Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CATARINA DE ARAGÃO / Philippa Gregoy
CATARINA DE ARAGÃO / Philippa Gregoy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Catarina de Aragão nasce Catarina, Infanta da Espanha, de pais que eram reis e cruzados. Aos três anos, foi prometida ao príncipe Artur, filho e herdeiro de Henrique VII da Inglaterra, e é educada para ser Princesa de Gales. Sabe que o seu destino é reinar sobre aquela terra distante, húmida e fria.

A sua fé é posta à prova quando o futuro sogro a recebe no seu novo país com uma grande afronta; Artur parece ser pouco mais do que uma criança; a comida é estranha e os costumes vulgares. Lentamente, adapta-se à sua primeira corte Tudor, e a vida como mulher de Artur vai-se tornando mais suportável. Inesperadamente, neste casamento arranjado começa a nascer um amor terno e apai­xonado.

Mas, quando o jovem Artur morre, ela tem de construir o seu pró­prio futuro: como pode ser agora Rainha da Inglaterra e fundar uma dinastia? Só casando com o irmão mais novo de Artur, o alegre, mas mimado, Henrique. O pai e a avó de Henrique são contra; os poderosos progenitores de Catarina revelam-se de pouca utilida­de. No entanto, Catarina é filha de sua mãe e o espírito lutador é indomável. Fará qualquer coisa para alcançar o seu objectivo; mesmo que tal implique contar a maior das mentiras, e mantê-la.

 

 

 

 

                       Granada, 1491

Ouviu-se um grito, seguido do crepitante ruído do fogo que envolvia as cortinas de seda, e em seguida um crescendo de gritos e pânico que se espalhou de uma tenda para a outra acompanhando as chamas, saltando de um estandarte de seda para outro, subindo por cordas e irrompendo através de portas de musselina. Depois, os cavalos relincharam aterrorizados e os homens gritaram para os acalmar, mas o terror das suas próprias vozes tornava tudo pior, até que toda a planície se acendeu com milhares de chamas enraivecidas, e a noite se contorceu com o fumo e se encheu de berros e gritos.

A menina, que saía da cama com medo, chamava a mãe, em espanhol, e gritava:

-     São os Mouros? Os Mouros vieram-nos buscar?

Meu Deus, salva-nos. Estão a incendiar o acampamento! - gri­tava a ama. - Virgem Maria, vão violar-me e trespassar-vos com as suas alfanges.

Mãe! - chamava a criança, esforçando-se por sair da cama. -Onde está a minha mãe?

Correu para o exterior, com a camisa de dormir a bater-lhe nas pernas, as cortinas da tenda agora iluminadas e em chamas atrás de si num interno de pânico. Milhares de tendas do acampamento esta­vam incendiadas, com faúlhas sendo lançadas para o escuro céu nocturno como fontes de fogo. que se alastravam como uma nuvem de pirilampos para propagar o desastre.

- Mãe! - gritava por ajuda.

Das chamas surgiram dois cavalos pretos, enormes, como bestas míticas gigantes que se moviam como uma só, de um negro intenso, contra a claridade do fogo. Lá em cima, mais alto do que alguém poderia imaginar, a mãe da criança inclinou-se para falar com a filha que tremia e cuja cabeça não atingia a altura do ombro do cavalo.

Fica com a ama e porta-te bem - ordenou a mulher, sem ves­tígios de medo na voz.

- Eu e o pai temos de sair a cavalo e mostrar-nos.

Deixai-me ir convosco! Mãe! Vou ficar queimada. Deixai-me ir! Os Mouros vão apanhar-me! - a menina levantava os braços na direcção da mãe.

A luz do fogo cintilava de modo estranho na sua armadura e nas grevas ornamentadas das pernas, como se fosse uma mulher de metal, uma mulher de prata e dourado, enquanto se inclinava para a frente e ordenava:

Se os homens não me virem, vão desertar - afirmou aspera­mente. - Não queres que isso aconteça.

Não quero saber! - A criança choramingava em pânico. - Não me interessa mais nada além de vós! Pegai-me!

O exército está em primeiro lugar. - A mulher, montada no alto do cavalo negro, decretou: - Tenho de ir.

Virou a cabeça do cavalo no sentido contrário ao da filha apa­vorada.

- Volto para te vir buscar - disse, por cima do ombro. - Espera aqui. Agora tenho de fazer isto.

Indefesa, a criança observou o pai e a mãe cavalgarem para longe.

Madre! - protestava. - Madre! Por favor! - mas a mulher não voltou para trás.

Vamos ser queimadas vivas! - Madilla, a sua ama, gritava atrás de si. - Correi, correi e escondei-vos!

Podeis calar-vos! - A criança voltou-se para ela com um súbi­to rancor irritado. - Se eu. a própria Princesa de Gales, posso ser deixada num acampamento a arder, então vós, que, de qualquer forma, não passais de uma mourisca, podeis seguramente aguentar.

Observou os dois cavalos a andar de trás para a frente entre as tendas queimadas. Por todos os sítios onde passavam os gritos eram acalmados e alguma disciplina regressava ao acampamento aterrori­zado. Os homens formavam filas, transportando baldes até ao canal de irrigação, passando do terror à ordem. O general corria desespe­radamente entre os seus homens, batendo-lhes com a parte lateral da espada, obrigando aqueles que ainda há pouco estavam a fugir a formar um batalhão alinhado, e mandou-os colocar em formação de defesa, na planície, para o caso de os Mouros terem reparado no pilar de fogo. através das suas seteiras negras, e resolverem sair para atacar e tomar o acampamento durante o caos. Mas nenhum mouro apareceu nessa noite; mantiveram-se atrás das altas muralhas do seu castelo, interrogando-se quais seriam as mais recentes maldades que os loucos cristãos estariam a inventar na escuridão, demasiado receosos para surgirem no meio do Inferno que os cristãos haviam criado, suspeitando que se trataria de uma qualquer armadilha dos infiéis.

A criança de cinco anos observou a determinação da mãe vencer o próprio fogo. a sua certeza de rainha extinguir o pânico, a sua fé no êxito sobrepor-se à realidade do desastre e da derrota. A meni­na, sentada numa das arcas do tesouro, prendeu a camisa de dormir em volta dos pés descalços, e esperou que o acampamento se acalmasse.

Quando a mãe voltou para junto da filha, encontrou-a de olhos secos e calma.

-Catarina, estás bem? - Isabel da Espanha desmontou do cava­lo e voltou-se para a sua filha mais jovem e mais preciosa, contro­lando-se para não se ajoelhar e abraçar a pequenina. A ternura não educaria esta criança como uma guerreira de Cristo, a fraqueza não deve ser incentivada numa princesa.

A criança era tão dura quanto a mãe.

Eu estou bem agora - disse.

Não tiveste medo?

Nenhum.

A mulher inclinou a cabeça em sinal de aprovação.

- Isso é bom - afirmou. - É o que espero de uma princesa da Espanha.

-E Princesa de Gales - acrescentou a filha.

Esta sou eu, a menina de cinco anos sentada em cima da arca tesouro, de rosto branco como mármore e olhos azuis escancarados de medo, recusando tremer a morder os lábios para não voltar a chorar Esta sou eu concebida num acampamento por pais que são rivais e amantes, nascida num momento intercalado entre duas batalhas, num Inverno de cheias torrenciais, educada por uma mulher forte que usara armadura, em campanha durante toda a minha infância. destinada a lutar pelo meu lugar no mundo, lutar pela minha fé contra outra, lutar pela minha palavra contra a de outro: nascida para lutar pelo meu nome. pela minha fé e pelo meu trono. Sou Catarina. Princesa da Espanha, filha dos dois maio­res monarcas que o mundo alguma vez conheceu: Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Os seus nomes são temidos do Cairo a Bagdade, a Constantinopla e á Índia e mais além. por todos os Mouros, em todas as suas inúmeras nações: turcos, indianos, chine­ses; os nossos rivais, admiradores, inimigos até á morte. Os nomes dos meus pais são abençoados pelo Papa como os mais importantes reis a defenderem a fé contra o poder do Islão, são os mais impor­tantes cruzados da Cristandade, assim como os primeiros reis da Espanha; e eu sou a sua filha mais nova. Catarina. Princesa de Gales, e serei Rainha da Inglaterra.

Desde os três anos estou prometida em casamento ao príncipe Artur, filho do rei Henrique da Inglaterra, e quando fizer quinze anos. navegarei para o seu país num belo navio, com o meu estan­darte desfraldado no topo do mastro, e serei sua mulher e depois sua rainha. O seu país e rico e fértil - repleto de fontes e o som de água a correr, pleno de frutas mornas e perfumado por flores, e será o meu país. tomarei conta dele. Tudo isto foi acordado praticamente desde o meu nascimento, sempre soube que seria assim: e apesar de lamen­tar deixar a minha mãe e a minha casa. afinal, nasci princesa, des­tinada a ser rainha, e sei qual é o meu dever.

Sou uma criança de convicções absolutas, sei que serei Rainha da Inglaterra porque é a vontade de Deus. e a ordem da minha mãe. P. acredito, tal como toda a gente no meu mundo, que Deus e a minha mãe são geralmente da mesma opinião: e a sua vontade con­cretiza-se sempre.

 

De manhã, o acampamento fora de Granada era uma confusão húmida de cortinas chamuscadas, tendas destruídas, pilhas de forra­gem fumegantes, tudo destruído por uma vela colocada sem cuidado, Não existia alternativa senão a retirada. O exercito espanhol cavalgara com todo o orgulho para montar cerco ao último reino dos Mouros na Espanha, e tudo fora destruído pelo fogo. Teria de voltar para trás. para se reagrupar.

- Não, não vamos recuar - ordenou Isabel da Espanha.

Os generais, convocados para uma reunião de emergência sob um toldo ligeiramente queimado, afastavam as moscas que esvoaçavam em volta do acampamento, a banquetearem-se com os destroços.

- Vossa Majestade, por esta estação, perdemos - disse-lhe calmamente um dos generais. - Não é uma questão de orgulho nem de forca de vontade. Não temos tendas, não temos abrigo, fomos destruídos pela má sorte. Temos de voltar e abastecer-nos nova­mente, voltar a montar o cerco. O vosso marido - acenou com a cabeça para o homem moreno e bonito que estava ligeiramente â parte do grupo, a ouvir - sabe que é assim. Todos o sabemos. Voltaremos a montar o cerco, eles não nos derrotarão. Mas um bom general sabe quando tem de retirar.

Todos os homens assentiram com a cabeça. O senso comum ditava que nada poderia ser feito além de libertar os Mouros de Granada do seu cerco durante esta estação. A batalha continuaria. Já durava há sete séculos. Cada ano vira gerações de reis cristãos aumentar as suas terras, em detrimento dos Mouros. Cada batalha fizera recuar um pouco mais para sul o, durante muito tempo, res­peitado domínio muçulmano de al-Andalus. Mais um ano, não faria qualquer diferença. A menina, encostada a um poste húmido de uma tenda que cheirava a cinza molhada, observava a expressão serena da mãe. Nunca se alterou.

- De facto, é uma questão de orgulho - corrigiu-o. - Estamos a lutar contra um inimigo que conhece o orgulho como nenhum outro. Se tugirmos nas nossas roupas chamuscadas, com as carpe­tes queimadas enroladas debaixo do braço, vão rir-se até ao al-Yanna, o seu paraíso. Não posso permiti-lo. Mas, acima de tudo: é a vontade de Deus que combatamos os Mouros, é a vontade de Deus que avancemos, Não é a vontade de Deus que recuemos. Por isso, temos de avançar.

O pai da criança voltou a cabeça com um sorriso espantado, mas não manifestou opinião contrária. Quando os generais olharam para ele, fez um pequeno gesto com a mão.

- A rainha tem razão - afirmou. - A rainha tem sempre razão.

Mas não temos tendas, não temos acampamento! Ele dirigiu a questão â rainha.

O que pensais?

Construímos um acampamento - decidiu.

Vossa Majestade, destruímos tudo o que existia nas várias milhas circundantes. Atrevo-me a dizer que nem sequer um kamiz conseguiríamos costurar para a Princesa de Gales. Não temos teci­do. Não temos tela. Não há cursos de água. não há colheitas nos campos. Rebentamos os canais e colhemos as culturas. Acabamos com tudo; mas somos nós que estamos destruídos.

Construímos em pedra. Presumo que tenhamos pedra?

O rei disfarçou uma breve gargalhada com um som de quem limpava a garganta.

Estamos rodeados por uma planície de rochas áridas, meu amor - afirmou. - Se há algo que temos, é pedra.

Então, construiremos, não um acampamento, mas uma cida­de de pedra.

Não é possível fazê-lo. Ela voltou-se para o marido.

Vai ser feito - disse. - E a vontade de Deus e a minha. Ele acenou com a cabeça.

- Vai ser feito! - Lançou-lhe um sorriso rápido e cúmplice. - É meu dever velar para que a vontade de Deus seja satisfeita; e meu prazer reforçar a vossa.

 

O exército, derrotado pelo fogo, recorreu, em alternativa, aos elementos terra e água. Trabalharam como escravos sob o calor do sol e o frio das noites. Cultivaram, como lavradores, os campos pelos quais pensaram que avançariam triunfantemente. Esperava-se que todos, cavalaria, oficiais, generais, os grandes senhores do país. os primos do rei, trabalhassem sob o calor do sol e se deitassem no chão duro e frio à noite. Os Mouros, observando das ameias altas e impenetráveis do forte vermelho construído na colina, sobre Granada, admitiram que os Cristãos tinham coragem. Ninguém poderia dizer que não eram determinados. E todos também sabiam que estavam condenados. Nenhuma força conseguiria conquistar o forte vermelho de Granada, nunca caíra em dois séculos. Fora cons­truído no alto de um rochedo, sobre uma planície que era uma bacia ampla e alva. Não poderia ser surpreendida por um ataque sub-reptício. O rochedo de rocha vermelha que ascendia da planí­cie transformava-se imperceptivelmente nas paredes de pedra ver­melha do castelo, elevando-se cada vez mais alto; não havia esca­das que atingissem o topo ninguém conseguiria escalar uma encosta tão abrupta.

Talvez pudesse ser atraiçoado por um traidor; mas quem seria louco ao ponto de abandonar o poder firme e sereno dos Mouros, com todo o mundo conhecido atrás de si, com uma fé inegável a apoiá-los. para se juntar à loucura raivosa do exército cristão cujos reis possuíam apenas alguns hectares montanhosos da Europa e que estavam desesperadamente divididos? Quem quereria abandonar al-Yanna, o jardim, que era a imagem do próprio Paraíso, dentro das muralhas do mais bonito palácio da Espanha, o mais belo palácio da Europa, pela anarquia rude dos castelos e fortalezas de Castela e Aragão?

Da África, chegariam reforços para os Mouros, tinham amigos e aliados, de Marrocos ao Senegal. O apoio viria de Bagdade, de Constantinopla. Granada poderia parecer pequena, comparada com as conquistas de Fernando e Isabel, mas, por trás de Granada, esta­va o maior império do mundo - o império do Profeta, louvado seja o seu nome.

Mas, surpreendentemente, dia após dia, semana após semana, aos poucos, combatendo o calor dos dias de Primavera e o frio das noites, os Cristãos fizeram o impossível. Primeiro, foi uma capela construída em círculo, como uma mesquita, uma vez que era o que os construtores locais conseguiam fazer mais rapidamente; em seguida, uma pequena casa, de telhado plano dentro de um pátio árabe, para o rei Fernando, a rainha Isabel e a família real: o Infante, o seu precioso filho e herdeiro, as três filhas mais velhas: Isabel, Maria, Joana, e Catarina, a bebé. A rainha pediu apenas um telhado e paredes, há anos que participava na guerra, não estava à espera de luxos. Depois, havia uma dúzia de abrigos em pedra, em volta, que os grandes senhores aceitaram relutantemente como aposentos. Em seguida, porque a rainha era uma mulher dura, havia estábulos para os cavalos e armazéns protegidos para a pólvora e os precio­sos explosivos, comprados em Veneza, pelos quais penhorou as suas próprias jóias; então, e só então, foram construídas as casernas e cozinhas, armazéns e outros edifícios. Assim, surgiu uma peque­na cidade, construída em pedra, onde antes existira um pequeno acampamento. Ninguém pensou que seria factível; mas, parabéns! foi feito. Chamaram-lhe Santa Fé, e Isabel voltou a triunfar sobre o azar. O amaldiçoado cerco de Granada, levado a cabo pelos deter­minados e loucos reis cristãos, iria continuar.

 

Catarina. Princesa ele Gales, deparou com um dos grandes senhores do acampamento espanhol em conversa sussurrada com os amigos.

Que estais a fazer, Don Hernán? - perguntou com toda a confiança precoce de uma criança de cinco anos que nunca estivera longe da mãe. cujo pai não era capaz de lhe negar nada.

Nada. Infanta - respondeu Hernán Pérez del Pulgar com um sorriso que lhe indicava que podia voltar a perguntar.

Estais sim.

É segredo.

Eu não digo nada.Princesa! Iríeis contar. É um segredo tão grande! Um segredo demasiado grande para uma menina pequenina.

Eu não conto nada! A sério que não conto! - Pensou. -Prometo por Gales.

Por Gales! Pelo vosso próprio país?

Por Inglaterra?

Por Inglaterra? A vossa herança? Ela assentiu com a cabeça.

Por Gales e por Inglaterra e pela própria Espanha.

-Bem, então. Se fazeis uma promessa tão sagrada, vou contar-vos. Jurais que não contais à vossa mãe?

Ela fez sinal com a cabeça, com os seus olhos azuis escancara­dos.

- Vamos entrar em Alhambra. Conheço uma porta, uma porti­nha secreta, que não é bem vigiada, onde podemos forcar a entra­da. Vamos entrar, e adivinhai?

Ela abanou a cabeça vigorosamente, o seu rabo-de-cavalo castanho a oscilar sob o véu. como uma cauda grossa de um cachorro.

- Vamos dizer as nossas orações na mesquita deles. E eu vou deixar uma Avé-Maria gravada num cartaz que fixarei ao chão com um punhal. O que vos parece?

Era demasiado jovem para perceber que eles se dirigiam para uma morte certa. Não fazia ideia das sentinelas em cada porta, da raiva impiedosa dos Mouros. Os seus olhos brilhavam de entu­siasmo.

Ides?

Não é um plano maravilhoso?

Quando ides?

Esta noite! Hoje mesmo!

Não vou adormecer ate voltarem!

Tendes de rezar por mim. e depois ir dormir, e. de manhã, eu próprio voltarei, Princesa, e contarei tudo. a vós e à vossa mãe.

Jurou que nunca adormeceria e manteve-se acordada, bastan­te rígida na sua cama-berço. enquanto a ama se virava de um lado para o outro sobre o tapete junto da porta. Lentamente, as suas pupilas descaíram até as pestanas repousarem nas bochechas redon­das, as mãozinhas descaídas, relaxadas e Catarina adormeceu.

Mas de manhã, ele não apareceu, o seu cavalo não estava nos estábulos e os amigos estavam desaparecidos. Pela primeira vez na vida. a menina tomou consciência do perigo que ele correra -perigo mortal, e por nada, além da glória, e para ser tema de uma canção.

- Onde está ele? - perguntou. - Onde está Hernán? O silêncio da ama. Madilla, avisou-a.

- Vai aparecer? - perguntou, subitamente desconfiada. - Ele vai voltar?

 

 

Lentamente, apercebo-me de que ele talvez não vá voltar, que a vida não é como uma balada, onde uma và esperança triunfa sem­pre e um homem bonito nunca perde a vida na juventude. Mas se ele pode falhar e morrer, o meu pai tambem pode morrer' A minha mãe pode morrer? E eu, posso? Até eu? A pequena Catarina Infanta da Espanha e Princesa de Gales.

Ajoelho-me no espaço circular sagrado da recém-construida capela da minha mãe; mas não estou a rezar. Estou a reflectir neste mundo estranho que subitamente se abre diante de mim. Se estiver­mos certos - e eu tenho a certeza de que estamos; se estes homens jovens e bonitos têm razão - e eu tenho certeza de que têm - se nos e a nossa causa estamos sob a mão especial de Deus. então, como podemos alguma vez falhar?

Mas se percebi alguma coisa mal. então, algo está muito errado, e somos todos de facto mortais, talvez possamos falhar. Mesmo o belo Hernán Perez del Pulgar e os seus amigos risonhos, mesmo a minha mãe e o meu pai podem falhar. Se Hernán pode morrer, o mesmo pode acontecer à minha mãe e ao meu pai. E se é assim, que segurança existe no mundo? Se a Madre pode morrer, como um soldado comum, como uma mula a puxar uma carroça de equipagem, como tenho visto homens e mulas morrerem, como pode o mundo continuar? Como pode existir um Deus?

 

Chegara a altura da audição da sua mãe àqueles que preten­diam apresentar pedidos e aos amigos, e subitamente ali estava ele, nos seus melhores trajos, de barba penteada, os olhos a dançar, e toda a história contada: como se haviam vestido com roupas árabes, de modo a passarem por habitantes da cidade no meio da escuri­dão, entrado sub-repticiamente pela porta das traseiras, corrido até à mesquita, como se haviam ajoelhado e sussurrado uma Avé-Maria e fixado com um punhal a oração, no chão da mesquita, e depois, ao serem surpreendidos por guardas, haviam lutado para escapar, cara a cara, investindo e defendendo-se, as lâminas reluzindo â luz da lua; recuado pela rua estreita, saído pela porta que haviam for­çado alguns momentos antes, e escapado para a noite, antes de ser dado o alarme geral. Sem um arranhão, sem perder nenhum homem. Um triunfo para eles e uma bofetada no rosto de Granada.

Era uma grande partida pregada aos Mouros, era bastante engraçado gravar uma oração cristã em pleno coração do seu lugar sagrado. O gesto mais maravilhoso para os insultar. A rainha estava encantada, assim como o rei, a princesa e as irmãs olhavam para o seu guerreiro, Hernán Pérez del Pulgar, como se fosse um herói dos romances, um cavaleiro da época de Artur de Camelot. Catarina batia as palmas deliciada com a história, e pedia-lhe que a contasse e recontasse, vezes sem conta. Mas no seu íntimo, lá bem no fundo, recordava o arrepio que sentira ao pensar que ele não voltaria.

A seguir, aguardaram a resposta dos Mouros. Era seguro que viria. Sabiam que o inimigo encararia a aventura como o desafio que era, iria haver resposta. Não tardou muito.

A rainha e os filhos visitavam Zubia, uma aldeia perto de Granada, para que Sua Majestade pudesse ver, por si mesma, as paredes inexpugnáveis do forte. Haviam cavalgado com uma guar­da ligeira e o comandante estava lívido de terror quando correu na sua direcção, na pequena praça da aldeia, e gritou que os portões do forte vermelho se haviam aberto, e os Mouros saíam disparados, o exército completo, armados para atacar. Não houve tempo para voltar ao acampamento, a rainha e as três princesas nunca conse­guiriam cavalgar mais depressa do que os cavaleiros mouros, que montavam garanhões árabes, não havia nenhum lugar para se esconderem, nem sequer para pararem.

Numa corrida desesperada, a rainha Isabel subiu para o terra­ço da casa mais próxima, puxando a princesinha pela mão. pelas escadas que se desfaziam, com as irmãs a correrem atras.

-Tenho de ver! Tenho de ver! - exclamava.

- Madre, estais a magoar-me!

Silêncio, filha. Temos de ver o que pretendem.

- Vêm buscar-nos? - choramingava a criança, com a vozinha abafada pela sua própria mão rechonchuda.

- Podem vir. Tenho de ver.

Era um grupo de atacantes, não a cavalaria completa. Eram lide­rados pelo defensor, um gigante, escuro como mogno, de sorriso reluzente sob o elmo, montado num enorme cavalo negro, como se fosse a Noite, cavalgando para os surpreender. O cavalo rosnava como um cão para o guarda de vigia, com os cientes de fora.

Madre, quem é aquele homem? - perguntava num sussurro a Princesa de Gales, observando do ponto protegido no terraço da casa.

É o mouro que se chama Yarfe, e temo que tenha vindo bus­cai o teu amigo, Hernán.

- O cavalo dele é tão assustador, parece que quer morder.

- Cortou-lhe os lábios para fazer com que rosne para nós. Mas não nos assustamos com estas coisas. Não somos crianças assustadiças.

- Não devíamos fugir? - perguntou a criança assustada.

A mãe, observando o desfile dos mouros, nem sequer ouvia os murmúrios da filha.

- Não ides deixá-lo magoar Hernán. pois não. Madre? - choramingava a criança.

Hernán lançou o desafio. Yarfe está a responder. Teremos de lutar - disse, calmamente. - Yarfe é um cavaleiro, um homem de honra. Não pode ignorar o desafio.

Como pode ser um homem de honra, se é um herege? Um mouro?

São homens muito honrados. Catarina, apesar de não serem crentes. E Yarfe é um herói para eles.

Que ides fazer, mãe? Como vamos salvar-nos? Este homem é grande como um gigante.

-Vou rezar - afirmou Isabel. - E o meu defensor. Garallosco de la Vega, vai responder a Yarfe, por Hernán.

Tão calmamente como se estivesse na sua capela em Córdova, Isabel ajoelhou-se no terraço da pequena casa. e indicou por gestos às filhas que fizessem o mesmo. Contrariada, a irmã mais velha de Catarina. Joana, pôs-se de joelhos, as princesas Isabel e Maria, as suas duas outras irmãs, imitaram-na. Catarina viu, espreitando por entre as mãos cerradas, enquanto se ajoelhava em oração, que Maria tremia de medo. e que Isabel, no seu vestido de viúva, estava páli­da de terror.

Pai-nosso que estais no Céu, rezamos pela nossa segurança, pela da nossa causa e pela do nosso exército - a rainha Isabel levantou o olhar para o céu azul brilhante -. rezamos pela vitória do Nosso Defensor. Garallosco de la Vega. neste seu momento de provação.

Amém - disseram as raparigas prontamente, seguindo a direcção do olhar da mãe para onde as fileiras da guarda espanho­la se formavam, atentas e silenciosas.

- Se Deus o proteger... - começou Catarina.

- Silêncio - pediu a mãe gentilmente. - Deixa-o fazer o seu tra­balho, deixa Deus fazer o Seu e deixa-me fazer o meu. - Fechou os olhos em oração.

Catarina voltou-se para a irmã mais velha, puxando-lhe a manga.

- Isabel, se Deus o protege, então, como pode estar em perigo? Isabel olhou para baixo, para a irmã mais nova.

Deus não facilita o caminho daqueles que ama - disse num murmúrio seco. - Envia-lhes provações para os pôr à prova. Aqueles a quem Deus mais ama. são os que mais sofrem. Eu sei. Eu, que perdi o único homem que alguma vez amarei. Tu sabes. Pensa em Job, Catarina.

Então, como poderemos vencer? - perguntou a rapariguinha. - Se Deus ama a Madre, não vai enviar-lhe as piores provações? E se for assim, como é que alguma vez vamos vencer?

Silêncio - pediu a mãe. - Vejam. Vejam e rezem com fé.

O seu pequeno exército e o grupo atacante dos mouros esta­vam frente a frente, prontos para a batalha. Então. Yarfe avançou no seu grande cavalo negro. Algo de cor branca oscilava junto ao chão. preso à cauda negra brilhante do cavalo. Ouviu-se um grito sufoca­do, enquanto os soldados na fileira da frente reconheciam o que transportava. Era o cartaz, com a Avé-Maria que Hernán fixara com um punhal no chão da mesquita. O mouro amarrara-o à cauda do cavalo, como um insulto calculado, e fazia andar a criatura enorme para a frente e para trás. diante das fileiras de cristãos, sorrindo ao ouvir os seus gritos de raiva

- Herege - sussurrou a rainha Isabel. - Um homem amaldiçoado com o Interno. Que Deus o fira de morte e castigue o seu pecado.

O defensor da rainha. De la Vega, voltou o cavalo e cavalgou direcção da pequena casa onde os guardas reais rodeavam o pátio a minúscula oliveira e a porta da entrada. Parou o cavalo ao lado da oliveira e retirou o elmo. olhando para cima. para a sua rai­nha e princesas, que estavam no terraço. O seu cabelo escuro esta­va encaracolado e suado devido ao calor, os olhos escuros faisca­vam de raiva.

-Vossa Alteza, tenho a vossa permissão para responder a este desafio?

Sim - respondeu a rainha, nunca hesitando. - Ide com Deus, Garallosco de la Vega.

Aquele homem enorme vai matá-lo - afirmou Catarina, puxando a manga comprida da mãe. - Dizei-lhe que não pode ir. Yarfe é muito maior. Vai matar De la Vega!

Será feita a vontade de Deus - manteve Isabel, fechando os olhos em oração.

Mãe! Vossa Majestade! Ele é um gigante. Vai matar o nosso defensor.

A mãe abriu os olhos azuis e olhou para baixo, para a filha, vendo que o seu rosto estava vermelho de aflição e os olhos cheios de lágrimas.

- Será feita a vontade de Deus - repetiu firmemente. - Tens deter té de que estás a cumprir a vontade de Deus. Por vezes, não compreenderás, por vezes duvidarás, mas se estiveres a cumprir a vontade de Deus. ele não te enganará, nem tu te podes enganar. Lembra-te disso, Catarina. Se ganhamos este desafio ou se o perde­mos, é indiferente. Somos soldados de Cristo. És um soldado de Cristo. Não importa se sobrevivemos ou se morremos. Morreremos pela fé. isso é tudo o que importa. Esta e a batalha de Deus. Ele enviar-nos-á uma vitória, se não for hoje, será amanhã. E seja quem for a vencer hoje. não duvidamos de que Deus vencerá e de que venceremos no final.

Mas De la Vega... - Catarina protestou, com o seu grosso lábio inferior a tremer.

- Talvez Deus o leve para junto de Si, esta tarde - respondeu a mãe decididamente. - Devíamos rezar por ele.

Joana fez uma cara na direcção da irmã mais nova. mas quan do a mãe se ajoelhou de novo. as duas meninas deram as mãos para se confortarem. Isabel ajoelhou-se ao seu lado, com Maria junto de si. Todas olhavam de soslaio, por entre as pálpebras cerradas, para a planície onde o cavalo baio de batalha de De la Vega se afastava da linha dos espanhóis, e o cavalo negro do mouro trotava orgu­lhosamente diante dos sarracenos.

A rainha manteve os olhos fechados até terminar as orações, nem sequer ouviu o rugido, enquanto os dois homens ocupavam as suas posições, baixavam as viseiras, e seguravam as lanças.

Catarina pôs-se de pé, inclinando-se no parapeito, para poder ver o defensor espanhol. O seu cavalo partiu disparado na direcção do outro, mal se distinguindo as pernas, o cavalo negro surgiu à mesma velocidade da direcção oposta. O choque das duas lanças a bater contra as sólidas armaduras podia ouvir-se no terraço da pequena casa, enquanto os dois homens eram empurrados para fora das selas pela força do impacto, as lanças esmagadas, as protecções do peito amolgadas. Não se assemelhava nada aos duelos atualiza­dos da corte. Era um confronto selvagem, concebido para quebrar um pescoço ou parar um coração.

Ele caiu! Está morto! - gritou Catarina.

Está atordoado — corrigiu-a a mãe. - Vês, está a levantar-se.

O cavaleiro espanhol pôs-se de pé, desequilibrado como se estivesse alcoolizado, devido à forte pancada recebida no peito. O homem maior já estava levantado, tendo posto de lado o capacete e a pesada protecção do peito, e dirigia-se a ele com uma alfange gigan­te em posição, a luz a reflectir na lâmina afiada. De la Vega desem­bainhou a sua arma de grande porte. Ouvia-se um ruído tremendo, â medida que as espadas batiam uma na outra e, depois, os dois homens cruzaram as lâminas e lutaram, cada um tentando forçar o outro a pou­sar a sua. Andaram em círculos, aos tropeções devido ao peso da armadura e â agitação; mas não havia dúvida de que o mouro era o mais forte. Os observadores podiam ver que De la Vega estava a ceder, sob a pressão. Tentou saltar para trás e libertar-se; mas o peso do mouro estava sobre si, e ele tropeçou e caiu. De imediato, o cavaleiro negro estava em cima dele, empurrando-o para o chão. A mão de De la Vega cerrava inutilmente a longa espada, mas não conseguiu levantá-la. O mouro ergueu a espada na direcção da garganta da víti­ma, pronto a desferir-lhe o golpe fatal, o seu rosto era uma máscara negra de concentração, os dentes rangiam. De repente, gritou e caiu para trás. De la Vega rebolou, debatendo-se para se pôr de pé, gati­nhando sobre as mãos e joelhos, como um cão que se levanta.

O mouro estava no chão, agarrado ao peito, com a enorme espada caída ao lado. A mão esquerda de de la Vega segurava um pequeno punhal manchado de sangue, uma arma escondida, utili­zada numa riposta desesperada. Com um esforço sobre-humano, o

mouro pôs-se de pé, virou-se de costas para o cristão e caminhou aos tropeções ate às suas fileiras.

Estou perdido - disse para os homens que corriam para a frente para o apanhar. - Perdemos.

Após um sinal dissimulado, os enormes portões do forte ver­melho abriram-se e os soldados começaram a surgir em grande número. Joana pôs-se de pé.

-     Mãe, temos de fugir! - gritou. - Eles vêm aí! Vêm aos milhares! Isabel manteve-se de joelhos, mesmo quando a filha correu pelo terraço e pelas escadas abaixo.

-Joana, volta aqui - ordenou num tom de voz semelhante a uma chicotada. - Meninas, vão rezar.

Levantou-se e dirigiu-se ao parapeito. Primeiro, olhou para o comando do seu exército, viu que os oficiais estavam a colocar os homens em formação, prontos para a carga, quando o exército muçulmano, aterrorizador no seu avanço, começou a surgir em número elevado. Em seguida, olhou para baixo, para ver Joana, num ataque de pânico, a espreitar em volta do muro do jardim, não sabendo se deveria correr para o cavalo ou voltar para junto da mãe.

Isabel, que amava a filha, não pronunciou uma palavra. Voltou para junto das outras e ajoelhou-se com elas.

- Vamos rezar - disse, e fechou os olhos.

- Ela nem sequer olhou! - repetia Joana incredulamente nessa noite, quando estavam no quarto, a lavar as mãos e a trocar as rou­pas sujas. O rosto de Joana, marcado pelas lágrimas, estava final­mente limpo.

Ali estávamos nós, no meio de uma batalha, e ela fecha os olhos!

Ela sabia que seria mais útil apelar para que Deus interce­desse do que desatar a correr aos gritos - afirmou Isabel incisiva­mente. - E vê-la ali, ajoelhada, à vista de todos, transmitiu mais coragem ao exército do que qualquer outra coisa.

- E se tivesse sido atingida por uma seta ou uma espada?

- Não foi. Não fomos. E vencemos a batalha. E tu, Joana, comportaste-te como um camponês semilouco. Senti vergonha de ti.

Não sei o que se passa contigo. És louca ou apenas má?

-Quem se importa com o que pensas, sua viúva estúpida?

 

                           6 de Janeiro de 1492

Com o passar dos dias os Mouros perderam a coragem. A esca­ramuça da rainha acabou por ser a sua última batalha. O seu líder estava morto, a cidade cercada, estavam a morrer à fome nas terras que os seus antepassados haviam tornado férteis. Pior, o apoio pro­metido da África falhou, os Turcos haviam jurado amizade, mas os janíçaros não chegaram, o rei enlouquecera, o seu filho estava retém dos Cristãos, e diante deles estavam os Príncipes da Espanha, Isabel e Fernando, com todo o poder da Cristandade por trás de si, com uma guerra santa declarada e uma cruzada cristã que ganhava forma com o odor do sucesso. Alguns dias após o confronto dos líderes, Boabdil, o rei de Granada, acordara as condições de paz. e alguns dias depois, numa cerimónia planeada com toda a graça típica dos mouros da Espanha, desceu a pé até aos portões de ferro da cida­de, com as chaves do Palácio de Alhambra sobre uma almofada de seda e entregou-as ao rei e à rainha da Espanha, numa rendição total.

Granada, o forte vermelho que fica sobre a cidade para a proteger e o lindíssimo palácio escondido dentro das suas muralhas -o Alhambra - foram entregues a Fernando e a Isabel.

Vestidos com as maravilhosas sedas do inimigo derrotado, turbantes, chinelos, gloriosos como califas, a família real espanhola, brilhando com o espólio da Espanha, assumiu o controlo de Granada. Nessa tarde. Catarina, a Princesa de Gales, percorreu com os pais o caminho íngreme e as curvas através das sombras das árvores altas, até ao mais belo palácio da Europa. Dormiu essa noite no harém coberto de ladrilhos maravilhosos e acordou ao som da água ondulante das fontes de mármore e imaginou-se uma princesa muçulmana, nascida para o luxo e a beleza, assim como Princesa de Gales.

E esta é a minha vida. desde este dia da vitória. Nascera como uma criança de acampamento, seguindo o exército, de cercos para batalhas, observando coisas que talvez nenhuma criança devesse observar, sentindo os temores dos adultos todos os dias. Passara por cadáveres de soldados que apodreciam ao sol da Primavera, porque não havia tempo para os enterrar, cavalgara atrás de mulas chicoteadas para passarem por cima de corpos manchados de sangue.

puxando as armas de meu pai peias passagens altas da Sierra. Vira a minha mãe esbofetear um homem que chorara de exaustão. Ouvi crianças da minha idade chorarem pelos fiais, queimados na fogueira, por heresia; mas neste momento, quentão nos vestimos de sedas bordadas e entramos no forte vermelho de Granada e passa­mos os portões para encontrar a pérola branca que é o Palácio de Alhambra, neste momento, tornei-me princesa, pela primeira vez.

Tornei-me uma menina educada no mais belo palácio da Cristandade, protegida por um forte impenetrável, abençoada por Deus entre todas as outras, tornei-me uma menina de uma confiança imensa e inabalável no Deus que nos conduziu à vitória, e no meu destino como a Sua filha preferida e a filha preferida da minha mãe.

O Alhambra provou-me. de urna vez por todas, que eu fui especialmente favorecida por Deus. tal como a minha mãe. Eu fui a sua filha escolhida, educada no mais belo palácio da Cristandade, e des­tinada ás coisas mais elevadas.

 

A família espanhola com os seus oficiais na dianteira e a guarda real atrás, gloriosos como sultões, entrou no forte pela enorme torre quadrada, conhecida como Porta da Justiça. Quando a sombra do primeiro arco da torre incidiu no rosto voltado para cima de Isabel, os trompeteiros tocaram um grito de desafio, tal como Josué diante dos muros de Jericó, como se afastassem assim os demónios do infiel que aí permaneciam. De imediato se ouviu um eco da explosão de som. um suspiro estremecedor de todos os que esta­vam reunidos depois da porta de entrada, empurrados contra as paredes douradas, as mulheres semiveladas nas suas túnicas, os homens de pé orgulhosos e em silêncio, observando, na expectati­va do que os conquistadores fariam a seguir. Catarina olhou por cima do mar de cabeças e avistou as formas fluidas da escrita árabe gravadas nas paredes resplandecentes.

- O que diz? - perguntou a Madilla, a sua ama. Madilla olhou de soslaio para cima.

- Não sei - afirmou mal-humorada. Negava sempre as suas raí­zes muçulmanas. Sempre tentara fingir que não sabia nada sobre os Mouros ou as suas vidas, apesar de ter nascido e sido criada como moura e de só se ter convertido - segundo Joana - por conveniência.

- Dizei-nos, ou beliscamos-vos - propôs Joana docemente.

A jovem mulher franziu o sobrolho na direcção das duas irmãs.

- Diz: "Deus permita que a justiça do Islão prevaleça aqui dentro".

Catarina hesitou por um momento, ouvindo a aura orgulhosa da certeza, uma determinação para imitar a voz da mãe.

Bem, Ele não permitiu - comentou Joana de modo inteligen­te. - Alá desertou de Alhambra e Isabel chegou. E se vocês, Mouros, conhecessem Isabel como nós conhecemos, saberiam que o maior poder está a chegar e o poder menor está a sair.

Deus abençoe a rainha - respondeu Madilla prontamente. -Eu conheço suficientemente bem a rainha Isabel.

Enquanto falava, as grandes portas à sua frente, de madeira negra enfeitada com pregos negros, abriram-se nas suas dobradiças negras, e com mais um toque de trompetas, o rei e a rainha entra­ram a passos largos no pátio interior.

Como dançarinos que tivessem ensaiado até obterem uma coreografia perfeita, a guarda espanhola dividiu-se entre o lado direi­to e esquerdo, no interior das muralhas da cidade, verificando se o local era seguro, e se não haveria soldados desesperados a preparar uma última emboscada. O grande forte de Alcazaba, construído como a proa de um navio, projectando-se sobre a planície de Granada, ficava à esquerda, e os homens afluíram aí, correndo pela praça da parada, rodeando as muralhas, subindo e descendo às torres, a correr. Por fim, Isabel, a rainha, levantou o olhar para o céu, prote­geu os olhos com a mão onde retiniam as pulseiras de ouro muçul­manas, e riu-se bem alto ao ver o estandarte sagrado de Santiago e a cruz prateada da cruzada a esvoaçar, onde antes estivera o crescente.

Em seguida, voltou-se para ver os empregados domésticos do palácio aproximando-se lentamente, de cabeça inclinada. Eram lide­rados pelo grão-vizir, cuja altura era enfatizada pelas roupas fluidas, os olhos negros penetrantes encontraram os seus. observando o rei Fernando ao seu lado, e a família real atrás: o príncipe e as quatro princesas. O rei e o príncipe estavam vestidos ao estilo faustoso dos sultões, vestindo túnicas ricamente bordadas por cima das calças, a rainha e as princesas usavam as túnicas kamiz tradicionais, fabrica­das com as melhores sedas, por cima de calças de linho brancas, com véus dependurados na cabeça, presos atrás por filetes de ouro.

-Vossa Alteza Real, é minha honra e dever dar-vos as boas-vin­das ao Palácio de Alhambra - afirmou o grão-vizir, como se fosse a coisa mais natural do mundo entregar o mais belo palácio da Cristandade a invasores armados.

A rainha e o marido trocaram um breve olhar. _ Podeis levar-nos para dentro - afirmou. O grão-vizir fez uma vénia e indicou o caminho. A rainha olhou para trás. para os seus filhos.

Venham, meninos - disse e foi à sua frente, passando pelos jardins que rodeavam o palácio, descendo alguns degraus e pas­sando pela discreta porta de entrada.

Esta é a entrada principal? - hesitava em frente da pequena porta, aberta numa parede disfarçada.

O homem fez uma vénia.

- É sim, Vossa Alteza.

Isabel não disse nada, mas Catarina viu-a levantar as sobran­celhas como se não gostasse muito a ideia, e todos entraram.

Mas a pequena porta de entrada é como um buraco de fecha­dura que dá para uma arca do tesouro composta por caixas, uma abrindo-se a partir da outra. O homem conduz-nos através delas, como um escravo abrindo portas para um tesouro. Os seus nomes são um poema: a Sala Dourada, o Pátio dos Mirtilos, a Sala dos Embaixadores, o Pátio dos Leões ou a Sala das Duas Irmãs. Levaremos semanas a encontrar o caminho de uma sala decorada com ladrilhos sofisticados para outra. Demoraremos meses a deixar de nos maravilhar com o prazer do som da água a correr pelos regos de mármore nos quartos, fluindo para uma fonte de mármore que está sempre a transbordar, com a mais límpida e fresca água das montanhas. E nunca me cansarei de olhar através do rendilhado de estuque branco para a planície lã longe, as montanhas, o céu azul e as colinas douradas. Cada janela é como uma moldura de um quadro, foram concebidas para nos fazer parar, observar e maravilharmo-nos. Todas as molduras das janelas são como bordados de tenda branca - o estuque é tão fino, tão delicado, como trabalho de açúcar feito por pasteleiros, não se assemelha a nada que seja real.

Passamos ao harém por ser uma das salas mais cómodas e convenientes para mim e as minhas irmãs, e os empregados do harém acendem as brasas nas noites frias, e espalham as ervas de cheiros, orno se fôssemos as sultanas que viveram recluidas por trás dos biombos, durante tanto tempo. Sempre usámos roupas mouras em casa e, por vezes, em grandes ocasiões de Estado, por isso ainda lá se ouve um murmúrio de sedas e o bater dos chinelos no chão de mármore, como se nada se tivesse alterado. Agora, estudamos onde as escravas liam, passeamos nos jardins que foram plantados para deleitar as favoritas do sultão. Comemos os seus frutos, adoramos o sabor dos seus sorvetes. prendemos as suas flores em guirlandas para enfeitar as nossas cabeças, e corremos pelas suas alamedas onde o forte perfume a rosas e a madressilvas é doce pela frescura da manhã.

Banhamo-nos no hammam, permanecendo imóveis como estátuas, enquanto os empregados nos ensaboam todo o corpo com um sabão rico. que cheira a flores. Depois, vertem jarros dourados de água quente, um a seguir ao outro, molhando-nos dos pés à cabeça, fuira nos lavar. Somos hidratadas com óleo de rosas, embrulhadas em finos lençóis e deitamo-nos. semiembriagadas de tanto prazer sensual, na mesa morna de mármore que domina a sala. sob o tecto dourado cujas aberturas, em forma de estrela, deixam passar os raios estonteantes de sol para a sombreada paz do lugar. I ma rapa­riga arranja-nos as unheis dos pés, enquanto outra trabalha as nossas mãos, limando-nos as unhas e pintando padrões delicados de henna. Deixamos a mulher mais velha acertar-nos as sobrancelhas e pintar-nos as pálpebras. Somos servidas como se fôssemos sultanas, com todas as riquezas da Espanha e todos os luxos do Oriente, e rendemo-nos completamente ao prazer do palácio. Cativa-nos, somos rapidamente submetidos; os denominados vitoriosos.

Mesmo Isabel. que chora a morte elo marido, recomecei a sorrir. Até Joana, normalmente tão mal-humorada e rabugenta, está em paz. E eu torno-me a mascote da corte, a preferida dos jardineiros, que me deixam apanhar OS pêssegos das árvores, a querida do harém onde me ensinam a brincar, a dançar e a cantar, e a favorita da cozinha, onde me deixam vê-los a preparar os bolos e pratos doces com mel e amêndoas da Arábia.

O meu pai reúne-se com emissários estrangeiros na Sala dos Embaixadores, leva-os para a sala dos banhos para manterem conversações, como qualquer sultão ocioso. A minha mãe senta-se de pernas cruzadas no trono dos Nasrid que reinaram aqui por várias gerações, os seus pés despidos, metidos em chinelos ele pele macia, o tecido elo seu kamiz caindo em seu redor. Ouve os emissários do próprio Papa, numa sala ele audiências cujas paredes esteio revestidas ele ladrilhos coloridos e onde oscila uma luz pagã. Para ela, é como estar em casa, pois foi criada no Alcazar ele Sevilha, outro palácio mouro. Passeamos nos seus jardins, banhamo-nos no seu hammam, calçamos os seus chinelos de pele macia perfumados e vivemos uma vida mais refinada e luxuosa do que poderiam sonhar em Paris, Londres ou Roma. Vivemos graciosamente. Vivemos, tal como sempre aspirámos virer, como mouros. Os nossos compatriotas cristãos criam cabras nas montanhas, rezam à Nossa Senhora em monumentos à beira da estrada, vivem aterrorizados pelas superstições e cheios de doenças, vivem no meio da sujidade e morrem jovens. Nós tomos ensinados pelos professores muçulmanos, examinados pelos seus médicos, estudamos as estrelas no céu, a que eles deram nome. contamos pelos seus números que começam no zero mágico, comemos os seus frutos doces e deleitamo-nos nas águas que correm pelos seus aquedutos. A sua arquitectura agrada-nos. a cada virar de esquina sabemos que riremos no meio da beleza. Agora, o seu poder protege-nos; o Alcazaba é, de facto, invulnerável a ataques, aprendemos a sua poesia, rimo-nos dos seus jogos, deliciamo-nos nos seus jardins, com os seus frutos, tomamos banho nas águas que fizeram fluir. Somos os vitoriosos, mas eles ensinaram-nos conto reinar. Por vezes, penso que nos é que somos os bárbaros, como os que vieram depois dos Romanos ou dos Gregos, que podiam invadir os palácios e capturar os aquedutos e, depois, sentar-se como macacos num trono, brincando com a beleza sem a compreender.

Pelo menos, não mudámos de fé. Todos os empregados do palácio têm de respeitar os credos da Única Igreja Verdadeira. As cornetas da mesquita foram silenciadas, não haverá mais chamamentos para as orações aos ouvidos da minha mãe. E se alguém discordar, pode partir para a África de imediato, converter-se de imediato, ou encarar as fogueiras da Inquisição. Não nos deixamos amolecer com os espólios da guerra, nunca nos esquecemos de que somos os vitoriosos e de que conquistámos a nossa vitória, pela força das armas e pela vontade de Deus. Fizemos uma promessa solene ao pobre rei Boabdil, de que o seu povo, os Muçulmanos, ficaria tão seguro sob o nosso governo como os cristãos estavam sob o seu. Prometemos a "convivência" - um modo de vivermos em conjunto e eles acreditam que construiremos uma Espanha onde qualquer pessoa, mouro, cristão ou judeu, possa viver tranquilamente e com amor próprio, uma vez que todos somos "Povos do Livro". O seu erro foi que pretendiam essas tréguas, e confiaram nelas, e nós- como se verificou - não.

Traímos a nossa palavra em três meses, expulsando os Judeus e ameaçando os Muçulmanos. Todos têm de se converter à Fé Verdadeira e, depois, se houver alguma sombra de dúvida, ou qualquer suspeição contra eles, a sua fé será testada pela Santa Inquisição. É a única forma de construir uma nação: através de uma fé. É a única forma de criar um povo a partir da grande diver­sidade que fora Al Anddlus. A minha mãe mandou construir uma capela na sala do conselho e, onde antes estava escrito. "Entrai e perguntai. Não temais procurar a justiça, porque aqui a encontrareis", na bela escrita árabe, reza a um Deus mais inflexível e intolerante do que Alá; e já ninguém vem aqui procurar justiça.

Mas nada pode mudar a natureza do palácio. Nem sequer o som dos pés dos nossos soldados a marcharem sobre o chão de mármore pode ameaçar a secular sensação de paz. Pedi a Madilla que me ensinasse o que dizem as inscrições fluidas em todas as divisões, e a minha preferida não é a que se refere à promessa de justiça, mas as palavras escritas no Pátio das Duas Irmãs, que diz: "Alguma vez haveis observado tão belo jardim?", e depois respondem a si mesmas: "Nunca vimos um jardim com tal abundância de fruta, tão doce nem tão perfumada:"

Não é verdadeíramente um palácio, nem sequer como aqueles que conhecemos em Cordova ou Toledo. Não é um castelo, nem um forte. Foi construído inicialmente e sobretudo como um jardim, com salas de um luxo sofisticado, para que fosse possível viver ao ar livre. É uma série de pátios concebidos tanto para flores como para pes­soas. P um sonho de beleza: paredes, azulejos, pilares fundindo-se com flores, escadas, fruta e vegetação. Os Mouros acreditam que um jardim é um paraíso na Terra e gastaram fortunas, ao longo dos séculos para conceber este "al-Yanna": a palavra que significa jardim, lugar secreto e paraíso.

Sei que o adoro. Apesar de ser uma criança, sei que este e um local excepcional; que nunca encontrarei um lugar tão bonito. E mesmo sendo criança, sei que não posso ficar aqui. É a vontade de Deus e a vontade da minha mãe que eu deixe al-Yanna. o meu lugar secreto, o meu jardim, o meu paraíso. Seria meu destino encontrar o lugar mais belo do mundo inteiro quando tenho apenas seis anos, e, depois, deixá-lo quando tivesse quinze; com tantas sau­dades de casa como Boabdil; como se a felicidade e a paz não passassem de um breve período na minha vida.

 

       Palácio de Dogmersfield, Hampshire, Outono de 1501

Estou a dizer-vos que não podeis entrar! Mesmo que fôsseis o Rei da Inglaterra em pessoa, não poderíeis entrar.

Eu sou o Rei da Inglaterra, - afirmou Henrique Tudor, pouco contente. - E ou ela sai imediatamente, ou eu entro e o meu filho entra a seguir.

A Infanta já avisou o rei de que não pode vê-lo - disse a aia secamente. - Os nobres da sua corte foram ter com o rei para lhe explicar que ela se encontra em reclusão, como senhora da Espanha. Achais que o rei da Inglaterra cavalgaria pela rua abaixo, quando a Infanta se recusou a recebê-lo? Que tipo de homem pen­sais que ele é?

Exactamente como este - afirmou e lançou o punho com o enorme anel de ouro na direcção do seu rosto. O Conde de Cabra entrou no vestíbulo apressado, reconhecendo imediatamente o homem magro de quarenta anos que estava a ameaçar a aia da Infanta com um punho cerrado, com alguns empregados assustados e gritou:

- O rei!

Ao mesmo tempo, a aia reconheceu a nova insígnia da Inglaterra, as rosas combinadas de York e Lancaster, e retraiu-se. O conde deteve-se e fez uma grande vénia.

- É o rei - sussurrou, com a voz abafada por estar a falar com a cabeça entre as pernas. A aia soltou um suspiro de horror e mergulhou numa profunda reverência.


- Levantai-vos - disse o rei bruscamente. - E ide buscá-la.

Mas ela é a Princesa da Espanha. Nossa Graça - respondeu a mulher levantando-se, mas com a cabeça ainda inclinada. - Deve permanecer em reclusão. Não pode ser vista por vós antes do dia do casamento. É a tradição. Os seus nobres foram explicar-vos...

É a vossa tradição. Não é a minha tradição. E uma vez que ela é minha nora no meu país, sob as minhas leis. vai obedecer à minha tradição.

- Ela recebeu uma educação bastante cuidada, modesta e adequad...

- Então, vai ficar muito chocada quando encontrar um homem furioso no quarto. Minha senhora, sugiro-vos que a tragais aqui ime­diatamente.

Não o farei. Vossa Graça. Eu recebo ordens da própria rainha da Espanha, e ela encarregou-me de me certificar de que era pres­tado todo o respeito à Infanta e de que o seu comportamento era sempre...

Minha senhora, ou aceitais as minhas ordens; ou recebereis a minha ordem de despedimento. Não me interessa. Agora, trazei a rapariga cá fora ou eu juro pela minha coroa que entro e. se a apa­nho despida na cama, não vai ser a primeira mulher que vi em situação semelhante. Mas é melhor ela rezar para ser a mais bonita.

A aia espanhola empalideceu bastante com o insulto.

- Escolhei — disse o rei friamente.

- Não posso ir buscar a Infanta - respondeu com teimosia.

Deus meu! Está decidido! Dizei-lhe que vou entrar, agora mesmo.

Ela andou para trás como uma vaca furiosa, o rosto branco de choque. Henrique deu-lhe alguns momentos para se preparar e. em seguida, enganou-a. entrando atrás dela.

O quarto estava iluminado apenas por velas e pela luz da lareira. Os cobertores da cama estavam puxados para trás, como se a rapariga se tivesse levantado à pressa. Henrique teve a noção da intimidade, de estar no seu quarto, com os lençóis ainda quentes, o seu cheiro que permanecera no espaço fechado, antes de olhar para ela. Estava de pé. ao lado da cama, uma mãozinha pálida em cima do pilar de madeira gravada. Tinha uma capa azul escura sobre os ombros, e a camisa de dormir branca enfeitada por renda valiosa espreitava pela abertura da frente. O seu forte cabelo castanho, entrançado para dormir, caía-lhe pelas costas abaixo, mas o seu rosto estava completamente protegido por uma mantilha de renda preta, colocada à pressa.

Dona Elvira colocou-se entre a rapariga e o rei.

- Esta é a Infanta - disse. - Usará o véu até ao dia do casamento.

- Não com o meu dinheiro - retorquiu Henrique Tudor amar­gamente. - Quero ver o que comprei, obrigado.

Deu um passo em frente. A ama desesperada quase se pôs de joelhos.

- A sua modéstia...

- Ela tem alguma marca horrível? - perguntou, dando voz aos seus receios mais profundos. - Alguma cicatriz? Ficou marcada da varíola e não me disseram?

- Juro que não!

Silenciosamente, a rapariga estendeu a mão pálida e retirou a bainha ornamental de renda do seu véu. A ama suspirou em protesto, mas não pôde fazer nada para impedir a princesa de levantar o véu, e de o lançar para trás. Os seus olhos azuis claros fixaram o rosto enrugado e irritado de Henrique Tudor sem hesitações. O rei analisou-a e suspirou de alívio pela sua aparência.

Era muito bonita: um rosto suave, redondo, um nariz direito e longo, uma boca cheia, carnuda, sensual. Pôde ver que o seu quei­xo estava levantado; o seu olhar era desafiador. Não era uma dama a tremer, temendo ser violada. Era uma princesa lutadora, cheia de dignidade, mesmo no seu mais assustador momento de embaraço.

Ele fez uma vénia.

- Sou Henirque Tudor, Rei da Inglaterra, afirmou. Ela fez uma reverência.

O rei deu um passo em frente e apercebeu-se de que ela esta­va a controlar-se para não recuar. Segurou-a firmemente pelos ombros, e beijou-lhe uma bochecha morna e macia, e depois a outra. O perfume do seu cabelo e o odor quente do seu corpo inva-diram-no, e sentiu o desejo a pulsar na sua virilha e têmporas. De imediato, recuou e largou-a.

Sede bem-vinda a Inglaterra - disse. Pigarreou. - Perdoareis a minha impaciência em ver-vos. O meu filho também vem a caminho, para vos visitar.

- Perdoai-me - disse geladamente, falando num francês perfeito - Só fui informada de que Vossa Graça insistia na honra desta visita inesperada há alguns momentos.

Henrique conteve-se um pouco perante a chicotada de mau-humor por ela demonstrado. Tenho o direito... Ela encolheu os ombros, um gesto totalmente espanhol.

- Claro. Tendes todos os direitos sobre mim.

Perante as palavras ambíguas e provocadoras, tomava nova­mente consciência da proximidade dela: da intimidade do pequeno quarto, a cabeceira da cama enfeitada com ricos tecidos, os lençóis convidativamente empurrados para trás, a almofada que ainda tinha a marca da sua cabeça. Era um cenário de violação, não de sauda­ções reais. Voltou a sentir um fluxo secreto de desejo.

- Vejo-vos lá fora - disse abruptamente, como se fosse culpa dela o facto de não conseguir livrar-se daquela imagem, de como seria possuir aquela beleza imaculada que comprara. Como seria se a tivesse comprado para si, em vez de ser para o filho?

- Com todo o prazer - respondeu friamente.

O rei saiu do quarto bruscamente, e quase foi contra o Príncipe Artur, que andava, ansiosamente, de um lado para o outro, diante da porta.

- Louca - comentou.

O príncipe Artur, pálido de nervos, afastou a franja loura do rosto e permaneceu imóvel, sem dizer nada.

Assim que puder, mando aquela aia embora - disse o rei. -E todos os outros. Ela não pode criar uma Espanha pequena na Inglaterra, meu filho. O país não tolera isso, e eu seguramente tam­bém não aceitarei.

As pessoas não se opõem. Os aldeões parecem adorar a prin­cesa - sugeriu Artur, suavemente. - A escolta dela diz...

Porque ela usa um chapéu ridículo. Porque é estranha: espa­nhola, invulgar. Porque é jovem e - resumiu - bonita.

- É? - suspirou. - Quer dizer: é bonita?

- Não acabei de entrar para me certificar? Mas nenhum inglês vai tolerar qualquer disparate espanhol, quando deixar de ser novi­dade. Nem eu. Este é um casamento para fortalecer uma aliança; não para adular a sua vaidade. Quer lhes agrade, quer não, ela vai casar convosco. Quer vos agrade quer não, ela vai casar convosco. Quer lhe agrade quer não, ela vai casar convosco. E é bom que venha aqui fora já ou eu não vou gostar dela e isso é a única coisa que pode fazer diferença.

Tenho de sair, consegui apenas o mais breve dos adiamentos da pena e sei que ele me espera do outro da porta e já demonstrou, de modo bastante persuasivo, que se não for ter consigo a montanha virei a Maomé, e serei novamente envergonhada. Afasto Dona Elvira, como aia não pode proteger-me neste momento, e dirijo-me à porta do quarto. Os meus empregados estão petrificados, como escravos enfeitiçados num conto de fadas, por este comportamento extraordinário vindo de um rei. O coração pulsa-me nos ouvidos e eu conheço o embaraço de uma rapariga, por ter ele se apresentar em público, mas também o desejo de um soldado de deixar que a batalha comece, a avidez de conhecer o pior, mas mais de encarar o perigo do que de lhe escapar.

Henrique da Inglaterra quer que conheça o filho, diante do seu grupo de acompanhantes, sem cerimónias, sem dignidade, como se não passássemos de um bando de camponeses. Assim seja. Não vai encontrar uma Princesa da Espanha a recuar por medo. Cerro os dentes, e sorrio como a minha mãe me ensinou.

Aceno para o meu arauto, que está tão espantado como o resto dos meus companheiros.

- Anunciai-me- ordeno-lhe.

Com o rosto branco de susto, ele abre a porta.

- A Infanta Catarina, Princesa da Espanha e Princesa de Gales - grita.

Esta sou eu. Este é o meu momento. Este é o meu grito de guerra. Dou um passo em frente.

A Infanta Espanhola - de rosto exposto ao olhar de todos os homens - permaneceu na ombreira escurecida da porta e depois entrou na sala, apenas uma pequena chama de cor em ambas as faces denunciava a sua provação.

Ao lado do pai, o príncipe Artur engolia em seco. Era bastan­te mais bonita do que ele imaginara, e um milhão de vezes mais altiva. Estava vestida com um roupão de veludo negro, que se abria para revelar uma camisa de dormir cor de pele, com um decote quadrado e profundo, cobrindo os seus seios fartos, ao pescoço, trazia várias fiadas de pérolas. o cabelo castanho, libertado da trança, caía-lhe pelas costas numa enorme onda de vermelho dourado. Na cabeça, trazia uma mantilha de renda preta atirada determinadamente para trás . esboçou uma grande reverência e voltou a levantar-se de cabeça bem erguida, graciosa como uma bailarina.

Peço perdão por não estar preparada para vos saudar - disse em francês. - Se soubesse que viríeis, estaria preparada.

Surpreende-me que não tenhais ouvido o barulho - res­pondeu o rei. - Eu estava a discutir à vossa porta, há quase dez minutos.

- Julguei que fossem dois sentinelas a gritar - disse friamente. Artur conteve um suspiro de horror perante a impertinência;

mas o seu pai observava-a com um sorriso, como se tratasse de uma nova potra que revelasse um espírito prometedor.

- Não. Era eu; estava a ameaçar a vossa dama de companhia. Lamento ter sido obrigado a forçar a entrada.

Ela inclinou a cabeça.

Era a minha aia, Dona Elvira. Lamento se foi desagradável convosco. O seu inglês não é muito bom. Não deve ter percebido o que pretendíeis.

Eu queria ver a minha nora e o meu filho queria ver a noiva, e eu espero que uma princesa inglesa se comporte como uma prin­cesa inglesa, e não como uma maldita rapariga confinada a um harém. Pensei que os vossos pais haviam derrotado os Mouros. Não esperei vê-los transformados em vossos modelos.

Catarina ignorou o insulto com um leve rodar de cabeça.

- Tenho a certeza de que me ensinareis boas maneiras inglesas - afirmou. - Quem poderia ser melhor para me aconselhar? - voltou-se para o príncipe Artur e fez-lhe uma reverência real. - Meu senhor.

Ele hesitou na vénia que lhe devolveu, espantado com a serenidade que ela transmitia neste momento tão embaraçoso. Procurou o presente dela no casaco, brincou com a pequena bolsa de jóias, deixou-a cair, voltou a apanhá-la e finalmente entregou-lha. sentin­do-se ridículo.

Ela pegou nas jóias e inclinou a cabeça em agradecimento, mas não as abriu.

-Já haveis jantado. Vossa Graça?

Comeremos aqui - respondeu ele bruscamente. - Já pedi o jantar.

Posso então ofecerer-vos uma bebida? Ou um lugar para vos lavardes e trocardes de roupa antes de jantar? - observou a sua altura e magreza de modo avaliador, desde a lama que salpicava o seu rosto pálido e enrugado, ás suas botas empoeiradas. Os ingleses formavam uma nação prodigiosamente suja, nem sequer uma casa enorme como esta possuía um hammam adequado ou água canali­zada. - Ou talvez, não queirais lavar-vos?

O rei soltou uma gargalhada áspera.

_ Podeis pedir-me uma cerveja e ordenar que me enviem roupa lavada e água quente ao melhor quarto, e trocarei de roupa antes do jantar - levantou uma mão. - Não tendes de interpretar isto como um cumprimento a vós. Eu lavo-me sempre antes de jantar.

Artur viu-a morder o lábio inferior com pequenos dentes brancos como se estivesse a controlar para não responder sarcasticamente.

- Sim. Vossa Graça - disse suavemente. - Como desejardes. -Chamou a sua dama de companhia para perto de si e transmitiu-lhe ordens em espanhol, em voz baixa e rápida. A mulher fez uma reve­rência e conduziu o rei para fora da sala.

A princesa voltou-se para o príncipe Artur.

Et tu? - perguntou em latim. - E vós?

Eu? O quê? - gaguejou ele.

Sentiu que ela estava a tentar não suspirar de impaciência.

- Também gostaríeis de vos lavar e trocar de casaco?

- Eu lavei-me - afirmou. Mal as palavras lhe saíram da boca, podia ter mordido a própria língua. Parecia uma criança que estava a receber uma reprimenda de uma ama, pensou. - Eu lavei-me. mesmo. - O que ia fazer a seguir? Mostrar as mãos com as palmas viradas para cima, para ela poder ver que era bem comportado?

- Então, desejais beber uma caneca de vinho? Ou de cerveja? Catarina voltou-se para a mesa. onde os empregados pousa­vam apressadamente canecas e jarros.

- Vinho.

Ela levantou um copo e um jarro e os dois brindaram uma vez e depois outra. Espantado, apercebeu-se de que as mãos dela esta­vam a tremer.

Ela verteu o vinho rapidamente e estendeu-lho. O olhar dele passou da mão e da superfície ligeiramente borbulhante do vinho para o seu rosto pálido.

Pode verificar que ela não lhe sorria. Não estava nada à vontade com ele. A indelicadeza do pai fizera sobressair o orgulho nela, mas, sozinha com ele, não passava de uma menina, alguns meses mais velha do que ele, mas ainda uma menina. a filha dos dois mais admiráveis monarcas da Europa; mas não deixava de ser uma menina, com as mãos a tremer.

- Não precisais de estar assustada - disse, muito calmamente,- lamento tudo o que aconteceu.

O que queria dizer era - a tua tentativa falhada para evitar este encontro, a informalidade brusca do meu pai, a minha incapacida-

de para o deter ou acalmar, e sobretudo, a infelicidade que tudo isto deve representar para ti: vir para longe de casa. para o meio de estranhos, para conheceres o teu marido, e seres arrancada da cama contra a tua vontade.

Ela baixou o olhar. Ele observou a palidez perfeita da sua pele as pestanas louras e as sobrancelhas claras.

Depois, olhou para ele.

- Não faz mal — disse. - Já vi bem pior do que isto, já estive em lugares bem piores, e conheci homens bem piores do que o vosso pai. Não receeis por mim. Não tenho medo de nada.

Nunca ninguém saberá o quanto me custou sorrir, ficar diante do leu pai e não tremer. Ainda nem tenho dezasseis anos. estou longe da minha mãe. num país estranho cuja língua não sei falar e onde não conheço ninguém. Não tenho amigos, à excepção do grupo de damas de companhia e de criados que trouxe comigo, e estes esperam que eu os proteja. Nem sequer pensam em ajudar-me.

