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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAVALO DE TRÓIA (9–CANÀ) - P.2 / J. J. Benitez
CAVALO DE TRÓIA (9–CANÀ) - P.2 / J. J. Benitez

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAVALO DE TRÓIA 9

CANÀ

Segunda Parte

 

Deviam ser dez da manhã, mais ou menos.

Havia muito caminho pela frente. E tornei a questionar: o povoado dos bastardos ficava a uma hora e meia dali. Será que o Mestre entraria no conflituoso assentamento dos mamzerim? Eram milhares de casebres com a escória da sociedade judaica. Quem isto escreve já havia tido uma amarga sensação ao atravessar aquela "cidade"[1], quando ia e vinha de Cesareia. Eu não conseguia imaginar o Filho do Homem no meio de tamanho desastre humano. Ou poderia? O que podia acontecer se alguém pedisse sua ajuda?

E Jesus entrou na "cidade dos desventurados", mas em outro momento.

O Galileu foi revezando enquanto avançávamos. Caminhava com uns e com outros, ou com o grupo, conforme o momento. Dedicou ao "urso" parte do trajeto. Bartolomeu continuava mancando da perna esquerda.

A verdade é que cruzamos com pouca gente.

E à quinta hora (11 da manhã), o Mestre fez o que eu havia imaginado: ao divisar o cruzamento para a aldeia de Arbel, foi desviando e acabou pegando à esquerda, abandonando a trilha principal. Foi uma feliz idéia. Aquele atalho para o yam era mais recomendável que o cruzamento por entre os bastardos, e, posteriormente, a passagem pela intrincada cidade ae Tiberíades. A propósito, ao longo do caminho, antes de chegar ao referido desvio para Arbel, a aldeia das redes, o Mestre foi explicando a cada discípulo que, no futuro, deviam evitar as cidades de Séforis (capital da baixa Galileia) e Tiberíades. Não deu explicações. Meu irmão, Eliseu, é quem acabaria esclarecendo o mistério. E Jesus também recomendou que procurassem falar o menos possível sobre o ocorrido na boda de Caná. "Um pouco tarde", pensei.

Uma vez no caminho que levava a Arbel, o Mestre escolheu um círculo de oliveiras à direita e sugeriu que descansássemos. Era hora do almoço.

E os discípulos se sentaram no chão. Alguns aproveitaram para urinar.

Felipe, o "urso" e André prepararam a comida.

Jesus se acomodou ao pé de uma das velhas oliveiras e contemplou o céu. Fiz cálculos. Eu conhecia a região. Estávamos a 193 metros acima do nível do mar e a pouco mais de uma hora e meia de Migdal. Antes do ocaso, se essas fossem as intenções de Jesus, poderíamos estar em Nahum.

O céu começou a se abrir, mas, na parte que havíamos deixado para trás, especialmente nas colinas de Caná, o horizonte continuava negro e borrascoso. De vez em quando, a parede de nuvens se acendia, e adivinhavam-se os trovões. Não eram relâmpagos azuis, como os que vi em Caná. Devia estar chovendo ou nevando sobre a casa de Nathan. A festa ainda duraria? Como teria reagido a Senhora ao saber que seu Filho havia aban­donado o lugar? O "vinho prodigioso" se esgotaria? Que pensariam Tiago e Judas, irmãos de Jesus, da súbita partida do Mestre e de seus discípulos? E o que dizer do persa? Continuaria procurando por mim?

E, mergulhado nessas reflexões mais ou menos importantes, fui sur­preendido por algo que havia se perdido na penumbra do esquecimento.

O Mestre revirou seu saco de viagem e tirou a pequena bolsa azul profundo que Ticra lhe dera nessa mesma manhã, ao alvorecer.

Fiquei intrigado. O que continha?

E prestei atenção.

O Filho do Homem, feliz, cantarolando em voz baixa, soltou a cor­da e abriu a bolsa. Olhou dentro dela e, sempre cantarolando, ergueu os olhos e me procurou com o olhar. Fiquei lívido. Pouco faltou para que este explorador desviasse o olhar, mas não. Decidi resistir àquela "luz" cor de mel. Não era fácil se acostumar a Ele penetrando seus pensamentos...

Sorriu, divertido, e continuou cantarolando.

Eu conhecia a canção: "Deus é ela..."

Era uma das favoritas do Mestre. Eu a ouvi pela primeira vez no esta­leiro dos Zebedeu, quando o Galileu trabalhava em uma das embarcações.

"Ela, o primeiro heh, que segue o yod...” Jesus martelava os pregos e fazia coincidir os golpes com algumas palavras.

O Mestre, sempre sorrindo, baixou a vista e se concentrou de novo no conteúdo da bolsa de lã.

"... Ela, a linda e virgem..."

E assim ficou por alguns segundos, contemplando não sei o quê. Eu estava aflito.

Felipe soltou um palavrão em homenagem aos pais do dono do albergue "supondo que os tenha", acrescentou. Não sei o que estava acontecendo.

... O cálice do segredo... Pai e Mãe são nove mais seis..."

A canção fluía devagar. Jesus mantinha a bolsa aberta. Parecia enfeitiçado pelo conteúdo. Observei de novo suas mãos. Eram especial­mente atraentes: longas, estilizadas, com as unhas sempre limpas e bem cortadas. Varonis, mas não deformadas pelo trabalho. Era assombroso: Jesus foi carpinteiro, ferreiro, pedreiro, pescador e também naggar, carpinteiro naval. Suas mãos, pela lógica, deviam estar deformadas. Mas, ao contrário.

"... Deus é ela..."

Por que não tirava de uma vez o conteúdo da bolsa? Tive vontade de me levantar e bisbilhotar, mas não. Meu atrevimento não chegava a esse extremo. Meu irmão com certeza teria sido capaz de algo assim.

O Mestre parecia encantado com o presente de Ticra. Disso não havia dúvida. E prosseguiu contemplando-o, mas sem tirá-lo da bolsa azul.

Comecei a pensar que não o tiraria.

"... Ela, o segundo heh, habitante dos sonhos..."

E o "urso" se juntou aos xingamentos de seu sócio, Felipe de Saidan. E isse algo sobre o cabrito que o "caolho" lhe havia vendido.

Eu me resignei.

Jesus não parecia disposto a mostrar o presente da mãe do noivo.

Eu me enganei, naturalmente.

"... Deus é ela..."

E, sem abandonar o sorriso divertido, colocou a mão esquerda na bolsa e resgatou seu conteúdo.

Finalmente!

O sol, quase no alto, recebeu-o com a mesma ansiedade que eu. Mas ele o fez brilhar. Eu não estava preparado, ainda, para tal façanha.

Ao vê-lo, fiquei perplexo. Havia me esquecido daquilo por completo.

E Felipe, mal-humorado, aproximou-se de Jesus e lhe mostrou o ensopado de cabrito. O discípulo pegou um pedaço, levou-o à boca e tentou morder.

- Maldito cão sarnento! Isto é lenha!

Jesus não teve tempo de reagir. Felipe voltou com seus companheiros e continuou xingando o "caolho". O cabrito, ao que parecia, era intragável.

O Mestre esqueceu o contratempo e prosseguiu, encantado com o cálice de metal com que havia brindado e bebido na festa de casamento de Noemi e Johab. Era isso. Esse foi o presente de Ticra.

Passou-o pelos dedos e o deixou brilhar. O sol estava adorando e fazia seu trabalho às mil maravilhas.

Era uma liga, como disse, mas não sabia qual. Teria que tê-lo tocado e analisado.

O Galileu tirou um pano vermelho da bolsa azul e começou a dar bri­lho à taça. Ticra, cuidadosa, havia previsto tudo. O pequeno lenço de linho, vermelho-cereja suave, servia para manter o curioso objeto limpo e brilhante. E digo curioso porque, pelo que pude observar, o cálice tinha um acabamento e uma forma pouco comuns. E desejei ardentemente acariciá-lo e examiná-lo. O ideal teria sido no "berço". Mas compreendi que estava sonhando.

Digo desde agora. Não sei por que, desde o primeiro momento, me senti atraído pelo cálice. Foi uma empatia incrível. E o mesmo aconteceu com o Mestre. Desde que os serviçais de Sapiah ofereceram as taças de metal à família e ao convidado de honra, o Filho do Homem observou e acariciou a taça com um especialíssimo cuidado. E me veio à mente a sequência do jardim de Getsêmani e aquelas terríveis palavras de Jesus, aterrorizado diante do que estava prestes a acontecer: "Abba! Vim a este mundo para cumprir Tua vontade e assim fiz. Sei que chegou a hora de sacrificar minha vida carnal. Não me esquivo, mas gostaria de saber se é Tua vontade que beba deste cálice".

E repetiu, minutos mais tarde:

"Pai... muito bem sei que é possível evitar este cálice. Tudo é possível para Ti. Mas vim para cumprir Tua vontade e, não obstante ser tão amar­ga, eu a beberei se é Teu desejo."

Isso aconteceu (aconteceria) na madrugada de sexta-feira, 7 de abril do ano 30 de nossa era, na periferia de Jerusalém.

Senti um calafrio.

O que aquele cálice simbolizava? Por que estava lá? Por que o Galileu sentia tanta atração por ele? Por que me emocionei ao vê-lo?

Mas o Mestre acabou guardando a taça de metal e dando atenção aos seus.

O almoço, efetivamente, malogrou, em parte. O ensopado tinha mais anos que o sol, e a carne era dura feito pedra. Os discípulos xingaram o "caolho". Era curioso. Por ora, Jesus não parecia incomodado com a linguagem dos íntimos. Não levava em consideração seus palavrões. E decidimos pelo pão escuro molhado no molho. Aquilo aliviou, em boa medida, jo mau humor geral. A fruta fez o resto.

E enquanto descansávamos, enquanto alguns discípulos cochilavam ao pé das oliveiras, o Galileu pegou de novo o cálice de metal e o entregou a mim, pedindo que lhe permitisse provar o "vinho prodigioso". Rapidamente satisfiz seus desejos.

Peguei a taça e fui até o saco de viagem, colocado debaixo de uma árvore com as outras mochilas.

Jesus observava. Eu sabia, mesmo estando de costas para Ele.

E aproveitei para examinar o cálice com atenção.

Parecia aço inoxidável, mas, obviamente, eu não tinha certeza.

Aço inoxidável?

Esse tipo de liga começou a ser industrializado na Europa em 1910, graças aos trabalhos de especialistas como Gielsen, Portevin, Maurer e Strauss, entre outros. Como era possível? Sinceramente, depois da experiência com a espada de "aço de Damasco" vivida em Jerusalém durante o segundo "salto" no tempo[2], já não me atrevi a negar absolutamente nada. Tudo era possível naquela louca e maravilhosa aventura.

O cálice era inteiriço. Devia medir cerca de 13 centímetros de altura, com um diâmetro de seis na boca. O pé era oco e do mesmo diâmetro. Era extraordinariamente brilhante. Havia sido polido com uma espécie de torno. Dentro do cálice notavam-se as espirais e os pontilhados produzidos pelo torno. O peso me chamou a atenção. Calculei cerca de meio quilo. Muito para um cálice dessas dimensões.

A feitura era maravilhosa. Foi trabalhado com requintada delicadeza (como não podia ser diferente).

E naquele momento tornei a pensar: como gostaria de levá-lo ao “berço" e analisá-lo exaustivamente!

Mas foi só um pensamento.

Cheirei-o. Era metal. Pelo menos, foi o que me pareceu.

Não quis me demorar mais. Enchi a taça com o vinho do prodígio e voltei para perto do Galileu. Entreguei-a, e Jesus agradeceu o gesto com outro interminável sorriso. Aquela dentição, branca, perfeitamente ali­nhada, sem defeito algum, deixava-me fascinado.

Correspondi ao sorriso, mas não me dei conta do segredo que o olhar do Filho do Homem encerrava. Fui tolo. Aquele olhar carregava uma mensagem. Agora eu sei.

Pensei nos discípulos. Convidava-os a dividir a bebida prodigiosa? Des­cartei a ideia. A análise era prioritária. Não podia perder nem mais uma gota.

Jesus ergueu a taça, e o sol, atento, encheu-a de reflexos.

E o Mestre, em voz baixa, entoou seu brinde favorito:

Lehaim! (À vida.)

Os discípulos não viram nem ouviram.

Então, aproximou o cálice de seu rosto, contemplou novamente o vinho e o cheirou devagar, semicerrando os olhos.

Levou-o aos lábios e bebeu com lentidão e curiosidade. Deixou que o vinho se acomodasse em sua boca e o degustou sem pressa.

Continuava de olhos fechados, mas seu rosto irradiava satisfação. Es­tava gostando daquilo.

E nisso, um dos discípulos - acho que João Zebedeu - pediu a aten­ção do grupo.

E apontou para o oeste, para Caná.

Ficamos maravilhados.

Foi um espetáculo único. Maravilhoso. Oportuníssimo. Mágico.

Ao fundo, no céu negro-azulado, sobre as colinas, viam-se dois enor­mes arco-íris, concêntricos, quase redondos.

Cem anos de boa sorte... - clamou o "urso".

Essa era a crença quando se viam dois arco-íris ao mesmo tempo. Quando se via um, a sorte - diziam - se prolongava por 50 anos (a vida toda, praticamente). Pura superstição.

O arco interno (o mais próximo do solo) era o mais brilhante, exata­mente como cabe a esse tipo de fenômeno.

Então, ao observar com calma, reparei em algo que me deixou confu­so. Na realidade, não foi um, mas dois "detalhes" estranhos.

Para começar, era meio-dia. O sol estava praticamente no zênite. Nessa posição, é difícil ver um arco-íris, e muito menos um duplo. Eu tive oportunidade de ver um quando voava sobre meu país, os Estados Unidos. Era um círculo completo, belíssimo. Eu tive sorte, sim. Nessa oportunidade, porém, o duplo arco, o observador e o sol formavam um ângulo reto.[3]

O segundo detalhe que me deixou perplexo foi, sem dúvida, o mais notável. No arco primário (o mais brilhante), duas das cores habituais do espectro estavam em posição trocada.

Olhei de novo.

Não era possível... O que estava acontecendo? Aquele fenômeno era desconhecido para este explorador. Não recordava ter lido algo sobre isso.

O violeta, que devia aparecer na parte baixa do arco-íris (a mais próxima ao chão, para entender melhor), estava no "exterior", na parte mais alta do arco. O vermelho, por sua vez, ocupava a posição do violeta. Em vez de estar na parte alta, para meu desconcerto, foi relegado à parte inferior.

As outras cores estavam "em seu lugar", como deviam.

Aquilo não tinha sentido... Ou tinha?

Quanto ao arco secundário, como manda a natureza, a ordem das cores era invertida em relação ao primário. Nesse aspecto, tudo normal.

Eu estava tão absorto na contemplação dos dois arco-íris concêntricos que quase perdi o Galileu de vista.

Mas Jesus, alertado pelos comentários dos discípulos, acabou abrindo os olhos e teve oportunidade de contemplar aquela maravilha.

Então, ergueu de novo o cálice em direção aos arco-íris e o manteve nessa posição durante alguns segundos.

E repetiu, também em voz baixa:

- Lehaim!

Minha confusão foi total. A quem estava brindando?

Não fui muito esperto, não senhor. Lá havia muito mais do que parecia.

O cálice lentamente voltou aos lábios do Mestre, e o Filho do Ho­mem bebeu o vinho prodigioso. Depois, reclinou a cabeça no tronco da oliveira e fechou os olhos novamente. Seu semblante estava sereno. De cada poro seu saía um pouco de luz. Foi o que me pareceu.

E a taça de metal descansou no colo do Galileu, firmemente presa em seus dedos. O sol cuidou de enchê-la de cintilações.

E fez-se um longo silêncio. Um silêncio sem fundo.

Desfrutei do singular arco-íris até que, lentamente, foi se extinguin­do. O segundo arco também acabou desaparecendo e só ficou o horizonte negro e fechado, justamente sobre Caná. Justamente...

Eu me senti bem e confuso ao mesmo tempo. Não soube a que atribuir aquela intensa sensação de paz. Agora, passado o tempo, acho que sei.

Quanto à confusão, era lógica. Como disse, jamais havia visto coisa igual. Não existe bibliografia a respeito que eu tenha podido encontrar. E posso afirmar que procurei, começando pelo banco de dados de nosso fiel colaborador, "Papai Noel". Não há nada sobre a inversão de cores no arco-íris. Não é lógico nem racional. Não obedece ao conhecido. Porém, quando Eliseu soube do ocorrido, sorriu com a mesma malícia que o Galileu e deu uma possível explicação. Disse que... Bem, melhor que ele mesmo dê os detalhes, quando chegar a hora. Evidentemente a inversão do violeta e do vermelho tinha sentido.

Não sei quanto tempo se passou. Não calculei.

O caso é que assim que os arco-íris desapareceram, voltei-me para o Mestre e o contemplei. Pensei que estava cochilando, mas não. De repen­te, por sua face direita deslizou uma lágrima. Era uma lágrima apressada. E Ele a escondeu, rapidamente, na barba.

Não houve mais. Fiquei impressionado.

Os discípulos acabaram caindo em um plácido sono. Pedro, felizmen­te, não interrompeu aquele momento mágico com seus roncos. Acho que nenhum dos seis notou a misteriosa lágrima do Filho do Homem.

E quem isto escreve se perguntou: "Por que o Mestre chorou?" Foi de felicidade? Viu algo que os outros não viram? Foi de tristeza? Soube de algo que também não fomos capazes de intuir? Nunca descobri.

Passado um tempo, o Galileu abriu os olhos. Olhou à sua volta e re­cuperou a disposição. Observou este explorador e, após me dar uma pis­cada, levantou-se. Guardou o cálice, colocou o saco de viagem no ombro e alertou seus homens para que retomassem a marcha.

Pouco depois, o grupo estava em movimento, rumo ao mar de Tiberíades.

Estávamos perto da uma da tarde.

E continuei me perguntando: "Que foi que aconteceu naquele remoto caminho, perto da aldeia de Arbel?" Tinha certeza de que havia sido testemunha de algo especial, muito especial, e talvez tão prodigioso quanto a conversão da água em vinho, mas não soube decifrar o novo mistério.

E, mergulhado nesses pensamentos, contornei com os outros a tranquila Arbel, e seguimos pela planície das pimpinelas espinhosas rumo aos desfiladeiros de Hamam e dos "pombos", perto doyam.

Os enigmas do cálice e da inversão de cores no arco-íris me deixaram obcecado. E durante um bom tempo não fiz nada além de pensar nisso. Mas certo de que não chegaria a nenhuma solução enquanto não pudesse examinar a peça de metal e consultar o computador central, optei por me refugiar em outro tema, não menos problemático: o evangelho de João. E fui testemunha do ocorrido na boda de Caná e recordava o que João Zebedeu havia escrito a respeito; o citado evangelista também fora teste­munha (a sua maneira) do prodígio.

Sorri com meus botões. Os crentes, ao ler esse texto[4], podem imaginar uma festa de casamento muito diferente do que realmente foi, e, acima de tudo, podem acreditar no que nunca existiu. Embora os fatos já tenham sido narrados, acho que é minha obrigação repassar o citado texto de João. Se não fizesse isso, não ficaria tranquilo. A leitura do evangelho ae João é simplesmente uma demonstração da pouca credibilidade dos assim chamados "escritores sagrados". Vamos aos dados:

  1. "Três dias depois celebrava-se um casamento em Caná da Galileia" diz João.

Em minha opinião, é o único acerto do evangelista. Haviam se pas­sado três dias (quase quatro) desde a partida de Jesus e seus recém-escolhidos discípulos do meandro Ômega, nas proximidades do Jordão. A propósito, por que o Zebedeu não menciona em seu texto a queima feita pelo Mestre em Nazaré? Não a julgou importante? João sabia que essa faceta artística (desenhar e esculpir figuras humanas) era proibida pela Lei de Moisés. Por que escondeu a queima de quadros ou a destruição das estatuetas de barro? Temia que acusassem o Filho do Homem de idólatra?

  1. "... e estava ali a mãe de Jesus; e foi também convidado Jesus com seus discípulos para o casamento."

Correto, mas havia muito mais gente. Por que João não faz menção a Tiago e a Judas, irmãos do Mestre? Também estavam lá. Um deles, inclusive - Tiago participou com a mãe de uma consulta a Jesus sobre o quando e o como do prodígio. Por que o evangelista oculta isso? No fim do texto, porém, João deixa escapar que os irmãos de Jesus também compareceram à festa de casamento: "Depois disso desceu a Cafarnaum, ele, sua mãe, seus irmãos, e seus discípulos (...)". Obviamente, se João Zebedeu houvesse contado toda a verdade, deveria ter falado desse encontro entre Jesus, a Senhora e Tiago e, em consequência, ver-se-ia obrigado a explicar qual era o pensamento de Maria e de muitos dos ali reunidos. Como pode que o evangelista defendesse as idéias da Senhora sobre um líder, um Messias, político e libertador de Israel? O evangelho de João, não esqueçamos, foi escrito muitos anos depois da morte do Filho do Homem. João era o primeiro a acreditar nesse Messias "quebrador de dentes", pelo menos naquele momento. Depois, compreendeu (mais ou menos) e mudou de opinião. Mas, dado seu orgulho, não podia aceitar que na época em que se deu a boda de Caná ele fosse um defensor do Messias político-religioso-social. Essa é a razão básica pela qual manipulou a verdade.

  1. "E, tendo acabado o vinho(...)"

Naquele momento (quatro da tarde), pouco antes do prodígio, o vinho não havia acabado. Segundo meus cálculos, restavam cerca de 240 litros de vinho e uns 80 litros de cerveja (quatro metretas de vinho e duas de cerveja).

  1. "(...)a mãe de Jesus lhe disse: 'Eles não têm vinho'."

Não foi assim que se desenrolaram os fatos. Foi Ticra, a mãe do noi­vo, quem avisou à Senhora que o vinho estava acabando.

  1. "Respondeu-lhes Jesus: 'Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora'."

João não estava presente quando se deu esse diálogo entre a Senhora e seu Filho. Das duas, uma: ou ele o inventou, ou a Senhora lhe contou de­pois, à sua maneira. Ou Maria contou a verdade e João Zebedeu a mudou a seu bel-prazer. É muito diferente dizer "Que tenho eu contigo, mulher?" em vez de "Minha boa mulher, que tenho eu a ver com isso?" E também não foi o Mestre quem anunciou "que havia chegado sua hora". Foi Maria quem disse isso, e acrescentou algo importante: "Não podes nos ajudar?" Entendo que essas sutilezas devem ser destacadas.

  1. "Disse então sua mãe aos serventes: 'Fazei tudo quanto ele vos disser'''

João faz desaparecer o resto da conversa entre o Mestre e a mãe e, evidentemente, a recriminação que Jesus faz a Maria: "Por que me ator­mentas de novo com esse assunto?" Não era bem-visto que o Mestre se queixasse diante da Senhora? Pelo jeito, não.

E o evangelista não menciona as lágrimas de Maria. Por quê?

E também não faz referência às palavras do Galileu quando adverte a mulher de que não torne a fazer promessas que comprometam o Filho. Tratava-se de outra recriminação, e isso, evidentemente, não agradou a João Zebedeu. E a verdade foi sepultada de novo.

Mas o mais lamentável, do meu ponto de vista, foi o silêncio do evan­gelista com relação à cena seguinte, quando Jesus se dirige a uma Senhora arrasada pelo pranto: "Já chega, mãe Maria! Não chores por minhas pala­vras, aparentemente duras. (...) Com quanta alegria faria o que me pedes se essa fosse a vontade de Abba..".

Por que não menciona o instante em que Jesus coloca a mão esquerda na cabeça de Maria, em sinal de consolo? Por que não diz nada sobre os beijos e os abraços da Senhora?

É verdade que Maria disse aos serviçais: "O que meu Filho vos disser, fareis!". Mas as circunstâncias em que se deu essa instrução não foram as contadas pelo evangelista.

  1. "Ordenou-lhe Jesus: 'Enchei de água essas talhas'. E encheram-nas até em cima."

Falso. Jesus não disse absolutamente nada, nem a ninguém. Sim­plesmente, quando compreendeu o ocorrido, deu meia-volta e se afastou, refugiando-se no terraço da casa. João inventou a cena, ou alguém lha contou, deturpando os fatos. As talhas, além de tudo, estavam cheias de água. O conteúdo era reposto constantemente. Ninguém as encheu "até em cima". Aliás, João não se lembrava direito. Não sabe se as talhas eram de duas ou três metretas. Eram de três metretas, exatamente, com um to­tal de cerca de 720 litros. Esse foi o volume do "vinho prodigioso".

  1. "Tirai agora, e levai ao mestre-sala."

Nova invenção do escritor. Insisto: João Zebedeu não esteve pre­sente. Não sei de onde tirou essa informação. Ele estava a certa distân­cia, perto de um dos candelabros, na galeria norte da Sapiah, com os outros discípulos. A "descoberta" do "vinho prodigioso" se deu de outra forma. Jesus não estava perto das cad quando um dos escravos notou que "aquilo não era água".

  1. "E eles o fizeram. Quando o mestre-sala provou a água (...) cha­mou o noivo e lhe disse: 'Todo homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho'."

Prosseguem as falsidades. O vinho não foi levado ao mestre-sala. O maître, ou mestre de cerimônias, foi às talhas, como o dono da casa e a própria Senhora, quando começou a correr o rumor. Provou o vinho, de fato, mas não se dirigiu ao noivo, e sim ao pai deste. E suas palavras estão incompletas. Falou do vinho e afirmou que era bom, mas João, o evangelista, ignorou as dúvidas do mestre-sala. Este, em nenhum momento, falou de prodígio. Para o persa, tudo foi um engano. E esse foi o pensamento do pai do noivo e de muitos convidados.

Também não faz referência ao tipo de vinho (doce), muito apro­priado para a sobremesa, nem à circunstância de que a maior parte dos comensais já havia jantado. Naturalmente, João evita o súbito desapare­cimento do Filho do Homem, e diz ainda menos de sua volta e de como abandonou a casa.

Quanto à divisão de opiniões entre os convidados sobre a natureza do que havia acontecido, João Zebedeu se abstém. Lendo seu evangelho, temos a sensação de que todo mundo, desde o início, considerou o apa­recimento do "vinho prodigioso" como um portento. Nada mais longe da realidade.

  1. "Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele."

João estava mal informado. Não foi em Caná que o Mestre fez seu primeiro prodígio. Foi no lago Hule, em Beit Ids, onde aconteceram os primeiros fatos sobrenaturais, que eu saiba...

E outro detalhe de especial importância que João, na hora de es­crever seu evangelho, conhecia perfeitamente: não foi um prodígio feito por Jesus, e sim por sua "gente", e com o consentimento de Abba, o que é muito diferente.

  1. "Depois disso desceu a Cafarnaum, ele, sua mãe, seus irmãos, e seus discípulos; e ficaram ali não muitos dias."

Falso também. A mãe, Tiago e Judas não voltaram com Ele ao yam. Jesus voltou com seus discípulos. A Senhora e os irmãos voltariam a Nahum horas depois, na noite de quinta-feira, 28 de fevereiro.

Quanto ao fato de não terem ficado lá muitos dias, mais falso ainda.

Mas disso falarei a seu devido tempo.

Em resumo: o evangelho de João, no que diz respeito à boda de Caná, rode ser considerado um absoluto e total desastre. Em 30 linhas contei mais de 12 erros, alguns especialmente graves. A manipulação foi desca­rada. João Zebedeu faltou com a verdade, uma vez mais.

E uma última observação. Se o prodígio de Caná foi tão importante e foi) e o Zebedeu fala de semeion (sinal), por que os demais evangelistas r.ão o mencionam? Será que souberam das dúvidas que assaltaram os con­vidados da festa e optaram pelo silêncio?

Como dizia o Mestre, quem tiver ouvidos, que ouça.

E foi a caminho do yam, perto de Nahum, que comecei a com­preender outro episódio singular vivido por este desconcertado explo­rador quase quatro meses antes, na chamada garganta de El Firan[5], ruando me coube conviver com Yehohanan. Em uma daquelas noites (novembro do ano 25) julguei ter tido um sonho. Foi um sonho (?) estranho. "Vi" no céu estrelado uma série de "luzes" que pareciam navegar de forma inteligente. Pois bem, várias dessas "luzes" afastaram-se do cinturão de Orion, sobre o qual haviam permanecido camufladas, e deram início a uma vertiginosa descida rumo ao desfiladeiro em que eu estava. No meio do caminho, as "luzes" se fundiram em uma. E uma enorme bola branca se precipitou para quem isto escreve. E, quando pensei que tudo estava prestes a voar pelos ares, a bola parou. Flutuava como uma pluma. Era uma enorme esfera branca radiante. Tudo à mi­nha volta estava iluminado como se fosse dia. Aquela luz não produzia sombras. A esfera, situada a uns 500 metros acima de minha cabeça, tinha um 1,8 quilômetro de diâmetro (exatamente 1.757,9096 metros). Nunca entendi como eu soube disso, mas a medida chegou nítida a minha mente. Era o mesmo objeto enorme que foi observado em 7 de abril do ano 30 sobre Jerusalém, quando surgiram as não menos mis­teriosas "trevas" no momento do falecimento do Galileu. Pois bem, de repente, essa esfera mudou de cor e passou ao vermelho-cereja. E se elevou a grande velocidade, desaparecendo em direção a Orion. Mas o "sonho" não havia terminado. Não sei como, alguma coisa ficou flu­tuando na noite. E foi descendo rumo à garganta do El Firan. Eram le­tras e números, em hebraico e aramaico, enlaçados como elos de uma corrente! Eram como o cristal, mas não era cristal! Abri as mãos e dei­xei que pousassem nelas. E retive na memória algumas daquelas pala­vras e daqueles números. Foi isto que "vi" no "sonho" (nesta ordem): "ÔMEGA 141"; "PRODÍGIO 226"; "BELSA’SSAR 126"; "DESTINO 101"; "ELISA E 682"; "MORTE EM NAZARÉ 329"; "HERMON 829"; "ADEUS ORION 279"; e "ESRIN 133".

E, como disse, julguei entender.

As palavras e os números eram "profecias", ou algo assim. O signifi­cado das duas primeiras foi claro. Pelo menos, foi o que pensei.

"ÔMEGA 141" tinha que se referir ao batismo de Jesus no meandro Ômega. Especificamente no rio Artal, um dos afluentes do Jordão. Quan­to aos números ("141"), separados forneciam uma data: 14 de janeiro. Justamente a data do batismo do Mestre.

Fiquei desconcertado.

Quanto à segunda palavra e número - "PRODÍGIO 226" -, o resul­tado foi também categórico: "PRODÍGIO" tinha que fazer alusão ao que foi registrado na boda de Caná. O número representava a data: fevereiro do ano 26 (2 e 26).

Senti um calafrio.

Se essas duas palavras e números, caídos (?) não se sabe de onde no meio de um "sonho", anunciavam (quase com quatro meses de antecedência) o que iria acontecer em janeiro e fevereiro do ano se­guinte (26), o que representava o resto? Que outros anúncios me fo­ram concedidos?

Três deles continham nomes conhecidos: Belsassar, Eliseu, e eu mes­mo (Esrin). Um quarto nome - Orion - ficou na dúvida. Não sabia se a "profecia" (?) falava de Kesil, nosso fiel servo.

E aí fiquei, desconcertado e temeroso. Que me reservava o Destino? Ou melhor, o que nos reservava? Teria que ficar muito atento.

A palavra-anúncio seguinte era "BELSASSAR", com o número "126". Belsassar, ou Belsa, era o persa do "sol" na testa, meu amigo, um dos dis­cípulos de Yehohanan. O que anunciava a profecia? E por que "126"? Re­feria-se a janeiro do ano 26? Isso já havia passado. O que Belsa tinha a ver com esse mês? Tratava-se de algo que podia acontecer no futuro? 12 de junho? E por que essa data?

E, nessas reflexões, fomos nos aproximando do mar de Tiberíades. Conforme havia calculado, às cinco da tarde, pouco antes do ocaso, o grupo chegou à cidade de Nahum.

