nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse dar melhor emprego ao seu dinheiro do que ele mesmo. Desse modo, dependiam inteiramente de Martin na velhice. Ainda se envergonhavam dele e não podiam deixar de lastimar o rumo que dera à sua vida. Era uma fonte contínua de irritação o facto de ele parecer inteiramente satisfeito com o seu estado. Tratavam-lhe a esposa plebeia com a cerimoniosa cortesia que lhes parecia exigir o respeito próprio e ganharam afeição aos netos. Mas o seu coração estava com os dois filhos que haviam trazido honra e glória ao seu antigo nome.


VII.

Não é difícil imaginar a alegria com que Don Juan e Dona Violante aguardavam o dia em que tornariam a vê-los após tão prolongada separação. O frade escrevia com raros intervalos, e como nem Don Juan nem o filho padeiro eram
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muito letrados e de qualquer modo sentiam-se incapazes de escrever com a elegância devida a um culto homem de Igreja, tinham pedido a Domingo Pérez que respondesse às cartas. E Domingo fazia-o com plena satisfação tanto dos Valeros como de si próprio, pois orgulhava-se da elegância do seu estilo. Don Manuel, por outro lado, nunca se comunicara com ele a não ser quando estava cabalando para conseguir a Ordem de Calatrava e necessitou apresentar provas da pureza da sua ascendência. Também dessa vez recorreram aos bons serviços de Domingo, que preparou uma genealogia, devidamente autenticada pelos magistrados locais, em que reportava as origens da família, sem a menor mistura de sangue judeu, a Afonso VIII, rei de Castela,, o qual desposara Eleanora, filha de Henrique II da Inglaterra.
O que motivava a vinda dos dois filhos de Don Juan não era apenas o regresso de Don Manuel após os longos anos de serviço nas guerras e a elevação de Frei Blasco à dignidade episcopal, mas também a comemoração das bodas de ouro do velho casal. Combinaram os dois irmãos encontrarem-se numa localidade situada a umas vinte milhas de Castel Rodríguez e realizar juntos a sua entrada solene na cidade. Don Juan comprazia-se em pensar que a grandiosa recepção preparada aos filhos compensaria de certo modo o longo opróbrio da degradação do pobre Martin. Estava, naturalmente, impossibilitado de receber os dois filhos e as respectivas comitivas na sua semi-arruinada granja. Ficou, pois, combinado que o bispo se hospedaria no convento dominicano, enquamto o despenseiro do duque de Castel Rodríguez, na ausência do seu amo, que estava em Madrid, oferecia aposentos a Don Manuel no palácio ducal.
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Chegou o grande dia. Os nobres da cidade puseram-se a caminho, montando os seus cavalos, enquanto os magistrados e os eclesiásticos cavalgavam mulas. Seguiam, numa carruagem que lhes emprestara uma pessoa de qualidade, Don Juan e Dona Violante acompanhados de Martin e da família deste. Pouco depois os visitantes tão ansiosamente esperados foram vistos a aproximar-se pela sinuosa e poeirenta estrada. O bispo, com o hábito dominicano, sobre o lombo de uma mula, cavalgava ao lado do irmão no seu corcel de guerra. Envergava uma maravilhosa armadura, toda marchetada de ouro. Atrás deles vinham os dois secretários do bispo, religiosos da mesma ordem, os seus criados e os do capitão, vestidos de sumptuosa libré. Após saudar os importantes personagens que os tinham vindo receber e após ouvir alguns eloquentes discursos, o bispo perguntou pelo pai e pela mãe. Estes, que se mantinham modestamente atrás dos outros, adiantaram-se então. Dona Violante ia ajoelhar-se para beijar o anel episcopal quando o bispo, com grande admiração dos espectadores, não a deixou fazer e, tomando-a nos braços, beijou-lhe ambas as faces. Ela pôs-se a chorar e muitas pessoas presentes ficaram tão tocadas com aquilo que as lágrimas lhes corriam pelas faces. Beijou ele também o pai e, enquanto os dois velhos se voltavam para o segundo filho, perguntou por Martin.
- "El panadero" - chamou alguém.
Martin avançou então por entre a multidão, com a mulher e os filhos. Todos haviam vestido as suas melhores roupas e o jovial, rubicundo e corpulento homem, tinha excelente aspecto. O bispo saudou-o afectuosamente e Don Manuel com certa condescendência, enquanto Consuelo e os pequenos ajoelhavam no chão e beijavam o anel do bispo. Este felicitou
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amavelmente o irmão pelo número e pela saudável aparência dos seus rebentos. Nas cartas que lhe escreviam, Dom Juan e Dona Violamte haviam falado do casamento do filho mais moço e participado o nascimento das crianças, mas jamais ousaram informá-lo de que Martin se fizera mercador. Observavam o encontro cheios de apreensão. Sabiam que a verdade, infalivelmente, não tardaria a vir à tona, mas estavam ansiosos por evitar qualquer ocorrência que pudesse perturbar o regozijo da ocasião. Ao cabo de muitas disputas, havia assentado quem iria à direita e quem à esquerda dos dois ilustres filhos da cidade, e embora muitos guardassem ressentimento formou-se o cortejo e a cavalgada realizou uma entrada imponente na cidade. Ao transporem as portas os sinos das igrejas puseram-se a repicar, foguetes estouraram, houve um clangor de trombetas e um rufar de tambores. As ruas estavam apinhadas de gente e foi entre vivas e palmas que eles passaram pelas ruas, a caminho da colegiada, onde se cantaria um "Te Deum".
O serviço divino foi seguido de um banquete e os anfitriões notaram que, embora fosse dia de festa da Igreja, o bispo não comia carne nem tomava vinho. Terminada a refeição ele mostrou o desejo de ficar alguns instantes a sós com as pessoas da sua família. Martin foi buscar a mãe, que se recolhera à casa do padeiro com Consuelo e as crianças. Ao voltar, encontrou o mano Blasco a sós com o pai, mas nem bem havia entrado na sala quando surgiu Don Manuel, de sobrolho franzido, os olhos negros de cólera.
- Mano - disse ele, dirigindo-se a Blasco - , tu sabes que esse Martin, filho de um nobre de antiga linhagem,, é um pasteleiro?
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Don Juan e sua esposa estremeceram, mas o bispo limitou-se a sorrir.
- Pastelleiro não, mano: padeiro.
- Quer dizer então que sabias?
- Há anos que sei. Embora os meus sagrados deveres não me permitissem dedicar a meus pais o cuidado que desejava, observava-os de longe e nunca os esquecia nas minhas orações. O prior da nossa ordem nesta cidade mamtinha-me ao par da sua situação.
- Então como consentiste que ele lançasse tamanho labéu sobre a nossa família?
- Nosso irmão Martin é um homem virtuoso e devoto. É um cidadão respeitado e caridoso para os pobres. Tem zelado pelos nossos pais na sua velhice. Não lhe posso censurar o haver tomado uma decisão que lhe era imposta pelas circunstâncias.
- Eu sou um soldado, mano, e ponho a honra acima da vida. Essa história arruinou-me os planos.
- Duvido muito.
- Como podes saber? - esbravejou Don Manuel. - Tu não conheces os meus planos.
O esboço de um sorriso clareou por um instante as feições austeras do bispo.
- Não deves ter muita experiência do mundo,, mano - respondeu ele - , se ignoras que os nossos assuntos pessoais raramente escapam à notícia dos nossos servidores. Esqueces que passámos dois dias debaixo do mesmo tecto, a caminho daqui. Chegou-me aos ouvidos que não vieste apenas cumprir um dever filial, mas também escolher uma esposa entre as famílias nobres da cidade. Apesar da profissão que nosso irmão resolveu seguir, com o título que Sua Majestade houve por bem
conceder-te e o dinheiro que ganhaste a seu serviço creio que não te será difícil alcançar o teu objectivo.
Martin ouvia tudo isso sem o menor sinal de que sentisse vergonha. O seu rosto bem-humorado tinha uma expressão de divertimento.
- Não esqueças, Manuel - disse ele - , que Domingo Pérez repontou as origens de nossa família a um rei de Castela e a um rei de Inglaterra. Isso não pode deixar de ter o seu peso junto à família a que pretendas fazer a honra de lhe desposar a filha. Domingo disse-me que um dos reis ingleses fazia bolos, de modo que talvez não haja grande ignomínia no facto de um descendente de reis fazer pão, sobretudo quando, por opinião unânime, é o melhor pão da cidade.
- Quem é esse Domingo Pérez? - perguntou o soldado, de carramca fechada.
Não era fácil responder a esta pergunta, porém Martin fez o que pôde.
- Um homem instruído e um poeta.
- Recordo-me dele - disse o bispo. - Estivemos juntos no seminário.
Don Manuel fez um gesto agastado e dirigiu-se ao pai.
- Como pôde permitir que ele nos envergonhasse assim?
- Eu não aprovei. Fiz tudo que estava no meu poder para impedi-lo.
Don Manuel voltou-se então severamente para o irmão mais novo.
- E tu ousaste contrariar o desejo de teu pai? Devia representar para ti uma ordem. Dá-me uma razão, uma só, pela qual, mandando a decência à fava, te rebaixaste fazendo-te padeiro.
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- A fome.
A palavra pareceu desabar no chão como um monte de alvenaria. Don Manuel sufocou uma exclamação de nojo e raiva. Mais uma vez, um leve sorriso tremeu nos lábios do bispo. Os próprios santos conservam certa dose de humanidade, e durante os dois dias que tinham passado jumtos Don Blasco chegara à conclusão de que não simpatizava muito com seu mano militar. Censurava-se tal coisa, mas nem toda a sua caridade cristã conseguia vencer a impressão de que Don Manuel era um indivíduo grosseiro, brutal e despótico.
Por felicidade, essa reunião de família foi interrompida pela entrada de algumas pessoas, as quais vinham avisar que estava na hora das touradas. Os dois irmãos receberam lugares de honra. A municipalidade dera-se a despesas para conseguir bons touros e o espectáculo esteve à altura da ocasião. Depois de terminado, o bispo retirou-se para o convento dominicano com os frades que o acompanhavam e Don Manuel dirigiu-se para os aposentos que lhe tinham sido reservados. O povo da cidade voltou para as suas casas ou para as tabernas, a fim de trocar impressões sobre as emocionantes ocorrências do dia, e Domingo Pérez acabou por encontrar o caminho da casa da irmã.


VIII.

Após a ceia, como de hábito, Domingo subiu para o seu quarto. Pouco depois Maria foi ter com ele. Tinha ouvido, lá em baixo, ler em voz sonora e dramática, e quando bateu
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à porta ele não respondeu. Entrou. Era um quarto pequeno e desguarnecido, que não continha mais do que um leito, um baú para a roupa, uma mesa e uma cadeira. Havia uma prateleira cheia de livros e livros espalhados na mesa, no soalho e sobre a arca. A cama estava desarrumada e Domingo atirara para ali a sua batina. Estava de calções e em mangas de camisa. Inúmeros papéis juncavam a mesa e a um canto do quarto via-se grande pilha de manuscritos. Maria suspirou ao ver aquela desordem a que jamais conseguira pôr termo. Sem tomar conhecimento da presença da irmã, ele continuou a declamar as falas de uma peça teatral.
- Quero falar contigo, Domingo - disse ela.
- Não me interrompas,, mulher. Escuta os versos gloriosos do maior génio dos -nossos tempos.
E continuou a vozear. Maria bateu com o pé.
- Larga esse livro, Domingo. Tenho uma coisa muito importante para te dizer.
- Vai-te daqui. Que coisa pode ser mais importante do que a divina inspiração dessa fénix da época, do incomparável Lope de Vega?
- Não sairei enquanto não me ouvires. Domingo atirou o livro, agastado.
- Então dize o que tens para dizer. Dize depressa e vai-te. Ela contou-lhe a história de Catalina: como a Virgem lhe
aparecera e lhe dissera que o bispo, filho de Dom Juan, tinha o poder de curá-la da sua enfermidade.
- Isso foi um sonho, minha pobre Maria - disse ele quando a irmã terminou.
- Foi o que eu lhe disse. Mas afirma que estava bem acordada. Não posso convencê-la do contrário.
Domingo ficou impressionado.
- Vou descer contigo. Quero ouvir essa história dos seus próprios lábios.
Pela segunda vez, Catalina narrou o incidente. A Domingo bastou um olhar para se convencer de que ela acreditava firmemente em cada palavra que dizia.
- Por que motivo estás tão segura de que não dormias, menina?
- Como podia eu pegar no sono àquela hora do dia? Tinha acabado de sair da igreja. Chorei, e quando cheguei a casa o meu lenço estava molhado de lágrimas: como podia enxugar os olhos enquanto dormia? Ouvi tanger os sinos quando o bispo e Don Manuel entraram na cidade. Ouvi as trombetas, os tambores e os gritos do povo.
- Não faltam ardis a Satanás para enganar os desprevenidos. A própria Madre Teresa de Jesus, a freira que fundou tantos conventos, receou por muito tempo que as suas visões fossem obras do demónio.
- Será possível a um demónio simular a doçura e a bondade de Nossa Senhora quando me falou?
- O diabo é bom actor - sorriu Domingo. - Quando Lope de Rueda se impacientava com os componentes da sua "troupe", dizia que, se o diabo quisesse trabalhar para ele, dar-lhe-ia de bom grado, em paga, todas as almas da companhia. Mas ouve, querida: nós sabemos que certas pessoas devotas receberam a graça de ver com seus próprios olhos Nosso Senhor e a Santíssima Virgem, mas receberam essa graça em recompensa de orações, jejuns, mortificações e de uma vida dedicada ao serviço do Senhor. Que fizeste tu para merecer
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um favor que só é concedido a outros ao cabo de longos anos de imolação de si mesmos?
- Nada - respondeu Catalina. - Mas sou pobre e desgraçada, implorei a Nossa Senhora que me socorresse e ela teve piedade de mim.
Domingo guardou silêncio por alguns momentos. Catalina era resoluta e voluntariosa, e ele tinha medo. A moça não fazia ideia dos perigos que corria.
- A Santa Madre Igreja não olha com indulgência as pessoas que afirmam ter comunicação com o Céu. O país está infestado de gente que pretende ter sido contemplada com privilégios sobrenaturais. Alguns são pobres criaturas iludidas que acreditam no que dizem; muitos são impostores que inventam tais coisas a fim de conquistar notoriedade ou ganhar dinheiro. O Santo Ofício persegue-os com razão, pois eles perturbam os ignorantes e muitas vezes levam-nos à heresia. A uns o Santo Ofício põe na prisão, a outros açoita, a uns manda para as galés, a outros para a fogueira, imploro-te, pelo amor que nos tens, que não divulgues nem uma só palavra do que nos contaste.
- Mas tio, querido tio, é toda a minha felicidade que está em jogo! Todos sabem que não há no reino homem mais santo do que o bispo. É coisa sabida que até os pedaços do seu hábito têm uma virtude milagrosa. Como poderei ficar calada, quando a Santíssima Mãe de Deus me disse pessoalmente que ele me pode curar deste mal que me roubou o amor do meu Diego?
- Não é só a ti que isso interessa. Se o Santo Ofício resolver fazer um inquérito, é bem possível que o meu processo seja reaberto, pois o Santo Ofício tem a memória comprida, e se nos puserem nos cárceres da Inquisição esta casa será vendida
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para pagar as despesas do nosso sustento e tua mãe ver-se-á lançada às ruas, onde terá de mendigar o seu pão. Promete-me ao menos que não dirás nada até que tenhamos tempo de reflectir.
Domingo tinha um ar de tamanha consternação, de tão profunda ansiedade, que Catalina cedeu.
- Sim, isso eu prometo.
- És uma excelente menina. Agora deixa que tua mãe te ponha na cama, pois todos nós estamos cansados de um dia tão cheio de acontecimentos.
Beijou-a e deixou as duas mulheres, a sós, mas chamou a irmã do alto da escada. Ela veio atendê-lo.
- Dá-lhe um purgante - murmurou Domingo. - Com os intestinos a funcionar bem ela mostrar-se-á mais razoável, e amanhã poderemos convencê-la de que tudo isso não passou de um sonho muito infeliz.


IX.

Mas o purgante não produziu efeito - pelo menos o efeito desejado. Catalina continuou a asseverar que tinha visto a Virgem Santíssima com os seus próprios olhos e falado com ela. Descrevia-lhe as vestes com tamanha precisão que Maria Pérez encheu-se de assombro. Ora, sucedeu que o dia seguinte era sexta-feira e Maria foi confessar-se. Havia muitos anos que tinha o mesmo confessor, o padre Vergara, e confiava tanto
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na benevolência como na prudência deste. Portanto, depois de receber a absolvição ela contou-lhe a estranha história de Catalina e repetiu-lhe grande parte do que Domingo havia dito. - Seu irmão portou-se com uma discrição e um bom-senso admiráveis, sobretudo porque tais qualidades não seriam de esperar nele. Este assunto deve ser tratado com cautela. Não devemos fazer nada às pressas. É preciso evitar o escândalo e a senhora deve ordenar à sua filha que não fale nisso a ninguém. Vou reflectir e, se necessário, consultarei o meu superior.
O confessor de Maria também o era de Catalina e conhecia a ambas tão bem como só um confessor pode conhecer as suas penitentes. Sabia-as simples, honestas, sem malícia e tementes a Deus. O próprio Domingo não lhes pudera corromper a inocência ou empanar-lhes a candura. Catalina era uma menina sensata, dona de uma cabeça sólida, e se não suportava com resignação a sua invalidez não se podia negar que a suportasse com coragem. Era ingénua de mais para ter inventado aquela história com segundas intenções. Além disso, estava convencido de que a natureza excessivamente material da jovem não era capaz de imaginar um acontecimento espiritual. O padre Vergara era dominicano e fora no seu convento que o bispo se hospedara com a sua comitiva. Homem simples e de medíocre cultura, a história da aventura de Catalina contada pela mãe desta perturbou-o de tal forma que se sentiu na obrigação de referi-la ao seu prior. Este reflectiu e chegou à conclusão de que era preciso informar o bispo; mandou, pois, um noviço perguntar-lhe se podia ouvi-los, a ele e ao padre Vergara, a respeito de um assunto que talvez fosse de importância.
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Daí a pouco o noviço voltou dizendo que o bispo teria prazer em recebê-los.
Tinham-lhe dado a cela mais espaçosa do convento. Uma dupla arcádia com um pilar de suporte separava-a em duas partes, uma das quais servia de alcova e a outra de oratório. Ao entrarem o prior e o padre Vergara, encontraram o bispo a ditar cartas a um dos seus secretários. O prior explicou a que tinham vindo e deixou que o padre Vergara repetisse ponto por ponto o que lhe dissera a sua penitente. O frade começou por expor ao bispo o quanto as duas mulheres eram honestas e devotas, a existência irrepreensível que levavam, depois descreveu o fatal acidente em consequência do qual a infeliz Catalina havia perdido o uso da perna e as atenções do seu namorado, e terminou repetindo a história da aparição da Santíssima Virgem, a qual dissera à menina que o bispo a curaria da sua enfermidade. Pensando bem, resolveu acrescentar que Domingo Pérez, o tio da menina lhe arrancara a promessa de conservar sigilo sobre o episódio enquanto o assunto não fosse devidamente examinado. Quando ele terminou, o rosto do bispo assumira uma expressão de tal severidade que o frade, com a voz estrangulada, suava por todos os poros. Fez-se um silêncio.
- Eu conheço esse Domingo - disse o bispo afinal. - É um homem de má vida, com quem nenhuma pessoa que preze a salvação da sua alma deveria manter relações. Mas não é tolo. Ao exigir da sobrinha a promessa de segredo, agiu com prudência. É também o confessor da menina, padre? - O outro fez uma reverência. - Fará bem em recusar-lhe a absolvição enquanto ela não prometer que não falará nisso a ninguém.
O padre frade arregalou os olhos para o bispo, cheio de
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confusão. Não era ele, pelo consenso geral, um santo? O padre Vergara julgava que ele receberia de braços abertos essa oportunidade de exercer os seus poderes milagrosos, com o que não só glorificaria o Senhor mas conduziria muitos pecadores ao arrependimento. O olhar do bispo era frio. Dir-se-ia que só por um esforço de vontade ele conseguia dominar a sua cólera.
- E agora, se me dão licença, vou prosseguir o meu trabalho - disse ele; e, voltando-se para o secretário: - Leia de novo a última frase que ditei.
Os dois frades retiraram-se timidamente, sem dizer mais uma só palavra.
- Por que estará ele tão vexado? - perguntou o padre Vergara.
- Não devíamos ter-lhe falado nisso. A culpa é minha. Ofendemos a sua humildade. Ele não sabe que grande santo é e não se julga digno de fazer um milagre.
A explicação parecia muito razoável e, como redundava em maior crédito para o bispo, o padre Vergara apressou-se a contar tudo aos seus confrades. Dentro em pouco o convento zumbia de excitação. Alguns louvavam a modéstia do bispo, outros lamentavam que ele não tivesse aproveitado essa ocasião de fazer alguma coisa que tanto exaltaria o seu renome e a boa fama da ordem.
Entrementes, a história havia alcançado outros ouvidos. A igreja em que Catalina estivera a rezar e de onde, a dar-lhe crédito, a Santíssima Virgem tinha saído pertencia, como dissemos, ao convento carmelita da Encarnação. Era o convento ricamente dotado e havia muitos anos que a prioresa tinha o hábito de dar trabalho a Maria Pérez, em parte por caridade
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e em parte por ser ela habilíssima no difícil e trabalhoso ofício que exercia. Maria viera, desse modo,, a fazer amizade com muitas dentre as religiosas. Como se tratasse de um convento de ordem mitigada, gozavam elas de bastante liberdade e não era raro que uma das freiras lhe viesse à casa almoçar e conversar. Dois ou três dias após a confissão de Maria, necessitou esta de ir ao convento e, após cumprir a sua obrigação, pôs-se a tagarelar com a freira que era sua amiga mais íntima. Exigindo-lhe juramento de segredo, contou-lhe o estranho facto que ocorrera à sua filha. As religiosas eram muito palradeiras e semelhante história não podia deixar de ser um grande acontecimento na rotina piedosa mas monótona das suas existências, de modo que ao cabo de vinte e quatro horas todas as moradoras do convento estavam informadas e o caso acabou por chegar aos ouvidos da prioresa. Como esta senhora desempenha um papel de certa importância na nossa narrativa, torna-se necessário contar aqui a sua história, ainda que com risco de aborrecer o leitor.


X.

Beatriz Henríquez y Bragamza, na vida religiosa Beatriz de San Domingo, era filha única do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Tinha grande fortuna e era poderosíssimo. Logrou conservar a confiança do sombrio e desconfiado Filipe II e exerceu com distinção importantes cargos na Espanha e na Itália. Possuía vastas
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propriedades em ambos os países e, embora os seus deveres o forçassem a morar ora aqui ora ali, não havia para ele nada melhor do que viver com a esposa e os filhos - pois tinha três-, dois homens e uma mulher - na cidade em que nascera, com os seus ares saudáveis e as suas grandiosas vistas. Era ali que se originara a sua raça e fora graças à repulsa, por um dos seus antepassados, das tropas mouras que assediavam a cidade, que a família começara por adquirir eminência. Não existia ali ninguém maior do que o duque de Castel Rodríguez, o qual vivia numa propriedade quase régia. Como durante toda a história da família os seus membros houvessem contraído grandes alianças, ela achava-se relacionada com os mais magníficos nobres de Espanha. Ao fazer treze anos sua filha, Beatriz, ele procurou um esposo que lhe conviesse, e após passar em revista vários candidatos possíveis decidiu-se pelo filho único do duque de Anteguera, O qual descendia por vias espúrias de Fernando de Aragão. O duque de Castel Rodríguez prontificava-se a dar à filha um dote magnífico, e assim o assunto foi resolvido sem dificuldade. Realizaram-se os esponsais dos dois jovens, mas como o rapaz não tinha mais de quinze anos combinou-se que só se faria o casamento quando ele alcançasse uma idade apropriada. Beatriz teve permissão de ver o futuro marido em presença dos pais deste e dos seus, dos tios e tias e outros parentes mais distantes. Era um rapazinho atarracado, de estatura não maior que a dela, áspera gaforinha preta, nariz arrebitado e boca mal-humorada. Concebeu uma imediata antipatia por ele, mas sabia que era inútil protestar e contentou-se em lhe fazer caretas. Ele respondeu mostrando-lhe a língua.
Depois dos esponsais o duque mandou-a terminar a sua
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educação no convento carmelita da Encarnação, em Ávila, onde sua irmã era prioresa. Ela achou divertida a vida do convento. Havia ali outras meninas, filhas de famílias nobres, em situação idêntica à sua, e várias senhoras que por uma razão ou por outra viviam como pensionistas no convento sem estar sujeitas à disciplina deste. A regra suavizada das carmelitas era bastante suportável e, embora algumas das freiras se dedicassem à prece e à contemplação, muitas delas, sem negligenciar os seus deveres, saíam e iam visitar as pessoas amigas, ausentando-se por vezes durante semanas inteiras. A sala de visitas estava sempre cheia de pessoas de ambos os sexos, de modo que se fazia ali uma alegre vida social. Armavam-se casamentos, discutia-se o andamento das guerras e permutavam-se os mexericos da cidade. Era uma existência pacífica e inofensiva, com diversões modestas, e para as freiras não representava um caminho muito árduo para a eterna bem-aventurança.
Na idade de dezasseis anos foi Beatriz tirada do convento e desceu com a mãe para Castel Rodríguez, acompanhada de um batalhão de criados. A duquesa não estava bem de saúde e os médicos tinham-lhe recomendado que fosse viver num clima menos rigoroso que o de Madrid. Preso pelos assuntos de estado, o duque ficou a contragosto na capital. Aproximava-se a época em que deveria realizar-se o casamento de Beatriz e seus pais achavam conveniente que ela aprendesse alguma coisa sobre o modo de dirigir um grande solar. A duquesa passou, pois, alguns meses ensinando à filha as normas sociais que ela não podia ter aprendido no convento das carmelitas. Beatriz fizera-se uma jovem alta, de grande beleza, com uma pele clara e sem marcas de bexigas, feições de uma regularidade clássica,
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talhe esguio e flexível. Os espanhóis daquela época apreciavam formas mais opulentas e algumas das senhoras que vinham prestar os seus respeitos à duquesa lamentavam-lhe a magreza, mas a desvanecida mãe respondia que o casamento não tardaria a remediar esse defeito.
Nesse tempo Beatriz era alegre,, apaixonada pela dança e estuante de vitalidade animal. Era travessa e voluntariosa. Já então possuía um génio autoritário, pois haviam-na estragado com mimos, e sempre teve o hábito de impor a sua vontade aos que a cercavam. Desde pequena compreendera que estava destinada pelo nascimento às altas posições de mando e que o resto da humanidade devia submeter-se aos seus caprichos. O seu confessor, bastante preocupado com esse desejo de domínio, falou nisso à duquesa:, mas esta não se mostrou muito impressionada com a advertência.
- Minha filha nasceu para mandar, padre. Não se pode esperar dela o servilismo de uma lavadeira. Se o seu temperamento é excessivamente orgulhoso, o marido, caso tenha carácter, o modificará sem dúvida .alguma, e caso não o tenha o sentimento do que lhe é devido, que não falta a Beatriz, será benéfico para ele também.
No convento, Beatriz tomara-se de entusiasmo pelos romances de cavalaria a que algumas das senhoras pensionistas eram muito afeiçoadas. Embora a freira encarregada de zelar pelas alunas não lhe permitisse lê-los, de quando em quando ela conseguia lançar um olhar furtivo a essas histórias intermináveis. Quando veio para Castel Rodríguez encontrou vários no palácio e, como a mãe estivesse muitas vezes indisposta e a "duena" fosse indulgente, devorou-os com avidez. A sua imaginação juvenil inflamou-se e começou a pensar com fastio no
inevitável casamento com o rapaz que ela ainda via como um garoto achaparrado, mal enjambrado e birrento. Tinha consciência da sua beleza e na missa, na companhia da mãe, não perdia nenhum dos olhares de admiração que lhe deitavam os jovens casquilhos da cidade. Reuniam-se na escadaria da igreja para vê-la sair e, embora Beatriz andasse com os olhos modestamente baixos, ao lado da duquesa, seguida pelos dois lacaios de libré que carregavam as almofadas de veludo sobre as quais se haviam ajoelhado durante o serviço divino, percebia a sensação que causava e o seu ouvido apanhava os elogios que os rapazes, segundo o costume espanhol, diziam à sua passagem. Conquanto nunca olhasse para eles, conhecia-os a todos de vista e não tardou a descobrir-lhes os nomes, a que famílias pertenciam e, na verdade,, tudo que era possível saber a respeito deles. Uma ou duas ocasiões os mais ousados cantaram-lhe serenatas, mas a duquesa mandava imediatamente os criados enxotá-los. Certa feita encontrou uma carta em cima do seu travesseiro. Adivinhou que uma das criadas fora paga para a pôr ali. Abriu o sobrescrito e leu-a duas vezes, depois rasgou-a em pedacinhos e queimou-os à chama das velas. Foi a primeira e a única carta de amor que recebeu na sua vida. Não trazia assinatura e ela não podia adivinhar de quem provinha.
Devido ao mau estado da sua saúde a duquesa achava suficiente assistir à missa nos domingos e dias de festa, mas Beatriz ia todas as manhãs com a "duena". A missa realizava-se muito cedo e eram poucas as pessoas que se encontravam na igreja, mas havia um seminarista que nunca faltava. Era alto e magro, de feições resolutas, olhos escuros e apaixonados.
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Por vezes, quando andava com a "duena" no desempenho de alguma piedosa missão, ela passava pelo moço na rua.
- Quem é esse? - perguntou Beatriz um dia em que o viu caminhar lentamente na sua direcção, a ler um livro.
- Esse? Ora, ninguém. É o filho mais velho de Juan Suárez de Valero. "Hidalguía de gutierra".
Esta expressão, que pode ser traduzida por "nobreza de sarjeta", era o termo desdenhoso aplicado aos fidalgos de nascimento que não tinham meios para viver de acordo com a sua posição. A "duena", uma viúva vagamente aparentada ao duque, era orgulhosa, devota;, criticadora e sem vintém. Residira toda a vida em Castel Rodríguez, até que, ao deixar Beatriz o convento, o duque a tinha escolhido para dama de companhia da filha. Conhecia todos os habitantes da cidade como as palmas das suas mãos, e apesar de muito piedosa não resistia à tendência de falar mal do próximo.
- Que faz ele aqui nesta época do ano? - indagou Beatriz. A "duena" sacudiu os ombros magros. - Adoeceu no seminário por excesso de trabalho e os médicos desesperaram de salvá-lo. Mandaram-no para casa, a ver se recobrava a saúde, e por mercê divina foi o que sucedeu. Dizem-no muito talentoso. Segundo creio, seus pais esperam que ele obtenha um benefício graças à influência do duque seu pai.
Beatriz nada mais disse.
Mas, por alguma razão que os médicos não podiam descobrir, começou a perder o apetite e a animação. Também perdeu a cor fresca das faces e tornou-se pálida. Andava apática e muitas vezes iam encontrá-la banhada em lágrimas. Ela, cuja alegria, cujo carácter encantadoramente caprichoso e irresponsável
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tinham dado vida àquele palácio sombrio e magnificente, andava agora entregue à tristeza e ao desalento. A duquesa não sabia o que fazer e, temendo que a menina fosse de mal a pior, escreveu ao marido pedindo que viesse vê-las, a fim de resolverem sobre o melhor caminho a seguir. Ele veio e ficou estupefacto com a mudança que se operara na filha. Beatriz estava mais (magra do que nunca e tinha manchas negras debaixo dos olhos. Chegaram à conclusão de que o melhor alvitre era casá-la sem demora, mas ao fazerem essa proposta a Beatriz ela teve um acesso de nervos, pondo-se aos gritos, o que os deixou ainda mais alarmados. Desistiram de voltar por ora ao assunto. Deram-lhe mesinhas, alimentaram-na a leite de mula e sangue de boi, mas, se bem que Beatriz engolisse obedientemente tudo quanto lhe davam,, nada produziu efeito. Continuava pálida e desalentada. Fizeram o possível para distraí-la. Pagaram a músicos que tocavam para ela; levaram-na a assistir a uma peça religiosa na colegiada, levaram-na às touradas - apesar de tudo, ela continuava a definhar. A "duena" tomara grande afeição à sua pupila e, como Beatriz já não se interessasse pelos romances que tinham constituído o seu maior entretenimento, ela não encontrava outro modo de divertir a doente senão contando-lhe os mexericos da cidade. Beatriz ouvia polidamente, mas sem interesse. Certa ocasião ela mencionou de passagem que o filho mais velho de Juan Suárez de Valero tinha ingressado na ordem dos dominicanos. Continuou a tagarelar sobre uma pessoa e outra, quando de súbito notou que Beatriz perdera os sentidos. Gritou por socorro e Beatriz foi posta na cama.
Um ou dois dias depois, estando já melhor, pediu permissão para ir confessar-se. Havia várias semanas que recusava
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fazê-lo, dizendo não se sentir muito bem, e o confessor da duquesa, que também o era de Beatriz, concordou em que era preferível não insistir. Dessa vez tanto o pai como a mãe tentaram dissuadi-la, mas a jovem instou e chorou tão amargamente que afinal cederam. Mandaram sair a grande carruagem, usada apenas nas ocasiões solenes, e ela dirigiu-se para a igreja dominicana acompanhada pela "duena". Ao voltar parecia-se mais com a antiga Beatriz. Tinha uma leve cor nas faces pálidas e nos seus bonitos olhos brilhava uma nova luz. Ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe permissão para fazer-se freira. Foi para ele um grande choque, não só porque não queria perder a filha única mas também porque não lhe agradava desistir da importante aliança que havia projectado. Era, no entanto, um homem bondoso e devoto, e respondeu sem aspereza que decisões como aquela não deviam ser tomadas levianamente e, de qualquer modo, o assunto estava fora de cogitação enquanto o estado da sua saúde fosse tão precário. Ela disse-lhe que tinha conversado a respeito com o seu confessor e este dera plena aprovação à ideia.
- Sem dúvida, o padre Garcia é muito digno e muito piedoso - disse o duque,, franzindo de leve o sobrolho - , mas a sua profissão impede-o, talvez, de compreender quanto são grandes as responsabilidades ligadas à nobreza e às altas posições. Falarei amanhã com ele.
Assim, no dia seguinte o frade foi chamado ao palácio ducal e levado à presença do duque e da duquesa. Sabiam estes, naturalmente, que ele não revelaria nada do que Beatriz lhe dissera no confessionário, e não tentaram averiguar se ela lhe dera a conhecer algum motivo capaz de justificar uma resolução que tanto os contrariava, Disseram-lhe, contudo, que
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embora ela observasse os preceitos da Igreja, era de natural alegre, amiga de toda a sorte de diversões, e nunca mostrara qualquer inclinação para a vida religiosa. Falaram-lhe do grande casamento que tinham arranjado para ela e dos transtornos que adviriam da sua ruptura, assim como dos ressentimentos que isso iria causar; e, finalmente, com todo o respeito devido ao seu hábito, insinuaram que não fora prudente da sua parte aprovar um desejo evidentemente nascido da misteriosa doença de Beatriz. Esta era jovem e tinha uma constituição saudável. Não havia razão para supor que continuasse com as mesmas ideias quando recobrasse a saúde. O dominicano mostrou uma singular obstinação. Achava o desejo de Beatriz muito forte para que se lhe pudessem opor e a vocação da jovem parecia-lhe autêntica. Foi ao ponto de dizer a esses grandes personagens que não tinham direito a impedir sua filha de tomar uma resolução que lhe traria a paz neste mundo e a bem-aventurança no outro. Foi essa a primeira de uma série de discussões. Beatriz permaneceu firme na sua decisão e o confessor apoiou-lhe o desejo com todos os argumentos persuasivos de que pôde lançar mão. Por fim o duque prometeu dar a sua anuência se, ao cabo de três meses, ela ainda desejasse entrar para o convento.
A partir de então Beatriz começou a melhorar. Volveram-se os três meses e ela entrou como noviça na comunidade das carmelitas de Ávila. Toda. de veludo e cetim, ataviada com as suas jóias, foi acompanhada ao convento pela família e numerosos cavalheiros,, dos mais nobres da cidade. À porta disse adeus a todos, alegremente, e foi recebida pela porteira. Mas o duque também fizera os seus planos para enfrentar a situação. Em sua própria honra e para maior glória do
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Senhor, resolveu fundar em Castel Rodríguez um convento para onde sua filha pudesse recolher-se logo que terminasse o noviciado e do qual no devido tempo se tornasse superiora. Possuía imóveis na cidade e escolheu junto aos muros um local apropriado para tal fim. Construiu ali uma linda igreja,, um claustro, pavilhões adequados à vida de sociedade, e mandou plantar um jardim. Contratou o melhor arquitecto que se podia encontrar, os melhores escultores, os melhores pintores, e quando tudo ficou pronto Beatriz, conhecida agora como Dona Beatriz de San Domingo, veio instalar-se no palácio com várias freiras de Ávila, escolhidas pela sua virtude, inteligência e importância social. O duque havia determinado que nenhuma freira fosse aceite a menos que pertencesse a família nobre. Escolheu-se uma superiora, ficando entendido que esta se retiraria logo que Beatriz de San Domingo alcançasse a idade necessária para substituí-la. A instâncias do duque, a "duena" entrara num convento de Castel Rodríguez ao mesmo tempo que Beatriz ia para Ávila e estava em condições de reunir-se à sua antiga pupila. O padre Garcia rezou missa, o Santíssimo Sacramento foi entronizado e as freiras instalaram-se na nova instituição.
Na época de que trata a nossa narrativa, havia já alguns anos que Beatriz de San Domingo era prioresa do convento. Conquistara o respeito dos cidadãos de Castel Rodríguez e a admiração, senão o afecto, das suas freiras. Jamais esquecia a sua alta posição, mas também tinha sempre em mente a origem nobre de suas filhas espirituais. No refeitório sentavam-se na devida ordem de precedência, mas quando surgiam disputas a esse respeito, como sucedia algumas vezes, Dona Beatriz procedia com firmeza. Impunha uma disciplina rigorosa e, por
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mais bem nascida que fosse uma freira, não hesitava em mandá-la açoitar quando as suas ordens eram desobedecidas. O convento estava submetido à regra mitigada do Papa Eugénio IV e, contanto que as freiras desempenhassem os seus deveres religiosos, ela não via razão para destituí-las dos privilégios que lhes foram concedidos. Tinham permissão de visitar as pessoas amigas na cidade e, em havendo motivo justificado, até podiam passar longas temporadas com os parentes em outras localidades. Vinham muitas visitas ao convento, tanto leigos como clérigos; várias senhoras, como em Ávila, viviam ali por gosto; havia, desse modo, abundante e agradável intercâmbio social. O silêncio era obrigatório das completas às primas. Irmãs leigas faziam o trabalho do convento, a fim de dar mais tempo às freiras para as devoções e ocupações mais nobres. Mas, apesar de toda essa liberdade e dessas tentações mundanas, jamais um sopro de escândalo empanara o bom nome das virtuosas mulheres. Tal fama desfrutava a comunidade que a superiora não podia atender a todas as candidatas, de forma que tinha ensejo de mostrar-se muito exigente no exame destas.
Levava uma vida atarefada. Além dos seus deveres religiosos, tinha de fiscalizar a economia do convento, vigiar o comportamento das freiras e zelar pela saúde destas, tanto física como espiritual. A instituição fora ricamente dotada de terras, bem como de casas na cidade, e a prioresa tinha de tratar com os feitores que cobravam os aluguéis e com os camponeses que cultivavam as terras. Visitava-os amiúde para ver se tudo corria bem e se as plantações se achavam em bom estado. Como a regra lhe permitia ter propriedades privadas, o duque passara-lhe em vida algumas casas e um belo solar, e por morte
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dele Beatriz herdara muito mais ainda. Administrava tudo tão bem que podia todos os anos distribuir uma soma considerável em esmolas. O restante, gastava-o em aformosear a igreja, o refeitório e a sala de visitas e em construir oratórios no jardim, aos quais as freiras podiam recolher-se para se entregar às suas meditações. A igreja tinha magnífico aspecto. Os vasos sagrados eram de ouro puro e a custódia, cravejada de pedras preciosas. Os retábulos que decoravam os diversos altares tinham ricas molduras de madeira dourada e primorosamente lavrada, e as imagens do Salvador e da Virgem Santíssima vestiam grandes mantos de veludo ricamente bordados de ouro (por Maria Pérez) e as suas coroas chamejavam de pedrarias, preciosas e semipreciosas.
Para celebrar o vigésimo aniversário da sua consagração, Dona Beatriz construíra uma capela, dedicando-a a São Domingos, por quem tinha devoção especial, e ao ouvir dizer a uma das irmãs, natural de Toledo, que existia lá um pintor grego cujos quadros exaltavam extraordinariamente a devoção do fiel, escreveu a seu irmão o actual duque, encomendando um retábulo. Como era uma mulher prática, deu as dimensões exactas. Mas o irmão respondeu que el-rei encomendara a esse mesmo grego um painel de São Maurício e da Legião Tebana para a sua nova igreja do Escurial, mas ao receber a pintura ficara tão descontente com ela que não a deixara instalar. Em tais condições, o duque achava que seria indiscrição da parte dela dar trabalho a esse pintor. Mandava-lhe, por isso, de presente um quadro de Lodovico Cardacci, artista famoso na Itália, quadro que, por coincidência, tinha exactamente as dimensões pedidas.
Ao construir o convento, o falecido duque, seu pai,
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destinara para ela um apartamento que ocuparia quando fosse superiora e que não era menos elegante do que adequado ao seu cargo e posição. Havia num dos andares uma cela a que ninguém era admitido, salvo a irmã encarregada de proceder à sua limpeza e mantê-la em ordem!, e dali uma pequena escada conduzia a um oratório situado no andar de cima. Era nessa cela que ela fazia as suas devoções pessoais, atendia os assuntos do convento e recebia visitas. Era um aposento severo, mas majestoso. Acima do altarzinho diante do qual fazia as suas orações achava-se um grande crucifixo com a figura de Cristo esculpido em madeira, quase em tamanho natural e pintada com muito realismo, enquanto que a sua mesa de trabalho era encimada por um quadro de certo pintor catalão, o qual representava a Virgem cercada de glória. Nessa época, estava Dona Beatriz entre os quarenta e os cinquenta, mulher alta e magra, de olhos grandes e sombrios, quase sem rugas no rosto. A idade afinara-lhe as feições e adelgaçara-lhe os lábios, de modo que tinha a beleza calma e severa dessas esposas de cavaleiros que se vêem nos túmulos góticos. Mantinha-se sempre muito erecta. Havia no seu porte algo de imperioso que dava a entender que ela não considerava a ninguém seu superior e a muito poucos como seus iguais. Tinha uma veia de humorismo austero e mesmo sarcástico, e embora sorrisse muitas vezes, era com uma espécie de grave indulgência. Quando ria, o que era raro, dava a impressão de sofrer.
Tal era, pois, a mulher a cujos ouvidos chegou o rumor de que a Santíssima Virgem tinha aparecido a Catalina Pérez na escadaria da igreja das carmelitas.

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XI.