Sei o que tenho de fazer. Tenho de ser uma princesa espanhola para os ingleses e uma princesa inglesa para os espanhóis. Tenho de mostrar que estou a vontade quando não estou, e parecer segura quando sinto medo. Podes ser o meu marido, mas mal te conheço, ainda não tenho nenhuma ideia a teu respeito. Não tenho tempo para te analisar, estou concentrada em ser a princesa que o teu pai comprou, a princesa que a minha mãe enviou, a princesa que cum­prirá o negócio e garantirá um tratado entre a Inglaterra e a Espanha.

Nunca ninguém saberá que tenho de fingir estar à vontade, ser segura, ser graciosa. Claro que tenho medo. Mas nunca, nunca o mostrarei. E, quando chamarem pelo meu nome. darei sempre um passo em frente.

O rei, depois de ter feito a sua higiene e bebido alguns copos de vinho antes de ir jantar, tratava a jovem princesa com afabilidade, determinado em fazer esquecer a sua apresentação. Por uma ou duas vezes ela apanhou-o a observá-la de soslaio, como se estivesse a avaliá-la e voltou-se para o olhar, fixamente, com uma das sobrancelhas levemente franzida, como a interrogá-lo. _ Sim? - perguntou ele.

Peço desculpa - disse serenamente. - Pensei que Vossa Graça necessitava de alguma coisa. Olháveis para mim.

Estava a pensar que não sois muito semelhante ao vosso

retrato - afirmou.

Ela corou um pouco. Os retratos são concebidos para favore­cer aquele que posa. e quando este é uma princesa real. à procura de marido, ainda mais.

- Sois mais bem parecida - afirmou Henrique com relutância, para a acalmar. - Mais jovem, mais agradável e mais bonita.

Ela não se deixou amolecer pelo elogio, como ele esperava. Limitou-se a fazer um sinal com a cabeça, como se tratasse de uma observação interessante.

-Tivésteis uma má viagem - observou Henrique.

Muito má - respondeu. Voltou-se para o príncipe Artur. -Tivemos de voltar para trás, quando partimos da Corunha em Agosto e de esperar que as tempestades passassem. Quando final­mente largamos, o tempo continuava bastante adverso, e então, fomos forçados a atracar em Plymouth. Não conseguíamos chegar até Southampton de forma nenhuma. Todos tínhamos a certeza de que naufragaríamos.

Bem, não podíeis ter vindo por terra - afirmou Henrique categoricamente, pensando no perigoso estado da França e na hos­tilidade do rei francês. - Seríeis uma refém preciosa para um rei que seria suficientemente cruel para vos sequestrar. Graças a Deus que nunca caístes em mãos inimigas.

Ela olhou-o pensativamente.

- Deus queira que nunca caia.

- Mas agora os vossos problemas terminaram - concluiu Henrique. - O próximo barco que apanhareis será a barcaça real, quando descerdes o Tamisa. Agrada-vos ser Princesa de Gales? - Eu sou a Princesa de Gales desde os três anos - corrigiu. -Sempre me trataram por Catarina, a Infanta, Princesa de Gales. Eu sabia que seria esse o meu destino- Olhou para Artur, que permanecia sentado, em silêncio, a observar a mesa. - Toda a vida soube que casaríamos. Foi simpático da vossa parte escrever- me com tanta freqüência. Fez-me sentir que não éramos totalmente corou.

Ordenaram-me que vos escrevesse — disse desajeitadamente - Fazia parte dos meus estudos. Mas eu gostava de receber as vos­sas respostas.

Meu Deus. rapaz, não és lá muito brilhante, pois não? - per­guntou o pai em tom critico.

O rosto de Artur tornou-se escarlate até às orelhas.

Não precisavas de lhe dizer que te tinham mandado escrever-lhe -lhe - ralhou o pai. - Era melhor deixá-la pensar que escrevias por tua iniciativa.

Não me importo - afirmou Catarina, tranquilamente. - A mim também me mandavam responder. E, a propósito, gostaria que dis­séssemos sempre a verdade um ao outro.

O rei soltou uma gargalhada.

- Daqui a um ano, já não querereis - previu. - Nessa altura, preferireis a mentira correcta. A grande salvação de um casamento é a ignorância mútua.

Artur assentiu obedientemente com a cabeça, mas Catarina limitou-se a sorrir, corno se as observações do rei fossem interessantes, mas não necessariamente verdadeiras. Henrique deu por si a sentir-se melindrado com a rapariga, mas também provocado pela sua beleza.

- Atrevo-me a afirmar que o vosso pai não conta à vossa mãe cada pensamento que tem - afirmou, tentando fazer com que ela voltasse a olhar para si.

Conseguiu. Ela lançou-lhe um olhar prolongado, lento e ava­liador com os seus olhos azuis.

- Talvez não conte - admitiu. - Não sei. Não é apropriado que eu saiba. Mas, quer ele lhe conte quer não, a minha mãe sabe sem­pre de tudo.

Ele riu-se. A dignidade dela era bastante agradável numa rapa­riga cuja cabeça mal lhe chegava ao peito.

- A vossa mãe é uma visionária? Tem o dom da Vidência? Ela não retribuiu o sorriso.

- Ela é sábia - disse simplesmente. - É a mais sábia monarca da Europa.

O rei pensou que seria um disparate refrear a devoção de uma rapariga pela sua mãe, e seria deselegante apontar que a mãe podia ter unificado os reinos de Castela e Aragão, mas que ainda estava bastante longe de conseguir criar uma Espanha pacífica e unida. A capacidade táctica de Isabel e Fernando forjara um único país a par­tir dos reinos muçulmanos, ainda tinham de conseguir que todos aceitassem a sua paz. A própria viagem de Catarina para Londres

perturbada por rebeliões dos mouros e judeus, que não suportavam a tirania dos reis espanhóis. Mudou de assunto.

- Por que não nos mostrais uma dança? - pediu, pensando que gostava de a ver mover-se. - Ou isso também não é permitido na Espanha?

Uma vez que sou uma princesa inglesa, tenho de aprender os vossos costumes - disse. - Uma princesa inglesa levantar-se-ia a meio da noite e dançaria para o rei, depois de este ter forçado a entrada nos seus aposentos? I [enrique riu-se para ela.

- Se tivesse alguma consciência, dançaria.

Ela esboçou um sorriso, pequeno e reservado.

- Então, dançarei com as minhas aias - decidiu, levantando-se da cadeira junto da mesa principal e indo para o meio do salão. Chamou uma pelo nome, Henrique reparou, Maria de Salinas, uma rapariga bonita, de cabelo escuro, que veio rapidamente colocar-se ao lado de Catarina. Outras três jovens, fingindo timidez, mas ansio­sas por se exibirem, avançaram.

Henrique analisou-as. Pedira a Suas Majestades da Espanha que todas as acompanhantes da filha fossem bonitas, e estava satis­feito por comprovar que, por muito que o seu pedido lhes tivesse parecido insensível e inapropriado, haviam acedido a satisfazê-lo. As raparigas eram todas bonitas, mas nenhuma ofuscava a princesa que permaneceu composta e. em seguida, levantou as mãos e bateu palmas, para ordenar aos músicos que tocassem.

Reparou de imediato que ela se movia como uma mulher sen­sual. A dança era uma pavana, uma dança lenta e cerimonial, e ela movia-se abanando as ancas e de olhos fechados, com um leve sorriso nos lábios. Fora bem ensinada, qualquer princesa seria ensina­da a dançar no mundo da corte, onde dançar, cantar, a música e a poesia eram mais importantes do que qualquer outra coisa; mas ela dançava como unia mulher que permitia que a música a conduzis-se, e Henrique, que tinha alguma experiência, acreditava que as mulheres que se deixavam invadir pela música eram as que melhor respondiam aos ritmos do desejo.

Passou do prazer de a observar para uma sensação de irritação, ao pensar que esta peça sofisticada ia ser colocada na cama fria de Artur. Não conseguia ver aquele rapaz sensato e estudioso a brincar e a provocar a paixão nesta rapariga, prestes a tornar-se mulher. Imaginava que Artur seria desajeitado e que talvez a magoasse, e ela cerraria os dentes e cumpriria o seu dever como mulher e rainha, e mais provável seria ela morrer ao dar à luz; e todo aquele esforço de encontrar uma noiva para Artur teria de ser repetido sem benefícios para si próprio, excepto este desejo irritado e frus­trado que ela parecia inspirar-lhe. Era bom que ela fosse desejável uma vez que iria ser um ornamento na sua corte; mas era uma per­turbação o facto de ser tão desejável aos seus próprios olhos.

Henrique afastou os olhos da dança e consolou-se com a ideia do seu dote, que lhe traria grandes e duradouros benefícios e lhe seria entregue directamente, ao contrário desta noiva que parecia decidida a perturbá-lo, e teria de ir, por muito que isso fosse errado, para o seu filho. Assim que estivessem casados, o seu tesoureiro entregaria o pri­meiro pagamento do dote: em ouro sólido. Um ano depois, entregaria a segunda parte em ouro e com as suas pratas e jóias. Tendo lutado para chegar ao trono com pouco dinheiro e crédito incerto, Henrique acreditava mais no poder do dinheiro do que em qualquer outra coisa na vida; ainda mais do que no trono, porque sabia que podia comprar um trono com dinheiro, e ainda mais do que nas mulheres, porque essas compram-se facilmente; e mais, bastante mais do que na alegria do sorriso de uma princesa virgem, que interrompera a sua dança, lhe fizera uma reverência e se dirigia a ele sorrindo.

- Agradei-vos? — perguntou corada e ligeiramente ofegante.

- O suficiente - respondeu, determinado em que ela nunca soubesse o quanto. - Mas agora é tarde e devíeis voltar à vossa cama. Cavalgaremos um pouco convosco de manhã, antes de par­tirmos para Londres.

Ficou surpreendida pela brusquidão da resposta. Voltou a olhar para Artur como se ele pudesse contrariar os planos do pai; talvez ficar junto dela durante o resto da viagem, uma vez que o pai se gabara da sua informalidade. Mas o rapaz nada disse.

- Como desejardes, Vossa Graça - respondeu polidamente.

O rei assentiu com a cabeça e levantou-se. A corte mergulhou em reverências e vénias profundas, enquanto ela passava diante deles, dirigindo-se ao quarto.

"Não é assim tão informal", pensava Catalina ao observar o Rei da Inglaterra a circular pela corte, de cabeça erguida. "Pode gabar-se de ser um soldado com os modos de um acampamento, mas insiste na obediência e na exibição da deferência. Tal como devia", acres­centou a filha de Isabel para si mesma.

Artur seguiu o pai com um rápido "Boa noite" dirigido à princesa ao sair. Num instante, todos os homens do seu séquito tinham saído, e a princesa estava sozinha com as aias.

- Que homem extraordinário - observou para a sua preferida, Maria de Salinas.

_ Ele gostou de vós - afirmou a jovem. - Olhava-vos muito.

_ E porque não gostaria? - perguntou com a arrogância instintiva de uma rapariga nascida no maior reino da Europa. - E mesmo que não gostasse, já está acordado, e não pode haver alterações.

Esteve acordado durante a minha vida inteira.

Ele não é o que eu esperava, este rei que lutou para chegar ao trono e apanhou a coroa do meio da lama, num campo de batalha. Esperava que fosse mais como um defensor, um grande soldado, talvez como o meu pai. Ao invés, tem um olhar de mercador, um homem que procura o lucro dentro de casa, não um homem que conquistou o reino e a mulher na ponta da espada.

Creio que esperava encontrar um homem como Don Hernán, um herói a quem pudesse admirar, um homem a quem teria orgulho em chamar pai. Mas este rei é magro e pálido como um clérigo, em nada semelhante aos cavaleiros dos romances.

Pensava que a sua corte fosse mais grandiosa, esperava um grande desfile e um encontro formal com longas apresentações e dis­cursos elegantes, como teríamos feito no Alhambra. Mas ele é abrup­to; na minha opinião, é mal-educado. Terei de me habituar a estes modos do Norte, esta pressa em fazer as coisas, estas ordens bruscas. Não posso esperar que sejam bem feitas ou correctas. Terei de ignorar muita coisa até ser rainha e poder mudá-las.

Mas, de qualquer forma, pouco me importa se gosto do rei ou se ele gosta de mim. Ele assinou este tratado com o meu pai e eu fui prometida ao filho. Pouco interessa o que penso dele. ou o que pensa de mim. Não é que tenhamos de tratar de muitas questões em comum. Eu viverei e governarei Gales e ele viverá e governará a Inglaterra, e quando morrer, será o meu marido a ocupar o trono, o meu filho será o próximo Príncipe de Gales. e eu serei rainha.

Quanto ao meu futuro marido, deixou-me uma primeira impressão diferente. É tão bonito! Não esperava que fosse tão bonito!É tão louro e pequeno, é como, é como um pajem dos romances antigos. Consigo imaginá-lo acordado a noite inteira, em vigília, ou cantando para uma janela do castelo. Tem uma pele pálida, quase prateada, cabelo dourado e fino, e no entanto, é mais alto do que eu, magro e forte como um rapaz prestes a tornar-se homem.

Tem um sorriso invulgar, que surge relutantemente e depois se abre. E é simpático. Isso é muito importante num marido. Foi simpático quando aceitou o copo de vinho que lhe estendi, percebeu que estava a tremer, e tentou confortar-me.

O que pensará de mim? Gostava tanto de saber o que pensa de mim.

Tal como o rei decidira, ele e Artur regressaram rapidamente a Windsor na manhã seguinte e a comitiva de Catarina, com a baga­gem transportada por mulas, o enxoval dentro de enormes arcas de viagem, as damas de companhia, os criados espanhóis e os guardas do tesouro do seu dote. percorreram as estradas lamacentas até Londres, a um ritmo bastante mais lento.

Não voltou a ver o príncipe até ao dia do casamento, mas quando chegou à aldeia de Kingston-upon-Thames a comitiva parou, para se encontrar com o homem mais importante do reino, o jovem Edward Stafford, Duque de Buckingham, e Henrique, Duque de York, o segundo filho do rei, que haviam sido designa­dos para a acompanhar até ao Palácio Lambeth.

Eu saio - disse Catarina à pressa, saindo da liteira, passando rapidamente pelos cavalos que estavam ã espera, não querendo ter mais nenhuma discussão com a estrita aia sobre jovens damas conhecerem homens antes do dia do casamento.

Dona Elvira, não digais nada. O rapaz é uma criança de dez anos. Não tem importância. Nem a minha mãe pensaria que teria importância.

Pelo menos, colocai o véu! - implorou a mulher. - O Duque de Buck... Buck... seja qual for o nome dele, também cá está. Colocai o véu antes de aparecer à frente dele, pela vossa própria reputação, Infanta.

Buckingham - corrigiu Catarina. - O Duque de Buckingham. E tratai-me por Princesa de Cales. E vós sabeis que eu não posso usar o véu, porque deve ter-lhe sido ordenado que contasse tudo ao rei. Vós sabeis o que a minha mãe disse: que ele é o protegido da mãe do rei. recuperado para os destinos da família, e deve ser-lhe prestado o maior respeito.

A mulher mais velha abanou a cabeça, mas Catarina partiu, de rosto destapado, sentindo-se ao mesmo tempo temerosa e irresponsável pela sua própria ousadia, e viu os homens do Duque, em formação na estrada, e diante deles, um rapazinho: sem elmo, de cabelo claro brilhando ao sol.

O seu primeiro pensamento foi que ele era totalmente diferente do irmão. Enquanto Artur era louro, pequeno e de ar sério, de compleição pálida e olhos castanhos calorosos, este era um rapaz alegre que aparentava nunca ter tido um pensamento sério.

Não herdara o rosto magro do pai, tinha a aparência de um rapaz ara quem a vida era fácil. O seu cabelo era vermelho-dourado, o rosto redondo ainda de bebé, o seu sorriso, quando a viu pela primeira vez, foi genuinamente amigável e inteligente, e os seus olhos azuis brilhavam como se estivesse habituado a ver um mundo muito agradável.

Irmã! - afirmou calorosamente, saltando do cavalo, ouvindo--se o impacto da armadura, e fez-lhe uma pequena vénia.

Irmão Henrique - disse, devolvendo a reverência precisa­mente à altura correcta, tendo em conta que ele era apenas um segundo filho da Inglaterra e que ela era a Infanta da Espanha.

Tenho tanto prazer em conhecer-vos - afirmou rapidamente, num latim rápido, com forte sotaque inglês. - Desejava tanto que Sua Majestade permitisse que eu viesse conhecer-vos, antes de vos levar para Londres, no dia do casamento. Pensei que seria tão estranho entrar na igreja convosco e entregar-vos a Artur, se nem sequer tivéssemos falado.

Também tenho todo o prazer em conhecer-vos, Irmão Henrique - retorquiu Catarina educadamente, um pouco surpreen­dida pelo entusiamo dele.

Tendes prazer? Deveríeis estar a dançar de alegria! - excla­mou alegremente. - Porque o Pai disse que eu poderia trazer-vos o cavalo que deveria ser um dos presentes do dia do casamento, e assim poderemos cavalgar juntos até Lambeth. O Artur disse que deverieis esperar pelo dia do casamento, mas eu perguntei, porque deverá esperar? Não vai poder montar no dia do casamento. Vai estar demasiado ocupada a casar-se. Mas se lho levar agora, vai poder montá-lo já.

-Foi simpático da vossa parte

- Oh, eu nunca ligo nenhuma ao que o Artur diz - afirmou Henrique animadamente. Catarina teve de se controlar para não soltar uma gargalhada.

- Não? Ele fez uma careta e abanou a cabeça. - Sério - disse - ireis ficar espantada de quão sério ele é. E estudioso, claro, mas não dotado. Todos dizem que sou muito dota-

do, para línguas principalmente, mas também para a música Podemos falar francês, se desejardes, sou extremamente fluente para a minha idade. Sou considerado um músico bastante bom. E é claro, sou um desportista. Caçais?

Não - respondeu Catarina, um pouco assombrada. - Pelo menos, só acompanho as caçadas quando perseguimos javalis ou lobos.

Lobos? Gostaria tanto de caçar lobos. Têm mesmo ursos?

Sim, nos montes.

Gostaria muito de caçar um urso. Caçais os lobos a pé, como os javalis?

Não, a cavalo - replicou. - São muito rápidos, temos de levar cães muito rápidos para os cansar. É uma caça horrível.

Eu não me importaria - afirmou. - Não me importo com nada disso. Todos dizem que sou terrivelmente corajoso em relação a coisas desse género.

Tenho a certeza que sim - respondeu ela sorrindo.

Um homem bonito com vinte e poucos anos avançou e fez uma vénia.

-Oh, este é Edward Stafford, o Duque de Buckingham - disse Henrique rapidamente. - Posso apresentar-vos?

Catarina estendeu a mão e o homem fez novamente uma vénia sobre ela. O seu rosto inteligente e belo acendeu-se com um sorriso.

Que sejais bem-vinda ao vosso próprio país! - comentou num castelhano irrepreensível. - Espero que tudo tenha corrido ao vosso agrado durante a viagem. Há alguma coisa que possa fazer para vos ajudar?

Na verdade, fui muito bem tratada - declarou Catarina, coran­do de prazer por ser saudada na sua língua. - E o acolhimento que recebi do povo, durante toda a viagem, foi muito simpático.

Olhai, aqui tendes o vosso cavalo - interrompeu Henrique, enquanto o criado chegava com uma maravilhosa égua negra. -Deveis estar habituada a ter bons cavalos, é óbvio. Tendes sempre cavalos da Barbaria?

A minha mãe insiste em que os utilizemos para a cavalaria -respondeu.

Oh! - suspirou. - Por serem muito rápidos?

Podem ser treinados como cavalos de batalha - disse, avan­çando e estendendo a mão, com a palma voltada para cima, para que a égua cheirasse e lambesse os seus dedos, com a boca macia e meiga.

Cavalos de batalha? - continuou ele.

Os Sarracenos têm cavalos que conseguem combater como os donos e os cavalos da Barbaria também podem ser treinados

fazer - disse ela. - Levantam-se nas patas traseiras e batem num soldado com as da frente, e também dão coices. Os Turcos têm cavalos que apanham uma espada do chão e devolvem-na ao cavaleiro A minha mãe diz que um bom cavalo vale por dez homens, numa batalha.

_ Gostava tanto de ter um cavalo desses - disse Henrique com um ar sonhador. - Como será que poderei conseguir um?

Fez uma pausa, mas ela não mordeu o isco.

_ Se alguém me desse um cavalo desses, poderia aprender a montá-lo - afirmou transparentemente. - Talvez no meu aniversá­rio, ou talvez na próxima semana, uma vez que não sou eu que me vou casar, e não vou receber nenhum presente de casamento. Uma vez que fui um pouco posto à margem e negligenciado.

Talvez - afirmou Catarina, que já uma vez vira o seu próprio irmão obter o que pretendia, exactamente com o mesmo tipo de comentário.

Devia ser treinado para montar correctamente - disse ele. -O Pai prometeu-me que. apesar de eu ir para a Igreja, serei autori­zado a montar na quintana. Mas Sua Alteza, a Mãe do Rei, diz que não posso combater. É muito injusto. Deveria poder combater. Se tivesse um cavalo apropriado, poderia combater, tenho a certeza de que derrotaria toda a gente.

- Tenho a certeza que sim - disse ela.

Bem, vamos embora? - perguntou, vendo que ela não lhe ofereceria um cavalo, só por ele lho pedir.

Eu não posso ir a cavalo, as minhas roupas de montar estão na mala.

Ele hesitou.

- Não podeis ir assim vestida? Catarina riu-se.

- Isto é de veludo e de seda. Não posso montar com estas roupas. E além disso, não posso andar a galopar pela Inglaterra, com ar de pantomineiro.

- Oh - pronunciou. - Sendo assim, ireis na vossa liteira? Não nos vai atrasar muito?

- Lamento mas recebi ordens para viajar numa liteira - afirmou - Com cortinas corridas. Imagino que nem o vosso pai que andasse pelo país a montar de saias levantadas. - É evidente que a princesa não pode montar hoje - decidiu o Duque de Buckingham. - Como vos disse. Ela tem de ir na liteira.

Henrique encolheu os ombros.

Bem, não sabia. Ninguém me disse o que iríeis vestir. Então posso ir à frente? Os meus cavalos serão muito mais rápidos do quê as mulas.

Podeis ir à frente, mas não desaparecer de vista - decidiu Catarina. -Já que devíeis escoltar-me, deveis estai' comigo.

Tal como eu disse - observou o Duque de Buckingham tran­quilamente, trocando um pequeno sorriso com a princesa.

Esperarei em todos os cruzamentos - prometeu Henrique. -Vou escoltar-vos, não vos esqueçais. E no dia do vosso casamento, irei escoltar-vos novamente. Tenho um fato branco com costuras douradas.

Que bonito que ides estar - disse ela. vendo-o corar de prazen

Oh, não sei...

Tenho a certeza de que todos repararão no belo rapaz que sois - elogiou ela. enquanto ele parecia satisfeito.

Todos gritam sempre mais alto por mim - confidenciou. - E agrada-me saber que as pessoas gostam de mim. O Pai diz que a única forma de manter um trono é ser amado pelo povo. Foi o erro do rei Ricardo, diz o Pai.

A minha mãe diz que a única forma de mantermos o trono é fazermos a obra de Deus.

Oh - suspirou ele, claramente pouco impressionado. - bem. países diferentes, calculo.

Devemos, então, viajar juntos - disse ela. - Vou dizer aos que me acompanham que estamos prontos para prosseguir.

Eu digo-lhes - insistiu ele. - Sou eu quem vos escolta. Eu darei as ordens e vós deveis descansar na liteira - lançou-lhe um olhar rápido de soslaio. - Quando chegarmos a Lambeth, devereis permanecer na vossa liteira, até eu vos chamar. Eu abrirei as corti­nas e levar-vos-ei para dentro, e vós devereis segurar a minha mão.

Gostaria muito - garantiu-lhe e voltou a ver o seu rosto enrubescer.

Voltou-se bruscamente e o Duque fez-lhe uma vénia, sorrindo.

É um rapaz muito inteligente, muito impaciente - afirmou. -Tendes de perdoar o seu entusiasmo. Foi muito mimado.

F o preferido da mãe? - perguntou ela. pensando na adora­ção que a sua própria mãe sentia pelo único filho.

Pior ainda - respondeu o Duque com um sorriso. - A mãe adora-o de forma adequada; mas é o menino absoluto dos olhos da avó, e é ela quem manda na cone. Felizmente é um bom rapaz e tem bons modos. Tem uma natureza demasiado boa para se deixar estragar com mimos e a mãe do rei equilibra os seus favores com reprimendas - É uma mulher indulgente?- perguntou ela.

Ele deu uma risada. Só com o filho - afirmou. - Os restantes consideram-na mais

majestática do que mãe.

_ Podemos voltar a falar em Lambeth? - pediu Catarina, tentada a saber mais sobre esta família de que iria fazer parte.

Em Lambeth e Londres, terei todo o orgulho em servir-vos -

disse o jovem, com os olhos calorosos de admiração. - Tendes de me dar as ordens que entenderdes.Serei vosso amigo na Inglaterra, podeis contar comigo.

Tenho de ter coragem, sou filha de uma mulher audaz e preparei-me para isto toda a vida. Quando o jovem Duque falou comigo, daquela forma tão simpática, não deveria ter sentido vontade de chorar, foi um disparate. Tenho de me controlar e sorrir. A minha mãe disse-me que, se eu sorrir, ninguém saberá que sinto saudades de casa ou medo. vou sorrir e sorrir, por muito adversa que a situação pareça.

E apesar de esta Inglaterra agora me parecer estranha, habituar-me-ei. Aprenderei os seus costumes e sentir-me-ei em casa aqui. Os seus modos diferentes tornar-se-ão os meus modos, e as piores coisas- as que não suporto mesmo - mudá-las-ei, quando for rainha. E de qualquer modo, será melhor para mim do que foi para Isabel, a minha irmã. Só esteve casada alguns meses e, depois, teve de voltar para casa, viúva. Será melhor para mim do que para Maria, que teve de seguir Isabel para Portugal, melhor para mim do que para Joana. que está doente de amor pelo marido, Filipe. Terá de ser melhor para mim do que foi para João, o meu pobre irmão, que morreu tão cedo após encontrar a felicidade. E será sempre melhor para mim do que Para a minha mãe. cuja infância foi passada no fio da navalha.

É evidente que a minha história não será como a dela. Eu nasci numa época muito menos emocionante. Espero entender-me com o u marido Artur e com o seu estranho e estridente pai, e com o seu pequeno irmão, doce e fanfarrão. Esperarei que a sua mãe e avó me amem ou pelo menos , me ensinem como ser uma Princesa de

de Gales ou uma Rainha de Inglaterra. Não terei de cavalgar em ataques desesperados durante a noite, de uma fortaleza cercada para outra,como a minha mãe. Não terei de empenhar as minhas próprias jóias

para pagar a soldados mercenários, como ela. Não terei de partir a cavalo de armadura para unir as minhas tropas. Não serei amea­çada pelos cruéis Franceses, de um lado, e pelos hereges Mouros, por outro, como a minha mãe. Casarei com Artur, e quando o pai dele morrer- que deverá acontecer breve, porque ele é tão velho e tão mal-humorado - seremos Rei e Rainha da Inglaterra e a minha mãe reinará na Espanha, enquanto eu reino na Inglaterra e ver-me-á manter a Inglaterra na aliança com a Espanha, como lhe prometi vai ter-me a manter o meu país num tratado inquebrável com o seu vera que estarei em segurança para sempre.

 

                     Londres, 14 de Novembro de 1501

Na manhã do dia do seu casamento, Catarina foi chamada cedo; mas estava acordada há horas, revolvendo-se na cama, mal o sol frio e invernal começara a iluminar o céu pálido. Tinham-lhe preparado uma banheira enorme - as suas aias tinham-lhe contado que os Ingleses estavam admirados por ela tomar banho antes do dia do casa­mento e que a maior parte deles pensava que ela estava a colocar a vida em risco. Catarina, educada no Alhambra, onde os banhos eram o mais bonito conjunto de salas do palácio, centro de coscuvilhice; risos e águas perfumadas, também ficou espantada por saber que os Ingleses consideravam perfeitamente adequado só tomar banho oca­sionalmente, e por os pobres só tomarem banho uma vez por ano.

Já se apercebera de que o cheiro a almíscar e a âmbar-cinzento que acompanhara o rei e o príncipe Artur possuía traços de suor e de cheiro a cavalo, e de que viveria o resto da vida entre pessoas que não trocavam de roupa interior durante um ano. Encarara-o como mais um aspecto que teria de suportar, como um anjo do céu suporta as privações terrenas. Ela viera de al-Yanna - o jardim, o paraíso - para o mundo normal. Viera do Palácio de Alhambra para a Inglaterra, previra algumas mudanças desagradáveis.

Presumo que esteja sempre tanto frio que não faça diferença, - comentou pensativamente para Dona Elvira.

Faz-nos diferença a nós - respondeu a ama. - E vós deveis banhar-vos como uma Infanta da Espanha, apesar de todos os cozi­nheiros do palácio terem tido de interromper o que estavam a fazer para aquecer água.

Dona Elvira pedira que trouxessem da cozinha, onde se preparava a carne um enorme pote que era normalmente utilizado para escaldar as carcaças dos animais, mandou três criados da cozinha esfregá-lo, revestiu-o com lençóis de linho e encheu-o até cima de   água quente, com pétalas de rosa. e perfumou-a com óleo de rosas que trouxera da Espanha. Supervisionou com carinho a lavagem dos membros longos e pálidos de Catarina, a pedicura dos pés, a manicura das mãos, a escovagem dos dentes e por fim a lavagem, com três passagens por água, dos cabelos. Uma e outra vez. as incrédulas criadas inglesas corriam para a porta, para receberem mais um jarro de água quente das mãos de pajens exaustos, e deitavam-no na banheira, para manter a água do banho quente.

- Se pelo menos tivéssemos uma casa de banho como deve ser, - lamentou-se Dona Elvira. - Com vapor, um tepidário e um chão de mármore limpo! Água quente na torneira e um lugar para vos sentardes e serdes devidamente esfregada.

Não vos preocupeis - disse Catarina com ar sonhador enquanto a ajudavam a sair do banho e lhe limpavam todo o corpo com toalhas perfumadas. Uma criada pegou-lhe no cabelo, espre­meu a água e esfregou-o cuidadosamente com seda vermelha ensopada em óleo. para lhe dar brilho e cor.

A vossa mãe teria tanto orgulho em vós - afirmou Dona Elvira, quando conduziam a Infanta para o quarto de vestir e come­çavam a vesti-la, com camadas e camadas de combinações e vestidos, - Aperta mais aquela renda, rapariga, para que a saia fique direita. É o dia dela, assim como o vosso, Catarina. Ela disse que casaríeis com ele, custasse o que lhe custasse.

Sim mas não pagou o maior preço. Eu sei que me pagaram este casamento com um resgate ao rei por meu dote. e sei que suportaram longas e difíceis negociações, e eu sobrevivi à pior viagem que alguém alguma vez empreendeu, mas houve outro preço pago que nunca mencionamos - não houve? E a idéia desse preço está hoje na minha mente, como esteve desde durante a viagem, como esteve desde que ouvi falar nele. Havia um homem de vinte e quatro anos, Eduardo Plantageneta, Duque de Warwick e filho dos Reis da Inglaterra, com - verdade seja dita - mais direitos ao trono da Inglaterra do que o meu sogro. Era príncipe, sobrinho do rei. e de sangue real. Não cometeu nenhum crime, não fez nada de errado, mas foi preso por minha causa, foi levado para a Torre para meu benefício, e finalmente morto, deca­pitado no cepo, em meu proveito, para que os meus país pudessem ter a certeza de que não existiam pretendentes ao trono que haviam comprado para mim.

O meu pai disse pessoalmente ao próprio rei Henrique que não me enviaria para a Inglaterra enquanto o Duque de Warwick fosse vivo, e, assim, eu sou como a própria Morte, transportando a foice Quando encomendaram o barco para eu vir para a Inglaterra: Warwick passou a ser um homem morto.

Dizem que era um tonto. Não percebeu que estava realmente preso, pensou que fora instalado na Torre, como forma de lhe ser concedida uma honra. Sabia que era o último dos príncipes Plantageneta, e que a Torre sempre fora um aposento real. mas tam­bém uma prisão. Quando encerraram um pretendente, um homem inteligente que tentava fazer-se passar por príncipe real, na sala ao lado da do pobre Warwick, pensou que era para lhe fazer compa­nhia. Quando o outro homem lhe propôs que fugisse com ele. pen­sou que seria uma atitude inteligente, e como era tão ingénuo, falou dos seus planos em situações em que os guardas conseguiram ouvir. Isso deu-lhes a desculpa de que precisavam para o acusarem de traição. Enganaram-no facilmente, degolaram-no e ninguém protestou.

O país procura a paz e a segurança de um rei inquestionado. O país fechará os olhos a um ou dois pretendentes assassinados. Também esperam que eu os feche. Sobretudo por ser para minha vantagem. Tudo foi feito a pedido do meu pai, por minha causa. Para facilitar o meu caminho.

Quando me disseram que estava morto, não disse nada. porque eu sou uma Infanta da Espanha. Acima de tudo. sou filha da minha mãe. Não choro como uma menina pequena nem conto a todos cada um dos meus pensamentos. Mas quando estava sozinha nos jardins do Alhambra, ao final da tarde, quando o sol se punha e deixava o mundo frio e doce. eu caminhava ao longo de um exten­so canal de águas tranquilas, escondida pelas arvores, e pensei que nunca voltaria a caminhar à sombra das árvores, nem apreciaria os raios quentes do sol passando através da verde folhagem, sem pensar que Eduardo, o Duque de Warwick, nunca mais verá o sol, para que eu possa viver no meio da riqueza e do luxo. Rezei, então, para poder ser perdoada pela morte de um inocente.

A minha mãe e o meu pai lutaram ao longo de Castela e Aragão, cavalgaram por toda a Espanha para levar a justiça a todas as aldeias, às povoações mais pequenas - para que nenhum espanhol pudesse perder a vida por um capricho de outro. Nem sequer os maiores senhores podem assassinar um camponês; têm de pudesse perder a vida por um capricho de outro. Nem sequer os maiores senhores podem assassinar um camponês; têm de cumprira lei. Mas quando se tratou da Inglaterra e de mim, esqueceram-se disso. Esqueceram-se de que vivemos num palácio onde a promessa "Entrai e perguntai. Não temais procurar a justiça, pois aqui a encontrareis" está gravada numa parede. Apenas escreveram ao rei Henrique e disseram que não me enviariam enquanto Warwick não estivesse morto e, momentos depois de terem expressado tal desejo, Warwick foi morto.

E por vezes, quando não me lembro de ser a Infanta da Espanha nem a Princesa de Gales, mas apenas a Catarina que transpôs, atrás da mãe, a enorme porta de entrada no Palácio de Alhambra, e percebeu que a mãe era a maior potência que o mundo alguma vez conhecera: por vezes, pergunto-me infantilmente, se a minha mãe não cometeu um grande erro? Se não levou a vontade de Deus longe de mais? Ainda mais longe do que Deus desejaria? Porque este casamento é iniciado sobre sangue, e navega num mar de sangue inocente. Como pode um matrimónio destes alguma vez ser o prelúdio de um bom casamento? Não terá de ser obrigatoria­mente- tal como a noite se segue ao pôr do Sol - trágico e sangrento? Como pode advir daqui alguma felicidade para o príncipe Artur e para mim, à custa de um preço de tal modo terrível? E se conseguíssemos ser felizes, não seria uma felicidade totalmente pecaminosa e egoísta?

O príncipe Henrique, o Duque de York, de dez anos, estava tão orgulhoso do seu fato de tafetá branco que mal olhou para Catarina até estarem diante das portas orientais da Catedral de São Paulo e, então voltou-se para a observar, tentando ver o seu rosto através da sofisticada renda da mantilha branca. À sua frente, estendia-se uma passagem elevada, coberta com uma passadeira vermelha, fixada com grandes pregos dourados; a passagem seguia, à altura da cabeça, desde a grande porta da entrada da igreja, onde os cidadãos de Londres se amontoavam para obterem uma vista melhor e continuava ao longo da comprida ala até ao altar, onde o príncipe Artur permanecia, pálido com os nervos, a seiscentos passos cerimoniais de distância.

Catarina sorriu para o rapazinho ao seu lado, e ele riu de contentamento. A sua mão segurava firmemente o braço que ele lhe oferecera. Ele fez uma pausa por mais alguns momentos, até que todos, na igreja enorme, percebessem que a noiva e o príncipe estavam na porta, à espera de fazer a sua entrada, fez-se silêncio, todos se esticaram para ver a noiva, e depois, no preciso momento, mais teatral, ele conduziu-a para a frente.

Catarina ouvia os sussurros da assistência, em volta dos seus pés, enquanto passava por eles, no alto do palco que o Henrique mandara construir para que todos pudessem ver a flor da Espanha encontrar-se com o botão de rosa da Inglaterra. O príncipe voltou-se quando ela chegou perto dele, mas ficou temporiamente cego de irritação ao ver o irmão, que conduzia a princesa como se ele próprio fosse o noivo, olhando em volta quando sava, agradecendo os cumprimentos com o chapéu e os murmúrios das reverências com o seu sorrisinho altivo, como se fosse a ele todos tivessem vindo ver.

Depois, ficavam ambos ao lado de Artur e Henrique, ainda que relutantemente, teve de recuar, enquanto a princesa e o príncipe voltavam para o arcebispo e se ajoelhavam, ao mesmo tempo, almofadas de tafetá branco especialmente bordadas.

"Nunca um casal esteve mais casado", pensava o rei Henrique de pé, diante do banco real, junto da mãe e da mulher. "Os pais confiam tanto em mim como numa serpente, e a minha opinião sobre o pai dela sempre foi a de que nào passa de um traficante semimouro. Foram prometidos nove vezes. Este será um casamento que na poderá quebrar. O pai dela não pode fugir dele, por muitas dúvidas que tenha. Agora, vai proteger-me da França; esta é a herança filha. A simples ideia da nossa aliança assustará os franceses e convencê-los-á a manter a paz, e nós temos de ter paz."

Olhou de relance para a mulher que estava ao seu lado. tinha os olhos marejados de lágrimas, ao observar o filho e a noiva enquanto o arcebispo levantava as suas mãos dadas e as envolvia com a sua estola sagrada. O rosto dela, embevecido pela emoção nào o comovia. Quem poderia adivinhar os seus pensamentos, detrás daquela bela máscara? Pensaria no seu próprio casamento, a união das casas de York e Lancaster que a colocou, como esposa rei, num trono que ela poderia reivindicar de seu próprio direito?' estaria a pensar no homem que preferiria ter tido como marido? rei franziu o sobrolho. Nunca se sentiu seguro da sua mulher. Isabel-Em geral, preferia não pensar muito nela.

Por trás dela, a sua mãe, de rosto fechado, Margaret Beaufort,

observava o jovem casal com um sorriso contido. Este era o triunfo da Inglaterra, o do seu filho, mas muito mais do que isso. este era o seu triunfo - ter arrancado esta família bastarda e ilegítima do desastre, desafiar o poder da casa de York, derrotar um rei reinante, conquistar o próprio trono da Inglaterra, vencendo todos os obstáculos. Isto era obra sua. O seu plano consistira em trazer o filho da França, no momento certo para reivindicar o trono. Eles foram os seus aliados que forneceram ao filho os soldados para a batalha. Fora o seu plano de batalha que deixara o usurpador Ricardo a desesperar em Bosworth, e foi uma vitória sua, que celebrava durante todos os dias da sua vida. E este era o casamento que cons­tituía o culminar dessa longa luta. Esta noiva dar-lhe-ia um neto. um rei Tudor-espanhol para a Inglaterra, e um filho a seguir a esse, e outro ainda, a seguir: construindo assim uma dinastia Tudor que seria interminável.

Catarina repetiu as palavras dos votos matrimoniais, sentiu o peso de uma aliança fria no dedo, voltou o rosto para o novo marido e sentiu, aturdida, o seu beijo frio. Quando voltou a percorrer aquele absurdo passadiço e viu os rostos sorridentes que se esten­diam dos seus pés até às paredes da catedral, começou a perceber que estava concluído. E, quando saíram do frio escuro da catedral, para a luz do sol. clara e invernal do exterior e ouviu o clamor da multidão por Artur e a sua noiva, o Príncipe e a Princesa de Gales, percebeu que. por fim. cumprira completamente o seu dever. Fora prometida a Artur na infância, e agora, finalmente, estavam casados. Fora denominada Princesa de Gales desde os três anos e, agora, por fim, assumira o seu nome, assim como o seu lugar no mundo. Olhou para cima e sorriu, e a multidão, maravilhada com o vinho gratuito, com a beleza da jovem rapariga, com a promessa de protecção contra uma guerra civil que só poderia advir da garantia de sucessão real, gritava a sua aprovação.

Eram marido e mulher mas trocaram apenas algumas palavras durante o resto daquele longo dia. Houve um banquete formal e,

 

Bosword: batalha em que Henrique Tudor, filho de Margaret Beaufort, derrotou o rei Ricardo III, que foi morto na batalha. Henrique acabaria por aceder ao tono de Inglaterra, como Henrique VII ( N. da T. )

 

apesar de estarem sentados lado a lado, havia brindes a fazer, discursos aos quais deveriam estar atentos e músicos a tocar. Após o prolongado jantar, no qual foram servidos imensos pratos; houve entretenimento com poesia, cantores e uma representação. Nunca ninguém vira tanto dinheiro ser gasto num único acontecimento. Era uma celebração muito maior do que a do casamento do próprio rei ainda maior do que a sua coroação. Era uma redefinição do estado real inglês e dizia ao mundo que este casamento da rosa dos Tudor com a princesa espanhola era um dos eventos mais importantes da nova era. Duas novas dinastias proclamavam-se através desta união: Fernando e Isabel do novo país que estavam a forjai, a partir do al--Andalus, e os Tudor, que se estavam a apoderar da Inglaterra.

Os músicos tocaram uma dança da Espanha e a rainha Isabel, após um aceno da sogra, inclinou-se e disse tranquilamente Catarina:

-     Seria um enorme prazer para todos nos se dançásseis. Catarina, bastante composta, levantou-se da cadeira e dirigiu-se ao centro do enorme salão, enquanto as suas aias se reuniam em seu redor, formando um círculo e dando as mãos. Dançaram a pavana, a mesma dança a que Henrique assistira em Dogmersfielc e este observou a nora com bastante atenção. Indubitavelmente, ela era a jovem mais desejável da sala. Era uma pena. porque um desligado como Artur não conseguiria seguramente ensinar-lhe os prazeres que se poderia alcançar debaixo dos lençóis. Se os dei­xasse ir juntos para o Castelo de Ludlow, ela certamente morreria de aborrecimento ou tomar-se-ia completamente frígida. For outro lado, se a mantivesse ao seu lado, ele deleitaria os seus olhos, poderia vê-la dançar e iluminar a corte. Suspirou. Fensou que não tinha coragem.

Ela é maravilhosa - observou a rainha.

Esperemos eme sim - disse ele amargamente.

Senhor?

Ele sorriu perante o olhar interrogativo e de surpresa que ela lhe lançou.

Não, não é nada. Tendes razão, é realmente maravilhosa. E parece ser saudável, não parece? Felo que podemos ver?

Tenho a certeza que é, e a mãe garantiu-me que é muito regular nos seus hábitos.

Ele acenou com a cabeça.

- Aquela mulher diria qualquer coisa.

- Mas de certeza que não diria nada para nos enganar? Não num assunto cie tamanha importância! - sugeriu.

Ele assentiu com a cabeça e esqueceu o assunto. a doçura da natureza da sua mulher e a sua fé nos outros eram algo que ele não poderia mudar. desde que não tivessem influência na política, as opiniões dela não interessavam.

- E Artur? - perguntou ele. - Parece-vos estar a crescer e a tornar-se forte? Gostaria tanto que tivesse o espírito do irmão. Ambos olharam para o jovem Henrique que observava as dançarinas com a cara enrubescida de emoção, de olhos brilhantes, - Oh, Henrique - disse a mãe indulgentemente. - Mas nunca houve um príncipe mais bonito e divertido do que Henrique. A dança espanhola terminou e o rei bateu palmas.

- Agora, Henrique e a irmã - ordenou. Não queria obrigar Artur a dançar diante da sua nova noiva. O rapaz dançava como um clérigo, com pernas bamboleantes e muito concentrado. Mas Henrique estava cheio de vontade de dançar e, num instante, esta­va no meio da sala com a irmã, a princesa Margaret. Os músicos conheciam os gostos musicais dos jovens da família real e tocaram uma galharda animada. Henrique atirou o casaco para o lado e lan­çou-se na dança, em mangas de camisa, como um camponês.

Ouviu-se um suspiro dos nobres espanhóis perante o compor­tamento chocante do jovem príncipe, mas a corte inglesa e os pais sorriam da sua energia e entusiasmo. Quando os dois chegaram ao fim das voltas e saltos, todos aplaudiram, rindo. Todos, excepto o príncipe Artur, que fixava um ponto longínquo, determinado em não observar a dança do irmão. Surpreendeu-se quando a mãe pou­sou a mão no seu braço.

-     Deus seja louvado por ele estar a sonhar acordado com a noite de núpcias - observou o pai para Lady Margaret, a sua mãe. - Apesar de ter as minhas dúvidas.

Ela lançou uma gargalhada aguda.

- Não posso dizer que tenha uma boa impressão da noiva - disse em tom de crítica.

- Nao tendes? - perguntou ele. - Mas vistes o tratado.

- Gosto do preço, mas o artigo não é do meu agrado - afirmou com o seu habitual sentido de humor apurado. - Ela é uma coisinha pequena e bonita, não é?

- Preferiríeis uma criada maltrapilha?

- Gostaria de uma rapariga com anca, para nos dar filhos - afirmou secamente. - Uma creche de filhos.

- Para mim, parece suficientemente adequada - decidiu. Sabia que nunca seria capaz de dizer como ela lhe parecia bem. Mesmo para si próprio, nunca deveria sequer pensar nisso.

Catarina foi colocada no leito nupcial pelas suas aias. Maria de Salinas deu-lhe um beijo de boas-noites, e Dona Elvira deu-lhe a bênção de uma mãe; mas Artur tinha de passar por mais uma série de pancadinhas nas costas e humor grosseiro, antes de os amigos e companheiros o escoltarem até ã porta dela. Colocaram-no na cama, ao lado da princesa, que permanecia imóvel e em silêncio enquanto homens estranhos se riam e lhes desejavam boa noite, e depois veio o arcebispo para salpicar os lençóis com água benta e rezar pelo jovem casal. Só teria sido um acto mais público se tives­sem aberto as portas para os cidadãos de Londres verem os jovens, lado a lado, desajeitados como travesseiros, no seu leito matrimo­nial. Pareceu a ambos que várias horas tinham passado até que as portas finalmente se fecharam sobre os rostos sorridentes e curio­sos, e os dois ficarem suficientemente sozinhos, sentados muito direitos encostados às almofadas, paralisados como um par de bonecas tímidas.

Fez-se silêncio.

-Quereis um copo de cerveja? - sugeriu Artur numa voz fina,

devido aos nervos.

Não gosto muito de cerveja - disse Catarina.

Esta é diferente. Chamam-lhe cerveja matrimonial, é adoçada com mel e especiarias. É para nos dar coragem.

Precisamos de coragem?

Sentiu-se encorajado pelo sorriso dela e saiu da cama para lhe ir buscar um copo.

-Penso que sim - respondeu. - Sois uma estranha numa terra nova, e eu nunca conheci nenhuma rapariga, além das minhas irmãs. Ambos temos muito que aprender.

Ela tirou-lhe o copo de cerveja quente da mão e experimentou a bebida, bastante forte.

-Oh, isto é bom.

Artur engoliu um copo e bebeu outro. Depois, voltou para a cama. Levantar os cobertores e deitar-se ao lado dela parecia-lhe uma imposição; a ideia de lhe levantar a camisa e de se pôr em cima dela era algo que estava além das suas forcas.

-Vou apagar a vela - anunciou. A escuridão repentina envolveu-os, apenas as cinzas da lareira produziam uma luz vermelha.

- Estais muito cansada? - perguntou, desejando que ela respondesse que estava demasiado cansada para cumprir o seu dever. - Nada_ respondeu ela educadamente, com uma voz irreal saída da escuridão. -Vós estais? _ Não.

_ Quereis dormir já? - perguntou ele.

Eu sei o que temos de fazer - afirmou ela abruptamente. -s as minhas irmãs se casaram. Sei tudo sobre esse assunto. - Eu também sei - respondeu ele, magoado.

- Não queria dizer que não sabíeis, queria dizer que não tendes de ter medo de começar. Eu sei o que temos de fazer.

- Eu não tenho medo, é só que...

Para seu horror absoluto sentiu-a levantar-lhe a camisa de dormir e tocar-lhe a pele nua da barriga.

- Não queria assustar-vos - disse ele, com a voz a tremer, sentindo-se invadido pelo desejo, apesar de morrer de medo de ser incompetente.

Eu não tenho medo - disse a filha de Isabel. - Nunca tive medo de nada.

No silêncio e na escuridão sentiu-a agarrá-lo e segurá-lo firme­mente. Com o seu toque, ele sentia o desejo a aumentar com tanta intensidade que temia ejacular na sua mão. Com um longo suspiro, pôs-se em cima dela e descobriu que ela se despira até à cintura, tendo tirado a camisa de dormir. Apalpou desajeitadamente e sen­tiu-a retrair-se quando se empurrava contra ela. Todo o processo parecia bastante impossível, não havia forma de saber o que deve­ria um homem fazer, nada para o ajudar ou orientar, nenhum conhecimento da geografia misteriosa do corpo dela, e depois ela soltou um pequeno grito de dor, abafado com a mão, e ele soube que o fizera. O alívio foi tão grande que ejaculou de imediato, um impulso semidoloroso, semiaprazível que lhe indicou que, independentemente da idéia do pai a seu respeito, do que Henrique pensava sobre si, a tarefa estava cumprida e ele era um homem e um marido

a princesa era a sua mulher e já não uma virgem intocada. Catarina esperou até ele adormecer e, depois, levantou-se e lavou-se nos seus aposentos privados. Estava a sangrar, mas sabia que pararia em breve, a dor não era pior do que esperava, Isabel,a sua irmã, dissera-lhe que não era tão doloroso como cair de um cavalo, e tinha razão. Margot, a cunhada, dissera-lhe que era o paraíso; mas Catarina não conseguia imaginar como tão profundo embaraço e desconforto podiam ser divinais - e concluiu que Margot estava a exagerar, como fazia com frequência.

Catarina voltou para o quarto. Mas não voltou para a cama invés, sentou-se peno da lareira, abraçando os joelhos e observa do as cinzas.

"Não foi um dia mau", digo para mim mesma e sorrio; é uma frase da minha mãe. Quero tanto ouvir a sua voz que estou a pro­nunciar as suas palavras para mim mesma. Muitas vezes, quando era pouco mais que um bebé. e ela passara um longo dia em cima da sela, inspeccionando os grupos de exploradores avançados cavalgando de volta para dar ânimo à comitiva mais lenta, entrava na tenda, descalçava as botas de montar deitava-se nos ricos tapetes e almofadas mouros, ao lado da braseira de bronze, e dizia: Não foi um dia mau ".

Alguma vez tendes um dia mau? - perguntei-lhe numa ocasião.

Não. quando estamos a fazer o trabalho de Deus - respondeu gravemente. - Há dias em que é fácil e há dias em que é difícil. Mas, se estamos a fazer o trabalho de Deus, nunca há dias maus.

Nem por um momento duvido que dormir com Artur, apesar da minha ousadia em ser eu a tocar-lhe e a puxá-lo para mim. seja o trabalho de Deus. É obra de Deus que exista uma aliança inquebrável entre a Espanha e a Inglaterra. Só tendo a Inglaterra como aliado fiável é que a Espanha pode desafiar a expansão da França. Apenas com a riqueza da Inglaterra, e sobretudo os navios ingleses podemos nós, Espanhóis, levar a guerra contra a crueldade até coração dos impérios muçulmanos na África e na Turquia. Os príncipes italianos são uma confusão de ambições rivais. os franceses são um perigo para qualquer vizinho, tem de ser a Inglaterra a aderir a Cruzada com a Espanha, para manterá defesa da Cristandade con­tra o poder aterrorizador dos Mouros; quer eles sejam mouros negros da África, o papão da minha infância, ou mouros de pele clara, do temível Império Otomano. E, quando estes forem derrotados, os Cruzados têm de prosseguir, para a Índia, para o Oriente, até onde tiverem de ir. para desafiar e derrotar a crueldade que é a religião dos Mouros. O meu grande receio é que os reinos sarracenos se esten­dam interminavelmente, até ao fim do mundo e nem sequer Cristóvão Colombo sabe onde fica tal lugar.

-E se não tiverem fim? - perguntei uma vez à minha mãe, quando nos debruçávamos nas paredes aquecidas pelo sol do forte observávamos a partida de um novo grupo de mouros que abandonava a cidade de Granada, com a bagagem transportada por mulas, as mulheres a chorar, os homens de cabeça vergada, a bandeira de Santiago a esvoaçar, então, no forte vermelho, onde o crescente ondulará durante sete séculos, os sinos a tocar para a Missa, onde outrora as      cornetas haviam soado para as rezas hereges.

- e agora, que derrotamos estes, eles regressam a África e voltam no próximo ano?

- É por isso que tens de ser corajosa, minha Princesa de Gales. _ respondera a minha mãe na altura. - É por isso que tens de estar pronta para combatê-los sempre que vierem, para onde vierem. Isto é uma guerra até ao fim do mundo, até ao fim dos tempos, quando Deus finalmente lhe puser um fim. Vai assumir muitas for­mas. Nunca cessará. Vão voltar uma e outra vez. e terás de estar preparada, em Gales, assim como nós estaremos preparados na Espanha. Concebi-te para seres uma princesa lutadora, assim como eu sou uma Princesa Militante. Eu e o teu pai pusemos-te na Inglaterra como Maria foi posta em Portugal, como Joana foi colo­cada junto dos Habsburgos. na Holanda. Vocês estão lá para defenderas terras dos vossos maridos, e para manterem as alianças con­nosco. É a tua tarefa deixar a Inglaterra preparada e mantê-la segura. Certifica-te de que nunca desapontarás o teu país, assim como as tuas irmãs não podem desapontar os delas, como eu nunca desapontei o meu.

Catarina foi despertada bastante cedo por Artur, que exercia uma pressão suave entre as suas pernas. Ela permitiu, ressentida, sabendo que esta era a forma de conseguir um filho e de tornar a aliança segura. algumas princesas, como a sua mãe, tinham de combater em guerra aberta para proteger o reino. A maioria das princesas, como ela, tinha de suportar provações dolorosas em privado. Não demorou muito, e depois, ele adormeceu. Catarina permaneceu imóvel como uma pedra congelada, para não voltar a acordá-lo. Ele só acordou ao nascer do dia, quando os criados de quarto bateram ruidosamente à porta. Ele levantou-se dizendo-lhe um "Bom dia" ligeiramente embaraçado; e saiu. receberam-no com saudações elevaram-no triunfantemente para os seus aposentos,Catarina ouviu-o comentar em tom vulgar, gabando-se:

-Cavalheiros, esta noite estive na Espanha - e ouviu a gar lhada que aplaudiu a sua piada. As aias entraram com o roupão e ouviram os risos dos homens. Dona Elvira levantou as sobran lhas finas para o céu, pelos modos destes ingleses.

-Não sei o que a vossa mãe diria - observou Dona Elvira

-Diria que as palavras são menos importantes do que a vontade de Deus, e a vontade de Deus foi cumprida - afirmou Catarina com firmeza.

Com a minha mãe não foi assim. Ela apaixonou-se pelo meu pai assim que o viu e casou com ele com grande felicidade. Depois de crescer, comecei a compreender que sentiam um desejo autêntico um pelo outro - não era apenas uma parceria poderosa de um gran­de rei e uma grande rainha. O meu pai podia ter outras mulheres como amantes: mas precisava da mulher, não conseguia ser feliz sem ela. E a minha mãe nem sequer conseguia estar com outro homem. Não tinha olhos para mais ninguém que não fosse o meu pai. A Espanha era a única, de todas as cortes da Europa, que não tinha tradição de jogos amorosos ou de namoriscos, de adoração da rainha, na prática do amor cortesão. Teria sido uma perda de tempo. A minha mãe simplesmente não reparava noutros homens e, quando eles suspiravam por ela, e diziam que os seus olhos eram tão azuis como o céu, ela limitava-se a sorrir e dizia: "Que disparate".E tudo acabava aí.

Quando os meus pais tinham de estar separados, escreviam-se todos os dias, ele não dava um passo sem lhe dizer, sem lhe pedir a opinião. Quando ele estava em perigo, ela não conseguia dormir.

Ele nunca teria conseguido atravessar a Serra Nevada se ela não lhe enviasse homens e equipas de escavadores para abrir a estrada. Mais ninguém teria conseguido abrir uma estrada nesse local. Ele não teria confiado em mais ninguém para o apoiar, para manter o reino unido, á medida que avançava. Ela não poderia conquistar as montanhas para mais ninguém, ele era o único que conseguia atrair o seu apoio. O que parecia uma união admirável de dois jogadores previdentes, era enganador- era a sua paixão que jogavam no palco político. Ela era uma grande rainha, porque era assim que conseguia suscitar o seu desejo. Ele era um grande gene­ral para poder estar à altura dela. Era o seu amor. o seu desejo, que os movia; quase tanto como Deus.Somos uma família passional. Quando Isabel, a minha irmã agora com Deus, voltou de Portugal, jurou que amara tanto o marido que nunca casaria com outro homem. Estivera com ele apenas seis meses, mas afirmou que, sem ele a vida não tinha sentido.Joana, a minha segunda irmã. está tão apaixonada pelo marido, Filipe, que não   suporta perdê-lo de vista, quando sabe que ele está interessado por outra mulher,jura que envenenará a rival, é bastante louca de amor por ele. E o meu irmão... o meu querido irmão,João.. simplesmente morreu de amor. Ele e a sua bonita mulher, Maraarida, eram tão apaixonados, tão cegos um pelo outro, que a sua saúde começou a fraquejar, morreu seis meses depois do casa­mento. Haverá algo mais trágico do que um jovem morrer seis meses após o casamento? Eu venho de uma família passional - e eu? Alguma vez me apaixonarei?

Não por este rapaz desajeitado, seguramente. A minha primei­ra impressão positiva a seu respeito desvaneceu-se bastante. É dema­siado tímido para falar comigo, murmura e finge não conseguir pensar nas palavras. Obrigou-me a liderar no quarto, e eu tenho vergonha de ter tido de ser eu a tomar a iniciativa. Ele transforma-me numa mulher sem vergonha, uma mulher vulgar, quando quero ser adorada como uma dama de um romance. E se eu não o tivesse convidado - que poderia ele ter feito? Agora, sinto-me uma tonta, e culpo-o pelo meu embaraço. Na Espanha". de facto! Nem sequer se teria aproximado das Índias se eu não lhe mostrasse como fazê-lo. Que cachorrinho estúpido!

Quando o vi pela primeira vez, pensei que era tão bonito como um cavaleiro dos romances, como um trovador, como um poeta. Pensei que podia ser como uma dama numa torre e ele poderia can­tar sob a minha janela e persuadir-me a amá-lo. Mas apesar de ter a aparência de um poeta, falta-lhe a inteligência. Nunca consigo arrancar-lhe mais de duas palavras, e começo a sentir que estou a abaixar-me ao tentar agradar-lhe.

É evidente que nunca esquecerei que é meu dever suportar este jovem Artur. A minha esperança é sempre a de um filho, e o aconteça o que acontecer serei Rainha da Inglaterra protegida dos Mouros. Fá-lo-ei:

aconteça o que acontecer, serei Rainha da Inglaterra e protegerei os meus dois países: a Espanha da minha nascença e a Inglaterra do meu casamento.

 

                          Londres, Inverno de 1501

Artur e Catarina, de pé, hirtos, lado a lado. na barcaça real, mas não trocando nem uma palavra, lideravam uma grande frota de bar­caças que descia o rio em direcção ao Castelo de Baynard, que seria a sua residência em Londres, nas semanas seguintes. Era um palá­cio enorme e rectangular, num edifício sobre o rio, com jardins que se estendiam até à beira da água. O Mayor de Londres, os conselheiros e toda a corte seguiam a barcaça real; e os músicos tocavam, enquanto os herdeiros do trono ocupavam a sua residência no cen­tro da cidade.

Catarina reparou que os enviados escoceses haviam compareci­do em grande número, para negociar o casamento da sua nova cunha­da, a princesa Margaret. O rei Henrique usava os filhos como peões no seu jogo de poder, como todos os reis têm de fazer. Artur estabe­lecera a ligação vital com a Espanha. Margaret. apesar de ter apenas doze anos, transformaria a Escócia em amiga, em vez da inimiga que fora durante gerações. A princesa Mary também se casaria, quando chegasse a sua altura, com o maior inimigo que o país enfrentava ou com o maior amigo, que esperavam manter. Catarina sentia-se feliz por ter sabido desde a infância que seria a próxima Rainha da Inglaterra. Não houvera mudanças na política nem alterações nas alianças. Fora a-próxima-rainha da Inglaterra quase desde o nascimento. Isso tornou muito mais fácil a separação da sua casa e família.

Reparou que Artur estava muito contido nos cumprimentos, quando se encontrou com os lordes escoceses ao jantar, no Palácio de Westminster.

Escoceses são os nossos inimigos mais perigosos - disse a Catarina, Edward Stafford, Duque de Buckingham, num castelhano murmurado, quando se encontravam ao fundo da sala, aguardando que a companhia ocupasse os seus lugares. - O rei e o príncipe esperam que este casamento os torne nossos amigos eternos, que ligue os Escoceses a nós. Mas é difícil, para qualquer um de nós esquecer como nos perseguiram constantemente. Todos fomos educados sabendo que temos um inimigo constante e cruel a norte.

- Com certeza eles não passam de um reino pobre e pequeno - interrogou-se ela. - Que mal nos podem fazer?

Aliam-se sempre à França - explicou ele. - Sempre que entramos numa guerra com a França, eles estabelecem alianças e invadem as nossas fronteiras a norte. E, podem ser pequenos e pobres, mas representam a porta de entrada para o perigo terrível de a França nos invadir a partir do Norte. Penso que Vossa Graça sabe desde a vossa infância que. mesmo um pequeno país na fronteira, pode constituir um perigo.

Bem. os Mouros, no final, só tinham um pequeno reino -observou. - O meu pai sempre disse que os Mouros eram como uma doença. Podiam ser uma pequena irritação, mas estavam sem­pre lá.

Os Escoceses são a nossa praga — concordou ele. - Uma vez em cada três anos, mais ou menos, invadem-nos e fazem uma pequena guerra, e nós perdemos meio hectare de terra ou recupe­ramo-lo. E todos os Verões assediam as regiões da fronteira e rou­bam aquilo que eles próprios não conseguem cultivar ou produzir. Nenhum camponês do Norte alguma vez esteve a salvo deles. O rei está determinado em ter paz.

- Vão tratar bem a princesa Margaret?

- A sua maneira rude - sorriu. - Não como vós fostes recebida, Infanta.

Catarina devolveu o sorriso. Sabia que tinha tido um acolhimento caloroso na Inglaterra. Os habitantes de Londres abriram os corações á princesa espanhola, apreciavam o glamour ostentador da sua comitiva, a estranheza das suas roupas e gostavam da forma como a princesa sorria para a multidão. Catarina aprendera com a mãe que as pessoas são um poder superior a um exército de mercenários e nunca voltou a cabeça a uma saudação. Acenava sempre, sorria sempre e se lançassem um grande alarido de aplausos, ela encenaria ainda uma bonita reverência.

Olhou de relance para o local onde a princesa Margaret, uma

rapariga frívola e precoce, estava a alisar o vestido e a colocar o t cado. antes de entrar no salão.

- Em breve ireis casar-vos e partireis para longe, como eu observou Catarina divertidamente em francês. - Espero sinceram te que vos traga felicidade.

A rapariga mais jovem olhou para ela com ar seguro.

Não foi como vós, porque vós viestes para o melhor rei da Europa, enquanto eu tenho de ir para longe, para o exílio - afirmou.

A Inglaterra pode ser excelente para vós. mas para mim ainda é um país estranho - respondeu Catarina, tentando não provocar os maus modos da rapariga. - E se tivésseis visto a minha casa na Espanha, ficaríeis surpreendida por ver quão fabuloso é o nos palácio lá.

Não há nenhum lugar melhor do que a Inglaterra - dis Margaret com a convicção serena de uma das crianças mimac Tudor. - Mas vai ser bom ser rainha. Enquanto vós sois apenas ua princesa, eu serei rainha. Serei igual á minha mãe. - Pensou por momento. - Na verdade, serei igual à vossa mãe.

A cor subiu ao rosto de Catarina.

- Nunca seríeis igual à minha mãe - respondeu. - Sois ui tonta só de o dizer.

Margaret arfou.

- Vá lá. Vossa Alteza Real - interrompeu o Duque rapidamente. - O vosso pai está pronto para ocupar o lugar. Podeis segui- lo até ao salão?

Margaret voltou-se e, num rompante, afastou-se de Catarina.

Ela é muito jovem - afirmou o Duque apaziguadoramente. E apesar de nunca o admitir, tem medo de deixar o pai e a mãe | ir para tão longe.

Tem muito para aprender - afirmou Catarina entre dentes. Deveria aprender os modos de uma rainha, se vai sê-lo - Voltou- se para Artur que estava ao seu lado, pronto para a conduzir para dentro do salão, atrás dos pais.

A família real ocupou os seus lugares. O rei e os dois filhos : taram-se na mesa mais alta, sob a cobertura de dossel do EstaO voltada para o salão; à sua direita estavam a rainha e as prince Sua Alteza, a Mãe do Rei, Margaret Beaufort, estava sentada ao la do rei, entre este e a sua mulher.

- Margaret e Catarina tiveram uma discussão quando entrava - contou-lhe ela com uma satisfação sarcástica. - Calculei que a Infanta iria irritar a nossa princesa Margaret, não suporta ver demasiada atenção ser dada a outra., e todos fazem tanto alarido em volta de Catarina.

 

-Margaret vai partir em breve – disse Henrique curtamente. – Então, poderá ter a sua própria corte, e a sua própria lua-de-mel.

- Catarina tornou-se o centro da corte – queixou-se a mãe do rei. – O palácio está cheio de pessoas que vêm observá-la a jantar. Todos querem vê-la.

- Ela não passa de uma novidade, uma maravilha com sete dias. E, de qualquer forma, quero que as pessoas a vejam.

Ela tem algum encanto - reparou a mulher idosa. O criado que trazia o jarro apresentou uma taça dourada cheia de água per­fumada e Lady Margaret mergulhou as pontas dos dedos, limpando-as em seguida ao guardanapo.

- Eu acho-a muito agradável - afirmou Henrique enquanto limpava as mãos. - Passou pelo casamento sem dar um passo em falso, e as pessoas gostam dela.

A mãe fez um gesto pequeno de rejeição.

-      Está doente com a própria vaidade, não foi educada da forma como eu educaria uma filha minha. A sua vontade não foi contra­riada para a obrigar a obedecer. Considera-se algo de especial.

Henrique olhou para a princesa que estava do outro lado. Inclinara a cabeça para ouvir algo que estava a ser dito pela mais jovem princesa Tudor, a princesa Mary; viu-a sorrir e responder. Sabeis? Eu penso que ela é algo de especial - afirmou.

As celebrações continuaram durante vários dias e, depois, a corte mudou-se para o recém-construído e glamoroso Palácio de Richmond, edificado num grande parque grande e bonito. Para Catarina, numa espiral de rostos estranhos e apresentações, foi como um combate e uma festa fundidos num só, consigo no centro de tudo, uma rainha tão celebrada como qualquer sultana, com um país dedicado à sua diversão. Mas, uma semana depois, a festa foi concluída com o rei a dirigir-se-lhe para lhe dizer que era chegada a altura de as suas aias espanholas voltarem para casa.