Os discípulos, entusiasmados, não paravam de falar do prodígio. Ha­viam se passado apenas seis horas desde a advertência do Mestre para que não espalhassem o ocorrido na festa, e já estava esquecida. Pararam para cumpri­mentar vários conhecidos ao longo das ruas de Nahum e explicaram o que havia ocorrido em Caná em detalhes. As pessoas ouviam com admiração e c Mn ceticismo. "O Messias? Em Nahum? Havia transformado a água de uma festa em vinho? Ora, Messias! E que festa de casamento!"

O Mestre não parou. Não prestou atenção aos comentários dos discípulos e muito menos aos dos cidadãos com quem os íntimos cruzavam. Pedro e João Zebedeu eram os mais exaltados. Pulavam. Gritavam. Exa­geravam. Cheguei a ouvir que o volume do "vinho prodigioso" poderia ter enchido as adegas do Templo de Salomão, em Jerusalém.

E o Mestre deixou a "casa das flores" para trás e embarcou no porto de Nahum, perto do estaleiro dos Zebedeu, pedindo ao barqueiro que os levas­se ao bairro de Saidan. Simão Pedro e João, entretidos nas ruas de Nahum, ficaram para trás e tiveram que contratar outra barca. Jesus não esperou.

Essa era outra característica do Filho do Homem: dificilmente espe­rava alguém.

De início, estranhei. Jesus passou pela frente da "casa das flores", mas vão parou. Ele sabia que Esta e Ruth estavam em Nahum. Esta, mulher de Tiago, havia dado à luz um mês e meio antes. Por que seguiu para Saidan? Essa noite, ao saber que a Senhora e seus filhos acabavam de voltar a Nahum, à "casa das flores", julguei compreender. Jesus não queria novos enfrentamentos, e muito menos com a mãe. Optou, a meu entender, pela postura mais inteligente.

Eu lamentei intimamente. Ardia de desejo de voltar a ver minha amada.

E o Galileu, sem hesitar, foi ao casarão dos Zebedeu, em frente à praia.

Foi uma alegria tornar a ver o Mestre.

A notícia do prodígio havia se espalhado pela região. Todo mundo se perguntava se era verdade, e se de fato Jesus de Nazaré era o Messias prometido. Mas, prudentemente, ninguém na casa dos Zebedeu se atre­veu a perguntar a Jesus. Não foi preciso. Os discípulos se encarregaram de informar, pontualmente, sobre o ocorrido e o não ocorrido.

Pedro e João assumiram a tarefa. O resto se limitou a complementar os esquecimentos dos dois primeiros. Tiago praticamente não falou.

Houve um momento em que me chamou a atenção o fato de alguns íntimos (Pedro, André e Felipe) não demonstrarem a menor impaciência por voltar com suas respectivas famílias. Fazia dias que não as viam.

Logo me acostumaria a essa atitude e descobriria algo mais.

A família preparou o jantar e o alojamento do Mestre.

E eu me perguntei: "O que devia fazer? Voltava a Nahum e me es­tabelecia na insula, em companhia de Eliseu e de Kesil?" A idéia não me agradou. O relacionamento com o engenheiro havia chegado à tensão má­xima. Não queria passar por novos desgostos nem atritos. Depois veria... Por ora, estava onde estava. Talvez dormisse na praia. A temperatura no yam era agradável. Provavelmente rondava os 18°C. Eu tinha capa. Servi­ria de manta. Mas o Destino tinha outros planos para quem isto escreve.

E, durante o jantar, diante do assombro da família Zebedeu, os discí­pulos falaram sem parar. Salvo Tiago e André, o resto parecia contagiado pelo entusiasmo. Discutiam entre si. Riam. Exageravam, como disse, so­bre o ocorrido em Caná. Apregoavam que o Libertador estava lá, naquela casa, e que a libertação de Israel era questão de dias ou semanas. Respondiam a todas as perguntas, soubessem ou não soubessem. E davam mancada toda hora, claro.

Jesus jantou em absoluto silêncio. Em nenhum momento interveio, nem para afirmar, nem para corrigir os erros de seus homens entusiasmados.

Seu rosto era grave e os olhos estavam baixos. Essa atitude me fez pressagiar algo. Não me enganei.

João Zebedeu, insisto, era um dos mais acalorados. Proclamava que Jesus era o Messias, e com tal veemência que quase não deixava o resto falar. Pedro se irritou mais de uma vez. Queria participar e mostrar como o prodígio havia acontecido. Levantava-se, erguia a voz e os braços e si­mulava a ordem do Galileu aos céus, exigindo vinho. Alguns aplaudiam. Eu continuava espantado. Aqueles homens continuavam embriagados de sucesso. Para dizer a verdade, Simão Pedro não soube o que aconteceu na festa de casamento de Noemi e Johab. Mas assim são as coisas.

E eles, os discípulos, eram os escolhidos!

Zebedeu pai também não falou muito. Observava uns e outros e depois olhava para Jesus. Li em seus olhos claros um ceticismo mais que lógico.

Mas João, Simão Pedro, o "urso" e Felipe haviam subido aos céus, e essa era a única coisa que contava para eles. Acabavam de descobrir o Libertador. Eram seus generais. O mundo estava prestes a se render aos seus pés. Abandonariam as redes, o estaleiro e os negócios mundanos e passariam a beber em taças de ouro e a comandar os povos. O Messias, após tanto tempo esperado, dissera-lhes: "Segui-me!"

Tentar acalmá-los e colocar as coisas em seu lugar teria sido contra-producente.

"Quem era capaz de transformar a água de seis talhas no melhor dos vinhos?"

Esse foi o grande argumento. "Ninguém - respondiam. - Nem mes­mo Roma, com todo seu poder."

"Treme, Roma!" repetiam em coro.

Deus do céu! Que imagem mais distorcida a dos crentes a respeito desses homens!

E terminado o jantar, os discursos de vitória, o ardor e as promessas mútuas de poder e de felicidade se prolongaram durante mais um tempo. Ninguém via além do que queria ver. O Messias, o Libertador político, so­cial, econômico, religioso e militar era uma realidade, e estava ali, sentado como qualquer um.

Mas as coisas mudaram em minutos.

De repente, Jesus se levantou e disse aos íntimos que o seguissem. Eu fui atrás deles.

O Mestre cruzou o pátio dos fundos do grande casarão e se dirigiu às esca­das que ligavam a casa com a praia. Lá se sentaram. E lá me sentei, perto deles.

E assisti a uma cena que também não foi registrada pelos evangelistas.

O Filho do Homem, em tom afável, mas firme, discorreu sobre três grandes assuntos.

O céu, estrelado, sem lua, estava tão expectante quanto este explo­rador. Embaixo, na escuridão, muito perto, ouvia-se o murmúrio das pequenas ondas na areia. Algumas luzes navegavam na negrura do lago. Eram os esforçados pescadores de tilápias. De vez em quando se ouviam seus gritos, perto da primeira desembocadura do Jordão.

E Jesus começou dizendo quem era na realidade. Não era o Messias de que falavam as Escrituras. Era muito mais...

Os discípulos se entreolhavam, mas não entendiam.

E lhes disse que Ele era um Príncipe, um Deus que governava o uni­verso que eles conseguiam ver e muito mais. Alguns olharam para as es­trelas. Podiam contar-se mais de 8 mil. Mas também não entenderam do que Jesus estava falando.

O Mestre leu os pensamentos e fez silêncio durante alguns segundos. E, apesar do evidente fracasso, prosseguiu com sua exposição.

Então, explicou por que veio a este mundo. Ele conhecia o verda­deiro Deus Pai (Abba) e tinha a missão de comunicar isso aos homens. O Pai Azul, como o chamou, não é vingativo, nem cruel, nem racista, nem controla os pecados de ninguém; nem sequer é justo. É amoroso, que é muito mais que justo.

Os discípulos pensaram que se referia ao sanguinário e temido Yaveh.

Sim e não...

E Jesus tentou mostrar que tudo acontece por algo bom, que tudo foi criado para o bem, mesmo que não consigamos entender, e que Ele estava ali para recordar isso ao mundo e, acima de tudo, para acender a chama da esperança.

"Não importa o que façais", disse, "estais condenados a ser feliz".

Mas continuaram sem entender. Não conseguiam compreender suas estranhas (?) palavras. "Não era o Messias prometido? Era muito mais? Era um Príncipe, criador das estrelas que contemplavam? Ele era de carne e osso. Isso saltava aos olhos. Como um Deus podia se fazer homem? E para que descer à Terra para mudar o rosto de Yaveh?" Estavam bem como estavam, embora não se atrevessem a pronunciar o nome desse Deus.

Esses pensamentos iam de uns aos outros, e a confusão foi total.

O Mestre deixou que discutissem.

E então, terminou sua exposição com uma "bomba". Quem isto es­creve ficou petrificado, desconcertado.

Era a primeira vez que falava disso em público.

E fez-se silêncio. Entenderam, mas não entenderam.

O Galileu, muito sério, anunciou como se desenrolariam os aconteci­mentos futuros, como seriam perseguidos por seus inimigos e, finalmen­te, como Ele seria executado com vergonha e extrema dor. E prognosticou que o grupo passaria por momentos difíceis e angustiantes.

Algumas estrelas piscaram, nervosas. Elas sabiam que o Filho do Ho­mem sabia.

E eu senti fogo no estômago. O Mestre estava ali, pleno de força e de amor, mas não podia esquecer qual era seu Destino na Terra. Certo. Aquele Homem, todo doçura e compreensão, um Deus Criador, seria exe­cutado com vergonha e com extrema dor, como disse. E não se estendeu, possivelmente para não ferir seus homens tão profundamente.

As reações não se fizeram esperar. João Zebedeu se negou a aceitar esse fim. Gritava que não e não, mas eu não sabia a quem gritava. Pedro foi um dos mais afetados pelo anúncio da morte. Levantou-se, não disse ai ia e desceu os degraus, perdendo-se na praia. O "urso" olhava para uns E o urros e tentava confirmar o que acabava de ouvir. Ninguém se atreveu a repetir o que foi ouvido. E mais: ninguém perguntou a Jesus. Ninguém : ais tornar a ouvir o que acabávamos de ouvir. Foi uma negativa coletiva e Rendosa. "Não é verdade o que o Mestre disse. Com certeza se explicou

Escutei esses argumentos muitas vezes durante os dias que seguiram a essa histórica noite nas escadas do casarão dos Zebedeu.

Felipe também emudeceu. Quanto a Tiago e o bondoso André, estavam tão perplexos quanto o resto. Sua mente não conseguia assimilar. 5 7 aquele Homem foi capaz de transformar a água em vinho, por que ia mentir ou inventar uma coisa assim? Mas aquilo não era o que vinham esperando. Jesus era o poder e a glória. Ninguém poderia com Ele. Se foi o autor de um prodígio como o de Caná, quem tentaria destruí-lo e, acima de tudo, com que meios?

O Filho do Homem ficou em silêncio. As palavras sobravam.

E compreendeu perfeitamente: o entusiasmo de seus íntimos havia evaporado. Aqueles que gritavam de felicidade momentos antes, que se prometiam o mundo mutuamente, acabavam de morrer, de certo modo.

André foi o único que perguntou a Jesus, mas suas palavras atropelaram umas às outras. A confusão e a surpresa os deixaram amarrados. Eram reféns do medo.

E nisso, no alto da escada, ao lado da pequena porta de madeira, apareceu Judas, irmão de Jesus.

Deviam ser nove da noite.

O Mestre o viu e aproveitou a oportunidade para se despedir dos discípulos. Falou com voz tranquila, tentando apaziguar os ânimos. Não conseguiu. A derrota ficou com os íntimos. Não podiam acreditar nas pa­lavras do Galileu. Definitivamente, as idéias sobre o Messias libertador, "quebrador de dentes", estavam tão cristalizadas em sua mente e em seu coração que ninguém, nem mesmo o Mestre, poderia tê-las modificado, Jesus, suponho, entendeu exatamente como eu; ou melhor, infinitamente melhor que este explorador.

O "urso" foi com Felipe. Ficaria na casa do futuro intendente, em Saidan. André desapareceu escadas abaixo em busca de Pedro, angustiado e confuso. João e Tiago foram para casa. Nem se despediram.

André, antes de partir, pediu instruções ao Galileu. Marcaram de se en­contrar no dia seguinte na casa dos Zebedeu. Jesus daria as ordens oportunas.

Anotado. Não devia sair do casarão.

E Judas, aproximando-se de seu Irmão, beijou sua face e se sentou ao nosso lado. Durante um tempo não falaram. Na realidade, Jesus não pronunciou uma só palavra. Judas falou tudo. E foi sincero, como sempre. Em síntese, isto foi o que pude ouvir:

Nunca te compreendi bem. Não sei se és o que diz nossa mãe. Não compreendo bem isso de um reino que está para chegar, mas te direi uma coisa: também sei que és um Homem poderoso e que pertences a Deus. Assim como Tiago, eu também ouvi essa misteriosa voz em Ômega. Sei que és alguém importante, mas não sei exatamente o quê. Não importa. Creio em ti.

Jesus sorriu, agradecido.

Agora - concluiu Judas -, voltarei a Migdal. Lá estarei, para o que necessitares.

Deduzi que a Senhora e Tiago, seu filho, haviam chegado nessa mes­ma noite a Nahum, na companhia de Judas. Mas só Judas, a ovelha ne­gra da família, teve coragem de procurar Jesus e confessar que acreditava n Ele, não importasse o que acontecesse. Esse homem nos reservaria algu­mas notáveis surpresas.

E me perguntei: "Quais eram os planos de Maria? Procuraria seu Fi­lho, como fez Judas?". Eu sabia que ela era decidida e teimosa. Não se con­tentaria com o silêncio, como havia escolhido Jesus - inteligentemente, do meu ponto de vista.

E ficamos sozinhos, mais uma vez.

As estrelas nos olharam. Não sei como adivinharam, mas sabiam que íamos falar de algo delicado.

Foi Ele quem puxou a conversa.

É tão difícil de entender?

A lua, como disse, não havia saído ainda (sairia pouco depois, às 23h56). Não era fácil contemplar seu rosto. A noite era escura. A luz das estrelas o banhava com delicadeza.

O quê?

Que eu nasci para mudar a imagem de Abba.

Compreendi.

Depende.

Eles não modificarão suas idéias sobre o Messias, também sei.

Assenti com a cabeça e continuei em silêncio. Ele estava certo. Os discípulos haviam nascido com o conceito de um Libertador político, quase carregavam isso em seus genes. Eram muitas gerações que compartilhavam a idéia de um Messias "quebrador de dentes". Quase insinuei que esquecesse o assunto. Eles, de fato, não mudariam. Mas fiquei mudo. Ele sabia. Também não o invejei. A cena que eu acabara de presenciar na casa dos Zebedeu, com os íntimos eufóricos, seria uma constante na vida de pregação do Mestre. Ele teria que lutar contra isso ou simplesmente se "submeter" e deixar que continuassem pensando em um reino material e em uma libertação política e social. Os prodígios que iam chegando con­tribuiriam - e de que forma! - com o fortalecimento dessa crença: Jesus era o Messias prometido pelos profetas, e a libertação de Israel estava pró­xima. Não havia mais o que dizer.

Acho que a partir dessa noite Jesus aceitou essa situação e deixou que se fizesse a vontade do Pai. Não discutiria, não contrariaria quando alguém tornasse a tomá-lo pelo Messias "quebrador de dentes". (Para dizer a verdade, não me lembro de uma única imagem de Jesus discutindo ou polemizando com alguém, sobre assunto nenhum.)

Ele não disse, mas eu intuí. Essa noite foi especial nisso, no que se refere ao conceito do Messias, e em algo mais.

Observei de novo o firmamento. As estrelas pareciam ansiosas. Bri­lhavam com pressa. Gritavam alguma coisa, mas eu não entendia.

E foi "Alfa de Cefeu", a 50 anos-luz, nada menos, que acabou cintilando com clareza: "Fala da morte d'Ele".

Certo. Era uma oportunidade única. Era a primeira vez que Ele fala­da disso em público, e ainda faltavam 49 meses para a Crucificação. Como Ele soube? Que pergunta mais idiota!

E decidi. Não sabia como Ele reagiria, mas não deixei escapar a opor­tunidade.

Jesus, suponho, esperava a pergunta. E se expressou livremente, sa­bendo que falava para o futuro. Mais ainda: sabendo que estes diários se­riam aceitos parcialmente.

Não tens medo? - comecei.

Por que teria?

Apesar do que eu havia visto e do que sabia, aquele Homem me surpreendia a cada momento. Respondeu à pergunta sobre a morte sem que eu a mencionasse especificamente. É fácil resumir e difícil de acei­tar: Ele sabia tudo. Desde a recuperação de sua divindade, no monte Hermon, sabia tudo.

Todos têm... temos - retifiquei.

Sorriu.

Tu, melhor que ninguém, sabes que voltarei da morte.

Deixou que eu refletisse sobre essa grande verdade. Depois, com a mesma suavidade, prosseguiu:

O homem teme a morte porque acredita que é o fim.

E não é?

Sim e não.

Sim e não?

É o fim desta vida, mas não da vida. Na realidade, a vida, a verda­deira, começa antes da vida e continua depois da vida.

Eu me perdi.

Um momento... A vida começa antes da vida?

Isso mesmo, querido malak.

Mas como vou estar vivo antes da vida?

Estás.

Aquela segurança me deixou perplexo. Jesus jamais mentia. Não prosseguiu. Entendi.

E depois da vida?

Já falamos disso, recordas?

Perfeitamente. No Hermon, Eliseu propôs uma teoria interessante e singular: os chamados mundos "MAT".[6]

Sim, eu lembro. Segundo tu, depois do doce sono da morte, des­pertamos em outro lugar.

O Mestre se adiantou:

Vivos! Despertareis vivos.

Quando dizes "vivo" te referes a... vivo?

Claro. A que outra coisa poderia me referir?

Não sei... Contigo, nunca se sabe.

Riu. Eu havia conseguido algo importante. O Galileu estava descon­traído. E me dei por satisfeito.

Mas o Mestre não havia terminado.

Aliás - acrescentou -, não se trata de uma "teoria", embora seja interessante e singular.

Fez novamente. Dessa vez, entrou em meus pensamentos e em algo mais: no que eu escreveria um tempo depois. E perguntei, como um perfeito tolo:

Não é uma teoria?

Não é. Trata-se de algo físico, que poderás constatar. Tu te levanta­rás da morte como se a vida houvesse sido um sonho. Despertarás de um sonho para voltar à realidade.

E repetiu algo que acabava de enunciar:

A vida, a verdadeira, começa antes da vida e continua depois da vida.

Não importava não entender. Ouvi-lo era tão relaxante e tão esperançoso...

E comentei quase para mim:

Como podes ter certeza do que afirmas? Como saber que viverei depois da morte?

E tu perguntas? Tu, que me viste depois de morto?

Sim, mas...

Entendo. Trata-se de uma experiência pessoal, que ninguém vai viver por ti. Mas pelo menos confia. Sabes que não minto.

Disso dou fé. Jesus jamais mentiu, nem se enganou. Nunca, que eu saiba ou recorde, teve que retificar.

Então, após a morte, desandaremos o caminho da perfeição.

A frase não era minha. Pertencia a Aristóteles (Metafísica, livro VIII). Mas o Mestre também havia lido o filósofo grego e disse:

O corruptível, querido mensageiro, não faz parte do eterno.

E acrescentou com aquela segurança que desarmava:

Após a morte, não se desanda nada. Segue-se rumo à perfeição, ao Pai Azul.

E eu, teimoso, voltei a Aristóteles (Livro XI):

Então, ao morrer, volto para Deus.

Não exatamente. Recorda que Ele já está em ti. Para chegar ao Pai - também falamos disso -, precisas consumir muito, muitíssimo "não tempo". Ele te espera, fisicamente, no Paraíso, mas não tenhas pressa. A eternidade é um tapete vermelho em que pisarás no instante da morte.

E tentou se aproximar da verdade, uma vez mais:

Eu não deveria falar de "instante", e sim de "não tempo".

A morte - murmurei - é uma experiência pessoal. Gosto disso.

E única. Só se morre uma vez.

Algumas filosofias não dizem isso.

Os conceitos orientais e pitagóricos sobre a reencarnação ou a trans­migração das almas são apenas sonhos humanos. A verdade, amigo meu, é muito mais fantástica. O Pai pensou em tudo. Deixa que Ele te surpreenda.

E em vez de continuar por esse interessante caminho, recém-aberto pelo Filho do Homem, insisti:

Morrerei sozinho.

É a lei. Morrer é pessoal. Ninguém morre acompanhado, mesmo que pareça. Por essa porta, só passa um de cada vez.

Eu sei, é a lei, como dizes.

A morte, malak, não é um capricho. É a melhor maneira de aban­donar um sonho.

E não teria sido melhor não morrer?

Começas a parecer teu irmão.

Ele estava com a razão. E acrescentou:

Morrer não é tão importante. É abrir uma porta, só isso. Por que te preocupas tanto?

Eu não soube o que responder, mas não queria morrer; não naquele momento.

Morrer, e quero que o transmitas assim, é despertar, por fim.

Despertar?

Eu conhecia a resposta. Ele acabava de expô-la, mas, como disse, gostava de ouvi-lo. Era um bálsamo.

Está bem. Como quiseres. Morrer é despertar para a realidade. O que agora vives é real, mas não é a realidade final, a que realmente conta.

E acrescentou, baixando o tom de voz, como se pretendesse que as estrelas não o ouvissem:

O sistema está tão bem montado, querido malak, que o ser huma­no acredita que a vida é a única coisa que tem.

Meu Deus! Quanta razão!

Assim é porque o Pai assim programou. É a única forma de o ser humano viver a vida com intensidade. Se ele tivesse certeza de que há outra realidade, outra vida, não viveria com o mesmo interesse. Compreendes?

Precisei de um tempo para entender.

Estamos aqui, no mundo, na matéria, na imperfeição, para viver o que não poderemos viver nessa outra "realidade", a do universo invisível do "não tempo". Estamos aqui para saborear o tempo e a limitação. Foi o que deduzi de suas palavras (sábias palavras).

E, quando chegar a hora, o Pai Azul aparecerá e tu ficarás ar­rebatado por seu amor, por sua sabedoria e por saber que Ele nem sequer é o fim.

Não fui ágil. Não soube perguntar sobre a última parte de sua expo­sição. O que significa que o Pai "nem sequer é o fim"?

Fui inepto, uma vez mais.

Ele está em mim, bem sei. Tu me revelaste isso. Ele é a "centelha" que me habita, certamente. Mas, como, além de tudo, Ele me espera no Paraíso? Está dentro e está fora?

Não podias definir melhor. Um dia, quando chegar tua hora, descobrirás que "dentro e fora" são a mesma coisa no "não tempo".

Não consegui mais que isso. E foi muito.

Eu estava cansado. Ele percebeu e, com doçura, sugeriu:

Tua alma transborda. Vamos parar por aqui.

Contemplou, feliz, a maravilhosa paz que de fato me inundava, e acrescentou, divertido:

Não sabia que falavas com as estrelas.

Dirigi um olhar a Alderamin, e a estrela respondeu à sua maneira, com duas cintilações (cintilações de cumplicidade, eu sei). Como Ele con­seguia adivinhar?

Agora descansa - despediu-se. - Tens muito a presenciar e a contar, e, mais ainda, a narrar a teu mensageiro. E dize o que já te disse: "Não escrevas para convencer. Escreve para insinuar, para ajudar, para iluminar".

Eu recordava. Ele dissera isso durante a primeira semana no Hermon. Quanto a esse misterioso "mensageiro", agora sei quem é. Naquele momento não soube a quem se referia. Mas o Filho do Homem previa tudo.

Como dizia o Mestre, quem tiver ouvidos, que ouça.

E nos despedimos. Ele continuou sentado na escada. E as estrelas me substituíram, encantadas.

Ao entrar na casa para pegar a vara e o saco de viagem, encontrei Salomé, esposa de Zebedeu pai. Para ser exato, Salomé e as filhas me aguar­davam. Salomé era uma mulher inteligente, que sempre estava um passo à frente dos acontecimentos. Era um pouco mais nova que o patriarca. Estavam casados havia 40 anos, ou mais. Talvez beirasse os 55 anos de idade. Usava seu cabelo branco e liso muito curto, ao estilo de Rodas. Era culta e instruída. Falava vários idiomas e lia perfeitamente o hebraico sagrado. Sardas adornavam sua face e seu nariz. Era magra e nervosa, muito mais que o marido, e sabia guardar silêncio e segredos. Procedia de uma família aristocrática, entroncada em uma das castas sacerdotais. Era parente de Anás - sogro de Caifás que havia sido sumo sacerdote -, de tão amargas recordações. Seu gesto durante a Paixão e Morte do Mestre, acompanhan­do a todo momento a Senhora, com quem mantinha uma antiga e sincera amizade, dizia muito sobre sua coragem. Era decidida e tenaz, mas não tão obstinada quanto Maria.

Salomé, à frente deste explorador, resumiu a situação com uma frase:

Aonde pensas que vais?

Ela me pegou. Não soube mentir. Não tinha aonde ir.

E tive que suportar uma mais que merecida bronca:

Parece mentira - lamentou. - Este grego enxerido, tão querido por Jesus e pelos Zebedeu, despreza a hospitalidade desta família.

Neguei com a cabeça. Não era verdade, mas...

Estava decidido, foi o que ela disse. Havia conversado com seu mari­do, e o chefe dos Zebedeu se mostrou de acordo:

Ficarás nesta casa.

E concluiu com firmeza:

O tempo necessário. Está claro?

Eu disse que sim imediatamente, encantado.

Algumas filhas riram e aprovaram o "sim" deste confuso explorador.

O casal Zebedeu, como creio ter comentado anteriormente, tinha sete filhos: três homens e quatro mulheres. Eu conhecia todos os ho­mens. Os irmãos João e Tiago, praticamente desde o primeiro momento. Quanto a Davi, que seria chefe da correspondência entre os seguidores de Jesus, tive a sorte de saber dele nos trágicos momentos da Paixão. Ele me ajudou muito. Era valente, astuto, discreto e mais eficaz e preparado que seus irmãos. Davi entendeu a mensagem do Mestre e acreditou na Ressurreição desde o primeiro instante. Seu trabalho em favor do rei­no foi espetacular, mas jamais fora mencionado pelos evangelistas; nem mesmo por seu irmão João.

Quanto às quatro filhas, quase não havia reparado nelas.

A partir desse momento, tudo mudou.

A mais velha chamava-se Iyar (Abril), porque nasceu nesse mês. Era magra, morena, com uns olhos sempre atentos de um marrom extrema­mente doce. Quase não piscava. Seus lábios eram finos, levemente dese­nhados, e as mãos frágeis, mas resolutas. Tinha uma filha chamada Maria, mas todo mundo se referia à menina pelo apelido de Iorei ("A primeira chuva"). Abril havia se divorciado recentemente. Chamou minha aten­ção. Era valente, como a mãe, forte de espírito e apegada à terra, como o pai. Adorava tingir o cabelo de vermelho ou violeta. Com o tempo, fui conhecendo-a melhor. Em família chamavam-na de "77", mas de início eu não sabia por quê. Ela mesma me explicaria, à sua maneira.

Elul (Agosto) era a segunda. Era gorda, muito gulosa e especialmente mentirosa. Era a que governava o resto das irmãs.

A terceira, Chesvan (Outubro), era o posto das anteriores. Estava sempre triste e apagada. Mal participava das conversas. Tinha fama de feiticeira.

A última se chamava Kis, mas seu verdadeiro nome era Kislev (No­vembro). Era egoísta. Só sabia falar de si mesma. Tinha uma beleza especial, muito sensual.

E Salomé pegou duas lamparinas e pediu que a acompanhasse. Fui atrás dela quietinho.

As filhas ficaram olhando, satisfeitas; especialmente Abril.

Atravessamos o pátio dos fundos, onde eu estivera momentos an­tes, e viramos à esquerda. E lá, em frente aos estábulos, a mulher parou. Entregou-me uma das lamparinas e apontou para os degraus de madeira colados ao muro de pedra vulcânica. Recomendou que tivesse cuidado. Chegou a mim o cheiro dos célebres carneiros de caudas enormes, conhe­cidos popularmente como "cinco quartos", por conta do tamanho desses apêndices. Os estábulos estavam repletos de carneiros procedentes da Líbia, cabras de orelhas compridas e ovelhas castradas. Como disse, a famí­lia dos Zebedeu era bem situada e com bons recursos financeiros.

Salomé subiu agilmente pela escada, e quem isto escreve a seguiu.

E a mulher me conduziu ao andar superior. Lá haviam sido prepa­rados dois quartos, destinados aos convidados. Um deles era o meu. Outro, como pude ver dias depois, era do Mestre.

Tratava-se, segundo explicou, de dois pombais já em desuso, que seu marido, com bom-senso, decidira reformar para quem necessitasse.

Ela entrou primeiro e me chamou.

Era um quarto pequeno e simples, de uns nove metros quadrados, pé-direito alto, com 20 nichos na parte superior, agora vazios. As paredes haviam sido rebocadas com gesso. Em frente à porta de madeira, abria-se uma janelinha que, por sua vez, olhava para o lago. As duas, porta e janela, foram pintadas de verde. Uma tímida cortina branca, de gaze, agitava-se de um jeito muito feminino, balançada por uma brisa recém-chegada. O mobiliário era breve e também severo: uma cama com pés em forma de tesouras, uma arca de madeira de oliveira e um tapete de pele de cabra tin­gido de vermelho berrante. Em cima da arca, montavam guarda uma jarra de barro com água, uma bacia também de argila vermelha, e um vaso com um maravilhoso ramo de Lavandula spica, uma planta da região, de um verde enfraquecido, mas com uma fragrância deliciosa, que fazia esquecer o fedor procedente do andar de baixo.

Salomé apontou para a arca e disse que lá eu encontraria um bom acolchoado, caso sentisse frio.

Isso foi tudo.

Ela me desejou boa noite e "que a paz durma a teu lado". Sorriu, fe­chou a porta e desapareceu.

Eu fiquei em pé, inspecionando, e fiquei satisfeito. O Destino, a Pro­vidência, Abba, ou quem quer que fosse, também cuidava deste pobre ex­plorador. E como!

Passei a lamparina pelo quarto e fui explorando até o último detalhe.

Não podia me queixar. Embora ficasse em cima dos estábulos, o quar­to era perfeito. Eu estava parede com parede com o Mestre, e em um lugar que achei especialmente estratégico. Ou muito me equivocava, ou o casarão dos Zebedeu em Saidan acabaria se transformando em quartel-general do Filho do Homem. Apostei nessa idéia. Não considerei a possibilidade de o Galileu voltar a sua casa, a "das flores". A situação não era a mais adequada. E, como dizia, eu me senti um homem de sorte. As dúvidas a respeito do lar onde deveria me estabelecer, a partir desse momento, começavam a se dissipar. Eu não precisava voltar à insula, em Nahum, nem me preocupar em encontrar um novo alojamento. A vida seguia seu curso. Deixar fazer-se a vontade do Pai Azul começava a me agradar. Além de tudo, era prático.

Coloquei a lamparina sobre a arca e escondi a "vara de Moisés" em um dos cantos, perto da porta. Depois, olhei o yam. A brisa, de fato, brin­cava pelos arredores. E em cima, nervosíssimas, cintilavam as 8 mil estre­las. Isso queria dizer que Jesus continuava sentado nas escadas, ou talvez estivesse passeando pela praia. Eu me senti tranquilo.

Ela, além de tudo, estava muito perto, em Nahum. Quando a veria? Não a podia esquecer, nem queria.

E pensei no "vinho prodigioso". Tinha que ir até o Ravid e fazer a análise. Não era bom me descuidar. As amostras podiam estragar. Mas quando entraria no "berço"? Eu ignorava tudo sobre os planos do Filho do Homem. O que pretendia fazer? Entraria de imediato na vida de prega­ção? A julgar por suas últimas palavras aos discípulos, Ele queria sair pelo mundo espalhando a boa-nova do Pai Azul, mas quem isto escreve não sabia bem quando nem como. Não havia outra opção: só esperar.

E a densa escuridão da noite quase me empurrou para a cama. Tinha que descansar. O instinto estava avisando. Eu presenciaria acontecimentos inéditos na vida do Galileu, cada um mais intenso e eletrizante que o outro. Precisava estar atento como um falcão.