Dona Beatriz era não somente uma óptima organizadora, como boa cabeça para os negócios, mas também uma mulher de grande inteligência e sensatez. Sempre desfavorecera as visões, êxtases e graças especiais entre as suas freiras. Não lhes permitia dar-se a uma austeridade excessiva nem a mortificações além das prescritas pela Regra. Nada lhe passava despercebido, e quando uma delas mostrava sinais de uma religiosidade que a superiora achasse exagerada,, administrava-lhe logo um purgante, proibiam-na de jejuar e, se isso não bastasse, era mandada passar algumas semanas agradáveis em casa de amigos ou parentes. O rigor de Dona Beatriz nesse ponto tinha raiz na lembrança dos aborrecimentos e do escândalo provocados no convento de Ávila por uma freira que afirmava ter visto Jesus Cristo, a Santíssima Virgem e vários santos e ter recebido deles graças especiais. A superiora não rejeitava a possibilidade de tais ocorrências,, visto ser certo que alguns santos haviam recebido favores análogos, mas não podia crer que a freira de Ávilai, Teresa de Gepeda, com quem falara muitas vezes quando aluna do convento, fosse outra coisa senão a vítima histérica e iludida de uma desenfreada fantasia.
Era altamente improvável que houvesse qualquer coisa de verdadeiro na estranha história de Catalína. Como as freiras, porém, estivessem tão alvoroçadas com aquilo que não falavam de outra coisa, Dona Beatriz achou de bom aviso mandar chamar a jovem e ouvir o caso dos seus próprios lábios. Chamou uma das freiras e disse-lhe que fosse buscar a rapariga.
A freira voltou daí a pouco, informando-a de que Catalina estava disposta a obedecer à ordem da Reverenda Madre, mas que o seu confessor a proibira de repetir a história a quem quer que fosse. Dona Beatriz, pouco habituada a que a contrariassem, franziu o sobrolho, e quando ela o fazia todas as habitantes do convento se punham a tremer.
- A mãe da moça está aqui, Reverenda Madre - disse a freira, sustendo a respiração.
- De que me pode servir a mãe?
- Ela ouviu a história dos lábios da moça logo depois de Nossa Senhora lhe ter aparecido. O padre não pensou em proibi-la também de falar no caso.
Um sorriso austero encrespou os lábios pálidos da prioresa.
- Um homem digno, mas pouco previdente. Você fez bem, minha filha. Vou receber a mulher.
Maria Pérez foi introduzida no oratório. Tinha visto muitas vezes a superiora, mas nunca lhe falara e estava nervosa. Encontrou Dona Beatriz sentada numa cadeira de encosto alto, com assento e costas de couro, cujo topo era decorado com folhas de acanto em madeira dourada. Maria Pérez não cria que uma rainha pudesse parecer mais distante, solene e orgulhosa. Ajoelhou-se e beijou a mão branca e esguia que lhe ofereciam. Depois, como lhe ordenassem que dissesse o que tinha vindo dizer, repetiu palavra por palavra o que lhe contara Catalina. Quando ela terminou, a prioresa inclinou de leve a nobre cabeça.
- Pode ir.
Ficou algum tempo a reflectir, depois sentou-se à mesa e escreveu uma carta rogando ao Bispo de Segóvia que lhe
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fizesse a honra de vir vê-la, pois desejaria falar-lhe sobre um assunto que parecia de importância. Enviou a carta e dentro de uma hora recebeu a resposta. Em tom não menos cerimonioso, dizia o bispo que obedeceria com prazer à ordem da Reverenda Madre, visitando o convento no dia seguinte.
Houve uma comoção entre as freiras quando souberam que uma pessoa tão eminente e santa era esperada ali e imediatamente concluíram, com acerto, que a visita estava relacionada à misteriosa aparição da Virgem Santíssima nos degraus da bela igreja do convento. Veio ele à tarde, depois da sesta que as freiras costumavam fazer no Verão, acompanhado pelos dois frades seus secretários, e foi recebido pela subprioresa na sala de visitas. Com grande pesar seu,, as freiras tinham recebido ordem de permanecer nas suas celas. Tendo beijado o anel do bispo, a subprioresa disse-lhe que ia conduzi-lo à presença da senhora superiora. Os dois frades dispuseram-se a acompanhá-lo.
- A Reverenda Madre deseja falar em particular com Vossa Senhoria - disse ela humildemente.
O bispo hesitou um instante, depois inclinou ao de leve a cabeça, consentindo. Os frades voltaram aos seus lugares e o bispo seguiu a freira pelos corredores btrancos e frescos e subiu o lance de escada que levava ao oratório. Ela abriu a porta e arredou-se para deixá-lo entrar. Dona Beatriz levantou-se para vir ao encontro do bispo e, ajoelhando-se, beijou o anel episcopal. Depois indicou-lhe uma cadeira e sentou-se.
- Esperava que Vossa Senhoria se dignasse visitar o nosso convento, mas como não viesse tomei a liberdade de convidá-lo.
- Meu mestre de teologia em Salamanca aconselhava-me
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que tratasse o menos possível com mulheres, que fosse cortês com elas mas as mantivesse à distância.
Ela não deu a resposta ácida que tinha na ponta da língua,, mas ao invés disso considerou-o com atenção. Ele baixou os olhos e ficou à espera. A superiora não tinha pressa de falar. Fazia quase trinta anos que não o via e essas eram as primeiras palavras que trocavam. Ele vestia um hábito velho e remendado. Tinha a cabeça rapada à navalha, com excepção do anel de cobalto preto,, semeado de raros fios brancos, que simbolizavam a Coroa de Espinhos. As têmporas eram reentrantes, as faces cavadas; o rosto, coberto de rugas profundas, exibia sinais de sofrimento; só restavam os olhos escuros e apaixonados, em que brilhava uma luz estranha, para lembrar-lhe o jovem seminarista a quem tinha conhecido muito tempo atrás - conhecido e amado tão loucamente.
Aquilo começara como uma travessura. Beatriz tinha-o notado a primeira vez que ele servira a missa, como fazia algumas ocasiões, na igreja que ela frequentava com a sua "duena". Já então ele era magro, de cabelos negros e bastos, pois usava apenas a tonsura das ordens menores, tinha feições bem definidas e uma graça singular no porte. Parecia-se com um desses santos que recebiam a vocação em meninos,, tornando-se objectos de veneração para todos e morrendo moços e aureolados de beleza. Quando não estava servindo a missa ia ajoelhar-se na capelinha, entre as poucas pessoas que ali se encontravam àquela hora. Atento às suas devoções, nunca desviava os olhos do altar. Beatriz, naquela época, era uma jovem estouvada e folgazã. Conhecia o poder devastador dos Seus olhos maravilhosos. Pareceu-lhe que seria uma óptima brincadeira fazer com que o jovem seminarista lhe prestasse
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atenção. Fixou nele, pois, o olhar, desejando com todas as suas forças que ele olhasse para o seu lado. Continuou a fazê-lo durante vários dias, em vão, mas certa manhã teve a intuição de que ele estava perturbado. Não saberia dizer o que lhe dava essa impressão, mas tinha a certeza. Esperou, sustendo o fôlego. Ele ergueu os olhos de repente, como se ouvisse um ruído inesperado, e, encontrando o olhar dela, desviou vivamente o rosto. Desde então Beatriz absteve-se de relancear sequer os olhos para ele, mas um ou dois dias depois, embora mantivesse a cabeça baixa como se estivesse a rezar, teve consciência de que ele a fitava. Ficou perfeitamente imóvel, mas semtia-lhe o olhar perplexo, um olhar que ele nunca havia dirigido a ninguém até então. Experimentou um estremecimento de triunfo e, alçando a cabeça, encarou-o de propósito. Como da outra vez, ele desviou os olhos o mais depressa que pôde e Beatriz viu um rubor de vergonha banhar-lhe o rosto.
Por duas ou três ocasiões, ao andar na rua com a "duena", viu-o caminhar na sua direcção, e embora passasse por elas desviando o rosto, Beatriz sabia-o emocionado. Uma vez mesmo, ao avistá-las, ele tinha girado nos calcanhares e voltado pelo mesmo caminho. Beatriz desatou a rir como louca, a ponto de lhe perguntar a "duena" o que achava tão engraçado, e ela teve de dizer a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Certa manhã, sucedeu que ambas entrassem na igreja no momento em que o seminarista mergulhava os dedos na água benta para persignar-se. Beatriz estendeu a mão para tocar-lhe nos dedos, recebendo dessa forma a água benta. Era um acto costumeiro e natural, e ele não podia recusar. Ficou muito pálido e, mais uma vez, os olhos de ambos se encontraram. Foi apenas um instante,, mas nesse instante Beatriz compreendeu
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que ele a amava com um amor humano, o amor que um rapaz apaixonado dedica a uma bela jovem, e ao mesmo tempo sentiu uma dor aguda no coração, como se uma espada o trespassasse, e compreendeu que o amava com o mesmo amor humano, o amor de uma jovem apaixonada a um amável mancebo. Foi invadida pela alegria. Jamais conhecera tamanha felicidade.
Nesse dia ele serviu a missa. Beatriz não lhe tirava os olhos de cima. O coração pulsava-lhe com uma violência quase insuportável, mas a dor, se dor havia, era maior do que qualquer prazer já sentido por ela. Já havia descoberto que o mesmo encargo ou ocupação o obrigava a passar todos os dias diante do palácio ducal a uma hora certa, e tratou de sentar-se a uma janela de onde pudesse observar a rua. Via-o aproximar-se e retardar o passo, como que mau-grado seu, ao passar, depois via-o seguir caminho apressadamente, como se fugisse à tentação. Esperava que ele levantasse o olhar, mas o rapaz nunca o fazia. Uma vez, para apoquentá-lo, deixou cair um cravo no instante em que ele se aproximava. O seminarista alçou os olhos instintivamente, mas Beatriz recuou a fim de poder vê-lo sem ser vista. Ele deteve-se e apanhou a flor. Tomou-a com ambas as mãos, como se fosse uma jóia inestimável, e por um momento contemplou-a como que em êxtase. Depois atirou-a ao chão com um gesto violento, espezinhou-a no pó e fugiu, fugiu a correr tão depressa quanto podia. Beatriz desatou a rir mas, de repente desfez-se em lágrimas.
Como o rapaz passasse vários dias sem ir à missa, ela não pôde mais suportar a sua ansiedade.
- Que aconteceu àquele seminarista que costumava servir a missa?
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- perguntou à "duena". - Não o tenho visto ultimamente.
- Como posso sabê-lo? Imagino que tenha voltado para o seminário.
Nunca mais tornou a vê-lo. Havia compreendido o drama em que terminara a farsa armada por ela e lamentou amargamente a sua tolice. Amava-o com toda a ardente paixão do seu corpo jovem. Nunca fora contrariada em coisa alguma e enraivecia ao pensar que dessa vez a sua vontade seria frustrada. O casamemto que lhe tinham arranjado era um casamento de conveniência e ela aceitara-o como consequência da sua posição. Estava disposta a dar filhos ao marido, como era seu dever, mas resolvera não lhe dar mais importância do que se fosse um lacaio. Agora, porém, a ideia de unir-se àquele anão estúpido enchia-a de asco. Sabia que o seu amor a Blasco de Valero não podia dar em nada. É verdade que, estando ele nas ordens menores, havia a possibilidade de obter a sua secularização, mas Beatriz nem sequer necessitou lembrar-se de que seu pai jamais consentiria em semelhante aliança; o seu próprio orgulho não lhe permitia dar a mão em casamento a esse "fidalgo de sarjeta". E Blasco? Estava segura de que ele a amava, mas tinha ainda maior amor a Deus. Quando ele espezinhara, raivoso, a flor que ela deixara cair aos seus pés, fora para esmagar aquela paixão indigna que o horrorizava. Beatriz tinha sonhos terríveis, apavorantes, em que jazia nos braços dele, a boca contra a sua, o peito de Blasco a comprimir o seu, e acordava cheia de vergonha, angústia e desespero. Foi então que começou a enfermar. Ninguém lhe compreendia a doença, porém ela sabia de que se tratava: estava a morrer de mágoa. Foi ao ter conhecimento de que ele entrara
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numa ordem monástica que teve aquela inspiração. Sabia, como se o próprio Blasco lhe houvesse dito, que ao renunciar ao mundo ele procurava fugir dela; e isso dava-lhe uma estranha alegria, um sentimento de força triunfante. Faria a mesma coisa: o ingresso no convento a libertaria de uma união odiosa, e talvez encontrasse paz no amor divino. Num recanto do seu espírito, sem que a própria palavra interior lhe desse forma senão muito raramente, habitava a ideia de que naquela vida, por mais separados que estivessem, cada um devotado ao serviço do Altíssimo, existia entre ambos uma espécie de união mística. Tudo isso, que levamos tanto tempo a contar, passou como um relâmpago pela mente da fria e severa prioresa. Viu a sua história como se fosse um desses vastos afrescos pintados na longa parede de um claustro, e aos quais, entretanto, podemos abranger com um só olhar. Toda aquela paixão, que na sua tola mocidade ela julgava dever durar para sempre, havia muito que morreria. O tempo, a piedosa monotonia da vida conventual, as orações e os jejuns, os múltiplos deveres da sua posição, haviam-na embotado pouco a pouco e agora não passava de uma lembrança amarga. Ao olhar para esse homem tão gasto e emaciado, com aquela expressão de sofrimento, perguntava consigo se ele se recordaria de ter amado uma vez - contra a vontade,, sim, mas de todo o coração - uma linda jovem a quem nunca falara, mas que atormentava os seus sonhos. O silêncio era pesado ao bispo, que se remexia inquieto na cadeira.
- A Reverenda Madre disse ter um assunto de importância sobre o qual desejava consultar-me - falou ele.
- Sim, mas permita primeiro que apresente as minhas
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felicitações a Vossa Excelência pela dignidade que el-rei houve por bem conferir-lhe.
- Não posso ter senão a esperança de me mostrar à altura dos deveres pertinentes a tão alto cargo.
- Quanto a isso, não pode haver dúvidas no espírito de quem conheça o zelo e a discrição de que Vossa Excelência deu provas durante os dez amos que passou em Valência. Embora vivamos numa remota cidadezinha das montanhas, conseguimos manter-nos inteirados do que se passa nesse grande mundo, e não nos passou despercebida a fama conquistada pela austeridade, pela virtude e pelo incansável labor de Vossa Excelência em prol da pureza da nossa fé.
O bispo olhou-a um instante por baixo das sobrancelhas franzidas.
- Minha senhora, fico-lhe agradecido pela sua cortesia mas devo rogar-lhe que me poupe esses cumprimentos. Nunca senti prazer em ouvir comentários a meu respeito, feitos na minha presença. Ficar-lhe-ei grato se me disser sem mais demora por que razão solicitou a minha visita.
A prioresa não se deixou abater por esta admoestação. Ainda que ele fosse bispo, não deixava de ser um "fidalgo de sarjeta", como dizia a sua velha "duena" que lá estava no seio do Senhor; enquanto ela era a filha do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Uma palavra sua ao irmão, confidente do favorito de Filipe III, podia relegar esse prelado para uma obscura diocese das Canárias.
- Lamento ofender a modéstia de Vossa Excelência - respondeu em tom tranquilo - , mas foi justamente a sua virtude e a sua austeridade - a sua santidade, se assim me posso
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exprimir - que constituiu a causa, imediata do meu pedido para que me fizesse a honra de visitar-me. Está informado do estranho caso que se passou com uma menina chamada Catalina Pérez?
- Estou. O confessor dela, homem digno, sem dúvida, mas de pouca instrução e inteligência, referiu-me essa história. Mandei-o calar. Proibi os frades do convento de mencionar tal coisa na minha presença ou de falar nela entre si. Essa rapariga ou é uma impostora à cata de notoriedade, ou uma simplória iludida.
- Não a conheço, senhor, mas segundo todas as informações é uma menina boa, sensata e piedosa. Pessoas de critério, que a conhecem, estão convencidas de que ela é incapaz de inventar semelhante história. Não costuma mentir e, ao que me dizem, está lomge de ser dada a fantasias.
- Se ela teve uma visão como a que descreve, só pode ter sido por ardil de Satanás. Ninguém ignora que os demónios tem o poder de assumir formas celestes para tentar os desprevenidos e arrastá-los à perdição.
- Essa menina sofre um infortúnio imerecido. Não devemos atribuir ao diabo mais habilidade do que ele possui. Como poderia ele ser estúpido ao ponto de julgar que a alma dessa criança incorre em perigo pelo facto de um santo homem lhe impor a mão em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo?
O bispo, que durante essa conversa mantivera os olhos postos no chão, ergueu-os para a superiora a estas últimas palavras, com uma expressão de angústia.
- Minha senhora, Lúcifer, o filho da manhã, caiu por causa do seu orgulho. Como é possível que pelo orgulho eu,
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um homem tão corrupto e pecador, me atreva a fazer milagres ?
- Está bem que na sua humildade se considere um homem corrupto e pecador, Excelência, mas o resto do mundo bem conhece a sua grande virtude. Ouça, senhor: essa história foi divulgada e a cidade inteira anda a falar nela. Todos estão alvoroçados e em expectativa. É preciso dar uma satisfação qualquer ao povo.
O bispo suspirou.
- Eu sei que o povo está perturbado. Grupos de pessoas conservam-se diante do convénto como se aguardassem alguma coisa, e quando saio eles ajoelham-se à minha passagem pedindo que os abençoe. É necessário fazer alguma coisa para que entrem na razão.
- Vossa Excelência permite que lhe dê um conselho? - disse a prioresa com muito respeito; mas os seus olhos tinham um brilho divertido e irónico que de certo modo ateimava aquele.
- Ficar-lhe-ia muito grato.
- Eu não falei com a rapariga porque o seu confessor lhe deu ordem de não repetir a história a ninguém, mas o senhor bispo tem o poder de revogar essa ordem. Não acha que seria conveniente vê-la? Com o seu discernimento, a sua penetração das almas e a habilidade que adquiriu no Santo Ofício com a inquirição de suspeitos, Vossa Excelência descobriria bem depressa se ela é uma impostora, se foi iludida por Satanás ou, afinal, se foi verdadeiramente a Virgem Santíssima que condescendeu em aparecer-lhe.
O bispo alçou os olhos e contemplou a imagem do Redentor pregado à Cruz, no santuário diante do qual a prioresa
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costumava rezar. O seu rosto tinha uma expressão muito triste. Estava dilacerado pela dúvida.
- É escusado lembrar-lhe, senhor, que este convento se acha sob a protecção especial de Nossa Senhora do Carmelo. Nós, pobres freiras, somos sem dúvida alguma indignas dessa honra, mas é possível que ela olhe com um favor especial esta igreja que meu pai, o duque, lhe erigiu na nossa cidade. Seria uma grande honra e uma grande glória para a nossa casa se, por intercessão de Vossa Excelência, a nossa celeste padroeira curasse essa pobre menina da sua enfermidade.
Durante largo tempo o bispo esteve absorto nos seus pensamentos. Por fim tornou a suspirar.
- Onde poderei ver essa menina?
- Haverá lugar mais próprio do que a capela dedicada ao culto da Santíssima Virgem, na nossa igreja?
- É preferível fazer depressa o que tem de ser feito. Que ela venha amanhã, minha senhora:, e estarei aqui à sua espera.
Levantou-se, e ao curvar-se para se despedir da prioresa havia nos seus lábios a sombra de um sorriso - mas tão pesaroso!...
- Uma triste noite me aguarda, Reverenda Madre. Ela ajoelhou-se mais uma vez e beijou-lhe o anel.


XII.

No dia seguinte, à hora aprazada, o bispo entrou na opulenta igreja acompanhado dos seus dois secretários. Catalina, com uma das freiras, esperava na capela da Virgem.
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Mantinha-se em pé com o auxílio da muleta;, mas quando o bispo apareceu a freira tocou-lhe no braço e Catalina fez um movimento para ajoelhar-se. Ele não a deixou.
- Pode deixar-nos - disse à freira e, quando esta saiu, dirigiu-se aos dois frades: - Podem retirar-se, mas fiquem aqui perto. Quero falar a sós com esta menina.
Eles desapareceram silenciosamente. O bispo observou-lhes a retirada. Sabianos muito curiosos e não queria ser ouvido por eles. Deitou então um longo olhar à inválida. Tinha um coração sensível e a desgraça, a miséria e a doença nunca deixavam de comovê-lo. Ela tremia um pouco e estava muito pálida.
- Não te assustes, minha filha - disse ele com suavidade. - Não tens nada a temer se dizes a verdade.
A jovem pareceu-lhe muito simples e inocente. Notou-lhe a singular beleza das feições, mas fê-lo com a mesma indiferença com que teria observado o pêlo ruão ou tordilho de um cavalo. Começou por lhe fazer perguntas sobre ela própria. Catalina respondeu a princípio com muita timidez, mas, como o bispo continuasse a instá-la com perguntas, acabou por ganhar mais confiança. Tinha uma voz suave e melodiosa e expressava-se com correcção. Contou-lhe a singela história da sua vida. Era a história de todas as moças pobres: duros trabalhos, diversões inofensivas, frequentes visitas à igreja e o seu namoro; contou-a, porém, com tal naturalidade e um ar tão ingénuo que o bispo sentiu-se tocado. Parecia-lhe inconcebível que essa rapariga tivesse inventado qualquer coisa para se fazer importante. Cada uma das suas palavras respirava modéstia e humildade. Contou-lhe então o seu acidente, como ficara com
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a perna paralítica e como Diego, o filho do alfaiate, o seu amado com quem ia casar-se, a tinha abandonado.
- Não o censuro - disse ela. - Vossa Excelência ignora talvez que a vida do pobre é dura, e um homem não deseja ter uma mulher incapaz de trabalhar para ele.
Um sorriso tão terno quanto o permitiam as feições conturbadas do bispo perpassou-lhe rapidamente na face. - Como aprendeste a falar tão bem e com tanto critério, minha filha? - perguntou ele.
- Meu tio Domingo Pérez ensinou-me a ler e a escrever. Deu-se a muito trabalho comigo. Tem sido como um pai para mim.
- Eu conheci-o outrora.
Catalina bem conhecia a má reputação do tio e receou que a sua referência a este a prejudicasse no conceito do santo homem. Houve um silêncio e, por um momento, ela julgou que ele fosse pôr fim à entrevista.
- Conte-me agora, nas suas próprias palavras, a história que referiu a sua mãe - disse ele, fitando-lhe um olhar perscrutador.
Catalina hesitou e o bispo lembrou-se de que o seu confessor lhe dera ordem de não falar naquilo. Informou-a gravemente de que tinha autoridade para tornar sem efeito a proibição do confessor.
Ela repetiu então a história, tal qual a havia contado à mãe. Disse que estava sentada nos degraus da igreja a chorar porque toda a cidade estava em festa e só ela era desgraçada, que uma senhora tinha saído da igreja e lhe falara, que ela lhe tinha dito que Sua Excelência o Bispo tinha o poder de curá-la do seu mal, depois desaparecera diante dos seus próprios olhos,
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e que ela compreendera então que essa senhora era a Virgem Santíssima em pessoa.
Quando terminou de falar, fez-se um longo silêncio. O bispo ficara abalado, mas ao mesmo tempo atormentava-o a decisão. A jovem não era uma impostora - disso estava convencido, pois a sua inocência, a sua sinceridade eram inconfundíveis. Não podia ter sido um sonho, porque ela ouvira bater os sinos, rufar os tambores e soar as trombetas quando ele e seu irmão tinham entrado na cidade, e nesse momento Catalina conversava com a dama, a qual ela não tinha razão para supor fosse coisa diversa do que parecia. Como teria Satanás o poder de assumir uma falsa aparência quando a menina estivera a abrir o seu pobre coraçãozinho diante da Mãe de Deus e a suplicar-lhe que a socorresse na sua aflição? Era uma criatura piedosa e não havia nela a menor presunção. Outros tinham visto as suas orações atendidas, outros tinham recebido a graça espiritual, outros tinham sido curados dos seus males. Se ele recusasse, por medo, fazer aquilo que parecia ser-lhe ordenado, porventura não inconreria em grave pecado de omissão?
"Um sinal!" murmurou de si para si. "Um sinal!" Avançou um ou dois passos e chegou ao pé do altar sobre o qual, envolta num grande manto de veludo azul todo pontoado de ouro, com uma coroa de ouro na cabeça, estava a imagem da Mãe de Deus. Ajoelhou-se e orou, pedindo-lhe que o guiasse. Orou apaixonadamente, mas tinha o coração seco e sentia as trevas da noite envolver-lhe a alma.. Por fim, com um triste Suspiro, ergueu-se e ficou com os braços estendidos numa súplica, fitando o olhar desesperado nos olhos meigos da Santíssima Virgem. De repente Catalina lançou um
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grande grito de espanto. Os dois frades haviam desaparecido, mas embora não pudessem ouvir o que ambos diziam, não estavam fora do alcance da voz, e ao sentir esse grito correram tão depressa como coelhos que ganham a toca. Mas o que viram pareceu chumbá-los ao chão. Ficaram mudos, boquiabertos, como se, a exemplo da mulher de Lot, se houvessem convertido em estátuas de sal. Don Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, alçava-se lentamente no ar, tão lentamente como o azeite que escorrega por uma superfície inclinada muito de leve; elevava-se com um movimento regular, quase imperceptível, como as aguas de um rio em enchente. O bispo subiu até colocar-se rosto a rosto com a imagem que encimava o altar, e por um momento ficou suspenso no ar, qual um falcão que se imobiliza sobre as asas estendidas. Temendo que ele caísse, um dos frades fez menção de avançar, mas o outro - o padre António - reteve-o; e o bispo, muito devagar, tão devagar que mal se percebia o movimento, desceu até os seus pés tornarem a tocar o chão de mármore defronte do altar. Penderam-lhe os braços e ele voltou-se. Os dois frades aproximaram-se a correr e, caindo de joelhos, beijaram-lhe a ourela do hábito. Ele não parecia dar-se conta da presença de ambos. Desceu os três degraus do altar e, como ofuscado, saiu da capela aos tacteios. Os dois frades seguiam-no de muito perto, para acudir-lhe no caso de tropeçar. Catalina ficou esquecida. Saíram da igreja. O bispo deteve-se no alto dos degraus, onde a jovem estivera sentada quando Nossa Senhora lhe apareceu, e olhou para a pracinha que resplandecia ao sol de Agosto. O céu sem nuvens estava tão azul e tão claro, em contraste com a penumbra da igreja, carregada de fumos de incenso, que olhar para ele cegava a vista. As casas brancas, cujos postigos estavam fechados por causa do calor, pareciam cintilar com um brilho próprio, como pedras preciosas. O bispo teve um arrepio, embora o dia estivesse quente como uma fornalha, e tornou a si.
- Façam saber à menina que eu a mandarei chamar. Desceu os degraus, seguido pelos frades a uma distância
respeitável. Atravessou a praça de cabeça baixa. Os dois não ousavam falar-lhe. Quando alcançaram o convento dominicano o bispo parou e votou-se para eles.
- Sob pena de excomunhão, não digam uma só palavra sobre o que viram hoje.
- Foi um milagre, senhor - volveu o padre António. - Acaso é justo que tão conspícuo sinal do favor divino seja ocultado aos nossos irmãos?
- Ao fazer a sua profissão, meu filho, você prestou voto de obediência.
Padre António fora aluno do bispo quando este ensinava teologia em Alcalá, e foi por influência de frei Blasco que ele entrou na Ordem Dominicana. Era vivo e inteligente, e ao ser nomeado inquisidor em Valência, o mestre levou-o consigo na qualidade de secretário. Sentia-se reconhecido ao jovem monge pela sua dedicação e, embora tentasse muitas vezes moderar a excessiva admiração que António tinha por ele, os seus argumentos não faziam senão intensificá-la ainda mais. Padre António, embora fosse tão devoto e zeloso na observância dos seus deveres religiosos quanto podia desejá-lo o Bispo, embora tivesse uma vida impoluta e se mostrasse diligentíssimo no serviço da Igreja, sofria dessa doença que Juvenal chamou "cacoethes soribendi": não se contentando em tomar a vasta correspondência do inquisidor e em redigir
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os inúmeros relatórios, documentos, decisões, etc, necessários à direcção dos negócios do Santo Ofício, passava todos os seus momentos de folga a escrevinhar; e o inquisidor descobriu - como descobria tudo que se relacionava com a sua pessoa ou o seu cargo - que padre António estava mantendo uma crónica minuciosa dos seus actos, de cada palavra que ele pronunciava e dos vários sucessos da sua carreira. Percebia, cheio de humildade, que o secretário lhe dedicava uma estima exagerada, e nos seus exames de consciência perguntava a si mesmo se não lhe incumbiria o dever de pôr termo àquele trabalho, pois muito bem sabia com que fim o frade escrevia. Metera-se naquela cabeça ilustrada, mais tonta, que ele, Frei Blasco de Valero, tinha a fibra de que se fazem os santos e que um documento como o que estava preparando seria valioso para a Cúria quando, após a sua morte, se instaurasse o processo de beatificação. Ainda que perfeitamente cônscio da sua indignidade, o inquisidor não deixava de ser humano e vibrava de piedosa exultação ao considerar a possibilidade, embora remota, de que algum dia viesse a ser contado entre os santos da Igreja. Açoitava-se até fazer correr sangue para punir-se da sua presunção, mas não podia decidir-se a privar aquela boa e piedosa Griatura de uma ocupação evidentemente inofensiva. E quem sabe? Era possível que a simples piedade religiosa do autor lhe permitisse compor uma obra que, apesar da insignificância do assunto, fosse edificante para os fiéis. Nesse instante, lendo no coração do frade, o bispo teve a certeza de que, conquanto os lábios deste não deixassem escapar nem uma palavra sequer do que sucedera na igreja das carmelitas, uma exposição pormenorizada do facto seria incluída no livro. O portentoso fenómeno que hoje conhecemos
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como levitação, e de que ele fora instrumento, tornara-se-lhe familiar através da leitura das vidas de vários santos, e toda a Espanha sabia que em tempos recentes esse sinal de favor divino fora conferido a Pedro de Alcântara, à Madre Teresa de Jesus e a mais de uma freira da ordem das carmelitas descalças. O bispo não podia esperar que padre António omitisse tal ocorrência no seu livro e, mesmo, ignorava se tinha o direito de ordenar-lhe tal coisa. Assim, entrou no convento sem dizer mais uma palavra e dirigiu-se para a sua cela.


XIII.

Não se lembrara, porém, de impor segredo a Catalina, e nem bem os três religiosos tinham deixado a igreja quando ela correu para casa tão depressa quanto lho permitia o seu estado de invalidez. Domingo fora a uma das povoações circunvizinhas a chamado de alguém e só Maria estava em casa. Catalina contou-lhe, em tom aterrado, o portento de que fora testemunha, e depois de terminar contou tudo de novo.
Maria Pérez tinha um pouco do senso dramático que parecia ter sido negado a seu irmão, o dramaturgo. Reprimindo com esforço a sua impaciência, aguardou a hora do recreio no convento, quando todas as freiras estariam reunidas, em palestra com as damas pensionistas e pessoas da cidade; poderia, assim, relatar a assombrosa ocorrência obtendo dela o maior efeito possível. Tinha um público numeroso quando contou a história, e deu-lhe grande satisfação o espanto com
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que a ouviram. Tal foi a impressão causada na subprioresa que esta achou necessário repetir o caso a Dona Beatriz sem perda de um só instante. Daí a pouco Maria Pérez foi chamada à presença da superiora e tornou a desfiar a mesma narrativa; A superiora escutou-a com uma satisfação que não se deu ao trabalho de ocultar.
- Diante disso não é possível hesitar mais - disse ela. - Será uma grande glória não só para este convento, mas para a Ordem de Nossa Senhora do Carmelo.
Despediu as duas mulheres e, apanhando a pena de pato, escreveu ao bispo uma carta em que dizia ter sido informada da graça que lhe fora concedida aquela manhã. Não se faziam mister maiores provas da verdade do que afirmara a jovem Catalina Pérez e de que tal ocorrência não era atribuível a uma maquinação do Inimigo e sim à compaixão de Nossa Senhora. Conjurava-o a pôr de parte as suas dúvidas e incertezas, pois com toda a evidência o seu dever cristão lhe ordenava aceitar a missão que lhe fora imposta. Era uma carta perfeita, sucinta mas bem argumentada, respeitosa mas firme, e a superiora terminava rogando-lhe, com grande humildade, que se dignasse realizar o milagre na mesmo igreja em que lhe fora conferido esse favor divino e à qual era evidente ter a Santíssima Virgem concebido uma afeição especial. Enviou a carta por um mensageiro.
Dois dos cavalheiros que se encontravam na sala de visitas do convento quando Maria Pérez contou a história ficaram tão impressionados que foram acto contínuo ao convento dos dominicanos indagar da sua veracidade. Os frades, naturalmente, nada sabiam, mas não se surpreenderam em absoluto quando o caso lhes foi repetido. Conheciam perfeitamente
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a gramde santidade do bispo e nada era mais natural do que conferir-lhe o Senhor a assinalada honra da levitação. Nesse meio tempo, uma das pensionistas das carmelitas foi visitar pessoas amigas na cidade e relatou-lhes o milagroso acontecimento. Dentro de uma ou duas horas toda a cidade tinha conhecimento do oconrido. Outros cavalheiros dirigiram-se para o convento dos dominicanos, a fim de colher informações de primeira mão. Os frades vibravam de entusiasmo religioso. Finalmente, Padre António viu-se na obrigação de ir dizer ao bispo que, embora nem ele nem o seu companheiro houvessem falado, o facto se tornara conhecido de todos. A carta da prioresa estava aberta em cima da mesa.
- Essas miseráveis mulheres são incapazes de refrear a língua - disse Don Blasco, apontando para ela. - É uma grande humilhação para mim que essa história tenha transpirado.
- Os nossos irmãos deste convento esperam que Vossa Excelência consinta agora em curar a infeliz jovem da sua enfermidade.
Bateram à porta. Padre António foi abri-la. Era um frade com um recado do prior perguntando se podia falar ao bispo.
- Que venha.
Padre António esteve presente à entrevista e escreveu uma relação da mesma, com toda a minúcia. Ao cabo, o bispo deixou-se convencer de que a vontade do Senhor era que ele obedecesse à solicitação da Santíssima Virgem. Formulou, todavia, condições que o prior, muito a contragosto, foi obrigado a aceitar. Queria o prior uma cerimónia com todos os monges reunidos, em presença das notabilidades locais, tanto leigas como eclesiásticas. Mas a isto o Bispo se opôs asperamente.
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Insistiu em que se guardasse sigilo. Estava disposto a ir à igreja das carmelitas e dizer a sua missa ali na manhã seguinte. Deviam fechar-se as portas para que ninguém fosse admitido. Ele próprio só iria acompanhado pelos seus dois secretários. Bastante enraivecido pelo que lhe parecia uma desconsideração à sua dignidade, o prior retirou-se. O bispo mandou então o padre António informar Dona Beatriz da sua decisão. Dava-lhe licença de trazer as suas freiras, mas proibia as damas pensionistas de comparecer. Recomendava-lhe que fizesse Catalina preparar-se para tomar a Santa Comunhão depois da missa e pedia-lhe, a ela e às suas freiras, que orassem por ele aquela noite.
Dentro de uma hora, uma freira toda emocionada veio à casa de Maria Pérez e pediu para ver Catalina, pois tinha algo muito importante para lhe dizer em particular. Depois de chamarem Catalina a freira levou o dedo aos lábios, recomendando discrição.
- É um grande segredo - disse ela. - Não deves contar a ninguém. O senhor bispo vai curar-te e amanhã estarás correndo e pulando sobre os dois pés, como qualquer outro cristão.
Catalina susteve o fôlego e o seu coração pôs-se a bater como doido.
- Amanhã?
- Terás de tomar a Sagrada Comunhão, de modo que não deves comer nada depois da meia-noite.
- Sim, eu sei. Mas de qualquer jeito nunca como nada depois da meia-noite.
- Além disso, deves pôr-te em estado de graça. Depois de comungares ele te deixará tão sã como Nosso Senhor deixou o leproso.
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- A mamã e o tio Domingo podem ir?
- Não me disseram nada a esse respeito. Está claro que podem. Talvez isso também cure o teu pobre tio dos seus maus costumes.
Domingo não voltou do campo senão tarde naquela noite, mas assim que ele entrou em casa Catalina contou-lhe, toda agitada, a emocionante nova. Ele fitou-a cheio de consternação.
- Não ficais contente, tio? - exclamou ela.
Em lugar de responder ele pôs-se a caminhar de um lado para outro. Catalina não podia compreender essa estranha atitude.
- Mas que (tens, tio? Isso não te agrada? Eu pensava que ficarias tão contente como eu. Não queres que eu me cure?
Ele sacudiu os ombros com irritação e continuou a percorrer o quarto de um lado para outro. Ainda não estava plenamente convencido de que a aparição não fora um produto da mente perturbada da sobrinha e temia as consequências para ela se a intervenção do bispo fosse inútil. Em tal caso, o Santo Ofício bem podia achar que o assunto exigia inquérito.
Seria um desastre. Parou de repente e virou-se para Catalina.
Olhou-a com uma expressão severa que a jovem nunca lhe
tinha visto até então.
- Conta-me exactamente o que te disse a Virgem Santíssima.
Ela repetiu a história.
- E então a Virgem disse: "O filho de Juan de Valero que melhor tem servido a Deus possui o poder de curar-te."
Domingo interrompeu-a asperamente.
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- Mas não foi isso que disseste a tua mãe! Disseste-lhe que Blasco de Valero tinha o poder de curar-te.
- Dá no mesmo. O bispo é um santo, todo o mundo sabe disso. Qual dos filhos de Dom Juan tem servido a Deus tão bem como ele?
- Ó tola! - exclamou Domingo. - Ó grande tolinha!
- Tu é que és tolo! - retrucou ela, acalorada.
Não acreditaste que a Santíssima Virgem me tinha aparecido, falado comigo e desaparecido diante dos meus olhos. Pensavas que fosse um sonho. Pois bem, ouve isto.
E contou-lhe como vira o bispo elevar-se do chão, ficar suspenso no ar e descer novamente até ao chão.
- Isso não foi sonho. Os dois frades que lá estavam viram-no com os seus próprios olhos.
- Coisas ainda mais extraordinárias têm acontecido - resmungou ele.
- E contudo não queres acreditar que Nossa Senhora me apareceu.
Ele deitou-lhe um olhar cintilante.
- Não é verdade. Antes não acreditava, mas agora acredito, não por causa do que viste essa manhã mas pelas palavras que te dirigiu a Santíssima Virgem. Há nelas um sentido oculto que me convence.
Catalina ficou perplexa. Não compreendia como a insignificante disparidade entre as duas versões pudesse fazer alguma diferença. Ele afagou-lhe a face com brandura.
- Sou um grande pecador, minha pobre criança, e o que torna desesperada a minha situação é que nunca pude arrepender-me dos meus pecados. Tenho tido uma existência aventurosa e frívola, mas li muitos livros, antigos e modernos,
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e aprendi muita coisa que talvez fosse melhor para a minha alma não conhecer. Mas coragem, minha querida, talvez tudo ainda venha a terminar bem. Apanhou o chapéu.
- Aonde vais, tio?
- Passei um dia muito atarefado e preciso distrair-me. Vou à taberna.
Nisto, porém, Domingo faltava com a verdade, pois em lugar de ir à taberna dirigiu-se para o convento dos dominicanos. Embora ainda estivesse claro, a hora era avançada e o porteiro não o deixou entrar. Domingo insistiu que precisava falar com o bispo sobre um assunto de grande importância, mas o porteiro, falando pelo postigo, negou-se a abrir a porta. Domingo disse-lhe que era o tio de Catallina Pérez e rogou-lhe que chamasse pelo menos um dos secretários de Sua Excelência. O porteiro mostrou-se pouco disposto a atender mesmo a esse pedido, mas tanto insistiu Domingo que ele consentiu afinal. Volvidos alguns minutos, padre António aproximou-se do postigo. Domingo implorou-lhe que o deixasse falar ao bispo, pois tinha uma comunicação da maior importância para este. O frade, evidentemente, estava informado a respeito da sua pessoa e conhecia-lhe a má reputação, pois respondeu com frieza. Disse que era impossível incomodar Sua Excelência, que estava a passar a noite em orações e dera ordens para que não o interrompessem sob pretexto algum.
- Se não me deixar vê-lo será responsável por um terrível infortúnio.
- Bêbedo! - disse padre António desdenhosamente.
- Sou um bêbedo, é verdade, mas não estou embriagado
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agora. Vai lamentar amargamente o facto de não me ter deixado entrar.
- Que mensagem é essa que me pede para transmitir? Domingo hesitou. Não sabia o que dizer.
- Diga-lhe que, pelo amor que lhe tem, Domingo Pérez lhe manda esta mensagem: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo."
- "Hijo de puta!" - gritou padre António, enraivecido por ouvir esse valdevinos, esse dissoluto citar a Santa Escritura.
Bateu-lhe com o postigo na cara. Domingo afastou-se, cheio de melancolia. O hábito orientou-lhe os passos para a taberna. e ele entrou. Era uma criatura sociável e, se não tinha muitos amigos, tinha pelo menos bom número de companheiros de libação. Embebedou-se e, uma vez bêbedo, soltou-se-lhe a língua. Gostava de se ouvir falar e, nessa ocasião como em muitas outras, foi-lhe fácil encontrar ouvintes.


XIV.

Na manhã seguinte, quando, como teria dito Domingo num dos seus poemas, Aurora esfregou os olhos com os dedos rosados e Febo atrelou ao seu carro de ouro os velozes corcéis do sol - ou seja, em prosa, ao romper do dia, três monges dominicanos com os capuzes baixados sobre as cabeças rapadas à navalha, em parte para ocultar-se e em parte para se protegerem dos nocivos vapores da noite que ainda não se acabara de todo, saíram atenciosamente do convento. Mas, embora
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fosse tão cedo, os habitantes da cidade tinham sentido qualquer coisa no ar e já havia um grupo reunido diante do portão do convento. Na alta figura encapuzada que caminhava entre as duas outras, reconheceram de imediato a santa pessoa do bispo. Seguidos a respeitosa distância pelos curiosos, os três frades dirigiram-se rapidamente para a igreja das carmelitas. Outras pessoas esperavam ali. Um dos frades bateu à porta. Esta abriu-se o suficiente para deixá-los passar um após outro e cerrou-se atrás deles. Quando os espectadores tentaram entrar, encontraram-na fechada à chave e, embora batessem, fizeram-no em vão.
Catalina esperava na capela da Virgem. Maria Pérez e Domingo tinham-na acompanhado, mas não os deixaram entrar. Dona Beatriz recebeu o bispo à porta da igreja com as suas freiras, vinte ao todo, pois tal era o limite fixado pelo duque de Castel Rodríguez ao fundar a instituição. O bispo entrou na sacristia com os seus dois auxiliares e envergou as sacras vestimentas. Dirigiu-se devagar para a capela da Virgem. As freiras estavam de joelhos. Apoiando-se na muleta, Catalina ajoelhou-se ao pé dos degraus do altar. O bispo celebrou a missa. As freiras entoaram os responsos em voz baixa e reverente. Ele administrou a Santa Comunhão a Catalina. Após a bênção e a leitura do último Evangelho, ajoelhou-se diante do altar e orou em silêncio. Depois ergueu-se, fitando em Catalina os grandes olhos trágicos, desceu os degraus. Pousou-lhe na cabeça a mão fina e morena.
- Eu, instrumento indigno do Altíssimo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ordeno-te que lances fora essa muleta e caminhes.
Começara em voz trémula e tão sumida que as freiras mal
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podiam ouvi-lo, mas pronunciou as últimas palavras sonoramente, num tom claro de comando. Catalina, com o rosto pálido de emoção, os olhos cintilantes, ergueu-se em pé, largou a muleta!, deu um passo à frente e, com um grito de angústia, caiu redondamente no chão. O milagre havia falhado.
Imediatamente se formou uma balbúrdia entre as freiras. Algumas puseram-se a gritar e duas delas desmaiaram. A prioresa adiantou-se. Relanceou os olhos para Catalina e depois o seu olhar encontrou o do bispo. Por um instante encararam-se fixamente. À retaguarda as freiras soluçavam. Então o bispo saiu da capela, com os dois frades atrás de si, e entrou na sacristia. Não disse uma só palavra. Após tirarem as vestimentas da missa e tornarem a pôr os seus hábitos monásticos, entraram de novo na igreja. A porteira estava à espera para abrir a porta. Com a cabeça novamente coberta pelo capuz, o bispo tornou a sair para o sol claro da manhã de Verão.
Tinha-se espalhado a notícia de que ele estava realizando um milagre naquele momento e as janelas da praça estavam apinhadas de espectadores. Formavam uma multidão compacta nos degraus da igreja e o logradouro estava cheio deles. Durante um instante o bispo ficou aterrado por ver aquele grande concurso de povo - mas só durante um instante. Compôs o hábito e aprumou-se. Assim que ele aparecera, um estremecimento de consternação percorreu o povo, pois de um modo misterioso este compreendeu de imediato, embora não soubesse dizer como, que o milagre falhara. Abriram caminho e o bispo, seguido pelos dois frades, desceu a escadaria da igreja. Aqueles que se encontravam na praça recuavam, comprimindo-se uns aos outros, e ao passar o bispo pela espécie
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de corredor assim formado, com o rosto oculto, a alta figura encolhida no hábito branco e preto da ordem, fazia-se na multidão um temível silêncio. Dir-se-ia que estivessem apavorados ante a iminência de alguma catástrofe inevitável.


XV.