Catarina sempre soubera que a pequena corte que a acompanhara através de tempestades e de um naufrágio iminente, pra a entregar ao seu novo marido, a deixaria quando o casamento estivesse terminado e a primeira metade do dote paga; mas foram dias tristes, aqueles em que fizeram as suas malas e se despediram da princesa. Ficaria com o pequeno grupo de criados domésticos damas de companhia, o camareiro, o tesoureiro e os seus criad directos, mas o resto do seu séquito teria de partir. Mesmo sabendo como sabia, que a vida era assim, que o grupo de convidados para o casamento partia sempre após o mesmo, isso não a fazia sentir-se menos despojada. Enviou-os com mensagens para todos em Espanha e com uma carta para a mãe.

 

'Da filha, Catarina, 'Princesa de Gales,

para Sua Alteza Real de Castela e Aragão, e a mais querida Madre, Oh, Madre!

Tal como estas damas e cavalheiros vos dirão, o principe e eu dispomos de uma boa casa perto do rio. Chama-se Castelo de Baynard, apesar de não ser um castelo, mas um palácio e recém-construído. Não há casas de banho, nem para mulheres nem para homens. Sei o que estais a pensar. Nem podeis imaginar.

A Dona Elvira mandou o ferreiro fazer-me um grande caldeirão que aque­cem na lareira da cozinha, e seis criados trazem-no para o meu quarto, para eu tomar banho. Por outro lado, não existem jardins lúdicos com flores, nem regatos, nem fontes, é bastante invulgar. Tudo parece estar ainda por acabar. Na melhor das hipóteses, têm um pátio a que chamam jardim dos nos, onde posso dar voltas e voltas até ficar tonta. A comida não é boa e o vinho é muito azedo. Só comem jrutas de conserva e penso que nunca ouviram falar de legumes.

Não deveis pensar que me estou a queimar, queria que soubésseis que, mesmo com estas pequenas dificuldades, estou contente por ser a princesa. O príncipe Artur e simpático e atencioso comigo, quando estamos junto.-, que é geralmente ao jantar. Ofereceu-me uma égua muito bonita de raça da Barbária, misturada com inglesa, e eu monto-a todos os dias. Os nobres da corte combatem (mas não os príncipes); o meu defensor é frequentemente o Duque de Buckingham, que e muito sim- pático comigo, aconselha-me em matérias relacionadas com a corte, e diz-me como avançar.

Com frequência, jantamos todos juntos, ao estilo inglês. As mulheres te os seus próprios aposentos, mas as visitas masculinas ou os criados entram e saem como se fossem públicos, não há reclusão das mulheres. O único lugar onde posso ter a certeza de estar sozinha é se me trancar nos sanitários - caso contrario,há gente por todo o lado.

A rainha Isabel, apesar de muito calada, é bastante simpática comigo quando nos encontramos, e agrada-me. estar na companhia dela. Sua Alteza, a Mãe do muito fria; mas penso que é assim com toda a gente, excepto com o rei e com príncipes. Centra as atenções nofilho e nos netos. Dirige a corte como se ela própria fosse a rainha. É muito devota e séria. Tenho a certeza de que é muito admirável em todos os sentidos devereis querer saber se estou grávida. Ainda não há sinais. Gostareis de saber se leio a minha Bíblia ou os meus livros sagrados durante duas horas, todos os dias, mandou, que vou à Missa três vezes por dia e comungo todos os domingos. O padre Alessandro Geraldini está bem, é um guia espiritual tão importante na Inglaterra como era na Espanha, e eu confio nele e em Deus para me manterem forte na fé, para cumprir a obra de Deus na Inglaterra, tal como a mãe faz na Espanha.

A Dona Elvira mantém as minhas aias em ordem e eu obedeço-lhe como vos obedeceria a vós. A Maria de Salinas é a minha melhor amiga, aqui como em casa, apesar de nada aqui ser como Espanha, e eu não suporto que ela fale de casa.

Serei a princesa que queríeis que eu fosse. Não vos desiludirei, nem a Deus. Serei rainha e defenderei a Inglaterra dos Mouros.

Por favor, escrevei-me em breve, e dizei-me como estais. Parecestes-me tão triste e deprimida quando parti, espero que estejais melhor agora. Espero que a escuridão que vistes na vossa mãe passe por vós, e não se instale na vossa vida como se instalou na dela. Seguramente, Deus não vos infligiria tamanha tristeza, a vós, que sempre fostes a Sua favorita? Rezo por vós e pelo Tai todos os dias. Ouço a vossa voz na minha cabeça, a aconselhar-me a toda a hora. Tor favor, escrevei em breve à vossa filha que vos ama tanto.

Catarina

  1. Apesar de estar feliz por me ter casado, e por ter sido chamada a cumprir o meu dever pela Espanha e por Deus, tenho muitas saudades vossas. Sei que antes de mãe sois rainha, mas ficaria tão feliz por receber uma carta vossa. C-

 

A corte organizou uma despedida alegre para os espanhóis, mas para Catarina era difícil sorrir e acenar. Depois de eles partirem.

dirigiu-se à beira-rio para ver a ultima das barcaças tornar-se mais pequena e depois desaparecer no horizonte e foi aí que o rei Henrique a encontrou, uma figura solitária, no embarcadouro, a olhar para a água que corria rio abaixo, como se também desejasse partir. O rei conhecia demasiado bem as mulheres para lhe perguntar qual era o problema: solidão e saudades de casa, algo bastante natural numa jovem de quase dezasseis anos. Ele fora um exilado da Inglaterra durante quase toda a vida, conhecia muito bem os altos e baixos da nostalgia que surge com um odor inesperado, a mudança de estações, uma despedida. Pedir-lhe uma explicação só iria desencadear um rio de lágrimas e não teria qualquer utilidade. Ao invés, prendeu a sua pequena mão gelada sob o seu braço e disse que ela tinha de ver a biblioteca que reunira recentemente no palá­cio e de onde poderia levar livros emprestados, para ler em qualquer altura. Deu uma ordem por cima do ombro a um dos pajens, enquanto conduzia a princesa para a biblioteca e lhe mostrava as bonitas prateleiras, indicando-lhe não apenas os autores clássicos e as histórias do seu próprio interesse, mas também as histórias de romance e heroísmo que considerava mais apropriadas para a divertir.

Ela não se queixou e limpou os olhos assim que o vira diri­gir-se a ela. Fora educada numa escola rígida. Isabel da Espanha fora mulher de um soldado e ela própria um soldado, não educara nenhuma das filhas para se permitirem ser indulgentes consigo mesmas. Pensou que não existia uma jovem na Inglaterra que pudesse comparar-se, que tivesse o autocontrolo desta rapariga. Mas havia sombras sob os olhos azuis da princesa e, apesar de aceitar os volumes que lhe indicara com um agradecimento, continuava a não sorrir.

- E gostais de mapas? - perguntou-lhe ele. Ela assentiu com a cabeça.

Claro - disse. - Na biblioteca do meu pai temos mapas do mundo inteiro, e Cristóvão Colombo desenhou-lhe um mapa para lhe mostrar as Américas.

O vosso pai tem uma grande biblioteca? - perguntou, enciu­mado da reputação dele como estudioso.

A sua hesitação educada, antes de lhe responder, disse tudo, disse-lhe que aquela biblioteca ali, de que estava tão orgulhoso, não era nada, comparada com o conhecimento dos Mouros da Espanha.

- É claro que o meu pai herdou muitos livros, não são todos da sua colecção pessoal - acrescentou Catarina com tacto. - Muitos deles são de autores mouros, de estudiosos mouros. Sabeis que os Árabes traduziram os autores gregos, antes sequer de estes serem traduzidos para francês, italiano ou inglês? Os Árabes dominavam todas as ciências e matemáticas quando foram esquecidas na Cristandade. Ele possui todas as traduções mouras de Aristóteles. Sófocles e de todos.

Ele sentia o anseio por uma nova aprendizagem como uma fome.

- Ele tem muitos livros?

- Milhares de volumes - respondeu ela. - Em hebraico e árabe, latim e também em todas as línguas cristãs. Mas não os lê todos, tem estudiosos árabes para os estudar.

_ E os mapas? - perguntou ele.

- É aconselhado sobretudo por navegadores e cartógrafos árabes - respondeu ela. - Percorrem distâncias tão grandes, que apren­deram a traçar a rota através das estrelas. As viagens por mar são, para eles, o equivalente a uma viagem pelo meio do deserto. Dizem que uma extensão de água é o mesmo que uma planície de areia, utilizam as estrelas e a lua para medirem a viagem, em ambas as situações.

_ E o vosso pai pensa que retirará muito proveito das suas novas descobertas? - perguntou o rei com curiosidade. - Ouvimos falar das grandes viagens de Cristóvão Colombo e dos tesouros que trouxe consigo.

Admirou a forma como as suas pestanas se fecharam para ocul­tar o brilho.

- Oh, não poderia dizê-lo - evitou a pergunta de uma forma inteligente. - Com certeza, a minha mãe pensa que existem muitas almas a salvar para Jesus.

Henrique abriu a enorme pasta que continha a sua colecção de mapas e abriu-os diante dela. Nos cantos, surgiam monstros mari­nhos, em belas iluminuras. Mostrou-lhe a costa da Inglaterra, as fronteiras do Sacro Império Romano, o conjunto de regiões da frança, as novas fronteiras alargadas do seu próprio país, a Espanha, e as terras papais na Itália.

Percebeis agora porque é que eu e o vosso pai temos de ser amigos? - disse-lhe. - Ambos enfrentamos o poder da França à nossa porta. Nem sequer podemos negociar um com o outro, se não mantivermos a França longe dos mares estreitos.

Se o filho de Joana herdar as terras dos I Habsburgos, terá dois reinos - indicou ela. - A Espanha e também a Holanda.

- E o vosso filho terá toda a Inglaterra, uma aliança com a Escócia e todas as nossas terras na França - afirmou, passando com a palma da mão aberta por cima do mapa. - Serão dois primos poderosos.

Ela sorriu com a ideia, e Henrique detectou nela a ambição.

- Gostaríeis de ter um filho que governasse metade da Cristandade?

- Que mulher não gostaria? - perguntou ela. - E o meu filho e o e Joana conseguiriam seguramente derrotar os Mouros, poderiam obrigá-los a recuar muito para além do mar Mediterrâneo?

- Ou talvez conseguissem encontrar uma forma de viverem em paz - sugeriu ele. - Só porque um homem Lhe chama Alá e outro Lhe chama Deus. não há motivos para os crentes serem inimigos, certo

Catarina abanou a cabeça de imediato.

Creio que esta terá de ser uma guerra eterna. A minha mãe diz que esta é a grande batalha entre Deus e o Mal, que se prolon­gará até ao final dos tempos.

Então, estareis em perigo eternamente - contestou, quando se ouviu uma pancada na enorme porta de madeira da biblioteca. Era o pajem a quem Henrique ordenara que saísse rapidamente, e que trazia um ourives baralhado, que esperava há vários dias para apresentar o seu trabalho ao rei e estava bastante surpreendido por ter sido chamado tão de repente.

- Agora - disse Henrique à nora - tenho uma surpresa para vós. Ela levantou o olhar para ele.

- Deus me valha - pensou ele. - Só um homem de pedra não desejaria ter esta florzinha na sua cama. Juro que conseguiria fazê--la sorrir, e de qualquer forma, adoraria tentar.

- Tendes?

Henrique fez um gesto para o homem que retirou um pedaço de veludo cor-de-vinho do bolso, e despejou o conteúdo da mochi­la sobre o fundo escarlate. Uma confusão de jóias, diamantes, esmeraldas, rubis, pérolas, correntes, cadeados, brincos e broches foi rapidamente espalhada diante dos olhos deslumbrados de Catarina.

- Podeis escolher - disse Henrique, num tom caloroso e ínti­mo. - É o meu presente privado, para devolver o sorriso ao vosso rosto bonito.

Mal o ouviu, num instante estava sentada à mesa, diante do ourives que lhe mostrava um item valioso a seguir ao outro. Henrique observou-a com indulgência. Ela poderia ser uma prince­sa com uma linhagem pura de aristocratas de Castela, enquanto ele era neto de um trabalhador; mas era uma rapariga que se deixava comprar, tão facilmente como qualquer outra. E ele dispunha dos meios para lhe agradar.

- Prata? - perguntou.

Ela olhou-o com um rosto sorridente

- Prata, não - respondeu decididamente.

Henrique recordou que esta era uma rapariga que vira o tesou­ro dos Incas ser posto aos seus pés.

Ouro, então?

Sim, prefiro ouro.

Pérolas?

Esboçou um trejeito com a boca.

"Meu Deus, ela tem uma boca que apetece beijar", pensou.

- Não quereis pérolas? - perguntou em voz alta

- Não são as minhas preferidas - afiançou. Sorriu para ele. -Qual é a vossa pedra favorita?

Ela está a provocar-me", disse para si mesmo, espantado com ideia. "Está a brincar comigo, como faria com um tio indulgente. Está a lançar-me um isco como a um peixe."

- Esmeraldas?

Ela sorriu novamente.

- Não. Isto - disse ela simplesmente.

Tinha escolhido, num instante, a peça mais valiosa do conjun­to do joalheiro, um colar de safiras do azul mais profundo, que fazia conjunto com uns brincos. Graciosamente, colocou o colar sobre as bochechas macias para que ele pudesse olhar para os seus olhos e para as jóias. Deu um passo para se aproximar dele, de forma a que ele pudesse sentir o cheiro do seu cabelo, a água de flor de laranjeira dos jardins do Alhambra. Cheirava como se ela própria fosse uma flor exótica.

- Combinam com os meus olhos? - perguntou-lhe. - Os meus olhos são tão azuis como as safiras?

Ele respirou fundo, surpreendido com a violência da sua reacção.

- São. Serão vossos - respondeu, quase sufocando no seu desejo por ela. - Tereis estes e tudo o que desejardes. tereis de dizer qual é o vosso... vosso... desejo.

O olhar que ela lhe lançou foi de felicidade pura.

- E as minhas damas de companhia, também?

- Chamai as vossas damas de companhia, elas que escolham. Ela riu-se de prazer e correu para a porta. Ele deixou-a ir.

Não confiava em si próprio para ficar sozinho com ela na sala. À pressa, retirou-se para a sala e encontrou a mãe, que voltava da missa.

Ajoelhou-se e ela pousou-lhe os dedos na cabeça em sinal de bênção.

Meu filho.

Senhora, minha mãe.

Levantou-se. Ela apercebeu-se rapidamente do rubor na sua face e da sua energia contida.

- Alguma coisa vos perturbou?

- Não!

Ela suspirou.

- E a rainha? É Isabel? - perguntou sem paciência. - Está a queixar-se do casamento de Margaret com o escocês?

- Não - respondeu ele. - Ainda não a vi hoje.

- Vai ter de se acostumar - disse ela. - Uma princesa não pode escolher com quem vai casar e quando sai de casa. Isabel sabê-lo--ia. se tivesse sido devidamente educada. Mas não foi.

Ele esboçou o seu sorriso cínico.

- Mas isso não é culpa dela.

O desdém da mãe era evidente.

- Nenhum bem poderia alguma vez advir-lhe da mãe - disse secamente. - Má linhagem, os Woodville.

Henrique encolheu os ombros e não disse nada. Nunca defen­dera a mulher perante a mãe - a sua malícia era tão permanente e tão impenetrável, que era uma perda de tempo tentar fazê-la mudar de ideias. Nunca defendera a mãe perante a mulher; nunca teve de fazê-lo. A rainha Isabel nunca teceu qualquer comentário a respeito da sua difícil sogra ou do marido exigente. Aceitou-o, à sua mãe. ao seu governo autocrático, como se fossem riscos naturais, tão desagradáveis e inevitáveis como o mau tempo.

- Não deveis permitir que ela vos perturbe - disse-lhe a mãe.

- Ela nunca me perturbou - respondeu ele, pensando na prin­cesa que o perturbava.

Agora, tenho a certeza de que o rei gosta de mim, muito mais do que de todas as filhas, e isso deixa-me feliz. Estou habituada a ser a filha preferida, o bebé da família. Agrada-me quando sou a favo­rita do rei. gosto de sentir que sou especial.

Quando ele percebeu que eu estava triste, por o meu séquito ir voltar para a Espanha e por me deixarem na Inglaterra, passou a tarde comigo, mostrando-me a sua biblioteca, falando sobre os seus mapas, e por fim. oferecendo-me um requintado colar de safiras. Deixou-me escolher exactamente aquele que eu queria, da colecção do joalheiro, e disse que as safiras eram da cor dos meus olhos.

A princípio, não gostei muito dele, mas estou a habituar-me ao seu discurso abrupto e aos seus modos bruscos. É um homem cuja palavra é lei nesta corte, e nesta terra, e não deve agradecimentos a ninguém, excepto talvez à Senhora Sua Mãe. Não tem amigos próximos, nem intimos, à excepção dela e dos soldados que combateram com ele. que são agora os grandes senhores da sua corte. Não é meigo com a mulher nem caloroso com as filhas, mas agrada-me que me dê atenção, talvez venha a gostar dele. como uma filha, já fico contente por ele reparar em mim. Numa corte conto esta. que gira em volta da sua aprovação, faz-me sentir mesmo uma princesa, quando me elogia, ou passa tempo comigo.

Se não fosse ele, julgo que me sentiria ainda mais só. O príncipe, meu marido, trata-me como se eu fosse uma mesa ou uma cadei­ra Nunca fala comigo, numa sorri para mim, nunca inicia uma conversa, limita-se a responder. Penso que fui uma tonta quando pensei que parecia um trovador. Parece um efeminado, e essa é a verdade. Nunca levanta a voz acima de um murmúrio, nunca diz nada que tenha interesse. Até pode saber falar francês e latim e uma dúzia de línguas, mas se não tem nada para dizer- para que servem? Vivemos como estranhos e se ele não viesse ao meu quarto ã noite, uma vez por semana, como se estivesse a cumprir uma obri­gação, não me aperceberia de que estou casada.

Mostrei as safiras à irmã, a princesa Margaret, e ela roeu-se de inveja. Terei de confessar ter cometido o pecado da vaidade e do orgulho. Não é correcto da minha parte estar a exibi-las diante dela; mas se ela alguma vez tivesse sido simpática comigo, por palavras ou actos, não lhas teria mostrado. Quero que saiba que o pai me apre­cia, mesmo que ela, a avó e o irmão não o façam. Mas tudo o que fiz foi aborrecê-la e comportar-me mal, e terei de confessar e de cumprir uma penitência.

O pior de tudo é que não me comportei com a dignidade que uma princesa da Espanha deve sempre demonstrar. Se ela não fosse tão vulgar eu poderia ter sido melhor. Esta corte dança em volta do rei como se, no mundo, nada fosse mais importante do que o seu favor, e eu não devia adoptar o mesmo tipo de atitude. No mínimo, não devia estar a comparar-me com uma rapariga que é quatro anos mais nova do que eu e apenas uma princesa da Inglaterra, mesmo que se autodenomine Rainha da Escócia em todas a oportu­nidades.

Os jovens Príncipe e Princesa de Gales terminaram a visita a Richmond e começaram a constituir a sua residência real no Castelo de Baynard. Catarina tinha os seus aposentos na parte de trás da casa, voltados para o jardim e o rio. com os seu criados, as damas e companhia espanholas, o capelão espanhol e a ama, e os aposentos de Artur estavam voltados para a cidade, com os criados, o seu capelão e o seu tutor. Encontravam-se formalmente, uma vez por dia, para jantar, enquanto os seus dois séquitos permaneciam em lados opostos do salão e se entreolhavam com desconfiança mútua, mais como inimigos, no meio de umas tréguas forçadas, do que como membros de um lar unido.

O castelo era gerido de acordo com as ordens da Lady Margaret, a mãe do rei. Os dias de festa e de jejum, os entreteni­mentos e o horário diário, eram todos dirigidos por ela. Mesmo as noites em que Artur deveria visitar a mulher, no seu quarto, haviam sido designadas por ela. Não queria que o jovem casal ficasse exaus­to, mas também não pretendia que negligenciassem os seus deve­res. Por isso, uma vez por semana, os criados e os amigos do prín­cipe escoltavam-no solenemente até ao quarto da princesa e deixa­vam-no passar lá a noite. Para os dois jovens, a experiência era uma provação e um embaraço. Artur não se tornara mais habilidoso, Catarina aguentava a sua determinação silenciosa, o mais educada­mente que conseguia. Mas um dia, no início de Dezembro, Catarina estava com o período menstrual e disse-o a Dona Elvira. A ama transmitiu imediatamente ao criado de quarto do príncipe que este não poderia visitar a cama da princesa durante uma semana; a Infanta estava indisposta. Meia hora depois, todos, desde o rei, em Whitehall, ao criado da escarradeira do Castelo de Baynard, sabiam que a Princesa de Gales estava com o período e que, assim, nenhu­ma criança fora ainda concebida, e todos, desde o rei ao criado da escarradeira, se interrogaram, uma vez que a rapariga era ardente e forte e uma vez que tinha os seus períodos - obviamente era fértil - se Artur seria capaz de cumprir a sua parte da obrigação.

Em meados de Dezembro, quando a corte se preparava para a grande festa de doze dias do Natal, Artur foi chamado pelo pai, sendo-lhe ordenado que se preparasse para partir para o seu caste­lo de Ludlow.

-Presumo que pretendais levar a vossa mulher convosco - afirmou o rei, sorrindo para o filho, esforçando-se por parecer des­preocupado.

-Como desejardes, senhor - respondeu Artur cuidadosamente.

- O que desejais vós?

Depois de aguentar uma semana em que não lhe foi permitido aproximar-se da cama de Catarina, com todos a comentarem entre si que não fora concebida nenhuma criança - mas para ter a certe­za, ainda era cedo, e poderia não ser culpa de nenhum dos dois -Artur sentia-se embaraçado e desencorajado. Não voltara ao quarto dela, e ela não enviara nenhuma mensagem convidando-o. Não podia esperar por uma mensagem - sabia que era ridículo – uma da Espanha não podia chamar o príncipe da Inglaterra; mas ela sorrira nem o incentivara de forma alguma. Não recebera nenhuma mensagem a dizer-lhe para retomar as suas visitas, e não fazia ideia de quanto tempo duravam estes mistérios. Não havia ninguém a quem pudesse perguntar, e não sabia o que deveria fazer. -Ela não parece muito feliz - observou Artur.

_Tem saudades de casa - disse o pai rapidamente. - Cabe-vos distrai-la. Levai-a convosco para o Castelo de Ludlow. Comprai-lhe presentes. E uma rapariga igual as outras. Elogiai a sua beleza. Contai-lhe piadas. Namoriscai-a.

Artur parecia bastante desorientado.

- Em latim?

O pai lançou uma gargalhada ruidosa.

-Rapaz. Podeis fazê-lo em galês, se os vossos olhos sorrirem e estiverdes com uma erecção. Ela perceberá o que quereis dizer. Juro. É uma rapariga que sabe muito bem o que significa um homem.

Não houve alegria na resposta do filho.

Sim, senhor.

Se não a quereis junto de vós, não sois obrigado a levá-la este ano, sabeis. Era suposto casarem e passarem o primeiro ano separados.

Isso era quando eu tinha catorze anos.

Foi há um ano.

Sim, mas...

Então, quereis que ela vá convosco?

O filho corou. O pai olhava para o rapaz com pena.

- Vós desejai-la, mas tendes medo de que ela goze convosco?- sugeriu.

A cabeça loura inclinou-se e assentiu.

-E pensais que se vós e ela estiverdes longe da corte e de mim, ela vai poder atormentar-vos.

Mais um sinal afirmativo com a cabeça.

E todas as suas aias. E a sua ama.

E o tempo vai custar a passar.

o rapaz levantou o olhar, o seu rosto era um retrato da infelicidade. - E vai aborrecer-se e ficar triste e transformar a vossa pequena corte em Ludlow numa prisão miserável para ambos.

Se ela não gostar de mim... - disse, numa voz muito baixa.

Henrique pousou a mão pesada no ombro do filho. De vós - disse.

- Oh, meu filho. Não importa o que ela pensa de vós - disse - talvez a vossa mãe não tenha sido uma escolha minha, talvez eu não tenha sido a dela. Quando um trono está envolvido, o coração vem sempre em segundo lugar, se é que tem alguma importância. Ela sabe o que tem de fazer; e isso é a única coisa que importa.

Oh, ela sabe tudo acerca disso! - rebentou o rapaz ressentidamente. - Ela não tem... Não tem... o quê?

- Vergonha nenhuma. Henrique ficou sem ar.

Ela é desavergonhada? É apaixonada? - tentou disfarçar o desejo na voz, com uma repentina imagem lasciva da nora, nua e atrevida, em mente.

Não! Ela comporta-se como um homem que domina u cavalo - confessou Artur, com ar infeliz, - Como se fosse uma tarefa a cumprir.

Henrique controlou-se para não se rir às gargalhadas.

- Mas, pelo menos, fá-lo - afirmou. - Não tendes de lhe implo­rar, ou de a convencer. Ela sabe o que tem de fazer.

Artur voltou-se para a janela e observou o rio Tamisa gelado através da abertura em forma de seta.

- Não me parece que ela goste de mim. Só gosta dos amigos espanhóis, e de Mary, e talvez do Henrique. Vi-a rir-se e dançar cor eles, como se sentisse feliz na companhia deles. Conversa com os seus. é educada com todos os que encontra. Tem um sorriso para toda a gente. Eu raramente a vejo, e também não a quero ver.

Henrique deixou cair a mão no ombro do filho.

- Meu filho, ela não sabe o que pensa a vosso respeito - assegurou-lhe. — Está muito ocupada no seu pequeno mundo de vestidos e jóias e aquelas malditas espanholas coscuvilheiras. Quanto mais depressa vós e ela estiverdes sozinhos, mais depressa se vão enten­der. Podeis levá-la convosco para Ludlow e podeis conhecer-vos.

O rapaz assentiu com a cabeça, mas não parecia convencido.

Se é esse o vosso desejo, senhor - afirmou formalmente.

Pergunto-lhe se ela quer ir?

A cor invadiu as bochechas do jovem.

E se ela disser que não? O pai riu-se.

-Não vai dizer - prometeu. - Ides ver.

Henrique estava certo. Catarina era demasiado princesa, para jesponder sim ou não a um rei. Quando este lhe perguntou se que­ria ir para Ludlow com o príncipe, ela respondeu que faria tudo o que o rei desejasse.

- Lady Margaret Pole ainda vive no castelo? - perguntou, com uma voz um pouco nervosa.

Ele franziu o sobrolho. Lady Margaret estava agora seguramen­te casada com Sir Richard Pole, um dos sólidos cavaleiros Tudor e guardião do Castelo de Ludlow. Mas Lady Margaret nascera Margaret Plantageneta, filha amada do Duque de Clarence, prima do Rei Eduardo e irmã de Edward de Warwick, cujo direito ao trono era muito superior ao do rei.

Qual é o problema?

Nenhum - respondeu ela apressadamente.

- Não tendes motivos para a evitar - disse ele bruscamente. -O que foi feito, foi-o em meu nome, por ordens minhas. Não ten­des culpa nenhuma.

Ela corou como se estivessem a falar de um assunto vergonhoso.

- Eu sei.

Não posso admitir que ninguém conteste o meu direito ac trono - declarou abruptamente. - Há demasiados a tentá-lo, do: York e Beaufort, e também dos Lancaster, e uma série intermináve deles que tentam a sua sorte como pretendentes. Não conhecei este país. Somos todos casados dentro das mesmas famílias come muitos coelhos, dentro de uma coelheira. - Fez uma pausa para ve se ela se ria, mas ela franzia o sobrolho, seguindo o seu rápide francês. - Não posso admitir que alguém reivindique, supostamen te por pretensão de direitos, o que eu conquistei através da guerr - afirmou. - E também não admito que ninguém tente conquistá-k

Pensei que fôsseis o rei legítimo - afirmou Catarina hesitar temente.

Sou agora - respondeu Henrique Tudor imediatamente. -isso é a única coisa que interessa.

Fostes sagrado?

Sou agora - repetiu com um sorriso amarelo.

Mas sois de linhagem real?

- Tenho sangue real nas veias - respondeu, numa voz dura. Não ô preciso medir se é muito ou pouco. Recolhi, literalmente, coroa do meio do campo de batalha, estava aos meus pés, no meio da lama. Por isso, soube; todos souberam - todos viram que Dei 1Ylt~' concedeu a vitória, porque eu era o rei que Ele escolheu. O arcebispo ungiu-me, porque também o sabia. Sou tão rei como qualquer outro cia Cristandade, e muito mais do que a maioria, porque não me limitei a herdar enquanto bebé, o fruto da luta de outro homem. Deus concedeu-me o meu reino quando já era um homem. É a minha recompensa justa.

- Mas tivestes de a reclamar...

Eu reclamei o que era meu - disse por fim. - Eu conquistei o que era meu. Deus concedeu-me o que era meu. E fim de conversa.

Ela inclinou a cabeça perante a energia das suas palavras.

- Eu sei, senhor.

A sua submissão, e o orgulho que escondia, fascinavam-no. Pensou que nunca conhecera nenhuma jovem cujo rosto suave con­seguisse ocultar as suas ideias como esta.

- Quereis ficar aqui comigo? perguntou Henrique docemen­te, sabendo que não devia pedir-lhe tal coisa, rezando, mal as palavras lhe saíram da boca, para que ela respondesse "não" e silenciasse o seu desejo secreto por ela.

Eu desejo o que Vossa Majestade desejar - respondeu friamente.

Presumo que quereis estar com Artur? - perguntou, desafiando-a a negar.

Como desejardes, Senhor - disse firmemente.

Dizei-me! Preferis ir para Ludlow com Artur, ou ficar aqui comigo?

Ela sorriu levemente, e não se deixava comprometer.

- Vós sois o rei - respondeu calmamente. - Tenho de proce­der como me ordenares.

Henrique sabia que não devia mantê-la na corte junto de si, mas não resistia a brincar com a ideia. Consultou os conselheiros espanhóis, e percebeu que estes estavam desesperadamente divididos, e que discutiam entre si. O embaixador espanhol, que trabalhara tão arduamente para conseguir o difícil contrato de casamento, insistia que a princesa deveria ir com o marido, e que deveria ser vista como uma mulher casada, em todas as circunstâncias. O seu confessor, que parecia ser o único a nutrir alguma ternura pela pequena princesa, defendeu que se deveria permitir que o jovem casal permanecesse junto. A sua ama, a temível e difícil Dona Elvira, preferia não sair de Londres. Ouvira dizer que Gales ficava a cerca de cento e sessenta quilómetros de distância, e que era uma terra de montanhas e roche­dos. Se Catarina permanecesse no Castelo de Baynard, e a casa se visse livre de Artur, poderiam formar um pequeno enclave espanhol no centro da cidade, e o poder da ama seria inquestionável, poderia dominar a princesa e a miniatura de corte espanhola.

A rainha ofereceu a sua opinião de que Catarina consideraria Ludlow demasiado frio e solitário, em meados de Dezembro, e sugeriu que talvez o jovem casal pudesse ficar junto, em Londres, até à Primavera.

- Só quereis ter Artur junto de vós, mas ele tem de partir -disse-lhe Henrique bruscamente. - Tem de aprender a reinar e não há melhor forma de aprender a governar a Inglaterra do que gover­nando o Principado.

Ele ainda é muito jovem, e é tímido com ela.

Também tem de aprender a ser um marido.

Vão ter de aprender a entender-se um com o outro.

- Então, é melhor que o aprendam em privado. Por fim, foi a mãe do rei a dar a opinião decisiva.

- Mandai-a ir - disse para o filho. - Precisamos de um filho dela. Não vai fazê-lo, em Londres, sozinha. Mandai-a ir, com Artur, para Ludlow.

Sorriu ligeiramente.

- Deus sabe que lá não haverá mais nada para fazer.

A Isabel teme que ela se sinta triste e só - observou o rei. -E o Artur tem medo que não se entendam.

O que é que isso interessa? - perguntou a mãe. - Que diferen­ça faz? São casados e têm de viver juntos e conceber um herdeiro.

Ele dirigiu-lhe um sorriso rápido.

Ela só tem dezasseis anos - disse ele - e é o bebé da famí­lia, ainda tem saudades da mãe. Não fazeis concessões perante a sua juventude, pois não?

Eu casei-me aos doze anos, e vós nascestes no mesmo ano -respondeu. Ninguém me fez qualquer tipo de concessão. E, no entanto, sobrevivi.

- Duvido que fosses feliz.

-Não fui. Duvido que ela seja. Mas, de certeza, esse é o aspec­to menos importante.

Dona Elvira disse-me que tenho de me recusar a ir para Ludlow. O Padre Geraldini disse que era meu dever acompanhar o meu marido. O Dr. de Puebla afirmou que, seguramente, a minha mãe desejaria que eu vivesse com o meu marido, que fizesse tudo para mostrar que o casamento é pleno, em palavras e actos. Artur o imprestável suporte de feijoeiro, não disse nada, e o pai parece querer que seja eu a decidir; mas ele é um rei e eu não confio nele.

Tudo o que queria realmente era voltar para casa, para Espanha. Quer estejamos em Londres ou a viver em Ludlow. vai fazer frio e vai chover a toda a hora, o próprio ar é húmido, não consigo encontrar nada de agradável para comer, e não percebo uma palavra do que as pessoas dizem.

Eu sei que sou a Princesa de Gales e que serei Rainha da Inglaterra. Isso é verdade, e será verdade. Mas, hoje, não consigo sentir-me muito feliz por isso.

-Devemos partir para o meu castelo em Ludlow - afirmou Artur desajeitadamente para Catarina. Estavam sentados lado a lado à mesa de jantar, o salão por baixo e a galeria por cima, e as largas portas estavam repletas de pessoas que tinham vindo da cidade para o entretenimento gratuito de assistir ao jantar da corte. A maioria das pessoas observava o Príncipe de Gales e a sua jovem noiva.

Ela fez uma vénia com a cabeça, mas não olhou para ele.

São essas as ordens do vosso pai? - perguntou.

Sim.

Então terei todo o gosto em ir - respondeu.

- Estaremos sozinhos, ã excepção do guardião do castelo e da sua mulher. - Artur prosseguiu. Queria dizer que esperava que ela não se importasse, que desejava que ela não se aborrecesse nem ficasse triste ou - o pior de tudo - zangada com ele.

Ela olhou-o sem sorrir.

E então?

Espero que fiqueis satisfeita - gaguejou.

- Tudo o que o vosso pai desejar - respondeu, sem hesitações, como que a lembrar-lhe que eles não eram mais do que o príncipe e a princesa, e não tinham quaisquer direitos, nem poder.

Ele tossiu.

- Esta noite, vou visitar-vos no vosso quarto - afirmou.

Ela lançou-lhe um olhar tão azul e duro como as safiras que trazia em volta do pescoço.

- Como desejardes - respondeu no mesmo tom neutro.

Ele chegou quando ela já estava deitada e Dona Elvira deixou--o entrar no quarto, com um rosto de pedra, transmitindo a sua desaprovação em cada gesto. Catarina sentou-se na cama e obser­vou enquanto o criado de quarto dele lhe tirava o roupão dos ombros e saía rapidamente, fechando a porta atrás de si.

- Vinho? - perguntou Artur. Temia que a sua voz tremesse ligeiramente.

- Não, obrigada - respondeu ela.

Desajeitadamente, o jovem chegou à cama, puxou os lençóis para trás, e deitou-se ao lado dela. Ela voltou-se para olhar para ele, e ele soube que estava a corar sob o seu olhar inquiridor. Apagou a vela para ela não poder ver o seu pouco à-vontade. Uma ténue luz da tocha da sentinela, no exterior, entrava pelas ranhuras das venezianas, e depois desapareceu, à medida que o guarda se movia. Artur sentiu a cama mexer-se enquanto ela se deitava de costas e levantava a camisa de dormir. Sentiu-se como se fosse uma coisa para ela, um objecto sem importância, algo que tinha de suportar, para poder ser Rainha da Inglaterra.

Atirou os cobertores para trás e saltou da cama.

Não fico aqui. Vou para o meu quarto - disse bruscamente.

O quê?

Não vou ficar aqui. Não sou desejado...

Não sois desejado? Nunca disse que não éreis...

E óbvio. Pelo vosso ar...

Está escuro como breu! Como sabeis qual é o meu ar? E, de qualquer forma, vós também estais com ar de quem foi forçado a vir para aqui!

Eu? Não fui eu quem enviou uma mensagem, que metade da corte leu, a dizer para não vir para a vossa cama.

Ouviu o suspiro dela.

Não vos disse para não virdes. Tinha de lhes dizer para vos dizerem... - exclamou embaraçada. - Estava naquela altura... tínheis de saber...

A vossa ama disse ao meu criado que eu não podia vir para a vossa cama. Como achais que isso me fez sentir? O que pensais que pareceu aos olhos de todos?

- De que outra forma poderia dizer-vos? - perguntou ela.

Dizíeis-me vós! - respondeu furioso. - Sem que o mundo inteiro ficasse a saber.

Como é que eu podia? Como podia dizer uma coisa dessas? Ficaria tão envergonhada!

Em vez disso, eu é que fiz uma figura ridícula!

Catarina saiu da cama e acalmou-se, pousando a mão no pilar gravado da cama.

- Meu senhor, peço desculpa se vos ofendi, não sei como estas coisas se fazem aqui... No futuro farei como desejardes...

Ele não disse nada. Ela esperou.

Vou embora - anunciou ele e foi bater na porta, chamando o criado.

Não! - o grito foi-lhe arrancado

O quê? - ele voltou-se.

Todos ficarão a saber - disse ela desesperadamente. - Vão saber que há alguma coisa errada entre nós. Todos saberão que viestes ter comigo. Se sairdes já, todos vão pensar...

- Eu não vou ficar aqui! - gritou ele. O seu orgulho veio ao de cima.

Ides envergonhar-nos a ambos - gritou ela. - O que quereis que as pessoas pensem? Que eu vos desagrado, ou que sois impo­tente?

Porque não? Se ambas são verdade? - Bateu à porta com mais força.

Ela arfou aterrorizada e caiu contra os pés da cama.

- Vossa Graça? - ouviu-se um grito da sala exterior e a porta abriu-se para revelar o criado de quarto e dois pajens e. atrás deles, Dona Elvira e uma dama de companhia.

Catarina cambaleou até à janela, de costas voltadas para o quar­to. Inseguro. Artur hesitou, olhando para trás, num pedido de ajuda, à espera de um sinal de que, afinal, podia ficar.

-Que vergonha! - exclamou Dona Elvira, passando por Artur a correr, para cobrir os ombros de Catarina com um roupão. Quando estava ao seu lado. rodeando-a com o braço, olhando-o fixamente. Artur não podia voltar para a noiva; passou o limiar da porta e dirigiu-se aos seus aposentos.

Não a suporto. Não suporto este país. Não consigo viver aqui o resto da minha vida. Dizer-me que eu lhe desagrado! Ter-se atrevido a falar comigo dessa maneira! Terá enlouquecido como um aos seus cães nojentos que andam por todo o lado? Esqueceu-se de quem eu sou? Esqueceu-se de quem é?

Estou tão furiosa com ele que me apetecia pegar numa cimi­tarra e cortar-lhe aquela estúpida cabeça. Se tivesse pensado por um momento, saberia que todos no palácio, todos em Londres, prova­velmente todos neste país vulgar, se vão rir de nós. Dirão que sou feia e que não consigo agradar-lhe

Estou a chorar de raiva, não é de sofrimento. Enfio a cabeça na almofada da minha cama. para ninguém me ouvir e dizer a toda a gente que a princesa adormeceu a chorar, porque o marido não quis dormir com ela. Sufoco com as lágrimas e a raiva, estou tão zanga­da com ele!

Pouco depois paro, limpo o rosto e sento-me. Sou uma princesa por nascimento e por casamento, não devo desistir. Terei dignidade, mesmo que ele não tenha nenhuma. Ele é jovem, um jovem inglês -como saberia como comportar-se? Penso na minha casa sob o luar, de como as paredes e os rendilhados resplandecem de branco e a pedra amarela está tingida de creme. Aquele é um palácio, onde as pessoas sabem como se comportar, com graça e dignidade. Desejava de todo o coração ainda lá estar.

Recordo-me que costumava observar uma grande lua amarela reflectida na água do jardim da sultana. Como uma tonta, costu­mava sonhar que era casada.

 

                           Oxford, Natal l501

Partiram alguns dias antes do Natal. Decididamente, falavam um com o outro, em público, com toda a cortesia, e ignoravam-se completamente, quando ninguém estava a ver. A rainha pediu que ficassem. pelo menos, para a festa dos doze dias, mas Sua Alteza, a Mãe do Rei decidira que deveriam passar o Natal em Oxford, concederia uma oportunidade ao país de ver o príncipe e a nova princesa de Gales, e a palavra da mãe do rei era lei.

Catarina viajou em liteira, abanada por solavancos impiedosos, estradas congeladas, com as mulas a esforçarem-se para atravessar baixios, gelada até aos ossos, por muitos tapetes e peles em que estivesse embrulhada. A mãe do rei decidira que ela não deve­ria montar, para evitar que sofresse uma queda. A esperança não confessada era que Catarina estivesse grávida. A própria Catarina não disse nada para confirmar nem para negar a esperança. Artur era o retrato do próprio silencio.

Ficaram em quartos separados durante a viagem até Oxford, e em quartos separados no Magdalene College, quando chegaram. Os coristas estavam prontos, as cozinhas estavam preparadas, a extraor­dinariamente rica hospitalidade de Oxford estava pronta para fazer a recepção; mas o Príncipe e a Princesa de Gales estavam tão frios e apáticos como o tempo.

Jantaram juntos, sentados na enorme mesa voltados para o salão, e o número máximo de habitantes de Oxford que conseguiu entrar na galeria ocupou os seus lugares, e observou a princesa colocar pequenos pedaços de comida na boca e voltar as costas ao marido, enquanto ele procurava companhia e alguém com quem pudesse conversar, como se estivesse a jantar sozinho.

Mandaram entrar os bailarinos e os acrobatas, os mímicos e os actores. A princesa sorriu de modo agradável, mas nunca sol­tou nenhuma gargalhada, oferecia pequenas bolsas com moedas espanholas a todos os artistas, agradeceu-lhes pela sua presença; mas não se voltou uma única vez para o marido, para lhe pergun­tar se estava a gostar da noite. O príncipe andava pela sala, tra­tando afavelmente e com simpatia os grandes senhores da cidade. Falou sempre em inglês, e a sua noiva de língua espanhola teve de esperar que alguém falasse com ela em francês ou latim, se o fizes­sem. Mas, em vez disso, amontoavam-se em volta do príncipe, conversando e contando piadas e rindo-se, quase como se rissem dela e não quisessem que compreendesse a anedota. A princesa sentou-se sozinha, rigidamente, na sua cadeira de madeira maciça gravada, de cabeça erguida e um leve sorriso desafiador nos lábios.

Por fim, chegou a meia-noite e a longa noite podia terminar. Catarina levantou-se da cadeira e observou a corte a mergulhar em vénias e reverências. Dirigiu uma pequena reverência espanhola ao marido, enquanto a sua ama permanecia atrás dela, com um rosto de pedra.

Desejo-vos boa noite, Vossa Graça - disse a princesa em latim, numa voz clara e numa pronúncia perfeita.

Eu irei ao vosso quarto - disse ele. Ouviu-se um murmúrio de aprovação; a corte queria um príncipe ardente.

A cor aflorou ao seu rosto perante o anúncio tão público. Não havia nada que pudesse dizer. Não podia recusá-lo; mas o modo como se levantou e saiu da sala não lhe augurava uma recepção calorosa, quando estivessem a sós. As suas aias fizeram reverências e seguiram-na. num acesso ligeiramente ofendido, seguindo-a apressadamente como se fosse um véu multicolor que ela arrastava. A corte sorriu para dentro, perante o mau feitio da princesa.

Artur foi ter com ela, meia hora depois, impulsionado pela bebi­da e pelo ressentimento. Encontrou-a ainda vestida, à espera, junto da lareira, com a ama ao lado, o quarto iluminado por velas, as aias ainda conversavam e jogavam às cartas, como se estivessem a meio da tarde. Ela não era, claramente, uma jovem que pretendia deitar-se.

- Meu Senhor, boa noite - disse, levantando-se e fazendo uma reverência quando ele entrou.

Artur teve de corrigir o passo atrás que dera, ao retirar-se no primeiro encontro. Estava pronto para ir para a cama, de camisa de dormir, apenas com um roupão por cima dos ombros. Tinha cons­ciência dos seus pés descalços e dos dedos vulneráveis. Catarina estava resplandecente, com o seu melhor vestido de noite. As aias voltaram-se todas e olharam para ele, com expressão pouco amigá­vel. Ele tinha consciência da sua camisa de dormir e das suas per­nas nuas e de uma gargalhada mal disfarçada, de um dos seus homens atrás de si.

- Pensava que já estivésseis deitada - disse.

- Claro, eu posso ir para a cama - respondeu ela com uma cor­tesia gelada. - Eu ia para a cama. Já é muito tarde. Mas quando anunciastes tão publicamente que viríeis visitar-me nos meus apo­sentos, julguei que estivésseis a pensar trazer toda a corte convos­co. Pensei que estivésseis a dizer a toda a gente para vir aos meus aposentos. Por que outro motivo o anunciaríeis em voz alta, para todos poderem ouvir?

- Não o anunciei em voz alta!

Ela franziu a sobrancelha, num sinal silencioso de contradição.

-Vou passar aqui a noite — disse ele teimosamente. Dirigiu-se a porta do quarto dela. - Estas senhoras podem ir para a cama, já é tarde. - Fez sinal com a cabeça aos seus homens. - Deixem-nos. -Entrou no quarto dela fechando a porta atrás de si.

Ela seguiu-o e fechou a porta atrás de si, deixando para trás os rostos brancos e escandalizados das aias. De costas para a Porta, viu-o despir o roupão e camisa para ficar nu, e subir para a cama. Aconchegou as almofadas e encostou-se. de braços cruzados contra o peito, como um homem que aguardava pelo entretenimento.

Chegou a vez de ela se sentir desconfortável.

-Vossa Graça...

É melhor despires-vos - ameaçou-a. - Como dizeis, já é muito tarde.

Ela voltou-se para um lado e depois para o outro.

-Vou chamar a Dona Elvira.

Ide. E chamai também seja quem for que vos despe. Não vos preocupeis comigo, por favor.

Catarina mordeu o lábio. Ele conseguiu perceber a sua insegu­rança. Ela não suportava ficar nua diante dele. Voltou-se e saiu do quarto.

Ouviu-se um tagarelar irritante em espanhol no quarto ao lado. Artur sorriu, calculou que ela deveria estar a desimpedir o quarto das aias e a despir-se aí. Quando ela voltou, viu que estava certo. Trazia vestida uma camisa branca enfeitada com renda sofisticada o cabelo estava preso numa longa trança, que lhe caía pelas costas abaixo. Parecia mais uma menina do que a princesa altiva que fora há apenas alguns momentos, e sentiu o desejo invadi-lo, juntamen­te com outro sentimento: ternura.

Ela olhou para ele, com ar irritado.

-Tenho de dizer as minhas orações - disse. Dirigiu-se para junto do oratório e ajoelhou-se diante dele. Ele observou-a a baixa* a cabeça sobre as mãos unidas e começar a murmurar. Pela primeira vez, a irritação abandonou-o e pensou no quão difícil deveria ser para ela. Seguramente, o seu pouco à-vontade e receio não deveriam ser nada, quando comparados com os dela: sozinha numa terra estranha, à mercê de um rapaz, alguns meses mais novo do que ela, sem amigos verdadeiros e sem família, muito longe de tudo e de todos que conhecia.

A cama estava quente. O vinho que bebera, para lhe dar cora­gem, estava a fazer-lhe sono. Recostou-se na almofada. As orações dela estavam a demorar bastante tempo, mas era bom para um homem ter uma mulher espiritual. Fechou os olhos ao pensar nisso. Quando ela voltasse para a cama, pensou que iria possuí-la de forma confiante, mas com gentileza. Era Natal, devia tratá-la bem. Provavelmente ela sentia-se só e com receio. Seria generoso. Pensou calorosamente em como iria ser amoroso com ela, e no quão grata ela lhe ficaria. Talvez aprendessem a dar prazer um ao outro, talvez ele a fizesse feliz. A sua respiração tornou-se mais intensa, e começou a ressonar bem alto. Adormeceu.

Catarina olhou em volta, no meio das suas orações e sorriu em puro triunfo. Em seguida, em silêncio absoluto, subiu para a cama, deitando-se ao lado dele e, compondo-se para que nem sequer a bainha da sua camisa de dormir lhe pudesse tocar, preparou-se para dormir.

Pensavas que me irias embaraçar diante das minhas aias. diante de toda a corte. Pensaste que me podias envergonhar e domi­nar. Mas eu sou uma princesa da Espanha, conheci e vi coisas que tu. neste país pequeno e seguro, neste minúsculo refúgio presunçoso, nunca sonharias. Sou a Infanta, a filha dos dois monarcas mais poderosos da Cristandade que, sozinhos, derrotaram a maior amea­ça que alguma vez marchou contra ela. Durante setecentos anos os Mouros ocuparam a Espanha, um império muito mais poderoso do que o dos Romanos, e quem os repeliu? A minha mãe! O meu pai! Por isso, não deves pensar que tenho medo de ti - seu príncipe péta­la de rosa, ou seja o que for que te chamam. Nunca me rebaixarei ao ponto de fazer alguma coisa que uma princesa da Espanha não devesse fazer. Nunca serei subordinada nem vingativa. Mas se me desafiares, derrotar-te-ei.

De manhã, Artur não lhe dirigiu a palavra, o seu orgulho de rapaz estava profundamente ferido. Ela envergonhara-o na corte do pai, recusando admiti-lo nos seus aposentos, e agora envergonhava--o em privado. Sentia que ela lhe preparara uma cilada, o fizera pas­sar por idiota e que ainda estaria a rir-se dele. Levantou-se e saiu, num silêncio taciturno. Foi à missa e não a olhou nos olhos, foi à caça e esteve fora o dia inteiro. Não falou com ela à noite. Assistiram a uma peça, sentados lado a lado. sem trocar uma única palavra. Permaneceram uma semana inteira em Oxford e não dirigiram mais de doze palavras um ao outro em cada dia. Ele fez uma promessa amarga a si mesmo, a de que nunca mais voltaria a falar com ela. Teria um filho dela, se pudesse, humilhá-la-ia de todas as formas Possíveis, mas nunca mais lhe dirigiria uma palavra directamente, e nunca mais voltaria a dormir na sua cama.

Quando chegou a manhã em que deveriam mudar-se para Ludlow, o céu estava coberto de nuvens cinzentas, pesadas, indi­cando neve. Catarina passou a porta do College e encolheu-se, ao sentir o ar gelado e húmido bater-lhe no rosto. Artur ignorou-a.

Saiu para O pátio onde a comitiva estava preparada e a aguarda­va. Hesitou em frente da liteira. Ele pensou que ela era como uma pri­sioneira, hesitando diante de uma carroça. Ela não tinha outra opção.

Não vai estar muito frio? - perguntou ela. Ele olhou para ela de rosto fechado.

Tereis de vos habituar ao frio, já não estais na Espanha.

Com certeza.

Fechou as cortinas da liteira. Lá dentro, havia mantas nas quais se poderia embrulhar e almofadas nas quais se poderia recostar, mas não tinha um ar muito acolhedor.

- Vai ficar bastante pior do que está agora - disse ele. alegre­mente. - Muito mais frio, chove ou saraiva ou neva, e fica mais escu­ro. Em Fevereiro, só temos algumas horas de luz. do dia. na melhor das hipóteses, e depois, há os nevoeiros gelados, que transformam o dia em noite, por isso está sempre cinzento.

Ela voltou-se e olhou-o.

- Não podemos partir noutro dia?

- Concordastes vir - censurou-a. - Eu teria ficado contente por vos deixar em Greenwich.

Eu fiz o que me ordenaram.

E aqui estais. A prosseguir a viagem, como nos foi ordenado.

- Vós, pelo menos, podeis mexer-vos e manter-vos quente -disse, queixando-se. - Não posso ir a cavalo?

- Sua Alteza, a Mãe do Rei, disse que não podíeis.

Ela fez uma expressão de desagrado, mas não discutiu.

A escolha é vossa. Quereis que vos deixe aqui? - perguntou-lhe bruscamente, como se tivesse pouco tempo para aquelas incer­tezas.

Não - respondeu ela. - Claro que não - subiu para a liteira, puxando as mantas para cobrir os pés e colocando-as em volta dos ombros.

Artur ia á frente, quando saíram de Oxford, fazendo vénias e sorrindo para as pessoas que vieram para a rua para o saudar. Catarina fechou as cortinas da liteira, para se proteger do vento trio e dos olhares curiosos, e não queria mostrar o rosto.

Pararam para almoçar numa casa enorme, a meio do caminhei, e Artur foi comer sem sequer esperar para a ajudar a sair da liteira. A dona da casa. baralhada, saiu e dirigiu-se à liteira, encontrando Catarina com dificuldade em sair. pálida e com os olhos vermelhos.

- Princesa, estais bem? - perguntou-lhe a mulher.

- Tenho frio - respondeu Catarina, com ar infeliz. - Estou gela­da. Acho que nunca senti tanto frio.

Praticamente não comeu, não conseguiram convencê-la a beber vinho. Parecia estar prestes a cair de exaustão; mas assim que acabaram de comer. Artur queria continuar a viagem, ainda tinham de percorrer trinta e dois quilómetros, antes de cair a noite, que no Inverno chegava tão cedo.

Não podeis recusar? - perguntou-lhe Maria de Salinas num sussurro apressado.

Não - respondeu a princesa. Levantou-se cia cadeira sem dizer mais nada. Mas quando abriram a enorme porta de madeira, para saírem para o pátio, pequenos flocos de neve esvoaçaram na direcção deles.

Não podemos viajar com este tempo, em breve será noite e perdemo-nos no caminho! - exclamou Catarina.

-Eu não perco o caminho - exclamou Artur, e começou a andar no seu cavalo. - Vós deveis seguir-me!

A dona da casa mandou que um criado fosse, de imediato, bus­car uma pedra aquecida para colocar sob os pés de Catalina, na liteira. A princesa subiu, embrulhou as mantas em redor dos ombros e escondeu as mãos lá dentro.

Tenho a certeza de que ele está impaciente por ir para Ludlow para vos mostrar o seu castelo - afirmou a mulher, tentan­do dar a melhor interpretação a uma situação miserável.

Ele está impaciente por me mostrar o seu menosprezo -desabafou Catarina; mas teve o cuidado de dizê-lo em espanhol.

Deixaram o calor e as luzes da casa grande e ouviram as por­tas a bater atrás de si. enquanto voltavam as cabeças dos cavalos para ocidente, e para o sol pálido que mergulhava no horizonte. Passavam duas horas do meio-dia, mas o céu estava tão coberto de nuvens de neve que caía uma luz cinzenta, sinistra, sobre a paisa­gem irregular. A estrada serpenteava à frente da comitiva, estradas castanhas sobre campos castanhos, ambos resplandecentemente brancos sob a névoa provocada pela queda de neve. Artur cavalga­da a frente, cantando, feliz, a liteira de Catarina avançava lentamen­te atras dele. A cada passo, as mulas inclinavam a liteira para um dos lados e depois para o outro, ela tinha de manter uma mão de

para se segurar, e os seus dedos começaram a ficar gelados e. Posteriormente, com cãibras, roxos por causa do frio. As cortinas protegiam-na da maior parte dos flocos de neve, mas não dos insis­tentes e penetrantes pingos. Se afastasse um pouco as cortinas para olhar para os campos, veria uma espiral de brancura, á medida que os flocos de neve dançavam e rodeavam a estrada, o céu parece cada vez mais cinzento, a cada momento que passava.

O sol brilhava palidamente contra um céu branco e o mundo tornava-se mais sombrio. A neve e as nuvens densificavam-se sob o pequeno grupo que cavalgava abrindo caminho, com dificuldade por uma terra alva sob um céu cinzento.

O cavalo de Artur seguia à frente, o príncipe montava com facilidade na sela. com uma mão protegida por uma luva a segurar rédeas, a outra, o chicote. Vestia roupa interior resistente de lá. baixo da jaqueta de pele espessa, e botas quentes de pele macia. Catarina observava-o, a montar, à frente. Sentia demasiado frio e tristeza para ficar ressentida com ele. Mais do que qualquer outra coisa desejava que ele voltasse atrás para lhe dizer que a viagem esta quase a terminar, que tinham chegado.

Passou uma hora, as mulas continuavam pela estrada fora, cabeças vergadas, para se protegerem do vento que lhes atirava flocos de neve contra as orelhas, assim como para dentro da liteira, neve estava a tornar-se mais espessa, enchendo o ar e esvoaçar! em direcção às marcas deixadas pelas carroças. Catarina esta encolhida sob os cobertores, deitada como uma criança, com pedra que arrefecia rapidamente sobre o estômago, de joelhos dobrados, com as mãos geladas metidas lá dentro, de rosto volta para baixo, envolvida nas peles e mantas. Tinha os pés complet' mente gelados, havia uma abertura nos cobertores, na zona das costas, e de vez em quando tremia, ao sentir uma corrente de ar gelado.

A toda a volta, do lado de fora da liteira, conseguia ouvir homens a conversar e a rir do frio, jurando que comeriam bem, quando o séquito chegasse a Burford. As suas vozes pareciam vir de muito longe: Catarina adormeceu devido ao frio e à exaustão.

Acordou tonta quando a liteira foi pousada no chão e as corti­nas se abriram. Uma corrente de ar gelado percorreu-a, e ela baixou a cabeça, gritando de desconforto.

- Infanta? - chamou Dona Elvira. A ama havia cavalgado na sua mula, o exercício mantivera-a quente. - Infanta? Graças a Deus, chegamos, finalmente.

Catarina não queria levantar a cabeça.

- Infanta, estão à espera para vos saudar.

Mesmo assim, Catarina não queria levantar a cabeça.

- O que é isto? - Era a voz de Artur, vira a liteira ser pousada no chão e a ama a inclinar-se lá para dentro. Percebeu que sob a pilha de cobertores não se vislumbrava qualquer movimento. Por momentos, assustado, pensou que a princesa poderia ter adoecido. Maria de Salinas lançou-lhe um olhar reprovador.

- Que se passa?

- Não é nada - Dona Elvira endireitou-se e colocou-se entre o príncipe e a sua jovem mulher, protegendo Catarina, enquanto ele saltava do cavalo e se dirigia para junto dela.

- A princesa esteve a dormir, está a arranjar-se.

- Vou vê-la - disse ele. Afastou a mulher para o lado com uma mão firme e ajoelhou-se ao lado da liteira.

- Catarina? - perguntou tranquilamente.

Estou gelada de frio - disse ela numa voz muito fina. Levantou a cabeça e ele viu que ela estava branca como a própria neve e tinha os lábios roxos.

Tenho tanto f... frio que morrerei e depois ficareis feliz. Podeis s... sepultar-me neste país horrível e c... casar com uma estúpida e gorda mulher inglesa. E eu nunca verei... - começou a soluçar.

- Catarina? - ele estava completamente baralhado.

Nunca mais vou voltar a ver a minha m... mãe. Mas ela sabe­rá que me matastes com o vosso país miserável e a vossa crueldade.

Eu não fui caiei - disse ele de imediato, completamente cego à multidão de cortesãos que se juntavam à volta deles. - Por Deus. Catarina, não fui eu!

Fostes cruel - ela levantou a cara do meio dos cobertores. -Fostes cruel porque...

Foi o seu rosto triste, pálido, coberto de lágrimas que lhe tocou mais do que as suas palavras alguma vez poderiam fazê-lo. Parecia uma das suas irmãs, quando a avó as repreendia. Não parecia uma princesa da Espanha irritante e insultuosa, mas uma rapariga que fora provocada até às lágrimas - e ele percebeu que fora ele quem a provocara, a fizera chorar, e a deixara na liteira gelada, a tarde inteira, enquanto cavalgava à frente, deliciado com a ideia de ela estar desconfortável.

Debruçou-se sobre os cobertores e puxou a sua mão gelada para ora. Os seus dedos estavam entorpecidos pelo frio. Ele sabia que Procedera mal. Levou os dedos roxos dela à boca e beijou-os, depois encostou-os aos seus lábios e soprou ar quente para cima deles.

- Deus me perdoe - disse. - Esqueci-me de que era marido, ao sabia que tinha de ser um marido. Não percebi que vos podia fazer chorar. Nunca mais o farei.

Ela pestanejou, com os olhos azuis cheios de lágrimas por

O quê?

Eu procedi mal. Estava zangado, mas bastante errado. Deixai--me levar-vos para dentro e vou dizer-vos como lamento e nunca mais voltarei a ser indelicado convosco.

De imediato ela tentou libertar-se das mantas e Artur retirou-as das pernas dela. Ela estava com tantas caibras e tão gelada que tro­peçou, quando tentou pôr-se de pé. Ignorando os protestos mur­murados da ama, ele pegou-lhe em braços e levou-a como a uma noiva, para o salão.

Pousou-a, com cuidado, diante das chamas da lareira, gentil­mente retirou-lhe o capuz, desapertou-lhe a capa, esfregou-lhe as mãos. Com um gesto, mandou embora as criadas que viriam despir--lhe a capa, e ofereceu-lhe vinho. Criou um pequeno círculo de paz e silêncio em volta deles, e observou a cor a voltar à sua face pálida.

Desculpai-me - disse ele, com sinceridade. - Eu estava muito, muito zangado convosco, mas nunca deveria ter-vos trazido ate tão longe com um tempo tão mau e nunca deveria ter-vos deixado apa­nhar frio. Foi tão errado da minha parte.

Eu perdoo-vos - murmurou ela, com um pequeno sorriso a iluminar-lhe o rosto.

-Não sabia que tinha de tomar conta de vós. Não sabia. Tenho-me comportado como uma criança, uma criança desagradá­vel. Mas agora sei, Catarina. Nunca mais voltarei a ser desagradável convosco.

Ela assentiu com a cabeça.

Oh, por favor. E vós também tendes de me perdoar. Tenho sido antipática para convosco.

Tendes?

Em Oxford - murmurou ela, muito baixinho. Ide fez um sinal afirmativo com a cabeça.

E o que tendes a dizer-me?

Ela levantou os olhos e olhou-o fugazmente. Ele não estava a fingir-se ofendido. Ainda era um rapaz, com o sentido apurado de justiça de um rapaz. Precisava de um pedido de desculpas apro­priado.

Peço imensa, imensa desculpa - disse ela, pronunciando ape­nas a verdade. - Não me portei bem. e de manhã arrependi-me. mas não vos podia dizer.

Vamos para cama. agora? - sussurrou-lhe, com a boca muito perto do ouvido dela.

Podemos?

Se eu disser que estais doente!

Ela aceitou com a cabeça, e não disse mais. nada.

A princesa não se sente bem por causa do frio - anunciou Artur vagamente. - A Dona Elvira vai levá-la para o quarto, e eu janto lá, sozinho com ela, mais tarde.

Mas as pessoas vieram para vos ver, Vossa Graça... — inter­veio o seu anfitrião. - Organizaram entretenimentos, e alguns diá­logos que gostavam que ouvísseis...

Eu vejo-os a todos, agora, no salão, e amanhã também cá ficamos. Mas a princesa tem de ir já para os seus aposentos.

Com certeza.

Houve um corrupio em volta da princesa, enquanto as suas damas de companhia, conduzidas por Dona Elvira, a escoltavam até ao quarto. Catarina olhou para trás. para Artur.

- Por favor, vinde jantar aos meus aposentos - disse de forma suficientemente clara para todos ouvirem. - Quero ver-vos, Vossa Graça.

Era tudo para ele: ouvi-la admitir em público o seu desejo por ele. Fez uma vénia perante o elogio e, em seguida, dirigiu-se ao grande salão, pedindo uma caneca de cerveja e recebendo, com simpatia, a meia dúzia de homens que se haviam reunido para o ver, e depois, pedindo desculpas, saiu e dirigiu-se ao quarto dela.

Catarina esperava-o, sozinha, ao pé da lareira. Mandara embo­ra as damas de companhia, as criadas, não havia ninguém para os servir, estavam bastante sozinhos. Ele quase se retraiu ao ver o quar­to vazio; os príncipes e princesas Tudor nunca eram deixados a sós. Mas ela banira os criados que deviam servir à mesa. dispensara as damas de companhia que jantariam com eles. Até mandara embora a ama. Não havia ninguém para ver o que ela fizera com os seus aposentos, nem como pusera a mesa.

Cobrira a mobília de macieira maciça com faixas de tecido de cores vivas, chegara mesmo a cortar tiras de tecido das tapeçarias Para cobrir as paredes geladas, para que o quarto se assemelhasse a uma tenda magnificamente decorada.

Ordenara-lhes que serrassem as longas pernas da mesa, para que esta ficasse da altura de um escabelo, uma peça de mobiliário extremamente ridícula. Colocara grandes almofadas em ambas as Pontas, como se fossem reclinar como selvagens para comer. O jantar estava na mesa, ao nível dos joelhos, próximo do calor dos troncos que ardiam, como se tratasse de uma festa barbara, havia velas por todo o lado e um forte cheiro a incenso, tão pesado corno o de uma igreja num dia de festa.

Artur ia começar a queixar-se da extravagância selvagem de serrar a mobília; mas fez uma pausa. Talvez isto não fosse uma lou­cura infantil; ela estava a tentar mostrar-lhe alguma coisa.

Ela estava vestida de modo bastante extraordinário. Na cabeça trazia um cordão entrançado, feito com as melhores sedas, torcidas e amarradas como um diadema, com uma ponta caída atrás, que pren­dera ao acaso, num dos lados do toucado, como se fosse puxá-lo para a frente da cara. como um véu. Em vez de um vestido decente trazia uma simples camisa da melhor, e mais leve seda. em tom azul fumado, tão fina que quase conseguia vislumbrar, através do tecido, a palidez da sua pele. Sentiu as batidas do coração a acelerar quan­do percebeu que ela estava nua, sob aquela camada de seda. Por baixo da camisa, usava meias - como as meias para homem - mas nada semelhantes às meias para homem, porque eram onduladas e partiam das suas ancas magras, onde estavam apertadas com um fio dourado, indo até aos pés, onde eram novamente apertadas, deixando-lhe os pés semi-descalços, metidos nuns elegantes chinelos carmim, trabalhados com fio dourado. Olhou-a de cima a baixo, do turbante bárbaro aos chinelos turcos, e ficou sem fala.

Não gostas das minhas roupas? - perguntou Catarina, sem rodeios, e ele era demasiado inexperiente para reconhecer a dimen­são do embaraço que ela estava quase a sentir.

Nunca vi nada assim antes - gaguejou ele. - São roupas ára­bes? Mostra-me!

Ela voltou-se imediatamente, olhando-o por cima do ombro, voltando-se novamente para o olhar de frente.

- Todos as usamos em Espanha - disse. - A minha mãe tam­bém. São mais confortáveis do que os vestidos, e mais higiénicas. Tudo pode ser lavado, ao contrário dos veludos e do damasco.

Ele assentiu com a cabeça, sentiu, então, um leve odor a água de rosas que emanava da seda.

E são frescas quando faz calor, durante o dia - acrescentou

São... lindas. - Quase disse "bárbaras" e ficou bastante satis­feito por não o ter dito, quando os olhos dela se iluminaram.

Achas?

- Sim.   De imediato, ela levantou os braços e deu uma volta para mostrar a sensação das meias e a leveza da camisa.

_ Costumas usá-las para dormir? Ela riu-se.

_ Usamo-las quase sempre. A minha mãe usa-as sempre debaixo da armadura, são bastante mais confortáveis do que qualquer outra coisa, e ela não poderia usar vestidos, debaixo daquele ferro

todo_ Pois não...

_ Quando recebemos embaixadores cristãos, ou em grandes ocasiões de Estado, ou quando a corte está em festa, usamos vesti­dos principalmente no Natal, quando está frio. Mas nos nossos aposentos, e sempre, no Verão, quando partimos em campanha, vestimos roupas mouriscas. São fáceis de fazer e de lavar, fáceis de trans­portar e mais confortáveis para vestir.

-Aqui, não as podes usar - disse Artur. - Lamento. Mas a Sua Alteza, a Mãe do Rei. opor-se-ia, se soubesse sequer que as tens contigo.