E assim, abraçado a esses pensamentos e à imagem de Ruth, acabei adormecendo.

Uma hora depois, mais ou menos, tive um sonho. Outro sonho absurdo (?) e aparentemente sem explicação. Ou teria uma?

No sonho, este explorador estava na janela daquele quarto (que, a partir de agora, chamarei de "pombal"), contemplando a paisagem. Ou melhor, a escuridão da noite. Era uma noite como a que eu acabava de vi­ver. Distingui milhares de estrelas disputando no firmamento. Uma que­ria brilhar mais que a outra. "Isso é impossível", pensei. E assim permaneci um tempo, deixando que a brisa me acariciasse com seus dedos doces, recém-molhados na água do yam.

Mas, de repente, alguém tocou meu ombro direito. Duas vezes, decidido.

Voltei-me no sonho, mas não vi ninguém. O "pombal" continuava vazio. Eu estava sozinho.

Alarmei-me.

Olhei embaixo da cama, como um tolo. Lá, logicamente, não havia ninguém.

"Que estranho - pensei. - Podia jurar que alguém me tocou."

E nisso, enquanto escrutava a penumbra, ouvi uma voz. Era de homem. E disse, em aramaico: "Já é hora de voltares à realidade".

Notei algo estranho. A luz amarela da lamparina se agitou subitamente.

Atribuí o movimento à brisa.

E certo de que "aquilo" era fruto de minha imaginação, retornei à anela e continuei observando.

Não se passaram nem cinco segundos quando alguém tornou a me tocar, mas dessa vez no ombro esquerdo, por três vezes.

Senti um calafrio.

Voltei-me, assustado.

O lugar continuava vazio.

Olhei para a lamparina. A pequena chama oscilava.

O que estava acontecendo?

E a voz soou em meu cérebro pela segunda vez, forte e clara: "Para de olhar pela janela e volta à realidade".

Então me dei conta. Dessa vez, a voz se dirigiu a este explorador, mas em inglês, uma língua proibida durante a Operação.

E o medo, no sonho, fez-se mais intenso.

Olhei de novo. Era absurdo. Eu estava sozinho, com a única compa­nhia do medo e daquela chama pedindo ajuda sem parar.

O que estava acontecendo?

E bateram à porta. O medo foi total. Eu peguei a "vara de Moisés" e fui até a porta. E me preparei. Se fosse atacado, revidaria.

Quem é? - gritei no sonho.

Não houve resposta.

Deslizei os dedos para a parte alta da vara e acariciei o cravo dos ultrassons.

Abri a porta de uma vez e, oh, Deus! Lá estava Ele.

Faltou pouco para que atirasse n’Ele!

Era o Mestre! A luz do quarto o iluminava debilmente.

Sorriu, estendeu o braço esquerdo e me entregou algo, comentando:

Antes esqueci. Acho que perdeste isto na Sapiah, durante a festa.

E afastou-se, escadas abaixo.

Eu fiquei na porta, atônito e assustado. Não compreendia absoluta­mente nada.

Vi o que o Galileu acabava de deixar em minha mão e notei que se tratava de uma ampola de barro, a terceira ampola que eu havia escondi­do intencionalmente perto das seis grandes talhas que continham água, no pátio da Sapiah. Aquela ampola havia ficado vazia, e eu decidira escondê-la naquele lugar.

Que sonho mais estranho!

Mas as surpresas não haviam terminado. A ampola de barro continua­va vazia, mas menos. Dentro, perfeitamente enrolado, havia um pequeno pergaminho. Tirei-o e li o que estava escrito, em inglês! Dizia exatamente: "Curtiss te precederá no reino dos céus (Isaías 29, 8)".

Embaixo, também em inglês, lia-se: "Acautela-te e aquieta-te; não te­mas, nem te desfaleça o coração (Isaías 7, 3)".

Meu desconcerto só aumentava. O que significava aquilo? O que o general Curtiss, chefe da Operação Cavalo de Tróia, tinha a ver com o profeta Isaías?

Fechei a porta e me sentei na cama, pensativo. Li o pergaminho vá­rias vezes. Não entendia nada.

E, nisso, tornaram a bater na porta. Não reagi. E bateram de novo na madeira.

Então, acordei.

Compreendi.

Foi tudo um sonho, um estranho sonho.

Alguém estava batendo à porta.

Observei minhas mãos. Não havia ampola alguma nelas. Continuava na cama, deitado.

Sim, foi tudo um sonho.

Eu me levantei e abri a porta. Era Abril. Iluminou-me com uma lamparina e sorriu. Trazia algo na mão esquerda.

De repente, ela corou.

Entregou-me uma bandeja de madeira, olhou fixamente para mim de novo, como se quisesse entrar em mim, e imediatamente, sem pronunciar uma só palavra, desceu pelos degraus e se perdeu na noite.

Quis lhe agradecer, dizer alguma coisa. Tarde demais.

Fechei a porta e examinei a bandeja. Estava coberta com um lenço branco.

Surpresa.

Como souberam que eu gostava daquilo? Foi uma gentileza da parte de Salomé, imaginei.

Na bandeja encontrei meia dúzia de keratia, tabletes de "chocolate" que havia visto e degustado nas proximidades de Qazrin, na alta Galileia[7]. Fiquei feliz.

Mas a felicidade durou pouco.

Naquele momento, reparei em minha situação. Não havia percebido.

O que ela iria pensar?

Eu estava totalmente nu.

Agitado e confuso por conta da recordação daquele sonho, não me cobrira antes de abrir a porta.

Sentei-me na cama, envergonhado.

O sonho foi tão real... E coincidia com o que falara pouco antes com o Mestre. Talvez por isso tenha acontecido. Mas que coincidência! "Já é hora de voltares à realidade", ouvi no sonho. O Galileu, por sua vez, havia dito: "Morrer é despertar para a realidade". E a voz do sonho insistiu: "?Para de olhar pela janela e volta à realidade".

Ruminei tudo aquilo.

Se fosse um sonho premonitório, que queria dizer? A "visão de uma janela" era um símbolo? Nesse caso, olhar pela janela significava viver, apenas? Alguém, ao recomendar que esquecesse a janela, estava anun­ciando o fim dos meus dias? Oh, Deus! O fim? Eu conhecia o mal de que sofria e sabia que, com sorte, tinha meses de vida. Talvez seis. Alguém es­taria me prevenindo? Ou queria dizer que devia me despedir da missão e voltar a minha "realidade", a meu verdadeiro mundo? Naquele momento, logicamente, não estava em condições de esclarecer o mistério; ou melhor, o suposto mistério. Mas chegou o dia em que o "sonho" teve sentido.

Quanto à segunda parte do sonho - o pergaminho escrito em inglês -, também não sabia o que pensar. Para tentar esclarecer o enigma, supondo que fosse um, primeiro tinha que consultar os capítulos e versículos ci­tados no texto: Isaías 29,8 e 7,3. Sinceramente, não me diziam nada. Não entendia a relação com Curtiss. Agora, sabendo o que sei, estremeço. O "sonho" tinha razão: "Acautela-te e aquieta-te; não temas, nem te desfaleça o coração".

Meu Deus!

Mas tenho que ser paciente e agir com ordem.

Meu Deus, dai-me forças! Falta tanto para contar!

Definitivamente, alguns sonhos são o pátio dos fundos da Divinda­de, onde às vezes entramos sem saber. E recordei as palavras do Mestre: "Busca a pérola em teus sonhos".

 

                   De 1º de março a 15 de junho

Por fim consegui recuperar o sono. Dessa vez não houve advertên­cias, nem mensagens, nem nus completos.

Descansei.

Segundo os relógios do "berço", nessa sexta-feira, 1º de março do ano 26, amanheceu às 6 horas, 5 minutos e 31 segundos (TU - Tempo Universal).

Desci ao yam, lavei-me e voltei ao casarão.

Estava faminto.

Jesus e os discípulos estavam tomando o café da manhã. Eu me juntei ao grupo e senti uma atmosfera carregada. Ninguém falava. Os íntimos pareciam desanimados. Que havia sido do furioso otimismo do dia anterior? Compreendi. Os anúncios do Mestre acabaram com eles. As expres­sões do rosto diziam tudo. Tomavam o leite quente em pequenos goles, com os olhares perdidos nas lajotas do piso. Não era difícil adivinhar seus pensamentos. Sentiam-se derrotados; ou um tanto decepcionados.

Abril trazia e levava mel e pão recém-saído do forno. Olhamo-nos algumas vezes. Ela tornou a corar.

O Galileu deixou que terminassem o café da manhã. Dava a impres­são de que também não havia dormido muito. Vi olheiras em seu rosto. Parecia preocupado.

Por volta das oito da manhã, decidiu falar. Falou devagar, com clare­za. E disse que, essa noite, após consultar seu Pai dos céus, havia tomado a decisão de esperar.

Os discípulos não entenderam.

E esclareceu:

- Esperaremos que Yehohanan termine seu trabalho. E então, nós empreenderemos o nosso.

Fez-se silêncio, quebrado apenas pelo ir e vir das mulheres.

Jesus percorreu-os com o olhar, um por um. E captou a confusão geral. O que queria dizer? Yehohanan tinha seus discípulos, os chamados “justos". Quando se supunha que terminaria seu trabalho? Ele, Yehohanan, dizia ser o braço direito do Messias, aquele que estava preparando o caminho do Libertador. Jesus não pretendia se juntar ao grupo do Batista? Por que tinham que esperar? Ou melhor, o quê?

João Zebedeu perguntou, mas a resposta do Mestre foi esquiva:

É a vontade do Pai. Vamos aguardar que Yehohanan termine sua pregação.

Ainda não compreendiam.

Quando ele acabar - insistiu com ênfase -, nós proclamaremos a boa-nova do reino dos céus.

Dito isso, mandou-os a suas casas e a seus trabalhos habituais.

Alguns protestaram em voz baixa. O Mestre, porém, foi inflexível. Era a vontade de Abba. Tinham que voltar a seus ofícios: à pesca, ao es­taleiro, ao comércio... Ele lhes diria quando suspender de novo as tarefas.

Agora, meus amigos, devo deixar-vos. Preciso continuar em comu­nicação com meu Pai.

E acrescentou duas informações interessantes: caminharia sozinho pelas colinas próximas e tornariam a se ver ao pôr do sol do dia seguinte, sábado, na sinagoga de Nahum. Lá, falaria. Depois se reuniria com eles e lhes daria instruções.

Pronto.

Levantou-se e abandonou o perplexo grupo. Nem sequer me olhou. Isso significava que não queria que o acompanhasse.

Mensagem recebida.

Tentei analisar suas palavras. O que quis transmitir?

Eu não disse abertamente, mas julguei entender que não queria coin­cidir no tempo com seu primo distante, Yehohanan. Era preciso que o Anunciador terminasse seu trabalho para que Ele pudesse começar o seu. E, subitamente, recordei algo que havia perdido em minha memória. João Zebedeu me havia dito na primeira viagem a Nazaré, em abril do ano 30. Naquela acidentada viagem, como se pode recordar, o "urso" defendia a data do batismo em Ômega como o início da vida pública do Mestre. João Zebedeu se opôs e afirmou que foi após a prisão de Yehohanan, no mês de tamuz (junho) desse ano 26, que realmente foi inaugurada a vida de pregação do Filho do Homem. Junho! O mês de tamuzl Assim sendo - e depois (ou antes, dependendo do ponto de vista) confirmado pelo Zebe­deu pai -, só faltavam três meses para o início do período de pregação.

Eu devia ter percebido. Jesus de Nazaré sabia o que ia acontecer, mas nem sequer insinuou. Imagino que não devesse.

Yehohanan, além de tudo, como já detalhei em outras oportunida­des, estava no pólo oposto do pensamento e das intenções do Mestre. Se houvessem coincidido na pregação, teria sido um desastre. Foi o que pensei naquele momento, e continuo pensando hoje. Os ideais de um e de outro não eram compatíveis. De fato, como veremos mais adiante, seus respectivos discípulos acabariam se enfrentando - e de que maneira! Mas vou tentar não me antecipar aos acontecimentos.

Por que me espantava? Jesus havia tomado essa decisão - "esperar Yehohanan terminar seu trabalho", como disse aos íntimos com sutileza - durante o retiro de 39 dias em Beit Ids. Agora simplesmente a tornava pública.

E também devo apontar algo que nunca entendi, como creio ter mencionado. Não compreendi por que Yehohanan foi considerado o precursor ou o anunciador de Jesus de Nazaré. Mas esse é um assunto quase pessoal, no qual não gostaria de entrar.

Talvez um dia, em outro lugar...

Fiz cálculos.

O Mestre queria ficar sozinho.

Eram oito horas da manhã, aproximadamente.

Eu tinha 33 horas até o ocaso do dia seguinte, 2 de março. Era a margem de tempo anunciada para a reunião seguinte, na sinagoga de Nahum. Se fosse rápido e não perdesse tempo, poderia estar no alto do Ravid em questão de três ou quatro horas. Ou seja, ao meio-dia. Tinha, pois, um dia inteiro, e mais, para fazer a necessária análise do "vinho prodigioso" e das demais amostras de vinho e de água coletadas em Caná. A verdade é que eu morria de vontade de conhecer as informações que presumivelmente os “nemos" haviam obtido. Era uma oportunidade. Se deixasse para mais tarde, quem sabe o que poderia acontecer.

Decidido.

E à terceira hora (nove da manhã) me despedi de Salomé e prometi voltar no dia seguinte. Ela ficou tão perplexa que não replicou. Logo se acostumaria a essas súbitas e aparentemente inexplicáveis ausências. Falei a ela sobre um negócio qualquer. Não menti. O "negócio" que precisava fazer era importante.

Peguei o saco de viagem e a inseparável "vara de Moisés" e rumei para Nahum. O céu me acompanhou, azul e pacífico.

E à sexta hora (meio-dia), sem percalços, cheguei ao topo do Ravid.

Lá me esperavam várias surpresas: algumas boas e outras não tão boas.

Tudo no cume do "porta-aviões" estava em ordem. Foi o que dedu­zi, mas também não parei para inspecionar os arredores do "berço" com atenção. Foi melhor assim.

"Papai Noel", nosso computador central, continuava cuidando de tudo. A manutenção e os cintos de segurança funcionavam perfeitamente. Logo notei a mão de Eliseu. Ia regularmente à nave. Isso saltava aos olhos. Tudo de primeira.

Bem, nem tudo.

A primeira surpresa chegou quando chequei a farmácia de bordo. Os antioxidantes continuavam desaparecidos.

E enquanto eu procurava, encontrei uma segunda surpresa, não mui­to agradável para quem isto escreve. Em minha ausência, o engenheiro havia aberto uma das mochilas e lera os amphitheatrica, papiros onde este explorador foi copiando o "tesouro" do Zebedeu pai.[8] Os papiros estavam fora de ordem. Eu os colocara na mochila em perfeita ordem, de acordo com meu costume. Sinceramente, isso me incomodou muito. Não queria que aquele imprestável se metesse em meus assuntos, mesmo que esses "assuntos" fizessem parte da operação. E tomei uma decisão equivocada. Mudaria os papiros de lugar. Eu os tiraria do módulo. Onde os esconderia? Nem idéia. Cuidaria disso outra hora. Eliseu não tornaria a meter o bedelho em minhas coisas.

E entrei em ação. O importante era a análise do vinho de Caná, que eu havia começado a chamar de "vinho prodigioso".

Fiz ao computador as consultas pertinentes. Que sistema recomen­dava para um estudo profundo da bebida? Depois cuidaria do não menos intrigante capítulo dos "nemos". O que detectaram? Como o prodígio se materializou?

Na tela surgiu o sistema "ACLAINAN" como o mais adequado a meus propósitos. Era um método de "análise clássica e instrumental nanotécnica"[9] de especial eficácia. Eu só tinha que preparar o "equipamento” (provetas etc.), e "Papai Noel" cuidaria do resto. Pura rotina e tecnologia. Este explorador simplesmente observava os processos e avaliava. Mas nem tudo foi rotina.

E enquanto o computador fazia os ensaios, quem isto escreve consultou os versículos mencionados no manuscrito do recente "sonho". Isaías 29,8 e 7,3.

Não me disseram nada.

Isaías (29, 8) diz literalmente: "Será também como o faminto que sonha que está a comer, mas, acordando, sente-se vazio; ou como o sedento que sonha que está a beber, mas, acordando, desfalecido se encontra, e ainda com sede; assim será a multidão de todas as nações que pelejarem contra o monte Sião".

Não ajudaram em nada, mas fiquei surpreso com a coincidência. Isaías falava de "sonho", e eu havia acabado de viver tudo aquilo em um sonho. O texto de Isaías tem 66 capítulos e 1.280 versículos. Que coincidência!

Mas, como dizia, não prestei muita atenção a isso.

Imbecil!

A segunda citação (7,3) me disse muito menos. Além de tudo, vi que havia um erro no que pude ler no "sonho". "Acautela-te e aquieta-te; não temas, nem te desfaleça o coração" não correspondia ao versículo 3, e sim ao 4. O 3 diz: "Então disse o Senhor a Isaías: sai agora, tu e teu filho Sear-Jasube, ao encontro de Acaz, ao fim do aqueduto da piscina superior, na estrada do campo do lavandeiro".

Fiquei intrigado. O general Curtiss tinha dois nomes de batismo na vida real. Um deles era Isaías.

Dei de ombros.

Só depois, muito tempo depois, eu descobriria a "pérola" que, de fato, como anunciou o Mestre, esconde-se em cada sonho. Também neste.

E com o ocaso, chegaram os resultados da análise.

 

"Papai Noel", para uma melhor compreensão, dividiu-a em dois tó­picos, ou capítulos.

Repassei-os umas mil vezes. Não havia erro algum. "Papai Noel" era quase perfeito.

Eis aqui uma síntese do obtido:

Tratava-se de um vinho doce e generoso, típico de sobremesa, com uma elaboração difícil e, digamos assim, muito peculiar. Para meu assom­bro, o "vinho prodigioso" havia "viajado" (!) durante 18 meses.

De início, tentei racionalizar o que estava lendo. Depois me dei con­ta: eu estava diante de um portento, diante de algo de origem divina ou so­brenatural, e que, em consequência, escapava à minha modesta compreensão. Simplesmente tinha que me limitar a receber a informação. Todo o resto era perda de tempo e energia.

Prossigo.

Era como se a bebida tivesse sido embarcada e submetida ao ca­lor da adega do navio, à umidade do mar, aos movimentos do navio e às mudanças de temperatura. Tudo acabou repercutindo na qualidade do vinho. Uma qualidade excelente, como comentou o tricliniarcha. Embarcado durante um período de um ano e meio? Eu me neguei a pensar e prossegui com os incríveis resultados. O computador apon­tou que essa melhora da qualidade pôde se dar mediante o embarque do vinho em um navio, ou pelo sistema conhecido como estufagem.[10] "Papai Noel", obviamente, não sabia o que eu sabia. O "vinho prodi­gioso", que eu soubesse, não havia viajado em nenhum barco. E mais: não havia viajado, segundo o conceito humano de viajar. Quanto à estufagem, um método para simular em terra a viagem do vinho por mar, também não tinha pés nem cabeça. Ninguém manipulou as talhas. Ninguém submeteu o conteúdo a aquecimento algum. Aquilo era absurdo, eu sei.

O vinho foi armazenado em barris de carvalho torrado, da espécie Quercus pedunculata (árvores grossas e não muito altas). Isso o beneficiou especialmente. O carvalho torrado exerce uma função antisséptica de primeira magnitude e evita que o líquido azede. As tábuas dos barris deviam ter passado por uma torração intensa. Do contrário, não se entenderiam os significativos índices de furfural HMF e aldeídos aromáticos que o "vinho prodigioso" apresentava. Essa torração forte do carvalho afetou os primeiros milímetros da madeira das tábuas dos barris onde o líquido permaneceu pelo menos durante três anos. Essa foi a idade calculada para o "vinho prodigioso".

O teor alcoólico foi estimado em 14°C. O vinho foi envelhecido em um só barril, com um volume não superior a mil litros. Era um vinho "clarificado", ou seja, decantado de forma natural (sem filtros). Sua base eram mostos ricos em açúcar. A uva, segundo "Papai Noel", era uma malvasia, mas não procedia de solo judeu. Isso me deixou perplexo também. O "vinho prodigioso" não era de Israel. O computador não soube estabelecer a pátria. Podia ser de qualquer lugar. Em Israel, naquele tempo, segundo nossas notícias, os vinhos se dividiam em dez grandes variedades. O "prodigioso" era do tipo ilyaston (doce), mas não foi colhido em terras judaicas.

Os cálculos do computador central foram minuciosos. Por hectolitro (cem litros) foram necessários 19.680 gramas de glicose e 80 litros de água. Para o volume total de vinho (cerca de 720 litros), foram requeridos 138,5 quilos de glicose.

Não foram detectados os micro-organismos habituais, responsáveis pela chamada "quebra do vinho". A proporção das substâncias tânicas era correta, favorecendo a oxidação e, portanto, contribuindo para o envelhe­cimento e o amadurecimento da bebida.

Evidentemente, não encontramos rastro de metabissulfito sódico, um produto químico que às vezes é acrescentado ao mosto durante o processo de fermentação, como elemento desencadeante de S02.[11]

Também não se encontrou excesso de ácido tartárico ou cítrico (uti­lizados normalmente para corrigir a falta de acidez). Isso me levou a pen­sar que o ano da colheita da uva do referido "vinho prodigioso" não foi excessivamente quente.

Não se detectou excesso de carbonato de cal, destinado também a modificar a acidez do mosto. A dedução do "Papai Noel" foi que a pátria do "vinho prodigioso" era um lugar temperado.

Em suma, para não estender este capítulo, o vinho era excelente, in­tenso, bem estruturado e muito mais.

O segundo tópico - o do prodígio propriamente dito - foi espetacu­lar. A ciência chegou até onde pôde, e não foi pouco.

O "Papai Noel" trabalhou a um terço de sua potência (à razão de um tri­lhão de operações em "ponto flutuante" por segundo, ou 1012). Foi suficiente.

Pessoalmente, fiquei maravilhado.

Os "nemos frios", com a missão de "fotografar" e transmitir, fizeram um trabalho intenso e minucioso (até onde foi possível). Enviaram 500 imagens por femtossegundo.[12] O "Papai Noel" amplificou as imagens para "nível dois" (atômico).

O prodígio, como foi dito em outro momento, foi registrado às 16 horas, 6 minutos e 1 segundo daquela inesquecível quarta-feira, 27 de fevereiro do ano 26 de nossa era. Esse dado (a hora exata) é importante para compreender o que aconteceu. A duração do prodígio foi estimada em 155 femtossegundos. Em outras palavras: não foi visível ao olho humano. Como sabem os especialistas, para a criação da realidade (a nossa, a cotidiana) são necessários 50 milissegundos (recordemos que um milissegundo é 10-3 segundos, ou, o que é o mesmo, um milésimo de segundo). Uma vez abertos os olhos, são necessários 50 milissegundos para que o cérebro "traduza" ao ser humano o que está vendo. Um femtossegundo é uma unidade de tempo imr.::amente menor se comparada a um milissegundo.

(Femtossegundo: 10-15 segundos.).

Tudo aconteceu em um "tempo" (?) tão breve que, mesmo que este explorador houvesse permanecido com a vista fixa na água das talhas, sem afastá-la um só instante, não teria captado o ocorrido. Foram os “nemos frios" que conseguiram "ver" (?) uma parte do prodígio. Desde que a "vara de Moisés" foi ativada até que começou o portento propriamente dito, os "nemos" que flutuavam na água das talhas, e os chamados "AD" ("nemos" aderidos às paredes internas de pedra das talhas e distribuídos em cinco grupos), "fotografaram" a referida água durante três minutos. O "Papai Noel" não encontrou nada em especial, salvo um moderado excesso nos volumes de cal (algo lógico nos terrenos calcários de Caná). Tratava-se de água vadeosa ou superficial, típica entre o lençol freático e a superfície. Era água natural, com um leve aumento de cálcio. Tudo normal.

Mas, às 16 horas, 6 minutos e 1 segundo, os "nemos" detectaram várias anomalias, que se prolongaram por 54 femtossegundos. Talvez eu não consiga me explicar (as palavras não me ajudam). Talvez tudo tenha ocorrido simultaneamente; mas acho que devo narrar por partes, a fim de tornar compreensível (?) o que aconteceu naquela tarde. Vou tentar não formular comentário algum enquanto não tiver concluído a exposição dos "fatos". Não sei se conseguirei.

Às 16 horas, 6 minutos e 1 segundo.

Os "nemos" captaram uma alteração na gravidade, que caiu de seu valor habitual (9,8 m/s2) a 6,9176 m/s2.[13] Os "nemos", logicamente, não pu­deram verificar se a gravidade sofreu alguma mudança no pátio ou nos ar­redores da Sapiah. É possível (não certeza) que a tontura, a dor de cabeça e o formigamento nas mãos e nos pés que quem isto escreve sentiu naque­le momento tivessem sua origem nessa variação nos níveis de gravidade.

Simultaneamente (16 horas, 6 minutos e 1 segundo), os átomos da água armazenada nas seis talhas sofreram uma leve oscilação. A frequência foi de 10 a 100 GHz. Mais ou menos entre 10[14] e 10[15] ciclos por segundo. A água perdeu seu caráter dielétrico (com uma permissividade de 80) e ocor­reu um fenômeno não menos singular. As moléculas, formadas por um áto­mo de oxigênio ligado a dois de hidrogênio, que normalmente apresentam uma forma triangular, sofreram duas importantes modificações: os ângulos das duas ligações (habitualmente em 104,5°) mudaram para 105°. A distân­cia da ligação O-H não foi modificada, mas o momento dipolar (1,85 debye) apareceu em 1,84. Achei que o "Papai Noel" havia enlouquecido.

A água vibrou como o couro de um tambor ao ser acertado pela baqueta.

Aquilo foi o caos. Mas um caos que durou apenas femtossegundos. Imediatamente (?), os "nemos" fotografaram e mediram o deslocamento das oscilações e certificaram, também em femtossegundos, que o movimento caótico evoluía para uma vibração coordenada dos quintilhões e quintilhões de átomos que integravam a água das talhas.

Tudo voltou à "normalidade" (?), mas por pouco tempo (sempre medido em "fem": femtossegundos).

E registrou-se outro fenômeno incrível.

Os quintilhões de átomos de cada talha se "transformaram" (?) em cintilações luminosas... azuis!

Foi uma loucura.

Os "nemos frios" não davam conta.

Era como um gigantesco farol estroboscópico que emitia quintilhões de flashes azuis a uma cadência de cinco "fem". Ao fim desse "tempo", registrava-se um intervalo de um attosegundo, e começava tudo de novo.

Como Harold Edgerton, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, seria gostado de ver isso!

Cada átomo era um foco emissor de "luz azul"!

E foi o "Papai Noel", ao avaliar a informação, que detectou algo "im­possível" para a ciência, mas real.

As "cintilações" dos quintilhões de átomos registravam-se em forma de sequência numérica (algo parecido ao morse). A sequência se repetia 1.530 vezes. Ocorria uma "pausa", e o fenômeno prosseguia. O computador submeteu os números a todo tipo de cálculos e combinações, mas os resultados foram negativos. Não conseguiu saber do que se tratava, supondo que "aquilo" tivesse algum sentido.

A série em questão era a seguinte:

"4173-45-51-61314147."

Não era preciso ser muito esperto para compreender que a água "falava".

Qual era a mensagem? Ignoro.

Mas desde quando a água fala? Pensei que estivesse enlouquecendo.

O "Papai Noel" checou as informações várias vezes. Não havia dúvida. Os quintilhões de flashes azuis escondiam uma ordem numérica. Outra questão é que o computador e quem isto escreve não sabiam decodificar o suposto enigma da "água falante". Talvez alguém, um dia, soubesse decifrá-lo.

E, subitamente (?), a iluminação azul parou.

Os "nemos" registraram uma queda na temperatura da água. Se antes do prodígio era de 15°C, nesse instante caiu para -1°C. E deu-se outro "espetáculo" fascinante. Para ser exato, dois "espetáculos" fascinantes que me deixaram também atônito. Foram simultâneos. O primeiro consistiu no surgimento de centenas de pequenos cristais de gelo, hexagonais, be­líssimos. Outros, também centenas, tinham forma da flor da tangerina. O segundo fenômeno foi o progressivo desaparecimento da água. Em cada talha, o líquido foi desaparecendo, do fundo para a superfície, em lâminas que oscilavam entre 0,75 e 5 nanômetros de espessura.[16] Algo parecido às chamadas "Newton Black Films". Foi também vertiginoso.

E as seis talhas ficaram completamente vazias.

O tempo utilizado nessa primeira fase do prodígio - que abarcou a alteração gravitacional, as modificações na estrutura da água, as cintila­ções azuis, o surgimento de cristais hexagonais e o progressivo desapare­cimento do líquido, em lâminas - foi de 54 "fem". Um período de tempo quase inimaginável.

Os "nemos" situados nas paredes de pedra dos recipientes não regis­traram alteração alguma nelas. Foi assombroso. Apareciam secas.

E nesse instante (?) os "AD" enviaram informações sobre o "con­teúdo" das talhas: nenhum. Ou melhor, ar normal, como o que respi­ramos habitualmente.

Os demais "nemos frios" pararam de transmitir. Desaparecendo a água, eles também foram eliminados. Quem sabe onde foram parar.

O ar que enchia as talhas não apresentava alteração alguma: oxigênio (21 por cento), nitrogênio (78 por cento), argônio (1 por cento) e quanti­dades variáveis de vapor d agua e dióxido de carbono. Tudo normal.

O que aconteceu com os mais de 700 litros de água?

Não sei. Simplesmente deixaram de estar.

O "vazio", ou a ausência de água, prolongou-se por 101 "fem".

Nesse "tempo", os "nemos" não detectaram nada estranho nem que ae restacasse. Só "vazio", se me é permitida a expressão.

E ao fim desses 101 "fem", para minha surpresa, as talhas se enche­ram de vinho.

Foi um processo simultâneo e instantâneo. No "fem" 101 não havia nada e no 102 apareceu o ilyaston (vinho doce), enchendo as seis talhas.

Fiquei tão impressionado que obriguei o "Papai Noel" a repetir o fil­me várias vezes. Sempre obtive o mesmo resultado. Do "nada" passou-se ao vinho.

E tudo voltou ao normal, inclusive a gravidade.

Fim do prodígio.

Segundo o computador central, o portento teve uma duração total de 155 femtossegundos. Praticamente nada. Como já expliquei, o prodígio não foi visível aos olhos humanos. O tempo gasto -155 "fem" - é inferior ao que o homem precisa para formar uma imagem (o tempo que a luz necessita para ativar os pigmentos da retina é de 200 "fem" aproximadamente). Como também disse, mesmo que este explorador houvesse ficado mm o nariz colado à superfície da água das talhas, meu sistema visual não leria detectado nada.

Teríamos assistido ao que se denomina "estado de transição da matéria"?[17]

Não sou capaz de afirmar.

O que sei é o que vi e o que os "nemos" "viram".

A que conclusões cheguei?

Não muitas, mas importantes. A saber:

  1. O prodígio foi real. Não sei quem foi o responsável, mas alguém fez a água desaparecer e, posteriormente, surgir vinho: cerca de 720 litros.

Retifico: sei quem realizou o portento. O Mestre me explicou e assim registrei nestes diários.

A ciência, porém, deve se limitar às provas.

  1. Não houve conversão da água em vinho, como diz a tradição. Houve um prodígio, espetacular diria eu, mas nenhuma lei da natureza foi violada. O H2O se transformar em carbono não é a mesma coisa que fazer desapa­recer um líquido para, depois de um tempo, fazer aparecer outro. E recordei as palavras do Galileu quando caminhávamos para o yam: "Consideras que tirar vinho do nada é um trabalho sem graça e sem imaginação?"

Fiquei perdido.

Fazer desaparecer cerca de 700 litros de água e obter vinho do "nada"... A mesma quantidade, exatamente.

O portento era maravilhoso, sem explicação científica possível, pelo menos por ora, e não agredia as leis da natureza.

Sublime! Magistral! Insuperável! Delicadíssimo! Requintado!