Os monges do convento dominicano tinham-se indignado quando o bispo lhes negou permissão de assistir à cerimónia. Ao regressar com os seus dois secretários, encontrou-os vadiando, à espera para olhá-lo. A notícia já havia alcançado o convento. Passou por eles como se não os visse.
Ao saber que teriam no seu meio um hóspede tão ilustre, haviam provido a sua cela do luxo que lhes parecia condizente com a sua grandeza. Mas ele mandara logo retirar tudo quanto ofendia a sua austeridade. Obrigou-os a trocar o colchão macio da cama por outro de palha, tão fino quanto um cobertor, e pediu que as duas poltronas colocadas no oratório fossem substituídas por mochos de três pés. Tinham-lhe dado uma bela mesa de teca para escrever, mas ele reclamou, em lugar dela, uma mesa de pinho sem pintura. Não aceitava nada que desse prazer aos sentidos. Rejeitou os quadros que hiaviam pendurado nas paredes. Estas ficaram nuas, com excepção de uma simples cruz negra, sem a figura de Nosso Senhor, quer esculpida, quer pintada, e isso a fim de que ele pudesse imaginar-se mais vivamente pregado a ela, sentindo assim no seu corpo o suplício que havia experimentado o Redentor por amor à humanidade.
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Ao entrar na sua cela, o bispo deixou-se cair no duro mocho de madeira e fitou os olhos no pavimento de pedra. Lágrimas lentas e dolorosas escorreram-lhe pelas faces cavadas. Padre António encheu-se de compaixão ao ver o seu mestre mergulhado num sentimento que muito se parecia com o desespero. Cochichou qualquer coisa ao seu companheiro, que no mesmo instante saiu, voltando ao cabo de poucos minutos com uma tigela de sopa. Padre António ofereceu-a ao bispo.
- Coma, senhor.
O bispo desviou o rosto.
- Não poderia engolir nada.
- Mas, Excelência, não tem posto nada na boca desde ontem de manhã! Rogo-lhe que tome pelo menos algumas colheradas.
Ajoelhou-se, encheu uma colher com a sopa fumegante e levou-a aos lábios do bispo.
- Você é muito bom para mim, meu filho - disse este. - Não mereço as atenções que me dedica.
Para não ser grosseiro, engoliu o conteúdo da colher e o monge deu de comer ao humilhado homem como se este fosse uma criança enferma. O bispo não desconhecia o profundo apego que lhe tinha o seu fiel auxiliar e mais de uma vez o advertira do perigo de tal coisa, pois um religioso deve estar sempre em guarda para não tomar afeição a indivíduos particulares, o que não faz senão criar obstáculos à integral devoção para com o Senhor, que é o único objecto verdadeiro de amor. Quanto aos seres humanos, quer clérigos quer leigos, deve tratá-los com boa vontade, pois são criaturas de Deus, mas ao mesmo tempo - visto que são perecíveis - com uma indiferença para a qual tanto faz estarem presentes como
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ausentes. Mas é difícil governar os afectos e, por mais que o tentasse, padre António não conseguia eliminar o amor, a devoção extática de que estava repleto o seu pobre coração. Depois que o bispo comeu, padre António pôs de lado a tigela e, sempre de joelhos, atreveu-se a tomar-lhe a mão.
- Não se amargure tanto, senhor. A menina foi enganada pelo demónio.
- Não, a culpa foi minha. Solicitei um sinal e ele foi-me dado. Na minha vanglória, não me julguei indigno de realizar aquilo que só é concedido aos santos eleitos pelo Senhor. Sou um pecador e fui justamente punido pela minha presunção.
Tão acabrunhado estava o bispo que o frade ousou falar-lhe num tom que jamais teria empregado em outras circunstâncias.
- Todos nós somos pecadores, meu senhor, mas eu tive o privilégio de conviver consigo durante muitos anos e ninguém melhor do que eu conhece a sua constante bondade para com todos os homens, a sua inesgotável caridade e compaixão.
- Quem fala agora, é a sua bondade, meu filho. É a afeição que me tem, contra a qual o tenho advertido tantas vezes e que eu tão pouco mereço.
Padre António considerou com piedade o nosto agoniado do bispo. Continuava a segurar-lhe a mão fria e emaiciada.
- Permite que eu lhe leia um pouco para distraí-lo, meu senhor? - disse ele depois de uma pausa. - Escrevi ultimamente alguma coisa sobre a qual desejaria a sua opinião.
O bispo sabia quão amargurado estava o pobre frade pelo facto de não se haver realizado o milagre que ele aguardara com tão absoluta confiança, e sentiu-se tocado ao ver esse homem simples e estimável vencer a sua própria decepção para
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o atender e consolar. Até então, jamais havia consentido em escutar uma palavra sequer do livro que o seu secretário escrevia com tanta diligência, mas dessa vez não teve coragem de recusar-lhe um prazer que ele tão ardentemente desejava.
- Leia, meu filho. Terei muito gosto em ouvir.
Com as faces rubras de prazer, o padre pôs-se atabalhoadamente em pé e tirou, de entre os numerosos papéis com que o seu cargo o obrigara a lidar, várias folhas manuscritas. Sentou-se num dos mochos. O outro frade sentou-se no chão, pois não havia outro lugar onde sentar-se. Padre António começou a ler.
Escritor erudito e elegante, nenhum artifício de retórica lhe era desconhecido. Tinha um estilo rico em símiles e metáforas, metonímias, sinédoques e catacreses. Nunca soltava um substantivo sem o escoltar com dois robustos adjectivos. As imagens brotavam-lhe na mente tão pingues e profusas como cogumelos após a chuva. Versado como era nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja e dos moralistas latinos, nunca tinha dificuldade em encaixar uma alusão oculta. Conhecia a fundo a estrutura dos períodos, simples, complexos, compostos e compostos-complexos, e não só sabia compô-los de maneira perfeita, com cláusulas e subcláusulas, mas também dar-lhe um fecho sonoro e triunfante que fazia o efeito de uma porta batida na cara do leitor. Esse estilo literário, a que um crítico engenhoso deu o nome de "Mandarim", é muito estimado pelos que o adoptam, mas tem a pequena desvantagem de tomar muito tempo para exprimir aquilo que se pode dizer em poucas palavras. Em todo o caso, ele destoaria da linguagem simples e tosca em que é vasada esta narrativa; de modo que, ao invés de fazer uma inútil tentativa de reproduzir
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a grandiloquência do bom frade, o autor destas páginas achou de bom aviso dar uma súmula do assunto à sua moda singela.
Não sem bastante tacto, padre António escolheu para ler o relato do grande auto-de-fé que havia coroado a carreira de Frei Blasco no Santo Ofício e que, conforme mencionamos anteriormente, causara tanto prazer ao príncipe, agora Filipe III, e a seu tempo ocasionara a elevação do piedoso inquisidor à importante diocese de Segóvia.
A impressionante cerimónia, feita para inspirar respeito à autoridade da Inquisição e edificar o povo, realizou-se num domingo, a fim de que ninguém pudesse pretextar suas ocupações para deixar de comparecer, visto que isso era um dever religioso; e, para conseguir-se um público tão numeroso quanto possível, concederam-se quarenta dias de indulgência a todos quantos assistissem. Três palanques tinham sido erigidos na grande praça da cidade, uma para os penitentes com os seus assistentes espirituais, outro para os inquisidores, autoridades do Santo Ofício e o clero em geral, e um terceiro para as autoridades civis e dignitários locais. As solenidades, no entanto, tiveram início na noite anterior com a procissão da Cruz Verde. Em primeiro lugar, com um estandarte de damasco carmesim em que fora bordado o escudo real, ia uma multidão de familiares e de cavalheiros; depois as ordens religiosas, com a Cruz Branca; a Cruz da igreja da paróquia, carregada pelo clero secular; e finalmente a Cruz Verde, carregada pelo prior dos dominicanos, acompanhado pelos seus frades com tochas. Enquanto caminhavam, cantavam o "Miserere". A Cruz Verde foi plantada acima do altar, no palanque reservado aos inquisidores, e guardada durante a noite pelos dominicanos. A Cruz Branca
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foi conduzida ao local da execução, onde lhe montaram guarda soldados da "Zarza", milícia encarregada de vigiar o "quemadero" ou lugar onde se armavam as fogueiras, e de fornecer lenha para estas.
Um dos deveres dos inquisidores era visitar durante a noite os condenados à morte, informá-los da sentença e designar dois monges que deviam preparar cada um deles para enfrentar o Senhor. Nessa, ocasião, porém, padre Baltasar, o mais moço dos inquisidores, estava acamado com uma cólica e desejando refazer-se o suficiente para tomar parte nas cerimónias do dia seguinte, rogou a Frei Blasco que o escusasse de acompanhá-lo nessa triste missão.
Ao nascer do dia celebrou-se a missa na câmara de audiências do Santo Ofício e diante do altar da Cruz Verde. Serviu-se uma refeição aos prisioneiros e aos frades que tinham feito companhia aos condenados e que, sem dúvida, a acolheram com alegria. Os penitentes foram então dispostos em fileiras, de acordo com a gravidade do seu delito contra a fé, e vestiram-nos com sambenitos. O sambenito era uma túnica amarela num de cujos lados tinham pintado chamas para os condenados à fogueira, e no outro lado estava inscrito o nome, residência e crimes cometidos por cada um. Davam-lhe cruzes verdes para carregar e punham-lhe círios amarelos na mão.
Formou-se outra procissão. Os soldados da "Zarza", que a conduziam eram seguidos de um religioso com uma cruz envolta numa mortalha negra e de um acólito que de tempos a tempos dobrava uma sineta. Vinham então os penitentes, um a um, com um familiar de cada lado; depois, as efígies ou as ossadas daqueles que, pela fuga ou pela morte, tinham esbulhado o Santo Ofício da sua justa presa; em seguida,
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os condenados à morte, acompanhados pelos frades que lhes tinham prestado assistência espiritual durante a noite. Seguiam-se autoridades a cavalo, familiares a avançar dois a dois, os magistrados e os dignitários eclesiásticos, de acordo com a ordem oficial de precedência. Um nobre de alta categoria carregava um estojo de veludo vermelho, franjado de ouro, que continha as sentenças dos condenados. Vinha então o estandarte do Santo Ofício, conduzido pelo prior dos dominicanos, seguido dos seus monges; e, por último, os inquisidores.
Era um belo dia de sol, um desses dias que estimulam o espírito de moços e velhos, fazendo-lhes sentir que a vida é boa.
A procissão avançou lentamente pelas ruas tortuosas até chegar à praça. Havia grande afluência de povo. Muita gente acorrera das férteis fazendas que cercavam a cidade dos arrozais e dos olivais; outros, ainda vinham de Alicante, a terra dos parreirais, e de Elche, a região das tamareiras. As janelas das casas circundantes estavam cheias de pessoas nobres e gradas. O príncipe esperava com a sua comitiva num balcão da municipalidade.
Fizeram os réus sentar-se no palanque erigido para eles, na ordem em que tinham marchado, os menos culpados nos bancos inferiores e os mais criminosos nos superiores. Havia no palanque dois púlpitos em que se acomodou o tribunal, e de um desses púlpitos fez-se uma prédica. Então, numa voz tão alta que todos podiam ouvi-lo, um secretário leu o juramento pelo qual as autoridades e todos os presentes se comprometiam a obedecer ao Santo Ofício e a perseguir os hereges e a heresia. Todos disseram ámen, Em seguida, os dois inquisidores dirigiram-se para a sacada em que se achava o príncipe e, sobre a Cruz
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e os Evangelhos, exigiram-lhe um juramento pelo qual se obrigava a obedecer à fé católica e ao Santo Ofício, a perseguir os hereges e apóstatas e ajudar a Inquisição a capturar e punir, quaisquer que fossem a sua posição e categoria-, os infiéis que rejeitavam a verdadeira religião.
- Eu o juro e prometo pela minha fé e sob a minha palavra real - respondeu solenemente o príncipe.
Havia um banco entre os dois púlpitos, e para ali os penitentes foram conduzidos um a um. Leram-lhes as sentenças, alternativamente, de um e de outro púlpito. Com excepção dos condenados às chamas, era a primeira vez que lhes anunciavam o seu destino, e como alguns perdiam os sentidos ao ouvi-lo o Santo Ofício, na sua misericórdia, havia munido o banco de um gradil para que não se magoassem ao cair. Nessa ocasião um homem, alquebrado pela tortura, morreu ali mesmo do choque. A Última sentença foi lida e os réus entregues ao braço secular. O Santo Ofício não impunha qualquer espécie de pena que implicasse em derramamento de sangue, chegando mesmo ao ponto de instar com as autoridades civis para que poupassem a vida do criminoso. A lei canónica, no entanto, exigia-lhes que punissem prontamente os hereges confiados às suas mãos pela Inquisição e concedia-se uma indulgência aos devotos que trouxessem lenha para a fogueira destinada a queimá-los.
Ficava assim terminada a tarefa dos inquisidores, que se retiraram. Os soldados da "Zarza" entraram na praça e descarregaram os seus mosquetes. Depois cercaram os prisioneiros e marcharam com eles para o local da execução, a fim de protegê-los contra a fúria do populacho, que, no seu ódio à heresia, tê-los-ia maltratado e até seria capaz de matá-los.
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Os frades acompanhavam-nos, esforçando-se até ao fim por lhes arrancar uma palavra de arrependimento e conversão. Entre eles havia quatro mulheres mouras, cuja beleza provocou a admiração de todos, um impenitente mercador holandês que fora apanhado a introduzir no país uma tradução espanhola do Novo Testamento, um mouro culpado de ter morto uma galinha cortando-lhe a cabeça, um bígamo, um mercador que dera asilo a um fugitivo do Santo Ofício, e um grego culpado de defender opiniões condenadas pela Igreja. Um aguazil e um secretário foram com as autoridades civis, para tratar de que as sentenças fossem devidamente executadas. O secretário, nessa ocasião, era padre António, que assim teve oportunidade de fazer um relato completo dos acontecimentos do dia.
O "quemadero" ficava fora da cidade. Garrotes tinham sido presos às estacas, a fim de que aqueles que houvessem manifestado a intenção de morrer na fé cristã, inclusive os que o faziam no último momento, pudessem escapar à morte pelo fogo, perecendo pelo método mais suave do estrangulamento. A multidão precipitara-se em pós dos soldados e dos prisioneiros e grande número de pessoas, a fim de apreciar melhor os trâmites da execução, foram tomar lugar antecipadamente no espaço aberto em que devia verificar-se a cena final. Havia ali enorme assistência, o que era natural, pois tratava-se de um espectáculo digno de ser visto e de um entretenimento muito apropriado a um hóspede de sangue real; além disso, o espectador tinha a satisfação de saber que estava realizando um acto de piedade e um serviço a Deus. Os destinados ao garrote foram garroteados. Depois atearam-se as chamas, e vivos e mortos foram reduzidos a cinzas, a fim de que a sua memória
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desaparecesse para sempre. O povo levantou um clamor e pôs-se a bater palmas ao ver subir as chamas, abafando quase os gritos agudos das vítimas, e aqui e além uma mulher entoava um salmo lamentoso e estridente à Santíssima Virgem ou a Cristo Crucificado. Caiu a noite e a multidão voltou aos grupos para a cidade, fatigada de tanta emoção e tantas horas passadas em pé, mas sentindo que tivera um dia feliz. Dirigiam-se em grande número para as tabernas. Os bordéis tiveram um movimento nunca visto e muito homem pôs à prova nessa noite a eficácia do fragmento do hábito de frei Blasco, que usava num escapulário ao pescoço.
Padre António também estava cansado, mas a sua primeira obrigação era comunicar os acontecimentos aos dois inquisidores. Feito isso, como era um homem consciencioso, apesar da fadiga que o tentava a ir para a cama sentou-se e escreveu uma narrativa circunstanciada de tudo quanto sucedera naquele dia, enquanto tinha todos os pormenores frescos no espírito. Fê-lo com rapidez e uma eloquência que parecia inspirada pelo Céu, e ao reler o que escrevera verificou que não havia necessidade de alterar uma só palavra. Finalmente, ditoso pela consciência de haver cumprido o seu dever e contribuído, além disso, com a sua modesta parte para uma obra piedosa, meteu-se na cama e dormiu o sono inocente de uma criança.
Tudo isso ele o leu ao desalentado bispo em voz forte e sonora, dando uma ênfase dramática aos episódios mais significativos. Lia com os olhos pregados ao papel. Sentia uma estranha exaltação. Era assim que se servia o Senhor e se mantinha a pureza da fé católica. Terminou a leitura. Tinha de reconhecer que fizera justiça à grandiosa solenidade. Ele próprio sentia a vividez da sua descrição e a maneira artística por que conduzira
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a narrativa, sem saber como, a um clímax imponente. Alçou os olhos. Como muitos outros escritores que submetem a sua obra à apreciação de um ouvinte, gostaria de ser recompensado com uma palavra de louvor. Mas isso não passou de um desejo momentâneo. O fim principal era dissipar as sombrias imaginações do seu amado e venerado superior, lembrando-lhe o mais glorioso incidente da sua carreira. Por mais santo que fosse, não podia deixar de sentir um estremecimento de orgulho ao surgir-lhe ante os olhos do espírito aquele dia magnífico em que relegara aos tormentos eternos tão grande número de amaldiçoados hereges, servindo assim o Senhor, desobrigando a sua consciência e edificando o povo. Padre António ficou surpreendido, mais do que surpreendido, ateimado, quando viu que as lágrimas lhe desciam pelas faces murchas e ele apertava os punhos com força, para conter os soluços que lhe sacudiam o peito.
Atirou ao chão o manuscrito e, saltando do tamborete em que estava sentado, lançou-se aos pés do seu mestre.
- Mas que tem o senhor? - exclamou. - Que fiz eu? Li apenas para distraí-lo...
O bispo afastou-o de si e, pondo-se em pé, estendeu os braços súplices para a cruz negra pregada à parede.
- O grego! - gemeu ele. - O grego!
E, incapaz de se conter por mais tempo, desatou num choro arrebatado. Os dois frades contemplavam-no cheios de consternação. Nunca tinham visto esse homem austero entregar-se a crises emotivas. O bispo secou as lágrimas impacientemente, com a palma da mão.
- Eu sou o culpado - gemeu ele - , terrivelmente culpado.
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Cometi um horrendo pecado e a minha única esperança de perdão está na infinita misericórdia do Senhor.
- Explique pelo amor de Deus, Excelência! Estou absolutamente confuso. Pareço um marinheiro numa tempestade, com o barco desarvorado e o leme perdido. - Com o seu trecho literário ainda a ressoar-lhe nos ouvidos, era impossível a padre António deixar de falar como um livro.
- O grego? Porque Vossa Excelência se refere ao grego? Era um herege e sofreu a justa punição do seu crime.
- Você não sabe o que diz. Não sabe que o meu crime é ainda maior que o dele. Pedi um sinal e o sinal foi-me dado. Tomei-o por um indício da graça divina;; vejo agora que era um indício da Sua cólera. É justo que eu seja humilhado aos olhos dos homens, porque sou um miserável pecador.
Não se voltou para os seus companheiros. Não era a eles que falava, mas à Cruz sobre a qual se imaginara tantas vezes, com as mãos e os pés atravessados por pregos.
- Era um bom velho, caridoso na sua pobreza para com os mais pobres do que ele, e durante os anos que o conheci nunca lhe ouvi pronunciar uma má palavra. Olhava todos os homens com estima e bondade. Possuía a verdadeira nobreza da alma.
- Muitos homens, virtuosos na vida pública e privada, foram justamente condenados pelo Santo Ofício, porquanto a rectidão moral nada pesa na balança contra o pecado mortal da heresia.
O bispo virou-se e considerou padre António. O seu olhar era trágico.
- E o estipêndio do pecado é a morte - murmurou ele. O grego de quem faiavam, Demétrios Ghristopoulos, era
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natural de Chipre e homem de algumas posses, o que lhe permitira dedicar-se aos estudos. Quando os turcos, no reinado de Selim II, invadiram a ilha, tomaram Nicósia, a capital, e passaram a fio de espada vinte mil dos seus habitantes. Famagusta, onde vivia Demétrios Chrastopoulos, foi cercada e rendeu-se após um ano de acirrada resistência. Sucedia isso em 1571. Fugiu ele da cidade condenada! e homiziou-se nos montes até conseguir escapar num bote de pescadores, e depois de muitas aventuras desembarcou na Itália. Estava sem vintém, mas não tardou a arranjar suficiente trabalho, como professor de grego e expositor da filosofia antiga, para não morrer de fome. Numa hora aziaga, porén, fez-se notado por um fidalgo espanhol adido à embaixada do seu país em Roma, o qual durante a sua residência na Itália se rendera ao culto de Platão, então na moda. O nobre levava-o ao seu palácio e os dois liam juntos os imortais diálogos do filósofo. Volvidos alguns anos, no entanto, foi reconduzido à Espanha e convenceu o grego a ir com ele. Foi elevado à vice-realeza do Reino de Valência e nesta cidade veio a monrer. O grego, sem recursos e já à beira da velhice, deixou o palácio do vice-Rei e instalou-se muito modestamente em casa de uma viúva. Tinha adquirido certo renome de erudição e arranjou um precário meio de vida dando lições de grego aos que desejavam adquirir conhecimentos desse nobre idioma.
Frei Blasco de Valeiro ouvira falar dele quando ainda ensinava teologia em Alcalá de Henares. Pouco depois de assumir o cargo de inquisidor em Valência, sabedor de que ele era um homem de boa reputação e vida virtuosa, mandou chamá-lo. Simpatizou com as maneiras suaves e modestas do velho e pediu-lhe que lhe ensinasse a língua em que fora escrito o Novo
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Testamento, a fim de poder lê-lo com maior devoção. Durante nove anos, sempre que os seus múltiplos deveres lhe davam um momento de folga, o inquisidor e o grego trabalharam juntos. Frei Blasco era um aluno diligente e capaz, e ao cabo de alguns meses o grego, que tinha paixão pela grande e antiga literatura do seu país, convenceu-o a enfrentar as obras dos autores clássicos. Era platonista fervoroso e não tardou que se pusessem a ler os "Diálogos". Daí passaram para Aristóteles. O frade não quis ler a "ilíada", que lhe parecia brutal, nem a "Odisseia", que ele achava frívola, mas encontrou muita coisa de admiração nos autores dramáticos. Sempre acabavam, no entanto, por voltar aos "Diálogos".
O inquisidor era um homem de sensibilidade delicada e encantou-o a graça, a piedade religiosa e a profundidade de Platão. Havia nas obras deste muita coisa que um cristão podia aprovar. Era pretexto para que ambos discutissem muitos assuntos sérios. Frei Blasco entrou assim num novo mundo. Sentia um singular deleite na leitura desses grandes livros que lhe proporcionavam um feliz repouso após as ocupações do dia. No seu longo e fecundo convívio com aquele homem que não parecia pertencer a este mundo concebera por ele uma espécie de afeição, e tudo que ouvia dizer do grego, da sua vida simples e honesta, da sua índole bondosa e da sua caridade, aumentava a admiração que lhe inspirava o seu carácter.
Foi um choque terrível para ele quando um holandês luterano, detido pelos familiares da Inquisição por introduzir na Espanha traduções do Novo Testamento, confessou no cavalete haver dado um exemplar ao grego. Prosseguindo o interrogatório, com a assistência de mais uma volta do arrocho, disse
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ter conversado amiúde com ele sobre religião, e que em muitos pontos estavam inteiramente de acordo. Isto era suficiente para que o Santo Ofício se visse obrigado a instaurar um inquérito que, como sempre, foi exaustivo e secreto. O grego foi conservado na ignorância de estar sob suspeita. Ao ler os autos finais do inquérito, frei Blasco ficou horrorizado. Nunca lhe passara pela cabeça que o grego, tão bom, tão humilde, não houvesse, durante os longos anos passados na Itália e depois na Espanha, abjurado as suas opiniões cismáticas e abraçado a fé católica de Roma. Testemunhas juraram ter-lhe ouvido emitir opiniões condenáveis. Demétrios negava que o Espírito Santo procedesse do Filho, rejeitava a supremacia do papa e, embora venerasse a Virgem:, não queria admitir a sua imaculada conceição. A dona da casa em que ele morava ouvira-lhe dizer que as indulgências não tinham valor algum e alguém mais testificou que ele não aceitava a doutrina romana do purgatório.
O colega de frei Blasco, Don Baltasar de Carmona, era doutor em direito e um rígido moralista - homenzinho descarnado, de narigão pontudo, lábios comprimidos, olhos pequenos e desinquietos. Sofria, de uma doença dos intestinos que lhe azedava o temperamento. O seu cargo dava-lhe um poder imenso, que ele exercia com selvagem prazer. Ao ter conhecimento desses factos condenatórios, insistiu em que se prendesse o grego. Frei Blasco fez o que pôde para salvá-lo. Alegou que, na qualidade de cismático, ele não era um herege, e portanto não caía sob a jurisdição do Santo Ofício. Mas não havia só o depoimento do luterano submetido à tortura: um calvinista francês, a quem aquele também incriminara, declarou que ouvira o grego emitir opiniões que cheiravam a protestantismo,
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e ao saber disto frei Blasco viu-se obrigado a cumprir o seu dever de ofício, por mais que tal coisa lhe custasse. Familiares foram buscar o velho a sua casa e levaram-no para o cárcere da Inquisição. Interrogaram-no e confessou-se francamente culpado do que lhe imputavam. Deram-lhe a oportunidade de abjurar as suas falsas crenças e converter-se ao catolicismo, mas com grande consternação de frei Blasco ele recusou fazê-lo. O delito era grave, mas como as provas não fossem concludentes quanto ao protestantismo, frei Blasco quis dar ao grego um ensejo de expiar o seu crime e insistiu junto ao seu colega, partidário de uma condenação imediata, a fim de que o submetessem à tortura, para induzi-lo à conversão e salvar-lhe a alma.
A lei exigia que ambos os inquisidores estivessem presentes à aplicação da tortura, com o representante do bispo diocesano e um notário para registar o ocorrido. Esse espectáculo nunca deixava de inspirar tal horror a frei Blasco que durante noites seguidas era atormentado por sonhos pavorosos.
Trouxeram o grego, desnudaram-lhe o torso e amarraram-no ao cavalete. O seu débil corpo de ancião estava ema-ciado. Rogaram-lhe solenemente que confessasse a verdade, pois os inquisidores não desejavam vê-lo sofrer. Permaneceu calado. Ataram-lhe as pernas aos lados do cavalete, passaram-lhe cordas em volta dos braços, das coxas e das pernas, e as extremidades daquelas foram presas a um arrocho - isto é, um pau mediante o qual podiam ser esticadas. O algoz deu uma vigorosa volta ao arrocho e o grego soltou um grito agudo; outra volta, e as cordas penetraram-lhe na pele e na carne, até aos ossos. Devido à sua idade avançada frei Blasco insistira em que não se dessem mais de quatro voltas, pois
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embora o máximo estabelecido fosse de seis ou sete, raramente se ia além de cinco, ainda quando se tratava de homens robustos. O grego suplicou que o matassem de uma vez e pusessem termo à sua agonia. Embora frei Blasco fosse obrigado a estar presente, não era obrigado a olhar. Mantinha os olhos cravados no chão de pedra, mas os gritos de dor retiniam-lhe nos ouvidos e atassalhavam-lhe os nervos. Aquela era a voz com que o seu amigo havia recitado as graves e nobres passagens de Sófocles; era a mesma voz com que, presa de uma emoção que a custo dominava, ele tinha lido o derradeiro discurso de Sócrates. Antes de cada volta do arrocho ordenava-se ao grego que confessasse a verdade, mas ele cerrava os dentes e não abria a boca. Quando o tiraram do cavalete não podia ter-se em pé e foi preciso carregá-lo de volta ao cárcere do Santo Ofício.
Embora nada houvesse confessado, condenaram-no com base nas suas confissões prévias. Frei Blasco ainda quis salvar-lhe a vida, mas Don Baltasar, o doutor em leis, objectou que ele era tão culpado quanto os outros luteranos condenados à fogueira. O representante do bispo e as demais autoridades a quem consultaram mostraram-se concordes com ele. Como o auto-de-fé só devesse realizar-se algumas semanas depois, frei Blasco teve tempo de escrever ao inquisidor-mor expondo-lhe o caso. O inquisidor-mor respondeu que não via motivo para alterar a decisão do tribunal. Frei Blasco nada mais podia fazer. Mas os gritos desesperados do velho continuavam a ecoar-lhe nos ouvidos e o sofrimento não lhe dava tréguas. Enviava-lhe conselheiros espirituais para tentar convertê-lo, pois embora já fosse impossível salvar-lhe a vida, o arrependimento permitiria que fosse garroteado, poupando-lhe
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assim o suplício da fogueira. Mas o grego mostrou-se contumaz. Apesar da tortura e da longa permanência no cárcere, o seu espírito continuava lúcido e activo. Aos argumentos dos frades respondia com outros argumentos tão subtis que aqueles se enfureciam.
Finalmente chegou a véspera do auto-de-fé. As anteriores solenidades da mesma espécie não haviam feito impressão em frei Blasco, pois os judaizantes relapsos, os mouros que persistiam nas suas práticas diabólicas, os protestantes, eram criminosos perante Deus e os homens, e, levando-se em conta a segurança da Igreja e do Estado, havia todas as razões para fazê-los sofrer. Mas ninguém sabia melhor do que ele quanto o grego era bom, compassivo e prestativo aos necessitados. Apesar da autoridade do seu colega, homem cruel, de alma seca e fria, ele punha em dúvida a legalidade do pavoroso castigo. Tinham trocado palavras acres e Don Baltasar acusara-o de favorecer o criminoso por ser seu amigo. No íntimo, frei Blasco sabia existir pelo menos um fundo de verdade nessa imputação: se ele nunca houvesse encontrado o grego, teria aceite a sentença sem protesto. Já não lhe podia salvar a vida, mas ainda podia salvar a sua alma. Os frades a quem tinha enviado para convencê-lo do seu erro não possuíam a habilidade necessária para tratar com um homem tão instruído. Uma hora antes de romper o dia foi ao cárcere da Inquisição e pediu que o conduzissem à cela do grego. Os dois frades estavam-no ajudando a passar essa última noite na Terra. Frei Blasco mandou-os sair.
- Ele não quis ouvir as nossas exortações - disse um deles.
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Um sorriso bailou nos lábios do grego ao vê-los deixar a cela.
- Sem dúvida alguma, os seus frades são pessoas muito dignas, senhor. Mas não têm grande inteligência.
Estava calmo e, conquanto velho e alquebrado, mantinha uma aparência de dignidade.
- Vossa Reverência há-de perdoar-me se fico na cama. A tortura deixou-me muito fraco e desejo conservar as forças para as cerimónias de hoje.
- Não percamos o tempo em falas ociosas. Dentro de poucas horas você terá de enfrentar um horrível destino. Sabe Deus que eu de bom grado daria dez anos da minha vida para o salvar. As provas eram condenatórias e eu faltaria ao meu juramento se deixasse de cumprir o meu dever.
- Eu jamais desejaria que o senhor fizesse tal coisa.
- Já não lhe posso salvar a vida, mas se consentir em retractar-se e aceitar a conversão, poderei ao menos poupar-lhe o tormento das chamas. Eu estimava-o, Demétrios, e nunca poderei saldar a minha dívida para consigo a não ser salvando a sua alma imortal. Esses frades são ignorantes e tacanhos. Vim aqui fazer uma última tentativa desesperada de convencê-lo do seu erro.
- Perderia o seu tempo, senhor. Nós lhe daríamos muito melhor emprego se conversássemos, como tantas vezes fizemos, sobre a morte de Sócrates. Não me permitiram trazer livros para este calabouço, mas possuo boa memória e tenho encontrado alívio em repetir a mim mesmo aquele discurso em que ele fala com tanta nobreza sobre a alma.
- Não estou a ordenar-lhe agora, Demétrios, estou a suplicar-lhe que me ouça.
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- Não posso negar-lhe esse último acto de cortesia.
Em tom grave, ponto por ponto, com cultura e discrição, o inquisidor expôs os argumentos imaginados pela Igreja para justificar as suas pretensões e refutar as opiniões de hereges e cismáticos. Estava habituado a discutir tais assuntos e expressou-se com habilidade e uma impressionante convicção.
- Eu não merecia muito respeito se, pelo receio de uma morte horrível, fingisse aceitar crenças que considero erróneas - disse o grego depois de ele terminar.
- Não é isso que eu lhe peço. Peço-lhe que creia na verdade com todo o seu coração.
- "Que é a verdade?" perguntou Pôncio Pilatos. É tão impossível ao homem forçar a sua crença como é impossível subjugar as vagas do oceano quando açoitado pela borrasca. Agradeço a Vossa Reverência a bondade de que me dá prova, e esteja certo de que não lhe guardo rancor pelo infortúnio que me aconteceu. O senhor agiu de acordo com a sua consciência e nenhum homem pode fazer mais do que isso. Eu já estou velho e pouca diferença faz que morra hoje ou daqui a um ou dois anos. Só tenho um pedido para lhe fazer. Não abandone, por eu ter desaparecido, os seus estudos da sublime literatura da Grécia antiga. Ela não deixará de ampliar-lhe o espírito e enobrecer-lhe o pensamento.
- Não teme a justa vingança do Senhor contra a sua contumaz obstinação?
- O Senhor possui muitos nomes e uma infinidade de atributos. Tem sido chamado Jeová, Zeus e Brama. Que importância tem o nome que Lhe damos? Mas entre os seus atributos infinitos o principal, como bem o percebeu Sócrates, ainda que pagão, é a justiça. Ele deve saber que o homem
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não acredita naquilo que quer, mas no que pode, e eu não Lhe farei a suma injustiça de supor que Ele condene as suas criaturas por uma coisa de que não são culpadas. Vossa Reverência não me julgue desrespeitoso se lhe peço que me deixe agora a sós com os meus pensamentos.
- Não posso deixá-lo assim. Devo esforçar-me até ao fim para salvar a sua alma imortal das chamas furiosas do Inferno. Diga uma palavra que me dê a esperança de poder salvá-lo ainda. Uma palavra para mostrar que você não continua impenitente, para que eu possa ao menos mitigar o seu castigo aqui na Terra.
O grego sorriu, e é possível que houvesse um toque de ironia nesse sorriso.
- O senhor desempenhará o seu papel, e eu o meu. O seu papel é matar, o meu é morrer sem tremer.
As lágrimas cegaram o inquisidor, que encontrou a custo o caminho da saída.
O bispo referiu este episódio aos frades numa voz embargada, e ao chegar a este ponto cobriu o rosto com as mãos, como se não pudesse suportar a vergonha de contar o resto. Eles escutavam-no compungidos, mas com uma atenção empolgada, e padre António anotava cuidadosamente, na sua memória, cada fala e cada resposta, a fim de registá-las no seu livro.
- Fiz então uma coisa horrível. Don Baltasar estava de cama e eu sabia que ele não se levantaria senão no último momento, pois tinha um medo mortal de que a doença o impedisse de assistir ao auto-de-fé. É um homem ambicioso e queria fazer-se notar pelo príncipe. Eu tinha, pois, liberdade de agir como entendesse. Não podia suportar a ideia
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de ver aquele pobre velho ser devorado pelas chamas cruéis. Ainda me ressoavam ao ouvido os seus gritos ao ser torturado e parecia-me que não cessaria de ouvi-los durante toda a minha vida. Disse às pessoas a quem isso interessava que tinha falado pessoalmente com ele e ele se retractara a ponto de admitir a dupla processão do Espírito Santo. Dei ordem para que o garroteassem antes de queimá-lo e mandei dinheiro por um criado ao algoz para que o despachasse depressa.
Convém explicar que o algoz podia prolongar durante horas a agonia da vítima, apertando-lhe e afrouxando-lhe alternativamente o colar de ferro em torno do pescoço, de modo que era preciso pagar-lhe para dar morte rápida ao infeliz.
- Não ignorava que isso era um pecado. O pesar desvairou-me e mal sabia o que estava a fazer. Foi um pecado que jamais deixarei de censurar a mim mesmo. Disse-o ao meu confessor e cumpri a penitência que ele me impôs. Recebi a absolvição, mas não posso absolver a mim mesmo, e o que sucedeu hoje é o meu castigo.
- Mas, meu senhor, isso foi um acto de compaixão! - obtemperou padre António. - Qual é aquele que, tendo trabalhado consigo tantos anos como eu trabalhei, não conhece a bondade do seu coração, e quem pode censurar-lhe o ter permitido uma vez que essa bondade suplantasse o seu sentimento de justiça?
- Não foi um acto de compaixão. Quem pode afirmar que o grego não ficara abalado pelos meus argumentos e quem sabe se, quando as chamas lhe lambessem a carne, a graça do Senhor não lhe seria concedida, levando-lhe o espírito obstinado a renegar os seus erros? Muitos homens, nesse derradeiro e terrível momento em que estão prestes a encontrar o seu Criador,
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salvaram assim as suas almas. Eu tirei-lhe esse ensejo e com isso o condenei aos tormentos eternos.
Um soluço rouco escapou-se-lhe da garganta - um som que semelhava o grito estrangulado, misterioso, de alguma ave nocturna no tenebroso silêncio da floresta.
- Os tormentos eternos! Quem pode imaginar tal sofrimento? Os réprobos estorcem-se num lago de fogo de onde se desprendem vapores deletérios que eles respiram cheios de angústia. Têm o corpo inçado de vermes. Uma fome e uma sede desesperadas torturam-nos. Chamuscados pelas chamas, os seus gritos formam um tumulto e uma confusão em face dos quais o ribombar do trovão e os bramidos do mar fustigado pela borrasca representam um silêncio mortal. Demónios de medonha aparência zombam e escarnecem deles, batem-lhes com um furor incansável, mais o remorso dilacerados com uma dor mais cruel do que as torturas desses hediondos diabos. O verme da consciência rói-lhes as entranhas. O fogo crucifica-lhes as almas, e comparado com ele o fogo aqui da terra é como o fogo que vemos num quadro, pois é a cólera do Senhor que o ateia e o alimenta, como instrumento terrível da Sua justa vingança por toda a eternidade.
"E a eternidade, como é terrível a eternidade! Tantos milhões de anos passam sobre os réprobos quantas são as gotas de água que têm caído sobre a terra desde o início dos tempos; tantos milhões de anos quantas são as gotas de água de todos os mares e rios do mundo; tantos milhões de anos quantas são as folhas de todas as árvores que existem e quantos são os grãos de areia de todas as praias do oceano; tantos milhões de anos quantas são as lágrimas que os homens têm derramado desde que Deus criou os nossos primeiros pais.
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volvido esse número incalculável de anos, a angústia dessas infelizes criaturas prosseguirá como se apenas houvesse começado, como se fosse ainda o primeiro dia; e a eternidade permanecerá inteira à sua frente, como se nem um segundo houvesse passado. E foi a essa eternidade de sofrimento que eu condenei aquele desgraçado. Que castigo pode reparar um mal tão grande? Oh! tenho medo, tenho medo..."
Estava desesperado. Profundos soluços sacudiam-lhe o peito. Encarava os dois frades com olhos escuros de" terror, e ao fixarem-se messes olhos notaram-lhes no fundo um clarão vermelho, como se visse reflectidas neles, de muito longe, as chamas rubras do Inferno.
- Mandem reunir os monges. Confessar-lhes-ei o meu pecado e, pela salvação da minha alma, ordenar-lhes-ei que me apliquem a disciplina circular.
Era um castigo degradante em que todos os presentes usavam o açoite contra o culpado. Padre António, aterrado, caiu de joelhos e, juntando as mãos como numa prece, implorou ao seu mestre que não insistisse em submeter-se a tão terrível provação.
- Nossos confrades não o vêem com bons olhos, meu senhor, estão furiosos porque Vossa Excelência não os deixou ir à igreja esta manhã. Não o pouparão. Vão açoitá-lo com toda a força. Muitos monges têm morrido sob as suas vergastadas.
- Não quero que me poupem. Se eu morrer, ter-se-á feito justiça. Ordeno-lhe, em nome do seu voto de obediência, que faça o que lhe digo.
O frade pôs-se em pé.
- Vossa Excelência não tem o direito de expor-se
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a tamanha afronta. É bispo de Segóvia. Vai lançar um labéu sobre todo o episcopado da Espanha. Vai diminuir a autoridade de todos aqueles que Deus escolheu para essa alta posição. Tem a certeza de que não há nenhuma ostentação nessa vergonha a que pretende expor-se?
Jamais ousara falar nesse tom peremptório ao seu pai em Deus. O bispo ficou surpreendido. Haveria realmente uma sombra de vanglória no seu desejo de humilhar-se assim em público? Deu um longo olhar ao frade.
- Não sei - disse afinal, lastimavelmente. - Sou como um homem que anda aos tropeções por uma terra desconhecida, nas trevas da noite. Talvez você tenha razão. Eu só pensava em mim, não pensei no efeito que isso produziria nos outros.
Padre António deu um suspiro de alívio.
- Vocês dois aplicar-me-ão a disciplina aqui, em particular.
- Não, não! Não faço isso. Sou incapaz de maltratar o seu sagrado corpo.
- É preciso então lembrar-lhe os seus votos? - perguntou o bispo com a sua velha severidade. - Você tem-me tão pouca estima que hesita em me infligir um castigo insignificante a bem da minha alma? Há açoites debaixo da cama.
Confrangido e em silêncio, o frade foi buscá-los. Estavam manchados de sangue. O bispo despiu a parte superior do hábito, que lhe caiu em volta da cintura. Tirou então a camisa: era feita de lata e perfurada como um ralador, para poder lacerar a carne. Padre António sabia que o bispo usava um cilício de crina - não sempre, pois isso faria com que se acostumasse a ele, mas apenas o número suficiente de vezes
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para que o tormento se renovasse constantemente. Susteve a respiração ao ver aquela horrível camisa de lata, mas ao mesmo tempo sentiu-se edificado. Aquele homem era na verdade um santo. Não deixaria de registar essa particularidade no seu livro. O dorso do bispo mostrava as cicatrizes dos açoites que ele aplicava a si mesmo pelo menos uma vez por semana, e havia chagas abertas que supuravam.
Abraçou-se à fina coluna que sustentava os dois arcos divisórios dos seus aposentos e ofereceu as costas aos dois frades. Cada um deles apanhou em silêncio um açoite e golpeou a carne sangrenta. A cada vergastada o bispo estremecia, mas nem um gemido lhe escapou dos lábios. Não lhe tinham dado mais de uma dúzia de açoites quando ele caiu desmaiado. Levantaram-no e carregaram-no para a cama dura. Jogaram-lhe água em cima, mas como o bispo não recobrasse os sentidos assustaram-se. Padre António disse ao seu colega que mandasse um irmão leigo ir depressa chamar um médico, pois o bispo estava doente, mas ao mesmo tempo recomendou-lhe que avisasse os monges que não deviam incomodá-lo em hipótese alguma. Banhou-lhe as costas laceradas e tomou-lhe ansiosamente o pulso, que vacilava. A princípio julgou que o bispo estivesse à morte. Mas afinal Don Blasco abriu os olhos. Foram precisos alguns instantes para que recobrasse o uso das suas faculdades. Forçou então um sorriso.
- Pobre criatura que eu sou! Desmaiei...
- Não fale, meu senhor. Fique tranquilo. Mas o bispo ergueu-se num dos cotovelos.
- Dê-me a minha camisa.
Padre António olhou com um arrepio para aquele instrumento de tortura.
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- Oh! meu senhor! Não poderia suportá-la agora.
- Dê-ma.
- O médico vem aí. Não lhe conviria ser visto por ele a usar um instrumento de suplício.
O bispo deixou-se cair novamente na dura enxerga.
- Dê-me a minha Cruz - pediu ele.
Afinal chegou o médico, que mandou o doente permanecer na cama e prometeu mandar um remédio. Era um sedativo e dentro em pouco o bispo adormecia.


XVI.

No dia seguinte insistiu em levantar-se. Disse a sua missa. Embora débil e abalado, estava calmo e mergulhou no trabalho como se nada houvesse acontecido.
Pela tarde um irmão leigo veio comunicar-lhe que seu mano Don Manuel estava na sala de visitas e desejava falar-lhe. Supondo que ele tivesse sido informado da sua doença, mandou dizer que lhe ficava agradecido pela visita, mas assuntos urgentes o impediam de recebê-lo. O irmão leigo voltou dizendo que Don Manuel recusava ir embora enquanto o bispo não o recebesse, pois tinha uma comunicação importante para lhe fazer. O bispo soltou um suspiro e disse ao irmão leigo que o mandasse entrar. Desde a chegada a Castel Rodríguez não lhe tinha falado senão nas ocasiões exigidas pela cortesia. Embora censurasse a si próprio a sua falta de caridade, não podia dominar a antipatia que lhe inspirava esse homem vaidoso, brutal e empedernido.
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Don Manuel entrou sumptuosamente trajado, pletórico, ressumbrando saúde e vitalidade agressiva. Caminhava com um ar arrogante. Tinha no rosto uma expressão satisfeita e o bispo julgou notar-lhe malícia e astúcia nos olhos brilhantes e ousados. Teve um sorriso frio ao correr os olhos pela cela nua e austera. O bispo indicou-lhe um tamborete.
- Não tens um assento mais cómodo para me oferecer, mano?
- Não.
- Disseram-me que estavas doente.
- Foi uma indisposição passageira e sem importância. Já voltei ao meu estado normal de saúde.
- Estimo.
Houve um silêncio. Don Manuel continuava a encará-lo com um sorriso levemente zombeteiro.
- Disseste que tinhas uma comunicação para me fazer - falou o bispo afinal.
- E tenho, mano. Parece que a cerimónia de ontem de manhã não correspondeu às tuas esperanças.
- Faze-me o favor de dizer a que vens, Manuel.
- Que te fez pensar que eras tu o instrumento escolhido para curar essa rapariga da sua enfermidade?
O bispo hesitou. O seu primeiro impulso foi não dar resposta, mas, mortificando-se diante daquele homem grosseiro e vulgar, respondeu.
- Garantiram-me que a rapariga tinha falado a verdade e, embora me julgasse indigno, senti-me na obrigação de fazer o que me era solicitado.
- Cometeste um erro, mano. Devias tê-la interrogado mais cuidadosamente. A Santíssima Virgem disse-lhe que o filho
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de Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la. Porque tiraste logo a conclusão de que a Virgem se referia a ti? Não achas que te faltou um pouco de humildade cristã?
O bispo empalideceu.
- Que queres dizer? - exclamou ele. - Segundo ela me informou, Nossa Senhora tinha-lhe dito que era eu.
- É uma rapariga tola e ignorante. Supôs que a pessoa designada fosses tu, porque és bispo e, não sei porquê, o povo desta cidade tem ouvido falar muito da tua santidade e das tuas mortificações.
O bispo fez uma breve oração mental para poder dominar a cólera e a vergonha que lhe causavam as palavras do irmão.
- Como sabes disso? Quem te disse que as palavras da Santíssima Virgem foram essas?
Dom Manuel espirrou uma risada. Aquilo parecia-lhe uma óptima pilhéria.
- Vim a saber que a rapariga tem um tio chamado Domingo. Nós conhecemo-lo em pequenos. Se bem me lembro, estiveste no seminário com ele.
O bispo inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
- Domingo Pérez é um borracho,. Costuma ir a uma taberna frequentada pelos meus criados e fez amizade com eles, sem dúvida esperando que lhe pagassem a bebida. A noite passada tomou um pifão. Como era natural, todos falavam dos acontecimentos da manhã, pois o teu fiasco, mano, é assunto de todas as conversas. Domingo disse-lhes que não esperava outra coisa e tinha procurado prevenir-te, mas não o quiseram receber no convento. Repetiu então exactamente
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as palavras que a Virgem tinha pronunciado, conforme lhe foram repetidas pela sobrinha.
O bispo estava confuso. Não sabia o que dizer. Don Manuel continuou a falar, já com uma expressão de franca zombaria no olhar. O bispo perguntava consigo, lastimosamente, que espécie de homem seria aquele, que podia encontrar um prazer tão cruel em humilhar assim o próprio irmão.
- Não te passou pela cabeça, mano, que ela pudesse referir-se a mim?
- A ti?
O bispo mal podia dar crédito aos seus ouvidos. Se fosse capaz de rir, teria rido nessa ocasião.
- Isso surpreende-te, mano? Durante vinte e quatro anos tenho servido o meu rei. Arrisquei a minha vida uma centena de vezes, bati-me em batalhas gloriosas e o meu corpo traz cicatrizes dos mais honrosos ferimentos. Tenho sofrido fome e sede, o frio rigoroso daqueles malditos Países Baixos e o tórrido calor do Verão. Tu queimaste algumas dúzias de hereges na fogueira enquanto eu, para glória do Senhor, matei milhares desses hereges. Para glória de Deus, assolei-lhes os campos e queimei-lhes as searas. Assediei cidades prósperas e, quando se renderam, passei a fio de espada todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças.
O bispo estremeceu.
- O Santo Ofício só condena os acusados de acordo com as normas do processo judicial. Dá-lhes o ensejo de arrependerem-se e expiarem os seus pecados. Tem o maior cuidado em fazer justiça e, se castiga os culpados, também absolve os inocentes.
- Eu conheço de mais esses holandeses para crer que sejam capazes de arrependimento. Eles têm a heresia no sangue.
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São traidores à sua fé e ao seu rei e merecem a morte. Ninguém que me conheça pode negar que eu tenha servido bem ao Senhor.
O bispo pôs-se a reflectir. A brutalidade e a vanglória do irmão enchiam-no de asco. Parecia incrível que Deus pudesse escolher semelhante instrumento para a Sua obra, e no entanto podia ser que Ele o tivesse feito justamente por ser Manuel quem era, a fim de cobri-lo de vergonha, a ele, Blasco de Valero, por causa do seu pecado que não fora perdoado. Nesse caso, cumpria-lhe baixar a cabeça e aceitar a humilhação.
- Deus sabe que eu tenho consciência da minha indignidade - disse ele por fim. - Se fizesses essa tentativa e fosses mal sucedido, causarias um escândalo na cidade e darias um cruel ensejo aos maldosos para escarnecerem. Suplico-te que não faças nada precipitadamente; é um assunto que exige cuidadosa reflexão.
- Já reflectimos bastante, mano - volveu tranquilamente Don Manuel. - Consultei os meus amigos, que são as pessoas mais importantes da cidade. Pedi a opinião do arcipreste e do prior deste convento. Todos eles estão de acordo comigo.
O bispo tornou a fazer uma pausa. Sabia existir na cidade muita gente que invejava as posições conquistadas por ele e pelo irmão, porque, embora fidalgo de nascença, eram uma família de pouca monta. Bem podia ser que tivessem consentido na absurda pretensão de Don Manuel a fim de lançar descrédito sobre ambos.
- Não deves esquecer a possibilidade de que essa rapariga tenha sido iludida.
- Isso é o que vamos ver. Se eu fracassar, ficará provado
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que a rapariga é uma feiticeira e deve ser entregue à Inquisição para que a) julguem e castiguem.
- Se obtiveste o consentimento das autoridades municipais e estás resolvido a fazer a tentativa, não tenho o poder de impedir-te. Mas peço-te que faças tudo com o maior sigilo possível, para impedir um escândalo ainda maior que o que já tivemos.
- Agradeço-te o conselho, mano. Dar-lhe-ei a atenção que ele merece.
Com estas palavras, Don Manuel retirou-se. O bispo deu um profundo suspiro. Parecia-lhe que a sua taça de amargura se tinha enchido até às bordas. Ajoelhou-se diante da Cruz negra pregada à parede e orou em silêncio. Depois chamou um irmão leigo e mandou que fosse buscar Domingo Pérez.
- Se não o achar em casa, hão-de encontrá-lo na taberna próxima ao palácio em que está hospedado meu irmão, Don Manuel. Peça-lhe que me faça o favor de vir cá sem demora.


XVII.

Pouco depois o irmão leigo introduzia Domingo no oratório do bispo. Os dois homens encararam-se silenciosamente durante algum tempo. Não se encontravam desde quando haviam estudado juntos no seminário de Alcalá de Henares, ainda jovens e pouco mais que meninos. Ambos estavam já idosos, emaciados e devastados pelos anos. Mas a um tinham devastado a austeridade, as longas vigílias, os jejuns e o trabalho
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constante, enquanto o outro fora gasto pela bebida e pela dissipação. Todavia), se alguma semelhança havia na sua aparência, nenhuma tinham na expressão: a do bispo era atribulada e ansiosa, ao passo que a do escrevinhador era despreocupada e bem-humorada. Como clérigo das ordens menores, vestia batina, e esta estava coçada, esverdeada pelo longo uso e coberta, na frente, de nódoas de vinho e de gordura. Ambos, porém, tinham um ar de ascetismo e distinção intelectual.
- Vossa Excelência exprimiu o desejo de falar comigo - disse Domingo.
Um débil mas terno sorriso esboçou-se nos lábios pálidos do bispo.
- Há muito tempo que não nos vemos, Domingo.
- Os nossos caminhos têm-se distanciado muito. Eu cuidava que Vossa Excelência houvesse esquecido há muito a existência de uma criatura tão mesquinha e indigna como Domingo Pérez.
- Nós conhecemo-nos durante toda a vida. Envergonho-me de me ver tratado por ti com tanta cerimónia. Há muitos anos que não ouço um amigo chamar-me Blasco.
Domingo dirigiu-lhe o seu sorriso encantador, que tinha o dom de desarmar.
- Os grandes não têm amigos, meu querido Blasco. Esse é o preço que eles têm de pagar pela sua grandeza.
- Esqueçamos por uma hora esta minha lamentável grandeza e conversemos como os velhos e íntimos camaradas que fomos. Estavas enganado ao pensar que eu te houvesse esquecido. Tivemos demasiadas coisas em comum para que isso fosse possível. Eu mantinha-me informado da tua existência.
- Ela não tem sido muito edificante.
O bispo sentou-se num mocho e fez sinal a Domingo para que tomasse o outro.
- Mais ainda, mantive-me em contacto contigo através das tuas cartas.
- Como pode ser isso?... Eu nunca te escrevi...
- Não da tua própria parte, mas quando éramos rapazes li tantas poesias tuas que fiquei conhecendo muito bem a tua letra. Julgas que eu não a reconhecia nas cartas que meu pai e meu irmão Martin me enviavam? Sabia perfeitamente que eles eram incapazes de expressar-se com tanta elegância e propriedade. Além disso, havia certos modos de dizer, certos torneios de frase e certas reflexões em que eu reconhecia logo o teu espírito travesso.
Domingo riu suavemente.
- Não são muito notáveis os dotes literários de Don Juan e de teu irmão Martin. Depois de dizerem que gozavam saúde, que esperavam que o mesmo se desse contigo e que a colheita tinha sido minguada, não lhes restava mais nada que dizer. Tanto a bem do meu crédito como deles, eu sentia-me na obrigação de avivar essas secas informações com os mexericos da cidade e as agudezas e gracejos irreverentes que me ocorressem no momento.
- Como é lamentável que tenhas malbaratado os teus grandes talentos, Domingo! As coisas que eu tinha de aprender à força de aplicação e diligência, tu adquiria-las como que por intuição. Muitas vezes eu aterrava-me diante da audácia do teu pensamento, dessa abundância de ideias inesperadas que pareciam fluir do teu cérebro com tão pouco esforço como a água que jorra de uma fonte, mas nunca duvidei da tua inteligência. Tu nasceste para brilhar e, se não fosse a tua índole
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irrequieta, serias hoje um luzido armamento da nossa Santa Madre Igreja.
- Ao invés disso - volveu Domingo - , não passo de um pobre letrado, um dramaturgo que não encontra actores para lhe representarem as peças, um literato de aluguel que escreve sermões para padres estúpidos e incapazes de fazê-lo por si, um beberrão sem préstimo. Faltava-me a vocação, meu bom Blasco. A vida fascinava-me. O meu lugar não era nem no claustro nem no lar, mas na estrada real com as suas aventuras e perigos, os seus encontros fortuitos e a sua múltipla variedade. Vivi. Curti fome e sede, criei chagas nos pés, levei bordoada, sofri todos os infortúnios que podem caber em sorte a um homem: em suma, vivi. E mesmo agora que a velhice vai tomando conta de mim, não lamento os anos que desperdicei, pois eu também dormi no Parnaso; e quando vou a uma aldeia distante escrever uma carta para algum lapuz analfabeto, ou quando estou sentado no meu quarto, rodeado pelos meus livros, rimando falas em dramas que jamais serão levados à cena, sinto tamanha exultação que não trocaria de lugar com um cardeal ou mesmo com um papa.
- Não receias a cólera futura do Senhor? O estipêndio do pecado é a morte.
- É o bispo de Segóvia que me faz esta pergunta, ou o meu velho e estimado amigo Blasco de Valero?
- Até hoje não traí nenhum amigo ou inimigo. Enquanto não disseres nada que seja ofensivo à Fé, podes dizer o que quiseres.
- Então será esta a minha resposta: Nós sabemos que os atributos de Deus são infinitos, e sempre achei estranho que ninguém lhe tenha jamais atribuído um pouco de senso comum.
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É difícil acreditar que Ele tivesse criado um mundo tão belo sem desejar que os homens se deleitassem nele. Teria Ele dado às estrelas o seu esplendor, aos pássaros o seu canto mavioso e às flores o seu perfume, se não devêssemos sentir prazer nessas coisas? Eu pequei perante os homens e os homens condenaram-me por isso. Deus fez-me homem, com as paixões de um homem, e ter-me-ia Ele dado essas paixões unicamente para que eu as reprimisse? Foi Ele que me deu este espírito aventuroso e este amor à vida. Espero humildemente que, quando eu me encontrar face a face com o meu Criador, Ele se condoa das minhas imperfeições e me olhe com clemência. O bispo parecia profundamente perturbado. Podia responder ao pobre poeta que nós fomos postos na Terra para desprezar os seus deleites, resistir à tentação, vencer a nós mesmos e carregar a nossa cruz - para que no fim, embora não passemos de miseráveis pecadores, possamos ser considerados dignos da comunhão dos santos. Mas de que serviriam as suas palavras? Nada podia fazer senão rezar para que, antes de vir buscá-lo a morte, a graça de Deus descesse sobre o infortunado homem e ele se arrependesse das suas más acções. Fez-se um silêncio entre ambos.
- Não te mandei chamar para fazer com que te corrigisses - disse o bispo por fim. - Não me seria difícil refutar as tuas opiniões erróneas, mas sei de longa data o quanto és engenhoso em fazer parecer plausíveis os piores argumentos, e conheço também o prazer que sentes em irritar os demais com sofismas. Quero crer que grande parte do que disseste foi dito apenas com o fim de te divertires à minha custa. Tens uma sobrinha.
- Tenho.
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- Qual é a tua opinião sobre essa história que alvoroçou toda a cidade?
- Ela é uma menina virtuosa e verídica. É boa católica, mas não exageradamente religiosa.
- Bem creio nisso, pois estou informado de que ela foi educada por ti.
- Também não é dada a devaneios ociosos. É até, como não podem deixar de ser os pobres, um tanto prosaica. Ninguém poderia acusá-la de possuir a inditosa faculdade da imaginação.
- Acreditas, então, que a Santíssima Virgem lhe tenha aparecido realmente?
- Estive em dúvida até ontem, quando ela me referiu os termos exactos que a Virgem havia empregado. Então convenci-me, e foi por isso que quis falar contigo. Percebi logo qual era a pessoa indicada e quis poupar-te uma intervenção inútil. Mas não me deixaram entrar.
O bispo suspirou.
- Uma das cruzes que temos de carregar, e não a menor delas, é que os nossos companheiros de labutas, na sua solicitude para connosco, impedem que cheguem até nós aqueles a quem seria proveitoso recebermos.
- O tempo não embotou a afeição que me ligava a ti na mocidade, pois, como vês, eu, um pecador, posso dar-me ao luxo de ceder aos cegos impulsos do coração. Queria poupar-te uma humilhação que não podia deixar de ser-te muito amarga. Logo que a rapariga me repetiu as palavras exactas da Virgem Santíssima, eu percebi quem era a pessoa designada para curá-la da sua enfermidade.
- Ela disse-me que Nossa Senhora me tinha designado.
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- Foi um engano natural numa menina que conhecia as tuas mortificações, a tua virtude e austeridade. A Santíssima Virgem disse-lhe que o poder de curá-la estava nas mãos daquele entre os filhos de teu pai que melhor tem servido a Deus.
- Só há pouco vim a saber disso.
- Não sabes então a quem a Virgem se referia? É claro como água da fonte.
O bispo empalideceu e lançou um olhar ansioso a Domingo.
- Meu mano Martin?
- O padeiro.
Gotas de suor cobraram a fronte do bispo. Estremeceu como se alguém lhe pisasse na sepultura.
- Isso é impossível. Ele é sem dúvida um homem de bem, mas completamemte mundano.
- Impossível, por quê? Porque ele não tem instrução? Um dos mistérios da nossa Fé é que o Senhor, que deu a razão ao homem, elevando-o desse modo acima dos brutos, nunca deu, ao que saibamos, grande valor à inteligência. Teu irmão é um homem bom e simples. Tem sido um marido fiel e um pai amoroso. Tem honrado pai e mãe, dando-lhes de comer quando tinham fome e cuidando deles quando estavam doentes. Aguentou submisso o desprezo do pai e a aflição da mãe porque ele, um fidalgo de nascença, adoptou um ofício que o rebaixava na estima dos tolos. Suportou com bom humor o desdém da nobreza e as zombarias do vulgo. Como nosso pai Adão, ganha o seu pão com o suor do seu rosto, sentindo um modesto desvanecimento em saber que o pão que faz é bom. Aceita com gratidão as alegrias da vida e com resignação
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os seus pêsames. Tem socorrido os necessitados. É um homem de trato ameno e sempre bem disposto. Mostra-se amigo de todos. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis e é bem possível que aos olhos divinos, pela sua vida diligente e honesta, a sua inocente alegria, Martim o padeiro O tenha servido melhor do que tu, que buscas a salvação nas orações e na penitência, ou teu irmão Manuel, que faz glória das mulheres e crianças que trucidou e das cidades prósperas que reduziu a desoladas ruínas.
O bispo passou a mão pesadamente pela testa. O seu rosto tinha uma expressão de angústia.
- Tu conheces-me de mais, Domingo - disse ele em voz trémula - , para julgar que eu me tenha abalançado a fazer aquilo sem um ansioso exame de consciência. Eu sabia ser indigno e a minha alma estava aterrada, mas tomei o sinal que me foi concedido por uma ordem de executar aquilo que eu acreditava ser a vontade do Senhor. Enganei-me. E agora meu irmão Manuel está resolvido a tentar aquilo em cuja realização falhei.
- Já em pequeno ele se fazia notar mais pela força corporal do que pelo vigor do entendimento.
- É tão teimoso quanto errado. Os notáveis da cidade estão a animá-lo na sua pretensão para poderem metê-lo à chacota depois. Conseguiu a aprovação do arcipreste e do prior deste convento.
- Deves impedi-lo a todo o custo.
- Não tenho autoridade para tanto.
- Se teu irmão se obstinar nessa loucura, quererá vingar-se da sua decepção naquela infeliz rapariga. O povo tomará o partido dele e não terá compaixão. Em nome da nossa velha
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amizade, suplico-te que a protejas contra a hostilidade e a cega violência do povo.
- Pela Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor, juro-te que darei a minha vida, se preciso for, para salvar a menina de todo o perigo.
Domingo pôs-se em pé.
- Agradeço-te de todo o coração. Adeus, meu caro. Os nossos caminhos são diferentes e não tornaremos a encontrar-nos. Adeus para sempre.
- Adeus. Oh! Domingo, sou um homem bem infeliz! Ora por mim, pede a Deus em todas as tuas orações que me conceda a graça de livrar-me do cruel fardo desta existência.
Estava tão perturbado e tinha uma expressão tão lastimosa que o velho beberrão se compadeceu dele. Levado por um impulso repentino, abraçou o bispo e beijou-o nas duas faces. O pecador estreitou o santo contra o peito e logo se retirou.


XVIII.

Nessa noite aconteceu um facto muito estranho. A lua cheia, prosseguindo na sua rota predeterminada, tinha um brilho tão deslumbrante que o céu límpido estava azul como o manto de veludo que cobria as vestes brancas da Virgem Maria. Os habitantes de Castel Rodríguez dormiam. De repente, todos os sinos da cidade se puseram a badalar com um clamor capaz de ressuscitar os mortos. Despertou os adormecidos e alguns precipitaram-se para as janelas, enquanto outros, semidespidos, apanhando as suas roupas à passagem, corriam para a rua.
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Esse badalar de sinos a uma hora tão insólita significava que o fogo havia irrompido nalguma parte da cidade e as tímidas donas de casa trataram de reunir os seus objectos de valor, pois quando se declarava um incêndio ninguém podia prever até onde se alastraria, e era de bom aviso pôr a salvo tudo quanto se podia antes que as chamas atingissem a casa. Tomados de pânico, alguns foram ao ponto de atirar as roupas de cama pelas janelas e outros começaram a carregar os móveis para fora, depositando-os diante das suas portas.
Os moradores escoavam-se para as ruas, que ficaram regurgitamtes. Levados por um impulso comum, aglomeraram-se na grande praça que constituía o orgulho do lugar. Cada qual perguntava ao seu vizinho onde era o incêndio. Os homens praguejavam e as mulheres torciam as mãos. Corriam de um lado para outro à procura das casas que ardiam. Erguiam os olhos para o céu, buscando o clarão denunciador que devia assinalar o lugar do sinistro. Não se avistava coisa nenhuma. As pessoas que desembocavam na praça, vindas dos diversos quarteirões da cidade, afirmavam que no seu bairro não havia incêndio. Não havia incêndio em parte alguma. Então, como se um vento houvesse soprado de súbito no meio deles, todos tiveram ao mesmo tempo a ideia de que alguns peraltas se estavam divertindo a bater os sinos para fazer o povo sair da cama e meter-lhe medo. Homens furiosos, decididos a moê-los com pancadas, arremessaram-se para as torres das igrejas. Aguardava-os ali um espectáculo pasmoso. As cordas dos sinos esticavam-se e distendiam-se sem que ninguém as puxasse. Contemplaram-nas por um momento, cheios de assombro; depois, carregando tochas e lanternas, subiram a correr as íngremes escadas das torres. Ao alcançarem os campanários,
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o clamor ensurdeceu-os. Os sinos sacudiam-se de um lado para outro muma furiosa oscilação e os badalos atroavam-lhes nos flancos de bronze. Não havia ninguém ali. Homem algum seria capaz de tirar tão violento estrépito daqueles pesados sinos. Dir-se-ia que estes haviam enlouquecido de repente. Tangiam sozinhos.
Anelantes, com o terror nos corações, despenhando-se pelas escadas como se levassem o Diabo nos calcanhares, correram para as ruas e, com palavras doidas e gestos desvairados, contaram o que tinham visto.
Tratava-se de um milagre. Era o Senhor que fazia tanger os sinos, e ninguém sabia se aquilo augurava bem ou mal à cidade. Muitos caíram de joelhos e oraram em altas vozes. Pecadores lembraram-se dos seus pecados e pensaram na cólera divina que os aguardava. Os curas mandaram abrir as portas das igrejas e a multidão invadiu-as, acompanhamdo os padres nas suas preces, em que se suplicava ao Altíssimo piedade para as suas criaturas. Só ao cabo de muito tempo recobraram o sossego e voltaram, silenciosos e mais calmos, para as suas casas.