Ela fez um sinal com a cabeça.

- Eu sei. A minha mãe foi opôs-se a que eu as trouxesse. Mas eu queria alguma coisa que me lembrasse a minha casa e pensei que poderia guardá-las no armário sem dizer nada a ninguém. E esta noite, pensei que tas poderia mostrar. Mostrar-me a ti, e como costumava ser.

Catarina afastou-se para o lado e chamou-o para a mesa com um gesto. Ele sentiu-se demasiado grande, demasiado desajeitado, e num instinto, parou e tirou as botas de montar e caminhou des­pico sobre os ricos tapetes. Ela fez um ligeiro gesto de aprovação e pediu-lhe que se sentasse. Ele sentou-se numa das almofadas bordadas a ouro.

Serenamente, ela sentou-se em frente a ele e passou-lhe uma taça de água perfumada, com um guardanapo branco. Ele mergulhou os dedos e limpou-os. Ela sorriu e ofereceu-lhe uma travessa dourada com comida. Era um prato da sua infância, pernas de frango assadas, rins apimentados, com fatias de pão branco; um jantar tipicamente inglês. Mas fizera-os servir doses pequenas, em pratos individuais, em cubos apetitosos, habilidosamente dispostos. Cortara rodelas de maçã que servira com a carne e adicionara algumas carnes preciosamente condimentadas, ao lado de rodelas de ameixas doces. fizera todos os possíveis para lhe servir uma refeição espanhola, com todas as delícias e luxos do gosto mouro. Artur foi perdendo os preconceitos.

- Isto está...lindo - afirmou,procurando uma palavra para o descrever - É ...como um quadro. Tu és como... - Não conseguia lembrar-se de nada que alguma vez tivesse visto, que se assemelhasse a ela. Depois, ocorreu-lhe uma imagem. - És como uma pin­tura que uma vez vi numa travessa - disse ele. - Um tesouro da minha mãe, que veio da Pérsia. És igual. Estranha e muito amorosa. Ela sorriu com os elogios.

-      Quero que percebas - disse, falando lentamente em latim. Quero que percebas o que eu sou. Cuiusmodi sum.

- O que tu és?

-Sou a tua esposa - assegurou-lhe ela. - Sou a Princesa de Gales, serei a Rainha da Inglaterra. Serei uma mulher inglesa Esse é o meu destino, além disso, sou a Infanta da Espanha, do al-Andalus.

- Eu sei.

Tu sabes, mas não sabes. Não sabes nada sobre a Espanha, não sabes nada sobre mim. Quero explicar-me a ti. Quero que sai­bas como é a Espanha. Sou uma princesa da Espanha. Sou a favorita do meu pai. Quando jantamos a sós, comemos assim. Quando estamos em campanha, vivemos em tendas e sentamo-nos diante de braseiros como estes, e andamos em campanha durante todos os anos da minha vida, até aos meus sete anos.

Mas sois uma corte cristã - protestou ele. - Sois uma potên­cia da Cristandade. Tendes cadeiras, cadeiras normais, deveis comer sentados a mesas normais.

Só nos banquetes de Estado - respondeu ela. - Quando estamos nos nossos aposentos privados, vivemos assim, como mouros. Oh, damos as graças, agradecemos ao Deus Único na divisão do pão. Mas não vivemos como vocês vivem aqui, na Inglaterra. Temos bonitos jardins repletos de fontes e de água corrente. Temos salas nos nossos palácios com embutidos de pedras preciosas e inscrições em letras de ouro contando belas verdades, através de poemas. Temos casas de banho com água quente para nos lavarmos e com vapor espesso para encher a sala perfumada, temos casas de gelo que são abastecidas, no Inverno, com neve da serra, para que a nossa fruta e bebidas estejam frescas no Verão.

As palavras eram tão sedutoras quanto as imagens.

Tu fazes-te soar tão estranha - disse ele. relutantemente. -como um conto de fadas.

Estou a aperceber-me de quão estranhos somos um para outro - disse Catarina. - Pensei que o teu país fosse como o meu mas é bastante diferente. Começo a pensar que somos mais parecidos com os Persas do que com os Alemães. Somos mais árabes do que visigodos. Talvez pensasses que eu seria uma princesa como as tuas irmãs, mas sou muito, muito diferente.

Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

Vou ter de aprender os teus costumes - propôs ele de forma hesitante. - Como tu vais ter de aprender os meus.

Eu serei Rainha da Inglaterra, terei de me tornar inglesa. Mas quero que conheças o que eu era, quando era criança.

Artur anuiu com a cabeça.

- Tiveste muito frio hoje? - perguntou. Estava a ser invadido por um sentimento novo, estranho, como um peso no estômago. Percebeu que era desconforto, pela ideia de ela se sentir infeliz.

Ela olhou-o nos olhos, sem rodeios.

-      Sim - respondeu. - Tive muito frio. E, depois, pensei que tinha sido desagradável contigo e senti-me muito infeliz. E, então, pensei que estava longe de casa. do calor, do sol e da minha mãe e que tinha muitas saudades de casa. Hoje foi um dia horrível. Hoje tive um dia horroroso.

Ele procurou a mão dela.

- Posso confortar-te?

Os dedos dela encontraram os dele.

- Tu confortaste - disse. - Quando me trouxeste para junto da lareira e me pediste desculpa. Tu confortas-me. Vou aprender a acreditar que vais fazê-lo sempre.

Ele puxou-a para si; as almofadas eram macias e confortáveis, deitou-a ao seu lado e puxou cuidadosamente a seda que trazia enrolada em volta da cabeça. Esta desapertou-se logo e os ricos entrançados vermelhos soltaram-se. Ele tocou-lhes com os lábios, em seguida, na sua boca doce que tremia ligeiramente, nos olhos, com pestanas cor de areia, nas sobrancelhas claras, nas veias azuis das têmporas, nos lóbulos das orelhas. Depois, sentindo o desejo invadi-lo, beijou-lhe a cavidade na base do pescoço, os ossos deli­cados das clavículas, a carne quente e sedutora do pescoço até ao ombro, a concavidade do cotovelo, o calor das suas palmas da mãos, as axilas de odor forte e erótico, tirou-lhe a camisa pela cabeça e ela ficou nua, nos seus braços, e era sua mulher e, de facto, uma mulher amorosa, por fim.

Amo-o. Não pensei que fosse possível, mas eu amo-o. Apaixonei-me por ele. Olho-me ao espelho, em admiração, como se estivesse mudada, como se todo resto tivesse mudado. Sou uma mulher jovem, apaixonada pelo meu marido. Estou apaixonada pelo Príncipe de Gales. Eu. Catarina da Espanha, estou apaixonada. Queria este amor. pensei que fosse impossível, e tenho-o. Estou apaixonada pelo meu marido e vamos ser Hei e Rainha da Inglaterra. Quem pode duvidar que fui escolhida por Deus para me conceder o Seu especial favor? Levou-me dos perigos da guerra para a segurança e a paz do Palácio de Alhambra e, agora, concedeu-me a Inglaterra e o amor de um homem jovem, que vai ser o seu rei.

Subitamente emocionada, junto as mãos e rezo: "Oh. Meu Deus. deixai-me amá-lo para sempre, não nos afasteis um do outro, como Juan foi afastado de Margot, nos seus primeiros meses de feli­cidade. Deixai-nos envelhecer juntos, permiti que nos amemos para sempre."

 

                     Castelo de Ludíoiv, Janeiro de 1502

O sol de Inverno brilhava baixo e vermelho sobre as colinas redondas enquanto eles transpunham o enorme portão que perfurava a muralha de pedra, em volta de Ludlow. Artur, que cavalgara ao lado da liteira, gritou para Catarina, para se lazer ouvir sobre o ruído dos cascos a bater no empedrado.

- Finalmente, chegámos a Ludlow.

À frente deles, os soldados gritaram: "Abram alas para Artur! Príncipe de Gales!", as portas abriram-se de par em par. e as pessoas saíram das suas casas para verem o cortejo passar.

Catarina viu uma cidade tão bela como uma tapeçaria. Os segundos andares revestidos de madeira dos edifícios apinhados de gente projectavam-se sobre as ruas empedradas, com pequenas e prósperas lojas e pátios de trabalho entalados entre ambos, com ar acolhedor, no rés-do-chão. As mulheres dos lojistas saltaram das suas bancas, no exterior das lojas, para lhe acenar e Catarina sorria e retribuía a saudação. Dos andares superiores, as raparigas das fábricas de luvas e os aprendizes de sapateiro, os rapazes dos ourives e as fiandeiras inclinavam-se e chamavam-na pelo nori Catarina ria-se, e susteve a respiração, quando um dos rapazes pareceu desequilibrar-se, mas foi puxado para trás por um dos colegas.

Passaram por uma grande praça de touros, com uma estalagem de madeira escura, enquanto os sinos da igreja da meia dúzia casas religiosas, universidade, capelas e no hospital de Ludlow começaram a tocar, para desejar as boas-vindas a casa, ao príncipe e à sua noiva.

Catarina inclinou-se para a frente para ver o seu castelo, e repa­rou na barreira inquestionável da muralha exterior do castelo. O portão estava totalmente aberto, entraram e encontraram os homens mais importantes da cidade, o Mayor, os presbíteros da igreja, os líderes das afluentes guildas de comerciantes, reunidos para os receber.

Artur desmontou do cavalo e ouviu educadamente um longo discurso em galês e depois em inglês.

Quando vamos comer? - murmurou-lhe Catarina ao ouvido em latim e viu-lhe os lábios a tremer, como se estivesse a reter um sorriso.

Quando vamos para a cama? - suspirou ela. e teve a satisfa­ção de ver a sua mão que segurava as rédeas tremer de desejo. Dirigiu-lhe um pequeno sorriso e dobrou-se para voltar a entrar na liteira até. finalmente, os intermináveis discursos de boas vindas estarem concluídos e a comitiva real poder prosseguir o caminho e transpor o enorme portão do castelo, para o pátio interior.

Era um castelo admirável, tão seguro como qualquer castelo de fronteira na Espanha. A muralha exterior que rodeava o pátio interior era elevada e resistente, construída numa pedra curiosa de cor rosada que tornava as poderosas muralhas mais calorosas e domésticas.

O olho de Catarina, apurado pela sua formação, passou das espessas muralhas para o fosso na muralha exterior e para o fosso na muralha interior, admirando-se como uma área protegida con­duzia à outra, e pensou que um cerco poderia ser suportado duran­te vários anos. Mas era pequeno, era como um castelo de brincar, algo que o pai construiria para proteger uma passagem sobre um no ou uma estrada vulnerável. Algo a que um nobre muito insigni­ficante da Espanha teria orgulho em chamar sua casa.

- E isto? - perguntou confusa, pensando na cidade albergada no interior das muralhas da sua casa, nos jardins e terraços, na colina e na vista, na vida fervilhante do centro da cidade, todos dentro de muralhas protegidas. Da longa volta dos guardas: se dessem a volta completa às ameias, estariam ausentes durante mais

e uma hora. Em Ludlow, a sentinela concluiria a volta em alguns minutos.

- É isto?

Ele ficou logo assustado.

- Estavas à espera de mais? O que esperavas?

Ela teria acariciado o seu rosto ansioso, se não houvesse cen­tenas de pessoas a assistir. Obrigou-se a manter as mãos quietas.

- Oh. estava a ser tonta. Estava pensar em Richmond. - Nada no mundo a teria feito admitir que estava a pensar no Alhambra.

Ele sorriu, confortado.

Oh, meu amor. Richmond foi recentemente construído, é grande orgulho e a alegria do meu pai. Londres é uma das maio" cidades da Cristandade, e o palácio equivale à sua dimensão M Ludlow é apenas uma cidade, uma grande cidade nos Marches, seguramente, mas não é mais do que uma cidade. Mas é rica, vais ver, a caça é boa e as pessoas são hospitaleiras. Vais ser feliz aqui.

Tenho a certeza disso - retorquiu Catarina sorrindo, afastan­do a ideia de um palácio construído para ser bonito, apenas para esse eleito, onde os construtores pensaram primeiro onde iria inci­dir a luz e quais os reflexos que originaria nos tranquilos lagos de mármore.

Ela olhou em seu redor e viu, no centro do pátio interior, u curioso edifício circular semelhante a uma torre de esconderijo.

- O que é aquilo? - perguntou, esforçando-se por sair da litei­ra, enquanto Artur lhe segurava na mão.

Ele olhou de relance por cima do ombro.

É a nossa capela redonda - respondeu negligentemente.

Uma capela redonda?

Sim, como a de Jerusalém.

Com alegria, ela reconheceu imediatamente o formato t radiei nal de uma mesquita - desenhada e construída em círculo, para que nenhum crente ficasse em posição privilegiada em relação a outros, porque Alá é venerado tanto pelos pobres como pelos rico

- É linda.

Artur olhou-a surpreendido. Para ele era apenas uma torr redonda, construída com a bonita pedra cor de ameixa regional, ma viu que brilhava sob a luz da tarde, e irradiava uma sensação de paz

- Sim - respondeu ele, mal reparando na capela. - Agora é - apontou para o grande edifício à sua frente, com um belo lance de escadas que subiam até à porta aberta -. este é o grande salão. À esquerda, ficam os paços do concelho de Cales e. por cima, meus aposentos. À direita, ficam os quartos de hóspedes e os aposentos do guardião do castelo e da sua mulher: Sir Richard e Lady Margaret Pole. Os teus aposentos são por cima, no andar superior.

Viu a sua expressão alterada.

Ela está aqui agora?

De momento, está ausente do castelo.

Ela abanou a cabeça.

Há edifícios por trás da grande muralha?

Não. Está encostada à muralha exterior. Isto é tudo. Catarina obrigou-se a manter um rosto sorridente e satisfeito.

Temos mais quartos de hóspedes no pátio exterior - acres­centou ele defensivamente. - E também temos uma hospedaria. É um lugar movimentado, alegre. Vais gostar.

Tenho a certeza que sim - ela sorriu. - E quais são os meus aposentos?

Ele apontou para as janelas mais altas.

- Estás a ver, ali em cima? Do lado direito, iguais aos meus, mas do lado oposto da ala.

Ela pareceu um pouco desmotivada.

- Mas como vais para os meus aposentos? - perguntou tran­quilamente.

Pegou-lhe na mão e conduziu-a. sorrindo á direita e à esquer­da, até às grandes escadas de pedra, e às portas duplas do grande salão. Ouviu-se uma onda de aplausos e os companheiros deixaram-se ficar para trás.

Tal como Sua Alteza, a Mãe do Rei me ordenou, virei ao teu quarto quatro vezes por mês, em procissão formal, passando pelo grande salão - explicou ele. Levou-a pelas escadas acima.

Oh! - exclamou ela.

Olhou para baixo, para ela, e sorriu.

- E, todas as outras noites, virei ter contigo pelas ameias - mur­murou. - Há uma porta secreta que liga os teus aposentos às ameias que circundam o castelo. Os meus aposentos também dão para aí. Podes ir dos teus aposentos aos meus. sempre que quiseres, e nin­guém saberá se estamos juntos ou não. Nem sequer saberão em que quarto estaremos.

Adorou a forma como o rosto dela se iluminou.

Podemos estar juntos sempre que quisermos?

Vamos ser felizes aqui.

Sim, serei; eu serei feliz aqui. Não vou chorar, como uma persa, Pelos belos pátios da sua casa e declarar que não existe mais nenhum lugar apropriado para viver. Não vou dizer que estas montanhas são um deserto sem oásis, como um berbere com saudades

dos seus direitos de nascença. Vou habituar-me a Ludlow, e aprenderei a viver aqui. na fronteira, e mais tarde na Inglaterra. A minha mãe não é apenas uma rainha, é um soldado, e educou-me para saber qual era o meu dever e para o cumprir. É meu dever aprender a ser feliz aqui. e viver neste lugar, sem me queixar.

Posso nunca usar armadura como ela. posso nunca lutar pelo meu país, como ela fez-, mas há muitas formas de servir um reino, e ser uma rainha alegre, honesta e determinada é uma delas. Se Deus não me chamar às armas, pode chamar-me para o servir conto legisladora, como aquela que traz justiça. Quer defenda o meu povo, combatendo por ele contra um inimigo, quer lute pela sua liberdade perante a lei, serei a sua rainha, de alma e coração, a Rainha da Inglaterra.

Era de noite, já passava da meia-noite. Catarina resplandecia luz da lareira. Estavam na cama, ensoñados, mas sentiam demasia­do desejo um pelo outro para adormecerem.

Conta-me uma história.

Já te contei dezenas de histórias.

- Conta-me outra. Conta-me aquela sobre Boabdil a entregar o Palácio de Alhambra e a chave dourada em cima de uma almofada de seda, e ir-se embora a chorar.

-Essa, tu já sabes. Contei-ta ontem à noite.

- Então conta-me a história de Yarfa e o seu cavalo que rangia os dentes aos cristãos.

És uma criança. E o nome dele era Yarfe.

Mas tu viste-o ser assassinado?

Eu estava lá; mas não o vi mesmo a morrer.

Como podes não ter visto?

- Bem, em parte porque estava a rezar, como a minha mãe me mandou, e porque era uma menina e não um rapaz monstruoso e sedento de sangue.

Artur atirou-lhe uma almofada bordada à cabeça. Ela apanhou-a e atirou-lha de volta.

- Bem, então conta-me a história da tua mãe a empenhar as jóias para pagar a cruzada.

Ela riu-se novamente e sacudiu a cabeça, fazendo o cabelo cas­tanho abanar de um lado para o outro.

- Vou contar-te uma história sobre a minha casa - propôs-lhe.

Está bem - ele aconchegou o cobertor púrpura em volta de ambos e esperou.

Quando se atravessa a primeira porta do Alhambra, parece uma divisão muito pequena. O teu pai não desceria ao ponto de entrar num palácio daqueles.

Não é grandioso?

É do tamanho de um pequeno salão de mercadores desta cidade. É um bom salão para uma casa pequena de Ludlow, nada mais que isso.

E depois?

E depois entra-se num pátio e. daí, passa-se a um salão dou­rado.

Um pouco melhor?

Está repleto de cor, mas também não é muito maior. As paredes são decoradas com azulejos coloridos e folheado a ouro. e existe uma varanda alta, mas não deixa de ser um espaço pequeno.

E, depois, onde vamos hoje?

- Hoje, vamos virar à direita e entramos no Pátio dos Mirtilos. Ele fechou os olhos, tentando recordar as suas descrições.

Um pátio em forma de rectângulo, rodeado por edifícios altos, de ouro.

Com uma porta enorme, de madeira escura, com uma solei­ra de belos azulejos, ao fundo.

E um lago. um lago com a forma simples de um rectângulo, e de cada um dos lados, uma sebe de mirtilos, de odor doce.

Não uma sebe como vocês têm - disse ela com ar sério, pen­sando nos arbustos irregulares dos campos galeses, na sua confusão de espinhos e ervas daninhas

- Então, como são? - perguntou ele, abrindo os olhos.

- Uma sebe como um muro - respondeu ela. - Aparada geo­metricamente, como um bloco de mármore verde, como uma estátua viva, verde e de cheiro adocicado. E o portão ao fundo reflecte-se na água. assim como o arco em volta dele, e o próprio edifí­cio. De forma a que todo o conjunto seja reflectido em ondas, aos teus pés. E todas as paredes são perfuradas com alvas janelas de estuque, tão leves como papel, como se fosse bordado branco. E os Pássaros...

- Os pássaros? - perguntou ele, surpreendido, porque ela não lhe falara deles antes.

Ela fez uma pausa enquanto procurava a palavra.

- Apodes? - disse em latim.

- Apodes? Gaivões? Ela assentiu com a cabeça.

- Voam como um rio turbulento cie pássaros mesmo por cima das nossas cabeças, dando voltas e voltas no estreito pátio, gritando enquanto voam, tão rápidos como uma carga de cavalaria, movem-se como o vento, dão voltas e voltas, desde que o sol brilhe na

água. eles voam em círculo, o dia inteiro. E à noite...

- À noite?

Ela fez um pequeno gesto com as mãos, como uma feiticeira

À noite desaparecem, nunca os vês descansar ou fazer ninho Desaparecem - partem com o sol, mas quando amanhece, voltam novamente para lá, como um rio, como uma enchente. - Fez uma pausa. - É difícil de descrever - disse numa voz muito ténue. - Mas eu via-os a toda a hora.

Tens saudades? - perguntou ele bruscamente. - Por muito feliz que eu te possa fazer, terás sempre saudades da tua casa.

Ela fez um pequeno gesto.

- Claro. É normal. Mas eu nunca me esqueço de quem sou. Do que nasci para ser.

Artur esperou.

Ela sorriu para ele, o seu rosto tornou-se mais caloroso pelo sorriso e pelos olhos azuis que brilhavam.

-Princesa de Gales - disse. - Desde a infância que o sabia. Sempre me chamaram Princesa de Gales. E, assim, Rainha Inglaterra, como me foi destinado por Deus. Catarina, Infanta Espanha, Princesa de Gales.

Ele retribuiu-lhe o sorriso e puxou-a para perto de si, deitaram -se para trás. ela com a cabeça no ombro dele, o cabelo castanho avermelhado escuro dela espalhado. Como um véu, no peito dele.

- Eu sabia que casaria contigo, quase desde que nasci - disse ele pensativamente. - Não me consigo lembrar de um tempo em que não te estivesse prometido. Não recordo nenhuma época em que não te escrevesse cartas e não as levasse ao meu tutor, para que as corrigisse.

- Ainda bem que te agrado, agora que estou aqui. Ele colocou-lhe o dedo sob o queixo e levantou-lhe o rosto

para a beijar.

- O que ainda é melhor, é que eu te agrado a ti - disse ele.

- De qualquer forma, eu teria sido uma boa esposa - insistiu ela. - Mesmo sem isto...

Ele pegou-lhe na mão sob os lençóis de seda, para que ela vol­tasse a acariciar-lhe o membro, novamente erecto.

- Queres dizer, sem isto?

- Sem esta... alegria - respondeu ela e fechou os olhos e deitou-se para trás. à espera das caricias dele.

Os criados acordaram-nos ao amanhecer e Artur foi escoltado cerimoniosamente da cama dela. Voltaram a ver-se na missa, mas estavam sentados de lados opostos da capela, cada um com o seu séquito, e não puderam falar.

A missa devia ser o momento mais importante do meu dia. e deveria trazer-me conforto - sei-o. Mas sinto-me sempre sozinha durante a missa. Rezo a Deus e agradeço-lhe pela Sua atenção especial comigo, mas só o facto de estar nesta capela - com o formato de uma pequena mesquita - lembra-me tanto a minha mãe! O cheiro a incenso é tão evocador dela como se fosse o seu perfu­me. Não consigo acreditar que não estou ajoelhada ao lado dela. como fiz quatro vezes por dia. durante quase todos os dias da minha rida. Quando digo "Avé Maria, cheia de graça", é o rosto redondo, sorridente e determinado da minha mãe que vejo. E quando rezo a pedir coragem para cumprir o meu dever, nesta terra estranha, com este povo severo e reservado, é da força da minha mãe que necessito.

Deveria dar graças por Artur mas nem me atrevo a pensar nele quando me ajoelho perante Deus. Não consigo pensar nele sem cometer o pecado do desejo. A simples imagem dele na minha mente e um segredo profundo, um prazer pagão, lenho a certeza de que não se trata da alegria sagrada do matrimónio. Um prazer tão intenso tem de ser pecado, Um desejo e uma satisfação tão obscuros e profundos não podem ser simples concepção de um pequeno príncipe, principal objectivo e a finalidade deste casamento. Fomos pos­tos na cama por um arcebispo, mas a nossa união apaixonada é tão animal como duas serpentes aquecidas pelo sol, enroladas uma na outra para seu próprio prazer. Eu mantenho os meus sentimentos por Artur como um segredo de todos, ale mesmo de Deus.

Não poderia confiar em ninguém, mesmo que quisesse. É-nos expressamente proibido estarmos juntos as rezes que desejarmos. A avó dele, Sua Alteza, a Mãe do Rei. ordenou que assim fosse, tal como ordena tudo. mesmo tudo aqui nos Marches Galeses. Ela disse que ele deveria vir ter comigo ao quarto uma vez por semana, excep­to durante as minhas regras, deveria chegar antes das dez horas e sair antes das seis da manhã. Nós obedecemos-lhe, claro, todos lhe obedecem. Uma vez por semana, como ela ordenou, ele atravessa o salão grande, como um homem jovem relutantemente obediente, e de manhã, deixa-me em silêncio e vai-se embora tranquilamente como um jovem que cumpriu o seu dever, não como alguém que este­ve acordado toda a noite num delírio ofegante.-Nunca se gaba de ter tido prazer, quando o vêm buscar aos meus aposentos, não diz nada, ninguém sabe o prazer que temos na paixão um do outro. Nunca ninguém saberá que estamos juntos todas as noites. Encontramo-nos nas ameias que vão dos seus aposentos até aos meus, na parte mais alta do castelo, com o céu azul-acinzentado fechando-se sobre nós, e passamos tempo juntos em segredo, como amantes, escondidos pela noite, vamos para o meu quarto ou jmra o dele. e criamos um mundo privado em conjunto, cheio de uma feli­cidade secreta. Mesmo neste pequeno castelo, cheio de gente, de bis­bilhoteiros e de espiões da mãe do rei, ninguém sabe que estamos juntos, e ninguém sabe o quanto nos amamos.

Depois da missa o casal real foi quebrar o jejum, separada mente, nos respectivos aposentos, apesar de que teriam preferido fazê-lo juntos. O Castelo de Ludlow era uma pequena reprodução da formalidade da corte do rei. A mãe do rei ordenara que, a seguir ao pequeno-almoço, Artur teria de trabalhar com o seu tutor nos seus livros e desportos, conforme o tempo; e Catarina teria de tra­balhar com o seu tutor, costurar, ler ou passear no jardim.

- Um jardim! - murmurou Catarina, na pequena extensão verde com o banco de turfa encharcado de um dos lados de uma sebe fina, num dos cantos das muralhas do castelo.

- Pergunto-me se alguma vez terá visto um jardim a sério?

De tarde, podiam montar juntos a cavalo, para caçar nos bos­ques que rodeavam o castelo. Era uma zona rural rica, o rio corria rapidamente por um amplo vale de arvoredos espessos nas encostas das colinas. Catarina pensou que acabaria por amar as pastagens em volta do rio Teme e, no horizonte, a forma como a escuridão dos montes dava lugar ao céu. Mas, com aquele clima do meio do Inverno, era uma paisagem de cinzento e branco, apenas a geada ou a neve traziam claridade à negrura dos frios bosques. Com fre­quência, o tempo estava demasiado invernoso para a princesa sair. Ela detestava o nevoeiro húmido ou quando caía saraiva acompa­nhada de chuva gelada. Artur saía muitas vezes sozinho a cavalo.

Mesmo que eu ficasse para trás, não poderia ir contigo -lamentava-se ele. - A minha avó teria estipulado que eu fizesse outra coisa qualquer.

Então, vai - disse ela, sorrindo, apesar de lhe parecer que fal­tava muito, muito tempo até ao jantar e de não ter mais nada que fazer, além de esperar que a caça voltasse para casa.

Iam à cidade uma vez por semana, para assistirem à missa na Igreja de São Lourenço, ou para visitarem a capela ao lado da mura­lha do castelo, para comparecerem num jantar organizado por uma das grandes guildas, ou para assistirem a uma luta de galos, uma pega de touros, ou a representações. Catarina estava impressionada com a beleza impecável da cidade; o lugar escapara à violência das guerras entre os York e os Lancaster às quais, finalmente, Henrique Tudor havia posto fim.

- A paz é tudo para um reino - comentou com Artur.

Agora, a única coisa que pode constituir uma ameaça para nós são os Escoceses - disse ele.

A linhagem de York são os meus antepassados, assim como a dos Lancaster, por isso, a rivalidade termina comigo. Tudo o que temos a fazer é manter o Norte protegido.

E o teu pai pensa que conseguiu isso com o casamento da Princesa Margaret?

Deus permita que esteja certo, mas eles são um grupo de infiéis. Quando eu for rei, manterei a fronteira forte. Tu aconselhar-me-ás, saímos juntos e certificamo-nos de que os castelos da fron­teira são reparados.

- Gostarei de o fazer - disse ela.

- Claro, passaste a infância com um exército a combater pelas terras de fronteira, deves saber melhor do que eu o que procurar.

Ela sorriu.

- Fico contente por ser uma qualidade minha que te pode ser útil. O meu pai sempre se queixou de que a minha mãe estava a criar amazonas e não princesas.

Jantaram juntos ao anoitecer e felizmente a noite chegava muito cedo naquelas frias noites de Inverno. Por fim, podiam estar perto, sentados lado a lado, na mesa alta. voltada para o salão do castelo, lá em baixo, a grande lareira com troncos amontoados, junto da parede lateral. Artur sentava sempre Catarina à sua esquerda, mais perto do fogo. e ela vestia uma capa forrada com pele. assim como várias camadas de camisas de linho, sob o vestido ornamen­tado. Mesmo assim, continuava a ter frio quando descia as escadas geladas, vinda dos seus aposentos aquecidos para o salão repleto de fumo. As suas aias espanholas, Maria de Salinas, a sua ama Dor Elvira e algumas outras, sentavam-se numa mesa. As damas inglesas que deveriam ser as suas damas de companhia, e o seu séquito de criados espanhóis sentavam-se noutra. Os grandes lordes do conse­lho de Artur, o seu camareiro, Sir Richard Pole, guardião do castelo, o Bispo William Smith of Lincoln, o seu médico, o Dr. Bereworth, o seu tesoureiro, Sir Henrique Vernon, o mordomo dos seus aposentos, Sir Richard Croft, o criado dos seus aposentos privados. Sir William Thomas of Carmarthen, e todos os dirigentes do Principado, estavam sentados no salão. Atrás e na galeria, qualquer coscuvilheiro, qualquer intrometido de Gales poderia apinhar-se, para ver a princesa espanhola jantar, e especular se ela agradava ao jovem príncipe ou não.

Não havia forma de adivinhar. A maioria pensava que ele não conseguira dormir com ela. Tinha de ser analisado! A Infanta estava sentada como uma pequena boneca rígida e raramente se inclinava para o seu jovem marido. O Príncipe de Gales falava com ela quase mecanicamente, de dez em dez minutos. Eram como pequenos exemplos de bom comportamento, e quase nem olhavam um para o outro. Comentava-se que ele a visitava nos seus aposentos tal como lhe fora ordenado, mas apenas uma vez por semana nunca por iniciativa própria. Talvez não apreciassem a companhia um do outro. Eram jovens, talvez demasiado jovens para o casamento.

Ninguém poderia adivinhar que as mãos de Catarina estavam muito apertadas no colo. para se impedir de tocar no marido, nem que a cada meia hora ele a olhasse, aparentemente indiferente, e murmurasse tão baixinho que só ela conseguia ouvir: "Quero-te imediatamente".

Depois do jantar haveria danças e talvez mímica ou um contador de historias, um bardo galês ou actores itinerantes para ver. Por vezes os poetas viriam dos montes e contariam contos antigos, estranhos, na sua própria língua, que Artur seguia com alguma diticul dade, mas que tentava traduzir para Catarina.

 

Quando o longo e amarelo Verão chegar e a vitória for nossa,

E a expansão das velas da Britânia,

E quando o calor vier e quando a febre começar a subir

Há prenúncios de que a vitória nos será concedida.'

- Qual é o tema deste poema? - perguntou-lhe ela.

"O longo e amarelo Verão" é quando o meu pai decidiu invadir a partir da Britânia. O percurso levou-o até Bosworth e à vitória.

Ela acenou com a cabeça.

- Fazia calor, nesse ano, e as tropas voltaram com a Doença do Suor, uma doença nova, que agora ameaça a Inglaterra, assim como a Europa, com o calor de todos os Verões.

Ela voltou a assentir com a cabeça. Um novo poeta apresen­tou-se, tocava uma corda da sua harpa e cantava.

E este?

Fala de um dragão vermelho que sobrevoa o Principado -respondeu ele. - Mata o javali.

O que significa? - perguntou Catarina.

O dragão representa os Tudor: nós - respondeu ele. - Deves ter visto o dragão vermelho no nosso estandarte. O javali é o usur­pador. Ricardo. É um elogio ao meu pai, baseado num conto anti­go. Todas as canções deles são antigas. Provavelmente foram can­tadas na arca - ele sorriu. - Canções de Noé.

As pessoas acreditam que os Tudor sobreviveram ao dilúvio? Noé era um Tudor?

- Provavelmente. A minha avó assumiria a responsabilidade pelo próprio Jardim do Éden - retorquiu ele. - Esta é a fronteira de Gales, nós vimos de Owen ap Tudor, de Glendover. ficamos felizes por assumir a responsabilidade de tudo.

Tal como Artur previra, quando a lareira se começou a apagar, começariam a cantar antigas canções galesas sobre feitiçarias nos bosques escuros que ninguém podia conhecer. E falariam de bata­lhas e de vitórias gloriosas conquistadas através da perícia e da cora­gem. Na sua língua estranha, contariam histórias sobre Artur e Camelot, Merlin, o príncipe, e Guinevere: a rainha que traiu o marido por um amor culpado.

Eu morreria se tivesses um amante - sussurrou-lhe ele ao Ouvido, enquanto um pajem os tapava do resto do salão e lhes servia vinho.

Não consigo olhar para mais ninguém, quando tu estás aqui disse-lhe ela. - Só te vejo a ti.

Todas as noites havia música ou algum entretenimento para Corte de Ludlow. A mãe do rei ordenara que o príncipe tivesse uma casa alegre - era uma recompensa pela lealdade de Gales, que pusera o seu filho Henrique Tudor num trono incerto. O neto deveria recompensar os homens que tinham vindo dos montes para comba­ter pelos Tudor e lembrar-lhes que era um príncipe galês, e que continuaria a contar com o apoio deles para governar os Ingleses, com quem ninguém poderia contar. Os Galeses deviam unir-se à Inglaterra e juntos, os dois poderiam repelir os Escoceses, e dominar os Irlandeses.

Quando os músicos tocavam as lentas danças formais da Espanha, Catarina dançava com uma das suas aias, consciente do olhar de Artur fixado nela, mantendo um rosto pudico, como uma máscara de respeitabilidade de um mímico; apesar de ter vontade de rodopiar e de abanar as ancas, como uma mulher no serralho, como uma escrava moura dançando para um sultão. Mas os espiões de Sua Alteza, a Mãe do Rei observavam tudo, mesmo em Ludlow, e comunicar-lhe-iam de imediato qualquer comportamento indiscreto da jovem princesa. Por vezes, Catarina olhava de relance para marido e via os olhos dele fixados em si, o seu olhar era o de u homem apaixonado. Ela estalava os dedos como se fizesse parte da dança, mas na verdade era para o avisar de que estava a olhá-la de um modo que a avó não aprovaria; e ele voltava-se para o lado e falava com alguém, afastando o olhar dela.

Mesmo depois de a música terminar e de os artistas partirem, o jovem casal não podia ficar a sós. Havia sempre homens que pediam para falar com Artur, que pretendiam pedir favores, terras ou influências, e aproximavam-se dele, falando em voz baixa, em inglês, que Catarina ainda não percebia perfeitamente, ou em galês, que ela achava que ninguém conseguiria compreender. O estado de direito praticamente não existia nas terras fronteiriças, cada proprietário de terras era como um senhor da guerra no seu próprio domínio. Nas zonas mais remotas da montanha havia pessoas que ainda pensavam que quem ocupava o trono era Ricardo, que não sabiam que o mundo se alterara, que não falavam inglês, que não obede­ciam a quaisquer leis.

Artur discutia, elogiava e sugeria que os feudos deveriam ser perdoados, que as violações do direito de propriedade deveriam ser validadas, que os chefes de clãs galeses deveriam trabalhar em con­junto para tornar a sua terra tão próspera como a da vizinha Inglaterra, em vez de perderem o seu tempo com invejas. Os vales e terras costeiras eram dominados por uma dúzia de lordes insigni­ficantes, e nas altas montanhas, os homens viviam em elas semelhantes a tribos selvagens. Aos poucos, Artur estava determinado a fazer com que a lei tosse aplicada em todo o território.

Todos os homens têm de saber que a lei é superior ao seu senhor - disse Catarina. - Foi o que os Mouros fizeram na Espanha, e a minha mãe e o meu pai seguiram-lhes o exemplo. Os Mouros não se preocupavam em mudar as religiões das pessoas nem as suas línguas, só traziam a paz e a prosperidade e impunham o estado de direito.

Metade dos meus lordes pensaria que isso era uma heresia -provocou-a ele. - E a tua mãe e o teu pai estão agora a impor a reli­gião deles, já expulsaram os Judeus, os Mouros vão ser os próximos.

Ela franziu o sobrolho.

Eu sei - respondeu. - E eles estão a sofrer muito. Mas a intenção era permitir que as pessoas praticassem a sua própria religião. Quando conquistaram Granada, essa foi a promessa que fizeram.

Não achas que, para construir um país, as pessoas têm de ter todas a mesma religião? - perguntou ele.

Os hereges podem viver assim - disse ela decididamente. -Em al-Andalus, mouros, cristãos e judeus viviam em paz e amizade, ao lado uns dos outros. Mas quando se é um rei cristão, é nosso dever conduzir os súbditos para Deus,

Catarina observava Artur enquanto ele falava com um homem e depois com outro, e então, ao receber um sinal de Dona Elvira, fazia uma reverência e retirava-se do salão. Lia as orações da noite, vestia as roupas de dormir, sentava-se na companhia das aias, ia para o quarto e esperava, esperava e esperava.

Podeis ir, eu vou dormir sozinha esta noite - disse para Dona Elvira.

Outra vez? - a ama franzia o sobrolho. - Não tivestes com­panheira de quarto desde que viemos para o castelo. E se acordais durante a noite e precisardes de alguma coisa?

- Eu durmo melhor sem ninguém no quarto - respondia Catarina - Agora, podeis ir.

A ama e as aias davam-lhe as boas-noites e saíam, as criadas entravam e desapertavam-lhe o corpete. retiravam os ganchos do toucado, desapertavam-lhe os sapatos e tiravam-lhe as meias. Entregavam-lhe a sua camisa de dormir de linho aquecida e ela Pedia a capa e dizia que iria sentar-se alguns momentos diante da lareira, mandando-as embora.

No silêncio, enquanto o castelo se preparava para a noite, ela esperava-o. Depois, por fim, ouvia o som tranquilo dos seus pas­sos. à porta do quarto que dava para o exterior, onde este comu­nicava com as ameias que iam da torre dele. à dela. Ela corria para a porta e destrancava-a, o rosto dele estaria rosado do trio. trazia a capa por cima da sua própria camisa de dormir enquanto entra va aos tropeções, o vento gelado a acompanhá-lo. enquanto ela se lançava nos seus braços.

Conta-me uma história.

Que história queres ouvir hoje?

Sobre a tua família.

- Queres que te conte uma sobre a minha mãe, quando pequena?

- Sim. Era uma princesa de Castela, como tu? Catarina abanou a cabeça.

- Não, de forma nenhuma. Ela não era protegida, nem vivia em segurança. Vivia na corte do irmão, o pai tinha morrido, e o irmão não a amava como deveria. Ele sabia que ela era a sua única herdeira legítima. Ele favorecia a filha; mas todos sabiam que ela era uma bastarda, que lhe foi impingida pela rainha. Até lhe puseram, como alcunha o nome do amante da rainha. Chamavam-lhe La Beltraneja. por causa do pai. Consegues imaginar algo mais vergonhoso?

Artur abanou a cabeça obedientemente.

- Nada.

- A minha mãe não passava de uma prisioneira na corte irmão; a rainha ocliava-a, claro, os membros da corte tratavam- na mal e o irmão planeava deserdá-la. Nem sequer a própria mãe conseguia chamá-lo à razão.

Forque não? - perguntou ele, e depois pegou-lhe na mão quando percebeu que o seu rosto se tornou mais sombrio. - Amor, desculpa. O que se passa?

A mãe dela estava doente - disse. - Doente de tristeza. Não percebo muito bem porquê, ou porque era tão grave. Mas ela quase não conseguia falar nem mover-se. Só chorava.

- E a tua mãe não tinha nenhum protector?

- Não, e depois, o rei. o irmão dela, ordenou que fosse prometida a Don Pedro Girón - respondeu ela sentando-se e apertan­do os joelhos com as mãos. - Diziam que ele vendera a alma ao Diabo, era um homem muito cruel. A minha mãe jurou que ofereceria a sua alma a Deus e Deus salvá-la-ia, virgem, desse destino.

Ela dizia que seguramente nenhum Deus misericordioso aceitaria uma rapariga como ela. uma princesa que sobrevivera a uma das piores cortes da Europa, para. no fim. a atirar para os braços de um homem que queria a sua ruína, que só a desejava porque era jovem e intocada, que queria espoliá-la.

Artur escondeu um sorriso, pelo ritmo romântico da história.

- Tu tens muito jeito para isto - disse ele. - Espero que tenha um final feliz.

Catarina levantou a mão como um trovador, a pedir silêncio.

A sua maior amiga e dama de companhia, Beatriz, tinha uma faca e jurou que mataria Don Pedro, antes de ele pôr as mãos em cima de Isabel; mas a minha mãe ajoelhou-se diante do oratório, por três dias e três noites, e rezou sem parar, para ser poupada àquela violação. Ele estava em viagem, para vir ter com ela, chegaria no dia seguinte. Comeu e bebeu bem, anunciando aos companheiros que no dia seguinte estaria na cama da virgem mais notável de Castela. Mas morreu nessa mesma noite - a voz de Catarina transformou-se num murmúrio assustador. - Morreu antes de terminar o vinho do jantar. Caiu morto, como se Deus houvesse descido dos Céus para lhe roubar a vida, como um bom jardineiro esmaga um pulgão verde.

Com veneno? - perguntou Artur, que sabia alguma coisa sobre os métodos de alguns reis. e que considerava Isabel de Castela bastante capaz de cometer um assassínio.

Foi a vontade de Deus - respondeu Catarina seriamente. -Don Pedro descobriu, como toda a gente, que a vontade de Deus e os desejos da minha mãe estão em consonância. E. se conhecesses Deus e a minha mãe tão bem como eu. saberias que a vontade deles se concretiza sempre.

Ele levantou o copo e fez-lhe um brinde

Essa é uma boa história - disse. - Gostava que pudesses contá-la no salão.

E é tudo verdade - relembrou-lhe ela. - Eu sei que é. Foi a minha própria mãe que ma contou.

Então, ela também lutou pelo trono - concluiu ele. pensati­vamente.

Primeiro pelo seu trono, e depois para construir o reino da Espanha.

Ele sorriu.

- Apesar de nos dizerem que somos de sangue real, ambos provimos de uma linhagem de guerreiros. Obtivemos os nossos tronos por conquista.

Ela levantou as sobrancelhas.

Eu sou de sangue real - disse. - A minha mãe herdou o trono por direito legítimo.

Sim. Mas se não tivesse lutado pelo seu lugar no mundo, seria Dona fosse qual fosse o nome dele.

Girón.

Girón. E tu nascerias como uma insignificante.

Catarina abanou a cabeça. A ideia era bastante impossível de aceitar.

Teria sido a filha da irmã do rei, independentemente do que tivesse acontecido. Teria sempre sangue real nas veias.

Não terias sido ninguém - disse ele friamente. - Ima insig­nificante com sangue real. Assim como eu, se o meu pai não tives­se lutado pelo seu trono. Provimos ambos de famílias que lutam pelo que é seu.

Sim - acedeu ela com relutância.

Ambos somos filhos de pais que reivindicam o que era de outras pessoas por direito - continuou.

Ela levantou imediatamente a cabeça.

- Isso não é verdade. Pelo menos no que diz respeito à minha mãe. Ela era a herdeira legítima.

Artur discordou.

- O irmão nomeou a filha sua herdeira, reconheceu-a. A tua mãe obteve o reino por conquista. Assim como o meu pai conquis­tou o dele.

Ela enrubesceu.

Ela não fez nada disso - insistiu. - Ela é a herdeira legítima do trono. Tudo o que fez foi defender o seu direito de uma pretendente.

Não percebes? - disse ele. - Todos somos pretendentes até vencermos. Quando vencemos, podemos reescrever a História e as árvores genealógicas, e executar os nossos rivais, ou prendê-los. ate podermos alegar que sempre houve um único herdeiro legítimo: nos próprios. Mas antes disso, somos um entre muitos pretendentes. E nem sempre somos o melhor pretendente, com o direito mais forte.

Ela franziu a testa.

- O que estás a dizer? - perguntou. - Estás a dizer que eu não a sou a princesa legítima? Que tu não és o herdeiro legítimo da Inglaterra?

Ele pegou-lhe na mão.

- Não, não. Não te zangues comigo - acalmou-a. - Estou a dizer que nós temos e mantemos aquilo que e nosso por direito. Estou a dizer que somos nós quem faz a nossa herança. Reclamamos o que queremos, dizemos que somos Príncipe de Gales, Rainha da Inglaterra. Que decidimos o nome e o título pelo qual somos conhe­cidos. Tal como toda a gente faz.

- Estás errado - disse ela. - Eu nasci Infanta da Espanha e vou morrer Rainha da Inglaterra. Não é uma questão de escolha, é o meu destino.

Ele pegou na mão dela e beijou-a. Percebeu que não valia a pena continuar com a sua convicção de que um homem ou uma mulher podiam fazer o seu próprio destino através das suas próprias convicções. Ele poderia ter as suas dúvidas; mas para ela, a tarefa estava concluída. Ela estava totalmente convencida de que o seu destino estava traçado. Ele não tinha dúvidas de que ela o defen­deria até à morte. O seu título, o seu orgulho, o seu sentido de per­sonalidade eram um só.

- Catarina, Rainha da Inglaterra - disse ele, beijando-lhe os dedos, e vendo o sorriso voltar ao rosto dela.

Amo-o tão profundamente, não sabia que alguma vez poderia amar alguém assim. Sinto que estou a crescer em paciência e sabedoria, só pelo meu amor por ele. Afasto-me da irritabilidade e da impaciência, até suporto as saudades de casa sem me queixar. Sinto que estou a tornar-me uma mulher melhor, uma esposa melhor, à medida que tento agradar-lhe e torná-lo orgulhoso de mim. Quero que se sinta sempre feliz por ter casado comigo. Quero que sejamos sempre tão felizes como hoje. Não existem palavras para o descrever... não existem palavras.

Chegou um mensageiro da corte do rei trazendo presentes para recém-casados: dois veados da floresta de Windsor, uma caixa com livros para Catarina, cartas de Isabel, a rainha, e ordens de Sua

Alteza, a Mãe do Rei que soubera, não se sabia através de quem, que a caçada do príncipe destruíra algumas vedações, e que ordenava a Artur que as mandasse reparar e que indemnizasse o proprietário das terras.

Ele levou a carta para o quarto de Catarina, quando foi ter com j à noite.

Como é que ela consegue saber tudo? - perguntou ele.

O homem deve ter-lhe escrito - respondeu ela. lamentando.

Porque nào veio falar directamente comigo?

Talvez a conheça? É um feudatário dela?

Pode ser - respondeu ele. - Ela tem uma rede de alianças semelhante a uma teia de aranha, por todo o país.

Devias ir falar com ele - decidiu Catarina. - Podíamos ir os dois. Levávamos-lhe um presente, alguma carne ou algo parecido, e pagávamos-lhe o que lhe devemos.

Artur abanou a cabeça perante o poder da sua avó.

Sim, podemos fazer isso. Mas como é que ela consegue saber tudo?

E assim que vocês governam - respondeu ela. - Não é? Certificam-se de que sabem de tudo e de que alguém que tenha um problema vem falar convosco. Depois, eles habituam-se a obedecer, e vocês a ordenar.

Ele riu-se.

- Estou a ver que casei com outra Margaret Beaufort - disse. Deus me valha para não ter mais nenhuma na família.

Catarina sorriu.

- Devo avisar-te - admitiu. - Sou filha de uma mulher forte. Até o meu pai faz aquilo que ela lhe diz.

Ele pousou a carta e puxou-a para junto de si.

- Desejei-te o dia inteiro - disse com a boca encostada à sua nuca quente.

Ela desapertou a parte da frente da camisa de dormir dele. para poder encostar a cara à sua pele, que tinha um odor doce.

- Oh, meu amor.

Num gesto dirigiram-se para a cama.

-Oh, meu amor.

- Conta-me uma história.

- Que história queres que te conte hoje?

- Conta-me como o teu pai e a tua mãe se casaram

combinado, assim como foi connosco?

Não! - exclamou ela. - De maneira nenhuma. Ela estava bastante sozinha no mundo e, apesar de Deus a ter salvo de Don Pedro, ainda não estava segura. Sabia que o irmão a casaria com qualquer um que garantisse impedi-la de herdar o trono.

Foram anos difíceis para ela. contou-me que, quando apela­va à mãe. era a mesma coisa que estar a falar com os mortos. A minha avó estava perdida no mundo do seu sofrimento, não podia fazer nada para ajudar a própria filha.

O primo da minha mãe, a sua única esperança, era o herdeiro do trono vizinho: Fernando de Aragão. Veio ter com ela. disfarçado. Sem quaisquer criados e sem soldados, cavalgou a noite inteira e foi ao castelo onde ela lutava para sobreviver. Arranjou forma de entrar, e atirou a capa e o chapéu para o lado, para que ela o visse e conhecesse de imediato.

Artur estava extasiado.

- A sério? Catarina sorriu.

Não é como um romance? Ela contou-me que se apaixonou logo por ele, à primeira vista, como uma princesa de um poema. Ele propôs-lhe, logo ali. casamento e ela aceitou-o de imediato. Ele apaixonou-se por ela nessa noite, à primeira vista, que e algo que nenhuma princesa pode esperar. A minha mãe e o meu pai foram abençoados por Deus. Fez com se apaixonassem e os corações de ambos seguiram os seus interesses.

Deus toma conta dos reis da Espanha - observou Artur, gra­cejando.

Ida assentiu com a cabeça.

O teu pai tem razão em procurar a nossa amizade. Estamos a construir o nosso reino a partir do al-Andalus, as terras dos prín­cipes mouros. Temos Castela e Aragão, agora temos Granada, e teremos mais. O coração do meu pai estipulou que seria Navarra, e ele não vai parar por aí. Sei que está determinado em conquistar Nápoles. Não me parece que vá ficar satisfeito até todas as regiões do Sul e o Ocidente da Franca serem nossas. Vais ver. Ele ainda não conseguiu as fronteiras que deseja para a Espanha.

Eles casaram-se em segredo? - perguntou ele, ainda deslum­brado com este casal real que moldara as suas vidas com as próprias mãos e traçara o seu destino.

Ela estava com um ar ligeiramente submisso.

- Ele disse-lhe que tinha uma dispensa que não estava devida­mente assinada. Creio que a enganou.

Ele franziu a testa.

- O teu maravilhoso pai mentiu a sua santa esposa? Ela esboçou um sorriso triste.

E verdade, ele é capaz de fazer tudo para conseguir o que 3 quer. Apercebes-te rapidamente disso quando falas com ele. Ele está sempre mais à frente, dois, talvez três passos mais á frente. Ele sabia que a minha mãe era devota, e que não casaria sem a dispensa olé/ — lá estava uma dispensa na mão dela.

Mas depois emendaram a situação?

Sim, e apesar de isso desagradar ao pai dele e ao irmão dela, era a atitude correcta a tomar.

Como poderia ser a atitude correcta? Desafiar a família? Desobedecer ao próprio pai? Isso é pecado. É infringir um manda­mento. É um pecado mortal. Nenhum Papa poderia abençoar ura casamento como esse

Era a vontade de Deus - disse ela confiante. - Nenhum deles sabia que era a vontade de Deus. Mas a minha mãe sabia. Ela conhece sempre as vontades de Deus.

Como pode ela ter tanta certeza? Como é que podia ter tanta certeza naquela aluna, quando era apenas uma menina?

Ela riu-se.

- Deus e a minha mãe sempre pensaram em consonância. Ele riu-se e esticou um caracol do cabelo dela.

Mas tomou, definitivamente, a atitude correcta ao enviar-te para junto de mim.

Pois tomou - respondeu Catarina. - E nós iremos fazer o que está certo pelo país.

Sim - disse ele. - Tenho tantos planos para nós. quando che­garmos ao trono.

- O que vamos fazer? Artur hesitou.

- Vais pensar que sou uma criança, com a cabeça cheia de his­torias dos livros.

- Não vou nada. diz-me.

- Gostava de criar um conselho, como o primeiro que Artur fez. Não como o do meu pai, que está cheio de amigos que luta­ram por ele, mas um conselho como deve ser, com representan­tes de todo o reino. Um conselho de cavaleiros, um de cada con­dado. Não escolhidos por mim por gostar da sua companhia, mas escolhidos pelo seu próprio condado - como os melhores homens para os representar. E gostava que se sentassem à mesa e que cada um deles soubesse o que se está a passar no seu condado, e deveria relatar-mo. E, assim, se Lima colheita não vai correr bem e se vai haver fome, saberíamos atempadamente e enviaríamos alimentos.

Catarina sentou-se, interessada.

Seriam nossos conselheiros. Os nossos olhos e os nossos ouvidos.

Sim. E eu gostaria que cada um deles fosse responsável pela construção de defesas, principalmente no Norte e no litoral.

E para passar revista às tropas uma vez por ano, para estar­mos sempre prontos para o ataque - acrescentou ela. - Eles virão, tu sabes.

- Os Mouros?

Ela assentiu com a cabeça.

Estão a ser derrotados na Espanha por enquanto, mas estão mais fortes do que nunca na África, na Terra Santa, na Turquia e nas terias para além dessas. Quando precisarem de mais terras, invadirão novamente a Cristandade. Uma vez por ano, na Primavera, o sultão otomano vai para a guerra, como os outros homens cultivam as terras. Eles atacar-nos-ão. Não poderemos saber quando virão, mas podemos ter a certeza de que o farão.

Quero defesas ao longo de toda a costa sul contra a França, e contra os Mouros - disse Artur. - Uma série de castelos, e de faróis atrás deles, para que, quando estivermos a ser atacados, por exem­plo, em Kent, possamos sabê-lo em Londres, e todos possam ser avisados.

Terás de construir navios - disse ela. - A minha mãe enco­mendou navios de guerra aos estaleiros de Veneza.

Nós temos os nossos próprios estaleiros - respondeu ele. -Podemos construir os nossos navios,

Como vamos angariar dinheiro para todos esses castelos e navios? - a filha de Isabel fez a pergunta prática.

Uma parte, cobrando impostos ao povo - retorquiu ele. - A outra parte, cobrando impostos aos mercadores e às pessoas que utilizam os portos. É para segurança deles, devem pagar. Sei que as Pessoas detestam impostos, mas é porque não vêem o que é feito com esse dinheiro.

Vamos precisar de cobradores de impostos honestos - disse Catarina. - O meu pai diz que cobrar os impostos que são devidos e não perder metade pelo caminho, é melhor do que ter um regimento de cavalaria.

- Sim, mas como se encontra homens em quem se possa confiar? - Artur pensou em voz alta. - Neste momento, qualquer homem que queira fazer fortuna arranja um trabalho como cobrador de impostos. Deviam trabalhar para nós. não para eles. Devi receber um salário e não cobrar por conta própria.

Nunca ninguém o conseguiu, a não ser os Mouros - disse ela - Os Mouros, em al-Andalus, criaram escolas e universidades para os filhos dos pobres, para poderem ter funcionários em quem pudessem confiar. E os grandes ofícios da corte são sempre execu­tados pelos jovens estudantes, por vezes, os filhos mais novos do rei.

Será que deveria arranjar cem mulheres, para obter mil funcionários para o trono? - brincou ele com ela.

Nem mais uma.

Mas temos de encontrar homens de confiança - disse ele c ar pensativo. - Precisas de ter funcionários leais na corte, aqueles que devem o seu salário e obediência à coroa. Caso contrário, trabalham para si mesmos, aceitam subornos e todas as suas Iami" se tornam poderosas.

A Igreja poderia ensiná-los - sugeriu Catarina. - Tal como os imãs ensinam os rapazes para os Mouros. Se cada paróquia da Igreja fosse tão erudita como uma mesquita, com Lima escola, se cada padre soubesse que tem de ensinar a ler e a escrever, então pode­ríamos fundar novos colégios nas universidades, para que os rapa­zes pudessem progredir e aprender mais.

- Isso é possível? - perguntou ele. - Não é apenas um sonho Ela assentiu com a cabeça.

- Podia ser real. Fazer um país é a obra mais real que alguém pode fazer. Criaremos um reino do qual nos possamos orgulhai, tal como a minha mãe e o meu pai fizeram na Espanha. Podemos deci­dir como deverá ser, e podemos fazer com que aconteça.

Camelot - disse ele simplesmente.

Camelot - repetiu ela.

 

                   Castelo de Ludlow, Primavera de 1502

Nevou durante uma semana em Fevereiro, e depois veio gelo, a neve derreteu e agora está a chover outra vez. Não posso passear no jardim nem montar a cavalo nem sequer ir à cidade de mula. Nunca vi tanta chuva na minha vida. Não é como a nossa chuva que cai sobre a terra quente e liberta um odor rico e morno, ã medida que o pó assenta e as plantas bebem a água. Esta é uma chuva fria que cai numa terra gelada, e não tem qualquer perfume, ape­nas poças de água que se mantêm cobertas de gelo escuro, como uma pele gelada.

Sofro com as saudades da minha casa, nestes dias frios e escuros. Quando conto histórias a Artur sobre a Espanha e sobre o Alhambra, ocorre-me o desejo de que ele os pudesse ver pelos seus próprios olhos, e conhecer a minha mãe e o meu pai. Quero que eles o vejam, e que conheçam a nossa felicidade. Estou sempre a perguntar-me se o pai não o deixaria sair da Inglaterra... mas sei que estou a sonhar. Nenhum rei, alguma vez, deixaria o seu precioso filho e herdeiro sair das suas terras.

Depois começo a imaginar se poderei ir a casa sozinha, numa visita breve. Não suporto estar sem Artur, nem sequer por uma noite, mas depois penso que, a não ser que vá a Espanha sozinha, nunca mais voltarei a ver a minha mãe, e essa ideia, de nunca mais voltar a sentir o toque da sua meio no meu cabelo ou de nunca mais a poder ver a sorrir para mim - não sei como suportaria nunca mais voltar a vê-la.

Sinto-me feliz e orgulhosa de ser Princesa de Gales e a futura Rainha da Inglaterra, mas nunca pensei, não tinha consciência Sei que é um disparate da minha parte! - mas não percebi que isso significaria que iria viver aqui para sempre, que nunca voltaria a casa. De alguma forma, apesar de saber que casaria com o Príncipe de Gales e que um dia seria Rainha da Inglaterra, não compreendi bem que esta seria a minha casa agora, e para sempre; e que posso nunca mais voltara ver a minha mãe, o meu pai ou a minha casa.

Pelo menos esperava (que nos escrevêssemos, pensei que teria notícias deles com frequência. Mas foi como ela se comportou com a Isabel, com a Maria, com a Joana; envia instruções através do embaixador, eu recebo as minhas ordens, como uma princesa da Espanha Mas como uma mãe para a filha, raramente tenho notícias.

Não sei como suportá-lo. Nunca pensei que uma coisa destas pudesse acontecer. A minha irmã Isabel voltou para casa. depois de enviuvar, apesar de ter casado novamente e de ter de partir mais uma vez. E Joana escreve-me dizendo que vai a casa, de visita, com o marido. Não é justo que ela vá e eu não seja autorizada a fazê-lo Só tenho dezasseis anos. Não estou preparada para viver sem os conselhos da minha mãe. Não sou suficientemente crescida para viver sem uma mãe. Procuro-a, para que me diga todos os dias o que devo fazer- e ela não está aqui.

A mãe do meu marido, a rainha Isabel, e insignificante na sua própria casa. Não pode ser uma mãe para mim. nem sequer pode decidir como ocupar o seu tempo, como pode aconselhar-me? E a mãe do rei, Lady Margaret, quem decide tudo; e é uma mulher muito considerada e dura. Não pode ser uma mãe para mim, nunca poderia ser uma mãe para ninguém. Ela venera o filho porque, graças a ele, é a mãe do rei; mas não o ama, não sente qualquer ternura por ele. Nem sequer ama Artur, e uma mulher que não é capaz de o amar, é porque não tem coração. Na verdade, estou convencida de que ela não gosta de mim, apesar de não saber porquê.

E, de qualquer modo, tenho a certeza de que a minha mãe tem tantas saudades minhas como eu dela. Seguramente, muito em breve, vai escrever ao rei e pedir-lhe para me deixar ir a casa, em visita. Antes de ficar muito frio aqui. E já faz um frio e uma humidade terríveis. Estou segura de que não vou conseguir passar aqui todo o longo Inverno. Tenho a certeza de que vou adoecer. Estou convicta de que ela deve querer que eu vá a casa...

Catarina, sentada à mesa, diante da janela, tentando apanhar a fraca de uma tarde cinzenta de Fevereiro, pegou na sua carta, onde perguntava à mãe se podia ir visitá-la, a Espanha, e rasgou-a cuidadosamente ao meio, e novamente em dois, e atirou os pedaços a lareira do quarto. Não era a primeira carta que escrevia à mãe a pedir para ir a casa, mas - assim como as outras - nunca chegaria ser enviada. Não trairia a formação que a mãe lhe facultara, fugin­do dos céus cinzentos, da chuva gelada e das pessoas cuja língua ninguém entendia e cujas alegrias e tristezas eram um mistério.

Não podia saber que, mesmo que tivesse enviado a carta para o embaixador espanhol em Londres, esse diplomata astuto tê-la-ia aberto e lido, e teria sido ele próprio a rasgá-la, e em seguida trans­mitiria o teor da mesma ao rei da Inglaterra. Rodrigo Gonsalvi de Puebla sabia, apesar de Catarina ainda não perceber, que o seu casamento forjara uma aliança entre o poder emergente da Espanha e o poder emergente da Inglaterra, contra o poder emergente da França. Não seria permitido que uma princesa com saudades de casa e da mãe causasse instabilidade.

Conta-me uma história.

Sou como a Xerazade. queres que te conte mil histórias.

Oh, sim! - respondeu ele. - Quero ouvir mil e uma histórias. Quantas é que já me contaste?

Contei-te uma história todas a noites, desde que estamos jun­tos, desde aquela primeira noite, em Burford - disse ela.

- Quarenta e nove dias - disse ele.

- Apenas quarenta e nove histórias. Se eu fosse a Xerazade. ainda me faltariam novecentas e cinquenta e duas.

Ele sorriu.

- Sabes. Catarina, tenho sido mais feliz nestes quarenta e nove dias do que alguma vez fui na vida.

Ela pegou-lhe na mão e levou-a aos seus lábios.

- E nas noites!

Os olhos dela escureceram de desejo.

-Sim, as noites - disse calmamente.

-Desejo cada uma das novecentas e cinquenta e duas. ainda mais - disse ele. - F depois, quero mais mil. a seguir a essas.

-E outras mil a seguir a essas?

-E mais mil a seguir a essas, para sempre, ale ambos morrer mos.

Ela sorriu.

- Deus permita que tenhamos longos anos juntos - desejou ternamente.

Então, o que vais contar-me esta noite? Ela pensou.

Vou dizer-te um poema mouro.

Artur encostou-se às almofadas, enquanto ela se inclinava p-a frente e fixava os olhos azuis nas cortinas da cama, como pudesse ver para além destas, para qualquer lugar.

-Ele nasceu nos desertos da Arábia - explicou ela. - For i quando foi para a Espanha, sentia saudades de tudo na sua te natal. Escreveu este poema.

 

"Existe uma palmeira no meio de Rusafa,

Nascida no Ocidente, longe da terra das palmeiras.

Disse-lhe és Ido parecida comigo, distante e no exílio

Há tanto tempo separada da tua família e amigos.

Cresceste num solo onde és uma estranha

E eu, como tu. estou longe de casa. "

 

Ele permaneceu em silêncio, assimilando a simplicidade poema.

Nào é como a nossa poesia - afirmou.

Não - respondeu ela tranquilamente. - São um povo com u grande amor pelas palavras, adoram dizer uma verdade de foi simples.

Abriu os braços e ela encostou-se a ele e ficaram deitados, lad a lado, com as pernas unidas. Tocou-lhe no rosto, ela tinha as tac molhadas.

- Oh, meu amor! Estás a chorar? Ela nào disse nada.

Sei que tens saudades de casa - disse-lhe com ternura, pegando-lhe na mão e beijando-lhe as pontas dos dedos. - Mas va' habituar-te à tua vida aqui, aos teus mil, milhares de dias aqui.

Sou feliz contigo - disse Catarina rapidamente. - Só que... -A voz arrastou-se. - A minha mãe - disse, muito baixinho. - Tenho saudades dela. E preocupo-me com ela. Forque... eu sou a mais nova, percebes? E ela manteve-me junto dela o máximo de tempo que pôde.

-Ela já passou... por muito. Perdeu o filho, o meu irmão Juan, e era o nosso único herdeiro. É tão horrível perder um príncipe, não

podes imaginar quanto. Não é apenas a sua perda, mas a impossibilidade de tudo que poderia ter sido. A sua vida desapareceu, mas seu reino e o seu futuro também deixaram de existir. A mulher já não vai ser rainha, tudo o que ele esperou já não vai acontecer. E, depois, o herdeiro seguinte, o pequeno Miguel, morreu com apenas dois anos. Era tudo o que nos restava da minha irmã Isabel, a mãe dele e foi vontade de Deus levá-lo também de junto de nós. A pobre da Maria morreu longe de nós, em Portugal, para onde foi para se casar e nunca voltamos a vê-la. Era natural que a minha mãe me mantivesse perto dela, para seu conforto. Fui o último dos filhos a sair de casa. E agora não sei como ela estará sem mim.

Artur pôs-lhe o braço em volta dos ombros e puxou-a para si.

Deus confortá-la-á.

Deve sentir-se tão só - disse baixinho.

De certeza que ela, mais do que qualquer outra mulher no mundo, sente o conforto de Deus.

Não me parece que isso aconteça sempre - afirmou Catarina. - A própria mãe dela foi atormentada pela tristeza, sabes. Muitas das mulheres da nossa família podem ficar bastante doentes, devido à tristeza. Sei que a minha mãe teme afundar-se na tristeza, como a mãe: uma mulher que via as coisas de uma forma tão obscura que preteriria ter sido cega. Sei que ela receia nunca mais voltar a ser feliz. Eu sei que ela gostaria de me ter junto dela, para a fazer feliz. Da dizia que eu era uma criança nascida com predisposição para a alegria, que podia adivinhar que eu seria sempre feliz.

O teu pai não a conforta?

Sim - respondeu ela vagamente. - Mas ele está muitas vezes longe. E, de qualquer forma, eu gostava de estar com ela. Mas tu deves saber como me sinto. Não sentiste saudades da tua mãe. quando toste mandado para longe pela primeira vez? E do teu pai. das tuas irmãs e do teu irmão?

Tenho saudades das minhas irmãs, mas não do meu irmão -respondeu ele. de um modo tão decidido que ela não conseguiu deixar de rir.

Porque não? Achei-o tão divertido.

É um gabarolas - respondeu Artur irritado. - Está sempre a evidenciar-se. Pensa no nosso casamento, teve de estar sempre no centro do palco, lembra-te da festa desse dia, teve de dançar para que todas as atenções estivessem concentradas nele. A puxar a

Margaret para dançar e a fazer uma representação daquelas.

Oh. não! Foi só porque o teu pai lhe disse para dançar, e el# estava feliz. É um rapazinho.

Quer ser um homem. Tenta ser um homem e faz-nos rã2 uma figura ridícula, sempre que o tenta. F ninguém lhe diz nada! Viste como olhava para ti?

Eu não vi nada - respondeu ela com sinceridade. - Para mim foi tudo muito disperso.

Fantasiou que está apaixonado por ti e sonhou que era el quem te ia levar ao altar.

Ela riu-se.

Oh, que disparate!