  1. Provavelmente, como também disse Jesus de Nazaré, alguém com poder suficiente manipulou o tempo. Essa foi outra chave do prodígio. Mas não tenho palavras para esclarecer o mistério. Como é possível ma­nipular o tempo? Que estupidez! Nós fazíamos isso! E eu disse a mim mesmo: se nós, pobres humanos, éramos capazes de algo assim, o que poderiam fazer as criaturas a serviço de um Homem-Deus?

Eu me rendi.

  1. Embora a covariância defenda que as leis da física são idênticas para todos os observadores, alguma coisa está faltando nesse corolário. No prodígio de Caná, as leis físicas não foram violadas, mas os "observa­dores invisíveis" tiraram algo do nada, coisa impossível, segundo a ciência.
  2. A flecha do tempo - segundo alguns - seria explicada pela se­gunda lei da termodinâmica (a entropia, definida como a progressiva desordem de um sistema). Pois bem, em Caná, aparentemente, alguém pulou essa segunda lei da termodinâmica. Ou não? Insisto no que afir­mava Gödel: "Sempre haverá enunciados verdadeiros em matemática que estão além de nosso conhecimento". Caná é um desses "enunciados", e assim será por muito tempo.

E nessa noite, rendido perante a evidência, caí de joelhos. E louvei a sabedoria e o amor do Pai Azul.

Não há dúvidas. Estamos nas melhores mãos.

Então, dobrei meu espírito científico e o guardei. O método cientí­fico não serve para estudar Deus, da mesma maneira que nunca servirá para medir a beleza, a poesia ou a ternura.

Foi nesse dia, sexta-feira, le de março do ano 26 de nossa era, que tomei uma sábia decisão; algo que não havia me atrevido a fazer no Hermon: entregar-me à vontade de Abba. Conforme dizia o Homem-Deus: “Minha vontade é que se faça Tua vontade".

A partir desse momento, tudo foi diferente, mesmo sendo igual. Mas vou tentar ir por partes.

Aliás, quase esqueci. Ao fazer a análise, o "Papai Noel" fez outra descoberta, eu diria que notável, que me beneficiou pessoalmente. No "vinho prodigioso" surgiu uma substância antioxidante muito superior à dimetil-glicina, que combate a contração dos vasos circulatórios e anula boa parte do NO (óxido nitroso). Eu a batizei de chenaz ("tesouro" em aramaico). O roso antioxidante é um derivado dos flavonoides e dos taninos, tendo, além de tudo, uma capacidade espetacular de prevenir a hipertensão. Um dia - espero - será descoberta pelos cientistas.

Decidi guardar o que havia sobrado após a análise. Talvez me ajudasse na luta contra o NO. Fazia quase uma semana que não tinha antioxidantes. E acredito que me serviu. Minha saúde melhorou sensivelmente. Foi incrível: este explorador foi outro beneficiado pelo "vinho prodigioso". Quantos mais, dentre os convidados da festa de casamento, seriam agraciados com o chenaz?

O computador fez também os ensaios sobre as amostras de água e de vinho tinto, transportadas ao "berço" nas já referidas ampolas de barro. Não se observou nada de particular, salvo o já mencionado: um leve aumento nos índices de cal da água das talhas.

E fui descansar. Aquele foi outro dia inesquecível.

Mas a paz não durou muito.

Por volta das duas da madrugada, o "Papai Noel" me alertou. O cinturão gravitacional disparou. Como se pode recordar, Eliseu modificou os limites dessa defesa, instalando-os a 500 metros do "berço". Era o primeiro escudo protetor do módulo. O cinturão gravitacional atuava como uma cúpula invisível. Se alguém pretendesse ultrapassar esse limite, uma força esmagadora o impediria. Era como um furacão, ou como um muro. Ninguém estava capacitado para ultrapassá-lo. Só nós, graças a uma senha que passávamos ao computador central cada vez que queríamos entrar na nave. Essa senha era "Base-Mãe-3". Ao pronunciá-la, o "Papai Noel" desligava o sistema gravitacional. Ao abandonar o Ravid, os pilotos pronunciavam a palavra "Ravid" (em inglês), e o cinturão se materializava novamente.

Era estranho. Do lado de fora, notava-se uma intensa luminosidade violeta.

Eu já tinha visto esse fenômeno antes.

Chequei os radares. Tudo parecia estar em ordem. Nem um único "eco" suspeito. E pensei nos pombos que faziam ninho no monte Arbel, muito próximo. Já haviam nos dado outros sustos.

E, de repente, o alarme parou.

Podiam ter sido os pombos de Arbel...

Mas não fiquei tranquilo e decidi sair da nave. Estávamos sozinhos no cume do Ravid. Eu me refiro ao "Papai Noel" e a quem isto escreve.

Aquela luminosidade... eu já a vira antes. E recordei uma das noites na colina que eu chamava de "778", nas proximidades de Beit Ids. Tam­bém lá, durante alguns segundos, a noite ficou violeta. Algo (aparente­mente uma luz) se precipitou sobre o cume da colina e tudo ficou violeta.

Agora, a luminosidade que eu contemplava era parecida, mas percebi algo diferente: aquela luz violeta que inundava tudo (pedras, nave, roupas e a dis­tante macieira de Sodoma) estava lá pelo menos havia três minutos. Esse era o tempo que levei para me levantar desde que o "Papai Noel" me pôs em alerta.

E a contemplei com prazer.

Era um violeta doce, muito tênue.

De onde vinha?

Olhei para todos os lados, mas não consegui localizar a origem.

E, lentamente, a luz foi se extinguindo.

Eu me sentei em uma das agulhas de pedra, espantado. Não conse­guia encontrar uma explicação. O fenômeno deve ter se prolongado por uns nove minutos.

Fiquei contemplando o firmamento. A escuridão era total. A noite recuperou a serenidade. A lua havia se escondido às 23 horas, 34 minutos e 50 segundos. E com ela se foi o vento. As oito mil estrelas pareciam alheias a tanto prodígio, mas não...

E, de repente, a oeste, na "popa" do "porta-aviões", no lugar onde se erguia a macieira de Sodoma (uma das referências para entrar no cume do Ravid), julguei ver uma luz. Não era uma estrela.

Eu me levantei.

De fato...

Estava se mexendo!

Era uma luz amarelada, com um tamanho dez vezes superior à estrela Capella, em forma de bala de canhão, com a ponta para cima.

Fiquei atônito, e provavelmente de boca aberta.

Outra vez as "luzes"!

A "bala" prosseguiu em sua descida, lenta e continuada, aproximando-se da "popa" do Ravid. Não fazia barulho.

Eu não sabia o que fazer. Entrava na nave e ativava os dispositivos de defesa?[18] Consultava os radares? Filmava?

Não houve tempo.

A luz interna do "berço" se apagou. E - supus - os cintos gravitacionais, os de visão IV e os hologramas ficaram inutilizados.

E a luz amarela desapareceu por trás da macieira de Sodoma.

Nesse momento, senti náuseas e uma notável tontura. Tudo começou a girar.

Tive que me sentar de novo na rocha.

O que estava acontecendo?

Seria outro sonho?

Recordo que inspirei profundamente e tentei me acalmar.

E nisso, a luz de cabine do "berço" se restabeleceu.

Foi quando vi aquela outra "luz". "Decolou" (modo de dizer) da região da macieira e começou a se elevar lentamente, sem barulho.

A tontura aumentou. Tive que me segurar na pedra. Haveria a possibilida­de de que as "luzes", ou o que quer que fossem, estivessem criando um campo eletromagnético de baixa frequência? Isso talvez explicasse a súbita tontura.

Essa segunda "luz" era branca, como uma lua cheia, e no alto havia outra luz, menor, vermelha. Avançou para mim, mas subitamente parou. Estava a pouco mais de 35° acima da linha do horizonte.

Não cintilava. Eram luzes fixas. Percebi um leve "movimento de ca­beça". Não pude calcular a distância a que estava, mas não devia ser su­perior a mil metros. (A macieira de Sodoma, como já expliquei, estava a 2.173 metros da nave.)

Eu continuava espantado.

E ali permaneceu, imóvel, em um "estacionário" perfeito, por mais de um minuto. As náuseas e a tontura desapareceram.

Reagi e entrei no módulo. Peguei um projetor a laser (portátil) e vol­tei à plataforma rochosa.

As luzes haviam desaparecido.

Não esperei muito tempo.

Da região da macieira de Sodoma, tornaram a "decolar" (?) mais três "luzes". Dessa vez, formavam um triângulo isósceles. Eram vermelhas. Su­biram devagar e também sem barulho. E foram se aproximando.

Obviamente, tratava-se das luzes de posição de um mesmo objeto.

Caminhei uns cem metros e me situei perto dos restos da muralha romana. A negrura era absoluta.

Então, decidido a terminar com aquele irritante mistério, pulsei o laser e emiti um sinal luminoso para o "triângulo".

O objeto parou. E permaneceu estacionário, à baixa altura, a uns 1.500 metros de minha posição.

Repeti o sinal luminoso, e acho que acertei no alvo.

Quase instantaneamente partiram do "triângulo" duas cintilações.

Pensei que ia desmaiar.

Não era possível! Estavam respondendo a meus sinais! Mas quem? Aquilo era de enlouquecer. Estávamos no ano 26. Quem voava nessa época?

E o "jogo" se repetiu dez ou doze vezes. Eu enviava um sinal lumino­so e "eles" (?) respondiam sempre com dois.

Não sei de onde tirei forças...

A questão é que, de repente, tive uma idéia.

E tentei a comunicação por código morse.

Perguntei:

"Amigos?"

Dessa vez, tive que me sentar.

Houve resposta, e imediata. Tive a sensação de que adivinhavam meu pensamento antes que este explorador emitisse os sinais luminosos.

A resposta foi assombrosa:

"Mais que amigos."

Engoli em seco e perguntei de novo:

"Sabeis quem somos?"

Resposta:

"Sabemos."

Pergunta:

"Sois anjos?"

Resposta do "triângulo":

“Talvez”.

E me entusiasmei:

"Que tendes a ver com Jesus de Nazaré?"

Silêncio. Não houve cintilações. Não houve resposta.

Insisti e repeti a pergunta, modificando-a em parte:

"Sois a gente d'Ele?"

Silêncio. Não houve mais cintilações.

E o "triângulo" se elevou na escuridão a uma velocidade incrível, perdendo-se no firmamento. O silêncio ficou flutuando na noite e em meu desconcertado coração.

Mas não tive tempo de estabilizar a mente. Senti passos atrás de mim. Alguém estava correndo.

Senti um novo calafrio.

Voltei-me e distingui duas sombras. Corriam, de fato, em direção ao "berço".

Eu poderia jurar que eram humanos.

Não sei de onde saíram, nem como. Corriam perto do módulo e os vi desaparecer no meio do trem de pouso.

Quem eram? Como haviam chegado até ali? Teriam sido os responsáveis pelo disparo do alarme? Como conseguiram burlar o cinturão gravitacional?

E, em pânico, tive uma reação animal. Precisava descobrir o que es­tava acontecendo.

Corri para o "berço", mas, na escuridão, no segundo passo trope­cei em uma das agulhas calcárias, perdi o laser e rolei entre os afilados penhascos.

Bati a cabeça e perdi os sentidos. Não me lembro de mais nada.

Quando voltei a mim, estava dentro da nave, no chão.

Tentei recordar... O que havia acontecido?

E vi, com espanto, que eram 5h07. Recordei que havia sido acordado pelo "Papai Noel" às duas horas...

Não conseguia entender.

E, lentamente, fui recuperando as lembranças: a luz violeta, as "lu­zes", o estranho "diálogo" com o "triângulo", as figuras humanas que cor­riam e desapareciam sob a nave.

Teria caído do beliche? Tive um pesadelo?

E recordei o laser. Eu o perdera perto da muralha romana. Estaria lá?

Levantei-me com dificuldade. Tinha um corte na testa, em cima do olho esquerdo. Nada importante, mas... Como fiz aquilo? Teria sido lá fora, quando tropeçara, ou ao cair do beliche? Mas havia realmente caído da cama?

E, aturdido, decidi esperar o alvorecer. Tinha que sair e descobrir que diabos estava acontecendo.

Teria sido melhor não descobrir nada.

Mas as coisas são como são, e não como gostaríamos que fossem.

Faltava pouco menos de uma hora para o amanhecer. O que faria?

Optei por checar os sistemas.

Eu sei. Foi uma desculpa. Para que esconder? Senti medo.

Não sei o que havia lá fora, mas era algo além de minha compreensão.

Eu me senti desconcertado, confuso e temeroso. Não queria andar pela plataforma rochosa no meio daquela negrura. Essa foi a verdadeira razão pela qual continuei no "berço".

E voltou a velha idéia: teria sido tudo um sonho?

Não sei...

As leituras nos radares não forneceram nenhuma informação.[19] Nenhum dos objetos que este explorador supostamente observou ficou registrado nas telas. Foram três, que eu recordasse. Como era possível? Em outras oportunidades, como na madrugada de 7 de abril do ano 30, esses misteriosos objetos voadores foram captados pelos radares de bor­do, sim. O "2.000", com um comprimento de onda de três centímetros e uma cobertura de quase 40 quilômetros, também estava "mudo". E o mes­mo aconteceu com os analisadores do espectro. A luz violeta não conti­nha nenhum sinal eletromagnético ou de rádio. Era uma "luz" (?) "vazia", desconhecida para nós. Mas o achado mais surpreendente foi feito pelo "Papai Noel". Ele conseguiu "limpar" um ruído de fundo (eletromagnéti­co) muito forte e obteve um sinal aparentemente sem sentido. Repetia-se constantemente a sequência "2, 9, 8, 2, 0, 2, 7". Mas isso foi tudo.

Por que "2, 9, 8, 2, 0, 2, 7"?

O "Papai Noel" também ofereceu uma síntese do ocorrido desde que fui acordado:

"Alteração do cinturão gravitacional às 2h01. Duração da anomalia: 21 segundos."

Luz violeta. Permanência total: 9 minutos e 3 segundos.

A temperatura no cume do Ravid caiu bruscamente em 2°C. Com o desaparecimento da luz violeta tudo voltou ao normal. A temperatura se elevou de novo a 18°C.

Queda do fornecimento elétrico no "berço". Registrou-se às 2h10. Duração da estranha "queda": 39 segundos e 7 décimos.

Com o corte no fornecimento elétrico, vieram abaixo todos os cintos de segurança.

Não houve razão para essa "queda" no fornecimento elétrico.

Inexplicável.

Curioso. De todo aquele manicômio de cifras, sensações e dúvidas, em minha cabeça só ficou uma coisa: "2, 9, 8, 2, 0, 2, 7".

Eliseu, quando soube do ocorrido, apontou uma possível explicação. Para ele, o estranho número em questão era uma data: 29 de agosto de 2027.

E ambos demos de ombros. Estava muito longe.

Mas, se fosse verdade - e o "Papai Noel" dificilmente errava -, o que estavam nos comunicando? Quem havia transmitido esse sinal, e, acima de tudo, por quê? Estavam nos avisando alguma coisa?

E o alvorecer pôs fim aos trabalhos com o instrumental. Eram 6 horas, 4 minutos e 20 segundos do sábado, 2 de março de ano 26 de nossa era. Outra data difícil de esquecer.

 

Observei pela escotilha. Tudo na meseta rochosa parecia tranquilo. Porém, desci inquieto. Estava com a "vara de Moisés", mas mesmo assim...

A primeira exploração foi negativa. Não havia ninguém lá. O "porta-aviões" estava solitário, como quase sempre.

Cheguei até os restos da muralha romana, situada a 173 metros do "berço", e procurei entre as lajes e as agulhas azuis de pedra.

Lá estava a lanterna a laser!

Peguei-a e dei uma olhada nos arredores.

Não tardei a descobrir gotas de sangue, já seco, em uma das arestas pedregosas. Era sangue deste explorador, sem dúvida.

Mas, então...

Não foi um sonho! Foi realidade! Eu vivi a noite violeta, a aproxi­mação das "luzes" e aquele singular "diálogo" com o "triângulo isósceles"!

Oh, Deus! O que estava acontecendo?

Por que apareci dentro do módulo? Que aconteceu comigo nes­sas duas horas e pouco que não conseguia recordar? Alguém, eviden­temente, havia me levado para dentro da nave. Eu estava inconsciente. E lá ficaram o laser e o sangue, para provar (para me provar) que nada daquilo havia sido um pesadelo ou fruto de minha imaginação. Alguém estava nos seguindo muito de perto e, de certo modo, velava por nossa segurança. Ou não era isso?

Dediquei um tempo à exploração do lugar. Uma exploração criteriosa.

Negativo.

Não encontrei nada estranho: nem pegadas, nem sinal algum das "sombras" que distingui na escuridão. Então, ao rememorar a difusa ima­gem das criaturas correndo para os "pés" do "berço", algo se situou em pri­meiro plano; algo que não percebi naqueles difíceis momentos: as "som­bras" não se vestiam como os conterrâneos e naturais da época (ano 26).

Usavam calças! Ou melhor, algo parecido a um macacão, parecido com o que os pilotos usavam.

Isso não era possível!

E deixei para lá a imagem. Com certeza se devia ao medo.

Continuei a busca, chegando até a macieira de Sodoma, a quase 2.200 metros do lugar onde se assentava o "berço".

Negativo.

Eu vira as "luzes" "decolarem" daquela área, mas não encontrei nada em particular. Nem queimaduras, nem marcas na terra, nada.

E, ao voltar à "proa" do "porta-aviões", não sei por que fui até a es­carpa que se abria a seis poucos metros do módulo. Era quase inacessí­vel, como já descrevi em outro momento, com uma profundidade de 131 metros. Na realidade, salvo na "popa" do Ravid (região da macieira), o resto do monte, como também expliquei, era cortado em todas as direções (pelo sul, pelo leste e pelo oeste) por precipícios que variavam entre os referidos 131 metros (altura máxima) e os 40 metros.

Vi-o imediatamente.

E fiquei perplexo.

Como ele chegou até ali? Como não o vi antes?

Estava pensando bobagens.

Quando cheguei ao Ravid, ao meio-dia da sexta-feira, 1º de março, entrei diretamente na nave e parti para a análise do "vinho prodigioso". Não me preocupei em rastrear o "porta-aviões", nem tinha motivos para isso.

Eu me aproximei devagar, com extrema cautela.

Inclinei-me e vi que, de fato, tratava-se daquilo que havia pensado.

Tornei a explorar o Ravid com o olhar.

Negativo.

Não havia ninguém ali. Então, aquilo...

Toquei como se fosse uma aparição.

Estava frio. O sol não tivera tempo de esquentá-lo.

E pensei: "Isto esteve aqui a noite toda".

Senti um nó no estômago.

Isso queria dizer que alguém sabia que estávamos lá, no alto do Ra­vid. Que mais podia pensar?

E disse a mim mesmo: "Que faço? Tiro-o?"

Tornei a acariciar o ferro. Era um gancho de três "anzóis", grande e poderoso, com um "cabo", também de ferro, de quase um metro de com­primento. Uma longa corda, amarrada na ponta do "cabo", pendia no va­zio. Calculei dez metros de corda.

Estava claro.

Alguém usara o triplo gancho para escalar o Ravid por aquele lado do "porta-aviões". E supus que a pessoa o tinha feito pouco a pouco, jo­gando a "âncora" por trechos e subindo.

Mas...

Sim, era um homem. Descobri-o ao pé da escarpa. Estava imóvel no meio dos penhascos e do mato. Estava morto?

E imaginei que talvez houvesse chegado a pôr o pé na plataforma rochosa. Nesse caso, ao chegar ao topo, o cinturão gravitacional o teria empurrado ao vazio.

Oh, Deus!

Sim, essa tinha que ser a explicação. O "vento de furacão" o jogou para fora do Ravid.

Mas quem era? O que pretendia? Por que escolheu aquele caminho, tão difícil e arriscado? Isso significava que havia tentado pelo lado da ma­cieira de Sodoma, o mais lógico para subir ao cume?

As perguntas atropelavam umas às outras.

A situação era grave. A integridade da nave estava em perigo? Quan­tos mais haviam tentado entrar no alto do "porta-aviões"? Tinha que falar com o engenheiro. Era preciso encontrar uma solução.

E nisso, pela trilha de terra preta vulcânica que contornava o Ravid pelo flanco norte, procedente de Migdal ou talvez da plantação onde co­nhecera o velho Camar, o beduíno, vi surgir um grupo de homens. Contei oito. Caminhavam com pressa.

Deitei-me nas rochas e segui seus movimentos, inquieto.

Conforme havia imaginado, abandonaram a pista e abriram caminho por entre o mato e os penhascos, cercando o corpo daquele que jazia imó­vel. Alguém os havia advertido, obviamente. Examinaram-no, e alguns de­les levantaram a cabeça, dirigindo o olhar para a corda que balançava no alto. Colei o rosto ao chão e esperei. Se me vissem, estaria perdido. Ou me­lhor, a operação ficaria seriamente comprometida. Eu não permitiria isso.

E o grupo começou a discutir.

Tinha que fazer alguma coisa.

E optei pelo mais sensato.

Saí dali sem que me vissem. Segui em direção à macieira e ativei as defesas. A seguir, sem perda de tempo, atravessei a "região morta" e me situei na referida trilha de terra vulcânica. E segui para Migdal.

Minha intenção era clara: tentar descobrir o ocorrido. Quem era aquele indivíduo? O que os homens que acabavam de cercá-lo sabiam? Tinham alguma notícia sobre a presença da nave no Ravid?

Deixei a trilha principal e, com a "vara de Moisés" na mão, virei à direita, adentrando o mato que prosperava ao pé do Ravid.

Os homens não tardaram a me ver. E falaram entre si.

Mas as surpresas não haviam terminado.

Um dos oito era o velho Camar, o badawi que conheci no ano 30, pouco antes do terceiro "salto" no tempo. Ele não podia me reconhecer. Estávamos no ano 26.

Ele usava uma longa túnica branca, típica dos beduínos, com as man­gas arregaçadas acima dos cotovelos, além de um keffiyeh (turbante) tam­bém branco. Sob o keffiyeh viam-se aqueles longos e lamentáveis cabelos vermelhos, tingidos com Deus sabe o quê.

Os outros eram moradores de Migdal.

Mais adiante eu soube. Camar foi o primeiro a ver a corda e o pri­meiro a se aproximar do corpo. E correu para avisar o pessoal da cidade mais próxima: Migdal.

Eu não disse nada. Nem me apresentei. Agi com tamanha firmeza que eles ficaram perplexos. Isso me ajudou.

O homem que jazia imóvel estava morto. Examinei-o com atenção. Seu crânio estava destruído, e o cérebro, espalhado pelas pedras. Tinha uma barba preta até a cintura. Suas sandálias haviam desaparecido. En­contrei uma a cerca de três metros, bem como uma espada de dois gumes.

Seus olhos estavam impressionantemente arregalados.

Olhei para o alto e considerei que minha hipótese estava correta. Aque­le sujeito, não sei com que intenções, tentara chegar ao cume do Ravid, mas alguma coisa o jogou no vazio. Eu sabia o que acabara matando-o.

O que aconteceu? - perguntei com determinação.

E os homens, aturdidos, talvez me considerando alguém importante a serviço dos romanos ou do tetrarca Antipas, encolheram-se. Ninguém quis falar.

Foi Camar quem deu o primeiro passo. Acariciou seu cavanhaque grisalho e desfiado e comentou:

Dizem que foram vistos diabos no alto.

Diabos? Que tipo de diabos?

Não sabemos... São dois...

Devo ter empalidecido.

E quem os viu?

Gofel (esse era o verdadeiro nome de Camar) olhou para seus com­panheiros. Ninguém se atreveu a responder a minha pergunta. Por fim, Camar, cravando em mim seus olhinhos de hiena, aventurou-se:

Este... e outros bucoles.

Apontou para o morto.

Bucoles?

O termo procedia da alta Galileia. Significava "bandidos".

Camar assentiu em silêncio, segurando sua khamsa, uma grande mão de prata que levava no pescoço. Esse tipo de adorno tinha um senti­do mágico para os badu, conforme pude constatar em nossa aventura em Beit Ids. Tanto as mãos quanto as pedras azuis, os triângulos, os olhos etc. serviam basicamente para conjurar o mau olhado. Pura superstição.

Não me atrevi a perguntar novamente.

Como já relatei em outro momento, aquela região do desfiladeiro dos pombos, em especial o har, ou monte Arbel, era um fervedouro de bandidos, malandros, assassinos e foragidos da justiça. Assim era desde os tempos do pro­feta Oséias, no século VIII a.C. Na face norte do Arbel, em frente ao Ravid, era possível ver uma grande quantidade de cordas que caía do cume e se balançava em frente a um conjunto de cavernas naturais. Era o sistema utilizado pelos bucoles para entrar nas grutas. Assim entravam e saíam das cavernas. E do Arbel se espalhavam pelo desfiladeiro, passando a faca em quem resistisse. Roubavam, violentavam e assassinavam a seu bel-prazer, com a cumplicidade dos corrup­tos centuriões romanos, que recebiam uma parte substanciosa do butim em troca do silêncio e da passividade. Alguns caçadores de rolinhas e de pombos percorriam o Arbel, dia e noite, armados com as tradicionais redes-armadilha. Tratava-se de "mensageiros" e confidentes, tanto de uns quanto de outros.

Talvez tenhamos sido confiantes demais.

O rei Herodes, o Grande (falecido em março do ano -4), fez tudo que esteve ao seu alcance para acabar com essa situação. No ano 39 a.C. tomou de assalto essas cavernas e fez uma "limpeza" drástica. Praticamente aca­bou com os bucoles. Mas, em pouco tempo, outros bandidos os substituí­ram. E a esses se juntaram os zelotes, guerrilheiros contra Roma.

Essa foi uma das razões pela qual descartamos o Arbel como lugar de assentamento da nave. Mas, como dizia, teríamos nos equivocado ao escolher o Ravid? Precisava falar com Eliseu. Precisávamos tomar uma decisão. A presença dos bucoles no "porta-aviões" era inquietante. Está­vamos protegidos, mas não era bom viver nessa tensão. Meu trabalho era outro: acompanhar Jesus de Nazaré. Não podia nem queria perder tempo com outros assuntos. Se fosse preciso, mudaríamos de lugar.

Precisaria de mais informação. O bucol estava sozinho quando foi derrubado? Vinha das cavernas do Arbel? O que estava procurando no alto do Ravid? Como Camar soube dos "dois diabos"?

O instinto me disse que o velho badawi sabia mais do que parecia. Mas optei por me calar. Talvez, em outro momento, pudesse interrogá-lo, a sós. Faria isso.

Nem me despedi. Dei meia-volta sobre meus passos. Lá ficou o gru­po de Migdal, desconcertado, imagino. Quem era aquele estrangeiro? Por que falava com tanta decisão e energia? Acho que os confundi.

Não vou me enganar nem enganar o hipotético leitor destas memó­rias. Quando entrei no "berço", meus joelhos tremiam.

Quis pensar, mas não consegui muito bem.

Devia esperar no alto do Ravid? Talvez os bandidos voltassem.

Não me pareceu boa ideia. Precisava tomar uma decisão, como já mencionei. Mas a decolagem da nave estava condicionada à pilha atômi­ca, a SNAP 27. Eu não tinha a senha de ativação. O engenheiro a modifi­cara. Tinha que encontrá-lo e discutir o assunto. Aliás, Eliseu sabia dessa situação? Possivelmente não.

Também não queria me descuidar do acompanhamento do Filho do Homem. Nessa mesma tarde, o Galileu havia marcado um encontro em massa com os habitantes de Nahum, na sinagoga.

Avaliei os prós e os contras e decidi seguir o plano previsto: vol­taria ao yam.

E, nervoso, pouco convencido de que estava agindo corretamente, guardei os papiros com a informação sobre as "viagens secretas" do Mes­tre em uma segunda mochila, chequei o sistema diretor dos cinturões de segurança e me afastei do "berço", com remorsos. Lá ficou o gancho, no mesmo lugar em que se enganchou na rocha. Talvez fosse melhor assim. Não devíamos levantar suspeitas.

Quanto aos "dois diabos" vistos no cume, só podíamos ser nós.

Seja como for, a verdade é que subestimamos os habitantes locais.

Os problemas, de fato, estavam se acumulando.

Ao chegar à macieira de Sodoma, hesitei. Contemplei as letras que eu havia gravado no tronco e que deviam servir de lembrete no suposto caso de um dos dois perder a memória, e optei por apagá-las. "B-M-3" (Base-Mãe-3), a senha, não teria sido entendida pelos bucoles, mas fiquei mais tranquilo. Ativei o laser gasoso, e as letras desapareceram. A casca da árvore ficou calcinada, em parte. Lamentei pela pobre árvore.

Ao passar em frente ao lugar onde estava o cadáver do bandido, parei por alguns segundos. O grupo brigava pelos pertences do morto. Acho que não me viram. E retomei a marcha, em direção ao lago.

O sol estava a pino. Era a sexta hora (meio-dia). A bom passo, e sem percalços, chegaria à cidade de Nahum em três horas; talvez menos. Tudo dependia do Destino.

Nesse sábado, o ocaso se daria às 17 horas e 31 minutos. Tinha tem­po mais que suficiente. Meu plano, em princípio, era simples: esconder os papiros e ir à sinagoga. Mas a realidade começou a me pressionar. Onde guardava os amphitheatrica? O tesouro era realmente valioso. Não podia correr riscos. E tomei uma decisão... equivocada.

Eu os levaria aos quartos que alugamos na insula. Pensei no "39". Eli­seu e Kesil dividiam o "40". O quarto "39" tinha um beliche de três camas.

Talvez pudesse esconder o saco de viagem embaixo das tábuas da cama mais próxima ao chão. Depois veria.

Eliseu nunca entrava no "39". Não tinha por que encontrar a mochila.

Novo erro.

Esse foi o dia dos erros.

À altura dos moinhos de Tabgha, relativamente perto de Nahum, o Destino tornou a cruzar meu caminho. De repente, reparei em algo que não havia notado antes. Estávamos no sábado, efetivamente. Os judeus tinham o costume de começar a contar os dias a partir do pôr do sol.

Oh, Deus!

Isso queria dizer que, com o entardecer, começaria o domingo, 3 de março.

O lógico era que os ofícios na sinagoga fossem celebrados ao longo do sábado, e não do domingo.

Tive o pressentimento de que havia cometido um erro. Teria enten­dido mal as palavras do Galileu quando se dirigira aos discípulos no casa­rão dos Zebedeu? Naquela sexta-feira, após tomar o café da manhã, Jesus comentara que queria ficar sozinho nas colinas e que falaria ao público na sinagoga de Nahum no sábado ao entardecer.

Não podia ser. Ou ouvi mal, ou Jesus não se expressou corretamen­te. Descartei a segunda hipótese. Eu é que não captara a mensagem do Mestre. Simplesmente havia a possibilidade de eu ter me enganado de dia. Podia ter sido na tarde de sexta-feira, 1º de março, ou ao longo do sábado, 2, quando falara aos moradores de Nahum.

E amaldiçoei minha falta de sorte.

Apertei o passo, mas logo compreendi que a pressa não tinha senti­do. Se Jesus falara na sinagoga na sexta-feira, ou na manhã desse sábado, o esforço para chegar era absurdo. Era a nona hora (três da tarde). A sina­goga, com certeza, estaria fechada.

Entrei em Nahum e fui direto ao edifício da sinagoga. Não estava fechada, mas vazia.

De fato, havia me enganado.

Na porta, o velho "sacristão" varria. Era um sujeito indesejável, co­nhecido como "Repas" (literalmente, "pisotear"), porque era capaz de pisar em sua mãe por umas moedas, supondo "que tivesse uma", como murmurava o povo de Nahum.

Eu me decidi e perguntei sobre a intervenção do Mestre. Havia acon­tecido nessa manhã ou no dia anterior?

O tal de "Repas", cujo verdadeiro nome era Tarfon, nem sequer me olhou. Continuou varrendo, consumido por um permanente tique nervo­so nos olhos.

Por fim disse que sim, que "o carpinteiro falou esta manhã, mas não disse nada".

Como não disse nada?

Tarfon continuou varrendo, mais preocupado em encontrar uma moeda que em limpar as das lajotas.

E eu, tolo, insisti:

De que falou?