XIX.

Ninguém sabia onde aquilo tinha começado, se a ideia ocorrera a uma pessoa de grande imaginação ou se fora concebida independentemente por muitas,. Era como a cólera; não se sabe se a trouxe para a cidade um forasteiro vindo de terras estranhas ou se foi um vento funesto que disseminou a doença. Um homem adoece aqui, acolá morre uma mulher, e quando
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despertamos para a consciência do perigo já a epidemia grassa por todas as ruas da cidade e os coveiros não podem cavar sepulturas com a necessária rapidez para enterrar todos os mortos. Ainda pela manhã, espalhara-se pela população de Castel Rodríguez a convicção de que a misteriosa ocorrência da noite anterior tinha uma relação qualquer com o aparecimento da Santa Virgem a Caitalina Pérez. Não se falava de outra coisa. Magistrados discutiam o assunto nas suas câmaras de conselho, sacerdotes nas suas sacristias e nobres nos seus palácios. O povo nas ruas, as donas de casa no mercado e os artífices nas suas oficinas falavam dele, cheios de perplexidade. Os monges nos seus mosteiros e as freiras nos seus conventos não podiam concentrar-se nas suas orações.
Dentro em pouco chegou-se à conclusão de que não podia haver dúvidas quanto à pessoa designada pelas palavras enigmáticas da Santíssima Virgem. Não eram poucos, sobretudo entre o clero secular, os que indagavam se Deus não estaria descontente com a excessiva austeridade do bispo e se um certo elemento de arrogância que havia na sua humildade não incorreria na verdade na reprovação divina. Mas em Dom Manuel de Valero não havia nódoa nem pecha de qualquer sorte. Ele tinha dedicado os melhores anos da sua vida ao serviço do Senhor e de el-Rei. Ao conferir-lhe assinaladas honrarias, Sua Majestade, vice-regente do Todo-Poderoso na terra, apusera o selo da sua aprovação ao valor e à virtude de Don Manuel. Tornara-se manifesto a todos, clérigos e leigos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, que Don Manuel era o homem escolhido para realizar o milagre que a vontade divina ordenara. Uma deputação de eclesiásticos eminentes, membros da aristocracia e pessoas de autoridade no
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conselho municipal, foi visitá-lo para lhe comunicar a sua aprovação unânime. Don Manuel, à sua maneira rude de soldado, respondeu-lhes que estava pronto para colocar-se à sua disposição. Ficou resolvido que a cerimónia se realizaria no da seguinte, na igreja da colegiada. Don Manuel pediu ao arcipreste que o recebesse em confissão naquela tarde e, como pretendia comungar pela manhã, o que só podia fazer em jejum, mandou suspender a ceia que ia oferecer aos seus amigos durante a noite. Era um homem consciencioso e estava decidido a não omitir nada que pudesse tornar a sua intervenção eficaz em ocasião tão solene. Três vezes armado está aquele que, absolvido dos seus pecados e livre de toda a culpa, deposita a sua confiança em Deus.
O prior do convento dominicano informou pessoalmente o bispo da resolução tomada, convidando-o ao mesmo tempo para chefiar os monges que iriam em procissão assistir à cerimónia. Don Blasco percebeu a malícia encoberta sob o oferecimento do prior mas aceitou gravemente, agradecendo-lhe a honra. Não sabia o que fazer. Não ligava importância ao que lhe tinha dito Domingo sobre o seu irmão Martin; conhecia demasiado o gosto de Domingo a quezilar o próximo e o prazer que tinha em defender ideias paradoxais; mas, com tudo isso, tinha a firme convicção de que Don Manuel não era o homem indicado para realizar um milagre. Fugiria de bom grado à obrigação de assistir à sua confusão, mas sabia que se recusasse ir isto seria atribuído ao despeito. Não ficava bem ao seu alto cargo dar aos espíritos maldosos um ensejo de pensar mal dele. Além disso, tinha ainda de cumprir a promessa que fizera a Domingo. Conhecia bem a insensatez e a brutalidade da multidão, quer a constituísse gente bem ou mal nascida,
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e era bem provável que, vendo-se decepcionados na sua esperança de um portento, tirassem vingança na infortunada moça. Achando-se presente, ele poderia salvá-la de tal vandalismo. No da seguinte, pois, com o coração opresso, acompanhado dos seus dois fiéis secretários, dirigiu-se do convento para a igreja à testa dos monges. A igreja achava-se repleta de gente até às portas e contudo o povo, ávido de ver um milagre realizar-se diante dos seus olhos, continuava a fazer força para entrar. Abriram passagem e o bispo, seguido pelos frades, adiantou-se vagarosamente pela nave. Sentou-se numa grande cadeira colocada ao lado e um pouco para a frente do altar-mor. O coro estava cheio de notabilidades locais. Momentos depois Don Manuel entrou com uma comitiva de cavalheiros e sentou-se numa cadeira reservada para ele no outro lado do altar. Vestia uma armadura de parada, o peitoral damasquinado de ouro, e envergava o grande manto da Ordem de Calatrava com a sua cruz verde. Os nobres;, no coro, tinham posto os seus trajes mais sumptuosos. Palestravam e riam, trocando acenos de cabeça e sorrisos entre si. Na nave, a multidão conversava alto e as pessoas chamavam-se umas às outras como se estivessem numa tourada. O bispo observava-os, indignado. Aquilo era um desacato à religião. Estava já disposto a levantar-se e vituperar-lhes aquela irreverente leviandade.
Ao pé dos degraus, apoiando-se na muleta, estava ajoelhada Cattalina.
Ouviram-se os primeiros acordes de um improviso ao órgão, e as floridas notas desceram a bailar jovialmente por sobre as cabeças da congregação. A igreja era de uma arquitectura vasta e simples, mas os sucessivos chefes da grande
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casa de Henríquez tinham-na adornado com um tecto de madeira pintada em estilo "plateresco", encaixando os retábulos em maciças molduras douradas e vestindo as imagens com mantos magnificentes. Os assentos do coro eram lavrados a primor. Nas capelas achavam-se os túmulos - os mais antigos de pedra, austeros e frios, os mais recentes de mármore ricamente esculpido - em que descansavam os restos mortais dos defuntos duques e das suas esposas. Uma luz fosca filtrava-se pelos vitrais e a atmosfera estava pesada de incenso.
Chegaram os sacerdotes, envergando os sumptuosos paramentos que eram usados em tais ocasiões e que tinham sido doados à igreja por damas nobres e devotas. O subdiácono segurava o cálice e a patena, envoltos no véu. A missa foi cantada. Um tremor respeitoso percorreu o vasto concurso de gente, que caiu de joelhos ao ouvir o tinido argentino da campainha que anunciava a elevação da Hóstia e do Cálice. O celebrante, que era o arcipreste, participou da Santa Comunhão e administrou-a sucessivamente a Don Manuel e a Catalina. Tinha chegado afinal o momento que a multidão aguardava com tamanha impaciência. Elevou-se dela um estranho som, que não era um som de vozes nem propriamente um ruído de movimentos ansiosos, mas parecia antes o suspirar do vento nos pinheirais, como se a expectativa da multidão se houvesse tornado audível.
Don Manuel pôs-se em pé e adiantou-se a passos largos para a jovem ajoelhada. Com a sua armadura, o grande manto da ordem a pender dos ombros, formava ele uma figura imponente e magnífica. A cena e a ocasião revestiam-no de uma dignidade desacostumada. Tinha confiança no seu poder. Pousou a mão na cabeça da jovem e, em voz alta, como se
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desse ordem de carregar ao seu regimento, de maneira que foi ouvido com clareza nos mais afastados recantos da igreja, repetiu as palavras que lhe tinham dado para pronunciar:
- Em nome de Deus Padre, Filho e Espírito Santo, ordeno a ti, Catalina Pérez, que te levantes, lances fora essa inútil muleta e caminhes.
A jovem assustada e como que enfeitiçada pela solenidade da ocasião, pôs-se em pé com dificuldade e largou a muleta. Deu um passo à frente e, com um grito de terror, caiu estendida no chão. O milagre falhara mais uma vez.
Levantou-se então uma grande algazarra e dir-se-ia que uma loucura súbita se apoderara da multidão. Homens bradavam, mulheres proferiam gritos agudos. Berravam de fúria.
- Bruxa! Bruxa! À fogueira! À fogueira! Queimem-na!
Arrastados por um impulso repentino, avançaram na direcção do santuário, dispostos a linchar a moça. No seu arrebatamento, arredavam-se uns aos outros do caminho. Alguns caíram e foram brutalmente espezinhados. Os gritos de desespero acresciam o tumulto geral.
O bispo pôs-se em pé de um salto e, com um rápido movimento circular, atravessou o santuário até fazer frente à multidão desvairada. Ergueu os braços acima da cabeça e os seus grandes olhos escuros chamejavam.
- Para trás! para trás! - gritou numa voz de trovão. - Quem sois vós para profanar este lugar? Para trás, digo-vos eu, para trás!
Tão terrificante era o seu aspecto que uma exclamação de horror partiu de todas as gargantas. A multidão estacou de súbito, como se um grande abismo se tivesse aberto diante
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dela. Recuaram. Por um momento o bispo considerou-os com os olhos negros de indignação.
- Vergonha! Vergonha! - gritou ele e, cerrando os punhos, atirou os braços para a frente como se quisesse fulminá-los com o raio da sua cólera. - Ajoelhai, ajoelhai e pedi que vos seja perdoado o insulto que fizestes à casa do Senhor.
A estas palavras, dominados pela força da sua autoridade, muitos caíram de joelhos a soluçar. Outros, como se o atordoamento os paralisasse, ficaram imóveis a contemplar boquiabertos aquela terrível figura. Lentamente, o bispo correu os olhos de um lado para o outro até abranger toda a vasta multidão, e cada um teve a impressão de que esses olhos irados se fixaram particularmente nele. Fez-se silêncio, só cortado pelos soluços histéricos de uma mulher aqui e além.
- Escutai - disse finalmente o bispo. - Escutai o que eu digo. - A sua voz não era já ameaçadora, mas grave, severa e autoritária. - Ouvi. Conheceis as palavras que Nossa Senhora dirigiu a Catalina Pérez e conheceis também os portentos que ocorreram nesta cidade, provocando a confusão e a inquietude nos vossos espíritos. A Santíssima Virgem disse a esta menina que o filho de Dom Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la da sua enfermidade. No nosso condenável orgulho e vaidade, eu que vos falo e meu irmão Don Manuel tivemos a temeridade de julgar que um de nós era a pessoa designada. Fomos amargamente punidos pela nossa presunção. Mas Don Juan de Valero ainda tem outro filho.
A multidão interrompeu-o com risos e vozearia.
- "El panadero"! - gritavam.
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Puseram-se a cantar em tom escarninho, dentro de uma espécie de cadência rude:
- "El panadero, el panadero..."
- Silêncio! - gritou o bispo.
As pessoas da multidão fizeram calar umas às outras.
- Ride! Qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso dos tolos. Que exige Deus de vós senão que sejais justos, ameis a clemência e andeis humildemente nos caminhos do Senhor? Hipócritas e blasfemadores! Impuros! Vergonha, vergonha, vergonha!
Repetiu esta palavra com um tom de desdém cada vez mais pungente, e os que o ouviam recuaram como recuaria um homem a cuja face fosse atirado um copo de água gelada. Era terrível de ver-se a cólera do prelado. Percorreu a multidão com um olhar de causticamte desprezo.
- Estão presentes os familiares do Santo Ofício?
Um som estranho, semelhante a um suspiro de susto, percorreu a multidão, como se todos ao mesmo tempo houvessem sustido o fôlego, pois esses instrumentos da Inquisição provocavam o terror no seio do povo. Ignoravam o significado dessas palavras sinistras e cada qual se pôs a tremer como varas verdes. Vários homens aprumaram-se atrás do Bispo.
- Que se apresentem - disse este.
Como os familiares do Santo Ofício dispunham de poder, influência e sobretudo isenção dos seus terríveis inquéritos, era um cargo muito procurado por homens da mais alta categoria. Havia oito em Castel Rodríguez. Fez-se um silêncio momentâneo,
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enquanto eles se erguiam dos seus assentos e tomavam posição atrás do bispo. Este aguardou até sentir, pelo silenciar dos pés, que todos eles se achavam por trás de si.
- Escutai - disse novamente. O indicador da sua mão estendida parecia acusar cada uma das apavoradas criaturas. - O Santo Ofício nunca procede às pressas nem impelido pela cólera. Faz justiça aos culpados, mas é clemente com o pecador arrependido.
Fez uma pausa, e o silêncio foi medonho.
- Não é a vós, raça de víboras, que compete lançar a mão a esta infeliz menina. Se ela foi iludida ou está possuída de um demónio, é ao Santo Ofício que cumpre tomar conhecimento do facto. Se ela se sair mal na prova, os familiares estão aqui para entregá-la ao tribunal. Mas a prova não se completou ainda. Onde está Martim de Valero?
- Aqui, aqui! - gritaram várias vozes.
- Que ele se apresente.
- Não, não, não!
Era a voz de Martin, o padeiro, que protestava.
- Se ele não vier por sua livre vontade, tragam-no à força - disse rispidamente o bispo.
Houve um arrastar de pés enquanto Martin forcejava com os homens que procuravam arrastá-lo aos puxões e repelões, mas volvidos alguns instantes a multidão abriu alas e ele foi trazido até aos degraus do altar. Os homens voltaram aos seus lugares e deixaram-no consigo mesmo. Viera da oficina ver o milagre de que todos falavam, e estava com a sua roupa de trabalho. Tinha o rosto vermelho do calor dos fornos e pelo vão esforço de escapar às rudes mãos que o arrastavam. O da estava quente e gotas de suor brotavam-lhe da testa. O seu rosto gorducho e bem-humorado estava pesado de consternação.
- Vem - disse o bispo.
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Como que impelido por uma força a que não pudesse resistir, o padeiro subiu os degraus do santuário.
- Mano, mano, a que me queres obrigar? - exclamou ele. - Como poderei eu fazer aquilo que tu não pudeste? Não sou mais do que um homem de trabalho e não sou melhor cristão do que o meu próximo.
- Silêncio!
O bispo não cria em absoluto que o padeiro fosse capaz de realizar um milagre e só pensara nele sob a inspiração do momento, como único meio de salvar Catalina da fúria do populacho. Desejava uma pequena trégua que lhe permitisse apaziguá-los. Sabia que a menina já não correria perigo. Ali estavam os familiares para protegê-la e, como não houvesse cárcere da Inquisição na cidade, conduzi-la-iam para um convento a uma ordem sua e sobraria então tempo para reflectir sobre o que cumpria fazer em seguida. O bispo dirigiu-se mais uma vez ao povo reverente:
- Porventura não "tem o oleiro poder sobre a argila, poder de fazer com o mesmo bloco um vaso de honra e outro de desonra? Deus não faz acepção de pessoas. Aquele que se humilha será exaltado e os soberbos serão humilhados. Tragam a menina.
Catalina jazia no mesmo lugar em que tombara, com o rosto oculto nos braços e o pequeno corpo sacudido de soluços. Ninguém lhe prestava mais atenção do que se ela fosse um cão morto à beira da estrada. Dois familiares puseram-na em pé e colocaram-na em face do bispo. Com a muleta debaixo do braço, ela juntou como melhor pôde as mãos num gesto de súplica. As lágrimas corriam-lhe pdas faces.
- Oh! senhor bispo, senhor bispo, tenha compaixão de
mim! Não tente de novo, suplico-lhe, tudo é inútil! Deixe-me voltar para junto de minha mãe!
- Ajoelha-te - ordenou ele. - Ajoelha-te.
Com um soluço desesperado, a criança deixou-se cair de joelhos.
- Pousa-lhe a mão na cabeça - disse o bispo ao irmão.
- Não posso... Não o farei... Tenho medo!
- Sob pena de excomunhão, ordeno-te que faças o que te digo - tornou o bispo asperamente.
O infeliz foi tomado de um tremor, pois sabia que o irmão não hesitaria em pôr em efeito a sua pavorosa ameaça. Pousou timidamente a mão trémula na cabeça da jovem. Essa mão nem sequer estava limpa.
- Dize agora as palavras que ouviste a teu irmão Manuel pronunciar.
- Não me lembro delas...
- Vou dizê-las, então, e tu as repetirás: "Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero"...
Martin repetiu:
- Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero...
O bispo pronunciou as últimas palavras fatídicas em voz forte e sonora, mas o irmão repetiu-as num tom apenas perceptível. Catallina pôs-se em pé como lhe ordenavam e, com um gesto desesperado, atirou para longe a muleta. Por um instante vacilou, mas não caiu. Ficou em pé. Então, deixando escapar um grito e um soluço, olvidada do lugar e da ocasião, virou-se e desceu a correr os degraus do santuário.
- Mãe, mãe!
Maria Pérez, que estava com Domingo na igreja, delirante de alegria, abriu caminho por entre a multidão e correu ao
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encontro dela. Catalina atirou-se-lhe aos braços e desatou a chorar.
Por um instante a densa multidão ficou tão aturdida que não pôde mover-se. Contemplavam a cena boquiabertos. Formou-se então tal algazarra como jamais se ouviu outra igual.
- Milagre! Milagre!
Gritavam, batiam palmas, mulheres acenavam com os lenços. Os homens gritavam "olé, olé", como faziam nas touradas, quando um dos toureiros executava um passe perigoso; atiravam os chapéus para cima como costumavam atirá-los aos pés do matador de espada quando, seguido da sua "quadrilha", ele dava volta à arena para receber os aplausos do público. Acima do tumulto elevava-se a voz estridente de alguma mulher a entoar aqui e ali, ao compasso de uma estranha melodia semimourisca, um hino à Virgem Santíssima. Dir-se-ia que a balbúrdia não terminaria mais. Desconhecidos abraçavam-se. Homens e mulheres choravam de alegria. Tinham visto um milagre com os seus próprios olhos.
De repente fez-se um silêncio no meio daquela doida confusão e todos os olhos se voltaram para o bispo. Martin, o tímido, mal atinando com o que havia sucedido, recuara modestamente para o fundo e o dominicano ficara sozinho no alto dos degraus do santuário, com as costas viradas para o altar-mor. Emaciado, mas alto e erecto, envolto no seu hábito remendado e puído, formava uma figura imponente. O maravilhoso, porém, é que ele estava banhado em luz. Não era uma simples auréola a cercar-lhe a cabeça, mas um resplendor que parecia vesti-lo da cabeça aos pés.
- Um santo! Um santo! - clamou o povo, com os olhos cravados no estranho e sensacional espectáculo. - Bendita seja
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aquela que te pôs no mundo! - gritavam. - Agora permites que o Teu servo se retire em paz. Oh, ditoso, ditoso dia!
Falavam às tontas, sem saber o que diziam. Estavam desvairados de alegria, amor e medo. Somente Domingo notou que um dos vitrais tinha um caixilho quebrado e, por uma feliz coincidência, um raio de sol passava pela abertura, incidindo no bispo e banhando-o em glória.
O bispo alçou a mão exigindo silêncio e imediatamente a grande algazarra cessou. Ficou um instante a contemplar, com uma expressão triste e severa, aquele mar de rostos que tinha diante de si. Depois, levantando a cabeça, os trágicos olhos cheios de arrebatamento, como se com os olhos do espírito avistasse as hostes celestiais, começou a recitar o Credo de Niceia em voz lenta e solene. As palavras eram familiares a todos os presentes, que as ouviam todos os domingos na missa; e, num zumbido abafado que se assemelhava a um longínquo arrastar de pés, puseram-se a repetir os artigos de fé um após outro. O bispo terminou a recitação do Credo, virou-se e caminhou para o altar-mor. O halo de luz desaparecera. Levantando os olhos para o vitral, Domingo viu que o sol tinha continuado a sua inexorável viagem através do céu e já nenhum raio de luz penetrava pelo vidro quebrado. O bispo prosternou-se diante do altar e deu graças ao Senhor numa oração muda. O seu torturado coração fora aliviado de um grande peso, pois compreendera, sem sombra de dúvida, que, embora tivesse sido Martin quem pousara a mão na cabeça da jovem paralítica, seu irmão não tinha passado de um instrumento de que aprouvera a Deus lançar mão a fim de que ele, Blasco de Valero, obrasse um milagre para Sua eterna glória. Era ademais um sinal, seguro e indubitável, de que o Senhor lhe perdoava
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o grave pecado que cometera ao permitir, num momento de fraqueza, que o grego fosse garroteado antes de o queimarem. Deus, que vê todas as coisas passadas, presentes e futuras, conhecia o duro coração do descrente e por ísho o tinha condenado à morte eterna. Estava bem lamentar os réprobos nos seus tormentos, mas mostrar-se descontente era impugnar a justiça divina.
O bispo pôs-se em pé e retirou-se lentamente do santuário. Caminhava como que em sonho. Os dois religiosos, seus amigos e secretários, perceberam-lhe a intenção e seguiram-no. Vendo isso, o prior fez um sinal aos seus frades para que o seguissem também e pôs-se a caminhar atrás deles. O bispo deteve-se ao alcançar os degraus.
- Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Padre e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Desceu. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e aos religiosos que o acompanhavam. Os frades entoaram o "Te Deum Laudamus". As vozes fortes e profundas ecoaram por toda a igreja. Como que transportado em êxtase, o bispo passou por entre a multidão ajoelhada, dando a sua bênção ao povo enquanto se dirigia para a saída. Não notou o olhar irónico de Domingo.
Nesse momento os sinos começaram a soar no campanário, e dentro em pouco todos os sinos da cidade badalavam. Não havia nisso, porém, nenhuma intervenção sobrenatural. Don Manuel, como o bom soldado que era, tinha atendido a todos os pormenores e tomara disposições para que, ao serem tangidos os sinos da colegiada em celebração do milagre que
ele estava certo de realizar, todos os sinos das demais igrejas se pusessem a bater também.
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As enormes portas abriram-se de par em par à aproximação do bispo e este saiu para o sol deslumbrante do dia de Agosto. A multidão lançou-se em pós dele e seguiu a procissão de frades até estes chegarem ao convento. Ia o bispo entrar quando uma grande gritaria se levantou da turba. Queriam que ele falasse. Junto à parede do convento havia um púlpito, usado quando a cidade era visitada por algum pregador tão famoso que a igreja do convento não podia comportar a vasta congregação desejosa de ouvi-lo. O prior adiantou-se, transmitindo ao bispo o desejo do povo, rogou-lhe que acedesse. Don Blasco correu os olhos em volta de si, como se ignorasse onde estava. Dir-se-ia que até então não se apercebera das devotas e ansiosas criaturas que lhe seguiam os passos. Deteve-se um instante para reunir as ideias e, sem uma palavra, subiu ao púlpito.
Tinha uma voz magnífica, de tom rico, com uma infinita variedade de inflexão. Começou a falar.
- Ninguém pode sondar as profundezas do coração humano, nem perceber as coisas que ele pensa: como encontrar então a Deus, que criou todas essas coisas-, e conhecer-Lhe o pensamento ou compreender os Seus desígnios?
Os gestos do bispo eram vigorosos e expressivos. A sua voz alcançava os últimos confins da cerrada multidão, e quando ele a baixava num tom compassivo, tal era a beleza da sua dicção que nenhuma das suas palavras deixava de ser ouvida. Quando, numa investida apaixonada contra os pecados humanos, ele a erguia, em todo o seu esplendor, era como o trovão a rolar nas desoladas serras. Fazia de súbito uma pausa,
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e o silêncio no meio daquela torrente de eloquência semelhava o estridor do Juízo Final. O povo encolheu-se confrangido quando ele lhes lembrou a brevidade da existência, os acidentes que perseguem os filhos de Adão desde o berço até à sepultura, a transitoriedade dos seus prazeres, a angústia dos seus sofrimentos; tremeram quando ele lhes pintou os horrores do Inferno e as intermináveis torturas dos réprobos; e choraram quando, com a voz apagada de ternura, ele descreveu com inflexões extáticas a comunhão dos santos e as eternas alegrias do Paraíso. Muitos arrependeram-se dos seus pecados e regeneraram-se desse dia em diante. O bispo terminou por uma grande peroração em louvor da Santíssima Virgem e para glória do Senhor. Jamais tinha falado com mais ardente e patética eloquência.
Quando o conduziram à sua cela, estava tão alquebrado que se deixou deitar na cama dura pelos seus dois fiéis assistentes. Sentia-se devastado pela emoção e pela fadiga.

XX.

Nessa noite houve grande regozijo na cidade. Os taberneiros não tinham mãos a medir. A multidão passeava em redor da praça, palrando sobre o portentoso acontecimento daquele dia. Ninguém duvidava de que tivesse sido o santo bispo o realizador do milagre e todos admiravam a sua modéstia em usar o irmão padeiro como instrumento do seu poder. Ensinara-lhes, assim, que na verdade os humildes devem ser exaltados e os soberbos devem ser humilhados. Muitos
afirmavam tê-lo visto elevar-se no ar - a dois pés do chão, segundo alguns, a quatro, segundo outros - e permanecer suspenso dessa forma, rodeado de glória.


C O N T I N U A

Catalina - o cenário desta história é a Espanha do reinado de Filipe III, a trágica Espanha da Inquisição.
Catalina, jovem de dezasseis anos, aleijada de uma perna, está orando ardentemente pela sua cura quando lhe aparece a Virgem Maria.
Qual dos três filhos de Valero melhor servia a Deus? Em páginas repletas de emoção, o leitor verá quem, afinal, realiza o milagre, assim como assistirá a todo o restante e apaixonante entrecho deste romance cheio de contrastes humanos.

 


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I.

Era um grande dia para a cidade de Castel Rodríguez. Já ao amanhecer os habitantes estavam de pé, com as suas melhores roupas. Nos balcões dos velhos e severos palácios dos nobres ostemtavam-se ricos estofos e os galhardetes batiam indolentemente de encontro às hastes. Era a festa da Assunção, dia 15 de Agosro, e o sol escaldava num céu sem nuvens. Sentia-se um alvoroço no ar, pois nesse dia, após muitos anos de ausência,, chegavam duas pessoas eminemtes, naturais da cidade, e grandes festividades tinham sido preparadas em sua honra. Uma delas era Frei Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, e a outra seu irmão Don Manuel, capitão de nomeada nas forças d'El-Rei. Haverá um "Te Deum" na colegiada, banquete na municipalidade, touradas e fogo preso quando anoitecesse. À medida que se adiantava a manhã, um número cada vez maior de pessoas tomava o caminho da Plaza Mayor. Formou-se ali o cortejo que ia esperar os ilustres viajantes a certa distância da cidade. Encabeçavam-no as autoridades civis, vindo
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depois os dignitários da Igreja e, por fim, uma série de pessoas gradas. A multidão abriu alas nas ruas para vê-los passar,, depois colocou-se em ordem para esperar a emtrada dos dois irmãos na cidade, seguidos desses importamtes personagens, no momento em que os sinos de todas as igrejas se punham a repicar em sinal de boas-vindas.
Na capela da Virgem da igreja anexa ao convento das freiras carmelitas, uma jovem aleijada estava a rezar. Fazia-o com devoção apaixonada, diante da imagem da Santíssima Virgem. Ao erguer-se, afinal, ajeitou melhor a muleta debaixo do braço e saiu da igreja. Lá dentro estava fresco e escuro, e aquela claridade súbita do dia quente e abafado ofuscou-a por um momento. Deteve-se a olhar a praça vazia, em baixo. As casas tinham os postigos fechados para não deixar entrar o calor. Reinava ali um grande silêncio. Todos tinham ido ver os festejos e não ficara um cão sem dono para latir. Dir-se-ia uma cidade morta. A jovem olhou para a sua própria casa, um pequeno prédio de dois andares comprimido entre os seus vizinhos, e suspirou desalentada. A sua mãe e seu tío Domingo, que vivia com elas, tinham ido com os demais e só voltavam depois das touradas. Sentia-se muito só e muito infeliz. Como não tivesse ânimo de ir para casa, sentou-se no último degrau da escadaria que descia da porta da igreja à praça e largou a muleta no chão. Pôs-se a chorar. De repente, assoberbada pela mágoa, prostrou-se no patamar de pedra e, mergulhando o rosto nos braços, soluçou como se o seu coração estivesse a ponto de despedaçar-se. O seu movimento brusco dera um impulso à muleta, que caiu com ruído pelos degraus estreitos e íngremes, até em baixo. Era o cúmulo do infortúnio: teria que descer de rastos ou deixar-se escorregar pela escada a fim de ir buscá-la, já que a sua perna paralítica não lhe permitia caminhar sem a muleta. Chorou desconsoladamemte.
De súbito ouviu uma voz.
- Porque choras, minha filha?
Virou-se surpreendida, pois não ouvira ninguém aproximar-se. Viu uma mulher em pé atrás de si. Parecia ter saído da igreja, mas ela própria o fizera naquele momento e lá dento não estava ninguém. A mulher vestia um longo mamto azul, que lhe ia até aos pés, e enquanto Catalina a olhava, afastou o capuz que lhe cobria a cabeça. Devia ter saído da igreja, com efeito, pois para as mulheres era um pecado entrar na casa do Senhor com a cabeça descobertta. Era bastante alta para uma espanhola e moça, tendo a pele do rosto suave e macia, sem rugas por baixo dos olhos escuros. Usava um penteado muito simples, com o cabelo repartido no meio e apanhado num coque frouxo sobre a nuca. Possuía feições pequenas, delicadas, e um olhar bondoso. A jovem paralítica não saberia dizer se se tratava de uma camponesa - esposa, talvez, de algum chacareiro das imediações - ou de uma dama. Tinha certa singeleza de aspecto, e ao mesmo tempo uma dignidade um tanto intimidativa. O comprido manto escondia-lhe as roupas, mas quando ela tirou o capuz a rapariga vislumbrou qualquer coisa branca e deduziu que tal devia ser a cor do seu vestido.
- Enxuga as lágrimas, minha filha, e dize-me o teu nome.
- Catalina.
- Por que vens sentar-te aqui sozinha, a chorar, quando toda a gente foi ver a recepção do bispo e de seu mano, o capitão?
- Sou aleijada e não posso ir longe, senhora. Além disso, que iria fazer no meio de toda essa gente sã e feliz?
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A desconhecida estava atrás de Catalina e esta tivera de virar-se para lhe falar. Relanceou os olhos para a porta da igreja.
- De onde veio, Senhora? Não a vi na igreja.
A desconhecida sorriu. Era um sorriso tão meigo que todo o amargor pareceu dissipar-se no coração da rapariga.
- Pois eu vi-te, minha filha:. Estavas a rezar.
- Estava pedindo à Virgem que me curasse, como venho fazendo noite, e dia desde que fiquei inválida.
- E pensas que ela tem o poder de fazê-lo?
- Se ela quiser...
A senhora tinha uns modos tão doces e tão afectuosos que Catalina sentiu-se impelida a contarnlhe a sua triste história. Aquilo sucedera quando estavam trazendo os novilhos para as touradas da Páscoa e toda a população da cidade se reunira para vê-los chegar, sob a orientação segura dos dois padrinhos. À frente ia um grupo de jovens fidalgos, cujos cavalos curveteavam. De repente, um dos animais escapou-se e enveredou por uma viela. Formou-se um pânico e a multidão espalhou-se para todos os lados. Um homem foi atropelado pelo touro-, que tornou a investir para a frente. Catalina, que corria tão depressa quanto podia, escorregou e caiu no momento em que o amimal ia alcançá-la. Soltou um grito e perdeu os sentidos. Ao voltar a si, disseram-lhe que o touro a tinha pisado na sua doida arremetida, mas continuara a correr impetuosamente. Ela sofrera contusões mas não fora ferida. Disseram-lhe que havia de sarar em pouco tempo, mas um ou dois dias depois, Catalina queixou-se de não poder mexer a perna. Os médicos examinaram o membro e encontraram-no paralisado. Picaram-no com agulhas: Catalina não sentia nada. Sangraram-na, purgaram-na e deram-lhe poções nauseabundas para tomar, mas tudo foi inútil. A perna estava como morta.
- Mas ainda tens o uso das mãos - disse a senhora...
- Graças a Deus, pois se não fosse isso nós morríamos de fome. A senhora perguntou-me porque estava eu a chorar. Eu choro porque, com o uso da perna, perdi também a afeição do meu amado.
- Ele não te podia ter grande amor, se te abandonou na tua desgraça.
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- Amava-me de todo o coração, e eu amo-o mais do que à minha própria alma. Mas nós somos pobres, senhora. Ele é Diego Martínez, o filho do alfaiate, e segue a profissão do pai. Íamos casar quando ele tivesse terminado o aprendizado, mas um homem pobre não pode dar-se ao luxo de desposar uma mulher incapaz de fazer frente às outras mulheres no mercado ou de subir e descer as escadas para dar conta dos trabalhos caseiros. Depois, os homens são sempre homens. Um homem não pode querer uma mulher aleijada. Pedro Álvarez ofereceu-lhe a sua filha Francisca. É feia como o pecado, mas Pedro Álvarez é rico, e assim como poderia ele recusar?
Catalina pôs-se de novo a chorar. A dama considerou-a com um sorriso de compaixão. De repente, ouviu-se ao longe um rufar de tambores e um clangor de trombetas e todos os sinos se puseram a badalar simultaneamente.
- Entraram na cidade: o bispo e seu irmão, o capitão - disse Catalina. - Como se explica, que esteja aqui em lugar de ir vê-los passar, senhora?
- Não me deu vontade de ir.
Isto pareceu tão esquisito a Catalina que lançou um olhar desconfiado à desconhecida.
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- Não mora na cidade, senhora?
- Não.
- Estranhei não a ter visto antes. Creio que não há aqui ninguém a quem eu não conheça:, pelo menos de vista.
A dama não respondeu. Catalina ficou intrigada e olhou-a com mais atenção por baixo dos cílios. Não era crível que fosse moura, pois não tinha a pele bastante escura para isso, mas era bem possível que pertencesse aos cristãos-novos, isto é, a esses judeus que tinham preferido o baptismo à expulsão do país. Mas, como todos sabiam, continuavam a observar em segredo os ritos judaicos, lavando as mãos antes e depois das refeições, jejuando no Dia da Expiação e comendo carne às sextas-feiras. A Inquisição não dormia e, quer se tratasse de mouros baptizados ou de judeus conversos, era perigoso ter quaisquer relações com eles. Havia sempre o risco de caírem nas mãos do Santo Ofício e, submetidos à tortura, incriminarem inocentes. catalina perguntou consigo, ansiosa, se não teria dito alguma coisa que pudesse motivar uma acusação, pois na Espanha daqueles tempos toda a gente vivia no terror do Santo Ofício e uma palavra impensada, um gracejo, podiam constituir motivo suficiente para a prisão, e uma vez no cárcere passavam-se semanas, meses e até anos antes que se conseguisse provar a sua inocência. Catalina achou bom afastar-se dali o quanto antes.
- São horas de ir para casa, senhora - disse ela; e, com a polidez que lhe era natural, acrescentou: - Assim, se me permite, vou deixá-la.
Relanceou os olhos para a muleta, que caíra lá em baixo. Teria a coragem de pedir à senhora que a fosse buscar? Mas esta não prestou atenção no que ela dissera.
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- Não gostaria de recobrar o uso das suas pernas, minha filha,, para poder andar e correr como se nunca houvesse estado doente? - perguntou ela.
Catalina ficou branca. Essa pergunta deixava patente a verdade. A desconhecida não era cristã-nova e sim uma moura, pois ninguém ignorava que os mouros, cristãos apenas no nome, tinham pacto com o demónio e por meio das artes mágicas podiam obrar toda a sorte de malefícios. Não fazia muito que uma pestilência assolara a cidade, e os mouros, acusados de serem os seus causamtes, confessaram-se culpados no cavalete e acabaram morrendo na fogueira. Catalina sentiu tamanho terror que ficou impossibilitada por um momento de falar.
- Então, minha filha?
- Eu daria tudo que tenho no mundo - e não é nada - para me ver livre da minha enfermidade, mas ainda que fosse para recuperar o amor do meu Diego não faria nada que pusesse em perigo a minha alma Imortal ou que constituísse uma ofensa à Santa Madre Igreja.
E, enquanto falava, persignou-se sem tirar os olhos da desconhecida.
- Então eu te direi como podes curar-te. O filho de Juan Suárez de Vataro que melhor tem servido a Deus tem o poder de fazê-lo. Ele te imporá as mãos em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, mandar-te-á atirar fora a muleta e andar. E tu atirarás fora a muleta e andarás.
Não era isto, em absoluto, o que Catalina esperava. O que a senhora dizia era surpreendente, mas falava com tanta calma e segurança que a moça ficou impressionada. Duvidando e esperando ao mesmo tempo, encarava fixamente a misteriosa desconhecida. Necessitava de um momento para tornar a si
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do seu espanto, antes de fazer as perguntas que já iam tomando forma no seu espírito. Mas de súbito os olhos de Catalina quase lhe saltaram das órbitas e a sua boca escancarou-se de assombro, pois no lugar onde estava a senhora já não se via mais nada. Não podia ter entrado na igreja, porquanto Catalina não tirara os olhos dela., nem podia ter-se movido: desvanecera-se no ar, simplesmente. A jovem soltou um grande grito e novas lágrimas, mais lágrimas de outra espécie, correram-lhe em torrente pelas faces.
- Era a Santíssima Virgem! - gritou. - Era a Rainha dos Céus, e eu falei-lhe como teria falado a minha mãe. Era Maria Santíssima, e eu tomei-a por uma moura ou uma judia conversa!
Tal era a sua emoção que sentiu a necessidade urgente de contar aquilo a alguém. Sem reflectir, deixou-se escorregar sobre as costas pela escada abaixo, ajudando-se com as mãos, até alcançar a muleta. Voltou então para casa, mas somente ao chegar à porta se lembrou de que ninguém estava lá. Apesar disso entrou e, como sentisse fome, arranjou um pedaço de pão e algumas azeitonas e tomou um copo de vinho. Este deu-lhe sono, mas continuou sentada, resolvida a não dormir enquanto não chegassem sua mãe e seu tio Domingo. Mal podia esperar para lhes contar a sua história maravilhosa. Foram-se-lhe, porém, cerrando as pálpebras e dentro em pouco dormia profundamente.

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II.

Era Catalina uma linda moça. Tinha dezasseis anos, era alta para a sua idade, já com o busto bem desenvolvido, mãos e pés pequeninos, e antes do acidente caminhava com uma graça sinuosa que encantava todos quantos a olhavam. Tinha olhos grandes e escuros em que brilhava o ardor da mocidade, cabelos pretos que se encrespavam naturalmente e tão compridos que podia sentar-se neles, pele morena e suave, faces de um rosado tépido, lábios vermelhos e húmidos. Quando ria ou sorria - o que era frequente antes do seu infortúnio - mostrava os dentes, parelhos, pequenos e alvíssimos. O seu nome completo era Maria de los Dólares Catalina Orta y Pérez. Seu pai, Pedro Orta, fora fazer fortuna nas Américas pouco depois de nascer Catalina, e desde então não tinham notícias dele. Sua esposa, Maria Pérez por nascimento,, ignorava se ele estava vivo ou morto, mas ainda tinha esperança de vê-lo regressar um dia com uma arca repleta de ouro, enriquecendo-os a todos. Era uma mulher devota e todas as manhãs, à missa, fazia uma oração pela segurança do marido. Enfurecia-se com o mano Domingo quando este lhe dizia que, se Pedro não morrera havia muito tempo, devia estar vivendo com alguma índia ou quem sabe se duas ou três, e não tinha a menor intenção de abandonar os filhos mestiços que indubitavelmente tinha por lá, para voltar à companhia de uma esposa que já perdera a beleza e a mocidade.
Tio Domingo era uma terrível provação para a sua virtuosa mana,, mas esta queria-lhe bem, em parte porque tal era o seu dever de cristã mas também porque, apesar dos seus graves defeitos, Domingo era um homem estimável e ela não podia
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deixar de amá-lo. Não o esquecia também nas suas orações e compraziam em acreditar que era em virtude da eficácia destas, e não por estar envelhecendo, que ele abandonara! ao menos os seus piores costumes. Domingo Pérez fora destinado ao sacerdócio e no seminário de Akallá de Henares, para onde o mandou o pai, tomou as ordens menores e recebeu a tonsura. Um de seus condiscípulos fora Blasco Suárez de Valero, o bispo de Segóvia, cuja chegada os habitantes da cidade estavam festejando naquele dia. Maria Pérez suspirava ao pensar nos destinos tão diferentes que os dois tinham tomado. Domingo era um estrabulega. Desde o começo envolveu-se em complicações no seminário devido ao seu génio teimoso, turbulento e dissipador, e nem as advertências, nem os castigos nem as pancadas conseguiam domá-lo. Já nesse tempo gostava da pinga e quando bebia de mais entoava canções obscenas que ofendiam os seus colegas de seminário e os professores, os quais tinham por missão incutir a honestidade e o decoro naqueles jovens espíritos. Ainda não tinha feito vinte anos, quando deixou grávida uma escrava moura e, ao perceber que a sua má acção seria divulgada, fugiu e ingressou num grupo de actores ambulantes. Vagueou com eles durante dois anos pelo país e ao fim desse tempo apareceu de repente em casa do pai.
Declarou-se arrependido dos seus pecados e prometeu emendar-se. Era evidente que a Providência não o talhara para o sacerdócio. Disse ao pai que, se este lhe desse o dinheiro necessário para não morrer de fome, iria estudar leis numa universidade. O pai estava ansioso por acreditar que o seu filho havia assentado o juízo e como, na verdade, Domingo voltou reduzido a pele e ossos, a existência que levara não parecia ter sido muito fácil e o velho Pérez deixou-se persuadir. Domingo foi para Salamanca, onde ficou oito anos, mas fez os seus estudos de maneira muito irregular. A magra mesada que recebia do pai obrigava-o a viver numa casa de pensão com vários outros estudantes e a comida era o quanto bastava para não morrer de inanição. Posteriormente, costumava divertir os seus companheiros de pândega, nas tabernas que frequentava, com anedotas sobre os horrores do estabelecimento e as astúcias a que tinham de recorrer para completar o mísero passadio. Mas a pobreza não impedia que Domingo gozasse a vida. Tinha uma língua desenvolta, modos encantadores e cantava bem, de forma que era bem recebido em todas as festas. Talvez os dois anos passados com a troupe ambulante não lhe tivessem ensinado a ser bom actor, mas ensinaram-lhe outras coisas que lhe prestavam serviço agora. Aprendera a ganhar às cartas e aos dados,, e quando aparecia na universidade algum jovem rico, Domingo não tardava a travar conhecimento com ele. Constituía-se em seu guia e mentor no tocante aos costumes da cidade e era raro que o recém-vindo não tivesse de pagar bom -preço pela experiência adquirida. era Domingo nessa época um rapaz bem apessoado e de vez em quando tinha a sorte de provocar a paixão de alguma mulher dada às aventuras amorosas. Não estavam elas no viço da mocidade mas eram pessoas abastadas e Domingo achava justo que provissem às suas necessidades em troca dos serviços que lhes prestava.
O período que passara como actor -ambulante inspirara-lhe o desejo de escrever peças de teatro e todas as horas vagas que lhe deixavam os seus divertimentos, ele dedicava-se a essa ocupação. Tinha considerável facilidade e, além de escrever algumas comédias, compunha amiúde um soneto ao objecto das suas lucrativas atenções e fazia versos em honra de alguma
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pessoa grada, a quem os enviava com a esperamça de receber uma recompensa em metal sonante. Foi esse seu dom de rimar que acabou por levá-lo à mina. O reitor da universidade provocara a cólera dos estudantes com uma pnescrição qualquer e, ao encontrarem numa mesa de taberna uns versos indecentes e injuriosos a seu respeito, encheram-se de regozijo. Dentro em pouco andavam cópias de mão em mão. Correu o boato de que o autor era Domingo Pérez e, conquanto este o negasse, fê-lo com tal complacência que era o mesmo que admiti-lo. Amigos serviçais chamaram a atenção do reitor para os versos, indicando-lhe ao mesmo (tempo quem os tinha escrito. Como o original houvesse desaparecido, não foi possível provar a culpa de Domingo com a sua própria letra, mas o reitor fez indagações discretas que o convenceram de que esse indivíduo dissoluto e mau estudante era o responsável pelo insulto. Tinha demasiada astúcia para formular uma acusação difícil de provar, mas, decidido a vingar-se, escolheu um método mais subtil. Não foi difícil descobrir o escândalo provocado por Domingo como seminarista em Alcalá, e a existência que ele levara durante os oito amos passados na universidade eram notoriamente desregrada. Domingo era jogador e todos sabiam que o jogo leva muitas vezes à impiedade; não faltaram testemunhas dispostas a jurar que lhe tinham ouvido proferir as mais horríveis blasfémias, e diante de duas delas ele dissera que acreditar nos Artigos de Fé era, acima de tudo, questão de boa educação. Isto por si era suficiente para justificar um inquérito do Santo Ofício. O reitor depôs nas mãos dos inquisidores as informações que tinha recebido. O Santo Ofício nunca procedia às pressas. Reunia as provas com todo o sigilo e cuidado e enquanto não
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lhe desabava o golpe na cabeça, a vítima raras vezes sabia que estava debaixo de suspeita.
Uma noite, tarde, estando Domingo deitado a dormir, o aguazil bateu-lhe à porta e prendeu-o quando ele veio abrir. Só lhe deu tempo para vestir-se e emalar a sua reduzida bagagem, junto com a roupa de cama, e conduziu-o, não à prisão - pois Domingo tinha as ordens menores e a Inquisição fazia o possível para evitar escândalos no seio da Igreja - mas a um mosteiro, onde foi encarcerado numa cela disciplinar. Deixaram-no ficar alli algumas semanas, fechado a sete chaves, sem permissão de falar a ninguém ou de ler o que quer que fosse, sem uma vela sequer para alumiar-lhe as trevas. Foi então conduzido à presença do tribunal. As coisas estariam mal paradas para ele se não fosse uma feliz circunstância. Poucos dias antes o reitor, homem vaidoso e irrascível, -tivera violenta disputa com os inquisidores sobre uma questão de precedência. Leram os versos de Domingo e riram com malicioso júbilo. Os seus delitos eram manifestos e não podiam ser relevados, mas os juízes perceberam que,, temperando a justiça com a clemência, podiam infligir ao reitor furioso uma afronta que ele sentiria fundo mas teria de tragar. Domingo reconheceu a sua culpa e declarou-se arrependido. Foi sentenciado a ouvir missa na câmara de audiência e exilado de Salamanca e seus arredores, Tinha rapado um bom susto. Achou conveniente ausentar-se da Espanha por algum tempo; foi, pois, para a Itália como soldado e passou lá alguns anos a jogar, a praguejar quando os dados ou as cartas o atraiçoavam, a fornicar e a beber. Tinha quarenta anos quando voltou à sua terra natal, tão pobre como ao deixá-la, com uma ou duas cicatrizes arranjadas
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em rixas entre bêbedos mas com numerosas recordações para emtreter-Lhe as horas vagas.
Seus pais tinham morrido e a única pessoa da família que restava era a mana Maria, abandonada pelo marido, e a sobrinha Catalina, então uma linda criança de nove anos. O marido de Maria esbanjara-lhe o dote e ela nada possuía além da casinha em que morava. Sustentava a si mesmo e à filha com hábeis e difíceis trabalhos de agulha, tecendo adornos de ouro e prata para os mantos de veludo das imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos padroeiros, as quais eram carregadas nas procissões da Semana Santa, e para as capas, casulas e estolas usadas nas cerimónias da Igreja. Na idade a que chegara, Domingo sentia-se disposto a trocar por uma existência tranquila a vida aventurosa que levara durante vinte anos e a irmã, necessitando da protecção de um homem em casa, convidou-o para morar com ela. Ao iniciar-se a nossa história, havia sete anos que ele vivia ali. Já não pesava nas despesas de Maria, pois ganhava dinheiro escrevendo cartas a pedido de pessoas iletradas, sermões para padres preguiçosos ou ignorantes que não queriam compô-los por si, e depoimentos para demandantes em juízo. Era também hábil em traçar genealogias de pessoas que desejavam atestados de sangue limpo, o que queria dizer que durante um século, ao menos, a sua ascendência não fora manchada por qualquer cruzamento com judeus ou mouros. A pequena família teria uma vida assaz remediada se Domingo pudesse livrar-se dos maus hábitos do jogo e da bebida. Também gastava dinheiro em livros, sobretudo volumes de versos e peças dramáticas, pois ao voltar da Itália recomeçara a escrever para o teatro e, embora não conseguisse fazer representar nenhuma das suas produções, contentava-se com o prazer
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de lê-las aos outros beberrões na sua taberna favorita. Ao tornar-se um homem respeitável reassumira a tonsura, uma salvaguarda em meio aos perigos da Espanha daquele tempo, e usava as vestes sóbrias que convinham a um letrado com as ordens menores.
Tomou grande afeição a Catalina, tão alegre, tão vivaz e tão bonita, e via-a transformar-se numa bela moça com uma satisfação inteiramente desinteressada. Encarregou-se da sua educação e ensinou-a a ler e escrever. Ensinou-lhe também o catecismo e assistiu à sua primeira comunhão com todo o orgulho de um pai. Quanto ao resto, porém, limitava o seu ensino a ler-lhe versos e, quando ela teve bastante idade para apreciá-las, as peças dos dramaturgos que começavam a ser tão comentados na Espanha. Mais do que a todos admirava Lope de Vega, a quem proclamava o maior génio que o mundo tinha visto, e antes do acidente que lesou a jovem, ele e Catalina costumavam representar as cenas que mais admiravam. Tinha ela uma memória viva e com o tempo chegou a saber de cor passagens inteiras. Domingo não esquecera que tinha sido actor e ensinou-a a declamar os seus versos, quando devia ser comedida e quando soltar as rédeas à paixão. Domingo tornara-se um homem magro, de movimentos desarticulados, cabelos grisalhos, rosto amarelo e cheio de rugas, mas ainda havia fogo nos seus olhos e ressonância na sua voz; e quando ele e Catalina representavam uma cena emocionante, com Maria por único auditório, Domingo já não era o valdevinos envelhecido, bêbedo e decadente, mas um brioso mancebo, um príncipe de sangue azul, um galã, um herói ou o que se quisesse. Tudo isso terminou, porém, quando Catalina foi pisada pelo touro. O choque manteve-a de cama algumas semanas, durante as
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quais os médicos da cidade empregaram todos os recursos da sua pobre ciência para devolver a vida ao membro paralisado. Afinal confessaram-se impotentes. Era um caso incurável. Diego, seu namorado, já não lhe vinha à janela de noite para lhe fazer a corte através da grade de ferro, e pouco depois sua mãe trazia para casa a notícia de que ele ia casar com a filha de Pedro Álvarez. Domingo ainda lhe lia dramas para distraí-la, mas as cartas de amor faziam-na chorar com tanta amargura que ele tinha de interromper-se.


III.