Ele sempre foi assim - respondeu, ressentidamente. - E por­que é o preferido de todos, permitem que faça e diga tudo o que lhe apetece. Eu tenho de estudar direito e línguas, tenho de viver aqui e preparar-me para assumir a coroa; mas o Henrique fica Greenwich ou em Whitehall. no meio da corte, como se fosse embaixador e não um herdeiro que deveria receber formação. Tem de ter um cavalo quando eu tenho um cavalo - apesar cie eu ter ti; o mesmo palafrém durante anos. Fie teve um falcão quando cleram o meu primeiro falcão - ninguém o obriga a treinar um lian-celho e depois um açor, ano após ano, depois, tem de ter o mesmo tutor que eu, e tenta ultrapassar-me, tenta ser melhor do que eu, sempre que pode, e obtém sempre o melhor.

Catarina percebeu que ele estava verdadeiramente irritado.

Mas ele é apenas o segundo filho - comentou.

É o favorito de todos - disse Artur mal-humorado. - Tem tudo o que pede e tudo é fácil para ele.

Ele não é o Príncipe de Gales - observou ela. - Pode apreciado, mas não é importante. Só fica na corte porque não é st cientemente importante para ser enviado para aqui. Não tem o seu próprio Principado. O teu pai terá planos para ele. Provavelmente casará e será mandado para longe. Um segundo filho tem tanta importância como uma filha.

Ele vai para a Igreja - disse ele. - Vai ser padre. Quem casa­ria com ele? Portanto, vai ficar para sempre na Inglaterra. Sou caf. de adivinhar que vou ter de o suportar como meu arcebispo, se ná conseguir tornar-se Papa.

Catarina riu-se perante a ideia de o rapaz loiro, de rosto rosa­do e inteligente, vir a ser Papa

- Vamos ser todos importantes quando formos adultos - disse. - Tu e eu. Rei e Rainha da Inglaterra, e Henrique, arcebispo; talvez até cardeal.

_ O Henrique nunca crescerá - insistiu ele. - Será sempre um az egoísta. E porque a minha avó e o meu pai sempre lhe deram tudo o que ele quis, bastava ele pedir, vai ser uma pessoa gananciosaciosa e difícil.

- Talvez mude - disse ela. - Quando a minha irmã mais velha, pobre da Isabel, foi para Portugal pela primeira vez, era a rapariga mais vaidosa e mundana que possas imaginar. Mas quando o marido morreu e ela voltou para casa, não lhe interessava mais nada a não ser ir para um convento. Ficou com o coração despedaçado.

Ninguém partirá o coração de Henrique - afirmou o irmão mais velho. - Ele não tem nenhum.

Terias pensado o mesmo da Isabel - argumentou Catarina. -Mas ela apaixonou-se pelo marido no dia do casamento e disse que nunca mais voltaria a amar. Teve de casar pela segunda vez, claro. Mas casou contrariada.

E tu? - perguntou ele, mudando repentinamente de estado de espírito.

- E eu, o quê? Se casei contrariada?

Não! Se te apaixonaste pelo teu marido no dia do casa­mento?

No dia do casamento não foi. de certeza - retorquiu. - Por falar em gabarolas! O Henrique não é nada, comparado contigo! Ouvi-te dizer a toda a gente, na manha seguinte, que ter uma mulher era um excelente desporto.

Artur teve a delicadeza de ficar envergonhado.

Posso ter dito alguma coisa na brincadeira.

Que tinhas estado na Espanha toda a noite?

Oh, Catarina, perdoa-me. Eu não sabia nada. Tens razão, era uma criança. Mas agora sou um homem, o teu marido. E tu apaixonaste-te pelo teu marido. Por isso. não negues.

Mas demorou algum tempo - respondeu ela pausadamente. - Não foi, de forma alguma, amor à primeira vista.

- Eu sei quando aconteceu, por isso não me podes enganar. Foi naquela noite, em Burford, quando tinhas estado a chorar e eu te beijei a sério pela primeira vez, e enxuguei-te as lágrimas com as minhas mangas. E depois, nessa noite, fui ter contigo e a casa estava tão silenciosa, que era como se fôssemos as únicas pessoas vivas, no mundo inteiro.

Ela enroscou-se mais nos braços dele.

- E contei-te a minha primeira história - disse. - Lembras-te qual foi?

- Foi a história do incêndio em Santa Fé - respondeu ele. - a única vez que a sorte esteve contra os Espanhóis.

Ela assentiu com a cabeça.

Normalmente, éramos nós que levávamos o fogo e a espada O meu pai tem fama de ser impiedoso.

O teu pai era impiedoso? Apesar de ser terra que estava reivindicar para si? Como esperava convencer as pessoas da sua vontade?

Através do medo - respondeu ela com simplicidade. - E qualquer modo, não era a sua vontade. Era a vontade de Deus, por vezes Deus não tem misericórdia. Aquela não era uma guerra normal, era uma cruzada. As cruzadas são cruéis.

Ele acenou com a cabeça.

-     Escreveram uma canção sobre o avanço do meu pai. Mouros tinham.uma canção.

Inclinou a cabeça para trás e numa voz sinistra e baixa, traduzindo as palavras para francês, cantou:

 

"Cavaleiros atravessam a galope a porta Elvira, sobem até

Alhambra, Trazem notícias temerosas, o rei.

O próprio Fernando lidera um exército, a flor da Espanha. Ao longo das margens do Jenil; com ele traz Isabel, rainha que tem um coração de homem."

 

Artur ficou encantado.

-     Canta outra vez! Ela riu-se e voltou a cantar.

E chamavam-lhe mesmo assim: "Rainha que tem um coração de homem"?

O meu pai diz que, quando ela estava num acampamento era melhor do que dois batalhões, para dar forças ás tropas e para assustar os Mouros. Em todas as batalhas que travaram, nunca derrotada. O exército nunca perdeu uma batalha quando ela estava presente.

-     Ser um rei desses! Haver pessoas a escrever canções sobre nós.

- Eu sei - respondeu Catarina. - Ter uma mãe que é uma lenda Não admira que tenha saudades dela. Naquele tempo, ela não tinha medo de nada. Nem quando as chamas quase nos destruíram e teve medo. Nem das chamas durante a noite, nem da derrota.

Mesmo quando o meu pai e todos os seus conselheiros concordaram que teríamos de recuar para Toledo, rearmarmo-nos e voltar no ano seguinte, a minha mãe disse que não.

- Ela discute com ele em público? - perguntou Artur fascinado pela idéia de uma mulher que não era submissa.

_ Não discute, propriamente - retorquiu ela, com ar pensativo. Nunca o contradiria ou desrespeitaria. Mas ele sabe muito bem quando ela não está de acordo. E, a maior parte das vezes, fazem o que ela quer.

Ele abanou a cabeça.

- Sei o que estás a pensar, uma mulher deve obedecer. Ela pró­pria o diria. Mas a dificuldade é que ela tem sempre razão - afirmou Catarina. - De todas as vezes que me recordo, sempre que se punha a questão de o exército dever ou não avançar, ou de haver alguma coisa a ser feita, é como se Deus a aconselhasse, é mesmo assim; ela sabia melhor o que devia ser feito. Até o meu pai tem noção de que ela sabe melhor.

- Deve ser uma mulher extraordinária.

- É a Rainha - respondeu Catarina simplesmente. - Rainha de pleno direito. Não é uma mera rainha por casamento, nem uma plebeia educada para ser rainha. Nasceu Princesa da Espanha como eu. Nasceu para ser rainha. Foi salva por Deus dos mais ter­ríveis perigos para ser Rainha da Espanha. Que mais poderia fazer senão comandar o seu reino?

Nessa noite, sonho que sou um grande pássaro, uma andorinha, um gaivão, sobrevoando alto e destemidamente o reino da nova Castela, para sul de Toledo, sobre Córdova, para sul, para o reino de Granada; o terreno sob mim, estendido como uma tapeçaria escura, tecida com a lá dourada das ovelhas dos Berberes, a terra de latão perfurada por penhascos de bronze, os montes tão altos que nem sequer as oliveiras conseguem fixar-se nas suas encostas íngremes. E continuo a voar, com o meu pequeno coração de Pássaro a tremer, até avistar as paredes rosadas do Alcazar, o grande forte que rodeia o Palácio de Alhambra, e voando mais baixo e rápido, toco ao de leve na esquadria brutal da torre de vigia, onde a bandeira da lua crescente em tempos esvoaçou, para descer em direção ao Pátio dos Mirtilos e esvoaçar, em círculos, no ar quente, rodeado de edifícios delicados de estuque e azulejos, olhando para

baixo, para o reflexo na água, e vendo por fim, aquela que procuro-a, minha mãe, Isabel da Espanha, a passear no ar morno da noite, pensando na filha, na Inglaterra distante.

 

                   Castelo de Ludlow, Março de 1502

- Quero pedir-vos que conheçais uma senhora que é muito minha amiga e que também quer ser vossa amiga - disse Artur, escolhendo cuidadosamente as palavras.

As damas de companhia de Catarina, aborrecidas, numa tarde fria sem distracções, inclinaram-se para a frente, para ouvirem, tentando parecer concentradas nos seus trabalhos de costura.

Ela ficou imediatamente branca como o linho que bordava.

- Meu senhor? - perguntou ansiosamente. Ele não mencionara nada a este respeito, de manhã, quando tinham acordado e feito amor. Não esperava vê-lo antes do jantar. O facto de aparecer assim, nos seus aposentos, indicava que algo acontecera. Ela estava preo­cupada, à espera de saber o que se estava a passar.

- Uma senhora? Quem é?

- Deveis ter ouvido as outras falar dela, mas suplico-vos que vos lembreis que ela está disposta a ser vossa amiga, e sempre foi uma boa amiga minha.

Catarina levantou a cabeça num rompante e respirou fundo Por momentos, por um momento terrível, pensou que ele estava a apresentar uma antiga amante na sua corte, suplicando por um lugar entre as damas de companhia para alguma mulher que fora sua amante, para poderem continuar a sua ligação.

Se é isso que ele está a fazer, sei qual é o meu papel. Vi a minha mãe ser assombrada pelas raparigas bonitas a quem o meu Deus lhe perdoe, não conseguia resistir. Vezes sem conta, víamo-lo prestar atenção a algum rosto novo na corte. De todas as vezes, minha mãe comportava-se como se não tivesse visto nada. oferecia um dote elevado a rapariga, casara-a com um membro da corte incentivava-o a levar a sua nova mulher para longe, para muito longe. Era tão freqüente, que se tornou uma anedota: se uma rapariga quisesse fazer um bom casamento, com a bênção da rainha e viajar para uma província remota, tudo o que tinha de fazer era captar as atenções do rei, e muito rapidamente ver-se-ia

a sair do Alhambra, num excelente cavalo, com um conjunto de roupa nova.

Sei que uma mulher sensata olha para o outro lado e tenta suportar a sua dor e humilhação, quando o marido decide levar outra mulher para a cama. O que ela não deve fazer é comportar-se como a minha irmã Joana, que se envergonha a si mesma e a todos nós gritando, chorando histericamente e ameaçando vingar-se.

Não resolve nada-, disse-me uma vez a minha mãe, quando um dos embaixadores nos contou uma cena terrível na corte de Filipe, na Holanda. Joana ameaçara cortar o cabelo da mulher, atacando-a com uma tesoura e depois jurando que se esfaquearia.

Queixar-se só agrava a situação. Se um marido se afasta, lemos de voltar a trazê-lo para a nossa vida e para a nossa cama, independentemente do que tenha feito; não há escapatória ao casamento. Se fores rainha e ele rei. têm de tratar de assuntos em con­junto. Se ele se esquecer do seu dever para contigo, isso não é motivo para te esqueceres do teu para com ele. Por muito doloroso que seja, continuas a ser a sua rainha e ele não deixa de ser teu marido.

Independentemente do que ele fizer? - perguntei-lhe. - Seja qual for o comportamento dele? Ele é livre, apesar de eu estar presa?

Ela encolheu os ombros.

Seja o que for que ele faça, não pode quebrar o vínculo matrimonial. Vocês foram casados perante Deus. ele será sempre o teu marido, e tu serás sempre a sua rainha. Aqueles que Deus juntou, nenhum homem pode separar. Por muito sofrimento que o teu marido te traga, contínua a ser teu marido. Pode ser um mau marido; mas não deixa de ser o teu marido.

E se ele desejar outra?- perguntei, com a minha curiosidade infantil aguçada.

Se ele desejar outra, pode tê-la ou ela pode recusá-lo, isso é entre eles. Isso é um problema dela e da consciência dela - respondera a minha mãe firmemente. - O que não deve mudar és tu. Seja que for que ele disser, seja o que for que ela quiser: continuas a ser sua mulher e sua rainha.

Catarina recordou estes conselhos e encarou o jovem marido.

- Fico sempre contente por conhecer uma amiga vossa, meu senhor - disse num tom uniforme, esperando que a voz não lhe tremesse. - Mas. como sabeis, tenho um séquito muito reduzido. O vosso pai foi bastante explícito em dizer que não poderia ter mais damas de companhia do que aquelas de que disponho actualmente. Como é do vosso conhecimento, ele não me paga nenhum mesada. Não tenho dinheiro para pagar a mais uma dama pelos seus serviços. Resumindo, não posso ter mais nenhuma dama. mesmo que seja uma amiga especial vossa, na minha corte.

Artur vacilou ao lembrar-se da discussão feroz com o pai por causa da comitiva dela.

- Oh, não, não estais a perceber. Não é uma amiga que quer um lugar. Ela não quer ser vossa dama de companhia - disse ele apressadamente. - Trata-se de Lady Margaret Fole, que está à espe­ra para vos conhecer. Finalmente regressou a casa.

Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós. Isto é pior do que se se tratasse de uma amante. Sabia que teria de encarada um dia. Esta é a sua casa, mas estava fora quando cheguei e pensei que me menosprezara, afastando-se deliberadamente e mantendo-se longe. Pensei que estava a evitar-me por ódio, como eu a evitaria por ver­gonha. Lady Margaret Pole é irmã daquele pobre rapaz, o Duque de Warwick, decapitado para tornar a sucessão segura para mim, e para a minha linhagem. Temo o momento em que terei de a conhecer. Tenho rezado aos santos para que permaneça longe, odiando -me, culpando-me, mas mantendo a sua distância.

Artur viu a sua fugaz expressão de rejeição, mas não encontrara uma forma de a preparar para isto.

- Por favor - disse apressadamente. - Tem estado longe a tomar conta dos filhos ou teria cá vindo com o marido, dar-vos boas-vindas ao castelo, assim que chegamos. Disse-vos que ela iria voltar. Quer cumprimentar-vos agora. Todos temos de viver aqui em conjunto. Sir Richard é um amigo de confiança do meu pai, lorde do meu conselho e o guardião deste castelo. Teremos de meu conselho e o guardião deste castelo. Teremos de viver todos juntos.

Catarina estendeu-lhe uma mão a tremer e ele aproximou-se logo. ignorando a atenção fascinada das damas de companhia.

Não posso encontrar-me com ela - sussurrou ela. - Since­ramente, não sou capaz. Sei que o irmão dela foi executado por minha causa. Eu sei que os meus pais insistiram nisso, antes de me enviarem para Inglaterra. Sei que ele estava inocente, como uma flor, e que foi detido na Torre pelo teu pai, para que os homens não se juntassem em seu redor e reivindicassem o trono em seu nome. Podia ter vivido aqui em segurança toda a vida, se os meus pais não tivessem exigido a sua execução. Ela deve odiar-me.

Não te odeia - respondeu ele com sinceridade. - Acredita em mim, Catarina, não te exporia à crueldade de ninguém. Ela não te odeia, não me odeia, nem sequer odeia o meu pai, que ordenou a execução. Sabe que estas coisas acontecem. É uma princesa, sabe tão bem como tu que não são as escolhas, mas a política, quem nos governa. Não foi uma escolha tua, nem minha. Ela sabe que o teu pai e a tua mãe tinham de se assegurar de que não havia príncipes rivais a reivindicar o trono, que o meu pai desimpediria o meu cami­nho, custasse o que custasse. Está resignada.

- Resignada? - suspirou ela incrédula. - Como pode uma mulher resignar-se com o assassínio do irmão, do herdeiro da famí­lia? Como pode receber-me com amizade, quando ele morreu para minha conveniência? Quando perdemos o meu irmão, o nosso mundo acabou, as nossas esperanças morreram com ele. O nosso futuro foi enterrado com ele. A minha mãe, que é uma santa viva, ainda não consegue suportá-lo. Nunca mais voltou a ser feliz desde ° dia da morte dele. É insuportável para ela. Se ele tivesse sido exe­cutado por algum estranho, juro que ela teria cobrado uma vida em troca. Como pode Lady Margaret perder o irmão e suportar isso? Como consegue suportar-me?

- Esta resignada - disse ele simplesmente. - É uma mulher bas­tante espiritual e. se procurava uma recompensa, encontrou-a no acto de estar casada com Sir Richard Pole, um homem em que o meu pai confia plenamente, e vive aqui na maior das considerações. e minha amiga e espero que também seja tua.

Pegou-lhe na mão e sentiu-a a tremer, -Vamos, Catarina, isto nem parece teu. Sê corajosa, meu amor.

Ela não te vai culpar.

- Ela deve culpar-me respondeu ela num murmúrio angustiado - os meus pais insistiram em que não deveria haver dúvidas quanto à tua herança. Eu sei que o fizeram. O teu próprio pai prQ_ meteu que nào haveria príncipes rivais. Sabiam o que ele pretendia fazer. Nào lhe disseram para preservar a vida de um homem inçv cente. Permitiram que o fizesse. Queriam que o fizesse. C) sangue de Eduardo de Plantageneta está na minha cabeça. O nosso casa­mento está amaldiçoado pela morte dele.

Artur recuou, nunca a vira tào perturbada.

- Meu Deus, Catarina, nào podes dizer que estamos amaldi­çoados.

Ela acenou com a cabeça tristemente.

Nunca falaste disso.

Nào suportava dizê-lo.

Mas pensaste nisso?

Desde o dia em que me disseram que ele fora executado minha causa.

Meu amor, nào podes estar realmente convencida de que estamos amaldiçoados?

- Neste caso.

Ele tentou rir-se da intensidade das suas palavras.

- Não. Tens de pensar que fomos abençoados. - Puxou-a par si e disse muito baixinho, para que mais ninguém pudesse ouvir Todas as manhas, quando acordas nos meus braços, sentes-te amal­diçoada?

Nào - respondeu, contrariada. - Não, não sinto.

Todas as noites, quando vou ter contigo ao quarto, sentes a

sombra do pecado sobre ti?

- Não - admitiu.

- Não fomos amaldiçoados - respondeu ele firmemente. Fomos abençoados com o favor de Deus. Catarina, meu amor. cor fia em mim. Ela perdoou o meu pai, seguramente nunca te culpar Juro-te, é uma mulher com um coração do tamanho de uma cate dial. Quer conhecer-te. Vem comigo e deixa-me apresentar-ta.

- Então, sozinha - disse ela, ainda temendo uma cena terrível.

- Sozinha. Neste momento, está nos aposentos do guardião castelo. Se vieres já, podemos deixá-las todas aqui e ir, sozinhos tranquilamente falar com ela.

Ela levantou-se da cadeira e pôs a mão no cotovelo dele.

- Vou sozinho com a princesa - comunicou Artur às damas companhia dela. - Podeis ficar todas aqui.

Elas ficaram surpreendidas por serem excluídas, e algur delas abertamente desapontadas. Catarina passou por elas levantar o olhar.

Depois de transpor a porta, ele seguiu à sua frente pelas escadas estreitas em espiral, com uma das mãos pousada no corrimão central de pedra, outra na parede. Catarina seguiu-o. demorando-se cada janela em forma de seteira, olhando lá para baixo, para o vale onde o Teme ultrapassara as margens e parecia um lago prateado sobre os prados alagados. Estava frio. mesmo para Março, nos Borders. e Catarina sentiu um arrepio, como se um estranho estivesse a caminhar sobre a sua campa.

Meu amor - disse ele, olhando de baixo para cima, nas escadas estreitas, para onde ela se encontrava. - Coragem. A tua mãe seria corajosa.

Foi ela que ordenou isto - respondeu ela de mau humor. -Pensou que era para meu bem. Mas um homem morreu por causa da ambição dela. e agora eu tenho de encarar a irmã.

- Ela fê-lo por ti - relembrou-lhe ele. - E ninguém te culpa. Chegaram ao andar por baixo dos aposentos da princesa e, sem hesitação, Artur bateu à porta de madeira maciça dos apartamentos do guardião e entrou.

A sala quadrada, que dava para o vale, era semelhante à sala de estar de Catarina no andar de cima. revestida a madeira e deco­rada com tapeçarias de cores vivas. Estava lá uma senhora à espera deles, sentada perto da lareira, e, quando a porta se abriu, levan­tou-se. Trazia um vestido cinzento-claro e um toucado cinzento na cabeça. Tinha aproximadamente trinta anos; olhou para Catarina com um interesse amigável e depois fez uma grande e respeitosa reverência.

Desobedecendo ao aperto de dedos da noiva, Artur retirou o braço e recuou até à porta. Catarina olhou para trás, para ele, com ar reprovador e, em seguida, dirigiu uma pequena reverência à mulher mais velha. Levantaram-se ao mesmo tempo.

Muito prazer em conhecer-vos - disse Lady Fole, com ar doce. - E peço desculpa por não ter cá estado, para vos receber. Mas um dos meus filhos estava doente e eu fui certificar-me de que estava a ser bem tratado.

O vosso marido tem sido muito simpático - conseguiu dizer Catarina.

Espero que sim, deixei-lhe uma longa lista de indicações; queria tanto que os vossos aposentos estivessem quentes e confor­meis- Tereis de dizer-me se houver alguma coisa que desejardes.

Não conheço a Espanha, por isso não sei o que vos agradaria.

- Não! Esta tudo... absolutamente.

A mulher mais velha olhou para a princesa.

Então, espero que sejais muito feliz aqui connosco.

Espero que... - Catarina respirou fundo. - Mas eu... Eu...

Sim?

Fiquei muito triste por saber da morte do vosso irmão Catarina foi directa. O seu rosto, que estivera branco de desconforto. passara agora a escarlate. Fodia sentir as orelhas a arder e, para seu horror, ouvia a voz a tremer. - De verdade, fiquei com muita pena. Muita...

Foi uma grande perda para mim, e para os meus - respon­deu a mulher com firmeza. - Mas o mundo é assim.

Temo que a minha vinda...

Nunca pensei que fosse uma escolha vossa ou que fosse por vossa culpa, Princesa. Quando o nosso querido príncipe Artur foi prometido em casamento, o pai tinha de se certificar cie que a heran­ça dele estava segura. Eu sei que o meu irmão nunca teria ameaça­do a paz dos Tudor, mas eles não poderiam sabê-lo. E ele foi mal aconselhado por um jovem perverso, arrastado para uma conspira­ção disparatada... - Começou a chorar e a sua voz tremia; mas recompôs-se rapidamente. - Perdoai-me. Ainda é difícil para mim. O meu irmão estava inocente. A sua conspiração ridícula era a prova da sua inocência, não da sua culpa. Não tenho qualquer dúvida que agora se encontra junto de Deus. com todos os inocentes.

Sorriu para a princesa.

- Neste mundo, nós. mulheres chegamos à conclusão, com quência, de que não temos qualquer poder sobre os actos d homens. Tenho a certeza de que não desejaríeis nenhum mal ao meu irmão e. na verdade, tenho a certeza cie que ele não vos teria enfrentado a vós, nem ao nosso querido príncipe, aqui. Porém, as coisas são mesmo assim e por vezes são tomadas medidas cruéis. O meti pai fez algumas más escolhas na vida, e Deus sabe que pagou por todas elas. O filho, apesar de inocente, seguiu os passos do pai. Se saísse a outra face da moeda, tudo poderia ter sido diferente Creio que uma mulher tem de aprender a viver com as probabili des. mesmo que estas lhe sejam desfavoráveis.

Catarina ouviu-a atentamente.

- Sei que a minha mãe e o meu pai queriam ter a certeza que a linhagem dos Tudor não era contestada - suspirou. - Sei q o disseram ao rei.

Sentia que tinha de garantir que aquela mulher conheces, profundidade da sua culpa.

- Como eu poderia ter feito, se estivesse no lugar deles – disse a Lady Margaret simplesmente. - Princesa, não vos culpo, n a vossa mãe, nem ao vosso pai. Não culpo o nosso grande rei. Se eu fosse qualquer um deles, poderia ter tido exactamente a mesma atitude, e só daria explicações a Deus. Tudo o que tenho a fazer, urna vez que não sou uma dessas pessoas importantes, mas apenas urna humilde esposa de um grande homem, é preocupar-me com o meu comportamento e com a forma como me explicarei perante Deus.

- Sinto que vim para este país com a morte dele na minha consciência - admitiu Catarina num repente.

A mulher mais velha abanou a cabeça.

-A morte dele não deve estar na vossa consciência - respon­deu firmemente. - E é errado que vos culpeis pelos actos de outros. Na verdade, penso que o vosso confessor vos diria: é uma forma de orgulho. Esse deve ser o único pecado que deveis confessar, não tendes de assumir a culpa pelos pecados de outros.

Catarina levantou o olhar pela primeira vez, para deparar com o olhar fixo de Lady Pole. e viu-a sorrir. Recatadamente, retribuiu--lhe o sorriso, e a mulher mais velha estendeu a mão, como um homem ofereceria um aperto de mão num negócio.

- Sabeis - disse ela brincando -, eu própria também fui uma Princesa Real. Fui a última princesa Plantageneta, educada pelo rei Ricardo, na creche, com o seu filho. De todas as mulheres do mundo, eu deveria saber que há muitas coisas na vida que uma mulher não pode controlar. Existe a vontade do nosso marido, dos nossos pais, do nosso rei e do nosso Deus. Ninguém pode culpar uma princesa pelos actos de um rei. Como pode alguém pôr isso em causa? Ou fazer alguma diferença? A nossa atitude deve ser a de obediência.

Catarina envolvida no caloroso e firme aperto de mão. sentiu--se maravilhosamente reconfortada.

- Receio nem sempre ser muito obediente - confessou. A mulher mais velha riu-se.

- Oh, sim, seríamos tontas se não pensássemos por nós -admitiu. - A verdadeira obediência só pode acontecer quando estamos convencidas de que temos razão, e escolhemos baixar a cabeça. Tudo o que seja menos que isso não passa de acordo, e qualquer tontinha-de-companhia pode estar de acordo. Não pensais?

E Catarina, gracejando, pela primeira vez, com uma mulher inglesa, riu-se alto e afirmou: - Nunca quis ser uma tontinha-de-companhia.

- Nem eu - disse Margaret Pole. que fora uma Plantageneta,

Princesa Real e era agora uma simples esposa, escondida na solidez das fronteiras Tudor.

- Sempre soube que era eu própria, no meu coração, seja qual for o título que me for atribuído.

Estou tão surpreendida por descobrir que a mulher cuja presença temi está afazer o castelo de Ludlow parecer-se mais com uma casa. Lady Margaret Pole é uma companhia e uma amiga para me consolar pela perda da minha mãe e irmãs. Percebo agora que sem­pre vivi num mundo dominado por mulheres: a rainha minha mãe, as minhas irmãs, as nossas damas de companhia, e todas as criadas do serralho. No Alhambra vivíamos quase à parte dos homens, em divisões concebidas para o prazer e o conforto das mulheres. Vivíamos praticamente em reclusão, na privacidade das salas fres­cas, e corríamos pelos pátios, reclinando-nos nas varandas, seguras na convicção de que metade do palácio era exclusivamente proprie­dade nossa.

Comparecíamos na corte, com o meu pai, não estávamos escon­didas; mas o desejo natural das mulheres por privacidade era res­peitado e enfatizado pela planta do Alhambra, onde as salas mais belas e os melhores jardins nos estavam reservados.

É estranho chegar a Inglaterra e encontrar um mundo domi­nado por homens. É evidente que tenho os meus próprios aposentos e as minhas damas de companhia, mas qualquer homem pode apare­cer e pedir para ser recebido, em qualquer momento. Sir Richard Pole ou qualquer um outro dos membros do séquito de Artur pode entrar nos meus aposentos sem avisar e pensar que me estão a fazer um cumprimento. Os Ingleses parecem considerar normal que os homens e as mulheres devam misturar-se. Ainda não vi nenhuma casa com salas exclusivas para as mulheres, e nenhuma mulher usa véu, como por vezes fazíamos na Espanha, nem sequer quando via­jam, nem sequer no meio de estranhos.

Até a Família Real está aberta a toda a gente. Homens, mesmo estranhos, podem passear pelos palácios reais, desde que sejam sufi­cientemente inteligentes para que os guardas os deixem entrar. Podem esperar na antecâmara da rainha e vê-la sempre que ela passar, olhando para ela como se fizessem parte da família. O grande salão, a capela, os aposentos públicos da rainha estão aber­tos a qualquer um que tenha um bom chapéu e uma capa e se faça passar por nobre. Os Ingleses tratam as mulheres como se fossem rapazes ou criados, podem ir a qualquer lado, podem ser observa­das por qualquer pessoa. Durante algum tempo pensei que isto era uma grande liberdade, e durante algum tempo congratulei-me por isso- depois, percebi que as mulheres inglesas podem mostrar os seus rostos, mas não são ousadas como os homens, não são livres como os rapazes; continuam a ter de permanecer em silêncio e obedecer.

Agora que Lady Margaret Pole voltou aos aposentos do guar­dião, parece que este castelo voltou a ser governado por mulheres. As noites no salão são menos pesadas, até a comida ao jantar é dife­rente. Os trovadores cantam canções sobre amor e menos sobre batalhas, fala-se mais francês e menos galês.

Os meus aposentos são no andar de cima, e os dela no andar de baixo, e passamos o dia a subir e a descer as escadas, para estar­mos juntas. Quando Artur e Sir Richard saem para caçar, a guar­diã do castelo continua a estar em casa e esta já não parece vazia. De alguma forma, ela transforma-o num castelo feminino, só pela sua presença. Quando Artur está fora, a vida do castelo não é silen­ciosa, ã espera que regresse. É um lugar caloroso, feliz e movimen­tado nas suas rotinas diárias.

Sentia falta de ter uma mulher mais velha como amiga. Maria de Salinas é uma rapariga tão nova e tonta quanto eu, é uma companhia, não uma mentora. Dona Elvira foi nomeada pela minha mãe, a rai­nha, para a substituir; mas não é uma mulher com quem possa esta­belecer uma relação muito afectiva, apesar de ter tentado gostar dela. E rígida comigo, tem ciúmes da influência que Maria de Salinas tem sobre mim, ambiciosa por gerir toda a corte. Ela e o marido, que diri­ge o meu séquito, querem dominar a minha vida. Desde aquela primeira noite em Dogmersfield, quando contradisse o próprio rei, tenho dúvidas em relação ao seu bom-senso. Ainda agora, está sempre a avisar-me para ter cuidado, para não me tornar demasiado próxima de Artur, como se fosse errado amar um marido, como se eu conseguisse resistir-lhe! Ela pretende criar uma pequena Espanha na Inglaterra. quer que continue a ser a Infanta. Mas eu estou certa de que o caminho que tenho pela frente na Inglaterra é tornar-me inglesa.

Dona Elvira não quer aprender inglês. Finge não perceber francês, quando é falado com pronúncia inglesa. Trata os Galeses com grande desprezo, como se fossem bárbaros no limiar da civilização, o que não é agradável para mim, quando estamos a visitar os habitantes de Ludlow. Para ser honesta, por vezes, tem um com­ parlamento mais altivo do que qualquer outra mulher que conheço, é mais orgulhosa do que a minha própria mãe. É seguramente mais altiva do que eu. Tenho de admirá-la, mas não consigo amá-la verdadeiramente.

Mas Margaret Pole foi educada como sobrinha de um rei e é tão fluente em latim como eu. Falamos francês com facilidade, está a ensinar-me inglês, e quando encontramos uma palavra que não conhecemos, numa das línguas que partilhamos, fazemos mímicas que nos fazem rir ás gargalhadas. Fi-la chorar a rir quando tentei mostrar-lhe o que significava indigestão, e os guardas vieram a correr, pensando que estávamos a ser atacadas, quando ela recorreu todas as aias da corte e às suas criadas, para me demonstrar o protocolo correcto para uma caçada inglesa no campo.

Com Margaret, Catarina pensou que podia colocar a questão do seu futuro, e do seu sogro, em relação a quem se sentia muito ansiosa.

Ele ficou zangado antes de virmos embora - disse. - Foi questão do dote.

Ai sim? - respondeu Margaret. As duas mulheres estavam sentadas junto de uma janela, à espera que os homens voltassem da caça. Estava muito frio e húmido lá fora. nenhuma das duas quisera sair Margaret achou melhor não dizer nada acerca do incómodo tema do dote de Catarina; já soubera pelo marido que o rei da Espanha era perfeito na arte das negociações dúbias. Acordara um dote substan­cial pela Infanta, mas depois, enviou-a para a Inglaterra apenas co metade da quantia. O resto, sugeriu, poderia ser completado com a baixela e o tesouro que trouxera, como bens para a casa. Escandalizado. o rei Henrique reclamara a quantia total. Graciosamente Fernando da Espanha respondeu que o séquito da princesa tora abas tecido com tudo do melhor, Henrique poderia escolher.

Era uma péssima maneira de começar um casamento que. de qualquer modo, estava baseado em ganância e ambição, e num receio partilhado da França. Catarina foi apanhada entre a determinação de dois homens frios. Margaret adivinhou que uma das razões pelas quais Catarina fora enviada para o Castelo de Ludlow com o marido era obrigá-la a usar os seus bens para diminuir o respectivo valor Se o rei Henrique a tivesse mantido em Windsor, Greenwich

ou Westminster, teria comido nos seus pratos e o pai teria argumentado que a baixela espanhola estava nova e teria de ser aceite como dote. Mas, agora, comiam todas as noites nos pratos em ouro de Catarina e cada risco de uma faca usada com menos cuidado reduzia ligeiramente o seu valor. Quando chegasse a altura de pagar a segunda parte do dote, o rei da Espanha descobriria que teria de fazê-lo em dinheiro. O rei Fernando poderia ser um homem duro e um negociante astuto, mas encontrara um semelhante em Henrique Tudor.

- Ele disse que eu deveria ser como uma filha para ele - relatou Catarina cuidadosamente. - Mas não posso obedecer-lhe como uma filha, se tenho de obedecer ao meu pai. O meu pai disse-me para não usar a minha baixela e para a entregar ao rei. Mas ele não a aceita. E uma vez que o dote está por pagar, o rei mandou-me para aqui sem provisões, nem sequer me paga a mesada.

- O embaixador espanhol não vos aconselha? Catarina fez uma careta.

- Ele é um aliado do rei - respondeu ela. - Não me ajuda nada. Não gosto dele. É judeu, mas convertido. Um homem que se adap­ta facilmente. É espanhol, mas vive cá há muitos anos. Tornou-se um homem que serve os Tudor, não Aragão. Tenho de contar ao meu pai que é muito mal representado pelo Dr. de Puebla, mas entretanto, não recebo bons conselhos, e no meu séquito, a Dona Elvira e o meu tesoureiro estão sempre a discutir. Ela diz que os meus bens e o meu tesouro têm de ser entregues a joalheiros para obtermos dinheiro, ele diz que não permitirá que saiam da sua vista até serem pagos ao rei.

- E não perguntastes ao príncipe o que deveis fazer? Catarina hesitou.

É um assunto entre o meu pai e o dele - disse com precaução. - Não quero que isso nos perturbe. Ele pagou todas as minhas despesas de viagem até aqui. Vai ter de pagar os salários das minhas aias até ao solstício do Verão e, em breve, vou precisar de vestidos novos. Não quero pedir-lhe dinheiro. Não quero que pense que sou gananciosa.

Vós amai-lo, não amais? - perguntou Margaret, sorrindo, e observou o rosto da jovem animar-se.

- Oh, sim - a rapariga respirou fundo. - Amo-o muito. A mulher mais velha sorriu.

- Sois abençoada - disse gentilmente. - Ser uma princesa e encontrar o amor com o marido com quem vos obrigaram a casar.

Sois abençoada, Catarina.

- Eu sei. Penso realmente que é um sinal do favor especial de Deus para comigo.

A mulher mais velha fez uma pausa diante da grandiosidade da afirmação, mas não a corrigiu. A confiança da juventude desvanecer-se-ia em breve, sem necessidade de quaisquer avisos.

E tendes alguns indícios? Catarina pareceu baralhada.

De uma criança vir a caminho? Sabeis o que procurar? A jovem corou.

Sei. A minha mãe disse-me. Ainda não há indícios.

Ainda é cedo - disse Lady Margaret, com ar confortador. - Mas se houvesse uma criança a caminho, julgo que não haveria problemas em relação ao dote. Creio que nada seria dema­siado bom para vós, se estivésseis à espera do próximo príncipe Tudor.

Deveria receber a minha mesada, quer estivesse à espera de um filho, quer não - observou Catarina. - Sou a Princesa de Gales, devia receber uma mesada para me sustentar.

Sim - respondeu Margaret secamente. - Mas quem vai con­vencer o rei disso?

- Conta-me uma história.

Estavam mergulhados na luz dourada da vela e da lareira. Era meia-noite e o castelo estava silencioso, o único som que se ouvia era o das suas vozes falando baixinho, todas as luzes estavam apa­gadas, à excepção da lareira dos aposentos de Catarina, onde os dois jovens amantes resistiam ao sono.

Que história queres que te conte?

Conta-me uma história sobre os Mouros.

Ela reflectiu por uns instantes, colocando um xaile sobre os ombros nus para se proteger do frio. Artur estava esticado na cama. mas quando ela se mexeu, puxou-a para si, de modo a que a cabe­ça dela repousasse no seu peito despido. Passou-lhe a mão pelo cabelo forte e vermelho e apanhou-o com a mão.

Vou contar-te uma história sobre uma das sultanas - disse ela. - Não é uma história. É verdade. Ela estava no harém; sabes que as mulheres vivem à parte dos homens nos seus próprios aposentos?

Ele acenou com a cabeça, observando a luz da vela tremeluzente que incidia no pescoço dela, na concavidade da clavícula. - Ela olhava pela janela, e maré do rio debaixo da sua jane­la estava baixa. As crianças pobres da cidade brincavam na água. Estavam na rampa dos barcos e tinham espalhado lama por todo o lado e escorregavam e deslizavam na lama. Ria-se enquanto os observava e dizia para as suas aias que gostava de poder brincar daquela forma.

- Mas ela não podia sair?

- Não, ela nunca podia sair As suas aias disseram aos eunucos que guardavam o harém, os eunucos disseram ao grão-vizir e ele disse no sultão, e quando ela se afastou da janela e se dirigiu à sala de estar, adivinha o que aconteceu? Ele abanou a cabeça, sorrindo.

- O que foi?

- A sua sala de estar era um grande salão de mármore. O chão era de mármore com veios rosados. O sultão ordenara que trouxes­sem grandes jarros de óleos perfumados e que os espalhassem no chão. Foi ordenado a todos os perfumistas da cidade que trouxes­sem óleo de rosas para o palácio. Trouxeram pétalas de rosa e ervas de cheiro doce e fizeram uma massa espessa de óleo, de pétalas de rosas e de ervas e espalharam numa camada com alguns centímetros de espessura, por todo o chão da sua sala de estar. A sultana e as suas aias despiram as camisas e escorregaram e brincaram na lama. atiraram água de rosas e pétalas e brincaram a tarde inteira como os miúdos na lama.

Ele estava abismado.

- Fantástico.

Ela sorriu para ele.

- Agora é a tua vez. Conta-me tu uma história.

-Não tenho histórias dessas - São todas sobre combates e vitórias.

Essas são as que gostas mais que eu conte - lembrou-lhe.

Pois são. E agora o teu pai vai voltar a entrar em guerra.

Vai?

Não sabias?

Catarina abanou a cabeça.

- O embaixador espanhol, por vezes, envia-me uma carta com noticias, mas não me disse nada.É uma cruzada?

- És um soldado de Cristo sedento de sangue. Pensar-se-ia que infiéis tremem nas sandálias. Não, não é uma cruzada. É uma causa bastante menos heróica. O teu pai, surpreendentemente para nós, fez uma aliança com o rei Luís da Franca. Aparentemente, planeiam invadir a Itália juntos e partilhar o espólio.

O rei Luís? - perguntou ela. surpreendida - Nunca! Pensei que seriam inimigos até à morte.

Bem. parece que o rei francês não se preocupa com quem se alia. Primeiro os Turcos e agora o teu pai.

Bem. mais vale o rei Luís fazer alianças com o meu pai do que com os Turcos - disse ela firmemente. - Qualquer coisa é melhor do que eles serem convidados a entrar.

Mas porque é que o teu pai se uniria ao nosso inimigo?

Pie sempre quis Nápoles - confessou-lhe ela. - Nápoles e Navarra. De uma forma ou de outra, ele tê-las-á. () rei Luís pode pensar que tem um aliado, mas existe um preço elevado a pagar. Eu conheço-o. Ele joga um jogo demorado, mas normalmente obtém o que quer. Quem te contou isso?

O meu pai. Penso que ele está irritado por não fazer parte do conselho deles. Os únicos que receia mais do que os Escoceses são os Franceses. F uma desilusão para nós que o teu pai se alie com eles, seja para o que for.

Pelo contrário, o teu pai devia ficar satisfeito por o meu pai manter a França ocupada no Sul. O meu pai está a fazer-lhe um favor.

Ele riu-se para ela.

- Tu és uma grande ajuda.

- O teu pai não vai juntar-se a eles? Artur abanou a cabeça.

Talvez, mas o seu maior desejo é manter a Inglaterra em paz. A guerra é algo terrível para um país. És filha de um soldado e devias sabê-lo. O meu pai diz que ver um país em guerra é ter­rível.

O teu pai só travou uma grande batalha - disse ela. - Às vezes é preciso lutar. Às vezes é preciso derrotar o inimigo.

Eu não lutaria para ganhar terras - disse ele. - Mas lutaria para defender as nossas fronteiras. E julgo que teremos de lutar con­tra os Escoceses, a não ser que a minha irmã consiga modificar a natureza deles.

- E o teu pai está preparado para a guerra?

-Ele tem a família Howard para lhe proteger o Norte - res­pondeu ele. - E tem a confiança de todos os senhores das terras do Norte. Reforçou os castelos e mantém a grande estrada do Norte aberta, para conseguir levar para lá os soldados, se necessá­rio.

Catarina parecia pensativa. Se ele tem de combater, seria melhor invadi-los - disse ela. -modo, pode escolher a data e o local para combater e não ser obrigado a defender-se.

_ Essa é a melhor forma? Ela acenou com a cabeça.

_ O meu pai diria que sim. Ter o exército a avançar confiante­mente é tudo. Tens a riqueza do país à tua frente, para teu abastecimento; tens o movimento de progresso: os soldados gostam de sentir que estão a fazer progressos. Não há nada pior do que ser for­çado a voltar e a lutar.

És uma estratega - disse ele. - Deus tivesse permitido que eu tivesse tido a tua infância e que soubesse as coisas que tu sabes.

Mas tu tens - afirmou ela com doçura. - Porque tudo que eu sei e teu. e tudo o que sou também. E se tu e o teu país alguma vez precisarem de mim, para lutar por vocês, eu estarei lá.

Está a ficar cada vez mais frio e a longa semana de chuva transformou-se em aguaceiros de granizo e, agora, de neve. Mesmo assim, não está um tempo claro e frio de Inverno, mas um nevoeiro baixo e húmido, com nuvens que passam rapidamente e ventos que trazem lama que se agarra às árvores e torreões e se aloja no rio como algodão-doce.

Quando Artur vem ao meu quarto, desliza ao longo das ameias como um patinador e esta manhã, quando voltava para o quarto dele. estávamos certos de que iríamos ser descobertos, porque ele escorregou no gelo recente, caiu e praguejou tão alto, que a sentinela da torre a seguir pôs a cabeça de fora e gritou: "Quem está aí?" e eu tive de responder que era só eu. que estava a dar de comer aos pássaros de Inverno. Então, Artur assobiou-me. e disse que era o canto de um pintarroxo; ambos nos rimos tanto que mal nos aguentávamos de pé. Tenho a certeza de que a sentinela sabia, mas fazia tanto frio que nem veio cá fora.

Hoje. Artur saiu a cavalo com o seu conselho, que pretende procurar uma localização para um novo moinho de milho, enquanto o está cheio e parcialmente bloqueado pela neve e pelo gelo, e eu e Lady Margaret ficamos em casa a jogar às cartas.

Está frio e cinzento, está sempre tudo molhado, ate as parede

do castelo choram com a humidade gelada, mas eu estou feliz. Amo -o, viveria com ele em qualquer lado, e a Primavera rira. e depois Verão. Sei que. então, também seremos felizes.

A batida na porta surgiu a horas tardias da noite. Ela abriu-a

- Ah, amor, meu amor! Onde estiveste? Ele entrou no quarto e beijou-a. Ela sentiu o odor a vinho

hálito dele.

- Eles nunca mais iam embora - disse ele. - Pelo menos há três horas que estou a tentar escapar-me, para vir ter contigo.

Pegou-lhe ao colo e levou-a para a cama.

Mas Artur, não queres...?

Quero-te a ti. Conta-me uma história.

Não estás com sono?

Não. Quero que me cantes a canção sobre os Mouros, quando perderam a batalha de Málaga.

Catarina riu-se.

Foi a batalha de Alhama. Vou cantar-te alguns versos; nunca mais acaba.

Canta-mos todos.

Levaria a noite inteira - protestou ela.

Temos a noite inteira, graças a Deus - respondeu ele. cc alegria na voz. - Temos a noite inteira e todas as noites, para o resto das nossas vidas, graças a Deus.

É uma canção proibida - disse ela. - Foi proibida pela minha própria mãe.

Então, como a aprendeste? - perguntou Artur, subitamente divertido.

Foram os criados - respondeu despreocupadamente. - Tinha uma aia mourisca e esquecia-se de quem eu era. e de quem era, e cantava para mim.

O que é um mourisco? E porque é que a canção foi proibi­da? - perguntou com curiosidade.

Um mourisco quer dizer um pequeno mouro, em espanhol -explicou ela. - É o que chamamos aos mouros que vivem na Espanha. Não são mesmo mouros como os da África. Por isso chamamos-lhes mouriscos ou moros. Quando eu vim embora, estavam

começar a autodenominar-se mudajjan - aqueles a quem era permitido ficar.

- Aqueles a quem era permitido ficar? - perguntou ele. - Na sua própria terra?

A terra não é deles - disse imediatamente. - É nossa.É terra espanhola.

_ Foi deles durante setecentos anos - assinalou ele. - Quando vocês, Espanhóis, não faziam mais do que criar cabras nas montanhas, eles construíam estradas, castelos e universidades. Foste tu mesma quem mo disse.

- Bem. mas agora é nossa - disse ela secamente. Ele bateu as palmas, como um sultão.

- Canta a canção, Xerazade. E canta-a em francês, mulher bár­bara, para que eu possa perceber.

Catarina uniu as mãos, imitando uma mulher que se preparava para rezar e fez-lhe uma pronunciada vénia.

- Assim é que deve ser - elogiou Artur, divertido. - Aprendeste isso no harém?

Ela sorriu, levantou a cabeça e cantou:

 

“Um idoso grita para o rei: Porque este chamamento repentino?

- Ai de mim! Alhama!

Aí de num. meus amigos, os cristão conquistaram Alhama

- Ai de mim! Alhama!

Um imã de barba branca responde: Isto é o que haveis merecido, oh Rei!- Ai de mim! Alhama!

Numa hora amaldiçoada Vós haveis matado os Abencerragens. flor de Granada - Ai de mim! Alhama!

Nem Granada, nem o reino, nem a vossa vida durara muito

-Ai de mim! Alhama!"

 

Ela ficou em silêncio.

- E era verdade - disse. - O pobre Boabdil saiu do Palácio de Alhambra, do forte vermelho, que disseram que nunca cairia, com as chaves sobre uma almofada de seda, fez uma vénia e entregou-as a minha mãe e ao meu pai, e partiu a cavalo. Dizem que, quan­do passou na montanha, olhou para trás, para o seu reino, o seu belo reino, e chorou, e a mãe disse-lhe que chorasse, como uma mulher, por aquilo que não podia manter como um homem.

Artur soltou uma gargalhada infantil.

- Ela disse o quê?

Catarina olhou para cima, com uma expressão grave.

- Foi muito trágico.

- É mesmo o tipo de observações que a minha avó faria - disse ele deliciado. - Graças a Deus que o meu pai conquistou a coroa A minha avó seria tão doce quanto a mãe de Boabdil, perante a der­rota. Deus me valha: "chora como uma mulher, por aquilo que na podes manter como homem". Que coisa para se dizer a um homem que é obrigado a partir, após uma derrota.

Catarina também se riu.

Nunca vi as coisas desse modo - respondeu. - Não é muito consolador.

Imagina que partes para o exílio com a tua mãe. e ela está muito zangada contigo.

Imagina o que é perder o Alhambra, nunca mais poder lá voltar.

Ele puxou-a para junto de si e beijou-lhe o rosto.

- Sem remorsos! - pediu ele. Ela sorriu de imediato.

- Então, distrai-me - ordenou ela. - Conta-me acerca da tua mãe e do teu pai.

Ele ficou pensativo.

O meu pai nasceu como herdeiro dos Tudor, mas havia dúzias, na linha para o trono, antes dele - relatou. - O pai queria que ele se chamasse Owen, Owen Tudor. um bom nome galês, mas morreu antes de ele nascer, na guerra. A minha avó era apenas uma criança de doze anos quando ele nasceu, mas levou a sua avante, e chamou- | -lhe Henrique - um nome real. Podes imaginar qual era a ideia dela. já nessa altura, apesar de ser pouco mais que uma criança, e do marido ter morrido. Os destinos do meu pai subiam e desciam, a cada batalha da guerra civil. Uma vez era o filho da família reinante, na outra estavam em fuga. O tio. Jasper Tudor - lembras-te dele - man­teve a fé no meu pai e na causa dos Tudor, mas houve uma batalha final e a nossa causa foi perdida, e o nosso rei executado. Eduardo chegou ao trono e o meu pai era o último da linhagem. Estava em tão grande perigo que o tio Jasper saiu do castelo onde haviam sido deti­dos e fugiu com ele para fora do país. para a Britânia.

Para um lugar seguro?

Mais ou menos. Uma vez disse-me que acordava todas as manhãs à espera de ser entregue a Eduardo. E uma vez, o rei Eduardo disse que ele deveria voltar para casa, que seria recebido como um rei e que lhe arranjariam um casamento. O meu pai fin­giu ter adoecido durante a viagem e fugiu. Teria voltado a casa para

Catarina pestanejou.

- Então, na sua época, ele também foi um pretendente ao

trono.

Ele sorriu para ela.

- Como eu disse. É por isso que os teme tanto. Ele sabe muito bem o que um pretendente pode fazer, se a sorte estiver do seu lado. Se o tivessem apanhado, tê-lo-iam trazido para casa para ser executado na Torre. Tal como ele fez a Warwick. O meu pai teria sido assassinado, assim que Eduardo o apanhasse. Mas fingiu estar doente e escapou, pela fronteira com a França.

- E eles não o entregaram? Artur riu-se.

- Apoiaram-no. Ele era o maior desafio para a paz da Inglaterra, é evidente que eles o incentivaram. Convinha aos Franceses apoiarem-no: enquanto ele não era rei, mas apenas um pretendente ao trono.

Ela acenou com a cabeça, era filha de um príncipe elogiado pelo próprio Maquiavel. Qualquer filha de Fernando nascera conhe­cendo a arte de enganar.

- E depois?

- Eduardo morreu jovem, no auge da vida, apenas com um filho pequeno como herdeiro. O irmão, Ricardo, primeiro, ocupou o trono como regente e, depois, reivindicou-o para si e pôs os pró­prios sobrinhos, os filhos de Eduardo, os pequenos príncipes, na Torre de Londres.

Ela acenou com a cabeça, esta história fora-lhe contada na Espanha, e a história maior - da rivalidade mortal por um trono -era um tema comum aos dois jovens.

- Foram para a Torre e nunca mais saíram - disse Artur friamente. - Deus abençoe as suas almas, pobres rapazes, ninguém sabe o que lhes aconteceu. O povo revoltou-se contra Ricardo, e Pediu ao meu pai que voltasse da França.

- A sério?

A minha avó reuniu os grandes lordes, um a seguir ao outro, ela era uma arquiconspiradora. Ela e o duque de Buckingham juntaram-se e prepararam os nobres do reino. É por isso que o meu pai a respeita tanto: deve-lhe o trono. E esperou até poder enviar uma mensagem à minha mãe, a dizer-lhe que casaria com ela, se conseguisse o trono.

Forque a amava? - perguntou Catarina esperançada. - Ela é tão bonita.

Ele não. Nem sequer a tinha visto. Não te esqueças de que viveu quase toda a vida no exílio. Foi uni casamento arranjado rw. que a mãe dele sabia que. se conseguisse casá-los. t< >d- is vertam n a herdeira da Casa de York casara com o herdeiro da Casa "d Lancaster e a guerra poderia terminar. E a mãe dela viu o casamento como a única forma de obter segurança. As duas mães fize acordo entre si, como duas velhas em volta de um caldeirão Sàõ duas mulheres que não eleves contrariar.

- Ele não a amava? - ela estava desapontada. Artur sorriu.

Não, não é um romance. E ela não o amava. Mas sabiam que tinham de fazer. Quando o meu pai avançou, derrotou Rica e apanhou a coroa da Inglaterra de entre os cadáveres e os destroços do campo de batalha, sabia que casaria com a princesa, w miria o trono e fundaria uma nova linhagem.

Mas ela não era, de qualquer forma, a seguinte na linha sucessão ao trono? - perguntou ela, baralhada. - Uma vez que o dela fora o rei Eduardo? E se o tio morreu na batalha, e os irmã estavam mortos?

Ele confirmou com a cabeça.

Ela era a princesa mais velha.

Então, porque não reivindicou o trono para si própria?

Ah. és uma rebelde! - disse ele. Agarrou num punhado de cabelos dela e puxou-lhe o rosto para junto do seu. Beijou-lhe a boca, a saber a vinho e a frutas cristalizadas.

Uma rebelde de York, o que ainda é pior.

Só achei que ela devia ter reclamado o trono para si.

Não neste país - afirmou Artur. - Não temos rainhas regentes nesta Inglaterra. As mulheres não podem herdar. Não podem herdar o trono.

E se um rei só tivesse uma filha? Fie encolheu os ombros.

Seria uma tragédia para o país. Tens de me dar um rap

meu amor. Mais nada serve.

- E se só tivéssemos uma rapariga ?

Casaria com um príncipe e ele seria Rei Consorte Inglaterra, e reinaria em conjunto com ela. Como a tua mãe fez. Ela reina com o marido.

Em Aragão, sim, mas em Castela, ele governa em conjunto com ela. Castela é o país dela e Aragão o dele.

- Nunca o admitiríamos na Inglaterra - disse Artur.

Ela afastou-se dele indignada. Estava a fingir.

- Vou dizer-te uma coisa, se só tivermos uma filha c se for uma rapariga, será uma rainha tão eficiente como qualquer homem que rapariga, será uma rainha tão eficiente como qualquer homem que possa ser rei.

_ Bem, ela vai ser uma inovadora - respondeu ele. - Não acreditamos que uma mulher seja capaz de defender o país, como um rei tem de fazer.

_ Uma mulher sabe combater - afirmou ela imediatamente. -Devias ver a minha mãe de armadura. Até eu era capaz de defen­der o país. Eu assisti a guerras, que é mais do que tu fizeste. Eu poderia ser uma rainha tão eficiente como qualquer homem. Ele sorriu-lhe, abanando a cabeça.

- Não se o país fosse invadido. Não serias capaz de comandar um exército.

- Eu poderia comandar um exército. Porque não?

Nenhum exército inglês seria comandado por uma mulher. Não aceitariam ordens de uma mulher.

Aceitariam receber ordens do seu comandante - disparou ela. - E se não o fizerem, é porque não são bons soldados, e têm de ser treinados.

Ele riu-se.

Nenhum inglês obedeceria a uma mulher - disse ele. Viu pela sua expressão obstinada que não estava convencida.

O que interessa é que venças a batalha - disse ela. - O importante é que o país esteja defendido. Não interessa quem lidera o exército, desde que os soldados obedeçam.

Bem, de qualquer modo, a minha mãe não tinha intenções de reivindicar o trono em seu nome. Nunca sonharia com uma coisa dessas. Casou com o meu pai e tornou-se Rainha da Inglaterra através do casamento. E por ser a Princesa de York e por ele ser o herdeiro da Casa Lancaster, os planos da minha avó foram bem-sucedidos. O meu pai pode ter conseguido o trono através de con­quista e por reconhecimento; mas nós tê-lo-emos por herança.

Catarina acenou com a cabeça.

- A minha mãe dizia que não havia nada de errado num homem que conquista o trono. O que é importante não é conseguido, mas mantê-lo.

- Nós vamos mantê-lo - disse ele de forma decidida. - Tu e eu amos construir aqui um grande país. Construiremos estradas e mercados, igrejas e escolas. Colocaremos um círculo de fortes em volta

- Nós vamos mantê-lo - disse ele de forma decidida - Tu e eu vamos construir aqui um grande pais. Construiremos estradas e mercados, igrejas e escolas. Colocaremos um círculo de fortes em volta da linha costeira e construiremos navios. - Criaremos tribunais de justiça, como o meu pai e a minha mãe fizeram na Espanha - disse ela, agradada com o prazer de planear um futuro   em que pudessem estar de acordo -, para que nenhum homem possa ser tratado cruelmente por outro. Para que todos os homens saibam que podem dirigir-se ao tribunal e fazer com que o seu caso seja ouvido. Ele levantou o copo para ela.

Devíamos começar a tomar nota destas ideias - sugeriu - p devíamos começar a planear como será feito.

Ainda faltam muitos anos para chegarmos ao trono.

Nunca se sabe. Nào o desejo. Deus sabe que honro o meu pai e a minha màe e nào quero nada antes do tempo Mas nunca se sabe. Sou o Príncipe de Gales, tu és a Princesa. Mas seremos Rei e Rainha da Inglaterra. Deveríamos saber quem vamos ter na nossa corte, devíamos conhecer os conselheiros que escolhermos, devía­mos saber como vamos tornar este país verdadeiramente grande. Se for um sonho, entào poderemos falar sobre ele a noite, como faze­mos. Mas se for um plano, devíamos escrevê-lo durante o dia, acei­tar conselhos a este respeito, pensar como poderemos fazer o que pretendemos.

O rosto dela iluminou-se.

Quando tivermos terminado as nossas lições do dia. talve pudéssemos fazê-lo. Talvez o teu tutor nos ajude, e o meu con­fessor.

E os meus conselheiros - disse ele. - E poderíamos começar aqui. Em Gales. Posso fazer o que quiser, desde que seja racional. Podíamos criar uma universidade e construir algumas escolas. Podíamos mandar construir aqui um navio. Existem estaleiros em Gales, podíamos construir o nosso primeiro navio de defesa.

Ela bateu palmas como a menina que ainda era.

Podíamos começar o nosso reinado! - afirmou.

Salve Rainha Catarina! Rainha da Inglaterra! - disse Artur, em tom de brincadeira, mas ao pronunciar as palavras, parou e olhou-a com mais gravidade. - Sabes, vais ouvi-los dizer, meu amor. Vivati Vivai! Catarina Regina. Rainha Catarina, Rainha da Inglaterra.

É como uma aventura, imaginar o tipo de país que poderemos criar, que tipo de rei e rainha seremos. É natural que pensemos em Camelot. Era o meu livro preferido da biblioteca da minha mãe e eu encontrei uma copia de Artur, com bastantes marcas de dedadas, na biblioteca do pai dele Sei que Camelot é uma história, um ideal, tão irreal como o amor de um trovador, ou um castelo de conto de fadas ou lendas sobre ladrões, tesouros e génios. Mas existe algo na ideia de governar um reino com justiça, com o consentimento do poro. que é mais do que um conto de fadas.

Eu e Artur herdaremos um grande poder, o pai procurou que assim fosse. Julgo que herdaremos um trono forte e um grande tesouro Herdaremos com a boa vontade do poro; o rei não é amado, mas é respeitado, e ninguém deseja um regresso ás batalhas intermináveis Estes ingleses têm horror a guerras civis. Se chegarmos ao trono caiu este poder, esta riqueza, e a sua boa vontade, não tenho duvidas de que poderemos criar aqui um grande país.

E será um grande país em aliança com a Espanha. O herdeiro dos meus pais é o filho de Joana, Carlos. Será o Sagrado Imperador Romano e Rei da Espanha. Será meu sobrinho e teremos a amizade de parentes. Como será poderosa esta aliança: o grande Sagrado Império Romano e a Inglaterra. Ninguém conseguirá opor-se a nós poderemos dividir a França, poderemos dividir a maior parte da Europa. Depois, levantar-nos-emos, o Império e a Inglaterra, contra os Mouros, venceremos e todo o Oriente, a Pérsia, os Otomanos, a Índia, até a China ficarão abertos para nós.

A rotina do castelo mudou. Quando os dias começavam a ficai" mais quentes e mais claros, os jovens príncipes transferiram os seus escritórios para os aposentos dela. arrastaram uma mesa enorme para perto da janela, para apanharem a luz da tarde, e penduraram mapas do principado nos painéis revestidos de linho.

- Parece que estão a planear uma campanha - disse Lady Margaret, gracejando.

- A princesa devia estar a descansar - observou Dona Elvira, com ar ressentido, sem se dirigir a ninguém em particular.

- Estais indisposta? - perguntou Lady Margaret rapidamente. Catarina sorriu e abanou a cabeça, começava a ficar habituada

ao interesse obsessivo pela sua saúde. Até poder dizer que trazia no útero o herdeiro da Inglaterra, não teria paz. as pessoas não deixariam de lhe perguntar como se sentia.

- Não preciso de descansar - disse ela. - E, amanhã, se me levardes, gostava de ir ver os campos.

Os campos? - perguntou Lady Margaret, bastante surpreendida. — Em Março? Só serão cultivados daqui a uma semana ou mais não há praticamente nada para ver.

Tenho de aprender - disse Catarina. - De onde vim, ficava tudo tão seco no Verão que tínhamos de abrir valas em todos os campos, até à raiz de cada árvore, para canalizar a agua para as plantas, para nos certificarmos de que conseguiam beber e sob viver. A primeira vez que cavalgamos por esta região e eu vi regos nos campos, era tão ignorante que pensei que eram p trazer água - riu-se alto ao lembrar-se. - E, depois, o príncipe disse-me que eram valas, para escoar a água. Eu não podia a ditar! Por isso, é melhor irmos dar um passeio e tendes de explicar tudo.

Uma rainha não precisa de saber nada sobre os campos afirmou Dona Elvira, do seu canto, num tom desaprovador. - Para que precisais de saber o que os agricultores cultivam?

É claro que uma rainha precisa de saber - respondeu Catarina, irritada. - Devia saber tudo acerca do seu país. De q outra forma poderá governar?

Tenho a certeza de que sereis uma excelente Rainha Inglaterra - afirmou Lady Margaret, apaziguadora.

Catarina sorriu.

- Eu serei a melhor Rainha da Inglaterra que puder - anuncio - Tomarei conta dos pobres e ajudarei a Igreja e, se alguma vez estivermos em guerra, partirei e combaterei pela Inglaterra, tal como minha mãe fez pela Espanha.

Ao planear o futuro com Artur, esqueço as saudades da Espanha. Todos os dias pensamos numa melhoria que poderem trazer, numa lei que deveríamos alterar. Lemos juntos, livros de filosofia e de política, falamos sobre se será possível confiar nas pessoas ao ponto de lhes conceder liberdade, se um rei deverá ser um bom tirano ou se deve afastar-se do poder. Falamos da minha casa: da convicção dos meus pais de que se constrói um país com base numa só igreja, numa língua e numa lei. Ou sobre se seria possível fazê-lo como os Mouros: criar um país com uma lei, mas com muitas fés muitas línguas, e partir do princípio de que as pessoas são suficientemente inteligentes para fazer a melhor escolha.

Discutimos, conversamos. Por vezes, rimo-nos às gargalhadas,por vezes discordamos. Artur é sempre o meu amante, o meu marido inegavelmente. E agora está a tornar-se meu amigo.

Catarina estava no pequeno jardim do Castelo de Ludlow, que se estendia ao longo da muralha oriental, conversando animada­mente com um dos jardineiros do castelo. Em canteiros impecáveis, à sua volta, encontravam-se as eivas que os cozinheiros utilizavam, e algumas ervas e flores, com propriedades medicinais, cultivadas por Lady Margaret. Artur, ao ver Catarina quando voltava da confis­são na capela redonda, olhou para cima, para a grande muralha, para se certificar de que ninguém o impediria, e fugiu, para estar com ela. Enquanto se aproximava, ela gesticulava, tentando descrever qualquer coisa. Artur sorriu.

- Princesa - disse ele, saudando-a formalmente.

Ela fez-lhe uma reverência, mas os seus olhos tinham uma expressão calorosa de prazer, ao vê-lo.

- Senhor.

O jardineiro ajoelhara-se na lama. ao ver o príncipe chegar.

Podeis levantar-vos - disse Artur, brincando. - Não me pare­ce que ireis encontrar muitas flores bonitas, nesta altura do ano, Princesa.

Estava a tentar falar com ele sobre cultivar legumes para sala­das - disse ela. - Mas ele fala galês e inglês e eu tentei latim e francês e não conseguimos entender-nos.

Penso que estou como ele. Também não percebo. O que é uma salada?

Ela reflectiu por um momento. "Acetaria"

- Acetaria; - perguntou ele.

Sim, salada.

O que é, exactamente?

- São legumes que crescem da terra e que se podem comer ser cozinhados - explicou ela. - Estava a perguntar-lhe se podia plantar alguns para mim.

- Comei-los crus? Sem os ferver? - Sim, porque não? - Porque ireis ficar terrivelmente doente, se comerdes alimentos cozinhados neste país.

- São como a fruta, como as maçãs. Comem-se crus, Ele não estava convencido.

- Como-as mais vezes cozinhadas, ou em conserva ou se E, de qualquer forma, é uma fruta e não folhas. Mas que tipo de legumes quereis?

- "Lactuca" - disse ela.

- "Lactuca"'-'- repetiu ele. - Nunca ouvi falar nisso. Ela suspirou.

- Eu sei. Nenhum de vocês parece saber nada sobre legurn A lactuca é como... - procurou na sua mente o nome do legu verdadeiramente horrível que fora obrigada a comer, cozido e papa, num jantar, em Greenwich. - Perrexil - disse ela. - A coisa mais parecida que vós tendes com a lactuca é provavelmente perrexil. Mas a lactuca come-se sem ser cozinhada e é estaladiço e doce.

Um legume? Estaladiço?

Sim - respondeu ela pacientemente.

E vós comei-lo na Espanha? Ela quase se riu da sua expressão horrorizada.

Sim. Vós gostaríeis.

E podemos cultivá-lo aqui?

-Julgo que ele me está a dizer que não. Nunca ouviu falar tal coisa. Não tem sementes. Não sabe onde poderemos encontrar essas sementes. Acha que não se desenvolveriam aqui. - Olhou para cima, para o céu azul, com as nuvens de chuva que eram como um escudo. - Talvez tenha razão - disse ela, com um pouco de enfado na voz. - Tenho a certeza de que necessitam de muito sol.

Artur dirigiu-se ao jardineiro.

- Alguma vez ouvistes falar de uma planta denominada lactuca

- Não, Vossa Graça - respondeu o homem, com a cabeça baixa. - Lamento, Vossa Graça. Talvez seja uma planta espanhola. Soa a algo bastante bárbaro. Sua Alteza Real está a dizer que lá comem erva? Como as ovelhas?

O lábio de Artur tremeu.

-     Não, é um legume, penso eu. Vou perguntar-lhe. Voltou-se para Catarina, pegou-lhe na mão e pô-la debaixo

seu braço.

- Sabeis, às vezes, no Verão, faz muito sol e fica muito calor aqui. A sério. Iríeis achar o sol do meio-dia demasiado quente. Teríeis de vos sentar á sombra.