O ministro da sinagoga (um hazzan ha-knesset) não replicou.

Por fim, quando já ia dar meia-volta rumo à insula, o sujeito falou:

Essa informação te custará um denário.

Ao me ver hesitar, o ladino tentou me convencer:

O carpinteiro se limitou a pedir paciência... como se fosse alguém.

E, sem me olhar nos olhos, movimentando a vassoura mecanica­mente, sentenciou:

Quem esse de tal Jesus pensa que é? Todos sabemos que é um po­bre carpinteiro.

Deixei-o ali plantado.

Não podia perder o personagem de vista. Esse tal de Tarfon foi outro inimigo do Mestre.

A insula ficava muito perto do porto. Como disse, minha intenção era esconder os papiros. Depois, embarcaria para Saidan. Deduzi que o Galileu tivesse voltado para o casarão dos Zebedeu, no bairro pesqueiro.

Arrisquei.

Eliseu não estava na insula.

Kesil, nosso fiel servo, recebeu-me com alegria. Seus olhos se en­cheram de lágrimas. Não perguntou por nossas diferenças. Foi discreto e prudente, como sempre.

Fui direto ao ponto. Confiei-lhe o saco com os amphitheatrica. Nin­guém devia saber de sua existência, muito menos Eliseu. Ele não fez per­guntas. Nem sequer abriu a mochila. Assentiu com a cabeça e, em silêncio, pediu que o acompanhasse. Foi diretamente ao quarto "39", como eu havia pensado. E lá o escondeu, debaixo do beliche de três camas de madeira. Ninguém o usava. Ninguém entrava no "39". Ninguém tinha por que saber. E, em minha presença, trancou a porta. Considerei que estavam a salvo.

Mas o Destino sorriu, debochado.

Não resisti à tentação e perguntei pelo engenheiro.

Kesil franziu a testa, preocupado.

Eliseu - foi o que disse - parecia triste. Voltou ao trabalho no estalei­ro dos Zebedeu como ajudante dos serradores, e na companhia de Tiago, irmão do Mestre. Quase não falava. Passava muito tempo na "casa das flores", com Ruth. À noite, dormia no quarto "44", com os meninos "lua".

Tentei perguntar por Ruth. Kesil a via diariamente. Não consegui.

Eu me despedi e, ao passar diante da "casa das flores", senti meu coração acelerar. Ela estava lá, com certeza. A porta estava aberta. Parei um segundo, mas não a vi. Não vi ninguém. Meu coração continuava batendo forte.

Como eu a amava!

E compreendi. Era sábado. Eliseu provavelmente também estava na casa.

Não devia arriscar. Ela não tinha culpa de nossas diferenças.

E segui para o porto.

Subi em uma das barcas que fazia o trajeto até Saidan, pelo módico preço de dois ases, e desci em terra em frente à "quinta pedra de amarra­ção", muito próxima do casarão dos Zebedeu. Durante a navegação, cru­zamos com outros barcos. Eram também gentios; os únicos autorizados a pescar e a transportar passageiros ou mercadorias aos sábados.

Calculei que estávamos na décima hora (quatro da tarde). Faltava uma hora e meia para o pôr do sol.

O que havia acontecido na sinagoga? Era verdade que o Galileu não quisera falar? Eu também não confiava em Tarfon. Tinha que ver por mim mesmo.

Não sei explicar, mas eu estava triste. Profundamente triste.

Minto. Sei por quê. Ela estava lá, tão perto e tão longe...

Salomé me orientou, mais ou menos. Disse que o Mestre e seus ho­mens haviam ido para o yam fazia pouco tempo. Não soube me dizer se estavam pescando. Provavelmente não, posto que era sábado.

Abril e as irmãs andavam pelo casarão, preparando o jantar.

Abril e eu nos olhamos algumas vezes. Havia "algo" naquele olhar, mas, tolo de mim, eu não soube "ler".

Era um olhar mágico.

Deixei o saco de viagem e a vara no pombal e optei por sair. Preci­sava de ar.

Sentei-me no alto das escadas de pedra que ligavam a casa com a praia e decidi esperar. Supus que o Mestre e os seus voltariam antes do entardecer. Eles me contariam.

Distingui várias embarcações, mas não soube qual era a do Galileu. Estavam longe.

Querida Mach! Como sentia falta de seu olhar! Era a única coisa que eu tinha...

Fiquei ali pensando. Como podia ter me apaixonado no momento erra­do, pela pessoa menos adequada? O amor não precisa de justificativa. Acontece e pronto. Mas que seria de mim? Eliseu, além de tudo, estava no meio. Ele também estava apaixonado por Ruth. Pelo menos foi o que me fez crer.

Eu a amava profundamente, como jamais havia acontecido comigo. E a via o tempo todo em minha mente. Via-a nas estrelas, nos silêncios, na luz e na escuridão. Que seria deste pobre explorador? Cedo ou tarde, de uma forma ou de outra, teria que voltar ao meu "agora". Tinha que voltar e contar o que havíamos vivido ao lado do Mestre. E então, que faria eu sem ela?

Cheguei a imaginar uma coisa incrível. Podia não voltar ao meu tempo. Podia mandar a Operação para o inferno. Ela me atraía como nenhuma mu­lher jamais atraiu. Não valeria a pena esquecer tudo e ficar com ela até o fim?

Não houve resposta para uma idéia absurda dessas. De repente, uma das barcas se afastou das outras embarcações e se dirigiu à praia. Os rema­dores vogavam com força.

Julguei distinguir a figura do Filho do Homem, em pé na popa, com a barra do timão entre os pés. E as dúvidas sobre a missão evaporaram. Ele vinha em primeiro lugar.

Chegaram à margem e pularam para a terra. Era Ele, de fato. Acom­panhado dos seis discípulos e de seus irmãos carnais: Tiago e Judas.

Corri para o grupo.

Jesus ajudou a amarrar a barca, e André me deu as primeiras notícias. Não tinham ido pescar, como pensava Salomé. Conversaram. Ou melhor, Ele falou.

Mas a conversa foi interrompida.

O Mestre, terminada a atracação, pediu que esperassem um instante. Todos o cercaram, expectantes.

Jesus, então, dirigiu o olhar às primeiras estrelas tímidas e falou assim:

- Abba, meu Pai, agradeço-Te por estes amigos. Apesar de suas dú­vidas, sei que creem e que acabarão acreditando. Peço-Te que aprendam a ser um, assim como Tu e eu também somos um.

Aí terminou o dia para os discípulos e para os irmãos.

Jesus se despediu com um "até logo" e pediu que voltassem a suas famílias e seus trabalhos habituais, conforme haviam combinado no yam.

Eu não sabia a que se referia. O que haviam combinado no mar de Tiberíades?

Teria que esperar até depois do jantar para descobrir.

E André, Pedro, Felipe, o "urso", Tiago e Judas se afastaram pela praia em direção a seus lares.

Fiquei confuso.

Os íntimos pareciam sérios. O que havia acontecido naquela barca?

E amaldiçoei de novo minha falta de sorte.

Mas o erro seria corrigido, em parte, graças à bondade de Tiago Ze­bedeu. Foi ele quem me informou do ocorrido, desde o início.

O Mestre foi descansar e quem isto escreve ficou um bom tempo sozinho com Tiago.

Ele me explicou tudo com detalhes e respondeu de bom grado a to­das as minhas perguntas.

Isto foi o que deduzi de suas palavras:

Lá pela quinta hora (11 da manhã) desse sábado, 2 de março, Jesus foi à sinagoga de Nahum. Havia pedido para falar ao público. Estavam todos ali. Desde os irmãos Joli, sacerdotes responsáveis pela sinagoga, até os notáveis de Nahum, passando pelos irmãos do Senhor, os seis discípulos e, evidente­mente, a Senhora. Ela havia acabado de chegar da boda de Caná.

Os seis íntimos se sentaram nos lugares de honra, a pedido do Gali­leu. Mas não os irmãos carnais.

Havia uma enorme expectativa. Às notícias dos acontecimentos so­brenaturais ocorridos no Artal durante o batismo do Filho do Homem, somaram-se as procedentes de Caná. Aquele Homem - diziam - havia sido capaz de transformar a água das purificações em vinho. E do melhor!

Aquela, exatamente, foi a primeira aparição pública do Mestre.

Estávamos atentos - disse Tiago com sua habitual frieza. - Que podia acontecer? Uns falavam de novos prodígios. Jesus estava em sua cidade. Era o momento de mostrar sua autoridade e seu poder.

Todos pensavam em um novo portento?

Isso mesmo. Todos falavam, mas ninguém entrava em acordo so­bre o momento do prodígio e, acima de tudo, sobre a natureza do milagre.

A situação era similar à da festa de casamento na Sapiah, com uma diferença: Nahum, efetivamente, era a cidade onde o Mestre estava em casa. Era "sua" cidade. Todos falavam d'Ele como o Messias prometido, o grande Libertador e "quebrador de dentes" (dos romanos). Tinha que fazer algo demolidor. Ali, na sinagoga, confundidos no meio da multidão, estavam também, sem a menor dúvida, os tor e os "escorpiões" (confiden­tes do Sinédrio, de Antipas e dos romanos). Fizesse o que fizesse Jesus de Nazaré, as notícias voariam de imediato a Jerusalém e a Cesareia, capital administrativa do império romano para a província da Judeia, como se referiam a Israel.

E que tipo de prodígio esperavam?

Retifiquei.

Que tipo de prodígio esperáveis?

Tiago Zebedeu me olhou e esboçou um meio sorriso. Eu sabia que ele era incrédulo. Provavelmente o mais cético dos seis.

Mas insisti. E Tiago foi honesto, como sempre:

Não sei. Falava-se de tudo. Uns diziam que faria cair fogo do céu e arrasaria a guarnição romana de Nahum. Outros afirmavam que haveria um grande terremoto, que assolaria a Cesareia. Não sei... Ouvi muitas bobagens.

Estimulei-o a prosseguir.

Chegaram a dizer que as tilápias do yam pulariam para a terra e caminhariam até a sinagoga, confirmando o poder do Mestre.

Como dizia, bobagens.

E no meio daquela expectativa - segundo Tiago -, Tarfon entregou ao Galileu um dos rolos, com a Lei. Ele devia ler e fazer um discurso sobre a passagem escolhida. E Jesus, como darshan, ou pregador, escolheu Isaías. E procedeu à leitura do capítulo 66.[20]

Jasão, a tensão podia ser palpada. Havia chegado o momento. Jesus agiria, como fizera em Caná.

Esperei, tão expectante quanto os presentes ao ato.

Tiago sorriu, decepcionado. E comentou:

Nada. Não aconteceu nada.

Nada?

O Mestre devolveu o rolo e não fez maftir.[21]

Quis dizer que não houve discurso direto, ao alcance do povo.

Limitou-se a dizer: "Sede pacientes e vereis a glória de Abba. Do mesmo modo será com aqueles que estão comigo e que aprendem a fazer a vontade de meu Pai que está nos céus".

Tiago fez silêncio.

Isso foi tudo?

O Zebedeu fez que sim com a cabeça.

E as pessoas foram para casa sem entender uma só palavra.

Decepcionadas.

Muito decepcionadas. Principalmente a mãe do Mestre.

Imaginei a Senhora. Depois do episódio de Caná, ela esperava a con­sagração de seu Filho. Foi outra oportunidade perdida. Na sinagoga de Nahum, como disse, estavam reunidas as forças vivas da cidade. Era o mo­mento exato para mostrar seu poder e afirmar a fidelidade do povo judeu. Esse era o pensamento de Maria, a Senhora. Mas, efetivamente, ela ficou decepcionada. Muito mais que o resto, sem sombra de dúvidas.

Pouco depois, ao voltar a Saidan, o Mestre pediu aos discípulos, e também a seus irmãos, Tiago e Judas, que o acompanhassem ao lago. Su­biram em uma das barcas e remaram. Jogaram a âncora, e o Filho do Ho­mem falou durante um longo tempo.

Segundo Tiago, estes foram os assuntos destacados na referida conversa:

Jesus ordenou que voltassem aos trabalhos habituais. Deviam esperar o momento oportuno para sair e pregar a boa-nova.

Ele também retomaria seu trabalho no estaleiro.

Tinham que silenciar sobre os planos do Mestre. Ninguém tinha que saber quem Ele era.

A preparação dos discípulos seria lenta e difícil. Jesus cuidaria dessa tarefa.

Ninguém fez perguntas. Estavam confusos. Não compreendiam o porquê da espera. Não entendiam por que o Galileu renunciava a seu poder. Era o Messias, mas não parecia dar importância a isso!

E disse algo que também não entendemos - acrescentou Tiago. - "Recordai que meu reino não há de vir com pompa e escândalo, mas mediante uma mudança".

Tiago parou. Efetivamente, parecia não compreender. Mas foi fiel ao que disse o Galileu.

Disse algo sobre uma mudança que o Pai deverá fazer no coração dos homens. Sinceramente, não sei a que mudança se referia.

Eu sabia. Falei sobre isso com Ele muitas vezes. Mas decidi silenciar. Esse não era meu trabalho. Este explorador era apenas um observador.

Disse mais alguma coisa?

Sim...

Tiago ordenou as idéias e prosseguiu:

Chamou-nos de amigos, disse que confiava em nós e que nos amava.

Tiago corou. Aquelas não eram palavras habituais entre os homens judeus. Era raro ouvir um homem dizer a outro homem: "Eu te amo".

Assim era o Mestre.

E disse também que logo seríamos seus sócios. E acrescentou: "meus sócios favoritos". Recomendou que fôssemos pacientes e suaves e que nos abandonássemos sempre à vontade de Abba.

Tiago me olhou, curioso, e perguntou:

A que se refere quando fala da vontade do Pai? Tu, Jasão, estás há muito tempo com Ele. Com certeza sabes.

Eu me defendi como pude.

É melhor que tu mesmo descubras.

E o incitei a prosseguir.

Depois falou das "dificuldades que estão por vir". Também não en­tendemos.

O que disse exatamente?

Que nos preparássemos para a chamada desse reino e que es­tivéssemos cientes de que esse reino aparecerá no meio de grandes atribulações. "O serviço ao Pai - disse - gera felicidade, mas chegarão momentos terríveis."

Tiago Zebedeu me olhou, incrédulo. E buscou resposta em quem isto escreve. Eu sabia a que o Mestre se referia: à perseguição e morte de alguns daqueles discípulos, inclusive Tiago; mas silenciei de novo. Que mais podia fazer?

Era impressionante. Jesus havia anunciado sua morte poucas horas antes, enquanto conversavam nas escadas da praia. Agora, sutilmente, acabava de dizer que alguns dos íntimos também pereceriam, e de forma trágica. Estávamos a 2 de março do ano 26.

Mas para aqueles que encontrarem o reino - prosseguiu o discípu­lo -, a felicidade será completa. E o Mestre acrescentou: "E serão chama­dos benditos da Terra".

O rosto de Tiago se ensombrou de novo, mas ele deu sequência ao relato:

"Estai atentos! - disse Jesus. - Não abrigueis falsas esperanças. O mundo tropeçará em minhas palavras!"

E Tiago Zebedeu, ingênuo, tornou a me interrogar:

Que quis dizer?

Dei de ombros.

Ele mesmo respondeu:

O mundo tropeçará em sua mensagem? Já comecei a ver isso. O mundo exige uma coisa, e Ele pretende outra.

Ele não poderia ter definido melhor. Assim seria no futuro imediato e no futuro de longo prazo: em meu mundo. O que as igrejas hoje defendem não tem relação alguma com o que quis e com o que revelou o Mestre.

E disse também que nós, seus discípulos, também não entendemos sua mensagem.

Isso era evidente.

E afirmou que trabalharíamos para uma geração que só busca portentos e sinais. Nesse momento, amigo Jasão, trocamos olhares e sentimos vergonha. E o Mestre sentenciou: "Exigirão prodígios como prova de que sou o enviado de Abba. Não sabem, nem saberão, qual é meu trabalho no mundo: a revelação do amor do Pai". E terminou com outras palavras misteriosas: "Alguns, porém, em outros lugares e em outros tempos, compreenderão minha revelação".

Eu não estava no barco, mas captei a intenção do Mestre.

Mensagem recebida.

 

No dia seguinte, 3 de março, domingo, Jesus de Nazaré de fato voltou ao trabalho no estaleiro dos Zebedeu, perto da desembocadura do rio Korazain, ao leste de Nahum. Fui atrás d'Ele e pedi emprego no estaleiro. Era o único jeito de ficar ao lado d'Ele e de acompanhar seus movimentos. A alegria do velho Zebedeu, de Yu, chefe do estaleiro, e dos demais trabalhadores foi enor­me. Estavam felizes. O Galileu era um excelente naggar (carpinteiro naval). Eu diria que um dos melhores que já passara pelo yam.

Eu fui designado de novo ao departamento de pintura, tingimento, verniz em geral e protetores contra caruncho. Trabalharia sob as ordens do velho fenício, o homem que achava que o mundo cabia em uma lata de tinta ou de cola de carpinteiro.

E nessa mesma manhã o Mestre cuidou do entabuamento de uma barcaça de transporte cujo nome era Kenah ("companheiro"). Trabalhou com a mesma alegria de sempre, acompanhado da inseparável canção: "Deus é ela".

Eliseu não tardou a notar nossa chegada. De início, evitou-me. Mas, na hora do almoço, fui até ele. A presença de Yu e dos outros operários o obrigou a a ficar no lugar. Não teve mais remédio. E fui diretamente ao que inte­ressava. Expus a situação no Ravid e detalhei o achado do triplo gancho e do cadáver ao pé do penhasco. Informei-o dos boatos sobre os bucoles, mas não mencionei a análise do "vinho prodigioso" e muito menos o encontro com as "luzes" no alto do "porta-aviões". Não era a hora.

Ele não acreditou em mim. E mais: debochou de quem isto escreve. Chamou-me de fantasioso e maluco. E acrescentou:

Isso me lembra do cilindro de aço. Também foi roubado por uma menina selvagem, segundo você.

Sorri com amargura. Estava claro que não podia contar com seu apoio. Teria que resolver o problema por mim mesmo.

Ele aproveitou para me comunicar:

Vendi a opala branca.[22]

Esboçou um sorriso diabólico e murmurou quase para si:

Não sei quanto tempo vai precisar para devolver o que não é seu.

Não quis discutir sobre o roubo do cilindro de aço que continha as amostras de sangue e de cabelo do Filho do Homem, da Senhora, de José, pai terreno de Jesus, e o DNA de Amós, irmão do Galileu, morto prema­turamente. Não fazia sentido.

A missão - acrescentou - pode se prolongar; não sabemos até quando. Tudo depende de você. Enquanto isso, preciso viver.

E comentou que a valiosa gema havia sido negociada pelo velho Ze­bedeu. Como se pode recordar, foi o patriarca dos Zebedeu que nos acon­selhou a não vender a joia aos cambistas e banqueiros da Cidade Santa. Eliseu sabia, e recorreu a Zebedeu pai. Este, ao que parecia, conseguiu um bom preço: 300 mil denários de prata (um pouco menos que a tabela: 333.333 denários, ou dois milhões de sestércios). A quantia, mesmo assim, era muito considerável. Praticamente uma fortuna. Tínhamos dinheiro de sobra. Segundo Eliseu, os denários foram depositados em um banco, em Nahum. Ganhávamos juros de 3 por cento; ou seja, 375 denários de prata por mês para cada um de nós. Era dinheiro mais que suficiente para viver. Por um lado, eu me alegrei. "Um problema a menos", pensei.

Os detalhes eram coisa do velho Zebedeu. Tinha que recorrer a ele. Ele me propiciaria acesso ao dinheiro, os certificados etc. A operação foi feita pelo engenheiro na volta de Ômega. Não o parabenizei, mas quase.

Isso foi tudo.

A conversa terminou aí.

E ao pôr do sol abandonamos o mezah, o estaleiro.

Jesus, o chefe dos Zebedeu, Tiago (irmão do Mestre) e quem isto escreve embarcamos em uma barca e fomos para Saidan, como era o costume.

O Mestre se lavou e desceu para a sala de jantar comunitária do ca­sarão. Uma sala onde a família compartilhava o café da manhã e as refei­ções e onde se deliberava todo tipo de assuntos. Batizei-a com o nome de "terceira casa"; explico: a dos Zebedeu (que costumo chamar de casarão) era integrada por um total de seis casas. Nelas se distribuíam os membros da família. Na primeira, residiam João Zebedeu e seu irmão Davi (ambos solteiros). Na segunda, moravam Tiago, sua esposa Hadar ("Glória") e os quatro filhos. Na terceira casa, ficava a citada sala de jantar. Na quarta, ficavam as quatro irmãs (todas solteiras). A quinta estava vazia. Na sexta e última casa habitavam Salomé e o velho patriarca, donos do casarão.

Havia, além de tudo, um depósito para as redes e outros equipamentos, os estábulos, já mencionados, e os quartos de hóspedes, agora ocupados pelo Galileu e por este explorador. O casarão tinha também dois pátios ao ar livre. Um, na parte de trás, estava voltado para o sul, para a praia do mar de Tiberíades (que habitualmente chamo de yam). O outro, também a céu aberto, tinha forma de "L". As seis casas já citadas e o depósito de redes davam para ele. Visto do alto, como um relógio, o casarão tinha a se­guinte distribuição: a primeira casa ficava ao "meio-dia". A segunda (a de Tiago e Hadar) ficava em frente (à "uma"). Parede com parede (às "três") ficava a "terceira casa" (a sala de jantar comunitária). Às "seis", o depósito de redes. Às "sete", a quinta casa (naquele momento vazia), e às "onze", a sexta casa (a dos pais dos Zebedeu). Os que chamei de "pombais" foram construídos sobre os estábulos, no pátio dos fundos, como já comentei. A porta principal do casarão estava orientada para o norte e dava para uma das "ruas" de Saidan.

Quanto à "terceira casa" (a sala de jantar), o aposento era extrema­mente simples. Media cinco metros quadrados. As paredes, de basalto ne­gro, foram cuidadosamente cobertas com gesso. Era uma sala tranquila, com duas janelas e uma porta permanentemente aberta. No centro havia um recipiente quadrado embutido no solo, de 30 centímetros de profun­didade por 50 centímetros de lado. Nele faziam fogo e aqueciam a comi­da. Um caldeirão de metal, preto pelo passar dos anos, pendia do teto com o auxílio de uma corrente. À esquerda (usarei sempre a porta como referência principal) havia uma grande estante de nogueira que ocupava praticamente toda a parede. Nela ficavam os pratos e demais utensílios de cozinha, bem como uma variada e perfumada família de queijos feitos pelas mulheres. Eram queijos de cabra e de ovelha, coalhados com flores de cardo, violetas e especiarias. Uns gordurosos, outros magros, de massa mole e massa dura. Um deles, relativamente parecido com o camembert que eles chamavam de chaalah ("gazela"), deixou-me deslumbrado. Tinha cheiro e sabor de glória.

O aroma dos queijos, enfim, enchia tudo e tornava a visita à "terceira casa" mais que desejada e gratificante, pelo menos para quem isto escreve.

No canto esquerdo da sala, sérias e bojudas, como quase sempre, alinhavam-se as três grandes talhas onde armazenavam a água e o vinho. À direita, a pouco mais de um metro da parede, havia uma longa mesa, preta, brilhante pelo uso, de um carvalho nascido nos bosques da alta Galileia (possivelmente no Attiq).

Perto do quadrado central onde acendiam o fogo, vi meia dúzia de tocos de árvore, talvez de pinheiro, de quase meio metro de altura cada um. Alguém os havia distribuído ordenadamente em volta ao fogo.

Essa era a "terceira casa", onde passaríamos muitas horas.

Assim que escureceu, foram chegando os "seis" (os discípulos).

André, Pedro e os irmãos Zebedeu (João e Tiago) haviam voltado às redes e aos negócios de secagem e venda de peixe. Felipe e Bartolomeu (o "urso"), por sua vez, entregaram-se à importação e exportação de óleos essenciais, a fraqueza de Felipe.

Jantamos na "terceira casa", todos juntos, inclusive as mulheres dos Zebedeu. Foi um jantar tranquilo. Abril e eu nos olhávamos de vez em quando. E me perguntei: "O que essa bela mulher quer? Por que me busca com o olhar?"

Ao terminar o jantar, Jesus se levantou e foi conversar com João Zebe­deu. Não sei de que falaram. Logo depois, João foi até seus pais. Murmurou algo no ouvido de Salomé e ela, por sua vez, conversou com o patriarca. O velho Zebedeu compreendeu e, fazendo um gesto, ordenou a Davi e às mulheres que saíssem da sala de jantar. Hadar, a esposa de Tiago, levou os quatro filhos. Eram todos meninos. O mais velho devia ter uns 7 anos.

E foram abandonando o lugar. Ninguém protestou.

Eu ameacei me levantar, mas o Mestre ergueu a mão esquerda dizen­do que ficasse ao seu lado.

Mensagem recebida.

Ficamos na sala o Filho do Homem, os discípulos, Tiago, o irmão carnal de Jesus, e quem isto escreve.

O Galileu pediu que nos acomodássemos. Cada um se sentou em um dos tocos distribuídos perto do fogo. Jesus se sentou de frente para a porta. Essa seria sua posição habitual durante os quatro próximos meses, sempre que dirigisse a palavra aos ali presentes. E assim deu início ao que chamei de "aulas". Durante 101 sessões, sempre à mesma hora (depois do jantar), o Filho do Homem se esforçou para ensinar seus íntimos. Foram "aulas" elementares, nas quais Jesus tentou transmitir a essência de sua mensagem: quem era Abba, o que era o reino dos céus, qual devia ser o trabalho dos discípulos no futuro etc.

Não ensinou mais do que precisavam, mas também não menos.

E os ensinou lentamente, porque, além de tudo, o grupo estava in­completo. Faltavam mais seis. Quando chegasse a hora, teria que repetir as explicações.

Havíamos recebido muitos ensinamentos no monte Hermon, e eu, particularmente, durante a permanência na aldeia beduína de Beit Ids. Não me importou tornar a ouvi-las. Era uma delícia ouvi-lo. Aprendi muito. Participei das 20 primeiras "aulas". Depois, o Destino me manteve rcupado com outras coisas. E retornei às "aulas" em meados do mês de tamuz (junho-julho).

Mas vamos por partes.

Todo dia, exceto as sextas e os sábados, o Mestre se reunia com os seus na "terceira casa", sempre depois do jantar com a família Zebedeu. As "aulas" começavam mais ou menos às oito da noite, em plena pri­meira vigília. E prolongavam-se por umas duas horas. A primeira era de ensinamento puro e simples. O Mestre falava e todos ouviam. A segunda hora era dedicada a perguntas. Era, talvez, a mais interessante. Todos participavam. Bem, nem todos.

Tiago, o irmão de Jesus, esteve em quase todas as reuniões. Era mais um. Para dizer a verdade, sentia-se um apóstolo exatamente como o resto. Ele comentou comigo em várias oportunidades: morria de vontade de pegar a estrada e pregar a boa-nova.

Pobre Tiago! O Destino tinha outros planos...

Judas, seu irmão, também foi convidado para as "aulas". Infeliz­mente, a esposa, a quem chamavam pelo diminutivo Lelech ("Noite estrelada"), tinha uma saúde delicada. Judas não a podia abandonar. Foi uma pena. Era um homem valioso e valente. Mas o Mestre sabia o que fazia.

Duas vezes por semana, como disse anteriormente, o Galileu sus­pendia as "aulas". Nesses dias, sextas e sábados, iam à sinagoga de Nahum, consultavam e estudavam as Escrituras Sagradas. Sinceramente, não entendi por que isso. O Yaveh que aparecia constantemente nas leituras era o contrário daquilo que Jesus pregava. Aquele Yaveh era um ser colérico e constantemente irritado. Mas, Jesus de Nazaré, como disse, sabia o que fazia. Jamais duvidei disso.

Os irmãos Joli, sacerdotes da sinagoga, mostraram-se satisfeitos e espantados ao mesmo tempo. Não era normal que "um bando de bru­tos" - como os chamavam - mostrasse tanta dedicação e entusiasmo pela palavra de Deus.

Com aquela primeira "aula", às 20 horas do domingo, 3 de março, do ano 26 de nossa era, Ele deu início ao que poderíamos denominar "instru­ção oficial" dos apóstolos. E Jesus, como não podia ser diferente, escolheu para essa histórica "aula" seu tema favorito, do qual já havia lhes falado em outras ocasiões: Abba, seu Pai Azul, o bondoso Deus.

Mas, antes de iniciar o ensinamento, o Filho do Homem pegou a pe­quena bolsa azul que "Céu aberto", a dona da fazenda de Caná, lhe dera e tirou o cálice de metal e o pano de linho vermelho que servia para limpá-lo.

Todos estávamos na expectativa. Olhávamos para o cálice brilhante e para o rosto do Mestre alternadamente. O que pretendia?

Durante alguns segundos, a atenção de Jesus permaneceu fixa na taça. Acariciou-a e, finalmente, começou a passar-lhe o pano de linho, limpando-a e dando-lhe brilho. Na minha opinião, um trabalho desne­cessário. Mas Ele sabia.

Assim deu início à conversa.

Jesus começou contando uma história. Falava tranquila e pausada­mente, com os olhos baixos, atento, ao que parecia, ao cálice, seu novo amigo. Sim e não.

Era uma vez um rei - começou. - Era poderoso e de grande gene­rosidade. Tinha muitos territórios. As pessoas eram felizes. Mas ocorreu que, em certa ocasião, em uma de suas distantes terras, apareceram uns chefes, súditos também do grande rei. E esses chefes, violando as leis do reino, submeteram homens e mulheres a todo tipo de crueldade. E inclusive se deitaram com as filhas dos homens, e nasceram homens, todos gigantes.

Entendi por onde ia. Estava fazendo alusão ao Gênesis (6).

Os discípulos faziam silêncio, muito atentos.

E o cálice ia e vinha em suas mãos, vestido com os reflexos vermelhos do fogo da lareira e com os amarelos, mais tímidos e distantes, das lampa­rinas de óleo das paredes.

O rosto do Galileu foi se iluminando.

A partir desse momento, nessa terra distante, foi tudo confusão e desesperança. O rei estava muito longe. E os tiranos, além de escravizar os súditos, apagaram a imagem daquele poderoso e magnífico monarca e se erigiram novos reis e governantes. Aquela terra ficou mergulhada na escuridão.

Alguns discípulos menearam a cabeça, desaprovando os atos dos chefes rebeldes. Não captaram a intenção do Filho do Homem.

Mas a terrível notícia acabou chegando aos ouvidos do bondoso rei.

Jesus levantou os olhos e observou a atenta audiência. Compreendeu que não sabiam o que ele pretendia e esboçou um leve sorriso. Buscou-me com o olhar e, ao me encontrar, acentuou o sorriso. Mas prosseguiu com o conto (perdão, com o suposto conto) e com o polimento do cálice de metal.

E o monarca - prosseguiu Jesus -, desejoso de que tudo voltasse à paz e à felicidade de antes, enviou mensageiros aos filhos rebeldes or­denando que restabelecessem as leis que governavam seu imenso reino. Mas os traidores não deram ouvidos aos enviados e aquele mundo per­maneceu nas trevas.

Então, habilmente, o Mestre interrompeu a narração e perguntou:

Que credes que fez o bondoso rei?

Pedro, exaltado, gritou com fúria:

Castigou esses filhos da...

João Zebedeu clamou:

Passou-os na faca!

Ninguém mais replicou.

O cálice, assustado, ficou quieto nas mãos do Filho do Homem.

E o Galileu, com o rosto grave, prosseguiu:

Decidiu lhes dar outra oportunidade.

Simão Pedro e João Zebedeu menearam a cabeça negativamente. Não concordavam com o "bondoso rei". Mas ficaram em silêncio.

E o poderoso monarca optou por enviar um dos seus filhos. A ele ouviriam, pensou.

O Galileu tornou a olhar para mim, com especial intensidade. Dessa vez, não sorriu. A tristeza, rápida e sorrateira, passou diante de nós. Ele sabia que eu sabia.

E, após alguns segundos de silêncio, quando a tristeza saía pela por­ta. prosseguiu, tranquilo, como se a história não fosse com Ele:

O filho chegou à terra governada pelos rebeldes, mas também não o ouviram.