Catalina dormiu algumas horas e foi despertada afinal pelos ruídos que sua mãe fazia, lidando na cozinha. Pegou na muleta e foi lá.
- Onde está o tio Domingo? - perguntou, pois queria que ele estivesse presente para ouvir o que ela precisava contar com tanta urgência.
- Que pergunta! Está na taberna. Mas, se bem o conheço, voltara para casa à hora de jantar.
Por via de regra como toda a gente;, eles faziam a única refeição quente do dia às doze horas., mas desde a manhã não tinham comido senão um naco de pão barrado de alho, que Maria levara consigo, e ela sabia que Domingo devia estar faminto. Acendeu, pois, o fogo e tratou de preparar a sopa. Catalina não pôde esperar nem um momento mais.
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- Mãe, a Virgem Santíssima apareceu-me.
- Sim, minha querida? - volveu Maria. - Limpa e corta as cenouras para mim, por favor.
- Mas ouve, mãe! Eu vi a Virgem Santíssima, ela falou-me!
- Não sejas tola, menina. Encontrei-te dormindo quando cheguei e não te acordei. Ainda bem que tiveste um sonho bonito. Mas agora que acordaste, podes ajudar-me a preparar o jantar.
- Mas eu não sonhei, isso foi antes de eu dormir!
Referiu, então, a coisa extraordinária que lhe acontecera.
Maria Pérez fora bonita em moça mas engordara com a idade, como muitas vezes sucede às espanholas. Tinha sofrido muito: dois filhos que tivera antes de Catalina haviam morrido; aceitara isso, porém, do mesmo (modo que o abandono do marido, como uma mortificação que lhe era imposta, pois era profundamente religiosa. E, sendo ao mesmo tempo uma mulher prática que não tinha o hábito de lastimar-se inutilmente, encontrara consolação no trabalho aturado, no ofício divino e nos desvelos com a filha e com seu refractário irmão Domingo. Ouviu aterrada a história de Catalina. Era tão circunstanciada, com pormenores tão precisos, que estaria disposta a darnlhe crédito se, ao menos, não fosse incrível. A única explicação possível era que a enfermidade da pobre rapariga e a perda do namorado lhe houvessem dado volta ao juízo. Estivera a rezar dentro da igreja e depois fora sentar-se sob o sol ardente: era muitíssimo provável que qualquer coisa se tivesse desarranjado no seu cérebro e ela houvesse imaginado tudo aquilo com tamanha força que estava convencida da reailidade do acontecimento.
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- O filho de Don Juan de Valeiro que melhor tem servido a Deus é o bispo - disse Catalina ao terminar.
- Quanto a isso, não há dúvida - volveu a mãe. - Ele é um santo.
- Tio Domingo conheceu-o bem quando ambos eram jovens e pode levar-me à presença dele.
- Cala-te, menina. Deixa-me pensar.
A Igreja não via com bons olhos as pessoas que afirmavam ter-se comunicado com Jesus Cristo ou sua Mãe, e punha toda a sua autoridade em desanimar tais pretensões. Alguns anos atrás, um frade franciscano causara grande alvoroço curando enfermos por meios sobrenaturais e era tal o número de pessoas que recorriam a ele que o Santo Ofício fora obrigado a intervir. Prenderam-no e nunca mais se ouviu falar nele. Pelas conversas do convento das carmelitas, para o qual trabalhava de quando em quando, Maria Pérez tinha notícia de uma freira, que havia afirmado que Elias,, o fundador da ordem, lhe aparecera na cela e lhe conferira favores especiais. A superiora do convento mandara açoitá-la imediatamente, até ela confessar que tinha inventado a história para se dar importância. Se, portanto, frades e freiras pagavam caro tais pretensões, era mais do que provável que a Igreja olhasse com extrema severidade a história de Catalina. Maria atemorizou-se.
- Não digas nada a ninguém - aconselhou a Catalina - , nem mesmo ao tio Domingo. Falarei com ele depois do jantar e ele resolverá sobre o melhor caminho a seguir. Mas, pelo amor de Deus, limpa as cenouras, de contrário não teremos sopa hoje.
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Catalina não ficou muito satisfeita com este alvitre, mas a mãe mandou-a calar e fazer o que lhe diziam.
Pouco depois chegava Domingo. Não estava bêbedo, mas tam-pouco estava bem são, e vinha muito alegre. Gostava de ouvir o som da própria voz e, enquanto jantavam, descreveu com loquacidade a Catalina os sucessos do dia. Isso dá-nos uma boa oportunidade de expor ao leitor as razões pelas quais reinava tamanho alvoroço na cidade.


IV.

Don Juan Suárez de Valero era um cristão-velho e, ao contrário de muitas entre as mais nobres famílias espanholas, cujos filhos, antes de Fernando e Isabel terem unido os reinos de Castela e Aragão, haviam desposado herdeiros de judeus ricos e poderosos, ele podia exibir uma ascendência isenta de qualquer aliança espúria. Mas os seus antepassados eram a sua única fortuna. Possuía escassas terras a uma milha da cidade, próximo a uma povoação chamada Valero, e fora antes para se distinguir das demais famílias Suárez do que para se dar importância que ele e seus ascendentes imediatos haviam acrescentado ao seu o nome da povoação. Era muito pobre e a sua aliança com a filha de um fidalgo de Castel Rodríguez pouco contribuiu para melhorar-lhe as circunstâncias. Dona Violante deu ao seu senhor um filho anualmente, pelo espaço de dez anos, mas desses filhos somente três, todos varões, passaram
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da adolescência. Chamavam-se, respectivamente, Blasco, Manuel e Martin.
Blasco, o mais velho, desde a infância deu sinais de uma inteligência excepcional e, por sorte, também de devoção, de maneira que o destinaram para a Igreja. Na idade própria foi posto no seminário de Alcalá de Henares e a seu tempo passou à universidade. Bacharelou-se em Ciências e Letras e doutorou-se em Teologia em tão poucos anos que era evidente poder ele contar com uon futuro brilhante no clero secular. Prometiam-lhe altas distinções. Mas, de súbito, afirmando desejar viver no isolamento do mundo para poder dedicar-se inteiramente aos estudos, à prece e à meditação, ele mostrou o intuito de ingressar na ordem monástica dos dominicanos. Os seus amigos procuraram dissuadi-lo, pois a ordem era austera, com um serviço divino à meia-noite, perpétua abstinência de carne, frequentes mortificações, jejum e silêncios prolongados. Tudo foi inútil, porém, e Blasco de Valero fez-se frade. Tão manifestas eram as suas qualidades que os seus superiores não podiam desconhecê-las, e quando se descobriu que, além de uma bela presença e grande cultura, ele possuía uma voz ao mesmo tempo forte e melodiosa, assim como uma ardente eloquência, enviaram-no a pregar aqui e ali: pois o Papa Inocêncio III tinha mamdado São Domingos pregar aos hereges e desde então os dominicanos tornaram-se conhecidos como missionários e pregadores. Em certa ocasião mandaram-no à sua velha universidade de Alcalá de Henares. Gozava já de uma reputação considerável e toda a cidade correu a ouvi-lo. O sermão que pronunciou foi sensacional. Empregou todos os seus recursos para convencer a numerosa congregação da importância de conservar a fé na sua pureza e exterminar
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por completo os hereges. Em voz trovejante ordenou aos leigos, pela estima que tinham às suas almas e pelo temor aos rigores do Santo Ofício, que denunciassem tudo que lhes viesse ao conhecimento com sabor ao pecado e ao crime de heresia. Incutiu-lhes, com palavras ameaçadoras, que era dever religioso de cada um delatar o seu vizinho, o filho ao pai, a mulher ao marido, pois não havia laços naturais de afeição que pudessem absolver um filho da Igreja de conivência com um mal que era um perigo para o Estado e uma ofensa a Deus. O resultado do sermão foi satisfatório. Houve numerosas deflações e no final três cristãos-novos, contra os quais ficou provado que costumavam retirar a gordura da carne que comiam e mudar de roupa aos sábados, morreram na fogueira. Bom número de acusados foram condenados à prisão perpétua, com a comfiscação de todas as suas posses, e muitos outros açoitados ou submetidos a penas pecuniárias e outras.
A enérgica eloquência do frade produziu impressão tão funda nas autoridades universitárias que pouco depois era ele nomeado professor de Teologia. Alegou o seu pouco mérito e pediu que o dispensassem de aceitar essa posição de responsabilidade, mas os seus superiores na ordem determinaram que aceitasse e ele teve de obedecer. Desempenhou os seus deveres com crédito e as suas prelecções eram tão concorridas que, embora as fizesse no vasto salão da universidade, não havia espaço suficiente para comportar todos aqueles que desejavam ouvi-lo. A sua reputação galgou grandes alturas e ao cabo de alguns anos, com trinta e sete de idade,, fizeram-no inquisidor do Santo Ofício em Valência.
Embora continuasse sinceramente convicto da sua indignidade, aceitou o posto sem se fazer rogar. Era Valência um
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porto marítimo em que amiúde ancoravam navios estrangeiros - ingleses, holandeses ou franceses. Não raro, as suas tripulações eram protestantes e, por esse motivo, objectos muito apropriados para as actividades da Inquisição. Acresce que tentavam com frequência introduzir na Espanha livros proibidos, como bíblias traduzidas em espanhol e as obras heréticas de Erasmo. Blasco de Valeiro percebeu que podia ser muito útil ali. Além disso, havia grande número de mouros em Valência e nos arredores. Tinham sido convertidos à força, mas ninguém ignorava que a maior parte dessas conversões não iam além da superfície e eles continuavam a observar boa parte dos seus costumes mouriscos. Não comiam carne de porco, usavam em casa os trajes proibidos e negavam-se a comer animais que houvessem perecido de morte natural. Apoiada na autoridade régia, a Inquisição tinha conseguido eliminar o judaísmo, e embora os cristãos-novos pudessem ser ainda olhados com desconfiança, o Santo Ofício encontrava cada vez menos ocasiões de proceder contra eles. Mas com os mouros era diferente. Eram laboriosos e não só a agricultura do país se encontrava nas suas mãos mas também todo o comércio - pois os espanhóis eram demasiado preguiçosos, soberbos e dissipados para se dedicarem a ocupações manuais. Em consequência, os mouros tornavam-se cada vez mais ricos e, como fossem muito prolíferos, o seu número aumentava. Muita gente ponderada vaticinava o dia em que toda a riqueza do país passaria às suas mãos e o seu número excederia o da população nativa. Temia-se, como era natural, que nesse dia eles tomassem conta do poder e reduzissem à servidão os indolentes espanhóis. Tornava-se necessário livrar-se deles a qualquer custo e vários planos foram arquitectados com esse fim.
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Um desses planos era entregá-los às mãos do Santo Ofício e processá-los pelas suas notórias heresias, queimando-os em tal quantidade que os restantes se tornassem inofensivos. Outro plano, menos oneroso, consistia em deportá-los; mas o governo não desejava aumentar o poder dos mouros além do estreito de Gibraltar, acrescentando à população daquelas regiões algumas centenas de milhares de homens robustos e industriosos, de modo que alguém apresentou o engenhoso alvitre de fazê-los embarcar em velhas naus, sob pretexto de conduzi-los à África, e então pôr a pique os barcos, de modo que todos morressem afogados.
Ninguém se interessava mais por esse problema do que Frei Blasco de Valero, e talvez o mais famoso dos seus sermões durante a estada em Alcalá de Henares fosse aquele em que propunha o transporte dos mouros em massa para a Terra Nova, castrando-se previamente os machos, tanto jovens quanto velhos, de modo que em pouco acabariam todos por se extinguir. Foi esse sermão., possivelmente, que lhe valeu o alto e honroso cargo de inquisidor na importante cidade de Valência.
Frei Blasco encetou as suas novas funções com a certeza, fortificada por fervorosas preces, de que tinha diante de si a possibilidade de fazer grandes coisas em honra do Santo Ofício e pela maior glória do Senhor. Sabia que teria de fazer frente aos poderosos. Os mouros eram vassalos dos nobres, a quem pagavam tributo em dinheiro, espécie ou serviços, e aqueles tinham interesse em protegê-los. Mas o frade não levava em conta as pessoas e resolveu não permitir a ninguém,, por maior que fosse, perturbar o desempenho do seu dever. Não havia muitas semanas que estava em Valência quando o informaram de que um fidalgo poderoso, Don Hernando de Belmonte,
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duque de Terranova, impedira as autoridades do Santo Ofício de prender alguns ricos vassalos que, em desobediência à lei, usavam trajes mouriscos e tinham banheiras em casa. Mandou os seus familiares armados prender o duque, multou-o em dois mil ducados e condenou-o à reclusão perpétua num convento. Atacar, logo de início, pessoa tão altamente colocada foi um acto de audácia que infundiu terror nos mais corajosos. Ao tornar-se evidente, contudo, que o inquisidor estava decidido a exterminar os mouros, as autoridades municipais foram reunidas interceder com ele. Fizeram-lhe ver que a prosperidade da província dependia deles e que Valência iria à ruína se ele persistisse naquele intento. Mas Frei Blasco repreendeu-os asperamente e ameaçou-os com a excomunhão, forçando-os assim a submeter-se e a apresentar humildes desculpas. Mediante castigos e confiscações, logrou dentro em pouco reduzir os mouros à miséria e à desgraça. Os seus espias andavam por toda a parte e ai daquele espanhol, leigo ou eclesiástico, que desse motivo a suspeita! Como, em seus sermões, ele continuasse a incutir no povo de Valência a obrigação de denunciar todo aquele que, por gracejo ou mau humor, ignorância ou descuido, pronunciasse alguma palavra leviana, não tardou que todos os habitantes da cidade vivessem num terror perpétuo.
Mas o inquisidor era um homem justo. Tinha o cuidado de adequar a punição à falta. Por exemplo: se bem que, como teólogo, condenasse como pecado mortal as relações carnais entre pessoas não unidas pelo matrimónio, como inquisidor o facto só lhe interessava quando as pessoas envolvidas afirmassem não haver aí pecado mortal, caso em que as condenava a receber cem açoites. Por outro lado, punia apenas com 28

uma multa a asserção não menos herética de que a vida matrimonial valia tanto quanto o celibato. Era, ademais, um homem misericordioso. Não desejava a morte do herege e sim a salvação da sua alma. Certa ocasião um inglês, proprietário de um navio, foi preso e confessou pertencer à religião reformada, ante o que foi apreendida a embarcação e confiscada a carga. Submeteu-se o homem à tortura até falecerem-lhe as forças, e então permitiu-se-lhe abraçar o catolicismo. Foi com sincera satisfação que o Inquisidor pôde, assim condená-lo a apenas dez anos de galés e prisão perpétua. Podemos dar dois ou três exemplos mais do seu natural misericordioso. Após a morte de um penitente, em resultado de duzentos açoites que recebera, ele fizera questão de que o número fosse limitado a cem. Quando era necessário aplicar a tortura a uma mulher grávida o inquisidor adiava-a para depois do parto, e era antes o seu coração compassivo do que o respeito à lei que o levava a ter o maior cuidado para que a tortura não acarretasse invalidez permanente nem fractura de ossos, e se, por vezes, ocorria um acidente ou alguém morria) em resultado dos tratos, ninguém poderia lamentar mais amargamente a ocorrência.
A magistratura de Frei Blasco foi altamente bem sucedida. No decurso de dez anos celebrou trinta e sete autos-de-fé em que seiscentas pessoas se penitenciaram e mais de setenta foram queimadas vivas ou em efígie, não só prestando desse modo um serviço a Deus mas também edificando o povo. Um homem menos humilde do que ele teria considerado a última dessas solenidades como a glória suprema da sua carreira, pois ela se realizou em honra do príncipe Filipe, o herdeiro do trono. As várias cerimónias foram conduzidas com tanta propriedade e de tal modo divertiram o príncipe herdeiro que
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este fez a Frei Blasco um presente de duzentos ducados, com uma carta em que lhe dava os parabéns pelo edificante espectáculo e o exortava a continuar servindo a Deus dessa forma, para glória do Santo Ofício e proveito do Estado. Era evidente que o zelo e a piedade do inquisidor haviam produzido funda impressão nele, pois quando Filipe II morreu pouco depois e o príncipe ascendeu ao trono, nomeou-o acto contínuo bispo de Segóvia.
Ele só aceitou essa nova dignidade após uma noite inteira passada de joelhos, a contender com o Senhor, e deixou Valência entre as lamentações de grandes e pequenos. Conquistara a admiração daqueles pelo seu zelo, pela austeridade da sua vida e pela sua escrupulosa honestidade; enquanto a sua caridade fazia dele o ídolo dos pobres. Ganhava pingues emolumentos como inquisidor e a cortezia de Málaga na qual fora provido traziam-lhe benefícios consideráveis; mas ele gastava até ao último vintém em socorrer as necessidades dos pobres. A confiscação das riquezas dos hereges condenados e as multas impostas aos penitentes canailizavam elevadas quantias para os cofres do Santo Ofício e esse dinheiro servia para atender às grandes despesas da organização, mas não era raro que os inquisidores reservassem para si somas consideráveis. Até ao piedoso Torquemada acumulara desse modo uma imensa fortuna, que gastou na construção do mosteiro de S. Tomás de Aquino, em Ávila, e nos acréscimos feitos ao da Santa Cruz, em Segóvia. Mas Blasco de Valero nunca aprovou essa prática e partiu de Valência tão pobre como lá chegara.
Nunca vestiu outra coisa que não fosse o humilde hábito da sua ordem, jamais comia carne nem usava linho sobre o corpo ou nas roupas de cama,, e flagelava-se regularmente,,
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por vezes com tamanho rigor que o sangue espirrava nas paredes Tal era a sua reputação de santidade que, quando teve de adquirir um novo hábito por estar o primeiro demasiadamente gasto, muita gente pagou aos criados do bispo para lhes conseguirem fragmentos do velho hábito posto fora de uso, os quais usavam como amuletos contra a varíola e o mal venéreo. Antes da sua partida, várias pessoas influentes procuraram arrancar-lhe a promessa de lhes conceder, quando afinal aprouvesse ao Altíssimo chamá-lo a Si, o privilégio de enterrar o seu corpo na cidade em que ele levara a efeito obra tão fecunda. Estavam certos de poder exercer suficiente influência em Roma- para conseguir, senão a sua canonização, pelo menos a sua beatificação, e ter-lhe os ossos na catedral seria uma glória para a cidade. Mas o frade, adivinhando-lhes o pensamento, respondeu com severidade e não quis comprometer-se.
Foi escoltado até três milhas além das portas da cidade por uma grande comitiva de dignitários eclesiásticos, magistrados e grande número de nobres cavalheiros. Quando se despediram dele, não havia um só olho enxuto em toda aquela distinta companhia.


V.

Não é necessário estendermo-nos tanto sobre os outros filhos de Juan de Valero.
O segundo filho, Manuel, era vários anos mais novo do que Blasco e, embora não fosse tolo, não tinha nem a inteligência
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nem a operosidade do irmão. Interessava-se mais pelos desportos do campo do que pela aquisição de cultura. Fez-se um moço belo e rijo, dotado de grande força corporal e alta opinião de si mesmo. Tinha audácia, coragem e ambição. Era grande caçador e capaz de montar cavalos que outros achavam indomáveis. Desde a meninice brincava às touradas com os outros garotos do lugar, e com mais idade não perdia um ensejo de saltar para a arena, e fazer a parte do touro. Aos dezasseis anos conseguiu permissão para lutar a cavalo com um touro e, com grande admiração do público, matou o animal à primeira lançada. Havia muito que decidira abraçar a carreira das armas, pois na Espanha daquela época, a menos que se ingressasse na Igreja,, não havia outro meio de elevar-se na vida. Embora pobre, Don Juan de Valero era muito respeitado, e sucede que um dos nobres da cidade era parente afastado do grande duque de Alva. Assim um belo dia, com uma carta de recomendação na algibeira,, o jovem Manuel partiu em busca da fortuna. Encontrou o grande homem num momento favorável, pois, tendo sido desterrado da corte, achava-se ele então retido no seu castelo de Uzeda. Caiu-lhe em graça a bela aparência desse jovem que vinha solicitar o seu patrocínio quando ele havia caído em desfavor, e ao ser chamado pouco depois por Filipe II para assumir o comando do exército na guerra com Portugal, o duque levou-o na sua comitiva. Derrotou o rei Don António e expulsou-o do seu reino. Apreendeu um grande tesouro em Lisboa e deu aos seus soldados permissão de saquear a cidade e os seus arredores. Manuel portou-se com bravura na batalha e mais tarde, no saque, deitou a mão a muitos objectos de valor que prontamente converteu em dinheiro. Como, porém, Alva estivesse
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velho e não pudesse durar muito, vendo o moço ansioso por fazer progressos na carreira militar, deu-lhe cartas de apresentação para alguns dos seus antigos capitães que tinham servido com ele nos Países Baixos e se achavam então sob o comando de Alexandre Farnese.
Durante vinte anos Manuel lutou com mérito nas guerras para fazer voltar as províncias do norte ao domínio do rei de Espanha. Mostrou-se não só corajoso mas astuto e foi promovido primeiro por Alexandre Farnese e depois pelos generais que à morte deste o substituíram. Era tão inescrupuloso quanto intrépido, não menos cruel do que hábil e igualmente devoto e brutal, de forma que com o tempo veio a ser investido em comandos importantes. Não tardara a descobrir que o homem que serve o seu país nunca é recompensado pelos seus méritos, a menos que peça o que deseja. Não hesitava em fazê-lo, e como havia acumulado quantias consideráveis graças à pilhagem das cidades capturadas, à extorsão a que submetia os mercadores das localidades que administrava e à concessão de favores em troca de dinheiro, pôde finalmente consubstanciar os seus direitos de uma forma que tornava difícil deixar de reconhecê-los. Recebeu a cobiçada Ordem de Calatrava e usava com orgulho a sua fita verde. Dois anos depois foi feito conde de San Costanzo, no reino de Nápoles, com o direito de fazer o uso que lhe aprouvesse do título. Os reis de Espanha tinham o proveitoso hábito de recompensar por esse modo as pessoas merecedoras, e como estas podiam vender os títulos a plebeus ricos que desejavam enobrecer-se, a Coroa conseguia assim prover, financeiramente, sem despesa para o Tesouro, aqueles que a tinham servido bem. Mas o cavaleiro de Calatrava dera um emprego judicioso ao seu dinheiro e não necessitava
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de lançar mão desse recurso. Tinha recebido vários ferimentos, o último tão grave que só a sua vigorosa constituição lhe permitiu sobreviver. Esse ferimento dava-lhe um pretexto razoável para deixar o serviço de el-rei. Resolveu voltar para casa e unir-se pelo casamento a uma família da velha aristocracia da sua cidade natal, o que não duvidava poder fazer graças ao seu posto e à sua fortuna, e depois mudar-se para Madrid, onde empregaria a sua energia e o seu talento para a intriga em satisfazer a sua ambição desmedida. Quem sabe se, jogando bem as cartas e cultivando a amizade das pessoas que convinham,, ele não alcançaria grandes alturas? Estava com quarenta anos e era uma bela- figura de homem, com olhos pretos e ousados, bonito bigode, um ar de virilidade insolente e uma língua desembaraçada.


VI.

Quanto ao terceiro filho, Martin, necessitamos dizer ainda menos. Todas as famílias têm a sua ovelha tinhosa e a família de Juan de Valeiro não constituía excepção à regra. Martin, o mais moço dos três e o último filho que Dona Violamte dera ao marido, não possuía nem o zelo ardente graças ao qual Blasco de Valero havia alcançado a eminência na Igreja, nem a ambição e destreza que tinham trazido fama e fortuna a Don Manuel. Parecia contentar-se com o cultivo das escassas e magras terras de cujos produtos viviam seus pais. Naqueles

tempos, devido às guerras constantes e à atracção que a América exercia sobre os espíritos jovens e aventurosos, havia falta de braços na Espanha. Os mouros, inteligentes e trabalhadores, nunca tinham sido numerosos na região e por essa época a sua quase totalidade fora obrigada a abandoná-la. Martin era uma grande decepção para Don Juan, e embora a sua esposa insistisse que tinha as suas vantagens possuir um filho robusto, activo e disposto a enfrentar qualquer espécie de trabalho, ele não cessava de afligir-se.
Mas um golpe ainda maior lhe estava reservado. Aos vinte e três anos Martin casou, e fê-lo com pessoa de classe inferior. É verdade que a sua noiva era uma cristã-velha e estava convincentemente provado que pelo espaço de gerações não houvera aliança com pessoas de sangue judeu ou mouro, mas o pai era padeiro. Consuelo era filha única e herdaria todas as suas posses, mas isso não alterava o facto de ser o homem um mercador. Passaram-se alguns anos. Consuelo teve filhos. Então um novo golpe feriu Don Juan: o padeiro morreu e o velho suspirou aliviado, pois agora seria possível vender a padaria e o estigma dessa conexão com um ofício manual acabaria por se apagar. Mas nem bem o padeiro fora decentemente enterrado quando Marttin informou os pais de que pretendia mudar-se para a cidade e dirigir o estabelecimento em pessoa. Mal podiam dar crédito aos seus ouvidos. Don Juan esbravejou, Dona Violante chorou. O filho fez-lhes ver que, se tinham melhorado um pouco de vida ultimamente, era graças ao dote de Consuelo; esse dote evaporara-se; ele tinha quatro filhos e não havia razão para que não viessem outros quatro; o dinheiro andava escasso na Espanha e a venda do negócio não podia render mais que o suficiente para sustentá-lo ainda
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alguns anos, ao termo dos quais os aguardava a miséria e a fome. Levantou o ridículo argumento de que cozer pão não era mais vergonhoso do que lavrar um campo estéril ou espremer azeitonas.
Martin instalou a família por cima da padaria. Levantava-se muito antes de amanhecer para levar o pão ao forno e depois ia a cavalo à chácara, onde trabalhava até à noite. Prosperou, pois fazia bom pão, e ao cabo de um ano ou dois pôde pagar a um homem para fazer o trabalho da chácara, mas não deixava passar um dia sem ir ver os pais. Era raro que não lhes levasse alguma coisa e dentro em pouco eles puderam comer carne todos os dias permitidos pela Igreja. Estavam adiantados em anos e Don Juan não podia negar que os presentes do filho eram um conforto para a sua velhice. Se bem que houvesse causado certa surpresa na cidade o facto de ter-se o filho de Juan de Valero rebaixado daquela forma,, e os garotos lhe gritassem na rua "panadero" em tom de mofa, o seu bom génio e inconsciência de ter feito qualquer coisa fora do comum não tardaram a desarmar toda a gente. Era caridoso e nenhum pobre lhe aparecia à porta pedindo esmola sem levar um pão fresco. Era religioso, ia à missa todos os domingos e confessavam regularmente quatro vezes por ano. Ao começar a nossa narrativa era um homem forte e disposto, de trinta e quatro anos, algo corpulento, pois gostava da boa mesa e do bom vinho, com um rosto redondo e franco, uma expressão jovial e feliz.
- É óptima pessoa - diziam dele - , não muito inteligente nem muito instruído, mas bom e honesto.
Era de agradável trato, amigo de gracejar e com o correr do tempo, quando Martin passou a ter vida mais folgada,
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homens de posição respeitável vinham muitas vezes à padaria conversar com ele e o estabelecimento tornou-se mesmo uma espécie de ponto de encontro em que os amigos iam ver-se e dar dois dedos de conversa.
Era uma feliz circunstância que ele houvesse tomado a seu cargo o sustento dos pais, visto que Frei Blasco, durante os seus vinte anos de ausência, jamais lhes enviara um vintém - pois distribuía em esmolas tudo quanto tinha - enquanto Don Manuel também não mandava nada porque nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse dar melhor emprego ao seu dinheiro do que ele mesmo. Desse modo, dependiam inteiramente de Martin na velhice. Ainda se envergonhavam dele e não podiam deixar de lastimar o rumo que dera à sua vida. Era uma fonte contínua de irritação o facto de ele parecer inteiramente satisfeito com o seu estado. Tratavam-lhe a esposa plebeia com a cerimoniosa cortesia que lhes parecia exigir o respeito próprio e ganharam afeição aos netos. Mas o seu coração estava com os dois filhos que haviam trazido honra e glória ao seu antigo nome.


VII.

Não é difícil imaginar a alegria com que Don Juan e Dona Violante aguardavam o dia em que tornariam a vê-los após tão prolongada separação. O frade escrevia com raros intervalos, e como nem Don Juan nem o filho padeiro eram
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muito letrados e de qualquer modo sentiam-se incapazes de escrever com a elegância devida a um culto homem de Igreja, tinham pedido a Domingo Pérez que respondesse às cartas. E Domingo fazia-o com plena satisfação tanto dos Valeros como de si próprio, pois orgulhava-se da elegância do seu estilo. Don Manuel, por outro lado, nunca se comunicara com ele a não ser quando estava cabalando para conseguir a Ordem de Calatrava e necessitou apresentar provas da pureza da sua ascendência. Também dessa vez recorreram aos bons serviços de Domingo, que preparou uma genealogia, devidamente autenticada pelos magistrados locais, em que reportava as origens da família, sem a menor mistura de sangue judeu, a Afonso VIII, rei de Castela,, o qual desposara Eleanora, filha de Henrique II da Inglaterra.
O que motivava a vinda dos dois filhos de Don Juan não era apenas o regresso de Don Manuel após os longos anos de serviço nas guerras e a elevação de Frei Blasco à dignidade episcopal, mas também a comemoração das bodas de ouro do velho casal. Combinaram os dois irmãos encontrarem-se numa localidade situada a umas vinte milhas de Castel Rodríguez e realizar juntos a sua entrada solene na cidade. Don Juan comprazia-se em pensar que a grandiosa recepção preparada aos filhos compensaria de certo modo o longo opróbrio da degradação do pobre Martin. Estava, naturalmente, impossibilitado de receber os dois filhos e as respectivas comitivas na sua semi-arruinada granja. Ficou, pois, combinado que o bispo se hospedaria no convento dominicano, enquamto o despenseiro do duque de Castel Rodríguez, na ausência do seu amo, que estava em Madrid, oferecia aposentos a Don Manuel no palácio ducal.
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Chegou o grande dia. Os nobres da cidade puseram-se a caminho, montando os seus cavalos, enquanto os magistrados e os eclesiásticos cavalgavam mulas. Seguiam, numa carruagem que lhes emprestara uma pessoa de qualidade, Don Juan e Dona Violante acompanhados de Martin e da família deste. Pouco depois os visitantes tão ansiosamente esperados foram vistos a aproximar-se pela sinuosa e poeirenta estrada. O bispo, com o hábito dominicano, sobre o lombo de uma mula, cavalgava ao lado do irmão no seu corcel de guerra. Envergava uma maravilhosa armadura, toda marchetada de ouro. Atrás deles vinham os dois secretários do bispo, religiosos da mesma ordem, os seus criados e os do capitão, vestidos de sumptuosa libré. Após saudar os importantes personagens que os tinham vindo receber e após ouvir alguns eloquentes discursos, o bispo perguntou pelo pai e pela mãe. Estes, que se mantinham modestamente atrás dos outros, adiantaram-se então. Dona Violante ia ajoelhar-se para beijar o anel episcopal quando o bispo, com grande admiração dos espectadores, não a deixou fazer e, tomando-a nos braços, beijou-lhe ambas as faces. Ela pôs-se a chorar e muitas pessoas presentes ficaram tão tocadas com aquilo que as lágrimas lhes corriam pelas faces. Beijou ele também o pai e, enquanto os dois velhos se voltavam para o segundo filho, perguntou por Martin.
- "El panadero" - chamou alguém.
Martin avançou então por entre a multidão, com a mulher e os filhos. Todos haviam vestido as suas melhores roupas e o jovial, rubicundo e corpulento homem, tinha excelente aspecto. O bispo saudou-o afectuosamente e Don Manuel com certa condescendência, enquanto Consuelo e os pequenos ajoelhavam no chão e beijavam o anel do bispo. Este felicitou
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amavelmente o irmão pelo número e pela saudável aparência dos seus rebentos. Nas cartas que lhe escreviam, Dom Juan e Dona Violamte haviam falado do casamento do filho mais moço e participado o nascimento das crianças, mas jamais ousaram informá-lo de que Martin se fizera mercador. Observavam o encontro cheios de apreensão. Sabiam que a verdade, infalivelmente, não tardaria a vir à tona, mas estavam ansiosos por evitar qualquer ocorrência que pudesse perturbar o regozijo da ocasião. Ao cabo de muitas disputas, havia assentado quem iria à direita e quem à esquerda dos dois ilustres filhos da cidade, e embora muitos guardassem ressentimento formou-se o cortejo e a cavalgada realizou uma entrada imponente na cidade. Ao transporem as portas os sinos das igrejas puseram-se a repicar, foguetes estouraram, houve um clangor de trombetas e um rufar de tambores. As ruas estavam apinhadas de gente e foi entre vivas e palmas que eles passaram pelas ruas, a caminho da colegiada, onde se cantaria um "Te Deum".
O serviço divino foi seguido de um banquete e os anfitriões notaram que, embora fosse dia de festa da Igreja, o bispo não comia carne nem tomava vinho. Terminada a refeição ele mostrou o desejo de ficar alguns instantes a sós com as pessoas da sua família. Martin foi buscar a mãe, que se recolhera à casa do padeiro com Consuelo e as crianças. Ao voltar, encontrou o mano Blasco a sós com o pai, mas nem bem havia entrado na sala quando surgiu Don Manuel, de sobrolho franzido, os olhos negros de cólera.
- Mano - disse ele, dirigindo-se a Blasco - , tu sabes que esse Martin, filho de um nobre de antiga linhagem,, é um pasteleiro?
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Don Juan e sua esposa estremeceram, mas o bispo limitou-se a sorrir.
- Pastelleiro não, mano: padeiro.
- Quer dizer então que sabias?
- Há anos que sei. Embora os meus sagrados deveres não me permitissem dedicar a meus pais o cuidado que desejava, observava-os de longe e nunca os esquecia nas minhas orações. O prior da nossa ordem nesta cidade mamtinha-me ao par da sua situação.
- Então como consentiste que ele lançasse tamanho labéu sobre a nossa família?
- Nosso irmão Martin é um homem virtuoso e devoto. É um cidadão respeitado e caridoso para os pobres. Tem zelado pelos nossos pais na sua velhice. Não lhe posso censurar o haver tomado uma decisão que lhe era imposta pelas circunstâncias.
- Eu sou um soldado, mano, e ponho a honra acima da vida. Essa história arruinou-me os planos.
- Duvido muito.
- Como podes saber? - esbravejou Don Manuel. - Tu não conheces os meus planos.
O esboço de um sorriso clareou por um instante as feições austeras do bispo.
- Não deves ter muita experiência do mundo,, mano - respondeu ele - , se ignoras que os nossos assuntos pessoais raramente escapam à notícia dos nossos servidores. Esqueces que passámos dois dias debaixo do mesmo tecto, a caminho daqui. Chegou-me aos ouvidos que não vieste apenas cumprir um dever filial, mas também escolher uma esposa entre as famílias nobres da cidade. Apesar da profissão que nosso irmão resolveu seguir, com o título que Sua Majestade houve por bem
conceder-te e o dinheiro que ganhaste a seu serviço creio que não te será difícil alcançar o teu objectivo.
Martin ouvia tudo isso sem o menor sinal de que sentisse vergonha. O seu rosto bem-humorado tinha uma expressão de divertimento.
- Não esqueças, Manuel - disse ele - , que Domingo Pérez repontou as origens de nossa família a um rei de Castela e a um rei de Inglaterra. Isso não pode deixar de ter o seu peso junto à família a que pretendas fazer a honra de lhe desposar a filha. Domingo disse-me que um dos reis ingleses fazia bolos, de modo que talvez não haja grande ignomínia no facto de um descendente de reis fazer pão, sobretudo quando, por opinião unânime, é o melhor pão da cidade.
- Quem é esse Domingo Pérez? - perguntou o soldado, de carramca fechada.
Não era fácil responder a esta pergunta, porém Martin fez o que pôde.
- Um homem instruído e um poeta.
- Recordo-me dele - disse o bispo. - Estivemos juntos no seminário.
Don Manuel fez um gesto agastado e dirigiu-se ao pai.
- Como pôde permitir que ele nos envergonhasse assim?
- Eu não aprovei. Fiz tudo que estava no meu poder para impedi-lo.
Don Manuel voltou-se então severamente para o irmão mais novo.
- E tu ousaste contrariar o desejo de teu pai? Devia representar para ti uma ordem. Dá-me uma razão, uma só, pela qual, mandando a decência à fava, te rebaixaste fazendo-te padeiro.
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- A fome.
A palavra pareceu desabar no chão como um monte de alvenaria. Don Manuel sufocou uma exclamação de nojo e raiva. Mais uma vez, um leve sorriso tremeu nos lábios do bispo. Os próprios santos conservam certa dose de humanidade, e durante os dois dias que tinham passado jumtos Don Blasco chegara à conclusão de que não simpatizava muito com seu mano militar. Censurava-se tal coisa, mas nem toda a sua caridade cristã conseguia vencer a impressão de que Don Manuel era um indivíduo grosseiro, brutal e despótico.
Por felicidade, essa reunião de família foi interrompida pela entrada de algumas pessoas, as quais vinham avisar que estava na hora das touradas. Os dois irmãos receberam lugares de honra. A municipalidade dera-se a despesas para conseguir bons touros e o espectáculo esteve à altura da ocasião. Depois de terminado, o bispo retirou-se para o convento dominicano com os frades que o acompanhavam e Don Manuel dirigiu-se para os aposentos que lhe tinham sido reservados. O povo da cidade voltou para as suas casas ou para as tabernas, a fim de trocar impressões sobre as emocionantes ocorrências do dia, e Domingo Pérez acabou por encontrar o caminho da casa da irmã.


VIII.

Após a ceia, como de hábito, Domingo subiu para o seu quarto. Pouco depois Maria foi ter com ele. Tinha ouvido, lá em baixo, ler em voz sonora e dramática, e quando bateu
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à porta ele não respondeu. Entrou. Era um quarto pequeno e desguarnecido, que não continha mais do que um leito, um baú para a roupa, uma mesa e uma cadeira. Havia uma prateleira cheia de livros e livros espalhados na mesa, no soalho e sobre a arca. A cama estava desarrumada e Domingo atirara para ali a sua batina. Estava de calções e em mangas de camisa. Inúmeros papéis juncavam a mesa e a um canto do quarto via-se grande pilha de manuscritos. Maria suspirou ao ver aquela desordem a que jamais conseguira pôr termo. Sem tomar conhecimento da presença da irmã, ele continuou a declamar as falas de uma peça teatral.
- Quero falar contigo, Domingo - disse ela.
- Não me interrompas,, mulher. Escuta os versos gloriosos do maior génio dos -nossos tempos.
E continuou a vozear. Maria bateu com o pé.
- Larga esse livro, Domingo. Tenho uma coisa muito importante para te dizer.
- Vai-te daqui. Que coisa pode ser mais importante do que a divina inspiração dessa fénix da época, do incomparável Lope de Vega?
- Não sairei enquanto não me ouvires. Domingo atirou o livro, agastado.
- Então dize o que tens para dizer. Dize depressa e vai-te. Ela contou-lhe a história de Catalina: como a Virgem lhe
aparecera e lhe dissera que o bispo, filho de Dom Juan, tinha o poder de curá-la da sua enfermidade.
- Isso foi um sonho, minha pobre Maria - disse ele quando a irmã terminou.
- Foi o que eu lhe disse. Mas afirma que estava bem acordada. Não posso convencê-la do contrário.
Domingo ficou impressionado.
- Vou descer contigo. Quero ouvir essa história dos seus próprios lábios.
Pela segunda vez, Catalina narrou o incidente. A Domingo bastou um olhar para se convencer de que ela acreditava firmemente em cada palavra que dizia.
- Por que motivo estás tão segura de que não dormias, menina?
- Como podia eu pegar no sono àquela hora do dia? Tinha acabado de sair da igreja. Chorei, e quando cheguei a casa o meu lenço estava molhado de lágrimas: como podia enxugar os olhos enquanto dormia? Ouvi tanger os sinos quando o bispo e Don Manuel entraram na cidade. Ouvi as trombetas, os tambores e os gritos do povo.
- Não faltam ardis a Satanás para enganar os desprevenidos. A própria Madre Teresa de Jesus, a freira que fundou tantos conventos, receou por muito tempo que as suas visões fossem obras do demónio.
- Será possível a um demónio simular a doçura e a bondade de Nossa Senhora quando me falou?
- O diabo é bom actor - sorriu Domingo. - Quando Lope de Rueda se impacientava com os componentes da sua "troupe", dizia que, se o diabo quisesse trabalhar para ele, dar-lhe-ia de bom grado, em paga, todas as almas da companhia. Mas ouve, querida: nós sabemos que certas pessoas devotas receberam a graça de ver com seus próprios olhos Nosso Senhor e a Santíssima Virgem, mas receberam essa graça em recompensa de orações, jejuns, mortificações e de uma vida dedicada ao serviço do Senhor. Que fizeste tu para merecer
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um favor que só é concedido a outros ao cabo de longos anos de imolação de si mesmos?
- Nada - respondeu Catalina. - Mas sou pobre e desgraçada, implorei a Nossa Senhora que me socorresse e ela teve piedade de mim.
Domingo guardou silêncio por alguns momentos. Catalina era resoluta e voluntariosa, e ele tinha medo. A moça não fazia ideia dos perigos que corria.
- A Santa Madre Igreja não olha com indulgência as pessoas que afirmam ter comunicação com o Céu. O país está infestado de gente que pretende ter sido contemplada com privilégios sobrenaturais. Alguns são pobres criaturas iludidas que acreditam no que dizem; muitos são impostores que inventam tais coisas a fim de conquistar notoriedade ou ganhar dinheiro. O Santo Ofício persegue-os com razão, pois eles perturbam os ignorantes e muitas vezes levam-nos à heresia. A uns o Santo Ofício põe na prisão, a outros açoita, a uns manda para as galés, a outros para a fogueira, imploro-te, pelo amor que nos tens, que não divulgues nem uma só palavra do que nos contaste.
- Mas tio, querido tio, é toda a minha felicidade que está em jogo! Todos sabem que não há no reino homem mais santo do que o bispo. É coisa sabida que até os pedaços do seu hábito têm uma virtude milagrosa. Como poderei ficar calada, quando a Santíssima Mãe de Deus me disse pessoalmente que ele me pode curar deste mal que me roubou o amor do meu Diego?
- Não é só a ti que isso interessa. Se o Santo Ofício resolver fazer um inquérito, é bem possível que o meu processo seja reaberto, pois o Santo Ofício tem a memória comprida, e se nos puserem nos cárceres da Inquisição esta casa será vendida
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para pagar as despesas do nosso sustento e tua mãe ver-se-á lançada às ruas, onde terá de mendigar o seu pão. Promete-me ao menos que não dirás nada até que tenhamos tempo de reflectir.
Domingo tinha um ar de tamanha consternação, de tão profunda ansiedade, que Catalina cedeu.
- Sim, isso eu prometo.
- És uma excelente menina. Agora deixa que tua mãe te ponha na cama, pois todos nós estamos cansados de um dia tão cheio de acontecimentos.
Beijou-a e deixou as duas mulheres, a sós, mas chamou a irmã do alto da escada. Ela veio atendê-lo.
- Dá-lhe um purgante - murmurou Domingo. - Com os intestinos a funcionar bem ela mostrar-se-á mais razoável, e amanhã poderemos convencê-la de que tudo isso não passou de um sonho muito infeliz.


IX.

Mas o purgante não produziu efeito - pelo menos o efeito desejado. Catalina continuou a asseverar que tinha visto a Virgem Santíssima com os seus próprios olhos e falado com ela. Descrevia-lhe as vestes com tamanha precisão que Maria Pérez encheu-se de assombro. Ora, sucedeu que o dia seguinte era sexta-feira e Maria foi confessar-se. Havia muitos anos que tinha o mesmo confessor, o padre Vergara, e confiava tanto
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na benevolência como na prudência deste. Portanto, depois de receber a absolvição ela contou-lhe a estranha história de Catalina e repetiu-lhe grande parte do que Domingo havia dito. - Seu irmão portou-se com uma discrição e um bom-senso admiráveis, sobretudo porque tais qualidades não seriam de esperar nele. Este assunto deve ser tratado com cautela. Não devemos fazer nada às pressas. É preciso evitar o escândalo e a senhora deve ordenar à sua filha que não fale nisso a ninguém. Vou reflectir e, se necessário, consultarei o meu superior.
O confessor de Maria também o era de Catalina e conhecia a ambas tão bem como só um confessor pode conhecer as suas penitentes. Sabia-as simples, honestas, sem malícia e tementes a Deus. O próprio Domingo não lhes pudera corromper a inocência ou empanar-lhes a candura. Catalina era uma menina sensata, dona de uma cabeça sólida, e se não suportava com resignação a sua invalidez não se podia negar que a suportasse com coragem. Era ingénua de mais para ter inventado aquela história com segundas intenções. Além disso, estava convencido de que a natureza excessivamente material da jovem não era capaz de imaginar um acontecimento espiritual. O padre Vergara era dominicano e fora no seu convento que o bispo se hospedara com a sua comitiva. Homem simples e de medíocre cultura, a história da aventura de Catalina contada pela mãe desta perturbou-o de tal forma que se sentiu na obrigação de referi-la ao seu prior. Este reflectiu e chegou à conclusão de que era preciso informar o bispo; mandou, pois, um noviço perguntar-lhe se podia ouvi-los, a ele e ao padre Vergara, a respeito de um assunto que talvez fosse de importância.
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Daí a pouco o noviço voltou dizendo que o bispo teria prazer em recebê-los.
Tinham-lhe dado a cela mais espaçosa do convento. Uma dupla arcádia com um pilar de suporte separava-a em duas partes, uma das quais servia de alcova e a outra de oratório. Ao entrarem o prior e o padre Vergara, encontraram o bispo a ditar cartas a um dos seus secretários. O prior explicou a que tinham vindo e deixou que o padre Vergara repetisse ponto por ponto o que lhe dissera a sua penitente. O frade começou por expor ao bispo o quanto as duas mulheres eram honestas e devotas, a existência irrepreensível que levavam, depois descreveu o fatal acidente em consequência do qual a infeliz Catalina havia perdido o uso da perna e as atenções do seu namorado, e terminou repetindo a história da aparição da Santíssima Virgem, a qual dissera à menina que o bispo a curaria da sua enfermidade. Pensando bem, resolveu acrescentar que Domingo Pérez, o tio da menina lhe arrancara a promessa de conservar sigilo sobre o episódio enquanto o assunto não fosse devidamente examinado. Quando ele terminou, o rosto do bispo assumira uma expressão de tal severidade que o frade, com a voz estrangulada, suava por todos os poros. Fez-se um silêncio.
- Eu conheço esse Domingo - disse o bispo afinal. - É um homem de má vida, com quem nenhuma pessoa que preze a salvação da sua alma deveria manter relações. Mas não é tolo. Ao exigir da sobrinha a promessa de segredo, agiu com prudência. É também o confessor da menina, padre? - O outro fez uma reverência. - Fará bem em recusar-lhe a absolvição enquanto ela não prometer que não falará nisso a ninguém.
O padre frade arregalou os olhos para o bispo, cheio de
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confusão. Não era ele, pelo consenso geral, um santo? O padre Vergara julgava que ele receberia de braços abertos essa oportunidade de exercer os seus poderes milagrosos, com o que não só glorificaria o Senhor mas conduziria muitos pecadores ao arrependimento. O olhar do bispo era frio. Dir-se-ia que só por um esforço de vontade ele conseguia dominar a sua cólera.
- E agora, se me dão licença, vou prosseguir o meu trabalho - disse ele; e, voltando-se para o secretário: - Leia de novo a última frase que ditei.
Os dois frades retiraram-se timidamente, sem dizer mais uma só palavra.
- Por que estará ele tão vexado? - perguntou o padre Vergara.
- Não devíamos ter-lhe falado nisso. A culpa é minha. Ofendemos a sua humildade. Ele não sabe que grande santo é e não se julga digno de fazer um milagre.
A explicação parecia muito razoável e, como redundava em maior crédito para o bispo, o padre Vergara apressou-se a contar tudo aos seus confrades. Dentro em pouco o convento zumbia de excitação. Alguns louvavam a modéstia do bispo, outros lamentavam que ele não tivesse aproveitado essa ocasião de fazer alguma coisa que tanto exaltaria o seu renome e a boa fama da ordem.
Entrementes, a história havia alcançado outros ouvidos. A igreja em que Catalina estivera a rezar e de onde, a dar-lhe crédito, a Santíssima Virgem tinha saído pertencia, como dissemos, ao convento carmelita da Encarnação. Era o convento ricamente dotado e havia muitos anos que a prioresa tinha o hábito de dar trabalho a Maria Pérez, em parte por caridade
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e em parte por ser ela habilíssima no difícil e trabalhoso ofício que exercia. Maria viera, desse modo,, a fazer amizade com muitas dentre as religiosas. Como se tratasse de um convento de ordem mitigada, gozavam elas de bastante liberdade e não era raro que uma das freiras lhe viesse à casa almoçar e conversar. Dois ou três dias após a confissão de Maria, necessitou esta de ir ao convento e, após cumprir a sua obrigação, pôs-se a tagarelar com a freira que era sua amiga mais íntima. Exigindo-lhe juramento de segredo, contou-lhe o estranho facto que ocorrera à sua filha. As religiosas eram muito palradeiras e semelhante história não podia deixar de ser um grande acontecimento na rotina piedosa mas monótona das suas existências, de modo que ao cabo de vinte e quatro horas todas as moradoras do convento estavam informadas e o caso acabou por chegar aos ouvidos da prioresa. Como esta senhora desempenha um papel de certa importância na nossa narrativa, torna-se necessário contar aqui a sua história, ainda que com risco de aborrecer o leitor.


X.