Ela parecia não acreditar, devido à lama fria e às nuvens, cada vez mais pesadas.

- agora não, eu sei; mas no Verão. Já me encostei a esta parede achei que estava quente ele mais para lhe tocarmos. Sabeis que cultivamos morangos, framboesas e pêssegos? Todas as frutas que cultivais na Espanha. _ E laranjas?

_ Bem. laranjas talvez não - admitiu ele. _ Limões? Azeitonas? Ele empertigou-se. _ Sim. temos.

Ela olhou para ele desconfiada.

Tâmaras?

Na Cornualha - afirmou, directamente. - Claro que na Cornualha faz mais calor.

Cana-de-açúcar? Arroz? Ananás?

Ele tentou dizer que sim, mas não conseguia reprimir as gar­galhadas e ela desatou a rir e caiu em cima dele.

Quando se voltaram a acalmar, ele olhou em volta para o pátio interior e disse:

- Vem, ninguém vai sentir a nossa falta por alguns minutos - e levou-a pelas escadas abaixo, até à pequena porta de saída, que lhes permitia sair pela porta secreta.

Um pequeno caminho levava-os até à colina cuja encosta íngreme descia do castelo até ao rio. Algumas ovelhas fugiram quando eles se aproximaram, com um rapaz a correr atrás delas. Artur colocou-lhe o braço em volta da cintura e ela deixou-se con­duzir por ele.

Nós cultivamos mesmo pêssegos - assegurou-lhe ele. - As outras coisas não, claro. Mas tenho a certeza de que poderemos plantar a tua lactuca, seja lá o que isso for. Só precisamos de um jardineiro que possa trazer as sementes e que já tenha cultivado o que tu queres. Porque não escreves ao jardineiro do Alhambra e lhe Pedes para te enviar algumas?

Posso mandar vir um jardineiro? - perguntou incrédula.

Meu amor, vais ser Rainha da Inglaterra. Podes mandar vir um regimento de jardineiros.

A sério?

Artur riu-se pela felicidade que surgia no rosto dela.

- De imediato. Não sabias?

- Não! Mas onde vai ele plantar? Não há espaço encostado à muralha do castelo, e se vamos cultivar fruta e legumes...

- És a Princesa de Gales! Podes plantar o teu jardim onde te apetecer. Se quiseres, tens todo o Condado de Kent, minha querida.

- Kent?

- Cultivamos lá maçãs e lúpulo, penso que podemos tenta plantar lá lactuca.

Catarina riu-se com ele.

- Nem pensei nisso. Nunca sonharia em mandar vir um jardineiro. Se pelo menos eu tivesse trazido logo um comigo. Tenho todas aquelas damas de companhia inúteis e não tenho um jardi­neiro.

Podias trocá-lo por Dona Elvira. Ela deu uma gargalhada.

Ah, Meu Deus, somos abençoados - disse ele simplesmente

- Por nos termos um ao outro e pelas nossas vidas. Terás sempre tudo o que quiseres, sempre. Juro-te. Queres escrever à tua mãe? Ela pode mandar dois homens bons e eu vou mandar arar um pedaço de terra imediatamente.

- Vou escrever à Joana - decidiu ela. - Para a Holanda. Está na parte norte da Cristandade, como eu. Deve saber o que se pode plantar num clima destes. Vou escrever-lhe e saber o que ela fez.

- E comeremos lactuca! - exclamou ele, beijando-lhe os dedos.

- Todo o dia. Não comeremos mais nada além da lactuca, como as ovelhas que pastam relva, seja lá o que isso for.

Conta-me uma história.

Não, conta-me tu qualquer coisa.

Se me contares sobre a queda de Granada, mais uma vez.

Eu conto, mas tens de me explicar uma coisa.

Artur esticou-se e puxou-a de modo que ela se encontrava atravessada na cama. com a cabeça no ombro dele. Conseguia sen­tir o seu peito macio a subir e a descer, enquanto ele respirava, assim como o bater suave do coração, constante como o amor.

- Vou explicar tudo.

Ela conseguia ouvir o sorriso na sua voz.

- Hoje estou extraordinariamente sábio. Devias ter-me ouvido, depois do jantar, a ministrar a justiça.

- Tu és muito justo - admitiu ela. - Eu gosto muito quando

proferes uma sentença.

Sou um Salomão - disse ele. - Chamar-me-ão "Artur, o Bom

"Artur, o Sábio" - sugeriu ela.

- "Artur, o Magnífico". Catarina riu-se.

- Mas quero que me expliques uma coisa que ouvi sobre a tua mãe

_ Ai sim?

_ Uma das damas de companhia inglesas disse-me que ela fora prometida ao tirano Ricardo. Pensei que devia ter percebido mal Estávamos a falar francês e eu pensei que devia ter percebi­do mal.

Oh. essa história - disse ele, voltando ligeiramente a cabeça.

Não é verdade? Espero não te ter ofendido.

Não, não ofendeste nada. É uma história frequente.

Não pode ser verdade?

Quem sabe? Só a minha mãe e o tirano Ricardo podem saber o que aconteceu. E um deles está morto e a outra silenciosa como um túmulo.

Contas-me? - pediu ela experimentando-o. - Ou não deve­ríamos falar sobre isso?

Ele encolheu os ombros.

- Há duas histórias. A mais conhecida e a sombra dessa. A his­tória que todos conhecem é que a minha mãe fugiu para um santuário, com a mãe e as irmãs, estavam escondidas numa igreja, todas juntas. Sabiam que, se saíssem, seriam detidas por Ricardo, o Usurpador, e desapareceriam na Torre, como os seus irmãos mais novos. Ninguém sabia se os príncipes estavam vivos ou mortos, mas ninguém os vira, todos temiam que estivessem mortos. A minha mãe escreveu uma carta ao meu pai - bem, foi-lhe ordenado pela mãe dela - e disse-lhe que, se ele viesse para a Inglaterra, um Tudor da linhagem de Lancaster, ela, uma princesa de York, casaria com ele, e a antiga rivalidade entre as duas famílias terminaria para sempre. Disse-lhe que viesse, que a salvasse, e que conhecesse o seu amor. Ele recebeu a carta, juntou um exército, veio à procura da princesa, casou com ela e trouxe a paz à Inglaterra.

- Isso foi o que já me contaste. É uma história muito boa. Artur assentiu com a cabeça.

- E a história que não me contaste?

Ele riu-se contra a sua vontade, -É bastante escandalosa. Dizem que ela não estava em nenhum santuário. Que abandonou o santuário, a mãe e as irmãs.

Que foi para a corte. A mulher do rei Ricardo tinha morrido e ele do procurava outra. Ela aceitou a proposta do rei Ricardo. Teria casa-

do com o tio, o tirano, o homem que matou os irmãos.

Catarina tapou a boca com a mão para abafar a sua expressa

de choque, com os olhos muito abertos.

Não!

É o que dizem.

A rainha, a tua mãe?

Ela mesma - respondeu ele. - Na verdade, até dizem pior. Que ela e Ricardo foram prometidos, quando a mulher dele ain^ se encontrava no leito da morte. É por isso que existe uma inimiza de tão grande entre ela e a minha avó. A minha avó nào confia ne'

mas recusa-se a dizer porquê.

Como é que ela foi capaz?

Como é que poderia não ser? - respondeu ele. - Se analisa­res a situação do ponto de vista da minha mãe, ela era Princesa de York, o pai estava morto, a mãe era inimiga do rei, presa num san­tuário, tão presa como se estivesse na Torre. Se pretendia viver, te de encontrar uma forma de obter os favores do rei. Se alguma v quisesse ser reconhecida como princesa, teria de ter o seu reconh cimento. Se queria ser Rainha da Inglaterra, tinha de casar com ele

Mas ela poderia, certamente, tu... - começou, calando-se e seguida.

Nào - ele abanou a cabeça. - Percebes? Ela era uma prince­sa, não tinha grande escolha. Se quisesse viver, teria de obedecer a rei. Se quisesse ser rainha, teria de casar com ele.

Podia ter reunido o seu próprio exército.

Não na Inglaterra - lembrou-lhe ele. - Teria de casar com Rei da Inglaterra para ser a sua rainha. Era a sua única saída.

Catarina permaneceu em silêncio por momentos.

- Graças a Deus que tive de casar contigo para ser rainha, qu o meu destino me trouxe tão facilmente para aqui.

Ele sorriu.

- Graças a Deus que somos felizes com o nosso destin Porque teríamos casado, e tu terias sido Rainha da Inglaterra, qu

gostasses de mim, quer nào. Não é verdade?

- Sim - disse ela. - Uma princesa nunca tem escolha. Ele acenou com a cabeça.

Mas a tua avó, Sua Alteza, a Mãe do Rei, deve ter planea ó casamento da tua mãe com o teu pai. Porque nào lhe perdoa? fazia parte do plano.

Aquelas duas mulheres poderosas, a mãe do meu pai e a da minha mãe, combinaram o acordo entre elas, como duas la deiras a vender linhos roubados.

Ela deu um gritinho de choque.

Artur riu-se, apercebendo-se do quanto gostava de a surpreender.

-É terrível, não é? - respondeu calmamente. - A mãe da minha mãe foi provavelmente a mulher mais odiada da Inglaterra, em determinada altura.

_ E onde está agora? Ele encolheu os ombros.

- Durante algum tempo viveu na corte, mas Sua Alteza, a Mãe do Rei, detestava-a tanto que se livrou dela. A beleza dela era famosa sabes, e era uma conspiradora. A minha avó acusou-a de cons­pirar contra o meu pai e ele preferiu acreditar nela.

- Ela ainda não morreu? Nunca a executaram?

- Não. Ele pô-la num convento e ela nunca vem à corte. Ela estava assombrada.

- A tua avó mandou prender a própria mãe da rainha num con­vento?

Ele acenou com a cabeça, com um ar grave.

- A sério. Ficas avisada com esta história, meu amor. A minha avó não recebe bem na corte quem possa constituir uma ameaça ao seu poder. Assegura-te de que nunca a contrarias.

Catarina abanou a cabeça.

- Nunca o faria. Tenho um pavor absoluto dela.

- E eu também! - ele riu-se. - Mas eu conheço-a, e estou a avi­sar-te. Nada a deterá para manter o poder do filho, e da família. Nada a afasta dessa ideia. Não ama ninguém, além dele. Nem a mim, nem aos maridos, ninguém, senão ele.

- Nem a ti?

Ele abanou a cabeça.

- Ela nem sequer o ama, da forma que tu entendes o amor. Ele e o rapaz que ela decidiu que nasceu para ser rei. Mandou-o embora, quando ele era pouco mais do que um bebé, para o proteger. Viu-o sobreviver à infância. Depois, ordenou-lhe que enfrentasse

um perigo terrível, para reivindicar o trono. Ela só podia amar um rei.

Ela acenou com a cabeça.

- Ele é o pretendente dela.

- Exactamente. Ela reivindicou o trono para ele. Fez dele rei. é rei.

Ele viu a sua expressão séria.

- Agora, basta deste assunto. Tens de me cantar a tua cantiga.

Qual?

Há mais alguma sobre a queda de Granada?

- Acho que deve haver dúzias delas.

- Canta-me uma - pediu ele. Empilhou mais duas almofadas atrás da cabeça, e ela ajoelhou-se diante dele. atirou para trás a cabeleira avermelhada e começou a cantar numa voz baixa e doce:

"Ouviam-se gritos em Granada quando o Sol se estava a pôr Alguns chamavam pela Trindade, outros clamavam por

Maomé,

Aqui desapareceu o Corão e ali nasceu a Cruz,

E aqui se ouviu o sino cristão e ali a corneta moura.

Te Deum Laudamus! Cantou-se, lã em cima, em Alcalá:

Do alto dos minaretes do Alhambra foram arremessados todos

os crescentes

A partir daí serão exibidas as armas de Aragão, juntamente com as de Castela

Um rei chega triunfante, outro parte chorando."

 

Ele permaneceu em silêncio durante longos minutos. Ela esticou-se para trás ao lado dele, deitando-se de costas, olhando sem ver, o dossel bordado da cama, por cima das suas cabeças.

É sempre assim, não é? — observou. - A ascensão de um é a queda de outro. Eu serei rei. mas só depois da morte do meu pai. E após a minha morte, o meu filho reinará.

Vamos chamar-lhe Artur? - perguntou ela. - Ou Henrique, como o teu pai?

Artur é um bom nome - respondeu ele. - Um bom nome para uma nova família real na Inglaterra. Artur por Camelot, e Artur por mim. Não queremos mais um Henrique; o meu irmão já é sufi­ciente. Vamos pôr-lhe o nome de Artur, e a irmã mais velha vai cha­mar-se Maria.

Maria? Eu queria chamar-lhe Isabel, como a minha mãe.

Podes pôr o nome Isabel à próxima rapariga. Mas quero que

a nossa primogénita se chame Maria.

O Artur tem de ser o primeiro. Ele abanou a cabeça.

Primeiro, teremos a Maria, para podermos aprender a fazer

tudo com uma rapariga.

- Como fazer tudo? Ele gesticulou.

- O baptismo, o puerpério, o nascimento, todas essas confusões e preocupações, a ama de leite, as embaladeiras, as aias. A minha avó escreveu um livro enorme para indicar como tudo deve ser feito. É terrivelmente complicado. Mas, se tivermos primeiro a nossa Maria, o quarto da nossa criança estará pronto, e no teu puerpério seguinte colocaremos o nosso filho e herdeiro no berço. Ela levantou-se e voltou-se para ele, fingindo-se indignada.

-E ias praticar a paternidade com a minha filha! - exclamou ela.

Não quererias começar com o meu filho - protestou ele. - Ele vai ser a rosa das rosas da Inglaterra. É o que me chamam a mim, lembra-te: "a rosa da Inglaterra". Penso que devias tratar o meu pequeno botão de rosa, a minha florzinha, com um grande respeito.

Então, ela vai ser Isabel - estipulou Catarina. - Se ela nascer primeiro, será Isabel.

Maria, como a Rainha dos Céus.

Isabel, como a Rainha da Espanha.

- Maria, para dar graças por teres vindo para junto mim. O pre­sente mais doce que o céu podia ter-me oferecido.

Catarina aninhou-se nos seus braços.

Isabel - disse, enquanto ele a beijava.

Maria - sussurrou ele ao seu ouvido. - E vamos fazê-la agora.

É de manhã. Estou deitada, acordada, é de madrugada e consigo ouvir os pássaros que, lentamente, começam a cantar. O sol está a subir e pela gelosia da janela vislumbro o céu azud. Talvez vá ser um dia quente, talvez o Verão esteja finalmente a chegar.

Ao meu lado, Artur respira tranquila e regularmente. Sinto o meu coração inchado de amor por ele, passo a mão pelos caracóis louros da sua cabeça e pergunto-me se alguma mulher, alguma vez, terá amado um homem como eu o amo.

Mexo-me e pouso a outra mão no meu ventre redondo e morno. Será possível que tenhamos concebido uma criança, a noite passada? Já estará, protegido no meu ventre, um bebé que se chamará Maria, Princesa Maria, que será a rosa da rosa da Inglaterra?

Ouço os passos da criada a andar de um lado para o outro na minha antecâmara, trazendo lenha para a lareira, juntando-as. Artur continua sem se mexer. Ponho suavemente a mão no seu ombro.

- Acorda dorminhoco - digo-lhe num tom caloroso de amor. -As criadas estão lá fora, tens de ir embora.

Ele está encharcado em suor, a pele do seu ombro está fria e pegajosa

- Meu amor?-pergunto. - Estás bem? Ele abre os olhos e sorri para mim.

- Não me digas que já é de manhã. Estou tão cansado que era capaz de dormir mais um dia.

-fá é de manhã.

- Oh. porque não me acordaste mais cedo? Gosto tanto de ti de manhã e agora só te posso voltar a ter à noite. Encosto o rosto ao seu peito.

- Não digas isso. Eu também adormeci. Estivemos acordad até tarde. E agora tens de ir embora.

Artur abraça-me, como se não suportasse ter de me deixar; eu ouço o criado de quarto abrir a porta de fora, para trazer água quente. Eu afasto-me dele. É como arrancar uma camada da mini própria pele. Não suporto estar longe dele.

De repente, apercebo-me da temperatura do seu corpo, do cal dos lençóis emaranhados à nossa volta.

Estás tão quente!

É de desejo - responde ele, sorrindo. - Tenho de ir à miss para me acalmar.

Sai da cama e põe o roupão sobre os ombros. Tropeça.

Amor, estás bem?—pergunto-lhe.

Um pouco tonto, nada de especial- responde. - Cego de desejo, e a culpa é toda tua. Vejo-te na capela. Reza por mim, minha querida.

Levanto-me da cama, e destranco a porta que dá para ameias, para o deixar sair. Elie desequilibra-se ligeiramente ao subi os degraus de pedra, depois, vejo-o endireitar os ombros para respirar o ar puro. Fecho a porta atrás dele, e volto para a minha cama. Olho em volta do quarto, ninguém pode saber que cá esteve. Alguns momentos depois, Dona Elvira bate à miriha porta e entra com dama de companhia e atrás algumas criadas que trazem o jarro com água quente, e a minha roupa para esse dia.

-     Dormistes até tarde, deveis estar muito cansada - diz Do Elvira com ar reprovador; mas eu estou tão tranquila e feliz que n me dou ao trabalho de responder.

Na capela não podiam fazer mais do que trocar sorrisos disfarçados. Depois da missa, Artur foi

Passear a cavalo e Catarina foi quebrar o seu jejum. Após o pequeno-almoço, era altura de estudar com o capelão e Catarina sentou-se com ele na mesa junto da janela. com os livros à frente, e estudou as Cartas de São Paulo.

Margaret Pole entrou quando Catarina fechava o livro.

_ O Príncipe pede a vossa presença nos seus aposentos - informou.

Catarina levantou-se.

- Aconteceu alguma coisa?

_ Penso que não se sente bem. Mandou todos embora, à excepção do criado particular e dos criados.

Catarina saiu imediatamente, seguida por Dona Elvira e Lady Margaret. Os aposentos do príncipe estavam cheios dos frequenta­dores habituais da pequena corte: homens que procuravam favores ou atenção, que vinham fazer pedidos e procurar justiça, os curio­sos que vinham observar, e o séquito de criados menos importantes e funcionários. Catarina passou por todos eles dirigindo-se para as portas duplas dos aposentos privados de Artur, e entrou.

Ele estava sentado numa cadeira junto da lareira, com o rosto muito pálido. Dona Elvira e Lady Margaret esperaram á porta, enquanto Catarina se aproximou rapidamente dele.

- Estás doente, meu amor? - perguntou ansiosa.

Ele conseguiu sorrir, mas ela percebeu que ele estava a fazer um esforço.

Acho que apanhei uma espécie de constipação - respondeu. - Não te aproximes. Não ta quero pegar.

Tens febre? - perguntou receosa, pensando na Doença do Suor que surgia como uma febre e deixava um cadáver.

Não, tenho frio.

Bem, não me espanta, neste país onde ou neva ou chove constantemente.

Ele conseguiu esboçar outro sorriso. Catarina olhou em volta e viu Lady Margaret.

- Lady Margaret, temos de chamar o médico do príncipe.

- Já mandei os meus criados chamá-lo - respondeu ela. aproximando-se.

- Não quero que façam um grande alarido - disse Artur irrita­do. - Só queria dizer-vos, Princesa, que não posso ir jantar.

Os olhos dela fixaram-se nos dele.

- Que podemos fazer para ficarmos a sós? - era a pergunta que não pronunciou.

- Posso jantar nos vossos aposentos? - perguntou ela. -Podemos jantar a sós, em privado, uma vez que estais doente?

Sim, vamos fazer isso — disse ele.

Primeiro, consultai o médico - aconselhou Lady Margaret Se Vossa Craca permitir. Ele poderá aconselhar-vos o que podei comer, e se é seguro para a Princesa estar convosco.

Ele não tem nenhuma doença - insistiu Catarina - Diz que só se sente cansado. É do ar frio daqui ou da humidade. Ontem estava frio e ele saiu a cavalo durante meio dia.

Alguém bateu à porta e uma voz anunciou:

- O Dr. Bereworth está aqui, Vossa Graça.

Artur levantou a mão, fazendo sinal para o deixarem entra Dona Elvira abriu a porta e o homem entrou no quarto.

- O Príncipe sente frio e cansaço. - Catarina aproximou-se de" de imediato, falando muito depressa, em francês. - Está doent Creio que não está doente. Que achais?

O médico dirigiu-lhe uma vénia, assim como ao príncipe. F mais duas vénias a Lady Margaret e a Dona Elvira.

- Peço desculpa, não percebo - disse, pouco à vontade, e inglês, para Lady Margaret. - O que é que a princesa está a dize..

Catarina bateu as palmas em sinal de frustração.

O Príncipe... - começou a dizer em inglês. Margaret Pole veio pôr-se ao seu lado.

Sua Graça não se sente bem - disse ela.

Posso falar com ele a sós? - perguntou ele. Artur acenou com a cabeça. Tentou levantar-se da cadeira,

quase cambaleou. O médico correu para junto dele, apoiando-o conduzindo-o para o quarto de dormir.

Ele não pode estar doente. - Catarina voltou-se para Do Elvira, falando-lhe em espanhol. - Ele estava bem, ontem à noite, hoje de manhã é que estava com febre. Mas disse que estava a; nas cansado. Agora, quase não se segura em pé. Ele não pode está doente.

Quem sabe as doenças que se pode apanhar com esta chuva e este nevoeiro? - replicou a aia com severidade. - Admira-me como vós não estais também doente. Não sei como conseguimos todos aguentar isto.

Ele não está doente - disse Catarina. - Só está demasia cansado. Andou a montar muito tempo, ontem. E estava frio, um vento muito frio. Eu própria reparei.

Um vento desses pode matar um homem - comentou Elvira sombriamente. - É tão frio e tão húmido!

- Parai com isso! - disse Catarina, tapando os ouvidos com as mãos. – Não quero ouvir nem mais uma palavra. Ele está apenas cansado, exausto. E talvez tenha apanhado uma constipação. Não há necessidade de se falar em ventos e humidades mortais.

Lady Margaret avançou e pegou carinhosamente nas mãos de Catarina.

_ Tendes de ser paciente. Princesa - aconselhou. - O Dr. Bereworth é um excelente médico e conhece o Príncipe desde a infância. O Príncipe é um homem forte e tem uma boa saúde. Provavelmente, não é nada de cuidado. Se o Dr. Bereworth estiver preocupado, mandamos vir de Londres o médico do rei. Em breve voltará a estar junto de nós.

Catarina assentiu com a cabeça e voltou-se para se sentar perto da janela, a olhar lá para fora. O céu cobrira-se de nuvens, o sol desaparecera. Estava novamente a chover, as gotas da chuva cor­riam pelos pequenos vidros da janela. Catarina observava-as. Tentava não pensar na morte do irmão que amara tanto a mulher, que esperava ansiosamente o nascimento do filho de ambos. Juan morrera alguns dias depois de adoecer, e ninguém conseguira saber o que lhe acontecera.

- Não vou pensar nele, não no pobre Juan - murmurou Catarina para si mesma. - São casos completamente diferentes. Juan sempre foi magro, pequeno; mas Artur é forte.

O médico parecia estar a demorar bastante e, quando saiu do quarto de dormir, Artur não o acompanhava. Catarina, que se levan­tara da cadeira mal a porta se abrira, espreitou, e viu Artur deitado na cama, semidespido, meio a dormir.

Penso que os criados particulares o elevem preparar para se deitar - disse o médico. - Está muito fraco. É melhor descansar. Se tiverem cuidado, conseguem metê-lo na cama sem o acordar.

Está doente? - perguntou Catarina, falando devagar, em Latim. - Aegrotaf? Está muito doente?

O médico abriu os braços.

Tem lebre - respondeu cuidadosamente, num francês lento. - Posso dar-lhe uma bebida para lhe fazer baixar a febre.

Sabe o que ele tem? - perguntou Lady Margaret. falando muito baixo. - Não é a Doença do Suor, pois não?

Deus queira que não. E não há mais casos na cidade, tanto quanto sei. Mas ele deve ficar sossegado e devem deixá-lo descansar. Vou preparar-lhe a bebida e já volto.

O inglês, falado em voz baixa, era incompreensível para Catarina.

- Que é que ele está a dizer? Que é que ele disse? - perguntou a Lady Margaret.

Nada mais do que ouvistes - assegurou-lhe a mulher mais velha. - Tem febre e precisa de descansar. Vou pedir aos criados que o dispam e o metam na cama como deve ser. Se esta noite estiver melhor, podeis jantar com ele. Sei que ele gostaria.

Onde é que ele vai? - Gritou Catarina enquanto o medico fazia uma vénia e saía. - Tem de ficar aqui e observar o Príncipe!

Vai fazer um medicamento para lhe baixar a febre. Volta já O Príncipe receberá o melhor tratamento, Vossa Graça. Nós amamo-lo tanto como vós. Não o negligenciaremos.

Sei que não o fariam... É só porque... O médico demora muito!

Vai ser o mais rápido que puder. E vede, o Príncipe está a dormir. O sono vai ser o melhor remédio. Pode descansar e fortale­cer-se e jantar convosco esta noite.

Pensais que ele estará melhor logo à noite?

Se for apenas um pouco de febre e cansaço, daqui a alguns dias estará melhor - respondeu Lady Margaret firmemente.

Vou velar o sono dele - afirmou Catarina.

Lady Margaret abriu a porta e chamou o séquito do príncipe. Deu-lhe as ordens e levou a princesa através da multidão para os seus aposentos.

Vinde, Vossa Graça - disse. - Vinde dar um passeio no pátio interior comigo e depois eu volto aos aposentos do Príncipe e vejo se ele está confortável.

Vou lá voltar agora - respondeu Catarina. - Vou velá-lo enquanto dorme.

Margaret olhou para Dona Elvira.

- Devíeis manter-vos afastada dos seus aposentos, no caso de ele ter mesmo uma febre - disse, falando devagar e claramente em francês, para que a aia pudesse compreender. - A vossa saúde e muito importante, Princesa. Eu não me perdoaria se alguma coisa acontecesse a algum de vós.

Dona Elvira aproximou-se e apertou os lábios. Lady Margaret sabia que podia confiar nela para manter a princesa fora de perigo-

Mas vós dissestes que ele só tinha uma febre ligeira. Posso ir vê-lo?

Vamos esperar e ver o que o médico tem para dizer - Lady Margaret baixou a voz. - Se estiverdes à espera de uma criança, que rida Princesa, não quereríamos que apanhásseis esta febre.

Mas eu vou jantar com ele.

Se ele estiver melhor.

Mas ele vai querer ver-me!

- Depende - Lady Margaret sorriu   — Quando a febre tiver baixado e estiver melhor, esta noite, e se sentar para jantar, vai querer ver-vos. Tendes de ser paciente.

Catarina acenou com a cabeça.

- Se eu me for embora, jurais que ficareis sempre junto dele?

Eu volto para lá agora, se fordes passear lá fora e depois para o vosso quarto ler. estudar ou coser.

Eu vou! - respondeu Catarina, subitamente obediente. - Vou para os meus aposentos, se ficardes com ele.

- De imediato - prometeu Lady Margaret.

Este pequeno jardim é como um pátio de uma prisão, dou voltas e voltas no jardim das ervas, e a chuva cai sobre tudo, como lágrimas. Os meus aposentos não são melhores, o meu quarto privado é como uma cela, não suporto ter ninguém junto de mim, mas também não suporto estar sozinha. Mandei as damas sentarem-se na sala de estar, as suas conversas intermináveis fazem-me querer gritar de irritação. Mas quando estou só no meu quarto, apetece-me ter companhia. Quero que alguém me dê a mão e me diga que vai ficar tudo bem.

Desço as estreitas escadas de pedra e atravesso o caminho empedrado para me dirigir para a capela redonda. Existe uma cruz. num altar de pedra incorporado na parede redonda, e uma vela a arder ã frente deste. É um lugar de perfeita paz, mas eu não a encontro. Enfio as mãos geladas nas mangas, abraço-me e ando em volta da parede circular, são trinta passos até à porta, e volto a percorrer o círculo, como um burro num moinho. Rezo: mas não tenho fé de estar a ser ouvida.

"Sou Catarina, Princesa da Espanha e de Gales" relembro a mim mesma. "Sou Catarina, amada por Deus. especialmente favorecida por Deus. Nada me pode correr mal. Nada de tão negativo quanto isto me pode. alguma vez, acontecer. Foi vontade de Deus que eu casasse com Artur e unisse os reinos da Espanha e da Inglaterra. Deus não permitirá que alguma coisa aconteça a Artur ou a mim. Sei que Ele favorece a minha mãe, e a mim, acima dos outros. Este temor deve ter-me sido enviado para me pôr à prova. Mas eu não terei medo. porque sei que nunca nada me correrá mal "

Catarina aguardou nos seus aposentos, mandando as s damas, de hora a hora, perguntar como estava o marido. Nas primeiras horas, disseram-lhe que ele ainda estava a dormir, o medi tinha preparado o medicamento e estava de pé. junto da cama dei à espera que acordasse.

Depois, às três da tarde, disseram que ele acordara, mas nu estava muito quente e febril. Tomara o medicamento e estavam à espera, para ver se a febre baixava. Às quatro, estava pior melhorara, e o médico estava a preparar um medicamento d: rente.

Não jantaria, beberia apenas cerveja gelada e os remédios d médico para a febre.

- Ide perguntar-lhe se deseja ver-me - ordenou Catarina a uma das suas aias inglesas. - Não vos esqueçais de falar com Lady Marga Ela prometeu-me que eu poderia jantar com ele. Relembrai-lho.

A mulher saiu e voltou com um rosto sério.

Princesa, estão todos muito ansiosos - disse. - Mandara chamar um médico de Londres. O Dr. Bereworth, que tem estado observá-lo, não sabe porque é que a febre não baixa. Lady Marga está lá, assim como Sir Richard Pole, Sir William Thomas, Sir He Vernon e Sir Richard Croft, estão todos à espera, à porta do quart e vós não podeis entrar para o ver. Dizem que está a sofrer de alr cinações.

Tenho de ir para a capela. Tenho de rezar - disse Catari imediatamente.

Cobriu a cabeça com um véu e voltou à capela redonda. Pa sua consternação, o confessor do Príncipe estava no altar, de ca' ça vergada, em súplica, alguns dos homens mais importantes cidade e do castelo estavam sentados à sua volta, de cabeças ba' Catarina entrou e ajoelhou-se.

Apoiou o queixo nas mãos e analisou as costas arqueadas padre, tentando vislumbrar algum sinal de que as suas preces e vam a ser atendidas. Não havia forma de adivinhar. Fechou olhos.

Meu Deus, poupai o meu querido marido, Artur. Ainda é menino, e eu sou apenas uma menina, não tivemos tempo para estar juntos, nenhum. Vós sabeis o tipo de reino que construiremos, sefor poupado. Conheceis os planos que temos para este país, o castelo sagrado em que transformaremos esta terra, como derrotaremos os Mouros como defenderemos este reino dos Escoceses. Querido Deus.

Vossa misericórdia, poupai Artur e permiti que ele volte para mim. Queremos ter os nossos filhos: Maria, que vai ser a rosa da rosa, e o nosso filho Artur, que será o terceiro rei Tudor sagrado católico romano da Inglaterra. Deixai-nos fazer o que prometemos. Oh Meu Senhor, sede misericordioso e poupai-o! Minha Nossa Senhora, intercedei por nós e poupai-o. Querido Jesus, poupai-o. Sou eu, Catarina quem Vos pede, e peço-o em nome da minha mãe, a Rainha Isabel, que trabalhou toda a sua vida ao Vosso serviço, que é a rainha mais cristã, que prestou serviço nas Vossas cruzadas. Ela é amada por Vós, eu sou amada por Vós. Suplico-vos que não me desaponteis.

Escureceu enquanto Catarina rezava, mas ela nem reparou. Já era tarde quando Dona Elvira lhe tocou levemente no ombro e disse:

Infanta, deveis comer alguma coisa e ir-vos deitar. Catarina voltou um rosto pálido para a aia.

Quais são as notícias? — perguntou.

Dizem que está pior.

Querido Jesus, salvai-o, salvai-me, querido Jesus, poupai a Inglaterra. Dizei que Artur não está pior.

 

De manhã, disseram que ele passara bem a noite, mas, entre os seus criados, comentava-se que estava a piorar. A febre subira tanto que estava a sofrer de alucinações, por vezes, pensava que estava no seu quarto de criança com as irmãs e o irmão, outras, Pensava que estava no próprio casamento, vestido com um fato de cetim branco brilhante, e outras, o que era mais estranho, pensava que estava num palácio fantástico. Falava de um pátio de mirtilos, de um rectângulo de água que reflectia, como um espelho, um edifício de ouro. e um movimento circular de bandos de gaivões que davam voltas e voltas, voando, durante todo o dia ensolarado.

-Vou vê-lo - anunciou Catarina para Lady Margaret ao meio-dia

Princesa, ele pode ter a Doença do Suor - respondeu a si dama de companhia friamente. - Não posso permitir que vos apro­ximeis dele. Não posso permitir que fiqueis infectada. Não estaria a cumprir o meu dever, se vos deixasse aproximar dele.

O vosso dever é para comigo! - respondeu Catarina aspe­ramente.

A mulher, ela própria também uma princesa, nunca vacilou.

O meu dever é para com a Inglaterra - respondeu ela. - E vós estais à espera de um herdeiro Tudor, então, o meu dever é para com essa criança, assim como para convosco. Por favor, não discu­tais comigo, Princesa. Não posso permitir que vos aproximeis mais do que dos pés da cama dele.

Deixai-me ir lá, então - pediu Catarina, como uma menina pequena. - Por favor, deixai-me apenas vê-lo.

Lady Margaret inclinou a cabeça na direcção dela e conduziu--a até aos aposentos reais. As multidões na antecâmara haviam aumentado em número, e corria a notícia na cidade de que o prín­cipe estava a lutar pela vida; mas permaneciam em silêncio, como uma multidão em luto. Esperavam e rezavam pela rosa da Inglaterra Alguns homens viram Catarina, de rosto tapado pela sua mantilha de renda, e pediram uma bênção para ela, depois, um homem aproximou-se e ajoelhou-se.

Deus vos abençoe, Princesa de Gales - disse. - E que o príncipe se levante da cama e volte a ser feliz convosco.

Amem - respondeu Catarina através dos lábios gelados, e prosseguiu.

As portas duplas que davam para o quarto estavam abertas Catarina entrou. Fora montada uma espécie de laboratório farmacêutico nos aposentos privados do príncipe, uma mesa sobre cavaletes com grandes frascos de vidro contendo ingredientes, um pilão e um almofariz, uma tábua de cortar, e meia dúzia de homens co batas de médico estavam reunidos. Catarina fez uma pausa, procurando o Dr. Bereworth.

- Doutor?

Ele veio imediatamente ter com ela e ajoelhou-se. Tinha u: expressão grave.

_ Princesa.

_ Quais são as notícias sobre o meu marido? - perguntou ela, falando devagar e claramente, em francês. - Lamento, ele não está melhor.

- Mas também não piorou - sugeriu ela. - Está a melhorar. Ele abanou a cabeça.

-Il est três malade - respondeu simplesmente. Catarina ouviu as palavras, mas foi como se tivesse esquecido a língua Não conseguia traduzidas. Voltou-se para Lady Margaret.

Está a dizer que ele está melhor? - perguntou. Lady Margaret abanou a cabeça.

Está a dizer que ele está pior - respondeu, com honestidade.

- Mas devem ter alguma coisa para lhe dar? - virou-se para o médico. - Vous avez un médicament?

Ele apontou para a mesa atrás de si, para o farmacêutico.

Oh, se ao menos tivéssemos um médico mouro! - gritou Catarina. - São os mais competentes, não há ninguém como eles. Tinham as melhores universidades de farmácia antes... Se ao menos eu tivesse trazido um médico comigo! A medicina árabe é a melhor do mundo!

Estamos a fazer tudo o que podemos - disse o médico rigi­damente.

Catarina tentou sorrir.

- Tenho a certeza que sim - disse. - Só queria... Bem, posso vê-lo?

Uma troca rápida de olhares entre Lady Margaret e o médico revelou que este assunto fora tema de discussões ansiosas.

- Vou ver se está acordado - respondeu ele, e saiu.

Catarina esperou. Não podia acreditar que ainda no dia ante­rior, de manhã, Artur saíra da sua cama, queixando-se de que ela não o acordara suficientemente cedo para fazerem amor. Agora, estava tão doente que ela nem sequer lhe podia tocar na mão.

O médico abriu a porta.

- Podeis vir até à ombreira da porta, Princesa - respondeu ele. - Mas pela vossa saúde, e pela de qualquer criança que possais ter

dentro de vós, não vos aproximeis mais.

Catarina dirigiu-se rapidamente para a porta. Lady Margaret colocou-lhe na mão uma caixa com cravinhos e ervas medicinais. Catarina levou-a ao nariz. O cheiro ácido encheu-lhe os olhos de lagrimas, enquanto espreitava para o quarto escurecido. Artur estava estendido na cama, com a camisa de dormir puxada para baixo por decência, a face enrubescida por causa da febre. O seu

cabelo loiro estava escuro devido ao suor, o rosto macilento. Parecia muito mais velho do que os seus quinze anos. Os olhos estavam encovados nas faces, tinha a pele sob os olhos manchada de castanho

- A vossa mulher está aqui - comunicou-lhe o médico calmamente.

Os olhos de Artur abriram-se e ela viu-os fecharem-se, enquanto ele tentava olhar para a entrada iluminada e para Catarina, que estava de pé à sua frente, com o rosto branco do choque.

Meu amor - disse ele. - Amo-te.

Amo-te - sussurrou ela. - Dizem que não me posso aproximar

Não te aproximes - disse com a voz a tremer. - Eu amo-te

- Eu também te amo! - a sua voz saía com esforço por entre as lágrimas, - Vais ficar bom?

Ele abanou a cabeça, demasiado fraco para falar.

- Artur? - chamou ela, exigente. - Vais ficar bom? Ele encostou a cabeça para trás na almofada quente, para recuperar as forcas.

- Vou tentar, meu amor. Vou tentar muito. Por ti. Por nós,

Há alguma coisa que queiras? - perguntou ela. - Alguma coisa que possa fazer por ti? - olhou em volta. Nào havia nada que pudesse fazer por ele. Nào havia nada que pudesse ajudar. Se tivesse trazido um médico mouro consigo, se os seus pais não tivessem destruído o ensino das universidades árabes, se a igreja tivesse permitido o estudo da medicina, e não tivesse apelidado o conhecimento de heresia.

Tudo o que quero é viver contigo - respondeu ele. com uma voz muito apagada.

Ela soltou um pequeno soluço.

- E eu contigo.

O Príncipe tem de descansar, e vós não deveis ficar aqui. O médico aproximou-se.

Por favor, deixai-me ficar! - suplicou em voz baixa. - Por favor, permiti que ficasse. Suplico-vos. Deixai-me estar com ele.

Lady Margaret pôs-lhe o braço em volta da cintura e puxou-para trás.

Vireis cá outra vez, se sairdes agora - prometeu. - O Príncipe precisa de descansar.

Eu vou voltar - disse Catarina para ele, e viu o pequeno gesto da sua mão, que lhe indicou que ele a ouvira. - Não te falharei.

Catarina foi para a capela rezar por ele, mas não era capaz. Só conseguia pensar nele, no seu rosto branco sobre as almofadas brancas só conseguia sentir a vibração do desejo por ele. Estavam casados há apenas cento e quarenta dias, eram amantes apaixonados há somente noventa e quatro noites. Tinham prometido que passariam a vida juntos, não podia acreditar que, naquele momento estava ajoelhada a rezar pela vida dele.

Isto não pode estar a acontecer, ainda ontem ele estava bem. Isto é um pesadelo terrível e, daqui a alguns momentos, vou acordar e ele vai beijar-me e chamar-me tonta. Ninguém pode ficar doente tão de repente, ninguém pode passar da vitalidade e da beleza para um estado desesperadamente doente num período tão curto. Daqui a pouco, vou acordar. Isto não pode estar a acontecer. Não consigo rezar, mas não importa que eu não consiga rezar, porque isto não está a acontecer realmente. Uma prece em sonhos não significaria nada. Uma doença em sonhos não significa nada. Não sou uma ateia supersticiosa, para temer os sonhos. Daqui a pouco vou acordar e vamos rir-nos dos meus medos.

A hora do jantar, levantou-se, mergulhou o dedo em água benta, benzeu-se, e com a água ainda húmida na testa, dirigiu-se aos aposentos dele, com Dona Elvira seguindo-a, de perto.

As multidões nas salas, fora dos aposentos, e na antecâmara eram cada vez mais numerosas, mulheres, assim como homens, silenciosos, numa dor muda. Abriram caminho para a princesa sem uma palavra, para além de um murmúrio de bênçãos Catarina passou por eles. sem olhar para a direita nem para a esquerda, atravessando a antecâmara, a mesa do farmacêutico, até à porta do quarto de dormir.

O guarda afastou-se para o lado. Catarina bateu levemente à Porta e empurrou-a, para a abrir.

Alguém estava debruçado sobre ele. Catarina ouvi-o tossir, uma tosse áspera, como se a sua garganta estivesse cheia de água.

- Madre de Dios — disse suavemente. - Santa Mãe de Deus mantende Artur em segurança.

O médico voltou-se ao ouvir os seus sussurros. O seu rosto estava pálido.

- Não vos aproximeis! - disse, aflito. - É a Doença do Suor. Ao ouvir a palavra mais receada, Dona Elvira recuou e puxou

o vestido de Catarina, como se a fosse arrastar para longe do peri­go.

- Deixai-me! - Catarina deu uma palmada e puxou o vestido das mãos da ama. - Não me aproximo mais, mas tenho de falar com ele disse firmemente.

O médico sentiu a resolução na voz dela.

Princesa, ele está demasiado fraco.

Deixai-nos - disse ela.

Princesa.

- Tenho de falar com ele. São assuntos do reino. Uma olhadela á sua expressão determinada disse-lhe que ela

não aceitaria ser contrariada. Passou por ela, de cabeça vergada, e o assistente seguiu-o. Catarina fez um pequeno gesto com a mão. e Dona Elvira retirou-se. Catarina passou o limiar da porta e fechou-a. Viu Artur mexer-se, em protesto.

- Eu não me aproximo mais - assegurou-lhe. - Juro. Mas tenho de estar contigo. Nào suporto... - começou a chorar.

O rosto dele, quando o voltou para ela, estava brilhante por causa do suor, o cabelo tão molhado como quando regressava de uma caçada à chuva. A sua face jovem e redonda estava esgotada, à medida que a doença lhe sugava a vida.

- Amo-te - disse ele através dos lábios gretados e escuros por causa da febre.

- Amo-te - respondeu ela.

- Estou a morrer - disse ele tristemente. Catarina nào o interrompeu nem o contradisse. Ele viu-a endirei­tar-se um pouco, como se tivesse sido atingida por um golpe mortal.

Ele respirou fundo.

Mas tu tens de ser a Rainha da Inglaterra.

O quê?

Respirou ofegantemente.

Amor, obedece-me. Tu juraste obedecer-me.

Farei qualquer coisa.

Casa com Henrique. Sê rainha. Tem os nossos filhos.

- O quê? - sentia-se tonta com o choque. Quase nào consegui ouvir o que ele estava a dizer.

- A Inglaterra precisa de uma grande rainha - disse ele. -Sobretudo com ele. Não está preparado para governar. Tens de ensi­ná-lo. Constrói os meus fortes. Constrói a minha marinha. Defende- nos dos Escoceses. Tem a minha filha, Maria. Tem o meu filho. Artur. Deixa-me viver através de ti.

Meu amor...

Deixa-me fazê-lo - suspirou prolongadamente. - Deixa-me manter a Inglaterra em segurança através de ti. Deixa-me viver atra­vés de ti.

Sou tua mulher - respondeu ela furiosamente. - Não dele. Ele acenou com a cabeça.

Diz-lhes que não és.

Ela cambaleou ao ouvi-lo, e procurou a porta para se apoiar.

Diz-lhes que não fui capaz - um indício de um sorriso asso­mou ao seu rosto esgotado. - Diz-lhes que eu não era homem. E depois casa com Henrique.

Tu detestas o Henrique! - explodiu ela. - Não podes querer que eu case com ele. É uma criança. E eu amo-te.

Ele vai ser rei - disse ele desesperadamente. - E tu vais ser rainha. Casa com ele. Por favor. Querida. Por mim.

A porta atrás dela abriu-se um pouco e Lady Margaret disse cal­mamente:

- Não deveis cansá-lo. Princesa.

-Tenho de ir embora - disse Catarina desesperadamente, para a figura imóvel na cama.

Promete-me...

Eu volto. Vais ficar melhor.

Por favor.

Lady Margaret abriu mais a porta e pegou na mão de Catarina.

- Para o bem dele - disse calmamente. - Tendes de deixá-lo. Catarina voltou-se para sair do quarto, olhou para trás por cima

do ombro. Artur levantou uma mão a alguns centímetros da colcha trabalhada.

- Eu prometo - saiu da sua boca.

A mão dele caiu, ela ouvi-o soltar um suspiro de alívio. Foram as últimas palavras que disseram um ao outro.

 

                 Costelo de Ludlow, 2 de Abril de 1502

Às seis horas, hora das Vésperas, o confessor de Artur, o Dr. Eldenham. administrou-lhe a extrema-unção e Artur morreu pouco depois. Catarina ajoelhou-se na soleira da porta, enquanto o padre ungia o marido com o óleo e inclinou a cabeça para a bênção. Não se levantou dessa posição até lhe dizerem que o seu marido-meni­no morrera e que ela era uma viúva de dezasseis anos.

Lady Margaret de um lado e Dona Elvira do outro transportaram e quase arrastaram Catarina para o seu quarto de dormir. Catarina deitou-se entre os lençóis gelados da cama, sabendo que por muito que esperasse, não ouviria os passos tranqüilos de Artur nas ameias, do lado de fora do seu quarto, nem o bater na porta. Nunca mais lhe abriria a porta para correr para os seus braços. Nunca mais ele voltaria a pegar-lhe ao colo e a levá-la para a cama, depois de ela ter desejado estar nos seus braços durante o dia inteiro.

Não posso acreditar - disse ela entrecortadamente.

Bebei isto - disse Lady Margaret. - O médico deixou-o para vós. É um remédio para dormir. Eu acordar-vos-ei ao meio-dia.

Não posso acreditar.

Princesa, bebei.

Catarina bebeu, ignorando o sabor amargo. Mais do que qual­quer coisa, queria adormecer e não voltar a acordar.

Nessa noite sonhei que estava no topo do maior portão do forte vermelho que protege e rodeia o Palácio de Alhambra. Por cima da minha cabeça, os estandartes de Castela e Aragão esvoaçavam como relas dos navios de Cristóvão Colombo. Protegendo os olhos do sol de Outono, olhando para a grande planície de Granada, observo a beleza simples e familiar da terra, o solo amarelo-acastanhado atravessado por mil pequenos canais que levam a água de um campo para outro. Sob mim estava a cidade de muros brancos de Granada, ainda agora, dez anos depois da nossa conquista, inconfundivelmente uma cidade moura: as casas todas dispostas em volta de terraços com sombra, uma fonte a jorrar sedutoramente no meio com jardins enriquecidos pelo perfume das roseiras têmporas, e as copas das árvores pesadas com os frutos.

Alguém chamara por mim.

- Onde está a Infanta?

E, no meu sonho, eu respondia:

- Sou Catarina. Rainha da Inglaterra. Esse é o meu nome agora.

Sepultaram Artur. Príncipe de Gales, no dia de São Jorge, este primeiro príncipe de toda a Inglaterra, depois de uma viagem de pesadelo, de Ludlow até Worcester, em que a chuva era tão forte que mal conseguiam avançar. Os caminhos estavam inundados, os prados alagados com água por altura do joelho e o Teme extravasara as margens e não conseguiam atravessar os baixios. Tiveram de utilizar carros de bois para o cortejo fúnebre, os cavalos não conseguiam avançar pelo lamaçal das estradas, e todas as plumagens e tecidos negros estavam ensopados, quando finalmente conseguiram chegar a Worcester.

Compareceram centenas de pessoas para ver o cortejo infeliz atravessar as ruas até à Catedral. Centenas de pessoas choraram a perda da rosa da Inglaterra. Depois de descerem o seu caixão para dentro da câmara mortuária, sob o coro, os criados dos seus apo­sentos quebraram os seus bastões-insígnia e atiraram-nos para den­tro da sepultura, juntamente com o seu senhor. Para eles, termina­ra. Tudo o que haviam esperado ao serviço de um príncipe tão jovem e tão promissor acabara. Estava tudo terminado para Artur. Parecia que tudo terminara e nunca poderia ser reparado.

 

No primeiro mês de luto. Catarina permaneceu nos seus aposentos. Lady Margaret e Dona Elvira informaram que estava doente, mas não em perigo. Na verdade, receavam pela sua razão. Ela não se enraiveceu, nem chorou, não se revoltou contra o destino nem chorou pelo consolo da sua mãe, manteve-se em silencio absoluto, o rosto voltado para a parede. A tendência da sua família para o desespero tentava-a como um pecado. Sabia que não podia ceder ao choro nem à loucura, porque se perdesse o controlo por urna vez, nunca mais conseguiria parar. Durante esse longo mês de reclusão. Catarina cerrava os cientes e necessitou de toda a sua força de vontade e de todas as suas energias para se impedir de gritar de dor Quando a despertavam, de manhã, dizia que estava cansada Não sabiam que mal se atrevia a mexer-se. com receio de começar a gemer em voz alta. Depois de a vestirem, sentava-se na cadeira como uma pedra. Assim que lho permitiam, voltava para a cama deitava-se de costas, e olhava para cima, para o dossel de cores vivas que observara com os olhos semic errados pela paixão, e sabia que Artur nunca mais voltaria a puxá-la para que se aninhasse nos seus braços.

Chamaram o médico, o Dr. Bereworth, mas quando ela o viu, a sua boca tremeu e os olhos encheram-se de lágrimas. Virou-lhe a cara e dirigiu-se apressadamente para o quarto de dormir, fechando a porta a todos. Não suportava vê-lo, o médico que deixara Artur morrer, os amigos que haviam visto tudo acontecer. Não aguentava falar com ele. Sentia uma raiva homicida, assim que via o médico que não conseguira salvar o rapaz. Desejava que fosse ele a morrer, e não Artur.

- Receio que a mente dela esteja afectada - disse Lady Margaret para o médico quando ouviram o trinco da porta cios aposentos pri­vados fechar-se. - Não fala, nem sequer chora por ele.

E come?

Se lhe pusermos a comida à frente, e se lhe dissermos para comer.

- Tragam alguém, alguém que lhe seja familiar, talvez o con­fessor, para que leia para ela. Palavras encorajadoras.

- Ela não quer ver ninguém.

-Será que está grávida? - murmurou. Era o único assunto interessava naquele momento.

- Não sei - respondeu. - Não disse nada.

- Está a fazer o luto por ele - observou. - Está a fazer o como uma mulher jovem, pelo marido jovem que perdeu. Devieis deixá-la em paz. Deixai-a sofrer. Em breve, terá de se recompor NJ1 voltar à corte?

- Foi o que o rei ordenou - disse Lady Margaret. - A rainha vai enviar a sua própria liteira.

Bem então, quando chegar, ela vai ter de modificar o seu comportamento - disse confortavelmente. - É muito nova. Vai recuperar. Os jovens têm corações fortes. E vai ser bom para ela sair daqui, de onde guarda memórias tão tristes. Se precisardes de conselhos chamai-me. Mas não vou impor-lhe a minha presença, pobre criança.

 

Mas Catarina nào se parecia com uma pobre criança, pensou Lady Margaret. Parecia uma estátua, uma princesa de pedra esculpi­da na dor. Dona Elvira vestira-lhe as suas roupas novas e escuras de luto e convencera-a a sentar-se junto da janela, onde poderia ver as árvores verdes e os ramos de cor creme, com as flores de Maio, o sol ou os campos, e ouvir o canto dos pássaros. O Verão chegara, tal como Artur prometera, estava calor como ele jurara que estaria; mas ela não andava a passear à beira-rio com ele, cumprimentando os gaivões, à medida que estes chegavam da Espanha. Não estava a plantar os legumes para salada nos jardins do castelo e a con­vencê-lo a experimentá-los. O Verão chegara, o sol viera, Catarina estava lá, mas Artur jazia frio na escura câmara mortuária da Catedral de Worcester.

Catarina sentou-se em silêncio, com as mãos cruzadas sobre a seda negra do vestido, os olhos voltados para fora da janela, mas não via nada, os seus lábios apertados sobre os dentes cerrados, como se estivesse a controlar-se para não pronunciar uma tempestade de palavras.

- Princesa - disse Lady Margaret hesitantemente. Lentamente, a cabeça sob o pesado toucado preto voltou-se para ela.

- Sim, Lady Margaret? - a sua voz estava rouca.

- Gostaria de falar convosco. Catarina inclinou a cabeça.

Dona Elvira recuou e saiu silenciosamente do quarto.

lenho de vos perguntar sobre a vossa viagem para Londres. A liteira real chegou e vós tendes de partir.

Não houve indícios de entusiasmo nos olhos azuis profundos de Catarina. Voltou a acenar com a cabeça, como se estivessem a falar do transporte de uma encomenda.

Não sei se estais suficientemente forte para viajar.

Não posso ficar aqui? - perguntou Catarina.

Sei que o rei mandou buscar-vos. Peço desculpa. Escreve dizendo que podeis ficar aqui até vos sentirdes suficientemente para viajar.

Porquê, o que me vai acontecer? - perguntou Catarina, como se lhe fosse completamente indiferente. - Quando chegar a Londres?

- Não sei. - A antiga princesa não fingiu por um único momento que uma rapariga de uma família real poderia escolher o seu futuro. - Lamento. Não sei o que está planeado. Não disseram nada ao meu marido, a não ser para vos preparar para a vossa viagem até Londres.

- O que pensais que pode acontecer? Quando o marido da minha irmã morreu, mandaram-na de volta para junto de nós, de Portugal. Ela voltou para a Espanha.

- Penso que vos mandarão para casa - disse Lady Margaret. Catarina voltou novamente a cabeça. Olhava por uma das janelas

, mas os seus olhos não viam nada. Lady Margaret esperou, perguntava-se se a princesa iria dizer mais alguma coisa.

Uma Princesa de Gales tem uma casa em Londres, assim como aqui? - perguntou. - Vou voltar para o Castelo de Baynard?

Não sois a Princesa de Gales - respondeu Lady Margaret, a explicar, mas o olhar que Catarina lhe lançou era tão irado que a levou a hesitar. - Peço desculpa - disse. - Creio que não haveis percebido...

- Percebido o quê? - o rosto pálido de Catarina estava lentamente a tornar-se rosado de raiva.

- Princesa?

- Princesa de quê? - retorquiu Catarina asperamente. Lady Margaret fez uma reverência e manteve-se curvada.

Princesa de quê? - berrou Catarina. A porta abriu-se atrás delas e Dona Elvira entrou apressadamente no quarto, detendo-se ao ver Catarina de pé, com o rosto vermelho de fúria, e Lady Margaret de joelhos. Saiu novamente, sem pronunciar palavra.

Princesa da Espanha - disse Lady Margaret, muito tranquilamente.

Fez-se um silêncio profundo.

_ Sou a Princesa de Gales - afirmou Catarina lentamente. -Toda a vida fui a Princesa de Gales.

Lady Margaret levantou-se e encarou-a. _ Agora sois a Princesa Viúva.

Catarina tapou a boca com mão para reter um grito de dor.

-      Lamento. Princesa.

Catarina abanou a cabeça, sem palavras, com o punho na boca, para abafar o seu choro de dor. A expressão de Lady Margaret era

inflexível.

Vão chamar-vos Princesa Viúva.

Nunca responderei por esse nome.

- É um título de respeito. É apenas a expressão utilizada para referir uma mulher que perdeu um marido que era príncipe.

Catarina cerrou os dentes e voltou as costas ã amiga, para olhar pela janela.

- Podeis levantar-vos - disse entre dentes. - Não tendes de vos ajoelhar perante mim.

A mulher mais velha levantou-se e hesitou.

- A rainha escreveu-me. Querem saber como está a vossa saúde. Não apenas se vos sentis bem, e suficientemente forte para viajar; precisam realmente de saber se podeis estar à espera de uma criança.

Catarina apertou as mãos uma contra a outra e voltou o rosto, para que Lady Margaret não pudesse ver a sua raiva.

- Se estiverdes à espera de uma criança, e se essa criança for um rapaz, ele será o Príncipe de Gales, e depois Rei da Inglaterra, e vós podereis ser Sua Alteza, a Mãe do Rei - relembrou-lhe Lady Margaret tranquilamente.

- E se não estiver à espera de uma criança?

- Então, sois a Princesa Viúva, e o príncipe Henrique é o Príncipe de Gales.

E quando o rei morrer?

O príncipe Henrique será rei.

E eu?

Lady Margaret encolheu os ombros em silêncio. "Praticamente nada", dizia o gesto. Em voz alta disse:

- Continuais a ser a Infanta - Lady Margaret tentou sorrir. -Como sereis sempre.

- E a próxima Rainha da Inglaterra? - Será a mulher do príncipe Henrique. A raiva de Catarina explodiu e ela dirigiu-se à lareira, apoiando-se na parte superior para se acalmar. As pequenas chamas não emitiam calor que pudesse sentir através da espessa saia preta d seu vestido de luto. Olhou para as chamas como se. assim. pudes se compreender melhor o que lhe acontecera.

-Tornei-me novamente o que era. quando tinha três anos -disse lentamente. - A Infanta da Espanha, nào a Princesa de Gales Um bebé. Sem qualquer importância.

Lady Margaret, cujo sangue real fora cuidadosamente diluído por um casamento abaixo da sua condição, para que nào pudesse constituir uma ameaça para o Trono Tudor da Inglaterra, acenou com a cabeça.

Princesa, assumis a posição do vosso marido. Para as mulhe­res, é sempre assim. Se não tiverdes marido nem filho, nào tendes qualquer posição. Apenas aquela com que nascestes.

Se voltar para a Espanha como viúva, e me casarem com um Arquiduque, serei a Arquiduquesa Catarina, e nào uma princesa. Não serei Princesa de Gales, e nunca serei Rainha da Inglaterra.

Lady Margaret assentiu.

Como eu - afirmou. Catarina voltou a cabeça.

Vós?

Eu era uma Princesa Plantageneta, sobrinha do rei Eduardo, irmã de Eduardo de Warwick, o herdeiro do trono do rei Ricardo. Se o rei Henrique tivesse perdido a batalha no Campo de Bosworth, seria o rei Ricardo a ocupar o trono agora, o meu irmão, como seu herdeiro e Príncipe de Gales, e eu seria a Princesa Margaret. tal como nasci para ser.

Em vez disso, sois Lady Margaret. esposa do guardião de um pequeno castelo, que nem sequer é dele, na fronteira da Inglaterra.

A mulher mais velha confirmou com a cabeça a fria descrição da sua condição.

-     Porque não recusastes? - perguntou Catarina rudemente. Lady Margaret olhou para trás de si, para se certificai de que a

porta da antecâmara estava fechada e de que nenhuma das damas de companhia de Catarina podia ouvi-la.

- Como poderia recusar? - perguntou simplesmente. - O meu irmão estava na Torre de Londres, só por ter nascido príncipe. Se t tivesse recusado casar com Sir Richard, ter-me-ia juntado a ele. meu irmào teve de pousar a sua querida cabeça no cepo. só por t o nome que tinha. Sendo rapariga, tive oportunidade de mudai meu nome. E foi o que fiz.

- Tínheis hipótese de ser Rainha da Inglaterra' - protestoj

Lady Margaret distanciou-se da energia da jovem mulher.

_ Foi a vontade de Deus - respondeu simplesmente. - A minha oportunidade, tal como era, desapareceu. A vossa também. Tereis de encontrar uma forma de viver o resto da vossa vida sem lamentos. Infanta.

Catarina não disse nada, mas o rosto que mostrou à amiga era fechado e frio.

- Encontrarei uma forma de concretizar o meu destino - afir­mou. - Ar... - Interrompeu-se, não era capaz, de pronunciar o nome dele, nem com a amiga. - Uma vez tive uma conversa sobre reivindicar aquilo que é nosso - disse. - Agora compreendo-a. Terei de ser a minha própria pretendente. Insistirei naquilo que é meu. Sei qual é o meu dever e o que tenho de fazer. Cumprirei a vontade de Deus, sejam quais forem as dificuldades que tenha de enfrentar.

A mulher mais velha acenou com a cabeça.

- Talvez a vontade de Deus seja que aceiteis o vosso destino. Talvez seja a vontade de Deus que vos resigneis - sugeriu.

- Não é - respondeu Catarina firmemente.

Não contarei a ninguém o que prometi. Não contarei a ninguém que, no meu coração, continuo a ser a Princesa de Gales, serei sempre a Princesa de Gales até assistir ao casamento do meu filho e ver a minha nora ser coroada. Não revelarei a ninguém que agora compreendo o que Artur me disse: que mesmo sendo uma princesa por nascimento, posso ter de reivindicar o meu título.

Não disse a ninguém se estou, ou não, à espera de um filho. Mas eu sei. muito bem. Tive as minhas regras em Abril, não tenho nenhum bebé. Não existe nenhuma princesa Maria, nenhum príncipe Artur, o meu amor, o meu único amor está morto e não resta nada dele. nem sequer o seu filho por nascer.Não direi nada, apesar de as pessoas estarem constantemente a intrometer-se e a quererem sempre saber. Tenho de pensar no que o fazer, e como vou reivindicar o trono que Artur queria que e meu. tenho de pensar como vou cumprir a minha promessa, como vou contar a mentira que ele queria que coutasse. Gomo posso torná-la convincente, como posso enganar o próprio rei. e a sua mãe inteligente e de olhar duro.

Mas fiz uma promessa, não retiro a minha palavra. Ele suplicou-me que lhe prometesse e ditou a mentira que tenho de contar eu respondi que sim. Não o desiludirei. Foi a última coisa que me pediu, e eu fá-lo-ei. Vou fazê-lo por ele, e pelo nosso amor.

Oh, meu amor, se soubesses a vontade que tenho de te ver.

Catarina viajou para Londres com as cortinas ela sua liteira debruadas a preto, fechadas, impedindo-a de admirar a beleza do campo, que atingia o seu esplendor. Não viu as pessoas retiraremos chapéus ou fazerem reverências, enquanto o cortejo atravessava as pequenas aldeias inglesas. Não ouviu os homens e mulheres gritarem: "Deus vos abençoe, Princesa!", enquanto a liteira avançava len­tamente pelas ruas das aldeias. Não soube que cada mulher jovem da região se benzeu e rezou para não ter a má sorte da bela prin­cesa espanhola, que viera de tão longe por amor. e perdera o seu homem, cinco meses depois.

Mal se deu conta da verdura da região, da protuberância fértil das colheitas nos campos e do gado robusto nos piados alagados. Quando o caminho se fez através de florestas densas, reparou na frescura da sombra verde, e na espessa folhagem das copas das árvores, entrelaçando-se por cima da estrada. Manadas de veados desapareciam nas manchas de sombra e podia ouvir o canto de um cuco e o matraquear de um pica-pau. Era uma terra bonita, uma terra rica, uma excelente herança para um casal jovem. Pensou no desejo de Artur de protegê-la dos Escoceses, dos Mouros. Da sua vontade de reinar aqui, de um modo melhor e mais justo do que alguma vez se reinara.

Não falou com os seus anfitriões ao longo da viagem, que atribuíram o seu silêncio ao sofrimento, e se apiedaram dela por isso. Não trocou uma palavra com as aias, nem sequer com Maria, que permanecia ao seu lado, numa compaixão silenciosa, nem com Dona Elvira que, nesta crise espanhola, tratava de tudo: o seu man­do organizava as casas onde se alojariam ao longo do percurso, ela própria organizava as refeições da princesa, o leito, as damas de companhia, a dieta. Catarina não falava, e deixava que fizessem com ela o que lhes aprouvesse.

Alguns dos seus anfitriões consideraram que estava tão afundada na dor que não era capaz de pronunciar uma palavra, e rezavam para que recuperasse as forças, que voltasse à Espanha e fizesse um novo casamento, que lhe trouxesse um novo marido, para substituir o antigo. O que não sabiam era que Catarina guardava a dor pela perda do marido num lugar oculto, no mais profundo de si mesma. Atrasou deliberadamente o luto até ter a certeza de que dedicar-se a ele. Durante a sua atribulada viagem na liteira, não chorava por Artur, esforçava-se por encontrar uma forma de concretizar o sonho do marido. Perguntava-se como poderia obedecer-lhe, tal como ele lho pedira. Questionava-se sobre como seria possível cumprir a promessa que fizera, no seu leito de morte, ao único jovem que alguma vez amara.

Vou ter de ser inteligente. Terei de ser mais astuciosa do que o rei Henrique Tudor, mais determinada do que a sua mãe. Diante daqueles dois, não sei se conseguirei o que pretendo. Mas tenho de conseguir. Fiz a promessa, vou contar a minha mentira. A Inglaterra será governada como Artur pretendia. A rosa viverá de novo, construirei a Inglaterra que ele queria.

Quem me dera poder ter trazido Lady Margaret comigo, para me aconselhar, sinto falta da sua amizade, da sua sabedoria experiente. Gostava de poder fixar o seu olhar franco e ouvir os seus con­selhos para me resignar, para me vergar ao meu destino, para me entregar à vontade de Deus. Não seguiria os seus conselhos - mas gostaria de poder ouvi-los.

 

                         Croydon, Maio de 1502

A princesa e a sua comitiva chegaram ao Palácio ele Croydon Dona Elvira levou Catarina para os seus aposentos privados. Desta vez, a rapariga não foi para o seu quarto de dormir, nem fechou a porta atrás de si, ficou na sumptuosa antecâmara, olhando em volta.

- Uma sala adequada a uma princesa - disse.

- Mas não é a vossa - respondeu Dona Elvira, preocupada pelo estatuto da sua protegida. - Não vos foi concedida. E apenas para que a utilizeis.

A jovem acenou com a cabeça.

- É adequada - afirmou.

O embaixador espanhol aguarda-vos - comunicou-lhe Dona Elvira. - Quereis que diga que não o recebereis?

Eu recebo-o - respondeu Catarina tranquilamente. - Dizei-lhe que entre.

- Não tendes de...

- Pode trazer notícias da minha mãe - disse ela. - Gostava de receber os conselhos dela.

A ama fez uma vénia e saiu, para ir ter com o embaixador. Este conversava animadamente na galeria exterior â antecâmara da prin­cesa, com o padre Alessandro Geraldini, o capelão da princesa. Dona Elvira olhou-os com desagrado. O capelão era um homem alto, bonito, a sua compleição morena contrastava com a do acom­panhante. O embaixador, Dr. de Puebla, parecia pequeno ao lado dele, e estava encostado a uma cadeira para suportar a sua coluna deformada, a sua perna aleijada estava entalada atrás da outra, o seu rosto claro estava animado de emoção.

- Ela está à espera de uma criança? - confirmou o embaixador um murmúrio. - Tendes a certeza? - Rezo a Deus para que esteja. Ela espera seguramente que assim seja - confirmou o confessor.  _ Dr. de Puebla! - chamou a ama, incomodada com o ar de secretismo entre os dois. - Vou levar-vos à princesa agora.

- Com certeza, Dona Elvira - respondeu ele, com o mesmo ar. _ imediatamente.

De Puebla entrou no quarto a coxear, com o chapéu preto rica­mente orlado na mão, o rosto emoldurado num sorriso pouco con­vincente. Inclinou-se numa vénia com um floreio, e levantou-se para analisar a princesa.