Escaparam algumas exclamações dos decepcionados discípulos.

Jesus baixou de novo os olhos, concentrando-se nas carícias ao cálice.

Foram segundos eternos, pelo menos para Ele e para mim.

Jesus ia anunciar, de novo, sua futura morte. Teria que beber de um cálice muito amargo.

"E, não satisfeitos com isso - acrescentou, baixando o tom de voz -, torturaram-no e o levantaram em uma árvore, crucificando-o até a morte."

Fez-se um silêncio negro e pesado. Um silêncio que doía.

Os íntimos ficaram de boca aberta, atônitos.

Simão Pedro explodiu:

Eu arrasaria essa terra!

Jesus olhou-o com doçura e concluiu o "conto":

Mas o bondoso rei era, na verdade, o melhor. E não só perdoou os rebeldes como também permitiu que seu filho morto ressuscitasse e transmitisse de novo a esperança àquelas pessoas infelizes e aparentemen­te sem futuro.

Pedro e João Zebedeu continuavam contrariados. "Muita piedade - disseram. - Muita bondade..."

Durante um tempo, concluída a história, o Galileu fez silêncio, refu­giando-se no cálice.

Senti um nó no estômago.

Jesus havia acabado de esboçar seu futuro, mas nenhum dos pre­sentes entendeu. E mais: nenhum dos evangelistas registra essa história, nem o período de quatro meses em que o Mestre se dedicou a ensinar os íntimos. Mas por que me surpreendo? Os relatos dos assim chamados "es­critores sagrados" são uma catástrofe. Não têm ordem nem conserto. Eles manipularam os fatos. Disseram o que Jesus de Nazaré nunca disse. E ignoraram o que disse. Mateus, o primeiro a começar a escrever suas recor­dações após a Crucificação, misturou tudo. Inventou sem parar. Exemplo: após as supostas "tentações no deserto" (?) (capítulo 4), Mateus afirma que "Jesus, porém, ouvindo que João estava preso, voltou para a Galileia; e, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum, cidade marítima, nos con­fins de Zebulom e Naftali (...) Desde então começou Jesus a pregar, e a dizer: 'Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus'".

Que desastre! Yehohanan foi preso depois de Jesus começar a ins­trução dos discípulos. E também não morava em Nazaré. Fazia mais de seis anos que havia partido da aldeia. Mas o pior é que Mateus parece não conhecer a linguagem habitual do Mestre. O Filho do Homem jamais exigiu que as pessoas se "convertessem". Jesus pregava com um enorme respeito pela liberdade de todos, como espero ter a oportunidade de nar­rar. A frase "Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus" não foi dita pelo Galileu, e sim por Yehohanan. Tristemente, Marcos, o segundo evangelista, copiou Mateus, e Lucas fez o que pôde, baseando-se mais nas versões de Simão Pedro e de Paulo de Tarso que na verdade. Como disse, uma catástrofe.

E, concluído o suposto conto, o Mestre discutiu algumas ideias bási­cas sobre aquele "bondoso rei". E tentou explicar quem era Abba.

Foi um notável fracasso.

Os sete ouviram, atônitos. Não acreditavam no que ouviam.

Deus era um ser cheio de doçura, como afirmava o Galileu?

De início, ficaram imóveis. Depois, começaram a negar com a cabeça.

Jesus percebeu a situação, mas insistiu.

Deus era um amigo? Estávamos sentados em seus joelhos?

Os discípulos e Tiago foram passando da incredulidade ao espanto.

Um Deus a quem podíamos incomodar a qualquer hora e com quem era possível falar em voz alta ou em voz baixa? Um Deus a quem, fundamentalmente, tínhamos que pedir informação? Um Deus que não estava no Templo de Jerusalém, e sim dentro de cada ser humano? Um Deus que dá a vida, a imortalidade, sem pedir nada em troca? Um Deus intuitivo, como uma mulher?

Não compreenderam. Pior ainda: não aceitaram.

Jesus fez o que pôde. Tentou se aproximar da verdade, com palavras belas e simples, mas aqueles galileus, como já expliquei, haviam aprendido outra idéia desde o berço. Yaveh não era amor, e sim punhos fortes. Yaveh não era imaginação, e sim sangue e morte. Alguém, no século XX, ocupou-se de contar os mortos que aparecem na Bíblia e que foram assassinados - direta ou indiretamente - por Yaveh: um milhão. Yaveh não era tolerante. Defendia a escravidão. Yaveh não aceitava um sacerdócio com defeitos. Yaveh era partidário da pena de morte. Yaveh era um Deus (?) que estava cansado dos seres humanos e que quase os fizera desaparecer com um dilúvio. Yaveh era o machado na base da árvore.

Essa idéia sobre Deus estava enraizada na mente dos discípulos. Eram raízes muito antigas, alimentadas geração após geração. Yaveh era um Deus que devia ser temido. Essa era a chave. O resto era heresia ou blasfêmia.

Devo ser sincero, como sempre.

As palavras de Jesus sobre o Pai dos céus soaram a blasfêmias na "terceira casa". Ninguém se atreveu a dizer isso, mas pensaram. E ficaram espantados. Jesus era o Messias? Acho que duvidaram. O Libertador pro­metido era um súdito de Yaveh. O Messias não teria se atrevido a falar de Deus nesse tom, e muito menos a compará-lo com a intuição e com a sensibilidade de uma mulher.

Chegou a vez das perguntas, mas ninguém abriu a boca.

Foram minutos pesados, que não passavam.

E, apesar do permanente cuidado de André, que não perdia seu ir­mão de vista, Simão Pedro começou a roncar. Aguentou bastante.

Foi o sinal.

O Mestre deu por concluída a "aula". Os sete estavam esgotados.

O Filho do Homem, meio decepcionado, guardou o cálice e foi para seu quarto.

Durante duas semanas, dia após dia, o Mestre, imune ao desânimo, falou sobre Abba, e acho que continuou colhendo fracassos. Era uma ta­refa árida.

Nessa mesma noite, dei um jeito de conversar com o velho Zebedeu. Ele esclareceu o assunto do dinheiro e, em princípio, cheguei a um acordo com ele. Ele cobraria pela hospedagem. Do contrário, eu seria obrigado a abandonar o pombal. Falei com firmeza e com delicadeza ao mesmo tempo. O patriarca admitiu que era justo e aceitou. Mas não quis ir além de um denário por dia. Salomé, a esposa, afastou-se resmungando. Não concordava. Ela não queria me cobrar. E me deixou intrigado. A que se devia essa postura? Generosidade? Salomé sabia (seu esposo lhe dissera) que Eliseu e eu "havíamos herdado uma grande fortuna". Eu tinha dinhei­ro de sobra para pagar o alojamento e a comida. Só algum tempo depois descobri as intenções da mulher.

Nas duas últimas semanas de março, as "aulas" foram voltadas para o conceito de "reino de Deus". Jesus, com uma paciência admirável, ten­tou mostrar que o malchut delaha ("reino de Deus", em aramaico) que Ele queria apresentar não era o malchut, o reino que os profetas defen­diam. Tanto Isaías quanto Jeremias, Daniel e os profetas menores haviam se cansado de repetir que esse "reino" era algo físico e material, no qual Yaveh reuniria as 12 tribos do povo escolhido e disperso: "Serei o Deus de todas as famílias de Israel" (Jr. 31, 1). Ezequiel (20, 33) buscava algo similar quando situou Yaveh como o rei de Israel, "após um novo Êxodo e um último juízo". O profeta Isaías foi mais explícito (59, 9-21) e descrevia Yaveh como um guerreiro que acabaria estabelecendo a ordem na Terra. Jerusalém seria a capital das capitais e lá chegariam as nações com seus tributos. Zacarias, mais apocalíptico, afirmava que Jerusalém seria o cen­tro desse "reino" após uma última e sangrenta batalha mundial. "E a Terra (diz em 14,9) será como um paraíso quando Yaveh reinar sobre toda ela." (Wehaya yahweh lemelek alkol-ha' ares.) Daniel, por último, anunciava que o esquema tradicional dos quatro grandes reinos acabaria em um só, com a derrota dos inimigos de Israel. Os "santos" seriam os governantes desse "reino" (2, 36-45; 7, 1-27).

Também não compreenderam quando Jesus lhes falou de um reino não material.

Um reino espiritual, situado fora da Terra? A que se referia? Um reino sem tempo? Um reino formado por outra realidade? Um reino no qual israel não seria Israel? Do que estava falando?

Discutiram entre si, mas foi aparentemente inútil. As idéias messiânicas faziam parte da informação genética daquelas pessoas. Yaveh era um Deus (?) vingativo e colérico a quem era melhor não aborrecer. O "reino" era o futuro, com Israel no topo, presidindo o concerto dos povos. Quanto ao Messias, o enviado de Yaveh, que dizer que já não tenha dito? Seria um super-homem, "quebrador de dentes", que ajudaria a colocar a nação judaica onde lhe cabia (a propósito, os judeus ortodoxos ainda aguardam a chegada desse Messias).

Não, o trabalho do Mestre nessas "aulas" não foi invejável.

Mas nem tudo foi arisco naquele mês de nisan (março-abril) do ano 26.

Na quarta-feira, dia 6, Jesus recebeu uma pequena grande alegria.

Era a quinta hora (11 da manhã). Hora de almoçar. E Yu, o chefe dos carpinteiros navais do estaleiro, pediu a atenção do Mestre para que o acompanhasse. Foram ao "pavilhão secreto", onde o chinês trabalhava em seus experimentos.[23] Eu o conhecia. O naggar não permitia que ninguém entrasse lá. E, intrigado, fui atrás deles. Pretendia mostrá-lo a Jesus?

Sim e não.

Yu abriu a porta e deu passagem ao Filho do Homem. Entramos.

Jesus ficou fascinado ao ver os desenhos, os números, os esquemas e as frases que o chinês havia pintado nas paredes.[24]

Não disse nada. Limitou-se a observar os "achados" de Yu devagar, usufruindo. Eu o segui de perto.

Ao chegar à parede do fundo (em frente à porta), o Galileu parou um instante. Lá se viu, como se pode recordar, uma equação "diofantina": Amor = Dou porque Tenho" (A = D x T).[25]

Não houve tempo para muito mais.

Yu se inclinou sobre uma pequena gaveta de madeira e tirou algo.

Dessa vez, eu é que fiquei maravilhado.

O chinês se colocou atrás do Filho do Homem e pediu sua atenção. Jesus se voltou e se deparou com uma grata surpresa.

Yu o segurava, com os braços estendidos para o surpreso Mestre.

O rosto de Jesus se iluminou.

E imediatamente Ele acolheu em suas longas mãos o que o chinês Yu lhe entregava. Sorriu, satisfeito. O presente, de fato, era do agrado do naggar de Nazaré.

O Mestre o contemplou várias vezes, e seus lindos olhos cor de mel brilharam. De repente, um batalhão de recordações o dominou.

É para ti - disse Yu sem disfarçar sua satisfação.

Para mim? Por quê? Hoje não é meu aniversário.

O chinês cruzou as mãos sobre o peito e replicou:

Os presentes são uma demonstração de amor. Que importa que não seja teu aniversário? Eu amo toda vez que posso.

O Filho do Homem olhou-o intensamente. Yu tinha razão. Os pre­sentes são amor diluído. E quanto menores e mais delicados, como naque­le caso, mais amor.

Eu te darei uma explicação - acrescentou Yu -, se isso é o que desejas.

Jesus parecia não ouvir. Estava atento ao presente. Erguia-o, olhava-o... E acabou beijando-o.

Todos nos alegramos por teres voltado ao estaleiro. Aceita este hu­milde presente por conta de teu gentil gesto.

O Galileu olhou fixamente para o "obséquio" do chinês e exclamou, feliz:

Tu te chamarás Zal, como aquele outro e querido companheiro.

Oh, Deus!

E recordei uma das conversas, em Nazaré, com a Senhora e sua filha Miriam. Elas falaram (falariam) dos Zal, dois lindos cães.

Porque era isso: um magnífico filhote de cão pastor. Naquele mo­mento, tinha cerca de três meses. Era uma linda bola de pelo branco, com uns olhinhos muito vivos, oblíquos, amendoados, cor de mel, quase âm­bar. Me fez recordar a raça kuvasz, de cães de primeira categoria, pre­sumivelmente de origem asiática.[26] Têm fama de ser excelentes pastores, com uma fidelidade e inteligência pouco comuns. São muito carinhosos, corajosos e de uma enorme força física. Quando voltei ao Ravid, o "Papai Noel me forneceu ampla informação.

São cães de olfato finíssimo, fáceis de adestrar, grandes (os machos atingem entre 71 e 75 centímetros de estatura, e as fêmeas, um pouco menos: entre 66 e 70 centímetros). São musculosos, com cabeça especialmente atraente, pelo curto, reto, denso e fechado na cabeça, nas orelhas e nos pés. A cauda é longa, de pelo ondulado, com cristas e mechas. Os pelos do pes­coço se estendem até o peito. Enfim, os kuvasz são bonitos, de uma inteli­gência refinada (quase humana) e amigos de seus amigos até a morte.

Zal não foi uma exceção.

Jesus, se não me recordo mal, teve um primeiro cão quando era ainda a adolescente. Aquele primeiro Zal chegou a sua vida aos 17 anos. Segundo minhas notícias, o cão morreu em Nazaré no mês de agosto do ano 25, quando Jesus estava no monte Hermon. Nós não chegamos a conhecê-lo.

Yu explicou que o cachorro havia chegado no dia anterior do sul do mar Cáspio (atual Irã). Viajava em uma caravana que parou em Nahum. Levavam especiarias e perfumes. Yu se interessou pelo cão e o comprou por 17 ases e um saco de nozes. Uma pechincha.

Quando me interessei pelo significado do nome, o Mestre falou das montanhas de Elburz, na referida margem sul do Cáspio (perto da atual Teerã). De lá procede uma lenda que, ao que parece, agradara ao Filho do Homem. Conta a tradição[27] que na remota antiguidade viveu na região um herói que realizou grandes façanhas. Seu nome era Zal. Tocava o céu com os dedos. Tinha cabelos de prata, e também o peito. Era nobre, valen­te e generoso. Jesus ficou fascinado com a história (possivelmente falsa). Mas que importava? Jesus, naquele tempo, gostava de se sentar com os caravaneiros que passavam por Nazaré e ouvia, encantado, todo tipo de histórias e lendas. Foi assim que soube do herói persa e batizou seu cão tom o nome de Zal.

O "Papai Noel" forneceu outra versão. Zal podia ser interpretado como “Z/Tal [assocracia]", que, em grego, equivale "ao poder ou domínio do mar".

O poder do mar! Gostei tanto quanto da versão iraniana.

Seja como for, a questão é que o Mestre nesse dia recebeu uma gran­de alegria.

Yu prometeu tomar conta do cachorro, pelo menos no básico, duran­te alguns meses. Lá ficaria, no "pavilhão secreto". Todos cuidariam dele.

Jesus colocou as mãos nos ombros do chinês e agradeceu o presente com um olhar que Yu possivelmente jamais esqueceria.

Mas, antes de dirigir-se à porta, o Mestre deu meia-volta, foi até a parede do fundo, pegou um pano e, em silêncio, apagou parte da citada fórmula: "A = D x T". Mudou de lugar duas incógnitas e, diante da surpre­sa de Yu e de quem isto escreve, comentou:

- Agora sim está certa.

E desapareceu, sorridente.

Li a equação. Dizia: "A = T x D". Ou: "Amor = Tenho porque Dou".

Assim era o Filho do Homem.

 

Zal foi a alegria do estaleiro. Yu o deixava solto, e o cachorro acabou simpatizando com todos. Sua cor de estanho chamava a atenção de longe. Estorvava, mas ninguém se aborrecia. Jesus o alimentava e Yu ajudava. O Mestre estava fascinado com o cão. Acariciava-o, lavava-o, conversava com ele, e mais de uma vez o bichinho acabou dormindo entre seus bra­ços. Zal logo entendeu quem era seu amo.

Às vezes, enquanto o naggar batia os pernos de carvalho ou fazia a estrutura de uma embarcação, Zal se deitava ao seu lado e acompanhava com atenção os movimentos do Mestre. Gostava do barulho do martelo na madeira. E lá ficava, até que se cansava.

De início, terminado trabalho, o Galileu o levava para o casarão dos Zebedeu. Foi a delícia das mulheres. Abril o mimava e an­dava a casa toda com o cão aos seus pés. Mas Salomé ficou louca, e com razão. Zal mordia tudo. Em poucos dias, não restava um móvel inteiro. Afiava os dentes com o que encontrava. Adorava sandálias. Estraçalhava-as. Depois cismou com as roupas. Arrastava-as pelos pátios e acabava dormindo em cima delas. Não sabia andar tranquilo. Era desajeitado. Mais de uma vez se enroscou nos pés de Jesus, e este acabou pisando nele sem querer. O final era sempre o mesmo: Zal chorava, as mulheres iam pra cima dele com a vassoura, e o Mestre ficava desconcertado.

Salomé chegou ao limite da paciência e deu um ultimato ao Galileu: ou o cão, ou ela. E comentou, enquanto se afastava: "Esse é pior que o cão".

Curioso. Enquanto a mulher repreendia Jesus, Zal, meio escondido entre as sandálias do Mestre, latia furiosamente para Salomé. Era um cão esperto.

Jesus não lhe deu ouvidos. Achou que a dona da casa estivesse brincando. O Mestre, além de tudo, cuidava de quase tudo: recolhia os excrementos, lavava o cachorro, alimentava-o, limpava suas remelas com água morna, escovava-o, ensinava-o a caminhar, brigava com ele quando fazia errado, e durante a noite o trancava com Ele, em seu pombal.

E falando em brigar, as únicas vezes que vi Jesus relativamente irritado foi com Zal. Nunca o vi adotar aquela atitude com os humanos. Acontecia, em geral, quando o Galileu surpreendia o cachorro lambendo ou comendo seus próprios excrementos. Era óbvio que o animal sofria de algum problema no pâncreas. Zal ouvia Jesus, baixava as orelhas e se escondia. Distinguia muito bem as broncas de seu amo.

Pouco depois, tudo estava esquecido. O cão ia atrás de Jesus e o pro­vocava para brincar. E o Mestre respondia sempre afirmativamente. O Galileu acabava no chão, lutando com Zal. O cão não perdia a oportunidade e mordia onde podia. As mãos do Mestre acabavam todas mordidas. Depois as mulheres é que brigavam para ver quem ia fazer curativo no Filho do Homem. Mar era a mais bem disposta. E comecei a notar uma clara rivalidade entre elas. Todas disputavam as feridas do Mestre. Bem, todas não: Abril ficava de fora, observando a mim.

Mas o que mais chamava a atenção naquele cão era o olhar. Parecia um ser humano. Não perdia um detalhe do que acontecia a seu redor. Conhecia as vozes de todos e adivinhava a proximidade de Salomé. Era infalível. Percebia os passos da mulher e, antes que ela entrasse na "terceira casa", fugia como um meteoro, provocando o riso geral.

Às vezes, o Galileu passeava com ele pela praia. Era um espetáculo. Zal tinha uma cisma especial com gaivotas. Perseguia-as sem descanso, latia, subia nas embarcações atracadas e tentava pegá-las no ar. Jesus brin­cava com ele jogando galhos e pedaços de madeira na água. Zal ficava louco de alegria, e devolvia, pontualmente, cada um. Acabava esgotado, nos braços do Mestre. Assim voltava ao casarão.

Contudo, um dia, a coisa ficou séria. Salomé conversou com o pa­triarca, e o velho Zebedeu não teve opção: falou com o Galileu e sugeriu que deixasse Zal no estaleiro. O Mestre compreendeu. Zal não tornaria a pisar o velho casarão. Pouco a pouco, o Filho do Homem veria serem arrebatadas d'Ele todas as alegrias, grandes e pequenas. Era seu Destino.

Nunca entendi bem o motivo de Salomé não permitir que o Galileu ficasse com Zal no casarão. Também é verdade que, para os judeus, os cães não eram bem-vistos. Os muito religiosos, em especial os "santos e separados" (fariseus), odiavam os cães. Assim exigia a Lei, tanto a escrita quanto a oral. Teria sido essa a razão que levara Salomé a agir assim? Duvido. A família era religiosa, mas não chegava ao fanatismo dos "ss".

Abril também sentiu falta do cão.

E continuaram acontecendo coisas. Algumas notáveis e outras nem tanto. Vamos ver.

Recordo que nessa mesma quarta-feira, 6 de março, com o apareci­mento de Zal chegou também outra notícia, procedente do vale do Jor­dão. Fazia alusão a Yehohanan, o Anunciador. Poucos dias antes, em 3 de março, domingo, o gigante das sete tranças louras decidiu pegar a estrada de novo. Havia sido visto rumo ao sul. As pessoas que se encontraram com ele afirmavam que o Batista, e os "justos" que o acompanhavam, já não procediam à imersão dos convertidos na água. Yehohanan, ao que parecia, continuava confuso e triste. Não tinha certeza de nada. E repetia, quando estava sozinho: "É tudo mentira".

Foi nesse tempo que Yehohanan, ninguém sabia por que, deu início a sua campanha particular de desprestígio do tetrarca Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, que tinha sob sua responsabilidade (sob a tutela de Roma) os territórios da Pereia, ao sul, e da Galileia, onde estávamos. As no­tícias, nesse sentido, não eram claras. Por que atacava Antipas? E recordei o dito por João Zebedeu naquela inesquecível viagem do yam a Nazaré: o Batista seria preso poucas semanas depois, no mês de junho. Precisava ficar atento. Seria melhor ir até Yehohanan e ver o que estava acontecendo? Intuí que minha presença junto ao homem das pupilas vermelhas poderia ser interessante. O que realmente aconteceu? Por que foi preso? Era verdadeira a notícia dos evangelistas? O que o Mestre fez quando seu primo distante foi preso? Como Judas Iscariotes, um dos discípulos de Yehohanan, reagiu?

E, de certo modo, eu me preparei. O Destino avisaria. E assim ocor­reu E de que forma!

Foi nesses dias, em uma das "aulas" do Galileu na "terceira casa", que Tiago, irmão de Jesus, comentou que a Senhora havia entrado em outra grave crise.

Por quê?

Não entende meu Irmão.

E explicou que, após a euforia em Caná, tudo desabou para ela. "Jesus voltou atrás na sinagoga de Nahum, quando pediu paciência. O que estava esperando? O poder e a glória eram dele. Ele era o Messias prometido. Por que não agia? Yehohanan continuava esperando. O povo continuava esperando. Os exércitos (?) continuavam esperando. Israel continuava es­perando."

Só fica repetindo: "Não o compreendo, não o compreendo".

Tiago também não entendia o que estava acontecendo. E acrescentou:

Minha mãe passa o dia em um canto, sem falar com ninguém. Está decepcionada. E duvida inclusive da promessa do ser luminoso que apa­receu para ela em Nazaré.

Eu não sabia o que dizer. Outra vez os evangelistas! Por que não contaram a verdade?

De vez em quando, quando Esta e Ruth tentam consolá-la, ela, com o olhar perdido, diz: "O que significa tudo isso?"

Pensei em ir visitá-la. Iria antes do que imaginava.

E no domingo, 10 de março, apareceu no estaleiro um velho conhe­cido: Azzam, o árabe cujo nome significava "bom homem". A última vez que o vira fora em Caná. Transportava vinho para a festa de casamento de Noemi e Johab. Alegrou-se ao me ver de novo. Achou que fosse um sinal dos deuses.

O velho aventureiro ouvira as notícias sobre a "conversão" da água em vinho e voltara à Sapiah, confirmando o ouvido. Não pensara duas vezes e fora direto para Nahum em busca do suposto Messias.

Jesus o ouviu enquanto almoçava. Acho que estava tão atônito quan­to este explorador.

Azzam lhe propôs um negócio: o árabe forneceria água - "da melhor qualidade" - e o Filho do Homem a transformaria em vinho ("se possível, siciliano"). Dividiriam os lucros.

Jesus o contemplou durante alguns segundos. Depois, desviou o olhar para quem isto escreve e, sem que nos pudéssemos conter, caímos na risada.

Por fim, Azzam se juntou ao regozijo e compreendeu que havia dito bobagem. Mas aceitou bem.

E, recuperando a compostura, o Galileu pôs as mãos nos ombros do árabe e proclamou:

- Em verdade te digo que o negócio de tua vida será ouvir a palavra do Filho do Homem.

Nem Azzam nem eu entendemos. Não naquele momento. Só al­gum tempo depois aconteceria um novo "milagre", dessa vez na pessoa de Azzam. Mas essa é outra história.

 

A essa altura, quase duas semanas depois do portento de Caná, a notí­cia sobre o "vinho prodigioso" havia chegado praticamente ao país todo. O polêmico assunto estava nas mesas das autoridades romanas, dos responsá­veis das castas sacerdotais, dos saduceus, de Herodes Antipas, de Felipe, seu meio-irmão, e do resto das forças vivas em geral. Todos se preocuparam de enviar espiões a Nahum. Eram fáceis de identificar. Eram vistos pelas taber­nas e pousadas, pelos mercados e pelos bordéis, interrogando uns e outros, e sempre sobre o mesmo tema: "Quem era esse Jesus de Nazaré?" Os scorpio e os tor [28] (assim chamavam aos espiões de Roma e do Sinédrio, respectivamente) eram os que pagavam as rodadas de vinho ou de cerveja. E às vezes, quando bebiam além da conta, eram eles quem forneciam informações. Foi assim que chegou a mim a notícia de que o tetrarca Antipas havia sido informado pou­cas horas depois do ocorrido na festa de casamento na Sapiah. E se mostrara mcrédulo a respeito do "vinho prodigioso", mas ordenara que seguissem de perto os movimentos do Galileu. Nesses primeiros dias de março do ano 26, Herodes Antipas (que tentaria interrogar Jesus durante a Paixão e Morte: 7 de abril do ano 30) estava mais preocupado com Yehohanan que com o "místico carpinteiro", como chamava o Galileu, pejorativamente. E o Mestre ficou livre, em parte, da pressão do não menos odiado filho de Herodes, o Grande. Mas seria por pouco tempo.

E chegou o dia 13 de março, quarta-feira. Era aniversário de minha amada. Completava 17 anos.

Eu me esmerei. Queria lhe fazer uma surpresa. Na realidade, foi ela quem fez uma a mim.

Pensei em um perfume. Ruth gostava de essência de jasmim. Pude notar isso naquele inesquecível 18 de outubro, na "casa das flores", quando Eliseu deixou cair uns lírios, e ela, assim como eu, abaixou-se para pegá-los. Nesse momento esteve muito perto de mim. Pude sentir a intensa fragrância que exalava. Seus olhos verdes me olharam.

E pensei no jasmim.

Felipe, especialista em óleos e essências, acompanhou-me ao merca­do de Nahum e pessoalmente escolheu o presente. Cometi um erro. Não disse para quem era.

Escolheu o chamado jasmim grandiflorum, procedente do vale do Jordão. Cheirou-o, levantou o frasco e verificou a cor. Era uma essência escura e viscosa, com um aroma lento e poderoso. Segundo o comercian­te, as flores haviam sido colhidas durante a noite; por isso seu odor pene­trante. Era caríssimo, mas valia. Ela merecia o melhor.

Felipe, então, piscou para mim e comentou:

- É lógico, na tua idade...

Não entendi do que estava falando. Mas também não perguntei. Tolo de mim. Teria me poupado um desgosto.

O vendedor, animado com a venda, quis que comprasse também um chá de jasmim vindo diretamente da Índia. Eu disse que não. Depois, ten­tou me vender uma de suas filhas pequenas. Só me custaria cinco denários. Felipe me tirou de lá. Eu queria matar o maldito comerciante com minhas próprias mãos.

Pedi a Yu um dia livre. Ele autorizou e sorriu maliciosamente. Tam­bém não compreendi.

Lavei as roupas. Fiz a barba. Perfumei-me e me preparei para o gran­de momento. Embrulhei o presente em um delicado pano de linho, peguei a "vara de Moisés" e, feliz e nervoso, fui para Nahum.

À terceira hora (nove da manhã), estava em frente à "casa das flores". Minha querida Ruth estava lá.

Pelo caminho, enquanto a barca me levava da "quinta pedra" ao por­to de Nahum, fui repassando mentalmente o que diria: "Feliz aniversário! Isto é para ti". Ela, então, abriria o presente e ficaria impressionada. Olha­ria para mim com seus incríveis olhos verdes e sorriria. Eu sabia que ela me amava. Gritava isso em cada olhar. Ou não? Então, eu tomaria suas mãos e lhe confessaria meu amor. Ela coraria e baixaria os olhos. Depois...

E, subitamente, "acordei". Estava em frente a sua porta.

Esta, esposa de Tiago, irmão do Mestre, não tardou a me ver. Não vi ninguém no pátio. Raquel, a filha, estava ao seu lado, agarrada à túnica. Nada parecia ter mudado. Mas mudara.

Perguntei por Ruth.

Não quer ver ninguém - replicou a sempre concisa cunhada de Jesus.

Insisti e mostrei o pacote, acrescentando:

Sei que hoje é aniversário dela. Trago um pequeno obséquio.

Esta hesitou. Não disse nada. Deu meia-volta e se perdeu na segunda casa, onde habitavam a Senhora e Ruth. A menina me olhou com curiosi­dade, sorriu e foi atrás da mãe.

Pouco depois, Esta apareceu de novo pela cortina. Caminhou decidi­da para este explorador e esclareceu:

Ela não está bem. Não vai receber ninguém.

Mas...

A menina havia perdido o sorriso pelo caminho.

Está bem - resignei-me. - Pelo menos entrega-lhe meu presente.

Coloquei o pacote em suas mãos e me despedi. A menina não tor­nou a sorrir.

Afastei-me, desconcertado.

O que estava acontecendo? Esta não costumava mentir. Ruth estava com algum problema. Mas qual? Tiago, seu irmão, não havia comentado nada durante as "aulas", ou no trabalho no estaleiro. Se fosse algo grave ou importante, Jesus teria se preocupado. Eu não conseguia entender.

Talvez não quisesse me ver.

Esse pensamento começou a me devorar.

Por quê? Havia preferido Eliseu? Era lógico. Eu tinha aparência de velho. O engenheiro era jovem e bonito.

E nisso, quando caminhava devagar para o porto com a intenção de voltar ao meu refúgio no pombal, ouvi uma voz familiar me chamando.

Voltei-me e, de fato, vi Eliseu. Vinha depressa, quase correndo. Não tive tempo de nada. Foi tudo muito rápido.

Seu rosto estava vermelho, congestionado de ira.

Trazia nas mãos o pacote de linho que eu havia acabado de entregar a mulher de Tiago.

E ao chegar a mim, com os olhos exorbitados, gritou, em inglês, de­sembrulhando o frasco de perfume:

Maldito efeminado!

E jogou o recipiente aos meus pés, nas pedras da rua. O vidro se es­traçalhou e fiquei tomado de um aroma intenso, e de confusão.

Não conseguia entender.

Eliseu, então, furioso, empurrou-me com todas as suas forças e topei com um dos muros. O empurrão foi tão súbito e tão violento que, após bater na parede, caí no chão.

E ouvi seus gritos:

Deixe-a em paz! Não a insulte! Maldito! Maldito!

Não consegui pensar.

O engenheiro, ao me ver caído, começou a chutar quem isto escreve. E não tardou a perceber que eu não estava usando a proteção da "pele de serpente". Fazia tempo que havia prescindido dela.

Só consegui me proteger com os braços. Os pontapés acertaram todo meu corpo. Foram especialmente violentos no ventre, nos testículos e na cabeça. Senti sangue nos lábios.

Não conseguia me defender. A surpresa foi demolidora.

Alguns vizinhos saíram às portas das casas, alarmados.

Mas Eliseu, fora de si, continuou me chutando e vociferando:

Seu gay maldito! Devolva-o! Não é seu! Devolva o cilindro! Vou matá-lo! Vou matá-lo!

Ele quebrou meu nariz. E senti o sangue, quente. A hemorragia foi intensa.

Por fim, os vizinhos e alguns transeuntes deram fim à surra. Segu­raram o violento Eliseu e o afastaram de mim. Outros me ajudaram. Eu me levantei como pude. Acho que estava pálido. Senti uma dor intensa no flanco direito. Imaginei que estava com alguma costela quebrada. Alguém me deu um lenço úmido e tentei conter a hemorragia nasal. Estava san­grando também pelo ouvido esquerdo.