Beatriz Henríquez y Bragamza, na vida religiosa Beatriz de San Domingo, era filha única do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Tinha grande fortuna e era poderosíssimo. Logrou conservar a confiança do sombrio e desconfiado Filipe II e exerceu com distinção importantes cargos na Espanha e na Itália. Possuía vastas
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propriedades em ambos os países e, embora os seus deveres o forçassem a morar ora aqui ora ali, não havia para ele nada melhor do que viver com a esposa e os filhos - pois tinha três-, dois homens e uma mulher - na cidade em que nascera, com os seus ares saudáveis e as suas grandiosas vistas. Era ali que se originara a sua raça e fora graças à repulsa, por um dos seus antepassados, das tropas mouras que assediavam a cidade, que a família começara por adquirir eminência. Não existia ali ninguém maior do que o duque de Castel Rodríguez, o qual vivia numa propriedade quase régia. Como durante toda a história da família os seus membros houvessem contraído grandes alianças, ela achava-se relacionada com os mais magníficos nobres de Espanha. Ao fazer treze anos sua filha, Beatriz, ele procurou um esposo que lhe conviesse, e após passar em revista vários candidatos possíveis decidiu-se pelo filho único do duque de Anteguera, O qual descendia por vias espúrias de Fernando de Aragão. O duque de Castel Rodríguez prontificava-se a dar à filha um dote magnífico, e assim o assunto foi resolvido sem dificuldade. Realizaram-se os esponsais dos dois jovens, mas como o rapaz não tinha mais de quinze anos combinou-se que só se faria o casamento quando ele alcançasse uma idade apropriada. Beatriz teve permissão de ver o futuro marido em presença dos pais deste e dos seus, dos tios e tias e outros parentes mais distantes. Era um rapazinho atarracado, de estatura não maior que a dela, áspera gaforinha preta, nariz arrebitado e boca mal-humorada. Concebeu uma imediata antipatia por ele, mas sabia que era inútil protestar e contentou-se em lhe fazer caretas. Ele respondeu mostrando-lhe a língua.
Depois dos esponsais o duque mandou-a terminar a sua
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educação no convento carmelita da Encarnação, em Ávila, onde sua irmã era prioresa. Ela achou divertida a vida do convento. Havia ali outras meninas, filhas de famílias nobres, em situação idêntica à sua, e várias senhoras que por uma razão ou por outra viviam como pensionistas no convento sem estar sujeitas à disciplina deste. A regra suavizada das carmelitas era bastante suportável e, embora algumas das freiras se dedicassem à prece e à contemplação, muitas delas, sem negligenciar os seus deveres, saíam e iam visitar as pessoas amigas, ausentando-se por vezes durante semanas inteiras. A sala de visitas estava sempre cheia de pessoas de ambos os sexos, de modo que se fazia ali uma alegre vida social. Armavam-se casamentos, discutia-se o andamento das guerras e permutavam-se os mexericos da cidade. Era uma existência pacífica e inofensiva, com diversões modestas, e para as freiras não representava um caminho muito árduo para a eterna bem-aventurança.
Na idade de dezasseis anos foi Beatriz tirada do convento e desceu com a mãe para Castel Rodríguez, acompanhada de um batalhão de criados. A duquesa não estava bem de saúde e os médicos tinham-lhe recomendado que fosse viver num clima menos rigoroso que o de Madrid. Preso pelos assuntos de estado, o duque ficou a contragosto na capital. Aproximava-se a época em que deveria realizar-se o casamento de Beatriz e seus pais achavam conveniente que ela aprendesse alguma coisa sobre o modo de dirigir um grande solar. A duquesa passou, pois, alguns meses ensinando à filha as normas sociais que ela não podia ter aprendido no convento das carmelitas. Beatriz fizera-se uma jovem alta, de grande beleza, com uma pele clara e sem marcas de bexigas, feições de uma regularidade clássica,
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talhe esguio e flexível. Os espanhóis daquela época apreciavam formas mais opulentas e algumas das senhoras que vinham prestar os seus respeitos à duquesa lamentavam-lhe a magreza, mas a desvanecida mãe respondia que o casamento não tardaria a remediar esse defeito.
Nesse tempo Beatriz era alegre,, apaixonada pela dança e estuante de vitalidade animal. Era travessa e voluntariosa. Já então possuía um génio autoritário, pois haviam-na estragado com mimos, e sempre teve o hábito de impor a sua vontade aos que a cercavam. Desde pequena compreendera que estava destinada pelo nascimento às altas posições de mando e que o resto da humanidade devia submeter-se aos seus caprichos. O seu confessor, bastante preocupado com esse desejo de domínio, falou nisso à duquesa:, mas esta não se mostrou muito impressionada com a advertência.
- Minha filha nasceu para mandar, padre. Não se pode esperar dela o servilismo de uma lavadeira. Se o seu temperamento é excessivamente orgulhoso, o marido, caso tenha carácter, o modificará sem dúvida .alguma, e caso não o tenha o sentimento do que lhe é devido, que não falta a Beatriz, será benéfico para ele também.
No convento, Beatriz tomara-se de entusiasmo pelos romances de cavalaria a que algumas das senhoras pensionistas eram muito afeiçoadas. Embora a freira encarregada de zelar pelas alunas não lhe permitisse lê-los, de quando em quando ela conseguia lançar um olhar furtivo a essas histórias intermináveis. Quando veio para Castel Rodríguez encontrou vários no palácio e, como a mãe estivesse muitas vezes indisposta e a "duena" fosse indulgente, devorou-os com avidez. A sua imaginação juvenil inflamou-se e começou a pensar com fastio no
inevitável casamento com o rapaz que ela ainda via como um garoto achaparrado, mal enjambrado e birrento. Tinha consciência da sua beleza e na missa, na companhia da mãe, não perdia nenhum dos olhares de admiração que lhe deitavam os jovens casquilhos da cidade. Reuniam-se na escadaria da igreja para vê-la sair e, embora Beatriz andasse com os olhos modestamente baixos, ao lado da duquesa, seguida pelos dois lacaios de libré que carregavam as almofadas de veludo sobre as quais se haviam ajoelhado durante o serviço divino, percebia a sensação que causava e o seu ouvido apanhava os elogios que os rapazes, segundo o costume espanhol, diziam à sua passagem. Conquanto nunca olhasse para eles, conhecia-os a todos de vista e não tardou a descobrir-lhes os nomes, a que famílias pertenciam e, na verdade,, tudo que era possível saber a respeito deles. Uma ou duas ocasiões os mais ousados cantaram-lhe serenatas, mas a duquesa mandava imediatamente os criados enxotá-los. Certa feita encontrou uma carta em cima do seu travesseiro. Adivinhou que uma das criadas fora paga para a pôr ali. Abriu o sobrescrito e leu-a duas vezes, depois rasgou-a em pedacinhos e queimou-os à chama das velas. Foi a primeira e a única carta de amor que recebeu na sua vida. Não trazia assinatura e ela não podia adivinhar de quem provinha.
Devido ao mau estado da sua saúde a duquesa achava suficiente assistir à missa nos domingos e dias de festa, mas Beatriz ia todas as manhãs com a "duena". A missa realizava-se muito cedo e eram poucas as pessoas que se encontravam na igreja, mas havia um seminarista que nunca faltava. Era alto e magro, de feições resolutas, olhos escuros e apaixonados.
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Por vezes, quando andava com a "duena" no desempenho de alguma piedosa missão, ela passava pelo moço na rua.
- Quem é esse? - perguntou Beatriz um dia em que o viu caminhar lentamente na sua direcção, a ler um livro.
- Esse? Ora, ninguém. É o filho mais velho de Juan Suárez de Valero. "Hidalguía de gutierra".
Esta expressão, que pode ser traduzida por "nobreza de sarjeta", era o termo desdenhoso aplicado aos fidalgos de nascimento que não tinham meios para viver de acordo com a sua posição. A "duena", uma viúva vagamente aparentada ao duque, era orgulhosa, devota;, criticadora e sem vintém. Residira toda a vida em Castel Rodríguez, até que, ao deixar Beatriz o convento, o duque a tinha escolhido para dama de companhia da filha. Conhecia todos os habitantes da cidade como as palmas das suas mãos, e apesar de muito piedosa não resistia à tendência de falar mal do próximo.
- Que faz ele aqui nesta época do ano? - indagou Beatriz. A "duena" sacudiu os ombros magros. - Adoeceu no seminário por excesso de trabalho e os médicos desesperaram de salvá-lo. Mandaram-no para casa, a ver se recobrava a saúde, e por mercê divina foi o que sucedeu. Dizem-no muito talentoso. Segundo creio, seus pais esperam que ele obtenha um benefício graças à influência do duque seu pai.
Beatriz nada mais disse.
Mas, por alguma razão que os médicos não podiam descobrir, começou a perder o apetite e a animação. Também perdeu a cor fresca das faces e tornou-se pálida. Andava apática e muitas vezes iam encontrá-la banhada em lágrimas. Ela, cuja alegria, cujo carácter encantadoramente caprichoso e irresponsável
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tinham dado vida àquele palácio sombrio e magnificente, andava agora entregue à tristeza e ao desalento. A duquesa não sabia o que fazer e, temendo que a menina fosse de mal a pior, escreveu ao marido pedindo que viesse vê-las, a fim de resolverem sobre o melhor caminho a seguir. Ele veio e ficou estupefacto com a mudança que se operara na filha. Beatriz estava mais (magra do que nunca e tinha manchas negras debaixo dos olhos. Chegaram à conclusão de que o melhor alvitre era casá-la sem demora, mas ao fazerem essa proposta a Beatriz ela teve um acesso de nervos, pondo-se aos gritos, o que os deixou ainda mais alarmados. Desistiram de voltar por ora ao assunto. Deram-lhe mesinhas, alimentaram-na a leite de mula e sangue de boi, mas, se bem que Beatriz engolisse obedientemente tudo quanto lhe davam,, nada produziu efeito. Continuava pálida e desalentada. Fizeram o possível para distraí-la. Pagaram a músicos que tocavam para ela; levaram-na a assistir a uma peça religiosa na colegiada, levaram-na às touradas - apesar de tudo, ela continuava a definhar. A "duena" tomara grande afeição à sua pupila e, como Beatriz já não se interessasse pelos romances que tinham constituído o seu maior entretenimento, ela não encontrava outro modo de divertir a doente senão contando-lhe os mexericos da cidade. Beatriz ouvia polidamente, mas sem interesse. Certa ocasião ela mencionou de passagem que o filho mais velho de Juan Suárez de Valero tinha ingressado na ordem dos dominicanos. Continuou a tagarelar sobre uma pessoa e outra, quando de súbito notou que Beatriz perdera os sentidos. Gritou por socorro e Beatriz foi posta na cama.
Um ou dois dias depois, estando já melhor, pediu permissão para ir confessar-se. Havia várias semanas que recusava
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fazê-lo, dizendo não se sentir muito bem, e o confessor da duquesa, que também o era de Beatriz, concordou em que era preferível não insistir. Dessa vez tanto o pai como a mãe tentaram dissuadi-la, mas a jovem instou e chorou tão amargamente que afinal cederam. Mandaram sair a grande carruagem, usada apenas nas ocasiões solenes, e ela dirigiu-se para a igreja dominicana acompanhada pela "duena". Ao voltar parecia-se mais com a antiga Beatriz. Tinha uma leve cor nas faces pálidas e nos seus bonitos olhos brilhava uma nova luz. Ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe permissão para fazer-se freira. Foi para ele um grande choque, não só porque não queria perder a filha única mas também porque não lhe agradava desistir da importante aliança que havia projectado. Era, no entanto, um homem bondoso e devoto, e respondeu sem aspereza que decisões como aquela não deviam ser tomadas levianamente e, de qualquer modo, o assunto estava fora de cogitação enquanto o estado da sua saúde fosse tão precário. Ela disse-lhe que tinha conversado a respeito com o seu confessor e este dera plena aprovação à ideia.
- Sem dúvida, o padre Garcia é muito digno e muito piedoso - disse o duque,, franzindo de leve o sobrolho - , mas a sua profissão impede-o, talvez, de compreender quanto são grandes as responsabilidades ligadas à nobreza e às altas posições. Falarei amanhã com ele.
Assim, no dia seguinte o frade foi chamado ao palácio ducal e levado à presença do duque e da duquesa. Sabiam estes, naturalmente, que ele não revelaria nada do que Beatriz lhe dissera no confessionário, e não tentaram averiguar se ela lhe dera a conhecer algum motivo capaz de justificar uma resolução que tanto os contrariava, Disseram-lhe, contudo, que
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embora ela observasse os preceitos da Igreja, era de natural alegre, amiga de toda a sorte de diversões, e nunca mostrara qualquer inclinação para a vida religiosa. Falaram-lhe do grande casamento que tinham arranjado para ela e dos transtornos que adviriam da sua ruptura, assim como dos ressentimentos que isso iria causar; e, finalmente, com todo o respeito devido ao seu hábito, insinuaram que não fora prudente da sua parte aprovar um desejo evidentemente nascido da misteriosa doença de Beatriz. Esta era jovem e tinha uma constituição saudável. Não havia razão para supor que continuasse com as mesmas ideias quando recobrasse a saúde. O dominicano mostrou uma singular obstinação. Achava o desejo de Beatriz muito forte para que se lhe pudessem opor e a vocação da jovem parecia-lhe autêntica. Foi ao ponto de dizer a esses grandes personagens que não tinham direito a impedir sua filha de tomar uma resolução que lhe traria a paz neste mundo e a bem-aventurança no outro. Foi essa a primeira de uma série de discussões. Beatriz permaneceu firme na sua decisão e o confessor apoiou-lhe o desejo com todos os argumentos persuasivos de que pôde lançar mão. Por fim o duque prometeu dar a sua anuência se, ao cabo de três meses, ela ainda desejasse entrar para o convento.
A partir de então Beatriz começou a melhorar. Volveram-se os três meses e ela entrou como noviça na comunidade das carmelitas de Ávila. Toda. de veludo e cetim, ataviada com as suas jóias, foi acompanhada ao convento pela família e numerosos cavalheiros,, dos mais nobres da cidade. À porta disse adeus a todos, alegremente, e foi recebida pela porteira. Mas o duque também fizera os seus planos para enfrentar a situação. Em sua própria honra e para maior glória do
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Senhor, resolveu fundar em Castel Rodríguez um convento para onde sua filha pudesse recolher-se logo que terminasse o noviciado e do qual no devido tempo se tornasse superiora. Possuía imóveis na cidade e escolheu junto aos muros um local apropriado para tal fim. Construiu ali uma linda igreja,, um claustro, pavilhões adequados à vida de sociedade, e mandou plantar um jardim. Contratou o melhor arquitecto que se podia encontrar, os melhores escultores, os melhores pintores, e quando tudo ficou pronto Beatriz, conhecida agora como Dona Beatriz de San Domingo, veio instalar-se no palácio com várias freiras de Ávila, escolhidas pela sua virtude, inteligência e importância social. O duque havia determinado que nenhuma freira fosse aceite a menos que pertencesse a família nobre. Escolheu-se uma superiora, ficando entendido que esta se retiraria logo que Beatriz de San Domingo alcançasse a idade necessária para substituí-la. A instâncias do duque, a "duena" entrara num convento de Castel Rodríguez ao mesmo tempo que Beatriz ia para Ávila e estava em condições de reunir-se à sua antiga pupila. O padre Garcia rezou missa, o Santíssimo Sacramento foi entronizado e as freiras instalaram-se na nova instituição.
Na época de que trata a nossa narrativa, havia já alguns anos que Beatriz de San Domingo era prioresa do convento. Conquistara o respeito dos cidadãos de Castel Rodríguez e a admiração, senão o afecto, das suas freiras. Jamais esquecia a sua alta posição, mas também tinha sempre em mente a origem nobre de suas filhas espirituais. No refeitório sentavam-se na devida ordem de precedência, mas quando surgiam disputas a esse respeito, como sucedia algumas vezes, Dona Beatriz procedia com firmeza. Impunha uma disciplina rigorosa e, por
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mais bem nascida que fosse uma freira, não hesitava em mandá-la açoitar quando as suas ordens eram desobedecidas. O convento estava submetido à regra mitigada do Papa Eugénio IV e, contanto que as freiras desempenhassem os seus deveres religiosos, ela não via razão para destituí-las dos privilégios que lhes foram concedidos. Tinham permissão de visitar as pessoas amigas na cidade e, em havendo motivo justificado, até podiam passar longas temporadas com os parentes em outras localidades. Vinham muitas visitas ao convento, tanto leigos como clérigos; várias senhoras, como em Ávila, viviam ali por gosto; havia, desse modo, abundante e agradável intercâmbio social. O silêncio era obrigatório das completas às primas. Irmãs leigas faziam o trabalho do convento, a fim de dar mais tempo às freiras para as devoções e ocupações mais nobres. Mas, apesar de toda essa liberdade e dessas tentações mundanas, jamais um sopro de escândalo empanara o bom nome das virtuosas mulheres. Tal fama desfrutava a comunidade que a superiora não podia atender a todas as candidatas, de forma que tinha ensejo de mostrar-se muito exigente no exame destas.
Levava uma vida atarefada. Além dos seus deveres religiosos, tinha de fiscalizar a economia do convento, vigiar o comportamento das freiras e zelar pela saúde destas, tanto física como espiritual. A instituição fora ricamente dotada de terras, bem como de casas na cidade, e a prioresa tinha de tratar com os feitores que cobravam os aluguéis e com os camponeses que cultivavam as terras. Visitava-os amiúde para ver se tudo corria bem e se as plantações se achavam em bom estado. Como a regra lhe permitia ter propriedades privadas, o duque passara-lhe em vida algumas casas e um belo solar, e por morte
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dele Beatriz herdara muito mais ainda. Administrava tudo tão bem que podia todos os anos distribuir uma soma considerável em esmolas. O restante, gastava-o em aformosear a igreja, o refeitório e a sala de visitas e em construir oratórios no jardim, aos quais as freiras podiam recolher-se para se entregar às suas meditações. A igreja tinha magnífico aspecto. Os vasos sagrados eram de ouro puro e a custódia, cravejada de pedras preciosas. Os retábulos que decoravam os diversos altares tinham ricas molduras de madeira dourada e primorosamente lavrada, e as imagens do Salvador e da Virgem Santíssima vestiam grandes mantos de veludo ricamente bordados de ouro (por Maria Pérez) e as suas coroas chamejavam de pedrarias, preciosas e semipreciosas.
Para celebrar o vigésimo aniversário da sua consagração, Dona Beatriz construíra uma capela, dedicando-a a São Domingos, por quem tinha devoção especial, e ao ouvir dizer a uma das irmãs, natural de Toledo, que existia lá um pintor grego cujos quadros exaltavam extraordinariamente a devoção do fiel, escreveu a seu irmão o actual duque, encomendando um retábulo. Como era uma mulher prática, deu as dimensões exactas. Mas o irmão respondeu que el-rei encomendara a esse mesmo grego um painel de São Maurício e da Legião Tebana para a sua nova igreja do Escurial, mas ao receber a pintura ficara tão descontente com ela que não a deixara instalar. Em tais condições, o duque achava que seria indiscrição da parte dela dar trabalho a esse pintor. Mandava-lhe, por isso, de presente um quadro de Lodovico Cardacci, artista famoso na Itália, quadro que, por coincidência, tinha exactamente as dimensões pedidas.
Ao construir o convento, o falecido duque, seu pai,
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destinara para ela um apartamento que ocuparia quando fosse superiora e que não era menos elegante do que adequado ao seu cargo e posição. Havia num dos andares uma cela a que ninguém era admitido, salvo a irmã encarregada de proceder à sua limpeza e mantê-la em ordem!, e dali uma pequena escada conduzia a um oratório situado no andar de cima. Era nessa cela que ela fazia as suas devoções pessoais, atendia os assuntos do convento e recebia visitas. Era um aposento severo, mas majestoso. Acima do altarzinho diante do qual fazia as suas orações achava-se um grande crucifixo com a figura de Cristo esculpido em madeira, quase em tamanho natural e pintada com muito realismo, enquanto que a sua mesa de trabalho era encimada por um quadro de certo pintor catalão, o qual representava a Virgem cercada de glória. Nessa época, estava Dona Beatriz entre os quarenta e os cinquenta, mulher alta e magra, de olhos grandes e sombrios, quase sem rugas no rosto. A idade afinara-lhe as feições e adelgaçara-lhe os lábios, de modo que tinha a beleza calma e severa dessas esposas de cavaleiros que se vêem nos túmulos góticos. Mantinha-se sempre muito erecta. Havia no seu porte algo de imperioso que dava a entender que ela não considerava a ninguém seu superior e a muito poucos como seus iguais. Tinha uma veia de humorismo austero e mesmo sarcástico, e embora sorrisse muitas vezes, era com uma espécie de grave indulgência. Quando ria, o que era raro, dava a impressão de sofrer.
Tal era, pois, a mulher a cujos ouvidos chegou o rumor de que a Santíssima Virgem tinha aparecido a Catalina Pérez na escadaria da igreja das carmelitas.

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XI.

Dona Beatriz era não somente uma óptima organizadora, como boa cabeça para os negócios, mas também uma mulher de grande inteligência e sensatez. Sempre desfavorecera as visões, êxtases e graças especiais entre as suas freiras. Não lhes permitia dar-se a uma austeridade excessiva nem a mortificações além das prescritas pela Regra. Nada lhe passava despercebido, e quando uma delas mostrava sinais de uma religiosidade que a superiora achasse exagerada,, administrava-lhe logo um purgante, proibiam-na de jejuar e, se isso não bastasse, era mandada passar algumas semanas agradáveis em casa de amigos ou parentes. O rigor de Dona Beatriz nesse ponto tinha raiz na lembrança dos aborrecimentos e do escândalo provocados no convento de Ávila por uma freira que afirmava ter visto Jesus Cristo, a Santíssima Virgem e vários santos e ter recebido deles graças especiais. A superiora não rejeitava a possibilidade de tais ocorrências,, visto ser certo que alguns santos haviam recebido favores análogos, mas não podia crer que a freira de Ávilai, Teresa de Gepeda, com quem falara muitas vezes quando aluna do convento, fosse outra coisa senão a vítima histérica e iludida de uma desenfreada fantasia.
Era altamente improvável que houvesse qualquer coisa de verdadeiro na estranha história de Catalína. Como as freiras, porém, estivessem tão alvoroçadas com aquilo que não falavam de outra coisa, Dona Beatriz achou de bom aviso mandar chamar a jovem e ouvir o caso dos seus próprios lábios. Chamou uma das freiras e disse-lhe que fosse buscar a rapariga.
A freira voltou daí a pouco, informando-a de que Catalina estava disposta a obedecer à ordem da Reverenda Madre, mas que o seu confessor a proibira de repetir a história a quem quer que fosse. Dona Beatriz, pouco habituada a que a contrariassem, franziu o sobrolho, e quando ela o fazia todas as habitantes do convento se punham a tremer.
- A mãe da moça está aqui, Reverenda Madre - disse a freira, sustendo a respiração.
- De que me pode servir a mãe?
- Ela ouviu a história dos lábios da moça logo depois de Nossa Senhora lhe ter aparecido. O padre não pensou em proibi-la também de falar no caso.
Um sorriso austero encrespou os lábios pálidos da prioresa.
- Um homem digno, mas pouco previdente. Você fez bem, minha filha. Vou receber a mulher.
Maria Pérez foi introduzida no oratório. Tinha visto muitas vezes a superiora, mas nunca lhe falara e estava nervosa. Encontrou Dona Beatriz sentada numa cadeira de encosto alto, com assento e costas de couro, cujo topo era decorado com folhas de acanto em madeira dourada. Maria Pérez não cria que uma rainha pudesse parecer mais distante, solene e orgulhosa. Ajoelhou-se e beijou a mão branca e esguia que lhe ofereciam. Depois, como lhe ordenassem que dissesse o que tinha vindo dizer, repetiu palavra por palavra o que lhe contara Catalina. Quando ela terminou, a prioresa inclinou de leve a nobre cabeça.
- Pode ir.
Ficou algum tempo a reflectir, depois sentou-se à mesa e escreveu uma carta rogando ao Bispo de Segóvia que lhe
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fizesse a honra de vir vê-la, pois desejaria falar-lhe sobre um assunto que parecia de importância. Enviou a carta e dentro de uma hora recebeu a resposta. Em tom não menos cerimonioso, dizia o bispo que obedeceria com prazer à ordem da Reverenda Madre, visitando o convento no dia seguinte.
Houve uma comoção entre as freiras quando souberam que uma pessoa tão eminente e santa era esperada ali e imediatamente concluíram, com acerto, que a visita estava relacionada à misteriosa aparição da Virgem Santíssima nos degraus da bela igreja do convento. Veio ele à tarde, depois da sesta que as freiras costumavam fazer no Verão, acompanhado pelos dois frades seus secretários, e foi recebido pela subprioresa na sala de visitas. Com grande pesar seu,, as freiras tinham recebido ordem de permanecer nas suas celas. Tendo beijado o anel do bispo, a subprioresa disse-lhe que ia conduzi-lo à presença da senhora superiora. Os dois frades dispuseram-se a acompanhá-lo.
- A Reverenda Madre deseja falar em particular com Vossa Senhoria - disse ela humildemente.
O bispo hesitou um instante, depois inclinou ao de leve a cabeça, consentindo. Os frades voltaram aos seus lugares e o bispo seguiu a freira pelos corredores btrancos e frescos e subiu o lance de escada que levava ao oratório. Ela abriu a porta e arredou-se para deixá-lo entrar. Dona Beatriz levantou-se para vir ao encontro do bispo e, ajoelhando-se, beijou o anel episcopal. Depois indicou-lhe uma cadeira e sentou-se.
- Esperava que Vossa Senhoria se dignasse visitar o nosso convento, mas como não viesse tomei a liberdade de convidá-lo.
- Meu mestre de teologia em Salamanca aconselhava-me
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que tratasse o menos possível com mulheres, que fosse cortês com elas mas as mantivesse à distância.
Ela não deu a resposta ácida que tinha na ponta da língua,, mas ao invés disso considerou-o com atenção. Ele baixou os olhos e ficou à espera. A superiora não tinha pressa de falar. Fazia quase trinta anos que não o via e essas eram as primeiras palavras que trocavam. Ele vestia um hábito velho e remendado. Tinha a cabeça rapada à navalha, com excepção do anel de cobalto preto,, semeado de raros fios brancos, que simbolizavam a Coroa de Espinhos. As têmporas eram reentrantes, as faces cavadas; o rosto, coberto de rugas profundas, exibia sinais de sofrimento; só restavam os olhos escuros e apaixonados, em que brilhava uma luz estranha, para lembrar-lhe o jovem seminarista a quem tinha conhecido muito tempo atrás - conhecido e amado tão loucamente.
Aquilo começara como uma travessura. Beatriz tinha-o notado a primeira vez que ele servira a missa, como fazia algumas ocasiões, na igreja que ela frequentava com a sua "duena". Já então ele era magro, de cabelos negros e bastos, pois usava apenas a tonsura das ordens menores, tinha feições bem definidas e uma graça singular no porte. Parecia-se com um desses santos que recebiam a vocação em meninos,, tornando-se objectos de veneração para todos e morrendo moços e aureolados de beleza. Quando não estava servindo a missa ia ajoelhar-se na capelinha, entre as poucas pessoas que ali se encontravam àquela hora. Atento às suas devoções, nunca desviava os olhos do altar. Beatriz, naquela época, era uma jovem estouvada e folgazã. Conhecia o poder devastador dos Seus olhos maravilhosos. Pareceu-lhe que seria uma óptima brincadeira fazer com que o jovem seminarista lhe prestasse
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atenção. Fixou nele, pois, o olhar, desejando com todas as suas forças que ele olhasse para o seu lado. Continuou a fazê-lo durante vários dias, em vão, mas certa manhã teve a intuição de que ele estava perturbado. Não saberia dizer o que lhe dava essa impressão, mas tinha a certeza. Esperou, sustendo o fôlego. Ele ergueu os olhos de repente, como se ouvisse um ruído inesperado, e, encontrando o olhar dela, desviou vivamente o rosto. Desde então Beatriz absteve-se de relancear sequer os olhos para ele, mas um ou dois dias depois, embora mantivesse a cabeça baixa como se estivesse a rezar, teve consciência de que ele a fitava. Ficou perfeitamente imóvel, mas semtia-lhe o olhar perplexo, um olhar que ele nunca havia dirigido a ninguém até então. Experimentou um estremecimento de triunfo e, alçando a cabeça, encarou-o de propósito. Como da outra vez, ele desviou os olhos o mais depressa que pôde e Beatriz viu um rubor de vergonha banhar-lhe o rosto.
Por duas ou três ocasiões, ao andar na rua com a "duena", viu-o caminhar na sua direcção, e embora passasse por elas desviando o rosto, Beatriz sabia-o emocionado. Uma vez mesmo, ao avistá-las, ele tinha girado nos calcanhares e voltado pelo mesmo caminho. Beatriz desatou a rir como louca, a ponto de lhe perguntar a "duena" o que achava tão engraçado, e ela teve de dizer a primeira mentira que lhe veio à cabeça. Certa manhã, sucedeu que ambas entrassem na igreja no momento em que o seminarista mergulhava os dedos na água benta para persignar-se. Beatriz estendeu a mão para tocar-lhe nos dedos, recebendo dessa forma a água benta. Era um acto costumeiro e natural, e ele não podia recusar. Ficou muito pálido e, mais uma vez, os olhos de ambos se encontraram. Foi apenas um instante,, mas nesse instante Beatriz compreendeu
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que ele a amava com um amor humano, o amor que um rapaz apaixonado dedica a uma bela jovem, e ao mesmo tempo sentiu uma dor aguda no coração, como se uma espada o trespassasse, e compreendeu que o amava com o mesmo amor humano, o amor de uma jovem apaixonada a um amável mancebo. Foi invadida pela alegria. Jamais conhecera tamanha felicidade.
Nesse dia ele serviu a missa. Beatriz não lhe tirava os olhos de cima. O coração pulsava-lhe com uma violência quase insuportável, mas a dor, se dor havia, era maior do que qualquer prazer já sentido por ela. Já havia descoberto que o mesmo encargo ou ocupação o obrigava a passar todos os dias diante do palácio ducal a uma hora certa, e tratou de sentar-se a uma janela de onde pudesse observar a rua. Via-o aproximar-se e retardar o passo, como que mau-grado seu, ao passar, depois via-o seguir caminho apressadamente, como se fugisse à tentação. Esperava que ele levantasse o olhar, mas o rapaz nunca o fazia. Uma vez, para apoquentá-lo, deixou cair um cravo no instante em que ele se aproximava. O seminarista alçou os olhos instintivamente, mas Beatriz recuou a fim de poder vê-lo sem ser vista. Ele deteve-se e apanhou a flor. Tomou-a com ambas as mãos, como se fosse uma jóia inestimável, e por um momento contemplou-a como que em êxtase. Depois atirou-a ao chão com um gesto violento, espezinhou-a no pó e fugiu, fugiu a correr tão depressa quanto podia. Beatriz desatou a rir mas, de repente desfez-se em lágrimas.
Como o rapaz passasse vários dias sem ir à missa, ela não pôde mais suportar a sua ansiedade.
- Que aconteceu àquele seminarista que costumava servir a missa?
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- perguntou à "duena". - Não o tenho visto ultimamente.
- Como posso sabê-lo? Imagino que tenha voltado para o seminário.
Nunca mais tornou a vê-lo. Havia compreendido o drama em que terminara a farsa armada por ela e lamentou amargamente a sua tolice. Amava-o com toda a ardente paixão do seu corpo jovem. Nunca fora contrariada em coisa alguma e enraivecia ao pensar que dessa vez a sua vontade seria frustrada. O casamemto que lhe tinham arranjado era um casamento de conveniência e ela aceitara-o como consequência da sua posição. Estava disposta a dar filhos ao marido, como era seu dever, mas resolvera não lhe dar mais importância do que se fosse um lacaio. Agora, porém, a ideia de unir-se àquele anão estúpido enchia-a de asco. Sabia que o seu amor a Blasco de Valero não podia dar em nada. É verdade que, estando ele nas ordens menores, havia a possibilidade de obter a sua secularização, mas Beatriz nem sequer necessitou lembrar-se de que seu pai jamais consentiria em semelhante aliança; o seu próprio orgulho não lhe permitia dar a mão em casamento a esse "fidalgo de sarjeta". E Blasco? Estava segura de que ele a amava, mas tinha ainda maior amor a Deus. Quando ele espezinhara, raivoso, a flor que ela deixara cair aos seus pés, fora para esmagar aquela paixão indigna que o horrorizava. Beatriz tinha sonhos terríveis, apavorantes, em que jazia nos braços dele, a boca contra a sua, o peito de Blasco a comprimir o seu, e acordava cheia de vergonha, angústia e desespero. Foi então que começou a enfermar. Ninguém lhe compreendia a doença, porém ela sabia de que se tratava: estava a morrer de mágoa. Foi ao ter conhecimento de que ele entrara
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numa ordem monástica que teve aquela inspiração. Sabia, como se o próprio Blasco lhe houvesse dito, que ao renunciar ao mundo ele procurava fugir dela; e isso dava-lhe uma estranha alegria, um sentimento de força triunfante. Faria a mesma coisa: o ingresso no convento a libertaria de uma união odiosa, e talvez encontrasse paz no amor divino. Num recanto do seu espírito, sem que a própria palavra interior lhe desse forma senão muito raramente, habitava a ideia de que naquela vida, por mais separados que estivessem, cada um devotado ao serviço do Altíssimo, existia entre ambos uma espécie de união mística. Tudo isso, que levamos tanto tempo a contar, passou como um relâmpago pela mente da fria e severa prioresa. Viu a sua história como se fosse um desses vastos afrescos pintados na longa parede de um claustro, e aos quais, entretanto, podemos abranger com um só olhar. Toda aquela paixão, que na sua tola mocidade ela julgava dever durar para sempre, havia muito que morreria. O tempo, a piedosa monotonia da vida conventual, as orações e os jejuns, os múltiplos deveres da sua posição, haviam-na embotado pouco a pouco e agora não passava de uma lembrança amarga. Ao olhar para esse homem tão gasto e emaciado, com aquela expressão de sofrimento, perguntava consigo se ele se recordaria de ter amado uma vez - contra a vontade,, sim, mas de todo o coração - uma linda jovem a quem nunca falara, mas que atormentava os seus sonhos. O silêncio era pesado ao bispo, que se remexia inquieto na cadeira.
- A Reverenda Madre disse ter um assunto de importância sobre o qual desejava consultar-me - falou ele.
- Sim, mas permita primeiro que apresente as minhas
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felicitações a Vossa Excelência pela dignidade que el-rei houve por bem conferir-lhe.
- Não posso ter senão a esperança de me mostrar à altura dos deveres pertinentes a tão alto cargo.
- Quanto a isso, não pode haver dúvidas no espírito de quem conheça o zelo e a discrição de que Vossa Excelência deu provas durante os dez amos que passou em Valência. Embora vivamos numa remota cidadezinha das montanhas, conseguimos manter-nos inteirados do que se passa nesse grande mundo, e não nos passou despercebida a fama conquistada pela austeridade, pela virtude e pelo incansável labor de Vossa Excelência em prol da pureza da nossa fé.
O bispo olhou-a um instante por baixo das sobrancelhas franzidas.
- Minha senhora, fico-lhe agradecido pela sua cortesia mas devo rogar-lhe que me poupe esses cumprimentos. Nunca senti prazer em ouvir comentários a meu respeito, feitos na minha presença. Ficar-lhe-ei grato se me disser sem mais demora por que razão solicitou a minha visita.
A prioresa não se deixou abater por esta admoestação. Ainda que ele fosse bispo, não deixava de ser um "fidalgo de sarjeta", como dizia a sua velha "duena" que lá estava no seio do Senhor; enquanto ela era a filha do duque de Castel Rodríguez, grande de Espanha e Cavaleiro do Tosão de Ouro. Uma palavra sua ao irmão, confidente do favorito de Filipe III, podia relegar esse prelado para uma obscura diocese das Canárias.
- Lamento ofender a modéstia de Vossa Excelência - respondeu em tom tranquilo - , mas foi justamente a sua virtude e a sua austeridade - a sua santidade, se assim me posso
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exprimir - que constituiu a causa, imediata do meu pedido para que me fizesse a honra de visitar-me. Está informado do estranho caso que se passou com uma menina chamada Catalina Pérez?
- Estou. O confessor dela, homem digno, sem dúvida, mas de pouca instrução e inteligência, referiu-me essa história. Mandei-o calar. Proibi os frades do convento de mencionar tal coisa na minha presença ou de falar nela entre si. Essa rapariga ou é uma impostora à cata de notoriedade, ou uma simplória iludida.
- Não a conheço, senhor, mas segundo todas as informações é uma menina boa, sensata e piedosa. Pessoas de critério, que a conhecem, estão convencidas de que ela é incapaz de inventar semelhante história. Não costuma mentir e, ao que me dizem, está lomge de ser dada a fantasias.
- Se ela teve uma visão como a que descreve, só pode ter sido por ardil de Satanás. Ninguém ignora que os demónios tem o poder de assumir formas celestes para tentar os desprevenidos e arrastá-los à perdição.
- Essa menina sofre um infortúnio imerecido. Não devemos atribuir ao diabo mais habilidade do que ele possui. Como poderia ele ser estúpido ao ponto de julgar que a alma dessa criança incorre em perigo pelo facto de um santo homem lhe impor a mão em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo?
O bispo, que durante essa conversa mantivera os olhos postos no chão, ergueu-os para a superiora a estas últimas palavras, com uma expressão de angústia.
- Minha senhora, Lúcifer, o filho da manhã, caiu por causa do seu orgulho. Como é possível que pelo orgulho eu,
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um homem tão corrupto e pecador, me atreva a fazer milagres ?
- Está bem que na sua humildade se considere um homem corrupto e pecador, Excelência, mas o resto do mundo bem conhece a sua grande virtude. Ouça, senhor: essa história foi divulgada e a cidade inteira anda a falar nela. Todos estão alvoroçados e em expectativa. É preciso dar uma satisfação qualquer ao povo.
O bispo suspirou.
- Eu sei que o povo está perturbado. Grupos de pessoas conservam-se diante do convénto como se aguardassem alguma coisa, e quando saio eles ajoelham-se à minha passagem pedindo que os abençoe. É necessário fazer alguma coisa para que entrem na razão.
- Vossa Excelência permite que lhe dê um conselho? - disse a prioresa com muito respeito; mas os seus olhos tinham um brilho divertido e irónico que de certo modo ateimava aquele.
- Ficar-lhe-ia muito grato.
- Eu não falei com a rapariga porque o seu confessor lhe deu ordem de não repetir a história a ninguém, mas o senhor bispo tem o poder de revogar essa ordem. Não acha que seria conveniente vê-la? Com o seu discernimento, a sua penetração das almas e a habilidade que adquiriu no Santo Ofício com a inquirição de suspeitos, Vossa Excelência descobriria bem depressa se ela é uma impostora, se foi iludida por Satanás ou, afinal, se foi verdadeiramente a Virgem Santíssima que condescendeu em aparecer-lhe.
O bispo alçou os olhos e contemplou a imagem do Redentor pregado à Cruz, no santuário diante do qual a prioresa
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costumava rezar. O seu rosto tinha uma expressão muito triste. Estava dilacerado pela dúvida.
- É escusado lembrar-lhe, senhor, que este convento se acha sob a protecção especial de Nossa Senhora do Carmelo. Nós, pobres freiras, somos sem dúvida alguma indignas dessa honra, mas é possível que ela olhe com um favor especial esta igreja que meu pai, o duque, lhe erigiu na nossa cidade. Seria uma grande honra e uma grande glória para a nossa casa se, por intercessão de Vossa Excelência, a nossa celeste padroeira curasse essa pobre menina da sua enfermidade.
Durante largo tempo o bispo esteve absorto nos seus pensamentos. Por fim tornou a suspirar.
- Onde poderei ver essa menina?
- Haverá lugar mais próprio do que a capela dedicada ao culto da Santíssima Virgem, na nossa igreja?
- É preferível fazer depressa o que tem de ser feito. Que ela venha amanhã, minha senhora:, e estarei aqui à sua espera.
Levantou-se, e ao curvar-se para se despedir da prioresa havia nos seus lábios a sombra de um sorriso - mas tão pesaroso!...
- Uma triste noite me aguarda, Reverenda Madre. Ela ajoelhou-se mais uma vez e beijou-lhe o anel.


XII.

No dia seguinte, à hora aprazada, o bispo entrou na opulenta igreja acompanhado dos seus dois secretários. Catalina, com uma das freiras, esperava na capela da Virgem.
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Mantinha-se em pé com o auxílio da muleta;, mas quando o bispo apareceu a freira tocou-lhe no braço e Catalina fez um movimento para ajoelhar-se. Ele não a deixou.
- Pode deixar-nos - disse à freira e, quando esta saiu, dirigiu-se aos dois frades: - Podem retirar-se, mas fiquem aqui perto. Quero falar a sós com esta menina.
Eles desapareceram silenciosamente. O bispo observou-lhes a retirada. Sabianos muito curiosos e não queria ser ouvido por eles. Deitou então um longo olhar à inválida. Tinha um coração sensível e a desgraça, a miséria e a doença nunca deixavam de comovê-lo. Ela tremia um pouco e estava muito pálida.
- Não te assustes, minha filha - disse ele com suavidade. - Não tens nada a temer se dizes a verdade.
A jovem pareceu-lhe muito simples e inocente. Notou-lhe a singular beleza das feições, mas fê-lo com a mesma indiferença com que teria observado o pêlo ruão ou tordilho de um cavalo. Começou por lhe fazer perguntas sobre ela própria. Catalina respondeu a princípio com muita timidez, mas, como o bispo continuasse a instá-la com perguntas, acabou por ganhar mais confiança. Tinha uma voz suave e melodiosa e expressava-se com correcção. Contou-lhe a singela história da sua vida. Era a história de todas as moças pobres: duros trabalhos, diversões inofensivas, frequentes visitas à igreja e o seu namoro; contou-a, porém, com tal naturalidade e um ar tão ingénuo que o bispo sentiu-se tocado. Parecia-lhe inconcebível que essa rapariga tivesse inventado qualquer coisa para se fazer importante. Cada uma das suas palavras respirava modéstia e humildade. Contou-lhe então o seu acidente, como ficara com
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a perna paralítica e como Diego, o filho do alfaiate, o seu amado com quem ia casar-se, a tinha abandonado.
- Não o censuro - disse ela. - Vossa Excelência ignora talvez que a vida do pobre é dura, e um homem não deseja ter uma mulher incapaz de trabalhar para ele.
Um sorriso tão terno quanto o permitiam as feições conturbadas do bispo perpassou-lhe rapidamente na face. - Como aprendeste a falar tão bem e com tanto critério, minha filha? - perguntou ele.
- Meu tio Domingo Pérez ensinou-me a ler e a escrever. Deu-se a muito trabalho comigo. Tem sido como um pai para mim.
- Eu conheci-o outrora.
Catalina bem conhecia a má reputação do tio e receou que a sua referência a este a prejudicasse no conceito do santo homem. Houve um silêncio e, por um momento, ela julgou que ele fosse pôr fim à entrevista.
- Conte-me agora, nas suas próprias palavras, a história que referiu a sua mãe - disse ele, fitando-lhe um olhar perscrutador.
Catalina hesitou e o bispo lembrou-se de que o seu confessor lhe dera ordem de não falar naquilo. Informou-a gravemente de que tinha autoridade para tornar sem efeito a proibição do confessor.
Ela repetiu então a história, tal qual a havia contado à mãe. Disse que estava sentada nos degraus da igreja a chorar porque toda a cidade estava em festa e só ela era desgraçada, que uma senhora tinha saído da igreja e lhe falara, que ela lhe tinha dito que Sua Excelência o Bispo tinha o poder de curá-la do seu mal, depois desaparecera diante dos seus próprios olhos,
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e que ela compreendera então que essa senhora era a Virgem Santíssima em pessoa.
Quando terminou de falar, fez-se um longo silêncio. O bispo ficara abalado, mas ao mesmo tempo atormentava-o a decisão. A jovem não era uma impostora - disso estava convencido, pois a sua inocência, a sua sinceridade eram inconfundíveis. Não podia ter sido um sonho, porque ela ouvira bater os sinos, rufar os tambores e soar as trombetas quando ele e seu irmão tinham entrado na cidade, e nesse momento Catalina conversava com a dama, a qual ela não tinha razão para supor fosse coisa diversa do que parecia. Como teria Satanás o poder de assumir uma falsa aparência quando a menina estivera a abrir o seu pobre coraçãozinho diante da Mãe de Deus e a suplicar-lhe que a socorresse na sua aflição? Era uma criatura piedosa e não havia nela a menor presunção. Outros tinham visto as suas orações atendidas, outros tinham recebido a graça espiritual, outros tinham sido curados dos seus males. Se ele recusasse, por medo, fazer aquilo que parecia ser-lhe ordenado, porventura não inconreria em grave pecado de omissão?
"Um sinal!" murmurou de si para si. "Um sinal!" Avançou um ou dois passos e chegou ao pé do altar sobre o qual, envolta num grande manto de veludo azul todo pontoado de ouro, com uma coroa de ouro na cabeça, estava a imagem da Mãe de Deus. Ajoelhou-se e orou, pedindo-lhe que o guiasse. Orou apaixonadamente, mas tinha o coração seco e sentia as trevas da noite envolver-lhe a alma.. Por fim, com um triste Suspiro, ergueu-se e ficou com os braços estendidos numa súplica, fitando o olhar desesperado nos olhos meigos da Santíssima Virgem. De repente Catalina lançou um
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grande grito de espanto. Os dois frades haviam desaparecido, mas embora não pudessem ouvir o que ambos diziam, não estavam fora do alcance da voz, e ao sentir esse grito correram tão depressa como coelhos que ganham a toca. Mas o que viram pareceu chumbá-los ao chão. Ficaram mudos, boquiabertos, como se, a exemplo da mulher de Lot, se houvessem convertido em estátuas de sal. Don Blasco de Valero, Bispo de Segóvia, alçava-se lentamente no ar, tão lentamente como o azeite que escorrega por uma superfície inclinada muito de leve; elevava-se com um movimento regular, quase imperceptível, como as aguas de um rio em enchente. O bispo subiu até colocar-se rosto a rosto com a imagem que encimava o altar, e por um momento ficou suspenso no ar, qual um falcão que se imobiliza sobre as asas estendidas. Temendo que ele caísse, um dos frades fez menção de avançar, mas o outro - o padre António - reteve-o; e o bispo, muito devagar, tão devagar que mal se percebia o movimento, desceu até os seus pés tornarem a tocar o chão de mármore defronte do altar. Penderam-lhe os braços e ele voltou-se. Os dois frades aproximaram-se a correr e, caindo de joelhos, beijaram-lhe a ourela do hábito. Ele não parecia dar-se conta da presença de ambos. Desceu os três degraus do altar e, como ofuscado, saiu da capela aos tacteios. Os dois frades seguiam-no de muito perto, para acudir-lhe no caso de tropeçar. Catalina ficou esquecida. Saíram da igreja. O bispo deteve-se no alto dos degraus, onde a jovem estivera sentada quando Nossa Senhora lhe apareceu, e olhou para a pracinha que resplandecia ao sol de Agosto. O céu sem nuvens estava tão azul e tão claro, em contraste com a penumbra da igreja, carregada de fumos de incenso, que olhar para ele cegava a vista. As casas brancas, cujos postigos estavam fechados por causa do calor, pareciam cintilar com um brilho próprio, como pedras preciosas. O bispo teve um arrepio, embora o dia estivesse quente como uma fornalha, e tornou a si.
- Façam saber à menina que eu a mandarei chamar. Desceu os degraus, seguido pelos frades a uma distância
respeitável. Atravessou a praça de cabeça baixa. Os dois não ousavam falar-lhe. Quando alcançaram o convento dominicano o bispo parou e votou-se para eles.
- Sob pena de excomunhão, não digam uma só palavra sobre o que viram hoje.
- Foi um milagre, senhor - volveu o padre António. - Acaso é justo que tão conspícuo sinal do favor divino seja ocultado aos nossos irmãos?
- Ao fazer a sua profissão, meu filho, você prestou voto de obediência.
Padre António fora aluno do bispo quando este ensinava teologia em Alcalá, e foi por influência de frei Blasco que ele entrou na Ordem Dominicana. Era vivo e inteligente, e ao ser nomeado inquisidor em Valência, o mestre levou-o consigo na qualidade de secretário. Sentia-se reconhecido ao jovem monge pela sua dedicação e, embora tentasse muitas vezes moderar a excessiva admiração que António tinha por ele, os seus argumentos não faziam senão intensificá-la ainda mais. Padre António, embora fosse tão devoto e zeloso na observância dos seus deveres religiosos quanto podia desejá-lo o Bispo, embora tivesse uma vida impoluta e se mostrasse diligentíssimo no serviço da Igreja, sofria dessa doença que Juvenal chamou "cacoethes soribendi": não se contentando em tomar a vasta correspondência do inquisidor e em redigir
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os inúmeros relatórios, documentos, decisões, etc, necessários à direcção dos negócios do Santo Ofício, passava todos os seus momentos de folga a escrevinhar; e o inquisidor descobriu - como descobria tudo que se relacionava com a sua pessoa ou o seu cargo - que padre António estava mantendo uma crónica minuciosa dos seus actos, de cada palavra que ele pronunciava e dos vários sucessos da sua carreira. Percebia, cheio de humildade, que o secretário lhe dedicava uma estima exagerada, e nos seus exames de consciência perguntava a si mesmo se não lhe incumbiria o dever de pôr termo àquele trabalho, pois muito bem sabia com que fim o frade escrevia. Metera-se naquela cabeça ilustrada, mais tonta, que ele, Frei Blasco de Valero, tinha a fibra de que se fazem os santos e que um documento como o que estava preparando seria valioso para a Cúria quando, após a sua morte, se instaurasse o processo de beatificação. Ainda que perfeitamente cônscio da sua indignidade, o inquisidor não deixava de ser humano e vibrava de piedosa exultação ao considerar a possibilidade, embora remota, de que algum dia viesse a ser contado entre os santos da Igreja. Açoitava-se até fazer correr sangue para punir-se da sua presunção, mas não podia decidir-se a privar aquela boa e piedosa Griatura de uma ocupação evidentemente inofensiva. E quem sabe? Era possível que a simples piedade religiosa do autor lhe permitisse compor uma obra que, apesar da insignificância do assunto, fosse edificante para os fiéis. Nesse instante, lendo no coração do frade, o bispo teve a certeza de que, conquanto os lábios deste não deixassem escapar nem uma palavra sequer do que sucedera na igreja das carmelitas, uma exposição pormenorizada do facto seria incluída no livro. O portentoso fenómeno que hoje conhecemos
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como levitação, e de que ele fora instrumento, tornara-se-lhe familiar através da leitura das vidas de vários santos, e toda a Espanha sabia que em tempos recentes esse sinal de favor divino fora conferido a Pedro de Alcântara, à Madre Teresa de Jesus e a mais de uma freira da ordem das carmelitas descalças. O bispo não podia esperar que padre António omitisse tal ocorrência no seu livro e, mesmo, ignorava se tinha o direito de ordenar-lhe tal coisa. Assim, entrou no convento sem dizer mais uma palavra e dirigiu-se para a sua cela.


XIII.