De imediato, ficou surpreendido pelo quanto ela havia mudado em tão pouco tempo. Viera para a Inglaterra ainda menina, com o optimismo de uma menina. Considerara-a uma criança mimada, que fora protegida das dificuldades da vida real. No palácio de con­tos de fadas do Alhambra, aquela fora a filha mais nova e mais mimada dos poderosos monarcas da Cristandade. A sua viagem para a Inglaterra fora a primeira contrariedade que fora obrigada a suportar, e queixara-se dela amargamente, como se ele pudesse alterar as condiçoes climatéricas. No dia do casamento, ao lado de Artur e ao ouvir as saudações por ele, fora a primeira vez que esti­vera em segundo lugar em relação a alguém que não fossem os seus heróicos pais.

Mas, diante de si, estava agora uma rapariga que fora impelida pela infelicidade a tomar-se madura. Esta Catarina era mais magra e mais pálida, mas com uma nova beleza espiritual, moldada pelas dificuldades. Susteve a respiração. Esta Catarina era uma jovem com presença de uma rainha. Através da dor, tornara-se, não apenas a viuva de Artur, mas a filha da sua mãe. Esta era uma princesa da linhagem que derrotara o inimigo mais poderoso da Cristandade. Era o próprio osso do osso e sangue do sangue de Isabel de Castela. Era fria, dura. Desejava bastante que não fosse ser difícil lidar com ela.

De Puebla lançou-lhe um sorriso que pretendia ser reconfortante, e viu-a analisá-lo sem lhe retribuir a expressão calorosa, endeu-lhe a mão e sentou-se na cadeira de madeira de costas direitas. diante da lareira.

- Podeis sentar-vos - disse-lhe graciosamente, apontando para uma cadeira mais baixa, a alguma distância.

Ele fez mais uma vénia e sentou-se.

- Tendes alguma mensagem para mim?

- De condolências, do rei e da rainha Isabel, e de Sua Alteza a Mãe do Rei. e minha, claro. Vão convidar-vos a comparecer na corte, quando estiverdes recomposta da vossa viagem e tiverd— concluído o luto.

- Quanto tempo deverei guardar o luto? - perguntou Catar

- Sua Alteza, a Mãe do Rei, afirmou que devíeis permanecer reclusão por um mês após o funeral. Mas, uma vez que nào e.; vestes na Corte durante esse tempo, decidiu que permanecer aqui, até ela vos ordenar que regresseis a Londres. Está preocupa com a vossa saúde...

Fez uma pausa, esperando que ela dissesse espontaneamen' se estava, ou nào, à espera de uma criança, mas a princesa prolo­gou o silêncio.

Pensou que devia perguntar-lhe directamente.

- Infanta...

- Deveríeis chamar-me princesa - interrompeu-o. - Sou a Princesa de Gales.

Ele hesitou, sem saber o que fazer.

- Princesa Viúva - corrigiu-a calmamente.

- Com certeza. Já percebi. Tendes alguma carta da Espanha? Ele fez uma vénia e entregou-lhe a carta que trazia no

oculto da sua manga. Ida nào lha arrancou das mãos, como ur criança, para a abrir. Acenou com a cabeça em sinal de agrade: mento e pegou nela.

- Quereis abri-la agora? Nào quereis responder?

Quando tiver escrito a minha resposta, mando chamar-v respondeu simplesmente, afirmando o seu poder sobre ele. Mandarei chamar-vos, quando precisar de vós,

Com certeza. Vossa Graça. - passou a mão pelo veludo d calções pretos para esconder a sua irritação, mas no seu inten considerou uma impertinência o facto de a Infanta, agora uma viu dar ordens, em situações em que, enquanto Princesa de Gales, pe educadamente. Pensou que, afinal, talvez nào lhe agradasse nova e refinada Catarina.

Tivestes notícias da Espanha, de Suas Majestades? - pergunt ela. - Aconselharam-vos, indicando quais seriam os seus desejos.

Sim - respondeu ele, perguntando-se o quanto lhe deve contar. - Claro. A rainha Isabel está preocupada que vós não estejais bem. Pediu-me que me informasse da vossa saúde e que transmitisse.

Uma sombra secreta atravessou o rosto de Catarina.

- Vou escrever à rainha, minha mãe e dar-lhe notícias minhas, _ disse ela.

- Ela estava ansiosa por saber... - começou ele, tentando obter a resposta à principal questão: "Havia um herdeiro? A princesa estava à espera de um filho?"

_ Não confiarei em mais ninguém, além da minha mãe.

- Não poderemos continuar a tratar da vossa herança, com as negociações, até sabermos - respondeu ele friamente. - Isso faz toda a diferença.

Ela não se exaltou como ele pensara que aconteceria. Inclinou a cabeça, controlando-se.

- Vou escrever à minha mãe - repetiu, como se os seus con­selhos não tivessem importância nenhuma.

Percebeu que não obteria mais nenhuma informação dela. Mas. pelo menos, o capelão dissera-lhe que ela poderia estar à espera de uma criança, ele deveria saber. O rei ficaria feliz por saber que havia, pelo menos, a possibilidade de existir um herdeiro. De qual­quer forma, ela não o negara. Poderia tirar-se algum partido do seu silêncio.

- Então, deixar-vos-ei, para que possais ler a vossa carta - fez uma vénia.

Ela esboçou um gesto casual, indicando que ele podia sair, e voltou-se para olhar para as chamas da pequena lareira de Verão. Ele voltou a fazer uma vénia e. quando ela já não estava a olhar para ele, analisou a sua silhueta. Não apresentava sinais de gravidez, mas algumas mulheres passavam muito mal nos primeiros meses. A sua palidez poderia ser provocada pelos enjoos matinais. Era impossível para um homem adivinhar. Teria de confiar na opinião do seu confessor, e transmiti-la com precaução.

Abro a carta da minha mãe com as mãos a tremer tanto que quase não consigo quebrar o lacre. A primeira coisa que vejo é a Cidade da carta, apenas uma página.

- Oh, Madre - suspiro. - Só isto?Talvez tivesse sido escrita à pressa; mas sinto-me muito magoada que me escreveu tão pouco! Se soubesse o quanto quero ouvir a sua voz, ter-me-ia escrito o dobro do que escreveu. Deus é a minha testemunha de que penso que não serei capaz de fazer isto sem ela; só tenho dezasseis anos e meio, preciso da minha mãe.

Leio a breve carta de uma vez, e depois, quase incrédula, volto a lê-la.

Não é uma carta de uma mãe extremosa para a filha. Não é uma carta de uma mulher para a sua filha preferida, quando essa filha se encontra no limiar do desespero. Fria, poderosamente, escreveu-me uma carta de uma rainha para uma princesa. Escreve ape­nas sobre o negócio. Poderíamos ser dois mercadores que negoceiam uma transacção.

Afirma que devo ficar em qualquer casa que me seja disponi­bilizada, até ter o meu próximo período e saber que não estou grávida. Se for esse o caso, devo ordenar ao Dr. de Puebla que solicite o meu quinhão, na qualidade de Princesa Viúva de Gales e, assim que tenha recebido todo o dinheiro, e não antes (sublinhado para que não haja enganos), devo apanhar um navio para a Espanha.

Se, por outro lado, Deus for gracioso, e eu estiver à espera de uma criança, então, devo assegurar ao Dr. de Puebla que o mon­tante do meu dote será pago em dinheiro e de imediato, ele deve garantir-me a minha mesada como Princesa Viúva de Gales, e eu devo descansar e esperar ter um rapaz.

Devo escrever-lhe imediatamente e dizer-lhe se penso que estou ã espera de uma criança. Devo escrever-lhe, assim que tiver a certe­za, de uma coisa ou da outra, e devo confiar igualmente no Dr. de Puebla, e manter-me sob a protecção de Dona Elvira.

Dobro a carta cuidadosamente, juntando as extremidades, como se o aprumo fosse de extrema importância. Penso que se ela soubesse do desespero que rodeia a minha mente, como um rio de escuridão, ter-me-ia escrito num tom mais simpático. Se soubesse como me sinto só, como estou desesperada, as saudades que tenho dele, não me falaria de acordos, pensões ou títulos. Se soubesse quanto o amava e como não suporto viver sem ele. escrever-me-ia e dir-me-ia que me ama, que devo voltar já para casa. para junto dela, sem esperar mais.

Meto a carta no bolso da cintura, e ponho-me de pé. como se me apresentasse para o meu dever. Já não sou nenhuma criança. Não vou chorar pela minha mãe. Vejo que não estou nas graças especiais de Deus. uma vez que pôde deixar Artur morrer. Vejo que não estou nas graças especiais da minha mãe. visto que ela foi capaz de deixar sozinha, numa terra estranha.

Ela não é apenas mãe, é a Rainha da Fspanha. e tem de certificar de que tem um neto, ou se não tiver um neto, quer um

tratado perfeito. Não sou apenas uma jovem que perdeu o homem que ama. Sou a Princesa da Espanha e tenho de gerar um neto, ou, se isso não for possível, um tratado perfeito. E, além disso, estou vinculada por uma promessa. Prometi que voltaria a ser Princesa de Gales, e Rainha da Inglaterra. Prometi-o ao jovem a quem pro­meti tudo. Cumpri-la-ei, por ele, independentemente da vontade alheia.

O embaixador espanhol não entrou logo em contacto com Suas Majestades da Espanha. Ao invés, fazendo o seu habitual jogo duplo, transmitiu primeiro a opinião do capelão ao Rei da Inglaterra.

- O confessor afirma que ela está à espera de uma criança -alegou.

Pela primeira vez em muitos dias, o rei Henrique sentiu o coração tornar-se mais leve.

-Óptimo, Meu Deus, se isso fosse verdade, mudava tudo.

Deus permita que assim seja. Eu congratular-me-ia - concor­dou de Puebla. - Mas não posso garanti-lo. Ela não mostra sinais nesse sentido.

Ainda pode ser cedo - concordou Henrique. - E, sabe Deus, e eu sei que, uma criança no berço não equivale a ter um príncipe no trono. Há um longo caminho a percorrer até chegar à coroa. Mas seria um grande conforto para mim, se ela estivesse à espera de uma crian­ça, assim como para a rainha - acrescentou como uma reflexão.

Então, ela vai ter de ficar aqui na Inglaterra até termos a cer­teza - concluiu o embaixador. - E se não estiver grávida, acertaremos as nossas contas, vós e eu, e ela regressará a casa. A mãe pede que seja levada para casa, logo que possível.

- Esperemos para ver - disse Henrique, não admitindo nada. -mãe vai ter de esperar, como todos nós. E se estiver ansiosa para

ter a filha de volta a casa, é melhor que pague o resto do dote.

-Não atrasaríeis a devolução da princesa à mãe por uma questão de dinheiro - sugeriu o embaixador.

- Quanto mais depressa tudo se resolver, melhor - afirmou Henrique suavemente. - Se ela estiver à espera de uma criança, então, é nossa filha e a mãe do nosso herdeiro; nada seria demasiado bom para ela. Se isso não se verificar, pode voltar para casa, junto da mãe, assim que o dote esteja pago.

Eu sei que não há nenhuma Maria a desenvolver-se no meu útero, não há nenhum Artur, mas não direi nada até saber o que fazer. Atrevo-me a não dizer nada, até ter a certeza do que devo fazer. A minha mãe e o meu pai estarão a fazer planos em prol do que será melhor para a Espanha, o rei Henrique deve estar a planear o melhor para a Inglaterra. Sozinha, terei de encontrar uma forma de cumprir a minha promessa. Ninguém me ajudará. Ninguém pode, sequer, saber o que estou a fazer. Só Artur, no céu, compreenderá o que estou a fazer e sinto-me longe, muito longe dele. É tão doloroso, é uma dor que eu não podia imaginar. Nunca precisei tanto dele como agora, agora que está morto, e só ele pode aconse­lhar-me sobre como cumprir a promessa que lhe fiz.

Catarina passara menos de um mês em reclusão no Palácio de Croydon quando o capelão do rei veio dizer-lhe que a Casa de Durham, na Strand, fora preparada para ela e que poderia mudar-se para lá quando quisesse.

É aí a residência habitual de uma Princesa de Gales? - perguntou Catarina, urgentemente a de Puebla, que fora chamado de imediato aos seus aposentos privados. - Seria na Casa de Durham que uma princesa moraria? Porque não posso voltar a viver no Castelo de Baynard?

A Casa de Durham é perfeitamente adequada - insistiu ele, retraindo-se pelo fervor dela. - E o vosso séquito não foi reduzido. O rei não mandou despedir ninguém. Ireis ter uma corte adequada. E ele vai pagar-vos uma mesada.

- O meu quinhão, como viúva do príncipe? Ele evitou o olhar dela.

- Por enquanto, será uma mesada. Não vos esqueçais de que ele ainda não recebeu o vosso dote, por parte dos vossos pais, por isso, não vai pagar-vos o vosso quinhão. Mas vai dar-vos uma boa quantia, que vai permitir-vos manter a vossa condição.

- Eu devia receber o meu quinhão.

Ele abanou a cabeça.

- O rei não vos pagará o quinhão até receber o dote completo. Mas é uma boa mesada, ireis manter um bom nível de vida.

Percebeu que ela estava imensamente aliviada.

- Princesa, não há dúvida de que o rei respeita a vossa posição _ indicou cuidadosamente. - Não deveis ter receios quanto a esse aspecto. Claro, se ele pudesse ter certezas relativamente ao vosso estado de saúde...

Mais uma vez, a expressão fechada desceu sobre o rosto de Catarina.

-Não sei a que vos referis - disse secamente. - Eu estou bem. Podeis dizer-lhe que estou bem. Nada mais.

Estou a ganhar tempo, deixando-os pensar que estou à espera de uma criança. É uma agonia tão grande, saber que o meu perío­do chegou e partiu, que estou pronta para a semente de Artur, mas ele está frio e partiu e nunca voltará à minha cama, e nunca fare­mos a filha dele, Maria, nem o filho dele, Artur.

Não suporto dizer-lhes a verdade: não fui fecundada, não tenho um bebé para educar por ele. E enquanto eu não digo nada, eles também têm de esperar. Não me vão enviar de volta para a Espanha, enquanto tiverem esperanças de que ainda possa ser Sua Alteza, a Mãe do Príncipe de Gales. Têm de esperar.

E, enquanto esperam, posso planear o que direi, e o que farei. Tenho de ser esperta, como a minha mãe seria, e matreira, como a raposa, o meu pai. Tenho de ser determinada como ela, e dissimu­lada como ele. Tenho de pensar como e quando vou começar a con­tar esta mentira, a grande mentira do príncipe Artur. Se conseguir contá-la de forma a convencer toda a gente, se conseguir colocar-me numa posição em que possa cumprir o meu destino, então Artur, querido Artur, pode fazer como desejava. Pode governar a Inglaterra através de mim, posso casar com o seu irmão e tornar-me rainha. Artur pode viver através do filho que eu conceber com o irmão, podemos construir a Inglaterra que ele jurou que construiríamos, apesar do infortúnio, apesar da loucura do irmão, apesar do meu próprio desespero.

Não vou entregar-me ao desgosto, entregar-me-ei ã Inglaterra. Cumprirei a minha promessa. Serei fiel ao meu marido e ao meu destino. Planearei, conspirarei e analisarei como vou poder dominar esta infelicidade e ser o que nasci para ser. Como serei a pretendente ao trono que se torna rainha.

 

                     Londres, Junho de 1502

A pequena corte mudou-se para a Casa de Durham nos finais de Junho e o resto do séquito de Catarina foi chegando aos poucos vindo do Castelo de Ludlow, falando de uma cidade em silêncio e de um castelo em luto. Catarina não parecia particularmente entusiasmada com a mudança de cenário, apesar de a Casa de Durham ser um palácio bonito, com jardins agradáveis, que se estendiam até ao rio, com as suas próprias escadas e um molhe para os barcos. O embaixador veio visitá-la e encontrou-a na galeria em frente de casa, que dava para o pátio de entrada e, lá em baixo, a Ivy Lane.

Deixou-o apresentar-se diante dela.

- Vossa Graça, a rainha vossa mãe vai enviar um emissário para vos escoltar até casa, assim que o vosso quinhão de viúva seja pago. Uma vez que não nos haveis dito que esperais uma criança, ela está a tratar dos preparativos para a vossa viagem.

De Puebla viu os seus lábios cerrados, como se tentassem refrear uma resposta apressada.

- Quanto é que o rei tem de me pagar, como viúva do se filho?

- Tem de pagar-vos um terço das receitas de Gales, da Cornualha e de Chester - respondeu ele. - E os vossos pais solicitam agora que, além disso, o rei Henrique devolva a totalidade do vosso dote.

Catarina pareceu consternada.

- Ele nunca o fará - disse friamente. - Nenhum emissário será capaz de convencê-lo. O rei Henrique nunca pagará um valor desses por mim. Nem sequer me pagava a mesada quando o filho era vivo. Porque haverá de me devolver o dote e pagar-me o meu quinhão, se não ganha nada com isso?

O embaixador encolheu os ombros.

- Está no contrato.

- Assim como a minha mesada, e não conseguistes obrigá-lo a pagar-ma - disse ela de modo cortante.

- Devíeis ter entregue a vossa baixela, assim que chegastes.

_ E comia com quê? - perguntou irritada.

De um modo insolente, manteve-se de pé diante dela. Ele sabia, o que ela ainda não compreendera, que não tinha qualquer poder. A cada dia que passava sem que anunciasse que estava à espera de um filho, a sua importância diminuía. Ele tinha a certeza de que ela não estava grávida. Considerava-a uma louca; conseguira ganhar algum tempo graças à sua discrição - mas para quê? O facto de ela não gostar dele tinha muito pouca importância: em breve ela teria desaparecido. Poderia ficar enfurecida, mas nada mudaria.

- Porque é que alguma vez concordastes com um contrato des­tes? Devíeis saber que ele não o honraria.

Ele encolheu os ombros. A conversa não fazia qualquer sentido.

- Como poderíamos imaginar que algo de tão trágico aconteceria? Quem poderia imaginar que o príncipe morreria, mal entrasse na idade adulta? É tão triste.

Sim, sim - retorquiu Catarina. Prometera a si mesma que nunca choraria por Artur diante de ninguém. As lágrimas tinham de ser controladas. - Mas agora, graças a este contrato, o rei está bas­tante endividado para comigo. Tem de devolver o dote que lhe foi pago, não pode ficar com a minha baixela, e deve-me o meu qui­nhão. Embaixador, eleveis saber que ele nunca pagará tudo isso, E é evidente que jamais me entregará as rendas de - onde? - Gales e. e Cornualha? - nunca.

Só até voltardes a casar - observou ele. - Tem de pagar-vos o vosso quinhão até voltardes a casar. E temos de pressupor que voltareis a casar em breve. Suas Majestades quererão que regresseis a casa, para vos arranjar um novo casamento. Estou convencido de que o emissário vem buscar-vos, exactamente por esse motivo. Provavelmente já têm um novo contrato de casamento elaborado. Talvez, já estejais prometida.

Por um momento, de Puebla viu o choque no rosto dela. depois, ela voltou-lhe abruptamente as costas para olhar para fora da janela, para o pátio à frente do palácio e os portões abertos para as movimentadas aias no exterior.

Observou os seus ombros contraídos e a tensa curva do pescoço, surpreendido por a sua alusão a um segundo casamento a ter atingido tão violentamente. Porque ficaria ela tão chocada com a menção do casamento? Com certeza, devia saber que só iria voltar para casa para se casar novamente.

Catarina permitiu que o silêncio se prolongasse enquanto observava a rua para lá do portão da Casa de Durham. Era tão diferente da sua casa. Não havia homens morenos com belas túnicas não havia mulheres com véus. Não havia vendedores de rua cç>-ricas pilhas de especiarias, nem vendedores de flores, a cambale sob pequenas montanhas de flores. Não havia ervanários, físicos astrónomos, dedicando-se ao seu ofício, como se o conhecinie estivesse disponível, gratuitamente, para todos. Não havia mo mentaçòes silenciosas em direcção à mesquita para as oraçoi cinco vezes por dia, não se ouvia o ruído constante cias fontes. A invés, havia a azáfama de uma das maiores cidades do mundo, implacável, imparável burburinho da prosperidade e do comércio, o repicar dos sinos de centenas de igrejas. Esta era uma cidade rebentar de confiança, rica no seu próprio comércio, exuberam mente rica.

- Agora, esta é a minha terra - disse. Decididamente, pusera parte as imagens na sua mente de uma cidade mais quente, de u comunidade mais pequena, de um mundo mais tranquilo e m ' exótico. - O rei não deve pensar que eu vou voltar para casa e cas novamente, como se nada disto tivesse acontecido. Os meus pa: não devem pensar que podem mudar o meu destino. Eu fui educa da para ser a Princesa de Gales e Rainha da Inglaterra. Não vou s afastada como uma dívida não saldada.

O embaixador, que pertencia a uma raça que conhecera desapontamento, bastante mais velho e sábio do que a rapariga q estava, de pé, junto da janela, sorriu nas suas costas.

- Claro que tudo será como desejais - mentiu com facilidad - Escreverei ao vosso pai e ã vossa mãe e dir-lhes-ei que prefe aguardar aqui, na Inglaterra, enquanto o vosso futuro se decide.

Catarina contra-atacou.

Não, eu decidirei o meu futuro. Teve de se refrear para esconder o sorriso.

Claro que decidireis, Infanta.

Princesa Viúva.

Princesa Viúva.

Ela respirou fundo; mas quando a voz lhe saiu era bastan

firme.

Podeis comunicar ao meu pai e à minha mãe. e direis ao que não estou à espera de nenhuma criança.

Com certeza - suspirou ele. - Obrigado por nos infon Isso torna tudo muito mais claro.

- De que forma?

- O rei libertar-vos-á. Podeis voltar para casa. Não terá qu quer reivindicação a fazer a vosso respeito, nenhum interesse em Vós. Não há nenhum motivo para ficardes. Terei de tratar dos pre­parativos, mas o vosso quinhão pode ir depois de vós. Podeis par­tir imediatamente.

- Não - respondeu ela friamente. De Puebla ficou surpreendido.

Princesa Viúva, podeis ser libertada deste fracasso. Podeis voltar para casa. Sois livre para partir.

Quereis dizer que os Ingleses pensam que já não sino para nada?

Ele encolheu ligeiramente os ombros, como se perguntando: "Para que serviria, visto já não ser donzela, nem ser mãe?"

- Que mais podereis fazer aqui? O vosso tempo aqui acabou. Ela ainda não estava preparada para lhe apresentar o plano completo.

- Escreverei à minha mãe - foi tudo o que respondeu. - Mas não eleveis tratar de quaisquer preparativos para a minha partida. Pode muito bem acontecer que eu fique na Inglaterra um pouco mais. Se tenho de voltar a casar, posso fazê-lo na Inglaterra.

Com quem? - perguntou ele. Ela desviou o olhar dele.

Como posso saber? Devem ser os meus pais e o rei a decidir.

Tenho de descobrir uma forma de colocar o meu casamento com Henrique na cabeça do rei. Agora que sabe que não estou à espera de um filho, seguramente vai ocorrer-lhe que a solução de todos os nossos problemas será casar-me com Henrique?

Se confiasse mais no Dr. de Puebla, deveria pedir-lhe para suge­rir cio rei que eu poderia ser prometida a Henrique. Mas não confio nele. fez uma grande confusão com o contrato do meu primeiro casamento. não quero que faça o mesmo com o outro.

Se conseguisse enviar uma carta à minha mãe. sem que de Puebla a risse, poderia contar-lhe o meu plano, o plano de Artur.

Mas não posso. Estou sozinha nisto. Sinto-me tão temerosa­mente sozinha.

- Vão nomear Henrique como o novo Príncipe de Gales -informou Dona Elvira, calmamente à princesa, enquanto lhe esco­vava o cabelo, na última semana de Junho. - Ele vai ser o Príncipe Henrique, Príncipe de Gales.

Esperava que a rapariga desatasse a chorar com este último corte das ligações ao passado, mas Catarina não fez nada senão olhar em volta do quarto.

- Deixai-nos - disse secamente para as criadas que estavam a preparar a camisa de dormir e a abrir a cama.

Saíram calmamente, fechando a porta atrás de si. Catarina ati­rou o cabelo para trás e fixou os olhos de Dona Elvira no espelho. Devolveu-lhe a escova do cabelo e fez-lhe um gesto com a cabeça, para que continuasse.

- Quero que escrevais aos meus pais e lhes conteis que o meu casamento com o príncipe Artur não foi consumado - disse, suave­mente. - Sou virgem, tal como era quando saí da Espanha.

Dona Elvira ficou espantada, suspendendo a escova no ar, de boca aberta.

Vós dormistes juntos diante de toda a corte - disse ela.

Ele era impotente - afirmou Catarina, com uma expressão tão dura como um diamante.

Estivestes juntos uma vez por semana.

Sem qualquer efeito - retorquiu ela, sem vacilar. - Era uma grande tristeza para ele, e para mim.

- Infanta, nunca dissestes nada. Porque não me haveis dito? Os olhos de Catarina estavam cheios de lágrimas.

- O que poderia dizer? Tínhamos acabado de nos casar. Ele era muito jovem. Pensei que tudo se comporia com o tempo.

Dona Elvira nem sequer fingiu acreditar nela.

- Princesa, não necessitais de dizer uma coisa dessas. Só por­que fostes esposa, não precisais de estragar o vosso futuro. Ser viúva não é obstáculo para um bom casamento. Encontrarão alguém para vós. Encontrarão um bom companheiro para vos. não tendes de fin­gir...

- Não quero "alguém" - respondeu Catarina ferozmente. Deveis sabê-lo tão bem como eu. Eu nasci para ser Princesa Gales e Rainha da Inglaterra. O maior desejo de Artur era que e fosse Rainha da Inglaterra. - Impediu-se de pensar nele, ou acrescentar mais alguma coisa. Mordeu o lábio; não devia ter tentado dizer o nome dele. Forçou as lágrimas a cair e respirou fundo Sou uma virgem intocada, agora, tal como era na Espanha. Deve dizer-lhes isso.

Mas não precisamos de dizer nada, de qualquer forma, podemos voltar para a Espanha - relembrou-lhe a mulher mais velha.

Vão casar-me com um lorde qualquer, talvez um arquiduque, _ disse Catarina. - Não quero que me mandem embora. Quereis administrar o meu séquito num pequeno castelo espanhol? Ou na Áustria? Ou num sítio pior? Tereis de vir comigo, não vos esqueçais. Quereis acabar na Holanda, ou na Alemanha?

Os olhos de Dona Elvira afastaram-se, pensava furiosamente.

Ninguém acreditaria em nós, se dissésseis que sois virgem.

Acreditariam sim. Tendes de lhes dizer. Ninguém se atreveria a perguntar-mo. Podeis dizer-lhes. Tendes de ser vós a contar-lhes. Acreditarão em vós, porque me sois próxima, como uma mãe.

Eu não disse nada até agora.

E procedestes bem. Mas direis agora. Dona Elvira, se fingirdes não saber, ou se disserdes uma coisa e eu outra, todos saberão que não sois da minha confiança, que não haveis cuidado de mim como deveríeis. Pensarão que sois negligente com os meus interes­ses, que perdestes o meu apoio. Eu penso que a minha mãe vos desacreditaria se pensasse que eu era virgem e que vós nem sequer soubésseis. Nunca voltaríeis a prestar serviços numa corte real, se pensassem que me havíeis negligenciado.

Todos perceberam que ele estava apaixonado por vós.

- Não, não perceberam. Todos viram que estávamos juntos, como príncipe e princesa. Todos viram que ele vinha ao meu quar­to, apenas como lhe haviam ordenado. Não passou disso. Ninguém pode saber o que se passou para além da porta do quarto. Ninguém, além de mim. E eu digo que ele era impotente. Quem sois vós para o negar? Atreveis-vos a chamar-me mentirosa?

A mulher mais velha inclinou a cabeça para ganhar tempo.

- Se o afirmais - disse cuidadosamente. - O que quer que digais, Infanta.

Princesa.

Princesa - repetiu a mulher.

- E afirmo-o. É o caminho que tenho diante de mim. Na ver­dade, é o vosso também. Podemos fazer esta afirmação simples e Permanecer na Inglaterra; ou podemos regressar a Espanha, de luto, e tornarmo-nos insignificantes.

Claro, posso dizer-lhes o que quiserdes. Se desejais dizer que vosso marido era impotente e que ainda sois uma donzela, posso dizê-lo. Mas como é que isso fará de vós rainha?

Uma vez que o casamento não foi consumado, não poderá haver qualquer objecção ao facto de eu casar com o irmão do prín­cipe Artur, o príncipe Henrique - afirmou Catarina num tom duro e determinado.

Dona Elvira soltou um suspiro, chocada ao ouvir a fase seguinte Catarina prosseguiu.

- Quando este novo emissário chegar da Espanha, podeis informado de que é a vontade de Deus, e meu desejo, que eu volte a ser Princesa de Gales, como sempre fui. Deverá falar com o rei Negociará, não o meu quinhão de viúva, mas o meu próximo casa­mento.

Dona Elvira estava boquiaberta.

- Não podeis decidir o vosso próprio casamento.

- Posso - afirmou Catarina agressivamente. - Vou fazê-lo e vos ireis ajudar-me.

- Não podeis pensar que permitirão que o príncipe Henrique se case convosco?

Porque não permitiriam? O casamento com o irmão não foi consumado. Sou virgem. Metade do dote para o rei já foi paga. Ele pode ficar com a metade que já recebeu e podemos entregar-lhe o restante. Não precisa de pagar o meu quinhão. O contrato foi assi­nado e selado, só têm de mudar os nomes, e aqui estou eu, já na Inglaterra. É a melhor solução para todos. Sem ela, torno-me insig­nificante; vós certamente sois insignificante. A vossa ambição, a do vosso marido, tudo acabará em nada. Mas se conseguirmos con­vencê-lo, vós sereis a ama de uma casa real e eu serei o que devo ser: Princesa de Gales e Rainha da Inglaterra.

Não nos deixarão! - suspirou Dona Elvira, aterrada pela ambi­ção da sua protegida.

Vão deixar-nos - afirmou Catarina ferozmente. - Temos de lutar por isso. Temos de ser o que deveríamos ser, nada menos.

 

                               Inverno de 1503

O rei Henrique e a rainha, motivados pela perda do filho, esta­vam à espera de outra criança, e Catarina, esperando receber o seu apoio, estava a costurar um requintado enxoval de recém-nascido, diante de uma pequena lareira, na sala mais pequena do Palácio de Durham, nos primeiros dias de Fevereiro de 1503. As suas aias, fazendo as bainhas conforme as suas habilidades, estavam sentadas a alguma distância; Dona Elvira podia falar com privacidade.

- Este devia ser o enxoval do vosso bebé - afirmou a ama, res­sentidamente. - Viúva há um ano e ainda não há progressos. Que vai ser de vós?

Catarina levantou o olhar do seu trabalho delicado, com fio preto.

- Calma, Dona Elvira - disse tranquilamente. - Será como Deus e os meus pais decidirem.

-Já tendes dezassete anos - afirmou Dona Elvira, insistindo teimosamente no mesmo tema. de cabeça baixa. - Quanto tempo ficaremos neste maldito país. sem serdes noiva nem esposa? Sem ser

ninguém na corte, nem em parte nenhuma? Com contas a acumularem-se e o quinhão por pagar?

- Dona Elvira, se soubésseis o quanto as vossas palavras me magoam, não me parece que as dissesses - disse Catarina claramente - Só porque as murmurais para a vossa costura, como se fosseis um egípcio a rogar pragas, isso não significa que eu não as ouça. Se eu soubesse o que vai acontecer, seria eu própria a dizer-vos imediatamente. Não ficareis a saber mais, só por murmurar os vossos receios.

A mulher levantou a cabeça e fixou os olhos nus de Catarina

- E em vós que estou a pensar - respondeu friamente Mesmo que mais ninguém o faca   Mesmo que aquele ridículo embaixador e aquele idiota daquele emissário não o façam. Se o rei não ordenar que caseis com o príncipe, o que vai ser de vós? Se ele não vos deixar partir, se os vossos pais não insistirem no vosso regresso, o que vai acontecer? Vai manter-vos aqui pari sempre? Sois uma princesa ou uma prisioneira? Já passou quase um ano. Sois refém, em nome da aliança com a Espanha? Quanto tempo pode esperar? Tendes dezassete anos, quanto tempo mais podeis es

- Estou à espera - retorquiu Catarina com tranquilidade. - Pacientemente. Ate estar tudo resolvido.

A ama não disse mais nada, Catarina não tinha energia para cutir. Sabia que durante aquele ano de luto por Artur, fora pe tentemente empurrada para as margens da vida da corte. A sua gação de ainda ser virgem não dera lugar a um novo comproml como ela pensara que daria; tornara-a ainda mais irrelevante. Só convocada para comparecer na corte em grandes ocasiões, e de estava dependente da simpatia da rainha Isabel.

A mãe do rei, Lady Margaret, não tinha interesse na empo cida princesa espanhola. Não provara ser fértil, agora dizia que nunca tivera relações sexuais, era viúva e não trouxe mais dinheiro para o tesouro real. Não tinha qualquer utilidade para a Casa Tudor, excepto como uma base de licitação, na eterna luta com a Espa Bem podia permanecer na sua casa na Strand. em vez de ser o macia para a corte. Além disso, Sua Alteza, a Mãe do Rei, não tava da forma como o novo Príncipe de Gales olhava para a cunhada viúva.

Sempre que o príncipe Henrique a encontrava, cravava olhos nela, com uma devoção de cachorrinho. Sua Alteza, a Mãe Rei, decidira em privado que os manteria afastados. Considera que o sorriso da princesa para o jovem príncipe era demasiado cal roso, que ela incentivava a sua adoração juvenil para alimentar a própria vaidade. Sua Alteza, a Mae do Rei. ressentia-se da influência de qualquer pessoa sobre o único filho e herdeiro sobrevivente. Por outro lado, não confiava em Catarina. Porque e que a jovem vfuv ciaria atenção a um cunhado que era quase seis anos mais jove que ela? O que esperava obter desta amizade? Com certeza sabia que ele era mantido tão vigiado como uma criança: dormia no quarto do pai, tinha companhia dia e noite, e estava constantemente sob supervisão? O que esperava a viúva espanhola conseguir, enviando livros, ensinando-lhe espanhol, rindo da sua pronúncia e obser­vando-o a montar na quintana, como se estivesse a treinar para ser 0seu cavaleiro andante?

Não ganharia nada com aquilo. Não poderia ganhar nada com aquilo. Mas Sua Alteza, a Mãe do Rei, não permitira que ninguém tornasse íntimo de Henrique, além de si própria, e ordenou que as visitas de Catarina à corte fossem raras e breves.

O próprio rei era suficientemente simpático para Catarina quando a via. mas sentia-o olhá-la como se ela fosse uma espécie de tesouro que tivesse furtado. Com ele. sentia-se sempre como uma espécie de troféu - não uma mulher jovem de dezassete anos, totalmente dependente da honra dele, sua filha por casamento.

Se tivesse conseguido falar de Artur com a sogra ou com o rei. talvez eles a tivessem procurado para partilhar a sua dor. Mas não podia servir-se do nome do marido para obter o apoio deles. Mesmo tendo passado um ano da sua morte, não conseguia pensar nele sem sentir um aperto no peito, tão grande que pensava que poderia impedi-la de respirar, de tanto sofrimento. Continuava a não conseguir pronunciar o seu nome em voz alta. E seguramente não podia contar com a sua dor, para obter os favores da corte.

Mas, o que vai acontecer? - continuou Dona Elvira. Catarina voltou a cabeça para o outro lado.

Não sei - respondeu secamente.

Talvez, se a rainha tiver outro filho, com este bebé, pode ser que o rei nos mande regressar a Espanha - continuou a ama. Catarina acenou com a cabeça.

- Talvez.

A ama conhecia-a suficientemente bem, para detectar a deter­minação silenciosa de Catarina.

- O vosso problema é que continuais a não querer partir - sus­surrou. - O rei pode manter-vos como refém com o pretexto do dote, os vossos pais podem deixar-vos ficar; mas se insistísseis. Poderíeis voltar para casa. Continuais a pensar que conseguireis convencê-los a casar-vos com Henrique; mas se isso tivesse de fornecer, já estaríeis prometida. Tendes de desistir. Já estamos aqui há um ano e não fizestes progressos. Ireis manter-nos aqui encurraladas, ao serdes derrotada.

As pestanas cor de areia de Catarina fecharam-se para lhe cobrir os olhos.

- Oh não - disse. - Não me parece.

Ouviu-se bater a porta.

- Mensagem urgente para a Princesa Viúva de Gales! – gritou a voz.

Catarina deixou cair as peças que estava a costurar e levantou -se. As suas aias também se puseram ele pé. Era tão invulgar acontecer alguma coisa na tranquila corte da Casa ele Durham. que ficaram muito agitadas.

- Bem, deixai-o entrar! - exclamou Catarina.

Maria de Salinas abriu a porta e um dos criados reais entrou ajoelhou-se diante da princesa.

- Más notícias - disse resumidamente. - A rainha teve um filho um príncipe, que faleceu. Sua Graça, a Rainha, também morreu. Deus reze por Sua Graça, o rei, no seu sofrimento real.

- O quê? - perguntou Dona Elvira, tentando perceber sequência voraz dos acontecimentos

- Deus proteja a alma dela - respondeu Catarina correctamente. - Deus salve o rei.

Pai Nosso, levai a Vossa filha Isabel para junto de Vós. Tendes de amá-la, era uma mulher de grande gentileza e graça.

Sento-me sobre os calcanhares e abandono a minha prece. Penso que a vida da rainha, que terminou de um modo tão trágico foi triste. Se a versão de Artur do escândalo for verdade, então,ela fora preparada para casar com o rei Ricardo, por muito desprezível e tirano que ele fosse. Quisera casar-se com ele e ser sua rainha, sua mãe e Sua Alteza, a Mãe do Rei. e a vitória de Bosworth haviam -na forçado a aceitar o rei Henrique. Nascera para ser Rainha da Inglaterra, e casara com o homem que podia dar-lhe o trono.

Pensei que. se tivesse sido capaz de lhe contar a promessa que fizera, saberia a dor que me corta como gelo. sempre que penso em Artur, e saberia que lhe prometi que casaria com Henrique. Penso que teria compreendido que, quando nascemos para ser Rainha da Inglaterra, temos de ser Rainha da Inglaterra, seja quem for o rei Quem quer que lenha de ser o nosso marido.

Sem a sua presença tranquila na corte, sinto que me encontro mais em perigo, mais longe do meu objectivo. Ela era atenciosa comigo, era uma mulher amorosa. Eu esperava que passasse o meu ano de luto e acreditava que ela me ajudaria a casar com Henrique porque ele seria um refúgio para mim, e porque eu seria uma boa

Esposa para ele. Estava confiante dee que ela sabia que uma pessoa pode casar com um homem por quem só sente indiferença e, ainda assim, ser uma boa esposa.

Mas, agora, a corte será dirigida por Sua Alteza, a Mãe do Rei. ha é uma mulher terrível, não c amiga de ninguém, à excepção sua própria causa, sem afecto por ninguém, além do filho, fique, e do filho deste, o príncipe Henrique.

Não ajuda ninguém, mas defende os interesses da sua família primeiro lugar. Considerar-me-á apenas mais uma candidata, c muitas, à mão dele. em casamento. Deus lhe perdoe, pode até procurar-lhe uma noiva francesa e, então, eu terei falhado, não só com Artur, mas com a minha própria mãe e o meu pai, que preci­sam de mim. para manterá aliança entre a Inglaterra e a Espanha fa inimizade entre a Inglaterra e a França.

Este ano foi difícil para mim. previra um ano de luto, seguido de um novo compromisso; cada vez me sinto mais ansiosa, uma vez que ninguém parece estar a planear nada de semelhante. E agora receio que tudo vá piorar. E se o rei Henrique decidir devolver a segunda parte do dote e me mandar para casa? E se prometerem Henrique, aquele miúdo disparatado, a outra pessoa? E se apenas se esquecerem de mim? Se me mantiverem como refém, para garantir o bom comportamento da Espanha, e me negligenciarem? E se me deixarem na Casa de Durham, como uma princesa sombra numa corte sombra, enquanto o mundo real continua a viver noutro lugar?

Detesto esta altura do ano na Inglaterra, o modo como o Inverno se arrasta interminavelmente, com nevoeiros frios e céus cinzentos. No Alhambra, a água dos canais descongelará e come­çará novamente afluir, gelada, correndo profunda, com água der­retida dus neves da sierra. A terra começará a aquecer nos jardins. f« homens plantarão flores e árvores jovens, o sol será quente de "taithà e as cortinas espessas serão retiradas das janelas, para que as brisas mornas possam correr novamente pelo palácio.

Os pássaros do Verão voltarão às elevadas colinas e as oliveiras tremeluzirão com folhas em tons de verde e cinzento. Por todo o ado. os agricultores estarão a revolver o solo vermelho, e sentir-se-á ° odor da vida e do crescimento.

Tenho saudades de estarem casa; mas não abandonarei o meu Posto. Não sou um soldado que se esquece do seu dever, sou uma sen-tnela que permanece de vigília a noite inteira. Não desapontarei o meu amor. Eu disse "Prometo", e não o esqueço. Ser-lhe-ei fiel. O jardim que representa a vida imortal. al-Yanna, esperara por mim, a rosa esperará por mim em al-Yanna. Artur esperará lá por mim. Vou ser Rainha da Inglaterra como nasci para ser, como lhe prometi que seria. A rosa florescerá na Inglaterra, assim como no céu.

Foi organizado um grande funeral de estado pela rainha Isabel e Catarina estava novamente de luto. Através da renda preta da man­tilha, observava as ordens de precedência, as disposições para a cerimónia, via como tudo era disposto, segundo as orientações do enorme livro da mãe do rei. Até o seu próprio lugar fora estipula­do, atrás das princesas, mas à frente das outras damas da corte.

Lady Margaret, a mãe do rei. indicara todos os procedimentos a seguir na corte Tudor, desde o quarto do nascimento até à forma como o corpo seria exposto, para que o seu filho e as gerações, que ela rezava para que viessem a seguir a ele, estivessem preparadas para todas as ocasiões, para que cada ocasião fosse semelhante à anterior, e para que todas as ocasiões, por muito distantes no futu­ro, fossem comandadas por ela.

Assim, a sua primeira cerimónia fúnebre, pela nora de quem não gostava, correu com a ordem e a elegância de um bem planea­do baile de máscaras na corte, e como grande organizadora de toda a celebração, subiu, visível e inquestionavelmente, para o seu lugar, como a mais importante dama da corte.

 

                       2 de abril de 1503

Fazia um ano do dia em que Artur morrera e Catarina passou o dia sozinha, na capela da Casa de Durham. O padre Geraldini rezou uma missa em memória do jovem príncipe, de madrugada, e Catarina ficou na pequena igreja, sem quebrar o seu jejum, sem beber sequer um pequeno copo de cerveja, todo o dia.

Durante algum tempo, esteve ajoelhada diante do altar, com os lábios a moverem-se em preces silenciosas, lutando contra a perda dele, contra uma dor que era tão aguda e tão real, como no dia em que permanecera de pé, no limiar da porta do quarto dele, e soube que não era possível salvá-lo, que ele iria morrer, que teria de viver sem ele.

por algumas das longas horas, andou em volta da capela zia parando para admirar as imagens de devoção nas paredes ou as gravuras sofisticadas das extremidades dos bancos e do anteparo do crucifixo. O seu horror era que estava a esquecê-lo. Havia manhãs em que acordava e tentava ver o rosto dele, e descobria que não era capaz de ver nada sob as pálpebras fechadas, ou pior, tudo o que conseguia ver era uma imagem vaga dele, uma fraca semelhança: o simulacro e já não o autêntico. Nessas manhãs, sentava-se rapidamente, apertava os joelhos contra o estômago, e abraçava-se com força, para não ceder ao seu agonizante sentido de perda.

Depois, mais tarde, durante o dia, conversava com as suas amas de companhia, costurava ou passeava á beira rio, e alguém lhe diria qualquer coisa, ou veria o sol a bater na água e, de repen­te, ele estaria ali, diante dela, tão nítido como se estivesse vivo, a iluminar a tarde. Ela ficava parada, sem se mexer, por momentos, absorvendo-o em silêncio, e depois continuava a conversar, ou a passear, sabendo que nunca o esqueceria. Os seus olhos traziam a imagem dele nas pálpebras, o seu corpo possuía o toque dele na pele, ela era dele. até á morte: não - como acabou por acontecer -ate a morte dele; mas até à dela. Só quando os dois partissem desta vida, terminaria o seu casamento neste mundo.

Mas naquele dia, o aniversário da morte dele, Catarina prome­tera a si mesma que ficaria sozinha, não se permitira a indulgência do luto. ou de se revoltar com Deus por o ter levado.

Sabeis, nunca compreenderei qual era o Vosso objectivo", digo para a estátua de Cristo crucificado, pendurado pelas palmas das mãos, manchadas de sangue, por cima do altar. "Podeis dar-me um sinal? Não podeis mostrar-me o que devo fazer?"

Espero, mas Ele não diz nada. Tenho de me perguntar se o Deus que falara tão claro com a minha mãe está adormecido ou se desapareceu. Porque é que ele lhe dava instruções a ela, e comigo permanece em silêncio? Porque é que eu, educada como uma criança ferverosamente cristã, uma filha apaixonada da Igreja Católica Romana, não tenho a sensação de estar a ser ouvida, enquanto rezo a minha dor mais profunda? Porque é que Deus me abandonaria, quando preciso tanto Dele?

 

Volto para o banco bordado. diante do altar, mas não me ajoelho em posição de prece, volto-o ao contrário e sento-me neto se estivesse em casa, uma almofada puxada para perto de uma braseira quente, pronta para falar, preparada para ouvir. Mas agora ninguém fala comigo. Nem sequer o meu Deus.

"Sei que é Vossa vontade que eu seja rainha". digo pensativa mente, como se Ele pudesse responder, como se de repente pudesse contestar num tom tão razoável quanto o meu Sei que também é essa a vontade da minha mãe. Sei-o. meu querido"- interrompo final da frase. Mesmo agora, um ano depois, não posso correr o ris de pronunciar o nome de Artur, mesmo numa capela vazia, mesmo, para Deus. Ainda receio um ataque de choro, entrar em histeria loucura. Para além do meu controlo, está unia paixão por Artur como o lago profundo de um moinho, por trás de uma comporta Não me atrevo a deixar passar nem uma gota Haveria uma inun­dação de dor. uma torrente.

"Sei que ele desejava que eu fosse rainha. No seu leito morte, pediu-me que lhe fizesse uma promessa. Diante de Vós. fiz--lhe essa promessa. Em Vosso nome. fi-la. Foi sincera. Jurei que iria ser rainha. Mas como vou fazê-lo? Se essa e a Vossa vontade, assim como a dele, como acredito que é, então, Deus. ouvi-me. Fiquei sem estratagemas. Tendes de ser vós. 'Tendes de me mostrar a forma de o fazer ."

Há um ano que faço este pedido a Deus. cada vez com ma urgência; enquanto as negociações intermináveis sobre a devolução do dote e o pagamento do meu quinhão se arrastam sem fim. Sé­tima palavra clara da minha mãe. acabo por pensar que esta jogar o mesmo jogo que eu. Sem dúvida, sei que o meu pai lerá alguma estratégia táctica, a longo prazo, em mente. Se pelo menos dissessem o que devo fazer! No seu silêncio discreto, tenho de adivinhar que me deixam aqui, como isco para o rei. Estão a deixar-me aqui, até o rei ver, como eu vejo, como Artur viu, que a melhor resolução para esta dificuldade seria casar-me com o príncipe Henrique

O problema é que. a cada mês que passa, a estatura e importância de Henrique na corte aumenta: torna-se um pretenda, cada vez mais atractivo. O rei francês irá Jazer-lhe uma proposta centenas de principezinhos da Europa, com as suas filhas bonitas, farão ofertas, até o Sagrado Imperador Romano tem uma filha solteira, Margaret, que podia ser apropriada. Temos de decidir este assunto rapidamente, neste mês de Abril, quando termina o meu primeiro ano de viuvez. Agora que estou livre do meu ano de espera. Mas o equilíbrio do poder mudou. O rei Henrique não tem pressa, o seu herdeiro é jovem - um rapaz com apenas onze anos. Mas eu tenho dezassete. Já devia estar casada. Já era altura de ser nova­mente Princesa de Gales.

Suas Majestades da Espanha pedem a lua: a restituição total do investimento e a devolução da filha, o quinhão completo da viúva a ser pago por um período indefinido. O elevado preço ele indo isto foi pensado para convencer o Rei da Inglaterra a encontrar outra forma. A paciência dos meus país com a negociação permite que a Inglaterra me mantenha, a mim, e ao dinheiro. Demonstram que não estão ci espera da minha devolução, nem da do dinheiro. Esperam que o Rei da Inglaterra perceba que não tem de me devol­ver, nem ao dinheiro.

Mas estão a subestimá-lo. O rei Henrique não precisa que eles lhe dêem sugestões. Deve ter percebido tudo muito bem. Uma vez que não está a avançar, deve estará resistir a ambos os pedidos. E por­que não deveria fazê-lo? E ele quem tem o poder. Tem metade do dote e tem-me a mim.

E não é nenhum tolo. A calma do novo emissário, Don Gutierre Comez de Fuensalida. e a lentidão das negociações, alertou este rei extremamente astuto para o facto de a minha mãe e o meu pai esta­rem contentes por me deixarem nas mãos dele, na Inglaterra. Não é preciso ser-se Maquiavel para concluir que os meus pais estão à espe­ra que outro casamento inglês - tal como quando Isabel ficou viúva, e a enviaram novamente para Portugal, para casar com o cunhado. Estas coisas acontecem. Mas só se todos estiverem de acordo. Na Inglaterra, onde o rei acabou de subir ao trono e é bastante ambi­cioso, pode ser necessária mais perícia do que aquela de que somos capazes, para fazer com que isso aconteça.

A minha mãe escreve-me para me dizer que tem um plano, mas que demorará algum tempo a dar frutos. Entretanto, diz-me para ser paciente e nunca fazer nada que ofenda o rei ou a sua Mãe.

Sou a Princesa de Gales", respondo-lhe. "Nasci para ser icesa de Gales e Rainha da Inglaterra. Educastes- me com esses títulos. Seguramente, não vou negar as minhas origens? ' Seguramente. posso ser Princesa de Gales e Rainha da Inglaterra, "mesmo assim?"

"Sê paciente", escreve-me ela de volta, num bilhete manchado pela viagem, que demora semanas a chegar até mim e que foi aberto; qualquer pessoa pode tê-lo lido. Concordo que o teu destino Rainha da Inglaterra. É o teu destino, a vontade de Deus e o meu desejo. Sê paciente.

Quanto tempo vou ter de ser paciente.”?, pergunto a Deus ajoelhada diante Dele na Sua capela, no aniversário da morte de Artur. "Se essa é a Vossa vontade, porque não o fazeis de uma vez? Se é essa a Vossa vontade, porque não me destruístes juntamente, Artur? Se me estais a ouvir neste momento- porque me sinto tão terrivelmente só?"

 

A uma hora tardia da noite foi anunciada uma visita rara na tranquila antecâmara cia Casa de Durham.

- Lady Margaret Fole - anunciou o guarda a porta. Catarina pousou a Bíblia e voltou o rosto pálido para ver a amiga, hesitando timidamente à entrada.

- Lady Margaret!

Princesa Viúva! - fez uma reverência e Catarina atravessou apressadamente a sala na direcção dela, ergueu-a e abraçou-a.

Não choreis - disse-lhe Lady Margaret baixinho ao ouvido.-Não choreis, ou juro que farei o mesmo.

Não choro, não choro, prometo que não - Catarina virou-se para as damas de companhia. - Deixai-nos - disse.

Elas saíram contrariadas, uma visita era uma novidade na casa calma, e além disso, as lareiras estavam apagadas em todas as outras salas. Lady Margaret olhou em volta da sala. em mau estado.

- O que é isto?

Catarina encolheu os ombros e tentou sorrir.

Receio não ser boa gestora. F Dona Elvira não ajuda. Para dizer a verdade, só tenho o dinheiro que o rei me dá. E não é muito.

Era isto que eu temia - disse a mulher mais velha. Cata puxou-a para perto da lareira e sentou-a na sua própria cadeira.

- Pensei que ainda estáveis em Ludlow?

- Estávamos. Temos estado. Uma vez que nem o rei,nem o príncipe vão a Gales, tudo caiu em cima dos ombros do meu marido.

príncipe vão a Gales, tudo caiu em cima dos ombros do meu marido. Pensaríeis que voltei a ser princesa, se vísseis a minha pequena corte lá.

Catarina tentou sorrir novamente.

_ Sois importante?

- Bastante. E sobretudo falando galês. Sobretudo a cantar.

- Posso imaginar.

- Viemos para o funeral da rainha. Deus a abençoe, e depois ficar um pouco mais, e o meu marido sugeriu que podia vir-vos. Hoje tenho estado a pensar em vós, todo o dia.

_ Estive na capela - disse Catarina inconsequentemente. - Nem parece que já passou um ano.

_ Não parece, pois não? - concordou Lady Margaret, apesar de, em privado, pensar que a rapariga envelhecera muito mais do que um ano. A dor refinara a sua beleza de menina, tinha o aspecto claro e decidido de uma mulher que vira as esperanças destruídas. _ Estais bem?

Catarina fez uma careta.

- Estou suficientemente bem. E vós? E as crianças? Lady Margaret sorriu.

- Graças a Deus. estamos. Mas sabeis quais são os planos cio rei para vós? Ides...? - hesitou. - Tendes de voltar para a Espanha? Ou ficais aqui?

Catarina aproximou-se dela.

- Estão a falar, sobre o meu dote, sobre o meu regresso. Mas não se faz nada. E não se decide nada. O rei está a segurar-me e a segurar o meu dote. e os meus pais estão a permitir que o faça.

Lady Margaret parecia preocupada.

Soube que consideraram a hipótese de vos prometer ao prín­cipe Henrique - disse. - Não sabia.

E a escolha óbvia. Mas não parece óbvia para o rei - disse Catarina secamente. - O que pensais? Pensais que ele é homem para 'Snorar uma solução óbvia?

Não - respondeu Lady Margaret, cuja vida fora posta em risco pela consciência, por parte do rei, de que o direito da sua família ao seu trono era um facto óbvio.

Então, devo supor que ele considerou esta escolha e está á espera de ver se é a melhor que pode fazer - afirmou Catarina.

Suspirou - Meu Deus. e um trabalho cansativo, estar à espera.

- Agora, o vosso luto terminou, não há dúvidas de que ele tratará dos preparativos - disse a amiga esperançosa.

- Sem dúvida - respondeu Catarina.

Após ter passado várias semanas sozinho, de luto pela mulher o rei voltou à corte no Palácio de Whitehall, e Catarina foi convidada para jantar com a família real e sentada ao lado da princesa Mary e das damas da corte. O jovem Henrique. Príncipe de Gales re­colocado em segurança, entre o pai e a avó. A viagem fria até a Castelo de Ludlow e a formação rigorosa de um príncipe à espera não eram para este príncipe. Lady Margaret decidira que este príncipe, o único herdeiro sobrevivente, devia ser educado sob o seu controlo, com à-vontade e conforto. Não devia ser mandado embo­ra, devia ser permanentemente vigiado. Nem sequer lhe era permi­tido participar em desportos violentos, torneios ou combates, apesar de ter bastante vontade de participar, e de ser um rapaz que adora­va a actividade e a emoção. A avó decidira que ele era demasiado precioso, para o pôr em risco.

Ele sorriu para Catarina e ela lançou-lhe um olhar que espera­va ser discretamente caloroso. Mas não houve oportunidade para trocarem uma única palavra. Foi colocada mais ao fundo da mesa e mal o conseguia ver, graças a Sua Alteza, a Mãe do Rei. que o mima­va com os melhores pedaços do seu próprio prato, e interpunha o seu ombro largo entre ele e as damas.

Catarina pensou que era como Artur dissera, que o rapaz era estragado com as suas atenções. A avó encostou-se para trás duran­te alguns momentos, para falar com um dos indicadores de lugares, e Catarina viu o olhar de Henrique dirigir-se-lhe. Sorriu para ele e baixou os olhos. Quando levantou o olhar, ele continuava a fixá-la e enrubesceu ao ser apanhado.

"É uma criança", dirigiu-lhe um sorriso disfarçado, apesar de o criticar em silêncio. "Uma criança de onze anos, um gabarolas e um envergonhado. E porque é que este rapaz gorducho e mimado foi poupado quando Artur...", interrompeu imediatamente o seu pensamento. Comparar Artur com o irmão era desejar a morte deste rapazinho, e não o faria. Pensar em Artur em público era correr o risco de começar a chorar, e nunca o faria.

"Uma mulher pode mandar num rapaz como aquele", pensou. "Uma mulher poderia ser uma grande rainha, se fosse casada co um rapaz como este. Nos primeiros dez anos ele não saberia nada, e nessa altura, talvez já tivesse adquirido o hábito de obedecer, ao ponto de permitir que a mulher continuasse a dar as ordens, poderia ser, como Artur me disse, um preguiçoso. Um jovem desperdiçado. Podia ser tão preguiçoso que podia divertir-se com jogos e caça, desportos e entretenimentos, para que o reino pudesse governado pela sua mulher."

Catarina nunca esqueceu que Artur lhe dissera que o rapaz, fantasiava estar apaixonado por ela.

Se lhe dão tudo o que ele quer, talvez seja ele quem escolhe a noiva pensou. "Têm o hábito de o mimar. Talvez ele possa suplicar para casar comigo e eles sentir-se-ão obrigados a dizer que 'sim'."

Viu-o corar ainda mais, até as orelhas ficarem cor-de-rosa. Fixou os olhos nos dele por instantes, inspirou um pouco e abriu os lábios como se fosse sussurrar-lhe uma palavra. Viu os olhos azuis centrarem-se na sua boca e escurecer de desejo, e depois, calculan­do o efeito, ela baixou o olhar.

Que rapaz tão estúpido", pensou.

O rei levantou-se da mesa e todos os homens e mulheres que estavam sentados nos bancos apinhados do salão também se levan­taram, e fizeram uma vénia com as cabeças.

- Agradeço-vos por terem vindo cumprimentar-me - afirmou o rei Henrique. - Camaradas em guerra e amigos em paz. Mas agora perdoai-me, porque desejo estar sozinho.

Acenou com a cabeça para Henrique, estendeu a mão à mãe, e a família real saiu pela pequena porta ao fundo do grande salão, dirigindo-se aos aposentos privados.

- Devíeis ter ficado mais tempo - observou a mãe do rei. enquanto se sentavam em cadeiras perto da lareira e o criado com o jarro lhes trazia vinho. - Parece mal. sair tão cedo. Havíeis dito ao Mestre do Cavalo que ficaríeis, e que iam cantar.

Estava exausto - disse o rei Henrique. Olhou para onde Catarina e a princesa Margaret estavam sentadas. A mulher mais jovem tinha os olhos vermelhos, a perda da mãe atingira-a bastan­te. Catarina era - como de costume - fria como aço. Pensou que ela tinha um grande poder de autocontrolo. Nem esta perda da sua única amiga na corte, a sua última amiga na Inglaterra, parecia per­turbá-la.

Ela pode voltar para a Casa de Durham amanha – observou mãe dele, seguindo a direcção do seu olhar. - Não lhe faz bem nenhum vir para a corte. Não conquistou o seu lugar aqui através

de um herdeiro. e não pagou a sua posição aqui com o dote.

- Ela é determinada - disse ele. - É determinada nas suas atenções para convosco e para comigo.

- Determinada como uma praga - retorquiu a mãe.

- Sois muito dura com ela.

- O mundo é duro - respondeu ela simplesmente. - Sou ape­nas justa. Porque não a mandamos para casa?

- Não a admirais mesmo?

Ela ficou surpreendida com a pergunta.

O que há nela que seja digno de admiração?

A coragem, a dignidade. É bonita, claro, mas também tem encanto. É educada, é graciosa. Penso que, noutras circunstâncias poderia ter sido feliz. E agüentou, sob esta desilusão, como uma rainha.

Ela não tem qualquer utilidade para nós - disse ela. - Era a nossa Princesa de Gales; mas o nosso menino morreu. Agora não nos serve de nada, por muito encantadora que possa parecer.

Catarina levantou os olhos e viu-os observarem-na. Esboçou um pequeno sorriso controlado e inclinou a cabeça. Henrique levantou-se, dirigiu-se sozinho a soleira da janela, e chamou-a com o dedo. Ela não foi a correr ter com ele, como qualquer uma das mulheres da corte teria feito. Olhou para ele. levantou uma sobrancelha, como se estivesse a pensar se devia ou não obedecer, e depois, pôs-se de pé. graciosamente, e dirigiu-se a ele.

"Meu Deus, ela é desejável", pensou para si mesmo. "Só tem dezassete anos. Totalmente sob o meu poder, e. no entanto, anda pela sala como se fosse a Rainha da Inglaterra coroada."

Atrevo-me a dizer que ireis sentir saudades da rainha - disse abruptamente em francês quando ela chegou perto dele.

Sim, vou sentir - respondeu claramente. - Sofro por vós, pela perda da vossa esposa. Tenho a certeza de que o meu pai e a minha mãe quereriam que vos transmitisse os sentimentos deles.

Ele acenou com a cabeça, sem desviai os olhos do rosto dela.

- Agora partilhamos uma dor - observou. - Perdestes o vos companheiro na vida e eu a minha.

Observou os seus olhos a estreitarem-se.

- É verdade - respondeu ela firmemente. - Partilhamos. Ele perguntou-se se ela estaria a tentar descobrir o que ele que

ria dizer. Se aquela mente rápida estava a trabalhar por trás daquele rosto bonito e claro, não havia sinais disso.

Tendes de me ensinar o segredo da vossa resignação - afirmou

Oh. não penso que me resigno. Henrique estava intrigado.

Não?

Não. Creio que confio em Deus e no facto de Ele saber o que está certo para todos nós, e a Sua vontade cumprir-se-á.

Mesmo quando os seus meios são ocultos, e nós, pecadores temos de tropeçar no escuro?

Eu sei qual é o meu destino - disse Catarina calmamente. Ele foi gracioso ao ponto de mo revelar.

- Então, sois uma das muito poucas - disse ele, pensando fazer que ela se risse de si mesma.

- Eu sei - respondeu ela, sem indícios de um sorriso. Ele percebeu que ela confiava totalmente na sua crença de que Deus lhe revelara o futuro. - Sou abençoada.

- E qual é esse grande destino que Deus tem para vós? - perguntou ele sarcasticamente. Desejava tanto que ela dissesse que deveria ser Rainha da Inglaterra, e depois poderia pedir-lhe, ou aproximar-se dela, ou deixá-la perceber o que tinha em mente.

- Fazer a vontade de Deus, claro, e trazer o Seu Reino para a Terra - respondeu com inteligência, e evitando-o mais uma vez.

Falo com muita confiança na vontade de Deus. e lembro ao rei que fui educada para ser a Princesa de Gales, mas, na verdade, Deus está silencioso para comigo. Desde o dia da morte de Artur, não consigo ter uma convicção autêntica de ser abençoada. Como posso dizer que sou abençoada, se perdi a única coisa que comple­tava a minha vida? Como posso ser abençoada, se penso que não ierei voltar a ser feliz? Mas vivemos num mundo de crentes -tenho de dizer que me encontro sob a protecção especial de Deus. tenho de transmitir a ideia de que estou segura do meu destino. Sou 'ha de Isabel da Espanha. A minha herança é a certeza.

Mas na realidade, é claro, estou cada vez mais só. Sinto-me vez mais solitária. Não há nada entre mim e o desespero, excepto a minha promessa a Artur, e a linha ténue, como um fio de ouro num tapete, da minha determinação.

 

                             Maio de 1503

O rei Henrique não se aproximou de Catarina durante um mês, nome da decência, mas quando se livrou do casaco negro, fez-lhe uma visita formal na Casa de Durham. O seu séquito fora avisado de que ele viria, e trajavam as suas melhores roupas. Ele viu os sinais do desgaste nas cortinas, tapetes e decorações, e sorriu para dentro. Se ela tivesse o bom senso que ele considerava que tinha, ficaria satisfeita por encontrar uma resolução para aquela situação desconfortável. Felicitou-se por não lhe ter facilitado a vida no ano que transcorrera. A esta altura, ela já devia perceber que estava totalmente sob o seu poder, e os seus pais nada podiam fazer para a libertar.

0 seu arauto abriu as portas duplas da antecâmara e gritou:

- Sua Graça, o Rei Henrique da Inglaterra... Henrique fez-lhe um gesto para que ele omitisse os restantes títulos e entrou, dirigindo-se à nora.

Ela trazia um vestido escuro com cordoes azuis nas mangas um peitilho ricamente bordado e um toucado azul-escuro. O con­junto salientava o tom âmbar do seu cabelo e o azul dos olhos, ele sorriu instintivamente de prazer ao vê-la, enquanto se inclinava numa reverência formal e se levantava.

- Vossa Graça - disse ela agradavelmente. - Isto é de facto uma honra.

Ele teve de se forçar a não olhar para a linha creme do pesco­ço dela, para o rosto suave e liso que olhava para ele. Vivera toda a vida com uma mulher bonita da sua idade; agora aqui estava uma rapariga com idade para ser sua filha, que ainda mantinha o odor rico do apogeu da juventude, e seios cheios e firmes. Estava real­mente pronta para o casamento, estava mais do que pronta. Aquela era uma rapariga que devia ter companhia na cama. Voltou a con­trolar-se e de imediato concluiu que era em parte devasso e em parte amante, para olhar para a noiva jovem do seu malogrado filhe com tanto desejo.

- Posso oferecer-vos um refresco? - perguntou ela. Havia um sorriso ao fundo dos seus olhos.

Ele pensou que ela fosse uma mulher mais velha, mais sofis­ticada, teria assumido que estava a provocá-lo, de uma forma tão conhecedora como um pescador que consegue apanhar um salmão.

- Obrigado. Aceito um copo de vinho. E foi dessa forma que ela o apanhou.

- Receio não ter nada adequado para vos oferecer - respondeu ela suavemente. Já não tenho nada na cave, e não tenho dinheiro para comprar vinhos bons.

Henrique não revelou um único sinal de que sabia que ela lhe preparara uma armadilha, para lhe poder falar das suas dificuldades financeiras.

- Lamento, vou ordenar que vos enviem alguns barris - afir­mou. - A vossa governanta deve ser muito descuidada.

- É muito rigorosa - respondeu ela simplesmente. - Aceitais uma caneca de cerveja? Fazemos a nossa própria cerveja e fica muito barato.

Obrigado - respondeu ele, mordendo o lábio para esconder um sorriso. Ele não imaginara que ela tinha tanta autoconfiança. O ano de luto avivara a sua coragem, pensou. Sozinha numa terra estranha, não fora abaixo como teria acontecido com outras rapari­gas, da reunira as suas forças e tornara-se mais forte.

Sua Alteza, a Mãe do Rei. encontra-se de boa saúde e a prin­cesa Mary está bem? - perguntou, com tanta confiança, como se estivesse a recebê-lo no salão dourado do Alhambra.

- Sim, graças a Deus - respondeu ele. - F vós? Ela sorriu e inclinou a cabeça.

- E nem é preciso perguntar como vai a vossa saúde - comen­tou ela. - listais sempre igual.

- Ai sim?

- Desde a primeira vez que nos vimos - disse ela. - Quando eu acabara de chegar a Inglaterra e vós cavalgastes para ir ao meu encontro, no meu caminho para Londres. - Era extremamente difí­cil para Catarina não pensar em como estava Artur, naquela noite, aterrorizado pela rudeza do pai, a tentar falar com ela num tom sub­misso, olhando para ela às escondidas.

Com determinação afastou o seu jovem amante da sua mente e sorriu para o pai dele, dizendo:

- Fiquei tão surpreendida com a vossa visita, e tão assustada convosco.

Ele riu-se. Percebeu que ela invocara a imagem de quando ele a vira pela primeira vez, uma virgem ao lado do seu leito, com uma camisa branca e uma capa azul, o cabelo apanhado numa trança que lhe caía pelas costas abaixo, e de como pensara na altura que lhe aparecera como um violador, que forçara a entrada no seu quarto de dormir e que também podia tê-la forçado.