Não vi Eliseu. Imaginei que o haviam arrastado rua acima.

Recuperei a vara e, após agradecer a ajuda, fui para o porto. Eu me sentia mal, muito mal, e não só pela surra. A relação com o engenheiro acabava de naufragar definitivamente. O que eu podia fazer?

Embarquei rumo a Saidan e tentei organizar minhas idéias. Por que Eliseu gritou que eu havia insultado Ruth? Eu estava desconcertado.

Alguns dias depois, ao conversar com Felipe, eu entendi. Ninguém, naquele tempo, dava de presente perfume de jasmim a uma mulher. Era um insulto. A essência era considerada um poderoso afrodisíaco, de uso exclusivo do homem. Oferecê-la a uma mulher era quase agredi-la sexualmente.[29] Cometi o erro, como disse, de não dizer ao discípulo que o presente era para Ruth. E entendi também a piscada marota e o comentário de Felipe quando eu comprara o perfume: "É lógico, na tua idade...".

Não sei quando me senti pior: ao levar a surra ou ao saber que havia insultado, sem querer, a bela mulher.

E, lentamente, com dificuldade, subi as escadas para o casarão dos Zebedeu, abri a porta dos fundos e fui para o meu quarto. Minha mente continuava nublada, e não por conta da dor física.

Mas, ao pôr o pé no pátio, Salomé e Abril me descobriram. Não pude fazer nada.

O que aconteceu? - perguntou a senhora da casa, alarmada com meu aspecto.

Dei de ombros e respondi com parte da verdade:

Tropecei.

Evidentemente, ela não acreditou.

Inspecionou meu nariz e ouvido e me deixou ir. Já no pombal, eu me perguntei: "O que deu errado?" Não obtive resposta. "Como chegamos a tal situação? Como eu havia permitido? A Operação era o mais importan­te. Eu estava no comando".

Também não soube esclarecer essas dúvidas. As coisas acontecem e pronto.

E comecei a sentir raiva.

Nisso, bateram à porta.

Eram Salomé e sua filha Abril. Entraram armadas de lenços, bandagens de linho, uma bacia, duas jarras com água e vários recipientes com não sei quantos unguentos amarelos e supurativos.

Meus protestos foram como zumbidos de moscas em seus ouvidos.

Salomé, enérgica, ordenou que me despisse. Tirei a roupa sem chiar.

Meu corpo estava coberto de hematomas.

Notei que Abril contemplava minhas pernas e meu tórax. Seu rosto refletia perplexidade. Acho que sei por quê. Meus cabelos eram de velho, e também meu rosto, marcado de rugas. Mas o mesmo não acontecia com meu corpo. O envelhecimento prematuro afetara exteriormente minha cabeça e minhas mãos. O restante conservava a força muscular do que eu realmente era: um jovem que ainda não havia completado 37 anos.

Salomé me lavou com um líquido que continha flor de calêndula e examinou minhas costelas. Eu a ajudei. A dor, de fato, delatou uma fratura dupla, ou fissura, na terceira e na quarta costela do lado direito. O melhor era uma bandagem, o mais firme possível. Primeiro me untou com óleo ir linhaça, com extrema delicadeza. Agradeci a poção e a ternura. O linho não cheirava bem, mas compreendi que o conteúdo (mucinas, linoleína, glicosídeos, ácidos saturados e linoleico) era benéfico para as possíveis fraturas e para a pele. E, efetivamente, não tardei a notar seu poder anti-inflamatório e calmante. Eu me neguei a receber o unguento supurativo, preto como o piche. Não sei para que servia, mas o linho já era suficiente.

E Salomé, auxiliada pela silenciosa Abril, foi vendando meu tórax. O linho era novo.

Depois, contiveram a hemorragia nasal. Salomé, paciente, teve que explicar em que consistia a manobra. Ela molhou duas gazes com água fria e verteu sobre cada pano duas gotas de suco de limão. Compreendi. A essência de limão é hemostática e acelera a coagulação do sangue. A mulher sabia.

Antes de colocar as gazes em meu nariz, Salomé perguntou se havia fratura. Respondi afirmativamente.

Nesse caso - sentenciou -, terás que tentar endireitar o nariz.

E acrescentou:

Tu o fazes ou faço eu?

Eu apalpei meus próprios ossos e deduzi que a ruptura estava do lado esquerdo. Só precisava pressionar para o lado contrário. Armei-me de co­ragem e empurrei o septo. Aguentei a dor como pude, e o nariz ficou reto. Eu já havia visto os boxeadores fazerem isso em meu país.

Salomé sorriu.

Tu és valente.

A seguir, introduziu as finas gazes em meus orifícios nasais, o mais para cima possível, e me obrigou a segurá-las.

Minutos depois, parava de sangrar. Mão de santa.

A mulher sorriu, satisfeita, e recomendou que me deitasse na cama. Preparou compressas com água fria e as colocou em minha nuca.

Agora tens que descansar - ordenou.

Eu ia agradecer os cuidados, quando tornaram a bater à porta. Era outra filha. Acho que Mar. Chamavam a mãe na cozinha. E fiquei com Abril, a sós.

A garota, prestativa, cumpriu as ordens de Salomé e me deu uma beberagem à base de melissa e não sei que outra planta. Era um calmante.

Fechei os olhos e tentei não pensar. Não consegui.

"O que havia acontecido?"

Abril se ajoelhou ao meu lado e começou a limpar o sangue de meu rosto. Começou pelo ouvido. Senti seus dedos, finos e longos. Moviam-se como o ar. E foi limpando. De vez em quando trocava de algodão, umedecia-o na bacia e prosseguia. E continuou pelo nariz.

"Como havíamos chegado a tal desastre?"

E seus dedos, sem querer, roçaram a lesão recente. Não pude evitar um gemido. Ela levantou o algodão, assustada.

Abri os olhos e percebi o temor nos seus. Então reparei: seus dedos tremiam.

Esbocei um sorriso, sem dar importância ao pequeno incidente.

Ela agradeceu o gesto e guardou meu sorriso, tenho certeza. E tentou devolvê-lo. Pestanejou, nervosa, e voltou à limpeza do nariz. Estimulei-a com outro sorriso. E olhei para ela, curioso. Aquele cabelo tingido de vermelho era impressionante. Os lábios, finíssimos, estavam levemente úmidos. Ela percebeu que eu a examinava e ficou vermelha. Suas narinas tremeram. E notei que seus pequenos seios subiam e desciam, agitados. Ela era linda.

Mas voltei aos meus pensamentos.

"O Destino é que havia nos levado a uma situação tão lamentável? O Destino..."

O algodão passou de novo pelo nariz dolorido e foi acariciando-o e limpando, quase sem tocá-lo.

"Tenho que encontrar uma saída, e rápido. A situação é insustentável."

E Abril, mais confiante, levou os dedos aos meus lábios. Os pontapés os haviam arrebentado. Havia sangue seco nos cantos, no queixo e até no pescoço.

E ela foi lavando delicadamente.

"Seria melhor suspender a missão? Eu não estava com o maldito ci­lindro de aço."

E percebi que a respiração da mulher se tornava mais rápida e agita­da. Mas não me importei.

"Era questão de procurar Eliseu e fazer um trato. Um trato? Com um animal daqueles?"

Limpou os cantos de minha boca, e então, aconteceu. Ela me pegou desprevenido. Não podia imaginar.

Abril, subitamente, inclinou-se sobre quem isto escreve e depositou um beijo em meus lábios. Foi um beijo doce, breve e fugidio.

Abri os olhos, desconcertado. Mas ela, valente, não retrocedeu. E continuou de joelhos, olhando fixa e intensamente para mim. Seus doces olhos marrons brilhavam. Eu diria que haviam bebido a luz do quarto.

E, antes que eu tivesse tempo de dizer uma só palavra, reclinou a cabeça em meu ombro direito e o beijou com ternura.

Eu, não sei por que, ergui a mão direita e acariciei seus cabelos.

Meu Deus! O que estava acontecendo? Era 13 de março, aniversário de minha amada! Eu não podia...

Não houve tempo.

A porta se abriu e surgiu Salomé. Ao nos ver naquela atitude, ficou imóvel, mas não disse nada.

Abril retirou imediatamente a cabeça, ergueu-se, pegou a bacia e, vermelha como uma papoula, correu para a porta, desaparecendo.

Eu me sentei na cama e tentei me desculpar. Mas de quê?

Salomé não parecia incomodada. Ao contrário. Examinou meu rosto e se mostrou satisfeita com o trabalho da filha.

Optei por fazer silêncio. Foi o melhor.

E continuei me atormentando: "O que aconteceu? Por que ela me beijou?"

Sempre fui burro no que se refere ao sexo feminino.

E nisso, como uma tábua de salvação, tornaram a bater à porta.

Salomé e eu trocamos um olhar. Não sabíamos...

A mulher abriu e encontramos (principalmente eu) outra surpresa.

O que ele estava fazendo ali? Eu não podia acreditar. Seu descaro e cinismo eram maiores do que eu imaginava.

Estava acompanhado por Mar.

Deu um passo e, dirigindo-se para quem isto escreve, pediu perdão.

Era Eliseu.

As mulheres nos deixaram sozinhos.

O engenheiro fechou a porta, e eu continuei sentado na beira da cama. Não sabia o que fazer. Expulsava-o a pontapés? Olhei para a "vara de Moisés". Estava em um dos cantos, perto da porta de madeira.

Eliseu percebeu meu olhar e, ao ver a vara, adiantou-se aos meus pensamentos:

Não será necessário, Major. Desta vez, venho em paz.

Paz? Maldito bastardo!

Sei o que está pensando - acrescentou. - E você tem razão. Não sei o que me deu. Só posso lhe pedir perdão. Isso não tornará a acontecer.

Percebi calma em sua voz. Parecia sincero, mas não confiei.

O que você quer?

Não tenho a quem recorrer.

Não sabia a que se referia. Mas ele esclareceu logo:

Ruth... Preciso que a examine.

Ao ouvir o nome dela, eu me levantei.

O que foi? Esta me disse algo, mas não sei o que está acontecendo. Fale!

Está há dias sem sair do quarto. Não come, não fala com ninguém. Nem comigo.

Está doente?

Não sei. Não sou médico. Você pode descobrir.

O engenheiro baixou a cabeça. As lágrimas surgiram de imediato.

Pensei em uma armadilha. Ele era um bom ator.

Mas o silencioso pranto era sério. Sentou-se na cama e escondeu o rosto nas mãos.

Não sei, Major... Não sei o que há com ela, mas parece grave.

Não entendo. Por que não me disse esta manhã? Por que me bateu?

Ele levantou o rosto e esclareceu:

Quando você apareceu com o presente, eu estava desesperado. De­pois, ao abrir o pacote e presenciar o pranto de Ruth, quis matá-lo. Dar jasmim de presente é um insulto, conforme Esta me explicou.

Fiquei perplexo. Eu também não sabia. Felipe, como disse, é quem me explicaria dias depois.

Isso já não tem solução - lamentei. - Agora, o importante é ela.

Então, você aceita? E me perdoa?

Aceito, claro, e tudo está esquecido. Por ora.

Não havia nada mais a dizer. Eu me vesti, peguei a vara e, dolorido, saímos.

Ela precisava de mim. Isso era o que contava.

Nem me despedi das mulheres.

E por volta do meio-dia (sexta hora), cruzamos a porta da "casa das flores", em Nahum. O Destino me reservava outra surpresa.

 

A hemorragia nasal cedeu definitivamente. Meu flanco doía, mas su­portei. A prioridade era ela.

Durante a travessia do lago, da "quinta pedra" até o cais de Nahum, não falamos uma só palavra. Eliseu me evitava. Olhei-o de cima a baixo e não sei por que, enfiei na cabeça que tudo aquilo era uma de suas tramóias. Tinha que ficar alerta.

Estava enganado.

Esta e a menina esperavam no pátio. E fomos diretamente à segunda casa, parede com parede com a de Tiago. Lá moravam habitualmente a Senhora e Ruth, a filha pequena, minha amada.

Eliseu retirou a rede revestida de breu que fazia às vezes de porta, evitando a entrada de moscas e outros insetos, e me convidou a entrar.

De início, só vi negrura. Era um dos meus problemas com as escuras casas judaicas.

Precisei de alguns segundos para me acostumar à escuridão.

Era uma sala grande, retangular, sem janelas. Cheirava mal, a lugar sem ventilação.

E, pouco a pouco, fui distinguindo. Ao fundo, ao pé da parede frontal, vi a silhueta de duas camas. Na da direita (tomarei a porta como refe­rência) via-se uma pequena chama amarela, minúscula. Descansava entre os pés de alguém. Parecia uma mulher. Estava sentada na cama e, como disse, com uma lamparina de óleo aos pés. Não se mexia.

Eliseu caminhou por entre as camas e parou em frente à parede do fundo.

A segunda cama estava vazia.

Ouvi-o sussurrar algo e a seguir voltou ao lugar onde aguardava este confuso explorador. Esta e a menina entraram no quarto e ali permanece­ram, na porta. Não falaram.

Muito bem - indicou o engenheiro. - Podes examiná-la.

Por que estava falando em voz baixa?

Entendi que se referia a Ruth.

- Aguarda um instante - acrescentou Eliseu vou buscar uma lamparina.

Esperei.

Então, conforme fui acostumando as pupilas à penumbra, julguei re­conhecer Ruth. Estava sentada em um banquinho de madeira, entre as duas camas, muito perto da parede. Mexia-se ritmicamente, para frente e para trás. Julguei ouvir um lamento, mas muito abafado.

Dirigi o olhar para a mulher que continuava sentada no leito e che­guei à conclusão de que era Maria, mãe de Ruth.

O que estava acontecendo? Por que não falava?

Parecia uma estátua. Seus olhos estavam perdidos em algum lugar do quarto. Quase não piscava. A luz amarela endurecia seus traços. Fiquei desconcertado.

Eliseu voltou com outra lamparina a óleo. E pediu que me aproxi­masse da mulher do banquinho.

Ao chegar perto dela, o engenheiro a iluminou fugazmente, e confir­mei minhas suspeitas: era Ruth, minha amada Ruth.

Seu cabelo estava emaranhado, como se não tivesse sido penteado havia dias. Sua pele, normalmente transparente, estava coberta de suor. Ela suava copiosamente por todo o corpo. Não parava de se agitar, para a frente e para trás. Seus belos olhos verdes estavam fechados. Um per­manente lamento, quase um cântico, escapava de uma boca meio aberta. Seus lábios tremiam.

Eu me assustei.

Peguei a lamparina de Eliseu e passei a luz em frente ao rosto da garota. Ruth, ao perceber a proximidade da chama amarela, entreabriu os olhos e subitamente bateu na lamparina.

Sua reação foi tão inesperada que a pequena vasilha de argila com óleo rolou pelo chão.

Eliseu se desculpou e tentou pegar a lamparina. Estava quebrada. Desapareceu de novo no pátio. A menina e Esta foram com ele.

E Ruth, sem uma palavra, tornou a fechar os olhos e retomou o la­mento e os rítmicos movimentos, tão preocupantes.

Eu não sabia o que fazer.

Optei por esperar. Não me atrevi a prosseguir o exame.

Precisava de Eliseu ao meu lado.

A Senhora não se alterou.

Logo o engenheiro voltou com uma nova lamparina a óleo. Estava abalado. Pediu desculpas, também em voz baixa. A menina e Esta não voltaram à porta.

Então, pedi a Eliseu que segurasse a luz lateralmente; nunca em fren­te aos olhos dela.

Obedeceu.

E me arrisquei a tomar-lhe o pulso. Ruth não se opôs. Praticamente não houve reação. Prosseguiu se lamentando de olhos fechados.

Seu pulso estava rápido. Demais.

Aquilo podia indicar uma taquicardia. Mas como confirmar?

Eu me alarmei.

Julguei distinguir uma diminuição na fenda palpebral do olho direito. Então, seus olhos começaram a lacrimejar.

Eu me atrevi a interrogá-la.

Perguntei se sentia dor. Ruth, ao reconhecer minha voz, abriu os olhos com dificuldade e assentiu com a cabeça. Notei uma intensa conges­tão ocular, e também nasal, com rinorréia (muco abundante). Tentei fazer que mantivesse os olhos abertos e, como pude, orientando a luz amarela de forma que não a ferisse, examinei suas pálpebras e a conjuntiva. Contornei as suspeitas iniciais: queda da pálpebra e forte injeção conjuntiva no olho direito (olho vermelho).

E, suavemente, em voz baixa, perguntei onde doía, e com que intensidade.

Ela foi respondendo à sua maneira, sem palavras, com a ajuda dos dedos. E deduzi que sentia uma dor fortíssima, encadeada em paroxismos unilaterais, centrada no olho esquerdo e na região periorbitária, irradiando para rosto, palato, fronte e têmporas. Era uma dor insuportável - julguei en­tender -, "como se a perfurassem com uma espada". Fazia dias que padecia dela, e com uma frequência muito alta: cerca de 20 ou 30 crises por hora.

Julguei intuir o que estava acontecendo, mas não tinha certeza. Precisaria de um exame mais a fundo, com instrumental adequado.

Eliseu olhou para mim, ansioso.

Eu não disse nada. Queria ter um mínimo de certeza.

A Senhora continuava imóvel, com a luz a seus pés. Não parecia se importar com o mal de sua filha. Não entendi, sinceramente. Mas minha preocupação, naquele momento, era Ruth.

E, um pouco mais animado com a colaboração dela, supliquei que respondesse a minhas perguntas. Ela abriu os olhos com dificuldade e fez um gesto com a mão, pedindo a Eliseu que apagasse a luz. Pedi a ele que a escondesse e fiz as perguntas. E assim, lentamente, fui compondo o quebra-cabeça.

Pouco antes de começarem as dores, no olho contrário Ruth via es­tranhas imagens: fagulhas, raios, figuras geométricas, estrelas que brilha­vam com grande intensidade e, acima de tudo, um ponto de luz no centro do campo visual que se transformava em uma nuvem branca. Às vezes, essa distorção visual (o que nós, médicos, chamamos de "escotomas" e "fotopsias") acabava apagando as coisas e as pessoas ou as deixava borra­das, "como se as visse através da água".

Não tive mais dúvidas.

A tudo isso tínhamos que somar constantes vômitos, insensibilidade (sua boca ou parte dela, sua língua, sua mão e seu antebraço adormeciam) e disfasia (dificuldade de encontrar as palavras adequadas).

As crises - segundo Ruth - começaram quando era menina. De início, mais moderadas e em número menor. Havia alguns meses, as dores fica­ram mais intensas (ela usou a palavra "insuportáveis"). Atacavam-na pela ma­nhã e permaneciam o dia todo. Às vezes, como disse, 20 ou 30 crises por hora.

Vê-la chorar partiu meu coração.

O sofrimento era tal que ela não suportava a luz nem o barulho. Escondia-se no quarto, às escuras. Às vezes, as crises a assaltavam à razão de quatro ou cinco por mês. Não sabia o que fazer. Seu humor mudou. Tornara-se insuportável. Não se atrevia a sair à rua. Sofria de poliúria (ex­cesso de urina), e isso a deixava constrangida. Disse que havia se tornado inútil, com uma hipersensibilidade extrema. Tudo a irritava. Não se sentia feliz com nada. Sua única obsessão era se livrar da dor. Chegou a pensar em suicídio. Mais de uma vez, Eliseu e Esta tiveram que segurá-la quando batia a cabeça nas paredes.

Voltei o olhar para a Senhora. Continuava na mesma posição. Pa­recia insensível a tudo. E me perguntei: seria ela a responsável, em parte, pelas últimas crises agudas de Ruth?

Terminado o interrogatório, acariciei as mãos da garota. Ela quis sor­rir, mas não conseguiu.

Quanto a amava!

Saí. Eliseu me seguiu.

E então?

Não tenho certeza - disse. - Ruth pode estar sofrendo de uma en­xaqueca ou uma combinação de várias cefaléias.

Não entendo.

A enxaqueca é uma doença crônica, muito dolorosa, e deve-se a di­versos fatores. Não podem ser confundidas com as típicas dores de cabeça.

E expliquei.

A enxaqueca é muito mais que isso.

Hesitei.

Além de tudo, não sei que tipo de enxaqueca ela tem. Pode ser uma cefaléia com aura, tensional, hemiplégica familiar etc. Existem mui­tas Cada uma tem, ou pode ter, uma origem diferente. Seria preciso fazer exames específicos.

Eliseu entendeu o que eu pretendia.

Está se referindo aos "nemos"?

Assenti em silêncio.

Era uma opção. Os "nemos frios" podiam entrar no organismo da garota e esclarecer a natureza do problema, assim como a origem.

Tentei fazê-lo ver que o assunto era mais complexo do que parecia:

É questão de ir descartando. Estamos diante de uma lesão intracra­niana ou sistêmica grave? Talvez uma sinusite, um glaucoma ou uma disfunção da articulação temporo-mandibular? Existe algum tipo de oclusão arterial? Uma mal-formação vascular?

Fiz uma pausa e cogitei outra possível causa, realmente preocupante:

E se for um tumor cerebral?

Eliseu sentiu o golpe. Baixou a cabeça e seus olhos se umedeceram. Tentei aliviar a situação.

Nada é certeza. É preciso fazer os exames.

O engenheiro reagiu. Enxugou as lágrimas e perguntou:

O que estamos esperando?

Acho que nem ele nem eu pensamos a respeito. Não era necessário.

Consultei a posição do sol. Devia ser uma da tarde. Fiz cálculos. A subida ao Ravid levava três horas e meia. Tínhamos que programar os batalhões de "nemos" e voltar. Isso significava, no mínimo, cerca de nove horas.

Disse isso ao engenheiro.

Acho que ele esperava minhas observações. E replicou:

Para que existe dinheiro?

Não entendi.

Vamos fazer do meu jeito.

E pediu que eu esperasse. Não demoraria.

Deu meia-volta e saiu da "casa das flores".

Voltei para dentro e me sentei na beira da cama que estava de­socupada. Contemplei novamente a cena, e meu coração se apertou, impotente.

Ruth resistia à dor entre lamentos, com aquela agitação para frente e para trás. A Senhora, impassível, nem me olhou.

E assim passei os minutos, incapaz de ajudar a pessoa que amava. Eu me senti profundamente triste. Esqueci até de minhas dores.

Por volta das duas da tarde, Eliseu apareceu de novo no quarto. Cha­mou-me à porta e saímos.

Surpresa!

Eliseu, com bom-senso, foi contratar uma reda de quatro rodas, uma carruagem leve, dessas muitas que pululavam por Nahum. No comando estava um fenício. Era um condutor veterano, um sais. Por precaução, o engenheiro e Kesil pagaram também uma escolta - um homem armado.

A ideia me conquistou. Com um pouco de sorte, estaríamos em Migdal em pouco mais de uma hora. De lá à "região morta" do Ravid, só dois quilômetros nos separavam. Em outras palavras: o tempo de entrada no "berço" se encurtava sensivelmente.

Por que não?

Como dizia meu avô, o caçador de patos, "o dinheiro serve para o que serve: para ajudar ao próximo e para se divertir".

Planejamos tudo no caminho, em inglês. A reda nos conduziria até a periferia da aldeia de Migdal. A carruagem esperaria. Nós prosseguiríamos a pé até o "berço". Pareceu-me uma idéia interessante e, acima de tudo, uma atitude discreta. Do preço, nem falamos. Eliseu cuidou disso. Como ele disse, o que sobrava agora eram denários.

O fenício e o homem armado não falavam muito. Fizeram um movi­mento de cabeça e confirmaram que esperariam nossa volta. Só pagamos metade. O resto, na chegada a Nahum.

E à décima hora (quatro da tarde), aproximadamente, entramos no "berço". Os quatro quilômetros entre Migdal e a proa do "porta-aviões" foram cobertos com celeridade e sem percalços.

Nem olhei para o precipício que se abria a seis metros da nave. Nem parei para pensar no triplo gancho de ferro e na corda pendurada no vazio.

Toda a minha atenção estava no "Papai Noel" e na programação dos batalhões de "nemos frios", ou exploradores. Calculei duas ampolas de barro. Isso seria suficiente. E os "nemos" foram projetados pelo computador para explorar o cérebro, o tronco encefálico e o sistema nervoso central.[30]

Cheguei a pensar se não estaríamos violando a ética do Cavalo de Tróia. Concluí que não. A exploração não significava alteração alguma.

Duas horas depois, tudo estava pronto. E nos preparamos para voltar à providencial reda de quatro rodas.

Prevendo que a crise continuaria, peguei um sortimento de medica­mentos que pudesse aliviar, em parte, as dores da jovem. Confisquei anti-inflamatórios não esteróides (tipo ketorolac, aspirina e paracetamol) e anti-eméticos (fundamentalmente domperidona). Não resolveriam o problema, mas, pelo menos, dariam uma trégua. Isso não ia contra as normas.

Os relógios do "berço" apontavam 19 horas quando descemos a terra. Fazia tempo que havia anoitecido. Era melhor assim. A possibilidade de que alguém nos visse abandonando o Ravid era menor. Além de tudo, conhecíamos o caminho de cor. E, efetivamente, chegamos à reda sem percalços.

Tudo estava correndo bem. "Muita sorte", pensei.

Avaliamos a situação enquanto rumávamos para Migdal.

Se tudo corresse bem, uma vez ingeridos os "nemos", podíamos voltar a fazer a análise final. Não havíamos comido nem descansado, mas isso era de menos. Para Eliseu e para quem isto escreve, só contava ela. Foi o que pensei naqueles momentos difíceis. Pobre idiota! Nunca vou aprender!

Assim faríamos. Nessa mesma noite, solucionaríamos o mistério: qual era o problema de Ruth?

A carruagem voou. O fenício (nunca soube seu nome) conhecia a trilha de olhos fechados. Não precisou de tochas.

E na primeira vigília da noite (oito da noite) irrompemos na "casa das flores". Por ordem de Eliseu, o sais cuidou da troca das mulas. A nova oferta foi mais substanciosa que a primeira. Esperariam novamente em Migdal. Quando vol­tássemos, chegando a Nahum receberiam o dobro do combinado pela primeira viagem. O fenício e o armado se mostraram de acordo. Disseram que esperariam "até o retorno de Elias". Era um dito popular que significava "até sempre".

Tivemos sorte.

Tiago estava no casarão dos Zebedeu, em Saidan, ocupado com as "aulas" do Mestre.

Decidimos aproveitar a circunstância. Era melhor assim.

A cena mal havia mudado, salvo com relação à Senhora, que não estava presente. Não soubemos onde estava. A mulher de Tiago também não soube nos dizer.

E pusemos as mãos à obra. Não havia tempo a perder.

Eliseu deu-lhe os "nemos". Ruth bebeu lenta e pausadamente. Estava arrasada. E este explorador ativou a "vara de Moisés", iniciando o processo informativo.

Duas horas depois, às dez da noite, após administrar uma razoável dose de analgésico e um anti-emético, Eliseu e eu voltamos à reda. Ruth parecia mais estável. Nós a deixamos na cama, descansando.

E o bondoso Kesil, advertido por Eliseu, providenciou água e provi­sões para nós. Pareceu-me feliz e esperançoso. Achou que o engenheiro e quem isto escreve havíamos feito as pazes. Não exatamente.

Os céus realmente estavam do nosso lado. A segunda viagem para Migdal foi mais rápida que a primeira. A carruagem esperaria às portas da aldeia, como da vez anterior. Isso foi o combinado. E retomamos o caminho de subida ao "porta-aviões". Tudo estava em silêncio, livre. Isso me tranquilizou.

O plano previa que nos encontrássemos com o sais e o armado ao al­vorecer do dia seguinte, 14 de março. Eles repetiram a expressão de Elias.

Essa margem de tempo era mais que suficiente para decodificar a informação dos squid e tomar alguma decisão, supondo que fosse necessário.

Os relógios apontavam meia-noite quando o "Papai Noel" entrou em ação. Não nos preocupamos em comer ou dormir. Estávamos angustia­dos, com razão.

E passou-se uma hora. E duas...

Eliseu, nervoso, resolveu comer. Kesil havia preparado peixe seco, fruta e um pão de centeio. Eu não estava com fome. As dores até passaram para segundo plano.

E às três da manhã, o computador deu por concluída a tarefa.

Os resultados, em um primeiro momento, deixaram-me confuso.

Revisei-os, conforme meu costume.

Não havia dúvida.

E Eliseu, atento, pediu esclarecimento.

Hesitei. Devia dizer a verdade?

Senti fogo no estômago.

E tornei a checar os "achados" dos squid.

Meu Deus!

Não era o que havia imaginado.

O que foi?

Eliseu exigiu clareza, e fui claro, até onde julguei oportuno.

Boas e más notícias.

O engenheiro consultou a tela, mas não conseguiu decifrar a linguagem médica. "Traduzi" o resultado obtido pelos "nemos frios" em termos simples.

Não há tumor cerebral.

Eliseu recuperou a cor.

Essa é a boa notícia.

E a má?

Fui apontando e comentando o que o "Papai Noel" informava:

Não foi detectado um tumor, de fato, mas Ruth padece de uma mistura de cefaléias, uma mais insidiosa e insuportável que a outra: tem a que chamamos de "em salva", de aura e hemiplégica familiar.

Não entendo.

Até aí, seria relativamente normal. Muitas pessoas sofrem de cefaléia, mas...

Mas o quê?

A informação aponta para um alto risco de...

Hesitei de novo. O que eu ganhava dizendo a verdade? E me arrependi. Mas o engenheiro pressionou. Não tive alternativa. E contei-lhe o que os “nemos" haviam descoberto.

O relatório diz que existe risco de infarto cerebral.

Eliseu empalideceu. Ele sabia a que me referia. Os acidentes vasculares cerebrais consistem em uma diminuição da irrigação sanguínea que alimenta o cérebro. Como é sabido, o cérebro precisa de sangue para vi­ver. Com a irrigação sanguínea, chega oxigênio e glicose (pura energia). Pois bem, a interrupção da irrigação - mesmo que só por poucos minutos - provoca a morte de determinados neurônios, e, finalmente, quando se prolonga o acidente vascular cerebral, toda a rede neuronal naufraga, in­clusive as neuróglias (neurônios estruturais). Passado um tempo, as lesões são irreversíveis.

Ela pode morrer?

A voz do engenheiro falhou.

Sim, ou algo pior.

Pior?

O infarto cerebral provoca paralisia ou incapacidade.

Oh, Deus!

E me aventurei até o fundo do problema:

Segundo as estatísticas - de nosso tempo, esclareci -, 30 por cento das ví­timas de infarto cerebral falecem. Outros 30 por cento são seriamente afetados.

Paralisia?

É possível... E também pode perder a consciência ou sofrer trans­tornos cognitivos, inclusive alterações visuais.

Eu não quis seguir por esse caminho.

Tem certeza?

Tornei a checar a informação fornecida pelo "Papai Noel". Não me apressei. Não havia erro.[31]

E reafirmei o que havia dito. Eu me sentia mais ferido que ele. Eu a amava.

E o silêncio se instalou no "berço" durante um longo tempo.

Tentei consolá-lo e me consolar.

Sejamos otimistas - disse com pouca convicção. - As estatísticas dizem que o acidente vascular cerebral só ocorre em um por cento dos casos de enxaqueca.

Eliseu esboçou um péssimo sorriso. Eu não devia insultar sua inteligência.

Não disse nada, mas o simulacro de sorriso se apagou. E o silêncio dominou de novo o "berço".

Assim foi por mais de meia hora.

O que podíamos fazer?

Absolutamente nada. A Operação proibia qualquer tipo de intervenção que pudesse modificar o Destino de uma pessoa.

Bobagem!

Mas assim pensava este explorador naquele momento.

O engenheiro acabou perguntando o que ambos pensávamos fazia tempo.

Há solução?

Neguei com a cabeça.

Quando pode acontecer?

Ninguém sabe. Talvez nunca aconteça.

Foi outra mentira piedosa. Eu sabia que uma oclusão arterial dessa natureza, cedo ou tarde, acarretaria o infarto cerebral e, com ele, a morte, ou coisa pior.