Não se lembrara, porém, de impor segredo a Catalina, e nem bem os três religiosos tinham deixado a igreja quando ela correu para casa tão depressa quanto lho permitia o seu estado de invalidez. Domingo fora a uma das povoações circunvizinhas a chamado de alguém e só Maria estava em casa. Catalina contou-lhe, em tom aterrado, o portento de que fora testemunha, e depois de terminar contou tudo de novo.
Maria Pérez tinha um pouco do senso dramático que parecia ter sido negado a seu irmão, o dramaturgo. Reprimindo com esforço a sua impaciência, aguardou a hora do recreio no convento, quando todas as freiras estariam reunidas, em palestra com as damas pensionistas e pessoas da cidade; poderia, assim, relatar a assombrosa ocorrência obtendo dela o maior efeito possível. Tinha um público numeroso quando contou a história, e deu-lhe grande satisfação o espanto com
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que a ouviram. Tal foi a impressão causada na subprioresa que esta achou necessário repetir o caso a Dona Beatriz sem perda de um só instante. Daí a pouco Maria Pérez foi chamada à presença da superiora e tornou a desfiar a mesma narrativa; A superiora escutou-a com uma satisfação que não se deu ao trabalho de ocultar.
- Diante disso não é possível hesitar mais - disse ela. - Será uma grande glória não só para este convento, mas para a Ordem de Nossa Senhora do Carmelo.
Despediu as duas mulheres e, apanhando a pena de pato, escreveu ao bispo uma carta em que dizia ter sido informada da graça que lhe fora concedida aquela manhã. Não se faziam mister maiores provas da verdade do que afirmara a jovem Catalina Pérez e de que tal ocorrência não era atribuível a uma maquinação do Inimigo e sim à compaixão de Nossa Senhora. Conjurava-o a pôr de parte as suas dúvidas e incertezas, pois com toda a evidência o seu dever cristão lhe ordenava aceitar a missão que lhe fora imposta. Era uma carta perfeita, sucinta mas bem argumentada, respeitosa mas firme, e a superiora terminava rogando-lhe, com grande humildade, que se dignasse realizar o milagre na mesmo igreja em que lhe fora conferido esse favor divino e à qual era evidente ter a Santíssima Virgem concebido uma afeição especial. Enviou a carta por um mensageiro.
Dois dos cavalheiros que se encontravam na sala de visitas do convento quando Maria Pérez contou a história ficaram tão impressionados que foram acto contínuo ao convento dos dominicanos indagar da sua veracidade. Os frades, naturalmente, nada sabiam, mas não se surpreenderam em absoluto quando o caso lhes foi repetido. Conheciam perfeitamente
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a gramde santidade do bispo e nada era mais natural do que conferir-lhe o Senhor a assinalada honra da levitação. Nesse meio tempo, uma das pensionistas das carmelitas foi visitar pessoas amigas na cidade e relatou-lhes o milagroso acontecimento. Dentro de uma ou duas horas toda a cidade tinha conhecimento do oconrido. Outros cavalheiros dirigiram-se para o convento dos dominicanos, a fim de colher informações de primeira mão. Os frades vibravam de entusiasmo religioso. Finalmente, Padre António viu-se na obrigação de ir dizer ao bispo que, embora nem ele nem o seu companheiro houvessem falado, o facto se tornara conhecido de todos. A carta da prioresa estava aberta em cima da mesa.
- Essas miseráveis mulheres são incapazes de refrear a língua - disse Don Blasco, apontando para ela. - É uma grande humilhação para mim que essa história tenha transpirado.
- Os nossos irmãos deste convento esperam que Vossa Excelência consinta agora em curar a infeliz jovem da sua enfermidade.
Bateram à porta. Padre António foi abri-la. Era um frade com um recado do prior perguntando se podia falar ao bispo.
- Que venha.
Padre António esteve presente à entrevista e escreveu uma relação da mesma, com toda a minúcia. Ao cabo, o bispo deixou-se convencer de que a vontade do Senhor era que ele obedecesse à solicitação da Santíssima Virgem. Formulou, todavia, condições que o prior, muito a contragosto, foi obrigado a aceitar. Queria o prior uma cerimónia com todos os monges reunidos, em presença das notabilidades locais, tanto leigas como eclesiásticas. Mas a isto o Bispo se opôs asperamente.
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Insistiu em que se guardasse sigilo. Estava disposto a ir à igreja das carmelitas e dizer a sua missa ali na manhã seguinte. Deviam fechar-se as portas para que ninguém fosse admitido. Ele próprio só iria acompanhado pelos seus dois secretários. Bastante enraivecido pelo que lhe parecia uma desconsideração à sua dignidade, o prior retirou-se. O bispo mandou então o padre António informar Dona Beatriz da sua decisão. Dava-lhe licença de trazer as suas freiras, mas proibia as damas pensionistas de comparecer. Recomendava-lhe que fizesse Catalina preparar-se para tomar a Santa Comunhão depois da missa e pedia-lhe, a ela e às suas freiras, que orassem por ele aquela noite.
Dentro de uma hora, uma freira toda emocionada veio à casa de Maria Pérez e pediu para ver Catalina, pois tinha algo muito importante para lhe dizer em particular. Depois de chamarem Catalina a freira levou o dedo aos lábios, recomendando discrição.
- É um grande segredo - disse ela. - Não deves contar a ninguém. O senhor bispo vai curar-te e amanhã estarás correndo e pulando sobre os dois pés, como qualquer outro cristão.
Catalina susteve o fôlego e o seu coração pôs-se a bater como doido.
- Amanhã?
- Terás de tomar a Sagrada Comunhão, de modo que não deves comer nada depois da meia-noite.
- Sim, eu sei. Mas de qualquer jeito nunca como nada depois da meia-noite.
- Além disso, deves pôr-te em estado de graça. Depois de comungares ele te deixará tão sã como Nosso Senhor deixou o leproso.
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- A mamã e o tio Domingo podem ir?
- Não me disseram nada a esse respeito. Está claro que podem. Talvez isso também cure o teu pobre tio dos seus maus costumes.
Domingo não voltou do campo senão tarde naquela noite, mas assim que ele entrou em casa Catalina contou-lhe, toda agitada, a emocionante nova. Ele fitou-a cheio de consternação.
- Não ficais contente, tio? - exclamou ela.
Em lugar de responder ele pôs-se a caminhar de um lado para outro. Catalina não podia compreender essa estranha atitude.
- Mas que (tens, tio? Isso não te agrada? Eu pensava que ficarias tão contente como eu. Não queres que eu me cure?
Ele sacudiu os ombros com irritação e continuou a percorrer o quarto de um lado para outro. Ainda não estava plenamente convencido de que a aparição não fora um produto da mente perturbada da sobrinha e temia as consequências para ela se a intervenção do bispo fosse inútil. Em tal caso, o Santo Ofício bem podia achar que o assunto exigia inquérito.
Seria um desastre. Parou de repente e virou-se para Catalina.
Olhou-a com uma expressão severa que a jovem nunca lhe
tinha visto até então.
- Conta-me exactamente o que te disse a Virgem Santíssima.
Ela repetiu a história.
- E então a Virgem disse: "O filho de Juan de Valero que melhor tem servido a Deus possui o poder de curar-te."
Domingo interrompeu-a asperamente.
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- Mas não foi isso que disseste a tua mãe! Disseste-lhe que Blasco de Valero tinha o poder de curar-te.
- Dá no mesmo. O bispo é um santo, todo o mundo sabe disso. Qual dos filhos de Dom Juan tem servido a Deus tão bem como ele?
- Ó tola! - exclamou Domingo. - Ó grande tolinha!
- Tu é que és tolo! - retrucou ela, acalorada.
Não acreditaste que a Santíssima Virgem me tinha aparecido, falado comigo e desaparecido diante dos meus olhos. Pensavas que fosse um sonho. Pois bem, ouve isto.
E contou-lhe como vira o bispo elevar-se do chão, ficar suspenso no ar e descer novamente até ao chão.
- Isso não foi sonho. Os dois frades que lá estavam viram-no com os seus próprios olhos.
- Coisas ainda mais extraordinárias têm acontecido - resmungou ele.
- E contudo não queres acreditar que Nossa Senhora me apareceu.
Ele deitou-lhe um olhar cintilante.
- Não é verdade. Antes não acreditava, mas agora acredito, não por causa do que viste essa manhã mas pelas palavras que te dirigiu a Santíssima Virgem. Há nelas um sentido oculto que me convence.
Catalina ficou perplexa. Não compreendia como a insignificante disparidade entre as duas versões pudesse fazer alguma diferença. Ele afagou-lhe a face com brandura.
- Sou um grande pecador, minha pobre criança, e o que torna desesperada a minha situação é que nunca pude arrepender-me dos meus pecados. Tenho tido uma existência aventurosa e frívola, mas li muitos livros, antigos e modernos,
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e aprendi muita coisa que talvez fosse melhor para a minha alma não conhecer. Mas coragem, minha querida, talvez tudo ainda venha a terminar bem. Apanhou o chapéu.
- Aonde vais, tio?
- Passei um dia muito atarefado e preciso distrair-me. Vou à taberna.
Nisto, porém, Domingo faltava com a verdade, pois em lugar de ir à taberna dirigiu-se para o convento dos dominicanos. Embora ainda estivesse claro, a hora era avançada e o porteiro não o deixou entrar. Domingo insistiu que precisava falar com o bispo sobre um assunto de grande importância, mas o porteiro, falando pelo postigo, negou-se a abrir a porta. Domingo disse-lhe que era o tio de Catallina Pérez e rogou-lhe que chamasse pelo menos um dos secretários de Sua Excelência. O porteiro mostrou-se pouco disposto a atender mesmo a esse pedido, mas tanto insistiu Domingo que ele consentiu afinal. Volvidos alguns minutos, padre António aproximou-se do postigo. Domingo implorou-lhe que o deixasse falar ao bispo, pois tinha uma comunicação da maior importância para este. O frade, evidentemente, estava informado a respeito da sua pessoa e conhecia-lhe a má reputação, pois respondeu com frieza. Disse que era impossível incomodar Sua Excelência, que estava a passar a noite em orações e dera ordens para que não o interrompessem sob pretexto algum.
- Se não me deixar vê-lo será responsável por um terrível infortúnio.
- Bêbedo! - disse padre António desdenhosamente.
- Sou um bêbedo, é verdade, mas não estou embriagado
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agora. Vai lamentar amargamente o facto de não me ter deixado entrar.
- Que mensagem é essa que me pede para transmitir? Domingo hesitou. Não sabia o que dizer.
- Diga-lhe que, pelo amor que lhe tem, Domingo Pérez lhe manda esta mensagem: "A pedra que os construtores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo."
- "Hijo de puta!" - gritou padre António, enraivecido por ouvir esse valdevinos, esse dissoluto citar a Santa Escritura.
Bateu-lhe com o postigo na cara. Domingo afastou-se, cheio de melancolia. O hábito orientou-lhe os passos para a taberna. e ele entrou. Era uma criatura sociável e, se não tinha muitos amigos, tinha pelo menos bom número de companheiros de libação. Embebedou-se e, uma vez bêbedo, soltou-se-lhe a língua. Gostava de se ouvir falar e, nessa ocasião como em muitas outras, foi-lhe fácil encontrar ouvintes.


XIV.

Na manhã seguinte, quando, como teria dito Domingo num dos seus poemas, Aurora esfregou os olhos com os dedos rosados e Febo atrelou ao seu carro de ouro os velozes corcéis do sol - ou seja, em prosa, ao romper do dia, três monges dominicanos com os capuzes baixados sobre as cabeças rapadas à navalha, em parte para ocultar-se e em parte para se protegerem dos nocivos vapores da noite que ainda não se acabara de todo, saíram atenciosamente do convento. Mas, embora
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fosse tão cedo, os habitantes da cidade tinham sentido qualquer coisa no ar e já havia um grupo reunido diante do portão do convento. Na alta figura encapuzada que caminhava entre as duas outras, reconheceram de imediato a santa pessoa do bispo. Seguidos a respeitosa distância pelos curiosos, os três frades dirigiram-se rapidamente para a igreja das carmelitas. Outras pessoas esperavam ali. Um dos frades bateu à porta. Esta abriu-se o suficiente para deixá-los passar um após outro e cerrou-se atrás deles. Quando os espectadores tentaram entrar, encontraram-na fechada à chave e, embora batessem, fizeram-no em vão.
Catalina esperava na capela da Virgem. Maria Pérez e Domingo tinham-na acompanhado, mas não os deixaram entrar. Dona Beatriz recebeu o bispo à porta da igreja com as suas freiras, vinte ao todo, pois tal era o limite fixado pelo duque de Castel Rodríguez ao fundar a instituição. O bispo entrou na sacristia com os seus dois auxiliares e envergou as sacras vestimentas. Dirigiu-se devagar para a capela da Virgem. As freiras estavam de joelhos. Apoiando-se na muleta, Catalina ajoelhou-se ao pé dos degraus do altar. O bispo celebrou a missa. As freiras entoaram os responsos em voz baixa e reverente. Ele administrou a Santa Comunhão a Catalina. Após a bênção e a leitura do último Evangelho, ajoelhou-se diante do altar e orou em silêncio. Depois ergueu-se, fitando em Catalina os grandes olhos trágicos, desceu os degraus. Pousou-lhe na cabeça a mão fina e morena.
- Eu, instrumento indigno do Altíssimo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, ordeno-te que lances fora essa muleta e caminhes.
Começara em voz trémula e tão sumida que as freiras mal
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podiam ouvi-lo, mas pronunciou as últimas palavras sonoramente, num tom claro de comando. Catalina, com o rosto pálido de emoção, os olhos cintilantes, ergueu-se em pé, largou a muleta!, deu um passo à frente e, com um grito de angústia, caiu redondamente no chão. O milagre havia falhado.
Imediatamente se formou uma balbúrdia entre as freiras. Algumas puseram-se a gritar e duas delas desmaiaram. A prioresa adiantou-se. Relanceou os olhos para Catalina e depois o seu olhar encontrou o do bispo. Por um instante encararam-se fixamente. À retaguarda as freiras soluçavam. Então o bispo saiu da capela, com os dois frades atrás de si, e entrou na sacristia. Não disse uma só palavra. Após tirarem as vestimentas da missa e tornarem a pôr os seus hábitos monásticos, entraram de novo na igreja. A porteira estava à espera para abrir a porta. Com a cabeça novamente coberta pelo capuz, o bispo tornou a sair para o sol claro da manhã de Verão.
Tinha-se espalhado a notícia de que ele estava realizando um milagre naquele momento e as janelas da praça estavam apinhadas de espectadores. Formavam uma multidão compacta nos degraus da igreja e o logradouro estava cheio deles. Durante um instante o bispo ficou aterrado por ver aquele grande concurso de povo - mas só durante um instante. Compôs o hábito e aprumou-se. Assim que ele aparecera, um estremecimento de consternação percorreu o povo, pois de um modo misterioso este compreendeu de imediato, embora não soubesse dizer como, que o milagre falhara. Abriram caminho e o bispo, seguido pelos dois frades, desceu a escadaria da igreja. Aqueles que se encontravam na praça recuavam, comprimindo-se uns aos outros, e ao passar o bispo pela espécie
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de corredor assim formado, com o rosto oculto, a alta figura encolhida no hábito branco e preto da ordem, fazia-se na multidão um temível silêncio. Dir-se-ia que estivessem apavorados ante a iminência de alguma catástrofe inevitável.


XV.

Os monges do convento dominicano tinham-se indignado quando o bispo lhes negou permissão de assistir à cerimónia. Ao regressar com os seus dois secretários, encontrou-os vadiando, à espera para olhá-lo. A notícia já havia alcançado o convento. Passou por eles como se não os visse.
Ao saber que teriam no seu meio um hóspede tão ilustre, haviam provido a sua cela do luxo que lhes parecia condizente com a sua grandeza. Mas ele mandara logo retirar tudo quanto ofendia a sua austeridade. Obrigou-os a trocar o colchão macio da cama por outro de palha, tão fino quanto um cobertor, e pediu que as duas poltronas colocadas no oratório fossem substituídas por mochos de três pés. Tinham-lhe dado uma bela mesa de teca para escrever, mas ele reclamou, em lugar dela, uma mesa de pinho sem pintura. Não aceitava nada que desse prazer aos sentidos. Rejeitou os quadros que hiaviam pendurado nas paredes. Estas ficaram nuas, com excepção de uma simples cruz negra, sem a figura de Nosso Senhor, quer esculpida, quer pintada, e isso a fim de que ele pudesse imaginar-se mais vivamente pregado a ela, sentindo assim no seu corpo o suplício que havia experimentado o Redentor por amor à humanidade.
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Ao entrar na sua cela, o bispo deixou-se cair no duro mocho de madeira e fitou os olhos no pavimento de pedra. Lágrimas lentas e dolorosas escorreram-lhe pelas faces cavadas. Padre António encheu-se de compaixão ao ver o seu mestre mergulhado num sentimento que muito se parecia com o desespero. Cochichou qualquer coisa ao seu companheiro, que no mesmo instante saiu, voltando ao cabo de poucos minutos com uma tigela de sopa. Padre António ofereceu-a ao bispo.
- Coma, senhor.
O bispo desviou o rosto.
- Não poderia engolir nada.
- Mas, Excelência, não tem posto nada na boca desde ontem de manhã! Rogo-lhe que tome pelo menos algumas colheradas.
Ajoelhou-se, encheu uma colher com a sopa fumegante e levou-a aos lábios do bispo.
- Você é muito bom para mim, meu filho - disse este. - Não mereço as atenções que me dedica.
Para não ser grosseiro, engoliu o conteúdo da colher e o monge deu de comer ao humilhado homem como se este fosse uma criança enferma. O bispo não desconhecia o profundo apego que lhe tinha o seu fiel auxiliar e mais de uma vez o advertira do perigo de tal coisa, pois um religioso deve estar sempre em guarda para não tomar afeição a indivíduos particulares, o que não faz senão criar obstáculos à integral devoção para com o Senhor, que é o único objecto verdadeiro de amor. Quanto aos seres humanos, quer clérigos quer leigos, deve tratá-los com boa vontade, pois são criaturas de Deus, mas ao mesmo tempo - visto que são perecíveis - com uma indiferença para a qual tanto faz estarem presentes como
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ausentes. Mas é difícil governar os afectos e, por mais que o tentasse, padre António não conseguia eliminar o amor, a devoção extática de que estava repleto o seu pobre coração. Depois que o bispo comeu, padre António pôs de lado a tigela e, sempre de joelhos, atreveu-se a tomar-lhe a mão.
- Não se amargure tanto, senhor. A menina foi enganada pelo demónio.
- Não, a culpa foi minha. Solicitei um sinal e ele foi-me dado. Na minha vanglória, não me julguei indigno de realizar aquilo que só é concedido aos santos eleitos pelo Senhor. Sou um pecador e fui justamente punido pela minha presunção.
Tão acabrunhado estava o bispo que o frade ousou falar-lhe num tom que jamais teria empregado em outras circunstâncias.
- Todos nós somos pecadores, meu senhor, mas eu tive o privilégio de conviver consigo durante muitos anos e ninguém melhor do que eu conhece a sua constante bondade para com todos os homens, a sua inesgotável caridade e compaixão.
- Quem fala agora, é a sua bondade, meu filho. É a afeição que me tem, contra a qual o tenho advertido tantas vezes e que eu tão pouco mereço.
Padre António considerou com piedade o nosto agoniado do bispo. Continuava a segurar-lhe a mão fria e emaiciada.
- Permite que eu lhe leia um pouco para distraí-lo, meu senhor? - disse ele depois de uma pausa. - Escrevi ultimamente alguma coisa sobre a qual desejaria a sua opinião.
O bispo sabia quão amargurado estava o pobre frade pelo facto de não se haver realizado o milagre que ele aguardara com tão absoluta confiança, e sentiu-se tocado ao ver esse homem simples e estimável vencer a sua própria decepção para
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o atender e consolar. Até então, jamais havia consentido em escutar uma palavra sequer do livro que o seu secretário escrevia com tanta diligência, mas dessa vez não teve coragem de recusar-lhe um prazer que ele tão ardentemente desejava.
- Leia, meu filho. Terei muito gosto em ouvir.
Com as faces rubras de prazer, o padre pôs-se atabalhoadamente em pé e tirou, de entre os numerosos papéis com que o seu cargo o obrigara a lidar, várias folhas manuscritas. Sentou-se num dos mochos. O outro frade sentou-se no chão, pois não havia outro lugar onde sentar-se. Padre António começou a ler.
Escritor erudito e elegante, nenhum artifício de retórica lhe era desconhecido. Tinha um estilo rico em símiles e metáforas, metonímias, sinédoques e catacreses. Nunca soltava um substantivo sem o escoltar com dois robustos adjectivos. As imagens brotavam-lhe na mente tão pingues e profusas como cogumelos após a chuva. Versado como era nas Escrituras, nas obras dos Padres da Igreja e dos moralistas latinos, nunca tinha dificuldade em encaixar uma alusão oculta. Conhecia a fundo a estrutura dos períodos, simples, complexos, compostos e compostos-complexos, e não só sabia compô-los de maneira perfeita, com cláusulas e subcláusulas, mas também dar-lhe um fecho sonoro e triunfante que fazia o efeito de uma porta batida na cara do leitor. Esse estilo literário, a que um crítico engenhoso deu o nome de "Mandarim", é muito estimado pelos que o adoptam, mas tem a pequena desvantagem de tomar muito tempo para exprimir aquilo que se pode dizer em poucas palavras. Em todo o caso, ele destoaria da linguagem simples e tosca em que é vasada esta narrativa; de modo que, ao invés de fazer uma inútil tentativa de reproduzir
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a grandiloquência do bom frade, o autor destas páginas achou de bom aviso dar uma súmula do assunto à sua moda singela.
Não sem bastante tacto, padre António escolheu para ler o relato do grande auto-de-fé que havia coroado a carreira de Frei Blasco no Santo Ofício e que, conforme mencionamos anteriormente, causara tanto prazer ao príncipe, agora Filipe III, e a seu tempo ocasionara a elevação do piedoso inquisidor à importante diocese de Segóvia.
A impressionante cerimónia, feita para inspirar respeito à autoridade da Inquisição e edificar o povo, realizou-se num domingo, a fim de que ninguém pudesse pretextar suas ocupações para deixar de comparecer, visto que isso era um dever religioso; e, para conseguir-se um público tão numeroso quanto possível, concederam-se quarenta dias de indulgência a todos quantos assistissem. Três palanques tinham sido erigidos na grande praça da cidade, uma para os penitentes com os seus assistentes espirituais, outro para os inquisidores, autoridades do Santo Ofício e o clero em geral, e um terceiro para as autoridades civis e dignitários locais. As solenidades, no entanto, tiveram início na noite anterior com a procissão da Cruz Verde. Em primeiro lugar, com um estandarte de damasco carmesim em que fora bordado o escudo real, ia uma multidão de familiares e de cavalheiros; depois as ordens religiosas, com a Cruz Branca; a Cruz da igreja da paróquia, carregada pelo clero secular; e finalmente a Cruz Verde, carregada pelo prior dos dominicanos, acompanhado pelos seus frades com tochas. Enquanto caminhavam, cantavam o "Miserere". A Cruz Verde foi plantada acima do altar, no palanque reservado aos inquisidores, e guardada durante a noite pelos dominicanos. A Cruz Branca
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foi conduzida ao local da execução, onde lhe montaram guarda soldados da "Zarza", milícia encarregada de vigiar o "quemadero" ou lugar onde se armavam as fogueiras, e de fornecer lenha para estas.
Um dos deveres dos inquisidores era visitar durante a noite os condenados à morte, informá-los da sentença e designar dois monges que deviam preparar cada um deles para enfrentar o Senhor. Nessa, ocasião, porém, padre Baltasar, o mais moço dos inquisidores, estava acamado com uma cólica e desejando refazer-se o suficiente para tomar parte nas cerimónias do dia seguinte, rogou a Frei Blasco que o escusasse de acompanhá-lo nessa triste missão.
Ao nascer do dia celebrou-se a missa na câmara de audiências do Santo Ofício e diante do altar da Cruz Verde. Serviu-se uma refeição aos prisioneiros e aos frades que tinham feito companhia aos condenados e que, sem dúvida, a acolheram com alegria. Os penitentes foram então dispostos em fileiras, de acordo com a gravidade do seu delito contra a fé, e vestiram-nos com sambenitos. O sambenito era uma túnica amarela num de cujos lados tinham pintado chamas para os condenados à fogueira, e no outro lado estava inscrito o nome, residência e crimes cometidos por cada um. Davam-lhe cruzes verdes para carregar e punham-lhe círios amarelos na mão.
Formou-se outra procissão. Os soldados da "Zarza", que a conduziam eram seguidos de um religioso com uma cruz envolta numa mortalha negra e de um acólito que de tempos a tempos dobrava uma sineta. Vinham então os penitentes, um a um, com um familiar de cada lado; depois, as efígies ou as ossadas daqueles que, pela fuga ou pela morte, tinham esbulhado o Santo Ofício da sua justa presa; em seguida,
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os condenados à morte, acompanhados pelos frades que lhes tinham prestado assistência espiritual durante a noite. Seguiam-se autoridades a cavalo, familiares a avançar dois a dois, os magistrados e os dignitários eclesiásticos, de acordo com a ordem oficial de precedência. Um nobre de alta categoria carregava um estojo de veludo vermelho, franjado de ouro, que continha as sentenças dos condenados. Vinha então o estandarte do Santo Ofício, conduzido pelo prior dos dominicanos, seguido dos seus monges; e, por último, os inquisidores.
Era um belo dia de sol, um desses dias que estimulam o espírito de moços e velhos, fazendo-lhes sentir que a vida é boa.
A procissão avançou lentamente pelas ruas tortuosas até chegar à praça. Havia grande afluência de povo. Muita gente acorrera das férteis fazendas que cercavam a cidade dos arrozais e dos olivais; outros, ainda vinham de Alicante, a terra dos parreirais, e de Elche, a região das tamareiras. As janelas das casas circundantes estavam cheias de pessoas nobres e gradas. O príncipe esperava com a sua comitiva num balcão da municipalidade.
Fizeram os réus sentar-se no palanque erigido para eles, na ordem em que tinham marchado, os menos culpados nos bancos inferiores e os mais criminosos nos superiores. Havia no palanque dois púlpitos em que se acomodou o tribunal, e de um desses púlpitos fez-se uma prédica. Então, numa voz tão alta que todos podiam ouvi-lo, um secretário leu o juramento pelo qual as autoridades e todos os presentes se comprometiam a obedecer ao Santo Ofício e a perseguir os hereges e a heresia. Todos disseram ámen, Em seguida, os dois inquisidores dirigiram-se para a sacada em que se achava o príncipe e, sobre a Cruz
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e os Evangelhos, exigiram-lhe um juramento pelo qual se obrigava a obedecer à fé católica e ao Santo Ofício, a perseguir os hereges e apóstatas e ajudar a Inquisição a capturar e punir, quaisquer que fossem a sua posição e categoria-, os infiéis que rejeitavam a verdadeira religião.
- Eu o juro e prometo pela minha fé e sob a minha palavra real - respondeu solenemente o príncipe.
Havia um banco entre os dois púlpitos, e para ali os penitentes foram conduzidos um a um. Leram-lhes as sentenças, alternativamente, de um e de outro púlpito. Com excepção dos condenados às chamas, era a primeira vez que lhes anunciavam o seu destino, e como alguns perdiam os sentidos ao ouvi-lo o Santo Ofício, na sua misericórdia, havia munido o banco de um gradil para que não se magoassem ao cair. Nessa ocasião um homem, alquebrado pela tortura, morreu ali mesmo do choque. A Última sentença foi lida e os réus entregues ao braço secular. O Santo Ofício não impunha qualquer espécie de pena que implicasse em derramamento de sangue, chegando mesmo ao ponto de instar com as autoridades civis para que poupassem a vida do criminoso. A lei canónica, no entanto, exigia-lhes que punissem prontamente os hereges confiados às suas mãos pela Inquisição e concedia-se uma indulgência aos devotos que trouxessem lenha para a fogueira destinada a queimá-los.
Ficava assim terminada a tarefa dos inquisidores, que se retiraram. Os soldados da "Zarza" entraram na praça e descarregaram os seus mosquetes. Depois cercaram os prisioneiros e marcharam com eles para o local da execução, a fim de protegê-los contra a fúria do populacho, que, no seu ódio à heresia, tê-los-ia maltratado e até seria capaz de matá-los.
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Os frades acompanhavam-nos, esforçando-se até ao fim por lhes arrancar uma palavra de arrependimento e conversão. Entre eles havia quatro mulheres mouras, cuja beleza provocou a admiração de todos, um impenitente mercador holandês que fora apanhado a introduzir no país uma tradução espanhola do Novo Testamento, um mouro culpado de ter morto uma galinha cortando-lhe a cabeça, um bígamo, um mercador que dera asilo a um fugitivo do Santo Ofício, e um grego culpado de defender opiniões condenadas pela Igreja. Um aguazil e um secretário foram com as autoridades civis, para tratar de que as sentenças fossem devidamente executadas. O secretário, nessa ocasião, era padre António, que assim teve oportunidade de fazer um relato completo dos acontecimentos do dia.
O "quemadero" ficava fora da cidade. Garrotes tinham sido presos às estacas, a fim de que aqueles que houvessem manifestado a intenção de morrer na fé cristã, inclusive os que o faziam no último momento, pudessem escapar à morte pelo fogo, perecendo pelo método mais suave do estrangulamento. A multidão precipitara-se em pós dos soldados e dos prisioneiros e grande número de pessoas, a fim de apreciar melhor os trâmites da execução, foram tomar lugar antecipadamente no espaço aberto em que devia verificar-se a cena final. Havia ali enorme assistência, o que era natural, pois tratava-se de um espectáculo digno de ser visto e de um entretenimento muito apropriado a um hóspede de sangue real; além disso, o espectador tinha a satisfação de saber que estava realizando um acto de piedade e um serviço a Deus. Os destinados ao garrote foram garroteados. Depois atearam-se as chamas, e vivos e mortos foram reduzidos a cinzas, a fim de que a sua memória
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desaparecesse para sempre. O povo levantou um clamor e pôs-se a bater palmas ao ver subir as chamas, abafando quase os gritos agudos das vítimas, e aqui e além uma mulher entoava um salmo lamentoso e estridente à Santíssima Virgem ou a Cristo Crucificado. Caiu a noite e a multidão voltou aos grupos para a cidade, fatigada de tanta emoção e tantas horas passadas em pé, mas sentindo que tivera um dia feliz. Dirigiam-se em grande número para as tabernas. Os bordéis tiveram um movimento nunca visto e muito homem pôs à prova nessa noite a eficácia do fragmento do hábito de frei Blasco, que usava num escapulário ao pescoço.
Padre António também estava cansado, mas a sua primeira obrigação era comunicar os acontecimentos aos dois inquisidores. Feito isso, como era um homem consciencioso, apesar da fadiga que o tentava a ir para a cama sentou-se e escreveu uma narrativa circunstanciada de tudo quanto sucedera naquele dia, enquanto tinha todos os pormenores frescos no espírito. Fê-lo com rapidez e uma eloquência que parecia inspirada pelo Céu, e ao reler o que escrevera verificou que não havia necessidade de alterar uma só palavra. Finalmente, ditoso pela consciência de haver cumprido o seu dever e contribuído, além disso, com a sua modesta parte para uma obra piedosa, meteu-se na cama e dormiu o sono inocente de uma criança.
Tudo isso ele o leu ao desalentado bispo em voz forte e sonora, dando uma ênfase dramática aos episódios mais significativos. Lia com os olhos pregados ao papel. Sentia uma estranha exaltação. Era assim que se servia o Senhor e se mantinha a pureza da fé católica. Terminou a leitura. Tinha de reconhecer que fizera justiça à grandiosa solenidade. Ele próprio sentia a vividez da sua descrição e a maneira artística por que conduzira
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a narrativa, sem saber como, a um clímax imponente. Alçou os olhos. Como muitos outros escritores que submetem a sua obra à apreciação de um ouvinte, gostaria de ser recompensado com uma palavra de louvor. Mas isso não passou de um desejo momentâneo. O fim principal era dissipar as sombrias imaginações do seu amado e venerado superior, lembrando-lhe o mais glorioso incidente da sua carreira. Por mais santo que fosse, não podia deixar de sentir um estremecimento de orgulho ao surgir-lhe ante os olhos do espírito aquele dia magnífico em que relegara aos tormentos eternos tão grande número de amaldiçoados hereges, servindo assim o Senhor, desobrigando a sua consciência e edificando o povo. Padre António ficou surpreendido, mais do que surpreendido, ateimado, quando viu que as lágrimas lhe desciam pelas faces murchas e ele apertava os punhos com força, para conter os soluços que lhe sacudiam o peito.
Atirou ao chão o manuscrito e, saltando do tamborete em que estava sentado, lançou-se aos pés do seu mestre.
- Mas que tem o senhor? - exclamou. - Que fiz eu? Li apenas para distraí-lo...
O bispo afastou-o de si e, pondo-se em pé, estendeu os braços súplices para a cruz negra pregada à parede.
- O grego! - gemeu ele. - O grego!
E, incapaz de se conter por mais tempo, desatou num choro arrebatado. Os dois frades contemplavam-no cheios de consternação. Nunca tinham visto esse homem austero entregar-se a crises emotivas. O bispo secou as lágrimas impacientemente, com a palma da mão.
- Eu sou o culpado - gemeu ele - , terrivelmente culpado.
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Cometi um horrendo pecado e a minha única esperança de perdão está na infinita misericórdia do Senhor.
- Explique pelo amor de Deus, Excelência! Estou absolutamente confuso. Pareço um marinheiro numa tempestade, com o barco desarvorado e o leme perdido. - Com o seu trecho literário ainda a ressoar-lhe nos ouvidos, era impossível a padre António deixar de falar como um livro.
- O grego? Porque Vossa Excelência se refere ao grego? Era um herege e sofreu a justa punição do seu crime.
- Você não sabe o que diz. Não sabe que o meu crime é ainda maior que o dele. Pedi um sinal e o sinal foi-me dado. Tomei-o por um indício da graça divina;; vejo agora que era um indício da Sua cólera. É justo que eu seja humilhado aos olhos dos homens, porque sou um miserável pecador.
Não se voltou para os seus companheiros. Não era a eles que falava, mas à Cruz sobre a qual se imaginara tantas vezes, com as mãos e os pés atravessados por pregos.
- Era um bom velho, caridoso na sua pobreza para com os mais pobres do que ele, e durante os anos que o conheci nunca lhe ouvi pronunciar uma má palavra. Olhava todos os homens com estima e bondade. Possuía a verdadeira nobreza da alma.
- Muitos homens, virtuosos na vida pública e privada, foram justamente condenados pelo Santo Ofício, porquanto a rectidão moral nada pesa na balança contra o pecado mortal da heresia.
O bispo virou-se e considerou padre António. O seu olhar era trágico.
- E o estipêndio do pecado é a morte - murmurou ele. O grego de quem faiavam, Demétrios Ghristopoulos, era
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natural de Chipre e homem de algumas posses, o que lhe permitira dedicar-se aos estudos. Quando os turcos, no reinado de Selim II, invadiram a ilha, tomaram Nicósia, a capital, e passaram a fio de espada vinte mil dos seus habitantes. Famagusta, onde vivia Demétrios Chrastopoulos, foi cercada e rendeu-se após um ano de acirrada resistência. Sucedia isso em 1571. Fugiu ele da cidade condenada! e homiziou-se nos montes até conseguir escapar num bote de pescadores, e depois de muitas aventuras desembarcou na Itália. Estava sem vintém, mas não tardou a arranjar suficiente trabalho, como professor de grego e expositor da filosofia antiga, para não morrer de fome. Numa hora aziaga, porén, fez-se notado por um fidalgo espanhol adido à embaixada do seu país em Roma, o qual durante a sua residência na Itália se rendera ao culto de Platão, então na moda. O nobre levava-o ao seu palácio e os dois liam juntos os imortais diálogos do filósofo. Volvidos alguns anos, no entanto, foi reconduzido à Espanha e convenceu o grego a ir com ele. Foi elevado à vice-realeza do Reino de Valência e nesta cidade veio a monrer. O grego, sem recursos e já à beira da velhice, deixou o palácio do vice-Rei e instalou-se muito modestamente em casa de uma viúva. Tinha adquirido certo renome de erudição e arranjou um precário meio de vida dando lições de grego aos que desejavam adquirir conhecimentos desse nobre idioma.
Frei Blasco de Valeiro ouvira falar dele quando ainda ensinava teologia em Alcalá de Henares. Pouco depois de assumir o cargo de inquisidor em Valência, sabedor de que ele era um homem de boa reputação e vida virtuosa, mandou chamá-lo. Simpatizou com as maneiras suaves e modestas do velho e pediu-lhe que lhe ensinasse a língua em que fora escrito o Novo
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Testamento, a fim de poder lê-lo com maior devoção. Durante nove anos, sempre que os seus múltiplos deveres lhe davam um momento de folga, o inquisidor e o grego trabalharam juntos. Frei Blasco era um aluno diligente e capaz, e ao cabo de alguns meses o grego, que tinha paixão pela grande e antiga literatura do seu país, convenceu-o a enfrentar as obras dos autores clássicos. Era platonista fervoroso e não tardou que se pusessem a ler os "Diálogos". Daí passaram para Aristóteles. O frade não quis ler a "ilíada", que lhe parecia brutal, nem a "Odisseia", que ele achava frívola, mas encontrou muita coisa de admiração nos autores dramáticos. Sempre acabavam, no entanto, por voltar aos "Diálogos".
O inquisidor era um homem de sensibilidade delicada e encantou-o a graça, a piedade religiosa e a profundidade de Platão. Havia nas obras deste muita coisa que um cristão podia aprovar. Era pretexto para que ambos discutissem muitos assuntos sérios. Frei Blasco entrou assim num novo mundo. Sentia um singular deleite na leitura desses grandes livros que lhe proporcionavam um feliz repouso após as ocupações do dia. No seu longo e fecundo convívio com aquele homem que não parecia pertencer a este mundo concebera por ele uma espécie de afeição, e tudo que ouvia dizer do grego, da sua vida simples e honesta, da sua índole bondosa e da sua caridade, aumentava a admiração que lhe inspirava o seu carácter.
Foi um choque terrível para ele quando um holandês luterano, detido pelos familiares da Inquisição por introduzir na Espanha traduções do Novo Testamento, confessou no cavalete haver dado um exemplar ao grego. Prosseguindo o interrogatório, com a assistência de mais uma volta do arrocho, disse
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ter conversado amiúde com ele sobre religião, e que em muitos pontos estavam inteiramente de acordo. Isto era suficiente para que o Santo Ofício se visse obrigado a instaurar um inquérito que, como sempre, foi exaustivo e secreto. O grego foi conservado na ignorância de estar sob suspeita. Ao ler os autos finais do inquérito, frei Blasco ficou horrorizado. Nunca lhe passara pela cabeça que o grego, tão bom, tão humilde, não houvesse, durante os longos anos passados na Itália e depois na Espanha, abjurado as suas opiniões cismáticas e abraçado a fé católica de Roma. Testemunhas juraram ter-lhe ouvido emitir opiniões condenáveis. Demétrios negava que o Espírito Santo procedesse do Filho, rejeitava a supremacia do papa e, embora venerasse a Virgem:, não queria admitir a sua imaculada conceição. A dona da casa em que ele morava ouvira-lhe dizer que as indulgências não tinham valor algum e alguém mais testificou que ele não aceitava a doutrina romana do purgatório.
O colega de frei Blasco, Don Baltasar de Carmona, era doutor em direito e um rígido moralista - homenzinho descarnado, de narigão pontudo, lábios comprimidos, olhos pequenos e desinquietos. Sofria, de uma doença dos intestinos que lhe azedava o temperamento. O seu cargo dava-lhe um poder imenso, que ele exercia com selvagem prazer. Ao ter conhecimento desses factos condenatórios, insistiu em que se prendesse o grego. Frei Blasco fez o que pôde para salvá-lo. Alegou que, na qualidade de cismático, ele não era um herege, e portanto não caía sob a jurisdição do Santo Ofício. Mas não havia só o depoimento do luterano submetido à tortura: um calvinista francês, a quem aquele também incriminara, declarou que ouvira o grego emitir opiniões que cheiravam a protestantismo,
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e ao saber disto frei Blasco viu-se obrigado a cumprir o seu dever de ofício, por mais que tal coisa lhe custasse. Familiares foram buscar o velho a sua casa e levaram-no para o cárcere da Inquisição. Interrogaram-no e confessou-se francamente culpado do que lhe imputavam. Deram-lhe a oportunidade de abjurar as suas falsas crenças e converter-se ao catolicismo, mas com grande consternação de frei Blasco ele recusou fazê-lo. O delito era grave, mas como as provas não fossem concludentes quanto ao protestantismo, frei Blasco quis dar ao grego um ensejo de expiar o seu crime e insistiu junto ao seu colega, partidário de uma condenação imediata, a fim de que o submetessem à tortura, para induzi-lo à conversão e salvar-lhe a alma.
A lei exigia que ambos os inquisidores estivessem presentes à aplicação da tortura, com o representante do bispo diocesano e um notário para registar o ocorrido. Esse espectáculo nunca deixava de inspirar tal horror a frei Blasco que durante noites seguidas era atormentado por sonhos pavorosos.
Trouxeram o grego, desnudaram-lhe o torso e amarraram-no ao cavalete. O seu débil corpo de ancião estava ema-ciado. Rogaram-lhe solenemente que confessasse a verdade, pois os inquisidores não desejavam vê-lo sofrer. Permaneceu calado. Ataram-lhe as pernas aos lados do cavalete, passaram-lhe cordas em volta dos braços, das coxas e das pernas, e as extremidades daquelas foram presas a um arrocho - isto é, um pau mediante o qual podiam ser esticadas. O algoz deu uma vigorosa volta ao arrocho e o grego soltou um grito agudo; outra volta, e as cordas penetraram-lhe na pele e na carne, até aos ossos. Devido à sua idade avançada frei Blasco insistira em que não se dessem mais de quatro voltas, pois
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embora o máximo estabelecido fosse de seis ou sete, raramente se ia além de cinco, ainda quando se tratava de homens robustos. O grego suplicou que o matassem de uma vez e pusessem termo à sua agonia. Embora frei Blasco fosse obrigado a estar presente, não era obrigado a olhar. Mantinha os olhos cravados no chão de pedra, mas os gritos de dor retiniam-lhe nos ouvidos e atassalhavam-lhe os nervos. Aquela era a voz com que o seu amigo havia recitado as graves e nobres passagens de Sófocles; era a mesma voz com que, presa de uma emoção que a custo dominava, ele tinha lido o derradeiro discurso de Sócrates. Antes de cada volta do arrocho ordenava-se ao grego que confessasse a verdade, mas ele cerrava os dentes e não abria a boca. Quando o tiraram do cavalete não podia ter-se em pé e foi preciso carregá-lo de volta ao cárcere do Santo Ofício.
Embora nada houvesse confessado, condenaram-no com base nas suas confissões prévias. Frei Blasco ainda quis salvar-lhe a vida, mas Don Baltasar, o doutor em leis, objectou que ele era tão culpado quanto os outros luteranos condenados à fogueira. O representante do bispo e as demais autoridades a quem consultaram mostraram-se concordes com ele. Como o auto-de-fé só devesse realizar-se algumas semanas depois, frei Blasco teve tempo de escrever ao inquisidor-mor expondo-lhe o caso. O inquisidor-mor respondeu que não via motivo para alterar a decisão do tribunal. Frei Blasco nada mais podia fazer. Mas os gritos desesperados do velho continuavam a ecoar-lhe nos ouvidos e o sofrimento não lhe dava tréguas. Enviava-lhe conselheiros espirituais para tentar convertê-lo, pois embora já fosse impossível salvar-lhe a vida, o arrependimento permitiria que fosse garroteado, poupando-lhe
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assim o suplício da fogueira. Mas o grego mostrou-se contumaz. Apesar da tortura e da longa permanência no cárcere, o seu espírito continuava lúcido e activo. Aos argumentos dos frades respondia com outros argumentos tão subtis que aqueles se enfureciam.
Finalmente chegou a véspera do auto-de-fé. As anteriores solenidades da mesma espécie não haviam feito impressão em frei Blasco, pois os judaizantes relapsos, os mouros que persistiam nas suas práticas diabólicas, os protestantes, eram criminosos perante Deus e os homens, e, levando-se em conta a segurança da Igreja e do Estado, havia todas as razões para fazê-los sofrer. Mas ninguém sabia melhor do que ele quanto o grego era bom, compassivo e prestativo aos necessitados. Apesar da autoridade do seu colega, homem cruel, de alma seca e fria, ele punha em dúvida a legalidade do pavoroso castigo. Tinham trocado palavras acres e Don Baltasar acusara-o de favorecer o criminoso por ser seu amigo. No íntimo, frei Blasco sabia existir pelo menos um fundo de verdade nessa imputação: se ele nunca houvesse encontrado o grego, teria aceite a sentença sem protesto. Já não lhe podia salvar a vida, mas ainda podia salvar a sua alma. Os frades a quem tinha enviado para convencê-lo do seu erro não possuíam a habilidade necessária para tratar com um homem tão instruído. Uma hora antes de romper o dia foi ao cárcere da Inquisição e pediu que o conduzissem à cela do grego. Os dois frades estavam-no ajudando a passar essa última noite na Terra. Frei Blasco mandou-os sair.
- Ele não quis ouvir as nossas exortações - disse um deles.
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Um sorriso bailou nos lábios do grego ao vê-los deixar a cela.
- Sem dúvida alguma, os seus frades são pessoas muito dignas, senhor. Mas não têm grande inteligência.
Estava calmo e, conquanto velho e alquebrado, mantinha uma aparência de dignidade.
- Vossa Reverência há-de perdoar-me se fico na cama. A tortura deixou-me muito fraco e desejo conservar as forças para as cerimónias de hoje.
- Não percamos o tempo em falas ociosas. Dentro de poucas horas você terá de enfrentar um horrível destino. Sabe Deus que eu de bom grado daria dez anos da minha vida para o salvar. As provas eram condenatórias e eu faltaria ao meu juramento se deixasse de cumprir o meu dever.
- Eu jamais desejaria que o senhor fizesse tal coisa.
- Já não lhe posso salvar a vida, mas se consentir em retractar-se e aceitar a conversão, poderei ao menos poupar-lhe o tormento das chamas. Eu estimava-o, Demétrios, e nunca poderei saldar a minha dívida para consigo a não ser salvando a sua alma imortal. Esses frades são ignorantes e tacanhos. Vim aqui fazer uma última tentativa desesperada de convencê-lo do seu erro.
- Perderia o seu tempo, senhor. Nós lhe daríamos muito melhor emprego se conversássemos, como tantas vezes fizemos, sobre a morte de Sócrates. Não me permitiram trazer livros para este calabouço, mas possuo boa memória e tenho encontrado alívio em repetir a mim mesmo aquele discurso em que ele fala com tanta nobreza sobre a alma.
- Não estou a ordenar-lhe agora, Demétrios, estou a suplicar-lhe que me ouça.
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- Não posso negar-lhe esse último acto de cortesia.
Em tom grave, ponto por ponto, com cultura e discrição, o inquisidor expôs os argumentos imaginados pela Igreja para justificar as suas pretensões e refutar as opiniões de hereges e cismáticos. Estava habituado a discutir tais assuntos e expressou-se com habilidade e uma impressionante convicção.
- Eu não merecia muito respeito se, pelo receio de uma morte horrível, fingisse aceitar crenças que considero erróneas - disse o grego depois de ele terminar.
- Não é isso que eu lhe peço. Peço-lhe que creia na verdade com todo o seu coração.
- "Que é a verdade?" perguntou Pôncio Pilatos. É tão impossível ao homem forçar a sua crença como é impossível subjugar as vagas do oceano quando açoitado pela borrasca. Agradeço a Vossa Reverência a bondade de que me dá prova, e esteja certo de que não lhe guardo rancor pelo infortúnio que me aconteceu. O senhor agiu de acordo com a sua consciência e nenhum homem pode fazer mais do que isso. Eu já estou velho e pouca diferença faz que morra hoje ou daqui a um ou dois anos. Só tenho um pedido para lhe fazer. Não abandone, por eu ter desaparecido, os seus estudos da sublime literatura da Grécia antiga. Ela não deixará de ampliar-lhe o espírito e enobrecer-lhe o pensamento.
- Não teme a justa vingança do Senhor contra a sua contumaz obstinação?
- O Senhor possui muitos nomes e uma infinidade de atributos. Tem sido chamado Jeová, Zeus e Brama. Que importância tem o nome que Lhe damos? Mas entre os seus atributos infinitos o principal, como bem o percebeu Sócrates, ainda que pagão, é a justiça. Ele deve saber que o homem
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não acredita naquilo que quer, mas no que pode, e eu não Lhe farei a suma injustiça de supor que Ele condene as suas criaturas por uma coisa de que não são culpadas. Vossa Reverência não me julgue desrespeitoso se lhe peço que me deixe agora a sós com os meus pensamentos.
- Não posso deixá-lo assim. Devo esforçar-me até ao fim para salvar a sua alma imortal das chamas furiosas do Inferno. Diga uma palavra que me dê a esperança de poder salvá-lo ainda. Uma palavra para mostrar que você não continua impenitente, para que eu possa ao menos mitigar o seu castigo aqui na Terra.
O grego sorriu, e é possível que houvesse um toque de ironia nesse sorriso.
- O senhor desempenhará o seu papel, e eu o meu. O seu papel é matar, o meu é morrer sem tremer.
As lágrimas cegaram o inquisidor, que encontrou a custo o caminho da saída.
O bispo referiu este episódio aos frades numa voz embargada, e ao chegar a este ponto cobriu o rosto com as mãos, como se não pudesse suportar a vergonha de contar o resto. Eles escutavam-no compungidos, mas com uma atenção empolgada, e padre António anotava cuidadosamente, na sua memória, cada fala e cada resposta, a fim de registá-las no seu livro.
- Fiz então uma coisa horrível. Don Baltasar estava de cama e eu sabia que ele não se levantaria senão no último momento, pois tinha um medo mortal de que a doença o impedisse de assistir ao auto-de-fé. É um homem ambicioso e queria fazer-se notar pelo príncipe. Eu tinha, pois, liberdade de agir como entendesse. Não podia suportar a ideia
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de ver aquele pobre velho ser devorado pelas chamas cruéis. Ainda me ressoavam ao ouvido os seus gritos ao ser torturado e parecia-me que não cessaria de ouvi-los durante toda a minha vida. Disse às pessoas a quem isso interessava que tinha falado pessoalmente com ele e ele se retractara a ponto de admitir a dupla processão do Espírito Santo. Dei ordem para que o garroteassem antes de queimá-lo e mandei dinheiro por um criado ao algoz para que o despachasse depressa.
Convém explicar que o algoz podia prolongar durante horas a agonia da vítima, apertando-lhe e afrouxando-lhe alternativamente o colar de ferro em torno do pescoço, de modo que era preciso pagar-lhe para dar morte rápida ao infeliz.
- Não ignorava que isso era um pecado. O pesar desvairou-me e mal sabia o que estava a fazer. Foi um pecado que jamais deixarei de censurar a mim mesmo. Disse-o ao meu confessor e cumpri a penitência que ele me impôs. Recebi a absolvição, mas não posso absolver a mim mesmo, e o que sucedeu hoje é o meu castigo.
- Mas, meu senhor, isso foi um acto de compaixão! - obtemperou padre António. - Qual é aquele que, tendo trabalhado consigo tantos anos como eu trabalhei, não conhece a bondade do seu coração, e quem pode censurar-lhe o ter permitido uma vez que essa bondade suplantasse o seu sentimento de justiça?
- Não foi um acto de compaixão. Quem pode afirmar que o grego não ficara abalado pelos meus argumentos e quem sabe se, quando as chamas lhe lambessem a carne, a graça do Senhor não lhe seria concedida, levando-lhe o espírito obstinado a renegar os seus erros? Muitos homens, nesse derradeiro e terrível momento em que estão prestes a encontrar o seu Criador,
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salvaram assim as suas almas. Eu tirei-lhe esse ensejo e com isso o condenei aos tormentos eternos.
Um soluço rouco escapou-se-lhe da garganta - um som que semelhava o grito estrangulado, misterioso, de alguma ave nocturna no tenebroso silêncio da floresta.
- Os tormentos eternos! Quem pode imaginar tal sofrimento? Os réprobos estorcem-se num lago de fogo de onde se desprendem vapores deletérios que eles respiram cheios de angústia. Têm o corpo inçado de vermes. Uma fome e uma sede desesperadas torturam-nos. Chamuscados pelas chamas, os seus gritos formam um tumulto e uma confusão em face dos quais o ribombar do trovão e os bramidos do mar fustigado pela borrasca representam um silêncio mortal. Demónios de medonha aparência zombam e escarnecem deles, batem-lhes com um furor incansável, mais o remorso dilacerados com uma dor mais cruel do que as torturas desses hediondos diabos. O verme da consciência rói-lhes as entranhas. O fogo crucifica-lhes as almas, e comparado com ele o fogo aqui da terra é como o fogo que vemos num quadro, pois é a cólera do Senhor que o ateia e o alimenta, como instrumento terrível da Sua justa vingança por toda a eternidade.
"E a eternidade, como é terrível a eternidade! Tantos milhões de anos passam sobre os réprobos quantas são as gotas de água que têm caído sobre a terra desde o início dos tempos; tantos milhões de anos quantas são as gotas de água de todos os mares e rios do mundo; tantos milhões de anos quantas são as folhas de todas as árvores que existem e quantos são os grãos de areia de todas as praias do oceano; tantos milhões de anos quantas são as lágrimas que os homens têm derramado desde que Deus criou os nossos primeiros pais.
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volvido esse número incalculável de anos, a angústia dessas infelizes criaturas prosseguirá como se apenas houvesse começado, como se fosse ainda o primeiro dia; e a eternidade permanecerá inteira à sua frente, como se nem um segundo houvesse passado. E foi a essa eternidade de sofrimento que eu condenei aquele desgraçado. Que castigo pode reparar um mal tão grande? Oh! tenho medo, tenho medo..."
Estava desesperado. Profundos soluços sacudiam-lhe o peito. Encarava os dois frades com olhos escuros de" terror, e ao fixarem-se messes olhos notaram-lhes no fundo um clarão vermelho, como se visse reflectidas neles, de muito longe, as chamas rubras do Inferno.
- Mandem reunir os monges. Confessar-lhes-ei o meu pecado e, pela salvação da minha alma, ordenar-lhes-ei que me apliquem a disciplina circular.
Era um castigo degradante em que todos os presentes usavam o açoite contra o culpado. Padre António, aterrado, caiu de joelhos e, juntando as mãos como numa prece, implorou ao seu mestre que não insistisse em submeter-se a tão terrível provação.
- Nossos confrades não o vêem com bons olhos, meu senhor, estão furiosos porque Vossa Excelência não os deixou ir à igreja esta manhã. Não o pouparão. Vão açoitá-lo com toda a força. Muitos monges têm morrido sob as suas vergastadas.
- Não quero que me poupem. Se eu morrer, ter-se-á feito justiça. Ordeno-lhe, em nome do seu voto de obediência, que faça o que lhe digo.
O frade pôs-se em pé.
- Vossa Excelência não tem o direito de expor-se
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a tamanha afronta. É bispo de Segóvia. Vai lançar um labéu sobre todo o episcopado da Espanha. Vai diminuir a autoridade de todos aqueles que Deus escolheu para essa alta posição. Tem a certeza de que não há nenhuma ostentação nessa vergonha a que pretende expor-se?
Jamais ousara falar nesse tom peremptório ao seu pai em Deus. O bispo ficou surpreendido. Haveria realmente uma sombra de vanglória no seu desejo de humilhar-se assim em público? Deu um longo olhar ao frade.
- Não sei - disse afinal, lastimavelmente. - Sou como um homem que anda aos tropeções por uma terra desconhecida, nas trevas da noite. Talvez você tenha razão. Eu só pensava em mim, não pensei no efeito que isso produziria nos outros.
Padre António deu um suspiro de alívio.
- Vocês dois aplicar-me-ão a disciplina aqui, em particular.
- Não, não! Não faço isso. Sou incapaz de maltratar o seu sagrado corpo.
- É preciso então lembrar-lhe os seus votos? - perguntou o bispo com a sua velha severidade. - Você tem-me tão pouca estima que hesita em me infligir um castigo insignificante a bem da minha alma? Há açoites debaixo da cama.
Confrangido e em silêncio, o frade foi buscá-los. Estavam manchados de sangue. O bispo despiu a parte superior do hábito, que lhe caiu em volta da cintura. Tirou então a camisa: era feita de lata e perfurada como um ralador, para poder lacerar a carne. Padre António sabia que o bispo usava um cilício de crina - não sempre, pois isso faria com que se acostumasse a ele, mas apenas o número suficiente de vezes
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para que o tormento se renovasse constantemente. Susteve a respiração ao ver aquela horrível camisa de lata, mas ao mesmo tempo sentiu-se edificado. Aquele homem era na verdade um santo. Não deixaria de registar essa particularidade no seu livro. O dorso do bispo mostrava as cicatrizes dos açoites que ele aplicava a si mesmo pelo menos uma vez por semana, e havia chagas abertas que supuravam.
Abraçou-se à fina coluna que sustentava os dois arcos divisórios dos seus aposentos e ofereceu as costas aos dois frades. Cada um deles apanhou em silêncio um açoite e golpeou a carne sangrenta. A cada vergastada o bispo estremecia, mas nem um gemido lhe escapou dos lábios. Não lhe tinham dado mais de uma dúzia de açoites quando ele caiu desmaiado. Levantaram-no e carregaram-no para a cama dura. Jogaram-lhe água em cima, mas como o bispo não recobrasse os sentidos assustaram-se. Padre António disse ao seu colega que mandasse um irmão leigo ir depressa chamar um médico, pois o bispo estava doente, mas ao mesmo tempo recomendou-lhe que avisasse os monges que não deviam incomodá-lo em hipótese alguma. Banhou-lhe as costas laceradas e tomou-lhe ansiosamente o pulso, que vacilava. A princípio julgou que o bispo estivesse à morte. Mas afinal Don Blasco abriu os olhos. Foram precisos alguns instantes para que recobrasse o uso das suas faculdades. Forçou então um sorriso.
- Pobre criatura que eu sou! Desmaiei...
- Não fale, meu senhor. Fique tranquilo. Mas o bispo ergueu-se num dos cotovelos.
- Dê-me a minha camisa.
Padre António olhou com um arrepio para aquele instrumento de tortura.
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- Oh! meu senhor! Não poderia suportá-la agora.
- Dê-ma.
- O médico vem aí. Não lhe conviria ser visto por ele a usar um instrumento de suplício.
O bispo deixou-se cair novamente na dura enxerga.
- Dê-me a minha Cruz - pediu ele.
Afinal chegou o médico, que mandou o doente permanecer na cama e prometeu mandar um remédio. Era um sedativo e dentro em pouco o bispo adormecia.