Voltou-se e puxou uma cadeira, para esconder os seus pensamentos, indicando-lhe por gestos que devia sentar-se. A ama dela, a mesma mula espanhola, de expresso azeda, reparou ele irritado. Permanecia ao fundo da sala com outras duas damas.

Catarina sentou-se perfeitamente composta, os dedos brancos entrelaçados no colo, de costas direitas, todos os seus modos eram os de uma jovem segura do seu poder de atracção. O rei enrique não disse nada e olhou-a por momentos. De certeza que ela sabia o que provocava nele ao relembrar-lhe a primeira vez que a vira? E. no entanto, seguramente a filha de Isabel de Espanha e viúva do seu próprio filho não podia estar conscientemente a provocá-lo.

Uma criada entrou trazendo duas pequenas canecas de cerveja. O rei foi servido primeiro e depois Catarina tirou uma canec Deu um pequeno gole e pousou-a.

Continuais a não gostar de cerveja? - estava espantado com a intimidade da sua própria voz. De certeza que. para Deus. não havia problema em perguntar à nora o que gostava de beber.

Só bebo quando tenho muita sede - respondeu ela. - Mas não aprecio o gosto que deixa na boca. - Pôs a mão na boca e tocou no lábio inferior. Fascinado, ele observou a ponta do seu dedo tocar na ponta da sua língua. Ela fez um trejeito. - Acho que nunca vai ser uma das minhas bebidas preferidas - disse.

O que bebíeis na Espanha? - descobriu que quase não con­seguia falar. Continuava a olhar para a sua boca macia, brilhando no sítio onde passara a língua pelos lábios.

A água podia-se beber - respondeu ela. - No Alhambra, Mouros canalizaram água doce desde as montanhas até ao palácio. Bebíamos água de nascentes das montanhas, nas fontes, e aind estava fria. E sumos de frutas, claro, tínhamos frutas maravilhosas n Verão, gelados e sorvetes, e também vinhos.

Se partirdes em viagem comigo este Verão, podemos visitar lugares onde a água é potável - disse ele. Pensou que parecia um rapaz estúpido, prometendo-lhe que podia beber água. como se fosse um prémio. Persistiu, obstinadamente. - Se vierdes comigo podemos ir caçar, podemos ir a Hampshire. e mais longe, a New Forest. Lembrais-vos da região em volta? Perto de onde nos vimos pela primeira vez?

- Gostaria tanto - disse ela. - Se ainda cá estiver, claro.

Se ainda cá estiverdes? - Ficou assustado, quase se esquecera de que ela era sua refém, devia regressar a casa no Verão. Duvido que eu e o vosso pai tenhamos chegado a acordo em rela­ção às condições, nessa altura.

Porquê, como pode demorar tanto tempo? - perguntou ela, com os olhos azuis abertos de surpresa assumida. - De certeza que conseguimos chegar a um acordo? - hesitou. - Entre amigos? Se na conseguirmos chegar a acordo relativamente ao valor da diva deve haver outra forma? Qualquer outro acordo que possamos fazer. Uma vez que já fizemos um acordo antes?

Aquilo aproximava-se tanto do que ele pensara que o fez levantar-se, desconcertado. Ela também se levantou imediatamentamente. A parte de cima do seu belo toucado azul-escuro só lhe chegava aos ombros, pensou que teria de inclinar a cabeça para a beijar, e que ela estivesse debaixo dele na cama, teria de ter cuidado para não magoar. Sentiu a cara arder, só de pensar nisso.

- Vinde cá - disse-lhe bruscamente e levou-a até ao vão da janela onde as damas não podiam ouvi-los.

_ Tenho andado a pensar no tipo de acordo que podemos fizer - disse - O mais fácil seria que ficásseis aqui. Eu certamente gostaria que ficásseis.

Catarina não levantou os olhos para ele. Se o tivesse feito, ele assumi-la-ia como garantida. Mas continuou a olhar para o chão, com o rosto baixado.

- Oh, claro, se os meus pais concordarem - respondeu ela, tão baixo que ele quase não conseguiu ouvir.

Sentiu-se encurralado. Acreditava que não seria capaz de con­tinuar, enquanto ela mantivesse a cabeça inclinada de uma forma tão delicada, e lhe mostrasse apenas a curva do pescoço e as pál­pebras, e no entanto não fora capaz de recuar, quando ela lhe per­guntara se não havia outra forma de resolver o conflito entre ele e os seus pais.

Deveis achar-me demasiado velho - disse subitamente. Os olhos azuis dela fixaram-no e baixaram novamente.

De forma alguma - disse vagamente.

- Tenho idade para ser vosso pai - afirmou ele. esperando que ela discordasse.   

Ao invés, ela olhou-o.

- Nunca penso em vós desse modo - declarou. Henrique permaneceu em silêncio. Sentia-se completamente Perdido por esta jovem elegante que, num momento, parecia tão deliciosamente encorajadora, e noutro bastante opaca.

- Que gostaríeis de fazer? - perguntou-lhe.

Por fim, ela levantou a cabeça e sorriu-lhe, os seus lábios curvando-se, mas os seus olhos não transmitiam calor.

- O que decidirdes - respondeu. - Acima de tudo, gostaria de vos obedecer, Vossa Graça.

O que é que ele quer dizer? O que está a fazer? Pensei que estava oferecer-me Henrique e ia responder aue "sim", auando ele

E é claro que é. de facto, parece bastante mais relho do que o meu pai, é por isso que nunca penso nele como um pai. talvez como um avô, ou um padre idoso. O meu pai é bonito, um mulherengo terrível; um soldado valente; um herói no campo de batalha. Este rei lutou numa única batalha indiferente e aniquilou uma dúzia de revol pouco heróicas de homens pobres, demasiado fartos do seu reina para aguentarem mais. Por isso, não é como o meu pai. e eu só d! a verdade. quando respondi que nunca o vira desse modo.

Mas depois olhou-me como se eu tivesse dito algo muito interesante, e perguntou-me o que eu queria. Não consegui dizer-lhe directamente que queria que esquecesse o meu casamento com filho mais velho, e me voltasse a casar com o mais novo. Por isso disse que lhe queria obedecer. Não pode haver nada de errado niss Mas, de alguma forma, não era o que ele queria. E não me levo onde eu pretendia.

Não faço ideia do que ele quer. Nem de como reverter a situacão a meu favor.

Henrique voltou para o Palácio de Whitehall. com o rosto arder e o coração em sobressalto, dividido entre a frustração e o cálculo. Se conseguisse convencer os pais de Catarina a autorizar casamento, poderia reivindicar o resto do seu dote substancial livrar-se do pagamento do quinhão, reforçar a aliança com a Espanha, no preciso momento em que procurava garantir novas alianças com a Escócia e a França, e talvez, com uma mulher tão jovem, ter mais um filho e herdeiro. Uma filha no trono da Escócia uma filha no trono da França deviam assegurar a paz às duas nações durante uma vida inteira. A Princesa da Espanha, no trono da Inglaterra, devia prender os reis mais cristãos da Espanha a uma aliança. Teria unido os grandes poderes da Cristandade numa aliança pacífica com a Inglaterra, não por uma geração, mas por várias gerações futuras. Teriam herdeiros comuns; estariam seguros. A Inglaterra estaria segura. Melhor ainda, os filhos da Inglaterra poderiam herdar os tronos da França, Escócia e Espanha. A Inglaterra poderia conceber o seu caminho para a paz e a grandeza.

Fazia todo o sentido ficar com Catarina; tentou concentrar-se nas vantagens políticas e não pensar na linha do seu pescoço, nem na curva da sua cintura. Tentou acalmar-se. pensando na pequena fortuna que pouparia, ao não ter de lhe entregar o quinhão a que tinha direito, nem de lhe pagar as despesas de manutenção, por pão ter de enviar um navio, provavelmente vários navios, para a escoltar de volta a casa. Mas a única coisa em que conseguia pen­sar era que ela tocara na boca macia com o dedo, e lhe dissera que não gostava do prolongado sabor a cerveja. Ao pensar na ponta da sua língua encostada ao lábio, gemeu em voz alta e o criado que estava a segurar no cavalo para que desmontasse, olhou para cima e disse:

Senhor?

É a bílis - respondeu amargamente.

O que o afligia parecia ser o preço demasiado alto, decidiu, enquanto caminhava em direcção aos seus aposentos privados, com os cortesãos afastando-se à sua passagem com sorrisos bajuladores. Pensou que não podia esquecer-se de que ela era pouco mais do que uma criança, era sua nora. Se desse ouvidos ao bom senso que o levara tão longe, deveria simplesmente prometer pagar o quinhão, devolvê-la aos pais e. depois, adiar o pagamento até a casarem com outro louco real, noutro sítio qualquer, e poderia sair da situação sem ter de pagar nada.

Mas a simples ideia dela casada com outro homem obrigou-o a parar e a encostar a mão aos painéis de madeira, para se apoiar.

Vossa Graça? - alguém perguntou. - Estais doente?

É a bílis - repetiu o rei. - Alguma coisa que comi. O seu criado privado aproximou-se dele.

Desejais que chame o vosso médico, Vossa Graça?

- Não - respondeu o rei. - Mas enviai alguns barris do melhor vinho para a Princesa Viúva. Não tem nada na adega, e quando tenho de a visitar, gostava de beber vinho e não cerveja.

- Sim. Vossa Graça - respondeu o homem, fazendo uma vénia e saindo. Henrique endireitou-se e foi para os seus aposentos.

Como de costume, estavam cheios de pessoas: peticionistas, corte-os, pessoas que procuravam obter favores, caçadores de fortunas, Runs amigos, alguns membros da pequena nobreza, nobres que lhe prestavam assistência, a troco de amor ou dinheiro. Henrique olhou-os com amargura. Quando era apenas Henrique Tudor, em fuga na Britânia, não era abençoado com tantos amigos.

- Onde está a minha mãe? – perguntou a um deles.

- Nos aposentos dela, Vossa graça – respondeu o homem.

- Vou falar com ela – afirmou – Comunicai-lhe.

Deu-lhe alguns momentos para se aprontar, e depois entrou nos aposentos dela. Após a morte da nora, mudara-se para o apartamento que era anormalmente atribuído à rainha. Encomendara

novas tapeçarias e mobílias e, agora, o local estava mobilado na mais opulência do que alguma rainha alguma vez tivera.

- Eu anuncio-me - disse o rei para o guarda que estava à porta e entrou sem cerimónias.

Lady Margaret estava sentada a uma mesa junto da janela co as contas da casa espalhadas à sua frente, inspeccionando os cu tos da corte real, como se tratasse de uma quinta bem gerida Havia muito pouco desperdício e não eram permitidas extravagâncias na corte gerida por Lady Margaret. e os criados reais que pen­saram que alguns dos pagamentos que lhes passavam pelas mãos poderiam deixar qualquer coisa no seu bolso, ficaram rapidamente desiludidos.

Henrique acenou com a cabeça, em sinal de aprovação, ao ver a supervisão que a mãe fazia à empresa real. Nunca se livrara da ansiedade de que a riqueza ostentatória do trono da Inglaterra aca­basse por não passar de uma mera aparência, financiara uma cam­panha para o trono com base em dívidas e favores; não queria ter de voltar a pedir empréstimos

Ela olhou-o enquanto ele entrava.

- Meu filho.

Ele ajoelhou-se para pedir a bênção, como fazia sempre, todos os dias, quando a cumprimentava pela primeira vez, e sentiu os seus

dedos tocarem suavemente no topo da sua cabeça.

Pareceis perturbado - observou.

E estou - respondeu ele. - Fui falar com a Princesa Viúva.

Ai sim? - Uma expressão fingida de desdém atravessou-lhe o rosto. - O que estão a pedir agora?

Nós - interrompeu ele e recomeçou novamente. - Temos de decidir o que vai ser dela. Falou em regressar à Espanha.

Quando nos pagarem o que nos devem - disse ela de ime­diato. - Eles sabem que têm de pagar o resto do dote. antes de ela poder ir embora.

- Sim, ela sabe disso. Fez-se um breve silêncio.

Ela perguntou se não podemos fazer outro acordo - disse ele. - Uma resolução.

Ah, estava ã espera disto - disse Lady Margaret exultante. -Sabia que andavam atrás disto. Só me surpreende que tenham esperado tanto. Suponho que pensaram que deviam esperar até ela sair do luto.

Atrás de quê?

Vão querer que ela fique cá - respondeu ela

Henrique conseguia sentir um sorriso a aflorar-lhe no rosto e fechou, deliberadamente, a expressão. _ Achais?

_ Tenho estado à espera que mostrem o jogo deles. Sabia que estavam à espera que déssemos o primeiro passo. Ah! Fizemo-los declararem-se primeiro!

Ele levantou as sobrancelhas, desejando que ela pusesse em palavras o que ele queria ouvir.

- À espera de quê?

- De uma proposta nossa, claro - respondeu ela. - Sabiam que nunca deixaríamos passar uma oportunidade destas. Ela era o par perfeito, na altura, e é-o agora. Fizemos um bom negócio com ela antes, e continua a sê-lo. Principalmente se pagarem a totalidade. E, agora, é mais rentável do que nunca.

Enrubesceu ao perguntar-lhe:

- Pensais que sim?

- Claro. Ela está aqui, metade do dote já está pago, só temos de cobrar o resto. Já nos livrámos da escolta, a aliança já está a funcio­nar em nosso benefício - nunca teríamos o respeito dos Franceses se não temessem os pais dela, os Escoceses também têm receio de nós - ela continua a ser o melhor negócio da Cristandade para nós.

A sua sensação de alívio era assombrosa. Se a mãe não se opu­sesse ao plano, então, podia levá-lo em frente. Ela era a sua melhor e mais segura conselheira há tanto tempo, que não poderia ter agido contra a sua vontade.

- E a diferença de idades? Ela encolheu os ombros.

- Qual é? Cinco, quase seis anos? Isso não é nada para um príncipe.

Ele encolheu-se corno se ela o tivesse esbofeteado.

Seis anos? - repetiu.

F o Henrique é alto e forte para a idade. Não vão ficar mal ao lado um do outro.

Não - disse ele secamente. - Não. Não é o Henrique. Não estava a falar do Henrique!

A fúria na voz dele alertou-a.

O quê?

Não. Não. Não é o Henrique. Maldição! O Henrique, não!

O quê? O que estais a dizer?

E óbvio! De certeza que é óbvio!

O olhar dela atravessou-lhe todo o rosto, interpretando-o rapidamente, como só ela era capaz.

Não estáveis a falar de Henrique?

Pensei que estivésseis a falar de mim.

- De vós? - ela reavaliou rapidamente a conversa. - De vf—TP para a Infanta? - perguntou incrédula.

Ele sentiu-se corar novamente.

Sim.

A viúva de Artur? A vossa própria nora?

- Sim. Porque não? Lady Margaret olhou para ele alarmada. Nem sequer precisava

de enumerar os obstáculos.

- Ele era demasiado jovem. Não foi consumado - disse ele repetindo as palavras que o embaixador espanhol ouvira de Dona Elvira, e que haviam sido espalhadas por toda a Cristandade.

Ela estava com um ar céptico.

- É o que ela diz. É o que a ama diz. É o que dizem Espanhóis. E o que todos dizem.

E acreditais neles? - perguntou ela friamente.

Ele era impotente.

Bem... - era típico dela não dizer nada enquanto estava a pensar. Olhou para ele. reparando na cor das suas bochechas e na perturbação do seu rosto. - Provavelmente estão a mentir. Vimo-los casar e deitarem-se juntos e. na altura, não houve qualquer indício de que não se concretizara.

Isso é um assunto deles. Se todos contam a mesma mentira e se a mantêm, é o mesmo que dizer a verdade.

- Só se o aceitarmos.

Nós aceitamos - decidiu ele. Ela levantou as sobrancelhas.

É esse o vosso desejo?

Não é uma questão de desejo. Preciso de uma mulher - disse Henrique serenamente, como se pudesse ser qualquer pessoa. - E> convenientemente, ela está aqui, como vós haveis dito.

Ela seria adequada pelo nascimento - concordou a mãe mas não pela relação que tem convosco. É vossa nora. mesOT o casamento não tenha sido consumado. E é muito nova.

Tem dezassete anos - contestou ele. - l ma boa idade p uma mulher. E é viúva. Está pronta para um segundo casamento-

Ou ela é virgem, ou não é - comentou Lady Margaret irritada. É melhor chegarmos a acordo.

Ela tem dezassete anos - corrigiu-se. - Uma boa idade p se casar. Está pronta para um casamento completo.

As pessoas não vão gostar - observou ela. - Vão lembrar do casamento dela com Artur, demos um espectáculo tão grande As pessoas gostam dela. Gostavam dos dois. A romã e a rosa. Ela con­quistou-os com a sua mantilha de renda.

- Bem. mas ele está morto - respondeu ele bruscamente. - E ela tem de casar com alguém.

- As pessoas vão achar estranho. Ele encolheu os ombros.

_ Vão ficar suficientemente alegres, se ela me der um filho. _ Oh. sim. se ela o conseguir. Mas ela não conseguiu ser fecun­dada pelo Artur.

- Como acordamos, o Artur era impotente. O casamento não foi consumado.

Ela cerrou os lábios, mas não disse nada.

- Assim, conseguimos o dote e não teremos de pagar-lhe o quinhão - assinalou ele.

Ela assentiu com a cabeça. Adorava a ideia da fortuna que Catarina lhes traria.

E ela já cá está.

Uma presença muito determinada - disse ela amargamente.

Uma princesa determinada - ele sorriu.

- Pensais mesmo que os pais dela vão aceitar? Suas Majestades da Espanha?

-É uma forma de resolver o dilema deles, assim como o nosso. E mantém a nossa aliança. - Reparou que ela estava a sorrir, e ten­tou manter uma expressão séria, como de costume. - Ela própria pensaria que é o seu destino. Acredita que nasceu para ser Rainha da Inglaterra.

Bem, então, é uma louca - observou a mãe inteligentemente.

Foi educada para ser rainha, desde criança.

- Mas vai ser uma rainha estéril. Nenhum dos filhos dela servirá para nada. Nunca poderá ser rei. Se chegar a ter um, ele virá a seguir a Henrique - relembrou-lhe. - Virá mesmo a seguir aos filhos de Henrique. É uma união muito mais fraca para ela do que o casamento com um Príncipe de Gales. Os Espanhóis não vão gostar.

- Oh, o Henrique ainda é uma criança. Os filhos dele ainda estão muito longe. A anos de distância.

- Mesmo assim. Isso pesará para os pais dela. Preferirão Henrique. Desse modo, ela será rainha e o filho que tiver será rei, a seguir a ela. Porque concordariam com menos do que isso?

O rei Henrique hesitou. Não havia nada que pudesse dizer para contrapor ao raciocínio dela, excepto que não desejava segui-lo.

- Oh, estou a perceber. Vós desejai-la - disse ela secamente, quando o silêncio se prolongou tanto que ela tomou consciência de que havia algo que ele não era capaz de dizer. - É uma questão do vosso desejo.

Ele aproveitou a deixa.

- Sim - confirmou.

Lady Margaret olhou-o de forma calculada. Por medida de segurança, fora afastado dela quando não passava de um bebé. Desde então, ela sempre o vira como um pretendente, um potenc' herdeiro do trono, como o seu passaporte para a grandeza. Mal o conhecera como bebé, nunca o amara na infância. Planeara o futuro como homem, defendera os seus direitos como rei, organiza­ra a sua campanha como uma ameaça a Casa de York - mas nunca sentira ternura por ele. Não conseguia aprender a ser indulgente com ele, nesta fase tão tardia da vida; jamais era indulgente cor quem quer que fosse, nem consigo própria.

Isso é muito chocante - disse ela calmamente. - Pensei que estávamos a falar num casamento de interesses. Ela é como uma filha para vós. Esse desejo é um pecado carnal.

Não é nada e ela não é minha filha - respondeu ele. - N há nada de errado com o amor honrado. Ela não é minha filha. É viúva dele. E o casamento não foi consumado.

Precisareis de uma dispensa papal, é um pecado.

Ele nem sequer esteve com ela! - exclamou ele.

A corte inteira foi pô-los na cama - observou ela secamemente.

- Ele era demasiado jovem. Era impotente. E morreu, pobre rapaz, poucos meses depois.

Ela acenou com a cabeça.

Isso é o que ela diz agora.

Mas não me aconselhais o contrário - disse ele.

- É um pecado - repetiu ela. - Mas se conseguirdes obter a dispensa e se os pais dela concordarem, então - fez uma expressão amarga. - Bem, suponho que mais vale que seja ela do que muitas outras - afirmou contrariada. - E pode viver na corte sob a minha atenção. Posso tomar conta dela e controlá-la com mais facilidade do que poderia fazer com uma rapariga mais velha, e sabemos que sabe comportar-se. É obediente. Aprenderá os seus deveres comigo. E as pessoas gostam dela.

- Falarei com o embaixador espanhol hoje. Ela pensou que nunca tinha visto uma alegria tão evidente

seu rosto.

- Presumo que conseguirei ensiná-la - apontou para os li que tinha à sua frente. - Tem muito que aprender.

Direi ao embaixador que o proponha a Suas Majestades da anha. e falarei com ela amanhã. _ Ireis visitá-la novamente, tão depressa? - perguntou ela curiosa.

Henrique assentiu com a cabeça. Não lhe diria que, mesmo esperar até ao dia seguinte, lhe parecia demasiado. Se tosse livre de o fazer, teria partido imediatamente para lhe pedir que casasse com ele nessa mesma noite, como se fosse um humilde escudeiro e ela uma clama, e não o Rei da Inglaterra e a Princesa da Espanha; pai e nora.

Henrique providenciou para que o Dr. de Puebla, o embaixa­dor espanhol, fosse convidado para o Palácio de Whitehall a tempo do jantar, para que lhe fosse oferecido um lugar numa das mesas de­cima, e para que lhe fosse servido o melhor vinho, em grande quan­tidade. Carne de veado, que estivera dependurada até atingir o ponto perfeito para ser comida, e que fora cozinhada com um molho de brandy a vinho, foi trazida para a mesa do rei. que se ser­viu de uma pequena porção e enviou a travessa ao embaixador espanhol. De Puebla, que nunca fora alvo de tais atenções, desde a primeira vez que negociara o contrato de casamento da Infanta, encheu o prato com uma colher pesada e mergulhou o melhor pão no molho, satisfeito por comer bem na corte, interrogando-se, por trás do seu silêncio ávido, o que aquilo poderia significar.

A mãe cio rei fez-lhe um sinal com a cabeça, e de Puebla levan­tou-se do seu lugar para lhe fazer uma vénia.

"Muito agradecido", observou para si mesmo, enquanto se vol­tava a sentar. "Extremamente. Excepcional."

Não era nenhum palerma, sabia que iam pedir-lhe alguma coisa, em troca de todas estas atenções públicas. Mas dado o horror que tora o ano anterior - em que as esperanças da Espanha haviam sido sepultadas sob a nave da Catedral de Worcester - pelo menos era um bom indício. Era evidente que o rei Henrique descobrira ma nova função para lhe atribuir, além da de bode expiatório do cumprimento do pagamento das dívidas dos soberanos espanhóis.

De Puebla tentara defender Suas Majestades da Espanha perante um rei inglês cada vez mais irritado... Tentara explicar-lhes em cartas longas e detalhadas que era inútil reclamar o quinhão de viúva de Catarina, se não pretendiam pagar o resto do dote. Tentou explicar a Catarina que não podia obrigar o rei inglês a pagar-lhe urna mesada mais generosa para a manutenção da sua residência, nem persuadir o rei espanhol a prestar apoio financeiro a filha. Ambos os reis eram bastante teimosos, e estavam extremamente determina dos em empurrar o outro para uma posição mais fraca. Nenhum parecia preocupar-se com o facto de, entretanto. Catarina, com ape­nas dezassete anos ser forçada a sustentar Lima casa com um séqui­to extravagante, numa terra estranha, praticamente sem dinheiro Nenhum dos reis daria o primeiro passo, nem assumiria ser respon­sável pelo sustento dela, temendo que tal o obrigasse a sustentá-la assim como ao seu séquito, para sempre.

De Puebla sorriu para o rei, que estava sentado no trono, sob o dossel do estado. Gostava genuinamente do rei Henrique, admi­rava a coragem com que conquistara e mantivera o trono, agradava--lhe o bom senso directo do homem. E mais do que isso. de Puebla gostava de viver na Inglaterra, estava habituado à sua boa casa em Londres, á importância que lhe era conferida por representar a mais recente e poderosa casa dirigente da Europa. Era-lhe aprazível o facto de as suas origens judaicas e a sua conversão recente serem totalmente ignoradas na Inglaterra, visto todos na corte lerem vindo do nada e terem alterado os nomes ou as filiações, pelo menos uma vez. A Inglaterra interessava a de Puebla, e ele faria todos os possí­veis para aí permanecer. Se isso implicasse servir melhor o Rei da Inglaterra do que o Rei da Espanha, considerava que tal seria uma pequena concessão a lazer.

O rei Henrique levantou-se do trono e fez um sinal, indicando aos criados que podiam levantar os pratos. Estes limparam a mesa e retiraram as mesas de apoio; Henrique passeou pelo meio dos convivas, parando, aqui e ali, para trocar algumas palavras, como um comandante entre os seus homens. Os favoritos da corte Tu dor eram os que tinham arriscado, que haviam colocado as espadas atrás das palavras e invadiram a Inglaterra com Henrique. sabiam o quão valiosos eram para ele, e ele conhecia a dimensão da sua importân­cia para eles. Continuava a ser muito mais um acampamento de vitoriosos do que uma calma corte de civis.

Por fim, Henrique concluiu o seu percurso, e dirigiu-se a de Puebla.

- Embaixador - saudou-o. De Puebla fez uma profunda vénia.

- Agradeço a vossa oferta do prato de carne de veado -afirmou. - Estava delicioso.

O rei acenou com a cabeça. _ Gostava de falar convosco. _ Com certeza.

- Em privado.

Os dois homens afastaram-se para um canto mais tranquilo do salão enquanto os músicos da galeria afinaram o tom, e começaram a tocar.

- Tenho uma proposta para resolver a questão da Princesa Viúva - disse Henrique, o mais secamente possível.

- De verdade?

- Podeis considerar a minha sugestão invulgar, mas julgo que é bastante recomendável.

"Finalmente", pensou de Puebla para dentro. "Vai propor o casamento com Henrique. Pensei que ia deixá-la afundar-se muito mais. antes de o fazer. Pensei que a ia deixar chegar tão baixo, que poderia cobrar-nos o dobro, por uma segunda tentativa em Gales Mas, que seja. Deus é misericordioso."

- Ah, sim? - disse de Puebla em voz alta.

- Sugiro que esqueçamos o problema do dote - começou Henrique. - Os bens dela ficarão na minha casa. Pagar-lhe-ei uma mesada apropriada, como fazia com a falecida rainha Isabel - Deus a abençoe. Eu próprio casarei com a Infanta.

De Puebla estava tão chocado que não conseguia falar.

Vós?

Eu. Há algum motivo em contrário?

O embaixador engoliu em seco, respirou fundo, e conseguiu dizer:

-Não, não, pelo menos... Suponho que pode haver uma objecção, com base na afinidade.

- Vou solicitar uma dispensa papal. Presumo que tendes a certeza de que o casamento não foi consumado?

A certeza - respondeu de Puebla numa voz entrecortada.

Haveis-mo garantido, com base na palavra dela?

A ama disse...

- Então, não foi nada - decidiu o rei. - Foram pouco mais do que metidos um do outro. Praticamente não foram marido e mulher. - Terei de colocar a questão a Suas Majestades da Espanha -disse Puebla,tentando desesperadamente pôr em ordem o torvelinho de seus pensamentos que o assaltava, esforçando-se por não mostrar quão chocado ficara.

- O Conselho Privado concorda? - perguntou, tentando ganhar tempo. - O Arcebispo da Cantuária?

- Por enquanto, é unia questão só entre nós - afim, Henrique com ar pretensioso. - Ainda e muito cedo para mim viúvo. Quero poder garantir a Suas Majestades que a filha será bem

tratada. Foi um ano difícil para ela.

Se tivesse podido regressar a casa...

Agora, não vai ser necessário ela regressar a casa. A casa dela é na Inglaterra. Este é o seu país - afirmou Henrique categórica mente. - Ela vai ser rainha aqui, como foi educada para ser.

De Puebla mal conseguia falar, de tão chocado que estava corri a sugestão daquele homem velho, que acabara de sepultar a mulher casar com a noiva do filho malogrado.

Claro. Então, devo dizer a Suas Majestades que estais bastan­te determinado neste sentido? Não há outro acordo que possamos analisar? - de Puebla clava voltas à cabeça para encontrar uma forma de mencionar o nome do príncipe Henrique, que seguramente era um futuro marido mais apropriado para Catarina. Por fim, foi direc­to. - O vosso filho, por exemplo?

O meu filho ainda é demasiado novo para poder ser consi­derado apto para casar - Henrique rejeitou imediatamente a suges­tão. - Tem onze anos e é um rapaz forte e desenvolvido, mas a avó insiste em que não façamos nenhuns planos para ele. nos próximos quatro anos. E, nessa altura, a Princesa Viúva terá vinte e um,

Ainda será jovem - disse entrecortadamente de Puebla. -Continuará a ser uma mulher jovem e com uma idade próxima da dele.

Não me parece que Suas Majestades queiram que a filha per­maneça na Inglaterra durante mais quatro anos. sem marido ou uma casa própria - disse Henrique numa ameaça aberta. - De cer­teza que não quereriam que esperasse pela maioridade de Henrique. O que faria durante esses anos? Onde viveria? Propõem comprar-lhe um palácio e organizar o seu séquito? Estão prepara­dos para lhe enviar uma renda? Ima corte, apropriada à sua posi­ção? Durante quatro anos?

Se ela pudesse regressar a Espanha para esperar? - arriscou de Puebla.

Pode partir já, se pagar a totalidade do dote e procurar a sua sorte em qualquer outro lugar. Pensais mesmo que ela consegue

obter uma proposta melhor do que a de ser Rainha da Inglaterra, pensais, levai-a!

Era o impasse a que haviam chegado vezes sem conta no ano

transacto. De Puebla sabia que fora derrotado.

- Vou escrever a Suas Majestades esta noite - afirmou.

Sonhei que era um gaivão, voando sobre os montes dourados j(i sierra Nevada. Mas, desta vez, voava para norte, o sol quente da tarde estava do meu lado esquerdo, à minha frente podia ver um conjunto de nuvens frias. Depois, de repente, a nuvem ganhou forma era o Castelo de Ludlow, e o meu pequeno coração de pássa­ro batia descompassadamente ao vê-lo e, ao pensar na noite que chegaria, que ele me abraçaria, se deitaria sobre mim e eu me fun­diria de desejo por ele.

Depois vi que não era Ludlow, mas que as grandes paredes cin­zentas eram as do Castelo de Windsor, a curva do rio era o enorme espelho cinzento do rio Tamisa, todo o tráfego que ia e vinha, os gran­des navios ancorados, eram a riqueza e o movimento dos Ingleses. Sabia que estava longe da minha casa e, no entanto, estava em casa. Esta seria a minha casa, construiria um pequeno ninho na pedra cinzenta destas torres, tal como teria feito na Espanha. E aqui chamar-me-iam gaivão; um pássaro que voa tão velozmente que nunca ninguém o viu pousar em terra, um pássaro que voa tão alto, que julgam que nunca toca no chão. Não serei Catarina, a Infanta da Espanha. Serei Catarina de Aragão, Rainha da Inglaterra, tal como Artur me chamou-. Catarina, Rainha da Inglaterra.

- O rei está cá novamente - disse Dona Elvira, olhando para fora da janela. - Veio a cavalo com apenas dois homens. Nem sequer trouxe um porta-estandarte ou um guarda - fungou. A infor­malidade generalizada dos Ingleses era suficientemente má, mas este rei tinha os modos de um criado dos estábulos.

Catarina correu para a janela e olhou para fora.

- Que poderá ele querer? - perguntou. - Dizei aos criados que ecantem algum vinho, do que ele enviou.

Dona Elvira saiu apressadamente da sala. No momento seguinte, Henrique entrou, sem se fazer anunciar.

- Pensei em vir visitar-vos - disse. Catarina baixou-se numa grande reverência.

- Vossa Graça, honrais-me muito - disse ela. - E pelo menos agora- posso oferecer-vos um copo de bom vinho.

Henrique sorriu e esperou. Os dois permaneceram de pé enquanto Dona Elvira voltava à sala com uma dama de companjjj que transportava um tabuleiro mourisco, de latão, com dois conn de vidro veneziano, contendo vinho tinto. Henrique reparou na deli cadeza do trabalhado e calculou, correctamente, que faria parte do dote que os Espanhóis haviam retido.

A vossa saúde - disse ele, levantando o copo na direcção da princesa.

Para sua surpresa, ela não se limitou a levantar o copo, mas também os olhos, lançando-lhe um olhar prolongado, atencioso. Ele sentiu um formigueiro, como um menino, quando os seus olhos

encontraram os dela.

Princesa? - disse baixinho.

Vossa. Graça?

Ambos olharam para Dona Elvira, que estava de pé, a uma i tância pouco confortável, a observar silenciosamente as tábuas do soalho, sob os seus sapatos gastos.

- Podeis deixar-nos - disse o rei.

A mulher olhou para a princesa, à espera das suas ordens não fez nenhum movimento para sair.

- Quero falar em particular com a minha nora - disse o rei Henrique firmemente. - Podeis sair.

Dona Elvira fez uma reverência e saiu. e o resto das damas de companhia saiu atrás dela.

Catarina sorriu para o rei.

- Como desejardes - disse.

Ele sentiu as pulsações a aumentar com o sorriso dela.

- De facto, preciso de falar convosco em privado. Tenho u proposta a fazer-vos. falei com o embaixador espanhol e ele escre­veu aos vossos pais.

"Finalmente. E agora. Por fim", pensou Catarina. "Veio propor que Henrique case comigo. Graças a Deus. que me trouxe ate esU dia. Artur, meu amor, hoje verás que serei fiel à promessa que te rz

- Tenho de voltar a casar - disse Henrique.

Ainda sou jovem

pensou que não ia dizer que a sua idade era quarenta e seis anos

Ainda posso ter mais um ou dois filhos.

Catarina assentiu com a cabeça, educadamente; mas quase estava a ouvir. Estava á espera que ele lhe pedisse para casar o príncipe Henrique.

- Tenho estado a pensar em todas as princesas da Furopa poderiam ser companheiras adequadas para mim - disse.

A princesa diante dele continuou em silêncio.

- Não consigo encontrar ninguém que escolhesse.

Ela abriu mais os olhos, para indicar que estava a ouvir aten­tamente.

Henrique continuou.

- A minha escolha incidiu sobre vós - disse directamente -, pelos seguintes motivos. Vós já estais aqui em Londres, já vos habi­tuastes a viver aqui. Fostes educada para ser Rainha da Inglaterra, e sereis rainha, como minha mulher. As dificuldades com o dote podem ser postas de lado. Recebereis a mesma mesada que pagava à rainha Isabel. A minha mãe está de acordo.

Por fim, as palavras dele penetraram na sua mente. Estava tão chocada que quase não conseguia falar. Só olhava para ele.

- Eu?

- Existe uma pequena objecção, com base na afinidade, mas pedirei ao Papa para me conceder uma dispensa - prosseguiu. - Sei que o vosso casamento com o príncipe Artur nunca foi consumado. Nesse caso, não existe uma objecção verdadeira.

Não foi consumado - Catarina repetiu as palavras de cor, como se já não as compreendesse. A grande mentira fizera parte de uma conspiração para a levar ao altar com o príncipe Henrique, não com o pai. Agora, não podia retirá-la. A sua mente estava tão ator­doada que era a única coisa a que se podia agarrar. - Não foi con­sumado.

Então, não deve haver obstáculos - disse o rei. - Depreendo que não vos opondes?

Apercebeu-se de que quase não conseguia respirar, enquanto aguardava a resposta cicia. Qualquer ideia de que ela tivesse estado a enganá-lo. a provocá-lo até àquele momento, evaporou-se, quan­do olhou para o seu rosto lívido e chocado.

Pegou-lhe na mão.

- Não façais um ar tão assustado - disse ele, numa voz baixa e terna – Não vou magoar-vos. Isto é para resolver todos os vossos problemas.

Serei um bom marido. Tomarei conta de vós. - Esforçava-se desesperadamente por dizer alguma coisa que lhe agradasse –comprar-vos-ei coisas bonitas - disse. - Como aquelas safiras de que gostastes tanto, tereis um armário cheio de coisas bonitas, Catarina.

Ela sabia que tinha de responder.

- Estou tão surpreendida - disse.

-De certeza que havíeis percebido que vos desejava?

Sufoquei o meu grito de negação. Queria dizer que era evidente que não percebera. Mas não era verdade, Eu percebera, como qualquer mulher jovem teria percebido, pela forma como me olhava pela forma como eu lhe respondera. Desde o primeiro momento que o vira, houve esta subcorrente entre nós. Eu ignorei-a. Fingi que era algo mais natural do que era. desenvolvi-a. A culpa foi sobretudo minha.

Na minha vaidade, pensei que estava a incentivar um homem mais velho a pensar em mim de uma forma agradável, que podia envolvê-lo, agradar-lhe, até mesmo namoriscar com ele, primeiro como um sogro dedicado e depois para o convencer a casar-me com Henrique. Queria agradar-lhe como filha, queria que me admirasse, que me mimasse. Queria que me adorasse.

Isto é um pecado, um pecado. Um pecado de vaidade e de orgu­lho. Suscitei a sua lascívia e o seu desejo. Levei-o a pecar, através da minha loucura. Não me admira que Deus me tenha voltado o rosto e que a minha mãe nunca me escreva. Eu estou muito eirada.

Querido Deus, sou uma tonta, e uma louca infantil e vaidosa por fazê-lo. Não atraí o rei para uma armadilha, para minha satis­fação, apenas preparei o isco para que caísse na minha armadilha. A minha vaidade e orgulho fizeram-me pensar que podia levá-lo a fazer o que eu quisesse. Ao invés, só consegui despertar o seu desejo, e agora ele fará o que quer. E é a mim que ele quer. E a culpa é estu­pidamente minha.

- Deveis ter percebido. - Henrique sorriu para ela com ar con­fiante. - Deveis ter percebido, quando vim visitar-vos ontem, e quando vos enviei o vinho de qualidade?

Catarina acenou ligeiramente com a cabeça. Percebera que algo - tonta como era -, percebera que algo estava a acontecer; e orgu­lhou-se das suas habilidades diplomáticas, por ser tão inteligente ao ponto de dominar completamente o Rei da Inglaterra. Considerara--se uma mulher do mundo e o embaixador um idiota, por não con­seguir obter este resultado de um rei que era tão fácil de manipular. Pensara que tinha o Rei da Inglaterra na mão, quando, de facto, ele tinha o seu próprio plano em mente.

- Desejei-vos desde o primeiro momento que vos vi - disse-lhe ele, muito baixinho.

Ela olhou para cima.

- De verdade?

- Sim. Quando entrei no vosso quarto de dormir em Dogmersfield.

Ela recordava um homem velho, sujo da viagem e magro, o pai do homem com quem ia casar. Lembrava-se do odor masculino a suor quando ele forçara a entrada no seu quarto, e de ter perma­necido de pé diante dele, pensando: que palhaço, que soldado rude, a forçar a entrada num lugar onde não é desejado. E, depois, chegou Artur, com o cabelo loiro desgrenhado, e o brilho do seu sorriso tímido.

- Oh, sim - disse ela. De qualquer lugar, lá bem no fundo da sua decisão, arrancou um sorriso. - Eu lembro-me. Eu dancei para vós.

Henrique puxou-a para mais perto de si e colocou-lhe um braço em volta da cintura. Catarina obrigou-se a não se afastar.

Eu observei-vos - disse ele. — E desejei-vos.

Mas éreis casado - disse Catarina formalmente.

- E agora sou viúvo e vós também - respondeu ele. Sentiu a rigidez do corpo dela através dos ossos duros do estômago e sol­tou-a. Teria de cortejá-la aos poucos, pensou. Ela podia ter namo­riscado com ele, mas agora estava assustada pela mudança que ocorrera. Provinha de uma educação absurdamente protectora e os meses inocentes que passara com Artur praticamente não lhe haviam aberto os olhos. Teria de levar as coisas com calma. Teria de aguardar até ela receber a permissão da Espanha, deixaria o embaixador contar-lhe da riqueza que poderia dirigir, teria de dei­xar as suas damas de companhia convencê-la dos benefícios daque­la união. Era uma mulher jovem, por natureza e experiência, devia ser uma tonta. Teria de lhe dar tempo.

- Agora, vou deixar-vos - disse ele. - Voltarei amanhã.

Ela acenou com a cabeça, e acompanhou-o à porta dos seus aposentos privados. Nessa altura, hesitou:

- Faláveis verdade? - perguntou-lhe, com os olhos azuis subitamente ansiosos. - Pretendíeis que isto fosse uma proposta de casamento e não um estratagema numa negociação? Quereis mesmo casar comigo? Serei rainha?

Ele acenou com a cabeça.

- Sim - começou a aperceber-se do tamanho da ambição dela e sorriu ao descobrir uma forma de se aproximar. - Quereis assim tanto ser rainha?

Catarina assentiu com a cabeça.

- Fui educada para sê-lo - respondeu. - Não quero mais nada - Hesitou, por momentos, quase pensou revelar-lhe que esse fora o último pensamento do filho, mas a sua paixão por Artur era dema­siado grande para ser partilhada com quem quer que fosse, mesmo com o pai dele. F, além disso, Artur planeara que ela deveria casar com Henrique.

O rei estava a sorrir.

Então, não tendes desejo, mas tendes ambição - observou ele algo friamente.

É apenas o meu dever - replicou ela categoricamente. - Eu nasci para ser rainha.

Ele pegou-lhe na mão e inclinou-se sobre ela. Beijou-lhe os dedos; e impediu-se de os lamber. "Calma!" Avisou-se a si mesmo. "É uma menina, e possivelmente ainda é virgem; não é seguramen­te uma prostituta." Endireitou-se.

- Farei de vós Catarina de Aragão, Rainha da Inglaterra - pro­meteu-lhe, e viu os seus olhos azuis escurecerem de desejo ao ouvir o título. - Podemos casar assim que tenhamos a dispensa do Papa.

Pensa! Pensa! Digo a mim própria com urgência. Não foste educada por uma idiota para seres uma idiota, foste educada por uma rainha para seres uma rainha. Se isto é um estratagema, devias ser capaz de o adivinhar. Se for uma proposta verdadeira, devias poder voltá-la a teu favor.

Não é o cumprimento exacto da promessa que fiz ao meu amado, mas assemelha-se-lhe. Ele queria que eu fosse Rainha da Inglaterra e que tivesse os filhos que ele me teria dado. E qual e o problema de eles serem seus meios-irmãos. em vez de sobrinha e sobrinho? Não faz diferença.

Encolho-me só de pensar em casar com aquele homem velho, com idade para ser meu pai. A pele do seu pescoço é fina e flácida, como a de uma tartaruga. Não consigo imaginar-me na cama com ele. O seu hálito é azedo, o hálito de um velho; e magro, e deve ser ossudo nas ancas e nos ombros. Mas também me encolho ao imaginar-me na cama com aquela criança, o Henrique. O seu rosto é tão macio e arredondado como o de uma menina. Para dizer a verdade, não suporia a ideia de ser a mulher de outra pessoa que não Artur: e essa parte da minha vida desapareceu.

Pensa! Pensa! Esta pode ser a atitude certa a tomar!

Oh, Deus, meu amado, gostava que estivésseis aqui para me dizer. Gostava de poder visitar-vos no jardim para que me dissésseis o que deveria fazer. Tenho apenas dezassete anos, não posso ser mais astuta do que um homem com idade para ser meu pai, um rei com faro para detectar os pretendentes ao trono.

Pensa!

Não vou ter a ajuda de ninguém. Tenho de pensar sozinha.

Dona Elvira esperou até à hora de a princesa se deitar e até que as clamas de companhia, as aias e os criados do quarto de dor­mir se tivessem retirado. Fechou a porta e voltou-se para a prince­sa, que estava sentada na cama, com o cabelo apanhado numa tran­ça, e as almofadas empilhadas atrás de si.

- O que queria o rei? - perguntou sem cerimónias.

- Fazer-me uma proposta de casamento - respondeu Catarina bruscamente. - Com ele.

Por momentos a ama ficou demasiado espantada para falar, depois benzeu-se, como uma mulher que estava a ver algo impuro.

Deus nos salve - foi tudo o que disse. Depois: - Deus lhe perdoe por sequer pensar nisso.

Deus vos perdoe - respondeu Catarina inteligentemente. -Eu estou a considerar a hipótese.

- Ele é vosso sogro, e tem idade para ser vosso pai.

-A idade não é importante - disse Catarina com sinceridade. Se eu voltar para a Espanha, não vão procurar-me um marido jovem, mas um que lhes traga benefícios.

- Mas ele é o pai do vosso marido. Catarina apertou os lábios.

- Do meu falecido marido - disse tristemente. - E o casamen­to não foi consumado.

Dona Elvira engoliu a mentira; mas os seus olhos piscaram, só uma vez.

- Como recordais - disse Catarina suavemente.

Mesmo assim! É contranatura!

Não é contranatura - afirmou Catarina. - Não houve consumação do casamento, não houve filhos. Por isso, não pode ser peca­do contra a natureza. E, de qualquer modo, podemos obter uma dispensa.

Dona Elvira hesitou.

Podeis?

Ele diz que sim.

- Princesa, não podeis desejar uma coisa destas? O rosto da princesa estava triste.

Ele não vai prometer-me ao príncipe Henrique - disse. - Diz que o rapaz é muito novo. Não posso esperar quatro anos até ele crescer. Que mais posso fazer, senão casar com o rei? Nasci para ser Rainha da Inglaterra e mãe do próximo Rei da Inglaterra. Tenho de cumprir o meu destino, foi o destino que me foi atribuído por Deus. Pensei que teria de me forçar a aceitar o príncipe Henrique. Agora, parece que terei de me obrigar a aceitar o rei. Talvez Deus esteja a testar-me. Mas eu tenho força de vontade. Serei Rainha da Inglaterra, e a mãe do rei. Transformarei este país numa fortaleza contra os Mouros, como prometi à minha mãe, farei dele um país ele justiça e de honestidade, protegido elos Escoceses, como prometi a Artur.

Não sei o que vai pensar a vossa mãe - afirmou a ama. - Se soubesse, não vos teria deixado sozinha com ele.

Catarina acenou com a cabeça.

- Não volteis a deixar-nos a sós - fez uma pausa. - A não ser que vos faça sinal com a cabeça - pediu. - Posso fazer-vos um sinal para partirdes, e então, tendes de sair.

A ama estava chocada.

- Ele nem sequer devia ver-vos, antes do dia do casamento. Direi ao embaixador que tem de dizer ao rei que, agora, não pode visitar-vos.

Catarina abanou a cabeça.

- Já não estamos na Espanha - disse agressivamente. - Ainda não percebestes? Não podemos deixar isto nas mãos do embaixador, nem sequer a minha mãe poderá adivinhar o que irá acontecer. Eu terei ele fazer com que isto aconteça. Eu sozinha trouxe as coisas ate

aqui, e eu sozinha farei com que aconteça.

Esperei sonhar contigo, mas não sonhei com nada. É como se tivesses partido, para muito, muito longe. Não recebi nenhuma carta da minha mãe, por isso, não sei o que pensará da vontade do rei. Rezo, mas não obtenho respostas de Deus. Ealo com muita coragem do meu destino e da vontade de Deus, mas parecem estar bastante confundidos. Se Deus não me fizer Rainha da Inglaterra, então, não sei como poderei acreditar n’ Ele. Se não for Rainha da Inglaterra, enteio, não sei o que sou.

Catarina esperou que o rei a visitasse como prometera. Não veio no dia seguinte, mas Catarina estava segura de que viria no dia a seguir. Passados três dias, foi passear sozinha para a beira-rio, aquecendo as mãos debaixo da capa. Tinha tanta certeza cie que ele voltaria, que se preparara para o manter interessado, mas sob o seu controlo. Planeara aliciá-lo. mantê-lo sob o seu domínio. Quando não veio, percebeu que estava ansiosa para o ver. Não de desejo -pensava que nunca mais voltaria a sentir desejo - mas porque ele era a sua única via para aceder ao trono da Inglaterra. Quando viu que ele não vinha, sentiu um receio de morte de que ele se tivesse arrependido e que nunca mais viesse.

"Porque é que ele não vem?" pergunto às pequenas ondas do rio, que batem contra as margens enquanto um barco a remos passa. "Porque é que veio um dia. tão apaixonado e sincero, e depois não voltou a aparecer?"

Tenho tanto medo da mãe dele. nunca gostou de mim. e se ela virar a cara. não sei se ele ira em frente. Mas depois lembro-me que ele me dissera que a mãe dera a sua permissão. Depois, temo que o embaixador espanhol possa 1er dito alguma coisa contra o amento - mas não posso acreditar que de Puebla dissesse algu­ma coisa que contrariasse o rei, mesmo se isso fosse contra os m interesses

"Então, porque não vem?"pergunto a mim mesma. Se estava a cortejar-me à moda inglesa, cheio de pressas e informalidades não, devia cá vir todos os dias?"

Mais um dia passou, e depois outro. Por fim, Catarina cedeu ansiedade e enviou uma mensagem ao rei, para a corte, dizendo que esperava que se encontrasse bem.

Dona Elvira não disse nada. mas, nessa noite, a sua coluna rígida, enquanto supervisionava a escovagem e a limpeza do vestido Catarina, dizia tudo.

Sei o que estais a pensar - disse Catarina, enquanto a ama fazia um gesto à criada de quarto, para que escovasse o cabelo de Catarina. - Mas não me posso arriscar a perder esta oportunidade.

Não estou a pensar nada - respondeu friamente a mulher mais velha. - Estes são os hábitos ingleses. Como me haveis dito não podemos reger-nos pelas regras de decência espanholas. E por isso, não estou habilitada a falar. É evidente que os meus conselhos não são aceites. Sou um recipiente vazio.

Catarina estava demasiado preocupada para confortara mulher mais velha.

- Não me importa o que sois - disse distraidamente. – Talvez ele venha amanhã.

Henrique, ao perceber que a ambição dela era a forma de se aproximar, dera à rapariga alguns dias para analisar a sua posição Pensou que ela poderia comparar a vida que levava na casa de Durham. em reclusão com a sua pequena corte espanhola, com a mobília a tornar-se cada vez. mais gasta e sem vestidos novos, com a vida que poderia levar como jovem rainha no trono de uma das cortes mais ricas da Europa. Pensou que ela tinha o bom senso suficiente para analisar tudo isso a sós. Quando recebeu o bilhete dela,

untando como estava a sua saúde, soube que estava certo; e no dii seguinte, cavalgou até à Strand para a visitar.

sentinela que guardava o portão dela informou que a prin-eSa estava no jardim, a passear com as aias, à beira-rio. Henrique ntrou pt-da porta traseira do palácio, para o terraço, e desceu as cadas até ao jardim. Viu-a à beira do rio, a passear sozinha, à fren­te das suas aias. a cabeça ligeiramente inclinada, pensando, e sen­tiu uma sensação antiga e familiar no estômago, ao ver uma mulher que desejava. Fê-lo sentir-se novamente jovem, aquela sensação profunda de desejo, e sorriu para si mesmo, por sentir paixão de um homem jovem, por conhecer novamente o delírio de um jovem.

O pajem, que corria à sua frente, anunciou-o e ele viu-a levantar a cabeça ao ouvir o seu nome, olhar para o outro lado do pátio e ve­do. Ele sorriu, estava à espera daquele momento de reconhecimento, entre uma mulher e um homem que a ama - o momento em que os olhos se encontram e ambos conhecem esse instante de alegria inten­sa, essa situação em que os olhos dizem: "Ah, és tu!" e isso é tudo.

Ao invés, como uma pancada seca, percebeu de imediato que não havia palpitação do seu coração ao avistá-lo. Ele sorria timida­mente, com o rosto iluminado pela ansiedade; mas ela, num pri­meiro momento de surpresa, ficou apenas admirada. Ao ser apa­nhada de surpresa, não fingiu emoção, não tinha o ar de uma mulher apaixonada. Olhou para cima, viu-o - e ele pôde adivinhar de imediato que ela não o amava. Não houve nenhum choque de prazer. Pelo contrário, friamente, observou uma expressão de cál­culo atravessar-lhe o rosto. Era uma rapariga apanhada numa situa­ção imprevista, interrogando-se se conseguiria obter o que preten­dia. Era o ar de um vendedor, que avaliava um tonto, pronto para 0 espoliar. I [enrique, pai de duas raparigas egoístas, reconheceu-o num instante, e soube que o que quer que a princesa pudesse dizer, Por muito doce que pudesse ser. este seria um casamento de con­veniência para ela, independentemente do que significasse para ele. . mais do que isso. sabia que ela decidira aceitá-lo.

Caminhou sobre a relva cortada rente, para ir ter com ela, e Pegou-lhe na mão.

- Bom-dia, Princesa. Catarina fez uma reverência.

- Vossa Graça.

Ela voltou a cabeça para as damas de companhia.

- Podeis ir para dentro - A Dona Elvira disse: - Preparai refres­cos par Sua Graça, quando voltarmos para dentro. - Depois voltou-se novamente para ele. - Quereis caminhar, senhor?

- Sereis uma rainha muito elegante - disse com um sorriso

Dais as ordens com muita suavidade.

Viu-a abrandar o andar e a tensão abandonar o seu corpo magro e jovem, enquanto exalava

Então. era verdade - respirou fundo. - Quereis mesmo casar comigo.

- Quero - disse ele. - Sereis uma Rainha da Inglaterra muito bonita.

Ela ficou radiante só com a ideia.

- Ainda tenho de aprender muitos hábitos ingleses.

A minha mãe ensinar-vos-á - respondeu ele tranquilamente - Ireis viver na corte, nos aposentos dela e sob a sua supervisão.

Catarina abrandou o seu passo.

Com certeza terei os meus próprios aposentos, os aposentos da rainha?

A minha mãe está a ocupar os aposentos da rainha - di ele. - Mudou-se para lá, após a morte da malograda rainha, Deus abençoe. E vós juntar-vos-ei a ela lá. Ida pensa que sois demasia jovem para terdes os vossos próprios aposentos e uma corte á parte Podeis viver nos aposentos da minha mãe, com as damas de companhia dela e ela pode ensinar-vos como devem ser feitas as coisas.

Conseguia perceber que ela estava perturbada, mas esforça -se bastante para não o demonstrar.

Penso que sei como devem ser feitas as coisas num palácio real - afirmou Catarina, tentando sorrir.

Um palácio inglês - disse ele firmemente. - Felizmente minha mãe tem gerido todos os meus palácios e castelos e conseguiu reunir uma fortuna, desde que subi ao trono. Ela ensinar-vos -á como se faz.

Catarina calou a sua discórdia.

- Quando pensais que teremos notícias do Papa? - pergunto

Enviei um emissário a Roma para saber - disse Henrique Teremos de apresentar o pedido em conjunto, os vossos pais e Mas deve ficar resolvido rapidamente. Se todos estivermos de acordo. não pode haver grandes objecções.

- Sim - disse ela.

- E estamos completamente de acordo em relação ao casa

mento? - procurou ele confirmar.

- Sim - repetiu ela.

Ele pegou-lhe na mão e prendeu-a debaixo do seu braço, Catarina aproximou-se ligeiramente e deixou a cabeça encostada ombro dele. Não usava toucado, apenas o carapuço da sua capa

Lhe cobria o cabelo, e o movimento empurrou-o para trás. Ele conseguia sentir a essência de rosas no seu cabelo, o calor da sua cabeça encostada ao seu ombro. Teve de se controlar para não a abraçar.

Parou e ela manteve-se perto dele; conseguia sentir o calor dela, por todo o seu corpo.

- Catarina - disse ele, numa voz muito baixa e muito grossa. Ela olhou-o de relance, viu o desejo no seu rosto, e não se

afastou. Felo contrário, aproximou-se um pouco.

- Sim, Vossa Graça? - sussurrou.

Os seus olhos estavam baixados, mas lentamente, no silêncio, levantou-os para ele. Quando o seu rosto estava levantado para olhar o dele. ele não conseguiu resistir ao convite velado, inclinou--se e beijou-lhe os lábios.

Não se retraiu, aceitou o beijo dele. a sua boca entregou-se. ele conseguia sentir o seu gosto, os seus braços rodearam-na, apertou--a contra si, sentia o desejo por ela percorrê-lo com tanto fulgor que teve de soltá-la, nesse preciso minuto, ou desgraçar-se-ia.

Soltou-a e ficou a tremer com um desejo tão forte que não con­seguia acreditar no seu poder, à medida que o invadia. Catarina puxou o carapuço para a frente, como se pretendesse colocar um véu entre si e ele, como se fosse uma rapariga num harém com um véu a tapar-lhe a boca, só mostrando os olhos escuros e promissores, por cima da máscara. Aquele gesto, tão estranho, tão secreto, fê-lo desejar empurrar-lhe o capuz e beijá-la novamente. Puxou-a para si.

- Podem ver-nos - disse ela friamente, e afastou-se dele. -Podem ver-nos de casa, e qualquer um pode passar no rio.

Henrique soltou-a. Não conseguia dizer nada, porque sabia que a sua voz iria tremer. Em silêncio, ofereceu-lhe o braço mais uma vez, e ela aceitou-o silenciosamente. Adaptaram o ritmo do andar um ao outro, ele atrasando a sua passada longa, para acompanhar os Passos dela. Caminharam em silêncio por alguns instantes.

- Os nossos filhos serão vossos herdeiros? - perguntou ela, num tom de voz frio e firme, seguindo uma linha de pensamento muito distante do torvelinho de sensações que o invadia. Ele pigarreou.

- Sim, sim, claro.

- E essa a tradição inglesa?

Sim.

Estarão à frente dos vossos outros filhos?

- O nosso filho estará à frente da princesa Margaret e de Mary disse. - Mas as nossas filhas virão depois delas.

Ela franziu ligeiramente as sobrancelhas.

Como? Porque é que não vêm primeiro?

Primeiro dá-se prioridade ao sexo, depois à idade - disse - O primeiro rapaz a nascer é o herdeiro, depois vêm os outros rapazes, e, a seguir, as raparigas, por idade. Deus permita que haja sempre um príncipe para herdar. A Inglaterra não tem tradição de rainhas que governem.

Uma rainha pode governar tão bem como um homem - afirmou a filha de Isabel de Castela.

-      Não na Inglaterra - disse Henrique Tudor. Ela não insistiu.

Mas o nosso filho mais velho seria rei, quando morrerdes prosseguiu ela.

Deus permita que ainda tenha mais alguns anos para viver disse ele secamente.

Ela tinha dezassete anos, não tinha nenhuma sensibilidade relação à idade.

Claro. Mas quando morrerdes, se tivéssemos tido um filho ele seria o herdeiro?

Não. O rei a seguir a mim será o príncipe Henrique, Príncipe de Gales.

Ela franziu a testa.

- Pensei que pudésseis nomear um herdeiro? Não pode nomear o nosso filho?

Ele abanou a cabeça.

- Henrique é o Príncipe de Gales. Será rei a seguir a mim.

Pensei que ele estivesse destinado à Igreja?

Já não.

- E se tivermos um filho? Não podeis designar Henrique rei dos domínios franceses ou da Irlanda, e o nosso filho Rei da Inglaterra?

Henrique sorriu brevemente.

Não. Porque isso implicaria destruir o meu reino, que me custou bastante a conquistar e a manter unido. Será tudo de Henrique por direito - viu como ela estava perturbada. - Catarina, vos se Rainha da Inglaterra, um dos mais importantes reinos da Europa, lugar que a vossa mãe e o vosso pai escolheram para vós. Os vossos filhos e filhas serão príncipes e princesas da Inglaterra. Que m podeis querer?

Quero que o meu filho seja rei - respondeu-lhe ela bane mente.

Ele encolheu os ombros.

- Não pode ser.

Ela voltou-se ligeiramente, apenas a mão dele, a apertar a sua. a mantinha perto.

Ele tentou desanuviar o ambiente, rindo-se:

Catarina, ainda nem sequer estamos casados. Podeis nem sequer vir a ter um filho. Não precisamos de estragar o nosso noiva­do por causa de uma criança que ainda nem sequer foi concebida.

Então, qual seria o objectivo do casamento? - perguntou ela, directa na sua auto-absorção.

Ele poderia ter respondido "o desejo".

- O destino, para que sejais rainha. Ela não desistia.

- Pensei ser Rainha da Inglaterra e ver o meu filho no trono -repetiu. - Pensei ser poderosa na corte, como a vossa mãe. Pensei que havia castelos para construir e uma armada para planear, esco­las e universidades a fundar. Quero defender o país dos Escoceses nas nossas fronteiras, a norte, e dos Mouros, nas nossas costas. Quero ser uma rainha governante na Inglaterra, foi o que planeei e esperei. Fui nomeada como a próxima Rainha da Inglaterra, prati­camente no berço, pensei no reino no qual eu iria reinar, fiz planos. Há muitas coisas que quero fazer.

Ele não aguentou, riu-se às gargalhadas do raciocínio daquela rapariga, aquela criança, pretendendo fazer planos para governar o reino dele.

- Descobrireis que eu estou à vossa frente - disse ele friamen­te. - Este reino será governado como o rei decidir. Este reino é governado como eu decido. Não tive de lutar para conseguir a coroa, para a entregar a uma rapariga com idade para ser minha filha. A vossa tarefa será a de encher o quarto das crianças e o vosso mundo começará e terminará aí.

- Mas a vossa mãe...

- Descobrireis que a minha mãe protege as coisas dela e eu as minhas - disse ele, ainda a rir perante a ideia de aquela criança Planear o futuro na sua corte. - Ela dar-vos-á ordens, como se fôsseis uma filha, e vós obedecereis. Não vos enganeis, Catarina. Vireis para a minha corte e obedecer-me-eis, vivereis nos aposentos da rainha mãe e obedecer-lhe-eis. Sereis Rainha da Inglaterra e tereis a coroa

na cabeça. Mas sereis minha mulher, e eu terei uma mulher obediente, como sempre tive. Interrompeu-se, não queria assustá-la, mas o seu desejo por ela não era maior do que a sua determinação em manter o reino pelo qual lutara tão arduamente para conquistar.

- Não sou uma criança como Artur - disse-lhe tranquilamente pensando que o filho, um rapaz meigo, poderia ter feito todo o tipo de promessas a uma mulher jovem e determinada. - Não governareis ao meu lado. Sereis uma noiva-criança para mim. Amar-vos-ei e far-vos-ei feliz. Juro que ficareis feliz por casardes comigo. Serei meigo convosco. Serei generoso convosco. Dar-vos-ei tudo o que desejardes. Mas não farei de vós uma governante Mesmo após a minha morte, não governareis o meu país.

Nessa noite sonhei que era rainha numa corte, com um ceptro numa das mãos e um bastão na outra, e uma coroa na cabeça. Levantei o ceptro e descobri que se transformava na minha mão, era um ramo de uma arvore, o pé de uma flor. não tinha qualquer valor. A minha outra mão já não estava ocupada com o globo pesado do bastão, mas com pétalas de rosa. Podia sentir o seu odor. Levantei a mão para tocar na coroa que tinha na cabeça e senti uma pequena coroa de flores. A sala do trono desapareceu e eu estava no jardim da sultana, no Alhambra, com as minhas irmãs a fazerem coroas de margaridas, para porem nas cabeças umas das outras.

- Onde está a Rainha da Inglaterra'''- alguém chamou do ter­raço por baixo do jardim.

Levantei-me do tapete deflores de camomila e senti o odor do perfume agridoce da relva, enquanto tentava correr, passando pela fonte, até ao arco. no fundo do jardim.

Estou aqui!- tentei responder, mas não consegui jazer ouvir a minha voz acima do ruído da água a cair na taça de mármore.

Onde está a Rainha da Inglaterra? - ouvi chamarem nova­mente.

Estou aqui'- respondi silenciosamente.

Onde está a Rainha Catarina da Inglaterra?

Aqui! Aqui! Aqui'

 

 

                                                                  CONTINUA

 

 

O embaixador, que foi chamado ao romper do dia para ir de imediato à Casa de Durham, não se preocupou em chegar das nove da manhã. Encontrou Catarina à sua espera, nos seus aposentos privados, apenas na companhia de Dona Elvira.

- Mandei chamar-vos há várias horas - disse a princesa irritada.

- Estava a tratar de assuntos para o vosso pai, e não pude vir mais cedo - respondeu suavemente, ignorando a expressão irada do rosto dela. - Há algum problema?

- Ontem falei com o rei e ele repetiu a proposta de casamento - disse Catarina, com um tom orgulhoso na voz.

- De facto.

- Mas ele disse-me que eu viveria na corte, nos aposentos da mãe dele.

-Oh! - o embaixador acenou com a cabeça.

- E disse que os meus filhos só herdariam a seguir ao príncipe Henrique.

O embaixador assentiu novamente com a cabeça.

- Não podemos convencê-lo a esquecer o príncipe Henrique? Não podemos elaborar um contrato de casamento, para o afastar, em favor do meu filho?

 

 

 

 

O embaixador abanou a cabeça.

Não é possível.

Um homem deve poder escolher o seu herdeiro?

- Não. Não no caso de um rei estar há tão pouco tempo no trono. Não um rei inglês. E mesmo que pudesse, não o faria.

Ela levantou-se da cadeira e dirigiu-se à janela.

- O meu filho será o neto dos reis da Espanha! - exclamou. -Com séculos de realeza. O príncipe Henrique não é mais do que o filho de Isabel de York e de um pretendente ao trono bem-sucedido.

De Puebla soltou um pequeno assobio de horror perante o seu descaramento e olhou para a porta.

- É melhor que nunca lhe chameis isso. Ele é o Rei da Inglaterra.

Ela acenou com a cabeça, aceitando a reprimenda.

- Mas ele não tem a minha linhagem - prosseguiu. - O príncipe Henrique não seria o rei que o meu filho viria a ser.

- A questão não é essa - observou o embaixador. - É uma questão de tempo e de prática. O filho mais velho do rei é sempre o Príncipe de Gales. É sempre ele que herda o trono. O rei, de todos os reis do mundo, não vai transformar o seu herdeiro legítimo num mero pretendente ao trono. Ele foi perseguido por pretendentes. Não vai criar mais um.

Como sempre, Catarina retraiu-se ao pensar no último pretende, Edward de Warwick, degolado para desimpedir o caminho dela.

Além disso - continuou o embaixador -. qualquer rei preferiria ter um filho robusto de onze anos como herdeiro do que recém-nascido no berço. Vivemos tempos perigosos. Um homem quer ter outro homem para lhe suceder, não uma criança.

Se o meu filho não vai ser rei, então, qual é o objectiva meu casamento com um rei? - perguntou Catarina.

Seríeis rainha - assinalou o embaixador.

Que tipo de rainha iria ser com Sua Alteza, a Mãe do Rei tomar todas as decisões? O rei não me permite governar o reino ela não me deixaria gerir a corte como pretendo.

Sois muito jovem - comentou ele, tentando acalmá-la.

Tenho idade suficiente para saber o que quero - afirmou Catarina. - E quero ser tão rainha na prática, como sou de nome Mas ele nunca mo permitirá, pois não?

Não - admitiu de Puebla. - Nunca dareis ordens, enquanto ele for vivo.

E quando morrer? - perguntou sem se retrair.

Então, sereis a Rainha Viúva - respondeu de Puebla.

E os meus pais poderão casar-me novamente com outra pes­soa qualquer, e eu poderia ter de sair da Inglaterra, de qualquer forma! - terminou ela, bastante exasperada.

É possível - admitiu ele.

E a mulher de Henrique seria Princesa de Gales e a nova rainha. Estaria à minha frente, governaria em meu lugar, e todo o m sacrifício não teria valido de nada. E os filhos dela seriam os Reis Inglaterra.

Isso é verdade.

Catarina atirou-se para cima da cadeira.

- Então, tenho de ser mulher do príncipe Henrique - disse ele.

- Tenho de ser.

De Puebla estava bastante horrorizado...

   

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"