XVI.

No dia seguinte insistiu em levantar-se. Disse a sua missa. Embora débil e abalado, estava calmo e mergulhou no trabalho como se nada houvesse acontecido.
Pela tarde um irmão leigo veio comunicar-lhe que seu mano Don Manuel estava na sala de visitas e desejava falar-lhe. Supondo que ele tivesse sido informado da sua doença, mandou dizer que lhe ficava agradecido pela visita, mas assuntos urgentes o impediam de recebê-lo. O irmão leigo voltou dizendo que Don Manuel recusava ir embora enquanto o bispo não o recebesse, pois tinha uma comunicação importante para lhe fazer. O bispo soltou um suspiro e disse ao irmão leigo que o mandasse entrar. Desde a chegada a Castel Rodríguez não lhe tinha falado senão nas ocasiões exigidas pela cortesia. Embora censurasse a si próprio a sua falta de caridade, não podia dominar a antipatia que lhe inspirava esse homem vaidoso, brutal e empedernido.
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Don Manuel entrou sumptuosamente trajado, pletórico, ressumbrando saúde e vitalidade agressiva. Caminhava com um ar arrogante. Tinha no rosto uma expressão satisfeita e o bispo julgou notar-lhe malícia e astúcia nos olhos brilhantes e ousados. Teve um sorriso frio ao correr os olhos pela cela nua e austera. O bispo indicou-lhe um tamborete.
- Não tens um assento mais cómodo para me oferecer, mano?
- Não.
- Disseram-me que estavas doente.
- Foi uma indisposição passageira e sem importância. Já voltei ao meu estado normal de saúde.
- Estimo.
Houve um silêncio. Don Manuel continuava a encará-lo com um sorriso levemente zombeteiro.
- Disseste que tinhas uma comunicação para me fazer - falou o bispo afinal.
- E tenho, mano. Parece que a cerimónia de ontem de manhã não correspondeu às tuas esperanças.
- Faze-me o favor de dizer a que vens, Manuel.
- Que te fez pensar que eras tu o instrumento escolhido para curar essa rapariga da sua enfermidade?
O bispo hesitou. O seu primeiro impulso foi não dar resposta, mas, mortificando-se diante daquele homem grosseiro e vulgar, respondeu.
- Garantiram-me que a rapariga tinha falado a verdade e, embora me julgasse indigno, senti-me na obrigação de fazer o que me era solicitado.
- Cometeste um erro, mano. Devias tê-la interrogado mais cuidadosamente. A Santíssima Virgem disse-lhe que o filho
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de Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la. Porque tiraste logo a conclusão de que a Virgem se referia a ti? Não achas que te faltou um pouco de humildade cristã?
O bispo empalideceu.
- Que queres dizer? - exclamou ele. - Segundo ela me informou, Nossa Senhora tinha-lhe dito que era eu.
- É uma rapariga tola e ignorante. Supôs que a pessoa designada fosses tu, porque és bispo e, não sei porquê, o povo desta cidade tem ouvido falar muito da tua santidade e das tuas mortificações.
O bispo fez uma breve oração mental para poder dominar a cólera e a vergonha que lhe causavam as palavras do irmão.
- Como sabes disso? Quem te disse que as palavras da Santíssima Virgem foram essas?
Dom Manuel espirrou uma risada. Aquilo parecia-lhe uma óptima pilhéria.
- Vim a saber que a rapariga tem um tio chamado Domingo. Nós conhecemo-lo em pequenos. Se bem me lembro, estiveste no seminário com ele.
O bispo inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
- Domingo Pérez é um borracho,. Costuma ir a uma taberna frequentada pelos meus criados e fez amizade com eles, sem dúvida esperando que lhe pagassem a bebida. A noite passada tomou um pifão. Como era natural, todos falavam dos acontecimentos da manhã, pois o teu fiasco, mano, é assunto de todas as conversas. Domingo disse-lhes que não esperava outra coisa e tinha procurado prevenir-te, mas não o quiseram receber no convento. Repetiu então exactamente
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as palavras que a Virgem tinha pronunciado, conforme lhe foram repetidas pela sobrinha.
O bispo estava confuso. Não sabia o que dizer. Don Manuel continuou a falar, já com uma expressão de franca zombaria no olhar. O bispo perguntava consigo, lastimosamente, que espécie de homem seria aquele, que podia encontrar um prazer tão cruel em humilhar assim o próprio irmão.
- Não te passou pela cabeça, mano, que ela pudesse referir-se a mim?
- A ti?
O bispo mal podia dar crédito aos seus ouvidos. Se fosse capaz de rir, teria rido nessa ocasião.
- Isso surpreende-te, mano? Durante vinte e quatro anos tenho servido o meu rei. Arrisquei a minha vida uma centena de vezes, bati-me em batalhas gloriosas e o meu corpo traz cicatrizes dos mais honrosos ferimentos. Tenho sofrido fome e sede, o frio rigoroso daqueles malditos Países Baixos e o tórrido calor do Verão. Tu queimaste algumas dúzias de hereges na fogueira enquanto eu, para glória do Senhor, matei milhares desses hereges. Para glória de Deus, assolei-lhes os campos e queimei-lhes as searas. Assediei cidades prósperas e, quando se renderam, passei a fio de espada todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças.
O bispo estremeceu.
- O Santo Ofício só condena os acusados de acordo com as normas do processo judicial. Dá-lhes o ensejo de arrependerem-se e expiarem os seus pecados. Tem o maior cuidado em fazer justiça e, se castiga os culpados, também absolve os inocentes.
- Eu conheço de mais esses holandeses para crer que sejam capazes de arrependimento. Eles têm a heresia no sangue.
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São traidores à sua fé e ao seu rei e merecem a morte. Ninguém que me conheça pode negar que eu tenha servido bem ao Senhor.
O bispo pôs-se a reflectir. A brutalidade e a vanglória do irmão enchiam-no de asco. Parecia incrível que Deus pudesse escolher semelhante instrumento para a Sua obra, e no entanto podia ser que Ele o tivesse feito justamente por ser Manuel quem era, a fim de cobri-lo de vergonha, a ele, Blasco de Valero, por causa do seu pecado que não fora perdoado. Nesse caso, cumpria-lhe baixar a cabeça e aceitar a humilhação.
- Deus sabe que eu tenho consciência da minha indignidade - disse ele por fim. - Se fizesses essa tentativa e fosses mal sucedido, causarias um escândalo na cidade e darias um cruel ensejo aos maldosos para escarnecerem. Suplico-te que não faças nada precipitadamente; é um assunto que exige cuidadosa reflexão.
- Já reflectimos bastante, mano - volveu tranquilamente Don Manuel. - Consultei os meus amigos, que são as pessoas mais importantes da cidade. Pedi a opinião do arcipreste e do prior deste convento. Todos eles estão de acordo comigo.
O bispo tornou a fazer uma pausa. Sabia existir na cidade muita gente que invejava as posições conquistadas por ele e pelo irmão, porque, embora fidalgo de nascença, eram uma família de pouca monta. Bem podia ser que tivessem consentido na absurda pretensão de Don Manuel a fim de lançar descrédito sobre ambos.
- Não deves esquecer a possibilidade de que essa rapariga tenha sido iludida.
- Isso é o que vamos ver. Se eu fracassar, ficará provado
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que a rapariga é uma feiticeira e deve ser entregue à Inquisição para que a) julguem e castiguem.
- Se obtiveste o consentimento das autoridades municipais e estás resolvido a fazer a tentativa, não tenho o poder de impedir-te. Mas peço-te que faças tudo com o maior sigilo possível, para impedir um escândalo ainda maior que o que já tivemos.
- Agradeço-te o conselho, mano. Dar-lhe-ei a atenção que ele merece.
Com estas palavras, Don Manuel retirou-se. O bispo deu um profundo suspiro. Parecia-lhe que a sua taça de amargura se tinha enchido até às bordas. Ajoelhou-se diante da Cruz negra pregada à parede e orou em silêncio. Depois chamou um irmão leigo e mandou que fosse buscar Domingo Pérez.
- Se não o achar em casa, hão-de encontrá-lo na taberna próxima ao palácio em que está hospedado meu irmão, Don Manuel. Peça-lhe que me faça o favor de vir cá sem demora.


XVII.

Pouco depois o irmão leigo introduzia Domingo no oratório do bispo. Os dois homens encararam-se silenciosamente durante algum tempo. Não se encontravam desde quando haviam estudado juntos no seminário de Alcalá de Henares, ainda jovens e pouco mais que meninos. Ambos estavam já idosos, emaciados e devastados pelos anos. Mas a um tinham devastado a austeridade, as longas vigílias, os jejuns e o trabalho
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constante, enquanto o outro fora gasto pela bebida e pela dissipação. Todavia), se alguma semelhança havia na sua aparência, nenhuma tinham na expressão: a do bispo era atribulada e ansiosa, ao passo que a do escrevinhador era despreocupada e bem-humorada. Como clérigo das ordens menores, vestia batina, e esta estava coçada, esverdeada pelo longo uso e coberta, na frente, de nódoas de vinho e de gordura. Ambos, porém, tinham um ar de ascetismo e distinção intelectual.
- Vossa Excelência exprimiu o desejo de falar comigo - disse Domingo.
Um débil mas terno sorriso esboçou-se nos lábios pálidos do bispo.
- Há muito tempo que não nos vemos, Domingo.
- Os nossos caminhos têm-se distanciado muito. Eu cuidava que Vossa Excelência houvesse esquecido há muito a existência de uma criatura tão mesquinha e indigna como Domingo Pérez.
- Nós conhecemo-nos durante toda a vida. Envergonho-me de me ver tratado por ti com tanta cerimónia. Há muitos anos que não ouço um amigo chamar-me Blasco.
Domingo dirigiu-lhe o seu sorriso encantador, que tinha o dom de desarmar.
- Os grandes não têm amigos, meu querido Blasco. Esse é o preço que eles têm de pagar pela sua grandeza.
- Esqueçamos por uma hora esta minha lamentável grandeza e conversemos como os velhos e íntimos camaradas que fomos. Estavas enganado ao pensar que eu te houvesse esquecido. Tivemos demasiadas coisas em comum para que isso fosse possível. Eu mantinha-me informado da tua existência.
- Ela não tem sido muito edificante.
O bispo sentou-se num mocho e fez sinal a Domingo para que tomasse o outro.
- Mais ainda, mantive-me em contacto contigo através das tuas cartas.
- Como pode ser isso?... Eu nunca te escrevi...
- Não da tua própria parte, mas quando éramos rapazes li tantas poesias tuas que fiquei conhecendo muito bem a tua letra. Julgas que eu não a reconhecia nas cartas que meu pai e meu irmão Martin me enviavam? Sabia perfeitamente que eles eram incapazes de expressar-se com tanta elegância e propriedade. Além disso, havia certos modos de dizer, certos torneios de frase e certas reflexões em que eu reconhecia logo o teu espírito travesso.
Domingo riu suavemente.
- Não são muito notáveis os dotes literários de Don Juan e de teu irmão Martin. Depois de dizerem que gozavam saúde, que esperavam que o mesmo se desse contigo e que a colheita tinha sido minguada, não lhes restava mais nada que dizer. Tanto a bem do meu crédito como deles, eu sentia-me na obrigação de avivar essas secas informações com os mexericos da cidade e as agudezas e gracejos irreverentes que me ocorressem no momento.
- Como é lamentável que tenhas malbaratado os teus grandes talentos, Domingo! As coisas que eu tinha de aprender à força de aplicação e diligência, tu adquiria-las como que por intuição. Muitas vezes eu aterrava-me diante da audácia do teu pensamento, dessa abundância de ideias inesperadas que pareciam fluir do teu cérebro com tão pouco esforço como a água que jorra de uma fonte, mas nunca duvidei da tua inteligência. Tu nasceste para brilhar e, se não fosse a tua índole
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irrequieta, serias hoje um luzido armamento da nossa Santa Madre Igreja.
- Ao invés disso - volveu Domingo - , não passo de um pobre letrado, um dramaturgo que não encontra actores para lhe representarem as peças, um literato de aluguel que escreve sermões para padres estúpidos e incapazes de fazê-lo por si, um beberrão sem préstimo. Faltava-me a vocação, meu bom Blasco. A vida fascinava-me. O meu lugar não era nem no claustro nem no lar, mas na estrada real com as suas aventuras e perigos, os seus encontros fortuitos e a sua múltipla variedade. Vivi. Curti fome e sede, criei chagas nos pés, levei bordoada, sofri todos os infortúnios que podem caber em sorte a um homem: em suma, vivi. E mesmo agora que a velhice vai tomando conta de mim, não lamento os anos que desperdicei, pois eu também dormi no Parnaso; e quando vou a uma aldeia distante escrever uma carta para algum lapuz analfabeto, ou quando estou sentado no meu quarto, rodeado pelos meus livros, rimando falas em dramas que jamais serão levados à cena, sinto tamanha exultação que não trocaria de lugar com um cardeal ou mesmo com um papa.
- Não receias a cólera futura do Senhor? O estipêndio do pecado é a morte.
- É o bispo de Segóvia que me faz esta pergunta, ou o meu velho e estimado amigo Blasco de Valero?
- Até hoje não traí nenhum amigo ou inimigo. Enquanto não disseres nada que seja ofensivo à Fé, podes dizer o que quiseres.
- Então será esta a minha resposta: Nós sabemos que os atributos de Deus são infinitos, e sempre achei estranho que ninguém lhe tenha jamais atribuído um pouco de senso comum.
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É difícil acreditar que Ele tivesse criado um mundo tão belo sem desejar que os homens se deleitassem nele. Teria Ele dado às estrelas o seu esplendor, aos pássaros o seu canto mavioso e às flores o seu perfume, se não devêssemos sentir prazer nessas coisas? Eu pequei perante os homens e os homens condenaram-me por isso. Deus fez-me homem, com as paixões de um homem, e ter-me-ia Ele dado essas paixões unicamente para que eu as reprimisse? Foi Ele que me deu este espírito aventuroso e este amor à vida. Espero humildemente que, quando eu me encontrar face a face com o meu Criador, Ele se condoa das minhas imperfeições e me olhe com clemência. O bispo parecia profundamente perturbado. Podia responder ao pobre poeta que nós fomos postos na Terra para desprezar os seus deleites, resistir à tentação, vencer a nós mesmos e carregar a nossa cruz - para que no fim, embora não passemos de miseráveis pecadores, possamos ser considerados dignos da comunhão dos santos. Mas de que serviriam as suas palavras? Nada podia fazer senão rezar para que, antes de vir buscá-lo a morte, a graça de Deus descesse sobre o infortunado homem e ele se arrependesse das suas más acções. Fez-se um silêncio entre ambos.
- Não te mandei chamar para fazer com que te corrigisses - disse o bispo por fim. - Não me seria difícil refutar as tuas opiniões erróneas, mas sei de longa data o quanto és engenhoso em fazer parecer plausíveis os piores argumentos, e conheço também o prazer que sentes em irritar os demais com sofismas. Quero crer que grande parte do que disseste foi dito apenas com o fim de te divertires à minha custa. Tens uma sobrinha.
- Tenho.
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- Qual é a tua opinião sobre essa história que alvoroçou toda a cidade?
- Ela é uma menina virtuosa e verídica. É boa católica, mas não exageradamente religiosa.
- Bem creio nisso, pois estou informado de que ela foi educada por ti.
- Também não é dada a devaneios ociosos. É até, como não podem deixar de ser os pobres, um tanto prosaica. Ninguém poderia acusá-la de possuir a inditosa faculdade da imaginação.
- Acreditas, então, que a Santíssima Virgem lhe tenha aparecido realmente?
- Estive em dúvida até ontem, quando ela me referiu os termos exactos que a Virgem havia empregado. Então convenci-me, e foi por isso que quis falar contigo. Percebi logo qual era a pessoa indicada e quis poupar-te uma intervenção inútil. Mas não me deixaram entrar.
O bispo suspirou.
- Uma das cruzes que temos de carregar, e não a menor delas, é que os nossos companheiros de labutas, na sua solicitude para connosco, impedem que cheguem até nós aqueles a quem seria proveitoso recebermos.
- O tempo não embotou a afeição que me ligava a ti na mocidade, pois, como vês, eu, um pecador, posso dar-me ao luxo de ceder aos cegos impulsos do coração. Queria poupar-te uma humilhação que não podia deixar de ser-te muito amarga. Logo que a rapariga me repetiu as palavras exactas da Virgem Santíssima, eu percebi quem era a pessoa designada para curá-la da sua enfermidade.
- Ela disse-me que Nossa Senhora me tinha designado.
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- Foi um engano natural numa menina que conhecia as tuas mortificações, a tua virtude e austeridade. A Santíssima Virgem disse-lhe que o poder de curá-la estava nas mãos daquele entre os filhos de teu pai que melhor tem servido a Deus.
- Só há pouco vim a saber disso.
- Não sabes então a quem a Virgem se referia? É claro como água da fonte.
O bispo empalideceu e lançou um olhar ansioso a Domingo.
- Meu mano Martin?
- O padeiro.
Gotas de suor cobraram a fronte do bispo. Estremeceu como se alguém lhe pisasse na sepultura.
- Isso é impossível. Ele é sem dúvida um homem de bem, mas completamemte mundano.
- Impossível, por quê? Porque ele não tem instrução? Um dos mistérios da nossa Fé é que o Senhor, que deu a razão ao homem, elevando-o desse modo acima dos brutos, nunca deu, ao que saibamos, grande valor à inteligência. Teu irmão é um homem bom e simples. Tem sido um marido fiel e um pai amoroso. Tem honrado pai e mãe, dando-lhes de comer quando tinham fome e cuidando deles quando estavam doentes. Aguentou submisso o desprezo do pai e a aflição da mãe porque ele, um fidalgo de nascença, adoptou um ofício que o rebaixava na estima dos tolos. Suportou com bom humor o desdém da nobreza e as zombarias do vulgo. Como nosso pai Adão, ganha o seu pão com o suor do seu rosto, sentindo um modesto desvanecimento em saber que o pão que faz é bom. Aceita com gratidão as alegrias da vida e com resignação
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os seus pêsames. Tem socorrido os necessitados. É um homem de trato ameno e sempre bem disposto. Mostra-se amigo de todos. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis e é bem possível que aos olhos divinos, pela sua vida diligente e honesta, a sua inocente alegria, Martim o padeiro O tenha servido melhor do que tu, que buscas a salvação nas orações e na penitência, ou teu irmão Manuel, que faz glória das mulheres e crianças que trucidou e das cidades prósperas que reduziu a desoladas ruínas.
O bispo passou a mão pesadamente pela testa. O seu rosto tinha uma expressão de angústia.
- Tu conheces-me de mais, Domingo - disse ele em voz trémula - , para julgar que eu me tenha abalançado a fazer aquilo sem um ansioso exame de consciência. Eu sabia ser indigno e a minha alma estava aterrada, mas tomei o sinal que me foi concedido por uma ordem de executar aquilo que eu acreditava ser a vontade do Senhor. Enganei-me. E agora meu irmão Manuel está resolvido a tentar aquilo em cuja realização falhei.
- Já em pequeno ele se fazia notar mais pela força corporal do que pelo vigor do entendimento.
- É tão teimoso quanto errado. Os notáveis da cidade estão a animá-lo na sua pretensão para poderem metê-lo à chacota depois. Conseguiu a aprovação do arcipreste e do prior deste convento.
- Deves impedi-lo a todo o custo.
- Não tenho autoridade para tanto.
- Se teu irmão se obstinar nessa loucura, quererá vingar-se da sua decepção naquela infeliz rapariga. O povo tomará o partido dele e não terá compaixão. Em nome da nossa velha
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amizade, suplico-te que a protejas contra a hostilidade e a cega violência do povo.
- Pela Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor, juro-te que darei a minha vida, se preciso for, para salvar a menina de todo o perigo.
Domingo pôs-se em pé.
- Agradeço-te de todo o coração. Adeus, meu caro. Os nossos caminhos são diferentes e não tornaremos a encontrar-nos. Adeus para sempre.
- Adeus. Oh! Domingo, sou um homem bem infeliz! Ora por mim, pede a Deus em todas as tuas orações que me conceda a graça de livrar-me do cruel fardo desta existência.
Estava tão perturbado e tinha uma expressão tão lastimosa que o velho beberrão se compadeceu dele. Levado por um impulso repentino, abraçou o bispo e beijou-o nas duas faces. O pecador estreitou o santo contra o peito e logo se retirou.


XVIII.

Nessa noite aconteceu um facto muito estranho. A lua cheia, prosseguindo na sua rota predeterminada, tinha um brilho tão deslumbrante que o céu límpido estava azul como o manto de veludo que cobria as vestes brancas da Virgem Maria. Os habitantes de Castel Rodríguez dormiam. De repente, todos os sinos da cidade se puseram a badalar com um clamor capaz de ressuscitar os mortos. Despertou os adormecidos e alguns precipitaram-se para as janelas, enquanto outros, semidespidos, apanhando as suas roupas à passagem, corriam para a rua.
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Esse badalar de sinos a uma hora tão insólita significava que o fogo havia irrompido nalguma parte da cidade e as tímidas donas de casa trataram de reunir os seus objectos de valor, pois quando se declarava um incêndio ninguém podia prever até onde se alastraria, e era de bom aviso pôr a salvo tudo quanto se podia antes que as chamas atingissem a casa. Tomados de pânico, alguns foram ao ponto de atirar as roupas de cama pelas janelas e outros começaram a carregar os móveis para fora, depositando-os diante das suas portas.
Os moradores escoavam-se para as ruas, que ficaram regurgitamtes. Levados por um impulso comum, aglomeraram-se na grande praça que constituía o orgulho do lugar. Cada qual perguntava ao seu vizinho onde era o incêndio. Os homens praguejavam e as mulheres torciam as mãos. Corriam de um lado para outro à procura das casas que ardiam. Erguiam os olhos para o céu, buscando o clarão denunciador que devia assinalar o lugar do sinistro. Não se avistava coisa nenhuma. As pessoas que desembocavam na praça, vindas dos diversos quarteirões da cidade, afirmavam que no seu bairro não havia incêndio. Não havia incêndio em parte alguma. Então, como se um vento houvesse soprado de súbito no meio deles, todos tiveram ao mesmo tempo a ideia de que alguns peraltas se estavam divertindo a bater os sinos para fazer o povo sair da cama e meter-lhe medo. Homens furiosos, decididos a moê-los com pancadas, arremessaram-se para as torres das igrejas. Aguardava-os ali um espectáculo pasmoso. As cordas dos sinos esticavam-se e distendiam-se sem que ninguém as puxasse. Contemplaram-nas por um momento, cheios de assombro; depois, carregando tochas e lanternas, subiram a correr as íngremes escadas das torres. Ao alcançarem os campanários,
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o clamor ensurdeceu-os. Os sinos sacudiam-se de um lado para outro muma furiosa oscilação e os badalos atroavam-lhes nos flancos de bronze. Não havia ninguém ali. Homem algum seria capaz de tirar tão violento estrépito daqueles pesados sinos. Dir-se-ia que estes haviam enlouquecido de repente. Tangiam sozinhos.
Anelantes, com o terror nos corações, despenhando-se pelas escadas como se levassem o Diabo nos calcanhares, correram para as ruas e, com palavras doidas e gestos desvairados, contaram o que tinham visto.
Tratava-se de um milagre. Era o Senhor que fazia tanger os sinos, e ninguém sabia se aquilo augurava bem ou mal à cidade. Muitos caíram de joelhos e oraram em altas vozes. Pecadores lembraram-se dos seus pecados e pensaram na cólera divina que os aguardava. Os curas mandaram abrir as portas das igrejas e a multidão invadiu-as, acompanhamdo os padres nas suas preces, em que se suplicava ao Altíssimo piedade para as suas criaturas. Só ao cabo de muito tempo recobraram o sossego e voltaram, silenciosos e mais calmos, para as suas casas.


XIX.

Ninguém sabia onde aquilo tinha começado, se a ideia ocorrera a uma pessoa de grande imaginação ou se fora concebida independentemente por muitas,. Era como a cólera; não se sabe se a trouxe para a cidade um forasteiro vindo de terras estranhas ou se foi um vento funesto que disseminou a doença. Um homem adoece aqui, acolá morre uma mulher, e quando
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despertamos para a consciência do perigo já a epidemia grassa por todas as ruas da cidade e os coveiros não podem cavar sepulturas com a necessária rapidez para enterrar todos os mortos. Ainda pela manhã, espalhara-se pela população de Castel Rodríguez a convicção de que a misteriosa ocorrência da noite anterior tinha uma relação qualquer com o aparecimento da Santa Virgem a Caitalina Pérez. Não se falava de outra coisa. Magistrados discutiam o assunto nas suas câmaras de conselho, sacerdotes nas suas sacristias e nobres nos seus palácios. O povo nas ruas, as donas de casa no mercado e os artífices nas suas oficinas falavam dele, cheios de perplexidade. Os monges nos seus mosteiros e as freiras nos seus conventos não podiam concentrar-se nas suas orações.
Dentro em pouco chegou-se à conclusão de que não podia haver dúvidas quanto à pessoa designada pelas palavras enigmáticas da Santíssima Virgem. Não eram poucos, sobretudo entre o clero secular, os que indagavam se Deus não estaria descontente com a excessiva austeridade do bispo e se um certo elemento de arrogância que havia na sua humildade não incorreria na verdade na reprovação divina. Mas em Dom Manuel de Valero não havia nódoa nem pecha de qualquer sorte. Ele tinha dedicado os melhores anos da sua vida ao serviço do Senhor e de el-Rei. Ao conferir-lhe assinaladas honrarias, Sua Majestade, vice-regente do Todo-Poderoso na terra, apusera o selo da sua aprovação ao valor e à virtude de Don Manuel. Tornara-se manifesto a todos, clérigos e leigos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, que Don Manuel era o homem escolhido para realizar o milagre que a vontade divina ordenara. Uma deputação de eclesiásticos eminentes, membros da aristocracia e pessoas de autoridade no
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conselho municipal, foi visitá-lo para lhe comunicar a sua aprovação unânime. Don Manuel, à sua maneira rude de soldado, respondeu-lhes que estava pronto para colocar-se à sua disposição. Ficou resolvido que a cerimónia se realizaria no da seguinte, na igreja da colegiada. Don Manuel pediu ao arcipreste que o recebesse em confissão naquela tarde e, como pretendia comungar pela manhã, o que só podia fazer em jejum, mandou suspender a ceia que ia oferecer aos seus amigos durante a noite. Era um homem consciencioso e estava decidido a não omitir nada que pudesse tornar a sua intervenção eficaz em ocasião tão solene. Três vezes armado está aquele que, absolvido dos seus pecados e livre de toda a culpa, deposita a sua confiança em Deus.
O prior do convento dominicano informou pessoalmente o bispo da resolução tomada, convidando-o ao mesmo tempo para chefiar os monges que iriam em procissão assistir à cerimónia. Don Blasco percebeu a malícia encoberta sob o oferecimento do prior mas aceitou gravemente, agradecendo-lhe a honra. Não sabia o que fazer. Não ligava importância ao que lhe tinha dito Domingo sobre o seu irmão Martin; conhecia demasiado o gosto de Domingo a quezilar o próximo e o prazer que tinha em defender ideias paradoxais; mas, com tudo isso, tinha a firme convicção de que Don Manuel não era o homem indicado para realizar um milagre. Fugiria de bom grado à obrigação de assistir à sua confusão, mas sabia que se recusasse ir isto seria atribuído ao despeito. Não ficava bem ao seu alto cargo dar aos espíritos maldosos um ensejo de pensar mal dele. Além disso, tinha ainda de cumprir a promessa que fizera a Domingo. Conhecia bem a insensatez e a brutalidade da multidão, quer a constituísse gente bem ou mal nascida,
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e era bem provável que, vendo-se decepcionados na sua esperança de um portento, tirassem vingança na infortunada moça. Achando-se presente, ele poderia salvá-la de tal vandalismo. No da seguinte, pois, com o coração opresso, acompanhado dos seus dois fiéis secretários, dirigiu-se do convento para a igreja à testa dos monges. A igreja achava-se repleta de gente até às portas e contudo o povo, ávido de ver um milagre realizar-se diante dos seus olhos, continuava a fazer força para entrar. Abriram passagem e o bispo, seguido pelos frades, adiantou-se vagarosamente pela nave. Sentou-se numa grande cadeira colocada ao lado e um pouco para a frente do altar-mor. O coro estava cheio de notabilidades locais. Momentos depois Don Manuel entrou com uma comitiva de cavalheiros e sentou-se numa cadeira reservada para ele no outro lado do altar. Vestia uma armadura de parada, o peitoral damasquinado de ouro, e envergava o grande manto da Ordem de Calatrava com a sua cruz verde. Os nobres;, no coro, tinham posto os seus trajes mais sumptuosos. Palestravam e riam, trocando acenos de cabeça e sorrisos entre si. Na nave, a multidão conversava alto e as pessoas chamavam-se umas às outras como se estivessem numa tourada. O bispo observava-os, indignado. Aquilo era um desacato à religião. Estava já disposto a levantar-se e vituperar-lhes aquela irreverente leviandade.
Ao pé dos degraus, apoiando-se na muleta, estava ajoelhada Cattalina.
Ouviram-se os primeiros acordes de um improviso ao órgão, e as floridas notas desceram a bailar jovialmente por sobre as cabeças da congregação. A igreja era de uma arquitectura vasta e simples, mas os sucessivos chefes da grande
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casa de Henríquez tinham-na adornado com um tecto de madeira pintada em estilo "plateresco", encaixando os retábulos em maciças molduras douradas e vestindo as imagens com mantos magnificentes. Os assentos do coro eram lavrados a primor. Nas capelas achavam-se os túmulos - os mais antigos de pedra, austeros e frios, os mais recentes de mármore ricamente esculpido - em que descansavam os restos mortais dos defuntos duques e das suas esposas. Uma luz fosca filtrava-se pelos vitrais e a atmosfera estava pesada de incenso.
Chegaram os sacerdotes, envergando os sumptuosos paramentos que eram usados em tais ocasiões e que tinham sido doados à igreja por damas nobres e devotas. O subdiácono segurava o cálice e a patena, envoltos no véu. A missa foi cantada. Um tremor respeitoso percorreu o vasto concurso de gente, que caiu de joelhos ao ouvir o tinido argentino da campainha que anunciava a elevação da Hóstia e do Cálice. O celebrante, que era o arcipreste, participou da Santa Comunhão e administrou-a sucessivamente a Don Manuel e a Catalina. Tinha chegado afinal o momento que a multidão aguardava com tamanha impaciência. Elevou-se dela um estranho som, que não era um som de vozes nem propriamente um ruído de movimentos ansiosos, mas parecia antes o suspirar do vento nos pinheirais, como se a expectativa da multidão se houvesse tornado audível.
Don Manuel pôs-se em pé e adiantou-se a passos largos para a jovem ajoelhada. Com a sua armadura, o grande manto da ordem a pender dos ombros, formava ele uma figura imponente e magnífica. A cena e a ocasião revestiam-no de uma dignidade desacostumada. Tinha confiança no seu poder. Pousou a mão na cabeça da jovem e, em voz alta, como se
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desse ordem de carregar ao seu regimento, de maneira que foi ouvido com clareza nos mais afastados recantos da igreja, repetiu as palavras que lhe tinham dado para pronunciar:
- Em nome de Deus Padre, Filho e Espírito Santo, ordeno a ti, Catalina Pérez, que te levantes, lances fora essa inútil muleta e caminhes.
A jovem assustada e como que enfeitiçada pela solenidade da ocasião, pôs-se em pé com dificuldade e largou a muleta. Deu um passo à frente e, com um grito de terror, caiu estendida no chão. O milagre falhara mais uma vez.
Levantou-se então uma grande algazarra e dir-se-ia que uma loucura súbita se apoderara da multidão. Homens bradavam, mulheres proferiam gritos agudos. Berravam de fúria.
- Bruxa! Bruxa! À fogueira! À fogueira! Queimem-na!
Arrastados por um impulso repentino, avançaram na direcção do santuário, dispostos a linchar a moça. No seu arrebatamento, arredavam-se uns aos outros do caminho. Alguns caíram e foram brutalmente espezinhados. Os gritos de desespero acresciam o tumulto geral.
O bispo pôs-se em pé de um salto e, com um rápido movimento circular, atravessou o santuário até fazer frente à multidão desvairada. Ergueu os braços acima da cabeça e os seus grandes olhos escuros chamejavam.
- Para trás! para trás! - gritou numa voz de trovão. - Quem sois vós para profanar este lugar? Para trás, digo-vos eu, para trás!
Tão terrificante era o seu aspecto que uma exclamação de horror partiu de todas as gargantas. A multidão estacou de súbito, como se um grande abismo se tivesse aberto diante
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dela. Recuaram. Por um momento o bispo considerou-os com os olhos negros de indignação.
- Vergonha! Vergonha! - gritou ele e, cerrando os punhos, atirou os braços para a frente como se quisesse fulminá-los com o raio da sua cólera. - Ajoelhai, ajoelhai e pedi que vos seja perdoado o insulto que fizestes à casa do Senhor.
A estas palavras, dominados pela força da sua autoridade, muitos caíram de joelhos a soluçar. Outros, como se o atordoamento os paralisasse, ficaram imóveis a contemplar boquiabertos aquela terrível figura. Lentamente, o bispo correu os olhos de um lado para o outro até abranger toda a vasta multidão, e cada um teve a impressão de que esses olhos irados se fixaram particularmente nele. Fez-se silêncio, só cortado pelos soluços histéricos de uma mulher aqui e além.
- Escutai - disse finalmente o bispo. - Escutai o que eu digo. - A sua voz não era já ameaçadora, mas grave, severa e autoritária. - Ouvi. Conheceis as palavras que Nossa Senhora dirigiu a Catalina Pérez e conheceis também os portentos que ocorreram nesta cidade, provocando a confusão e a inquietude nos vossos espíritos. A Santíssima Virgem disse a esta menina que o filho de Dom Juan de Valero que melhor havia servido a Deus tinha o poder de curá-la da sua enfermidade. No nosso condenável orgulho e vaidade, eu que vos falo e meu irmão Don Manuel tivemos a temeridade de julgar que um de nós era a pessoa designada. Fomos amargamente punidos pela nossa presunção. Mas Don Juan de Valero ainda tem outro filho.
A multidão interrompeu-o com risos e vozearia.
- "El panadero"! - gritavam.
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Puseram-se a cantar em tom escarninho, dentro de uma espécie de cadência rude:
- "El panadero, el panadero..."
- Silêncio! - gritou o bispo.
As pessoas da multidão fizeram calar umas às outras.
- Ride! Qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso dos tolos. Que exige Deus de vós senão que sejais justos, ameis a clemência e andeis humildemente nos caminhos do Senhor? Hipócritas e blasfemadores! Impuros! Vergonha, vergonha, vergonha!
Repetiu esta palavra com um tom de desdém cada vez mais pungente, e os que o ouviam recuaram como recuaria um homem a cuja face fosse atirado um copo de água gelada. Era terrível de ver-se a cólera do prelado. Percorreu a multidão com um olhar de causticamte desprezo.
- Estão presentes os familiares do Santo Ofício?
Um som estranho, semelhante a um suspiro de susto, percorreu a multidão, como se todos ao mesmo tempo houvessem sustido o fôlego, pois esses instrumentos da Inquisição provocavam o terror no seio do povo. Ignoravam o significado dessas palavras sinistras e cada qual se pôs a tremer como varas verdes. Vários homens aprumaram-se atrás do Bispo.
- Que se apresentem - disse este.
Como os familiares do Santo Ofício dispunham de poder, influência e sobretudo isenção dos seus terríveis inquéritos, era um cargo muito procurado por homens da mais alta categoria. Havia oito em Castel Rodríguez. Fez-se um silêncio momentâneo,
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enquanto eles se erguiam dos seus assentos e tomavam posição atrás do bispo. Este aguardou até sentir, pelo silenciar dos pés, que todos eles se achavam por trás de si.
- Escutai - disse novamente. O indicador da sua mão estendida parecia acusar cada uma das apavoradas criaturas. - O Santo Ofício nunca procede às pressas nem impelido pela cólera. Faz justiça aos culpados, mas é clemente com o pecador arrependido.
Fez uma pausa, e o silêncio foi medonho.
- Não é a vós, raça de víboras, que compete lançar a mão a esta infeliz menina. Se ela foi iludida ou está possuída de um demónio, é ao Santo Ofício que cumpre tomar conhecimento do facto. Se ela se sair mal na prova, os familiares estão aqui para entregá-la ao tribunal. Mas a prova não se completou ainda. Onde está Martim de Valero?
- Aqui, aqui! - gritaram várias vozes.
- Que ele se apresente.
- Não, não, não!
Era a voz de Martin, o padeiro, que protestava.
- Se ele não vier por sua livre vontade, tragam-no à força - disse rispidamente o bispo.
Houve um arrastar de pés enquanto Martin forcejava com os homens que procuravam arrastá-lo aos puxões e repelões, mas volvidos alguns instantes a multidão abriu alas e ele foi trazido até aos degraus do altar. Os homens voltaram aos seus lugares e deixaram-no consigo mesmo. Viera da oficina ver o milagre de que todos falavam, e estava com a sua roupa de trabalho. Tinha o rosto vermelho do calor dos fornos e pelo vão esforço de escapar às rudes mãos que o arrastavam. O da estava quente e gotas de suor brotavam-lhe da testa. O seu rosto gorducho e bem-humorado estava pesado de consternação.
- Vem - disse o bispo.
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Como que impelido por uma força a que não pudesse resistir, o padeiro subiu os degraus do santuário.
- Mano, mano, a que me queres obrigar? - exclamou ele. - Como poderei eu fazer aquilo que tu não pudeste? Não sou mais do que um homem de trabalho e não sou melhor cristão do que o meu próximo.
- Silêncio!
O bispo não cria em absoluto que o padeiro fosse capaz de realizar um milagre e só pensara nele sob a inspiração do momento, como único meio de salvar Catalina da fúria do populacho. Desejava uma pequena trégua que lhe permitisse apaziguá-los. Sabia que a menina já não correria perigo. Ali estavam os familiares para protegê-la e, como não houvesse cárcere da Inquisição na cidade, conduzi-la-iam para um convento a uma ordem sua e sobraria então tempo para reflectir sobre o que cumpria fazer em seguida. O bispo dirigiu-se mais uma vez ao povo reverente:
- Porventura não "tem o oleiro poder sobre a argila, poder de fazer com o mesmo bloco um vaso de honra e outro de desonra? Deus não faz acepção de pessoas. Aquele que se humilha será exaltado e os soberbos serão humilhados. Tragam a menina.
Catalina jazia no mesmo lugar em que tombara, com o rosto oculto nos braços e o pequeno corpo sacudido de soluços. Ninguém lhe prestava mais atenção do que se ela fosse um cão morto à beira da estrada. Dois familiares puseram-na em pé e colocaram-na em face do bispo. Com a muleta debaixo do braço, ela juntou como melhor pôde as mãos num gesto de súplica. As lágrimas corriam-lhe pdas faces.
- Oh! senhor bispo, senhor bispo, tenha compaixão de
mim! Não tente de novo, suplico-lhe, tudo é inútil! Deixe-me voltar para junto de minha mãe!
- Ajoelha-te - ordenou ele. - Ajoelha-te.
Com um soluço desesperado, a criança deixou-se cair de joelhos.
- Pousa-lhe a mão na cabeça - disse o bispo ao irmão.
- Não posso... Não o farei... Tenho medo!
- Sob pena de excomunhão, ordeno-te que faças o que te digo - tornou o bispo asperamente.
O infeliz foi tomado de um tremor, pois sabia que o irmão não hesitaria em pôr em efeito a sua pavorosa ameaça. Pousou timidamente a mão trémula na cabeça da jovem. Essa mão nem sequer estava limpa.
- Dize agora as palavras que ouviste a teu irmão Manuel pronunciar.
- Não me lembro delas...
- Vou dizê-las, então, e tu as repetirás: "Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero"...
Martin repetiu:
- Eu, Martin de Valero, filho de Juan de Valero...
O bispo pronunciou as últimas palavras fatídicas em voz forte e sonora, mas o irmão repetiu-as num tom apenas perceptível. Catallina pôs-se em pé como lhe ordenavam e, com um gesto desesperado, atirou para longe a muleta. Por um instante vacilou, mas não caiu. Ficou em pé. Então, deixando escapar um grito e um soluço, olvidada do lugar e da ocasião, virou-se e desceu a correr os degraus do santuário.
- Mãe, mãe!
Maria Pérez, que estava com Domingo na igreja, delirante de alegria, abriu caminho por entre a multidão e correu ao
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encontro dela. Catalina atirou-se-lhe aos braços e desatou a chorar.
Por um instante a densa multidão ficou tão aturdida que não pôde mover-se. Contemplavam a cena boquiabertos. Formou-se então tal algazarra como jamais se ouviu outra igual.
- Milagre! Milagre!
Gritavam, batiam palmas, mulheres acenavam com os lenços. Os homens gritavam "olé, olé", como faziam nas touradas, quando um dos toureiros executava um passe perigoso; atiravam os chapéus para cima como costumavam atirá-los aos pés do matador de espada quando, seguido da sua "quadrilha", ele dava volta à arena para receber os aplausos do público. Acima do tumulto elevava-se a voz estridente de alguma mulher a entoar aqui e ali, ao compasso de uma estranha melodia semimourisca, um hino à Virgem Santíssima. Dir-se-ia que a balbúrdia não terminaria mais. Desconhecidos abraçavam-se. Homens e mulheres choravam de alegria. Tinham visto um milagre com os seus próprios olhos.
De repente fez-se um silêncio no meio daquela doida confusão e todos os olhos se voltaram para o bispo. Martin, o tímido, mal atinando com o que havia sucedido, recuara modestamente para o fundo e o dominicano ficara sozinho no alto dos degraus do santuário, com as costas viradas para o altar-mor. Emaciado, mas alto e erecto, envolto no seu hábito remendado e puído, formava uma figura imponente. O maravilhoso, porém, é que ele estava banhado em luz. Não era uma simples auréola a cercar-lhe a cabeça, mas um resplendor que parecia vesti-lo da cabeça aos pés.
- Um santo! Um santo! - clamou o povo, com os olhos cravados no estranho e sensacional espectáculo. - Bendita seja
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aquela que te pôs no mundo! - gritavam. - Agora permites que o Teu servo se retire em paz. Oh, ditoso, ditoso dia!
Falavam às tontas, sem saber o que diziam. Estavam desvairados de alegria, amor e medo. Somente Domingo notou que um dos vitrais tinha um caixilho quebrado e, por uma feliz coincidência, um raio de sol passava pela abertura, incidindo no bispo e banhando-o em glória.
O bispo alçou a mão exigindo silêncio e imediatamente a grande algazarra cessou. Ficou um instante a contemplar, com uma expressão triste e severa, aquele mar de rostos que tinha diante de si. Depois, levantando a cabeça, os trágicos olhos cheios de arrebatamento, como se com os olhos do espírito avistasse as hostes celestiais, começou a recitar o Credo de Niceia em voz lenta e solene. As palavras eram familiares a todos os presentes, que as ouviam todos os domingos na missa; e, num zumbido abafado que se assemelhava a um longínquo arrastar de pés, puseram-se a repetir os artigos de fé um após outro. O bispo terminou a recitação do Credo, virou-se e caminhou para o altar-mor. O halo de luz desaparecera. Levantando os olhos para o vitral, Domingo viu que o sol tinha continuado a sua inexorável viagem através do céu e já nenhum raio de luz penetrava pelo vidro quebrado. O bispo prosternou-se diante do altar e deu graças ao Senhor numa oração muda. O seu torturado coração fora aliviado de um grande peso, pois compreendera, sem sombra de dúvida, que, embora tivesse sido Martin quem pousara a mão na cabeça da jovem paralítica, seu irmão não tinha passado de um instrumento de que aprouvera a Deus lançar mão a fim de que ele, Blasco de Valero, obrasse um milagre para Sua eterna glória. Era ademais um sinal, seguro e indubitável, de que o Senhor lhe perdoava
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o grave pecado que cometera ao permitir, num momento de fraqueza, que o grego fosse garroteado antes de o queimarem. Deus, que vê todas as coisas passadas, presentes e futuras, conhecia o duro coração do descrente e por ísho o tinha condenado à morte eterna. Estava bem lamentar os réprobos nos seus tormentos, mas mostrar-se descontente era impugnar a justiça divina.
O bispo pôs-se em pé e retirou-se lentamente do santuário. Caminhava como que em sonho. Os dois religiosos, seus amigos e secretários, perceberam-lhe a intenção e seguiram-no. Vendo isso, o prior fez um sinal aos seus frades para que o seguissem também e pôs-se a caminhar atrás deles. O bispo deteve-se ao alcançar os degraus.
- Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Padre e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Desceu. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e aos religiosos que o acompanhavam. Os frades entoaram o "Te Deum Laudamus". As vozes fortes e profundas ecoaram por toda a igreja. Como que transportado em êxtase, o bispo passou por entre a multidão ajoelhada, dando a sua bênção ao povo enquanto se dirigia para a saída. Não notou o olhar irónico de Domingo.
Nesse momento os sinos começaram a soar no campanário, e dentro em pouco todos os sinos da cidade badalavam. Não havia nisso, porém, nenhuma intervenção sobrenatural. Don Manuel, como o bom soldado que era, tinha atendido a todos os pormenores e tomara disposições para que, ao serem tangidos os sinos da colegiada em celebração do milagre que
ele estava certo de realizar, todos os sinos das demais igrejas se pusessem a bater também.
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As enormes portas abriram-se de par em par à aproximação do bispo e este saiu para o sol deslumbrante do dia de Agosto. A multidão lançou-se em pós dele e seguiu a procissão de frades até estes chegarem ao convento. Ia o bispo entrar quando uma grande gritaria se levantou da turba. Queriam que ele falasse. Junto à parede do convento havia um púlpito, usado quando a cidade era visitada por algum pregador tão famoso que a igreja do convento não podia comportar a vasta congregação desejosa de ouvi-lo. O prior adiantou-se, transmitindo ao bispo o desejo do povo, rogou-lhe que acedesse. Don Blasco correu os olhos em volta de si, como se ignorasse onde estava. Dir-se-ia que até então não se apercebera das devotas e ansiosas criaturas que lhe seguiam os passos. Deteve-se um instante para reunir as ideias e, sem uma palavra, subiu ao púlpito.
Tinha uma voz magnífica, de tom rico, com uma infinita variedade de inflexão. Começou a falar.
- Ninguém pode sondar as profundezas do coração humano, nem perceber as coisas que ele pensa: como encontrar então a Deus, que criou todas essas coisas-, e conhecer-Lhe o pensamento ou compreender os Seus desígnios?
Os gestos do bispo eram vigorosos e expressivos. A sua voz alcançava os últimos confins da cerrada multidão, e quando ele a baixava num tom compassivo, tal era a beleza da sua dicção que nenhuma das suas palavras deixava de ser ouvida. Quando, numa investida apaixonada contra os pecados humanos, ele a erguia, em todo o seu esplendor, era como o trovão a rolar nas desoladas serras. Fazia de súbito uma pausa,
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e o silêncio no meio daquela torrente de eloquência semelhava o estridor do Juízo Final. O povo encolheu-se confrangido quando ele lhes lembrou a brevidade da existência, os acidentes que perseguem os filhos de Adão desde o berço até à sepultura, a transitoriedade dos seus prazeres, a angústia dos seus sofrimentos; tremeram quando ele lhes pintou os horrores do Inferno e as intermináveis torturas dos réprobos; e choraram quando, com a voz apagada de ternura, ele descreveu com inflexões extáticas a comunhão dos santos e as eternas alegrias do Paraíso. Muitos arrependeram-se dos seus pecados e regeneraram-se desse dia em diante. O bispo terminou por uma grande peroração em louvor da Santíssima Virgem e para glória do Senhor. Jamais tinha falado com mais ardente e patética eloquência.
Quando o conduziram à sua cela, estava tão alquebrado que se deixou deitar na cama dura pelos seus dois fiéis assistentes. Sentia-se devastado pela emoção e pela fadiga.

XX.

Nessa noite houve grande regozijo na cidade. Os taberneiros não tinham mãos a medir. A multidão passeava em redor da praça, palrando sobre o portentoso acontecimento daquele dia. Ninguém duvidava de que tivesse sido o santo bispo o realizador do milagre e todos admiravam a sua modéstia em usar o irmão padeiro como instrumento do seu poder. Ensinara-lhes, assim, que na verdade os humildes devem ser exaltados e os soberbos devem ser humilhados. Muitos
afirmavam tê-lo visto elevar-se no ar - a dois pés do chão, segundo alguns, a quatro, segundo outros - e permanecer suspenso dessa forma, rodeado de glória.

 

 

 


C O N T I N U A