Eu me enganei. Foi pior do que eu imaginava.

O "Papai Noel" poderia operar? - perguntou Eliseu.

O engenheiro era ágil e inteligente. Muito mais que este explorador.

Mas me neguei a alimentar a idéia. O "Papai Noel" poderia interferir e retificar a oclusão arterial, sem dúvida. Mas, como disse, fatalmente ancorado nas normas do Cavalo de Tróia, eu não quis contemplar essa hipótese.

Eu a amava, mas estava cego.

O Destino não é o que parece, nem age como acreditamos. Mas tra­tarei desse assunto em seu devido tempo.

Eliseu adivinhou meus pensamentos e insistiu:

Poderia ou não poderia intervir?

Estava sem saída.

A Operação proíbe.

Ou seja, poderia.

Não pude me safar.

Talvez... Mas é proibido.

Malditas normas! Você é um perfeito idiota!

Eu merecia, mas continuei firme.

E ele acrescentou algo que naquele momento não entendi em sua justa medida; algo especialmente grave:

Um dia você vai descobrir que as normas não são tudo. E mudou de assunto.

Por favor - suplicou -, pense no assunto. Eu lhe peço. É a vida dela. Você a ama?

Reconheci que sim, com a cabeça.

Então...

Agora era o engenheiro quem suplicava. Como é estranha a vida! Poucos dias antes, no bosque dos lenços, ele me ameaçou: "(...) e você vai suplicar". Eu estava tão aturdido que cometi outro erro.

Mas você não entende?

O engenheiro me olhou, atônito.

Uma intervenção assim exigiria levar Ruth ao "berço". Você está louco?

Eliseu sorriu, triunfante.

E tentei rapidamente destruir suas esperanças:

Isso não vai acontecer. Pelo menos não enquanto eu estiver no comando.

E Eliseu recordou algo que eu havia esquecido:

Faz tempo que você não está no comando, Major.

Mas logo retificou:

Não importa. Deixe estar.

Fez silêncio, mas logo falou de novo:

Eu proponho um trato.

Ouvi com desconfiança.

O "Papai Noel" opera Ruth, sob sua supervisão, claro, e eu esqueço o cilindro de aço.

E acrescentou, mentindo:

Quando Ruth estiver a salvo, você e eu voltamos.

Eu me neguei.

Está bem - arrematou. - Pense.

O instinto advertiu. Eliseu não estava sendo sincero. A posse do ci­lindro, para ele, era mais importante que Ruth. Mas eu só perceberia isso muito depois.

E o trato ficou em suspenso.

Preparei alguns medicamentos específicos que pudessem aliviar a dor da garota (especialmente naratriptano)[32] e tentei dormir um pouco. Estava esgotado, física e mentalmente.

Eliseu permaneceu em frente ao computador e elaborou, com o "Pa­pai Noel", um plano alternativo de ajuda a Ruth. Quando acordei, ele me mostrou o plano e dei minha aprovação. Tratava-se de uma terapia que não resolvia o problema principal, mas mitigava as dores. O computador central propunha repouso em um lugar escuro e sem barulho, massagens na nuca e no pescoço, compressas de água fria e quente (alternadamen­te nas áreas de massagem), sono de um determinado mínimo de horas, fuga de todo tipo de estresse, nada de queijos ou kaph fermentados, nem cítricos, nem doces, nem cogumelos, nem vinho tinto. Propunha que a mulher evitasse todo tipo de perfume, bem como a exposição à luz solar, e que se protegesse do vento e do clima abafado. O "Papai Noel" insistiu no estresse psicofisiológico. Ruth tinha que fugir dos problemas alheios. E pensei na Senhora. Eu não estava tão enganado quando deduzi que Maria podia ser uma das causas desencadeantes das cefaléias. Ruth era muito sensível e percebia o estado de extrema tristeza em que sua mãe caíra.

O computador acrescentou doses de betônica e de melissa, plantas que favorecem o relaxamento e a redução da dor.

Tive minhas dúvidas, mas, como disse, concordei. Não podiam cau­sar mais mal.

E foi assim que vimos chegar o amanhecer daquele 14 de março, quinta-feira. O orto solar, às 5 horas, 49 minutos e 24 segundos, reserva­va-nos outra surpresa.

E nos preparamos para abandonar a nave.

Eu continuava perplexo e profundamente triste.

Eliseu desceu a terra. Precisava esticar as pernas. Foi o que me disse.

 

Por que este explorador não permitia que o "Papai Noel" inter­viesse? A operação cirúrgica, com a ajuda dos "nemos quentes", era extremamente simples.

E surpreendi a mim mesmo imaginando os detalhes: era questão de levar Ruth o mais perto possível do Ravid. Depois, uma vez anestesiada, Eliseu e quem isto escreve podíamos levá-la ao "berço". A operação para corrigir a oclusão arterial em questão de minutos.

Depois, nós a devolveríamos a Nahum, sã e salva.

Mas não. Não eram essas as normas do Cavalo de Tróia. E eu conti­nuava no comando, independentemente do que Eliseu dissesse.

Não podíamos mudar o Destino.

E nessas estava, brigando comigo mesmo, quando o engenheiro apareceu.

Estava pálido.

Não disse nada, mas fez sinais com as mãos para que o seguisse. De­pois, levou o dedo indicador esquerdo aos lábios e pediu silêncio.

O que estava acontecendo?

Saltamos à terra. A claridade estava ganhando terreno.

Ele me conduziu diretamente à beira do precipício, na proa do "por­ta-aviões".

Então, mostrou-me o que eu já conhecia. E insistiu para que fizésse­mos silêncio.

Contemplei o triplo gancho de ferro, ainda ancorado nas rochas, e a corda oscilante sobre o abismo.

E, em voz baixa, comentou:

Não acreditei em você.

Eu nunca minto - repliquei no mesmo tom. - Esse gancho está aí há alguns dias.

Esse gancho?

Não compreendi a pergunta do engenheiro. Mas ele não tardou a esclarecer a questão:

Não é um gancho, são três.

Debrucei-me no penhasco; efetivamente, a um metro abaixo da "ânco­ra" que eu havia descoberto em 2 de março, encontrei mais dois ganchos idên­ticos ao primeiro, presos às rochas, com suas respectivas cordas.

Entendi, ou julguei entender.

Alguém - outros bandidos, talvez - tentou subir novamente por aquele lado do Ravid. E os ganchos ficaram presos na pedra, a pouca distância do cume.

Não os havíamos visto por conta da preocupação e da escuridão (nessa ordem).

Mas lá estavam...

Tornei a explicar o que acontecera no sábado, 2 de março, com o achado do cadáver do bucol, mas me dei conta de que estávamos em pé, à vista de qualquer um que pudesse estar à espreita. Então, entramos no "berço" e tentamos analisar a situação.

Não tínhamos muito o que avaliar.

A realidade, nua e crua, estava lá fora.

Os bandidos do Arbel haviam voltado. Pelo menos, tentaram.

Ao pé da escarpa, não se distinguia ninguém. Também era verdade que haviam se passado muitos dias desde o primeiro "achado". Doze, no total. Os bucoles, se é que foram jogados novamente ao vazio pelo "vento de furacão", tiveram tempo de recolher seus mortos ou feridos e de levá-los embora. Tínhamos que consultar Camar, o velho badawi da plantação que se erguia perto dali, no caminho para Migdal. Ele deveria saber.

Uma coisa estava clara: os novos ganchos foram usados entre 2 e 14 de março.

A situação me pareceu realmente séria.

Senti que estávamos sem saída.

Nesses 12 dias, a notícia da morte do bucol (ou dos bucoles) teria chegado, com toda certeza, aos ouvidos dos kittim, os romanos. Como disse, eles dispu­nham de espiões por todos os lados. Os próprios bandidos agiam como agentes.

Tremi.

Se os romanos enviassem patrulhas ao Ravid, o que poderíamos fazer? Se os mercenários eram jogados ao vazio, como aconteceu com um dos bandidos, ou se simplesmente não eram capazes de avançar pelo penhasco em consequência do cinturão gravitacional, o mais provável era que em pouco tempo uma unidade tática cercasse o monte. O que deveríamos fazer nesse caso? Aniquilar centenas de soldados? Isso não seria prudente. Tínhamos que encontrar uma alternativa.

A mais sensata era mudar de lugar. A nave teria que ser removida e aterrissada em outro lugar. Mas onde?

Eliseu fez silêncio. Naquele momento, não cheguei a compreender sua postura.

A vida pública do Mestre mal havia começado. Havia longos quatro anos pela frente, supondo que tudo corresse normalmente. Normalmente? Eu já não recordava o significado dessa palavra.

Seja como for, eu tinha que pensar em uma solução. Cedo ou tarde, do jeito que os acontecimentos se encadeavam, os kittim apareceriam no Ravid. Precisávamos nos antecipar.

O engenheiro levantou dois problemas. Ambos eram muito conhecidos por este explorador.

Em primeiro lugar, não tínhamos muito combustível sobrando. Àquela altura, dispúnhamos de um total de 7.124,68 quilos (mais a reser­va). Para a viagem de volta a Massada, precisávamos de 6.896 quilos (se tudo corresse bem). Isso dava um "excedente" (?) de 315 quilos, mais a reserva (intocável).[33]

Uma situação perigosa.

O segundo problema, já mencionado, era o possível novo assenta­mento do "berço". Sinceramente, eu não tinha idéia de onde situá-lo.

E mantive uma calma inexplicável. Eu resolveria aquilo. Não sabia como, mas resolveria.

Eliseu deu de ombros. Aquela atitude me deixou perplexo. Não parecia preocupado. Obviamente, ele tinha outros planos. Quando vou aprender?

A ordem foi reforçar o sistema de defesa.

Eliseu obedeceu sem replicar. Aquilo também me deixou confuso. Não era seu estilo. Nem sequer discutiu.

E o cinturão gravitacional foi situado no nível que o Cavalo de Tróia denominava "Mene-dois", com uma capacidade de impenetrabilidade de 550 quilômetros por hora. Em outras palavras: ficava praticamente impossível de atravessar o muro. A velocidade de "expulsão" (bastando pisar na região sen­sível) foi elevada para 550 quilômetros por hora. Ninguém, naquele tempo, estava capacitado para derrubar esse "muro". A segurança do módulo con­tinuava garantida, mas, como disse, tamanha potência era uma faca de dois gumes. Se os afetados fossem os kittim, em questão de cinco horas a unidade tática mais próxima - Nahum ou Tiberíades - apareceria por ali.[34]

Eu também dei de ombros. Nesse momento, pensei no "princípio Ômega", aprendido com o Mestre: deixar que se fizesse a vontade de Abba.

E fiz isso. Deixei o assunto nas mãos da Providência, ou como quer que se chame.

O engenheiro ajustou a nova intensidade do sistema defensivo e quem isto escreve, corrigindo erros anteriores, pulverizou seu corpo com a "pele de serpente". Não seria ferido novamente.

E chegamos a um segundo acordo (?).

Dadas as circunstâncias, Eliseu se comprometeu a entrar no "ber­ço" uma vez por semana. Terminado seu trabalho no estaleiro, visitaria o Ravid e me informaria sobre a situação. Eu iria para Beit Ids - o engenheiro exigiu isso - e cuidaria da busca e do resgate do cilindro de aço, "vital para a Operação", segundo suas palavras.

Não quis discutir. Não fazia sentido. Aceitei, mas eu sabia que tardaria muito a pisar naquela região. O cilindro era difícil de localizar. Mas, como disse, eu não tinha a menor vontade de polemizar, menos ainda naquele momento. Ruth e o "berço" ocupavam todo o meu pensamento, ou quase.

Eliseu se mostrou satisfeito e insistiu:

Depois, voltaremos a 1973.

Naturalmente, o Destino tinha outros planos.

Descemos do Ravid e, conforme havíamos planejado, paramos na plantação onde residia Camar, o árabe.

Ele pareceu receoso por tornar a me ver, ainda por cima na companhia de outro estrangeiro.

Fui diretamente ao ponto. Mas o badawi, astuto, segurou a mão de prata que levava no pescoço e continuou nos percorrendo dos pés à ca­beça, com seus olhinhos de hiena. Disse não saber nada de nada. Nem sequer recordava o incidente com o bucol morto. Mas a "amnésia" tinha solução. Agitei algumas moedas nas mãos e Camar "providencialmente" recuperou a memória.

Agora recordo...

Pegou uma jarra e, apesar da hora (talvez fosse a quinta: 11 da manhã . ofereceu raki, um mosto fermentado e misturado com iogurte.

Os bucoles voltaram.

Quando?

No dia seguinte.

Isso nos situava no domingo, 3 de março.

O que aconteceu?

Camar bebeu uma segunda dose de raki e começou a perder a memória.

Esfregou os dedos indicador e polegar da mão direita, simbolizando dinheiro, e exigiu mais moedas.

Eliseu lhe entregou mais.

Então, levaram o morto.

Quem eram?

O arab deu de ombros. E acrescentou:

"Bucoles". Não sei os nomes. Ninguém os conhece.

Estava mentindo.

E prosseguiu:

Olhavam para o alto do Ravid e gritavam entre si.

Gritavam o quê?

Vingança! Pediam vingança.

Por quê?

Não sei.

Camar continuava mentindo.

Depois voltaram. Foi durante a noite.

Quando?

Não me recordo. Talvez nesse mesmo dia.

Segundo Camar, a volta dos bandidos ocorreu no domingo, 3 de março.

Subiram com cordas e ganchos, mas os "diabos" tornaram a lançá-los ao vazio.

Ficamos em silêncio. Eu não estava tão enganado assim em minhas apreciações.

Resultado: três bucoles mortos e dois muito feridos. O resto do pes­soal carregou os cadáveres e os companheiros feridos e se perdeu nas ca­vernas do Arbel.

Juraram voltar e passar na faca esses malditos diabos.

Diabos? - interveio Eliseu sem poder se conter. - Que diabos? Sugeri calma. Tentei disfarçar o desmedido interesse de meu compa­nheiro. Camar, esperto como uma raposa, percebeu. Mas disfarçou:

Ninguém sabe. Dizem que são dois, e que vivem lá no alto. E acrescentou com um sorriso malévolo:

Sopram e jogam os intrusos pelos despenhadeiros.

Sopram?

Todos os diabos de prata sopram. Fiquei atônito. Eu não conhecia essa lenda.

Por que de prata?

Vestem-se assim.

Não compreendo.

O badawi me olhou com estranheza. E perguntou, por sua vez:

Não haveis ouvido falar dos diabos de prata? Eliseu e eu negamos com a cabeça.

Camar serviu outra rodada de raki e esclareceu algo que me sobressaltou.

Eles vão e vêm. Voam. Transformam-se em luzes. Às vezes descem no alto do Ravid, e em outros montes, e caminham. São altos. Vestem-se como os persas, com trajes brilhantes. São diabos de prata.

"Vestir-se como os persas" queria dizer que usavam calças.

E recordei a imagem das duas figuras que corriam para o trem de pouso do "berço". Usavam uma espécie de macacão, como o dos pilotos.

Ao que parecia, eu não era o primeiro a ver essas estranhas criaturas. E fiquei em silêncio.

Agora podia intuir quem eram os "diabos de prata".

Voltamos a Nahum sem novidades.

Eliseu ficou na "casa das flores". No Ravid, eu lhe ensinei a admi­nistrar a medicação. As ordens eram claras e precisas: se ela tivesse uma nova crise, tinha que me informar de imediato. Não importava em que momento. Eu iria.

E quem isto escreve seguiu para Saidan. Gostaria de ter ficado ao lado de minha amada, mas eu não teria resistido.

Passei o resto daquela quinta-feira, 14 de março, no pombal. Precisava ficar sozinho. Estava mais afetado do que eu mesmo teria imaginado. Ruth estava em permanente perigo de morte, ou de invalidez, e eu não era capaz de resolver seu problema, mesmo sabendo como. Isso acabou comigo.

Não queria ver ninguém.

Passei a noite em claro, tentando chegar a uma solução. Podia levá-la ao Ravid para que o "Papai Noel" cuidasse de tudo. Podia? Sim, mas não devia.

E algo dentro de mim foi se impondo.

Podia, mas não devia.

Naquele momento eu estava enganado. O Destino das pessoas não depende do acaso, nem de nossas atuações ou omissões. Essa é a crença geral, mas não é verdade. O Destino dispõe de seus próprios mecanismos e nada é capaz de alterar o que está traçado. Mas essas elucubrações não devem me afastar dos fatos.

A vida prosseguiu, e de que forma...

No dia seguinte, ao chegar ao estaleiro dos Zebedeu, no flanco oriental de Nahum, tudo continuou igual. Estranhei a atitude de Tiago, irmão de Ruth. Não parecia preocupado. Entendi, em parte. Ele não co­nhecia o verdadeiro alcance do problema. Jesus também não deu mos­tras de preocupação. Trabalhou alegre, como todo dia. Brincou com Zal e conversou com os companheiros na hora do almoço. Mas eu sabia que Ele sabia.

Com relação à Senhora, segundo minhas informações, sua tristeza não mudou.

E quem isto escreve aprendeu a silenciar e a não se intrometer. Meu trabalho era observar e anotar. Assim havia sido até aquele momento, e assim devia continuar. Nem sempre consegui.

Ruth superou a crise, aparentemente, e se recuperou. As notícias for­necidas pelo engenheiro eram alentadoras. Mas a ameaça continuava lá.

Fiquei tentado a visitá-la. Tinha a desculpa perfeita: sua "doença"; mas consegui me conter. Não era bom jogar mais lenha na fogueira (prin­cipalmente na que ardia em meu coração). Eu precisava aprender a viver na companhia daquele amor impossível. Como disse, cedo ou tarde eu voltaria ao meu "agora". Ela nunca morreria, mas desapareceria.

Um daqueles dias, ao chegar ao estaleiro, Eliseu me fez uma surpresa. O engenheiro decidiu devolver os antioxidantes. A ingestão do "vinho prodigioso" ajudara na luta contra os radicais livres, mas fazia tempo que havia acabado. Tomei o gesto como uma tentativa de aproximação. Não foi muito, mas foi alguma coisa. E a esperança bateu de novo à porta. Po­bre ingênuo! Não soube "ler" nas entrelinhas.

Eliseu, quando cruzava com ele no trabalho ou nas ruas de Nahum, perguntava sempre a mesma coisa:

Quando vai entregá-lo?

E eu replicava no mais puro estilo de Michelangelo:

Quando o entregar!

Evidentemente, como disse, eu não tinha intenção de ir à região de Beit Ids. O cilindro estava simplesmente perdido.

O resto de março - até a fatídica sexta-feira, 29 - correu em uma discreta paz. Só a Senhora foi a nota discordante. Não conseguia superar o abatimento.

O Mestre, se não estava mal informado, não visitou a "casa das flores" nem uma só vez. Insisto: Ele sabia.

Eu me recuperei dos ferimentos e assisti com regularidade às "aulas" do Filho do Homem. Jesus continuou falando de Abba e do novo "reino", da realidade espiritual à qual estávamos "condenados" (felizmente conde­nados), mas os "sete" não compreendiam. Parecia um trabalho sem futuro.

A maior parte das "aulas", sempre no mesmo lugar e na mesma hora, acabava em discussão entre os discípulos. "Esse Deus Pai não é vendável." Não deixavam de ter razão. Morto Jesus, a igreja primitiva continuou de­fendendo o mesmo princípio: "Aquela mensagem não era vendável. Os judeus não aceitariam um Yaveh assim".

Os roncos de Simão Pedro punham um ponto final à polêmica, in­defectivelmente.

Eu assistia a tudo absorto, encantado com a paciência do Galileu.

Em suas mãos, estava o cálice de metal. Ele o acariciava e o limpava, concentrado. Eu precisava pegar a taça e examiná-la. Esse pensamento me foi dominando. Mas, como? Estava claro que não o podia pedir empres­ado. Ou poderia?

E nesses dias vi outros "convidados" chegarem ao lago.

Primeiro foram as cegonhas brancas - majestosas -, às centenas. Nunca havia visto tantas. Vinham do norte procurando o calor do mar de Tiberíades. A chasidah, ou "ave piedosa", agrupava-se nas margens, principalmente na selva da primeira desembocadura do rio Jordão. A Ciconia ciconia era uma bênção. Em questão de dias, acabavam com todo tipo de ofídio e outros répteis. Depois, chegaram suas irmãs, as cegonhas negras, mais tímidas e menos variadas. Todas eram bem-vindas para os pescadores e caçadores. "Traziam vento em suas asas", como escrevia o profeta Zacarias (5, 9) e "boa sorte no bico", segundo o dito popular.

Juntamente com as cegonhas chegou ao lago o maarabit, o familiar vento do oeste. Era sempre pontual. Chegava ao yam ao meio-dia e não parava até o pôr do sol. Chegava do Mediterrâneo, seguindo o vale de Bet Netofa e o desfiladeiro de Arbel. Parecia esgotado; soprava a uns 20 quilômentros por hora. E lá ficava, como mais um cidadão, até o mês de tishri (setembro-outubro). Esgotado? Não é verdade. Mais de uma vez o vi enfurecido, provocando tempestades.[35]

Quando o maarabit se irritava, o céu do yam ficava violeta. E os ho­mens, curiosamente, carregavam-se de vinganças.

Foi em um desses dias de março, ao acordar, que o vi pela primeira vez. Não recordo o dia.

Ele não se assustou.

E permaneceu na janela durante alguns minutos.

Seu peito era branco e suas costas, azuis. Cantava deliciosamente.

As pessoas de Saidan confundiam esse pássaro com o martim-pescador.

Ele me alegrou durante o mês de março. Ao alvorecer, vindo não se sabe de onde, chegava à janela do pombal e me acordava com seus fortes trinados.

Acabamos ficando amigos.

Ao anoitecer, eu deixava umas migalhas de keratia na janela, e, ao amanhecer, Yeda comia todo o "chocolate".

Chamei-o de Yeda, por conta da companhia.[36]

Ele foi uma das alegrias deste explorador.

E chegou também um intenso cheiro de peixe, típico do yam nos meses de março e abril. Nessa época, como acho que já mencionei, o mar de Tiberíades perdia a transparência e ficava cor de canela. O fenômeno tinha origem na proliferação das algas chamadas Peridinium westii, um exemplar esférico protozoário do grupo dos pirofitos ("brilhantes"). Em janeiro, multiplicava-se com muita rapidez, chegando a 3.300 centímetros cúbicos nos citados meses de março e abril. E o yam se transformava em uma "sopeira"; uma "sopa" marrom, densa, com penetrante cheiro de pei­xe (mais exatamente, de marisco). Eu adorava aquele perfume.

Com o amanhecer, a peridinium subia à superfície e ocupava quatro metros de espessura. Ao entardecer, voltava às profundezas, a uns sete metros. Em junho, com o aumento da temperatura, a peridinium morria, e o yam recuperava a transparência.

Com o aparecimento dessas algas, o lago fervia de vida. Era o sinal. E os habitantes do yam viam milhares de aves chegando. A peridinium atraía os cardumes de tilápia, e elas, por sua vez, milhares de gaivotas e garças púr­puras, entre outras espécies. As odiadas "gaivotas dos lagos" eram as mais variadas. Calculei mais de 10 mil. Estavam em todas as partes, assim como suas irmãs, as "negras" e as "prateadas". Acompanhavam os barcos, sujavam tudo, entravam nas casas e roubavam tudo que encontravam. Eram escan­dalosas e comiam carniça. Eu as odiava, assim como Zal.

As garças, porém, comportavam-se discretamente. Ficavam nas margens do Jordão e lá pescavam, imóveis feito estátuas. Os pescadores gostavam delas e sempre as contemplavam. Quando uma garça inclinava a cabeça sobre o peito, era infalível: logo chegava uma tempestade. Eram o melhor aviso.

Muitos habitantes do yam praticavam o "esporte" caça à gaivota. Usavam todo tipo de armadilhas, redes e até veneno. Mas elas também tinham defensores. Eles achavam que as gaivotas eram a reencarnação dos pescadores. Mais de uma vez, a caça às gaivotas acabava em pauladas e pedradas entre os cidadãos.

E foi em um daqueles sossegados dias do mês de nisan (março-abril) do ano 26 de nossa era que aconteceu de novo.

Caí de novo na tentação.

Eu explico.

Estava eu nesse entardecer apoiado na janela do pombal, contemplando o Mestre. Ele se lavava nas águas do yam, como todo dia. E, de repente, fui assaltado por um pensamento insistente.

'Por que não dá uma olhada no quarto d'Ele?"

O pombal do Mestre ficava parede com parede com o meu. Só tinha que atravessar o breve corredor que os unia, empurrar a porta e olhar. Não precisava tocar em nada. Ele não notaria. Ou notaria?

O pensamento se transformou em algo obsessivo.

O que estava acontecendo comigo?

Aquilo não era certo. Eu não devia entrar no quarto de ninguém.

O Galileu continuava se banhando nas mornas águas do lago.

De início, resisti.

"Não faria isso. De novo não."

E recordei o ocorrido em Beit Ids. Desamarrara o saco de viagem do Mestre com as mesmas intenções: xeretar.

Naquela ocasião, aguentara. E Ele, pouco depois, como se houvesse adivinhado meus pensamentos, mostrara-me o conteúdo da mochila.

"Não devo..."

Mas o maldito pensamento foi se enroscando em quem isto escreve e começou a me sufocar.

"Ninguém precisa saber."

O Galileu começou a se ensaboar. Eu tinha tempo.

"Só uma olhada..."

Engoli em seco e abandonei a janela.

Era uma força superior a mim. Ela me puxava. Ela me obrigava.

Saí do quarto. Não vi ninguém no pátio dos fundos. Era o momento propício.

E passei pelo corredor, sorrateiro como um furão (era justamente o que eu era).

Parei em frente à porta do quarto e voltei o olhar para o pátio a céu aberto. Eu estava sozinho.

Empurrei a porta, que opôs certa resistência. As dobradiças (traido­ras) rangeram, com razão.

Acho que empalideci.

Esperei alguns segundos.

O silêncio voltou e aquele pensamento bastardo continuou me pressionando.

"Só uma olhada..."

Qual era o objetivo daquela intromissão? Eu não sabia, mas o Desti­no já tinha tudo calculado.

Jesus jamais fechava as portas. Da mesma maneira que nunca o vi se olhar em espelho, também não se preocupava em trancar seus aposentos. Nem ali, nem em nenhum outro lugar.

Era o ser mais crédulo que conheci.

Senti meu coração pulsando alto.

Aquilo não era certo. Aquele não era o explorador prudente e discre­to que eu julgava conhecer.

Mas não dei ouvidos ao meu lado bom e entrei no quarto.

Fechei a porta, e as dobradiças ergueram novamente a voz, alertando a todos. Traidoras! Mas ninguém notou.

O quarto era quase igual ao meu. Tratava-se de outro pombal, um pouco mais amplo, com as paredes revestidas de gesso e uma única janela, que dava para o pátio dos fundos. Eu tinha uma vista melhor.

A cama era idêntica, e a arca de madeira também.

O tapete era diferente. O do quarto do Galileu, trabalhado em couro de vaca, era suave ao tato.

Meu coração, a pleno rendimento, continuava avisando.

"Isto não é correto..."

A limpeza e a ordem chamaram minha atenção.

Atrás da porta, em ganchos de ferro, vi a túnica vermelha, a capa habitual (cor de vinho) e o saco de viagem, praticamente vazio.

A cama estava feita com esmero.

E lá surgiu a primeira surpresa. O travesseiro não era como o meu, ou como o de todos. Tratava-se de uma pedra cilíndrica, verde, perfeita­mente polida, com uma parte rebaixada, onde se supunha que tinha que descansar a cabeça. Não sabia que rocha era.

Eu me aproximei e toquei o "travesseiro", incrédulo. Não sabia desse peculiar costume do Galileu. Jamais havia visto o cilindro em questão. Era comprido e estreito, de uns 40 centímetros de comprimento. Devia pesar cerca de cinco quilos.

E fiquei pensativo.

Que travesseiro mais estranho!

Em cima da arca, estava boa parte dos utensílios de asseio que eu havia visto na caverna de Beit Ids.[37] Nada novo. Em um cestinho vi o fa­miliar frasco de vidro que chamavam de foliatum, que continha o kimah, o apreciado perfume que Ele usava diariamente, sempre na barba.[38]

Bem perto, também sobre a arca, estava a bolsa azul onde guardava o misterioso cálice de metal. Não me atrevi a abri-la.

Meu coração continuava agitado.

Tinha que voltar ao meu quarto.

Ele podia aparecer a qualquer momento. E, se entrasse, o que faria eu? Principalmente, o que diria?

Já ia abandonar o recinto quando reparei em um pequeno vaso de argila.

Descansava em uma ponta da arca.

Eu me aproximei com curiosidade.

Que estranho!

Jesus não era uma pessoa que se entretinha cortando flores. Eu, pelo menos, nunca o vi fazer isso.

Da boca do vaso me olhava uma rosa vermelha, bem fechada. Isso significava que não havia sido cortada havia muito tempo. Observei-a, perplexo.

Não era uma vered, como as que floresciam no vale do Jordão ou nos jardins de Jericó, cantadas pelo Eclesiastes. Era mais bonita.

O assombroso é que as pétalas externas (só as externas) eram violeta. Uma rosa vermelha e violeta ao mesmo tempo? Não me lembrava de ter estudado nada parecido.

Tinha certa semelhança com as que chamavam de "rosas da Fenícia", mas não era a mesma.

O vermelho era muito sensual, como o das "rosas de Castela". Olhamo-nos uma última vez, e nisso meu coração quase parou.

Ouvi passos. Alguém estava subindo pelos degraus colados à parede dos estábulos. Dirigia-se aos pombais. Era o único acesso.

Pensei no Mestre.

Que faria?

Tentei manter a calma. Impossível.

E meu coração saiu em disparada.

Pensei em pular pela janela.

Negativo.

Quem chegasse ia me ver de imediato.

Percorri o quarto com o olhar e com ansiedade.

Onde podia me esconder?

Debaixo da cama?

Podia ser...

E comecei a transpirar, de puro terror.

Se fosse Jesus, eu lhe diria... Não, isso era ridículo... Então...

Negativo. Negativo. Negativo.

E os passos se ouviram no corredor de madeira. As tábuas rangeram. Só me ocorreu sentar-me na cama.

Levantei-me de novo e peguei a bolsa azul. Abri-a e tirei o cálice.

Essa seria a desculpa (?).

"Lamento, Senhor - ensaiei. - Queria ver o cálice de novo."

Diria isso.

Imagino que estava pálido. A taça tremia em minhas mãos. Imagino que estava tão assustada quanto este inepto explorador.

Tremia o cálice ou tremia quem isto escreve? Não lembro. Talvez ambos.

Mas os passos se dirigiram ao meu quarto.

Meu coração voltou, perplexo.

Ouvi a porta. Depois, nada.

Continuava suando.

Não era o Mestre.

Tentei ouvir. Quem era? Talvez Salomé? Se me descobrisse, não teria desculpa.

Senti as agitadas batidas do meu coração. O coitado não ganhava para tanto susto.

Segundos depois tornei a ouvir a porta ranger. E os passos se afasta­ram com pressa. Senti um profundo alívio quando ouvi a pessoa descer os degraus.

Escapei por pouco.

Mas cometi um novo erro.

Fechei a porta e, angustiado, após me certificar de que ninguém me observava, fui para meu pombal.

"Aquela situação não devia se repetir", disse a mim mesmo (ou me­lhor, gritei para mim). Estava brincando com fogo, desnecessariamente.

Corri para a janela.

Jesus havia recolhido suas coisas e caminhava devagar para as escadas que ligavam o casarão e a praia.

Respirei.

Mas, de repente, a imagem da bolsa azul me veio à mente.

Merda!

Deixei-a em cima da cama, e não sobre a arca.

Armei-me de coragem e voltei ao quarto do Galileu.

De fato, lá estava a bendita bolsa, adormecida sobre a cama.

Devolvi-a ao seu lugar e naquele momento tornei a hesitar: onde a havia encontrado? À direita ou à esquerda da arca?

Não havia tempo.

E lá ficou, em uma ponta, perto da não menos perplexa rosa.

Fiz o caminho de volta e me tranquei de novo em meu quarto. Pouco depois, ouvi os passos do Filho do Homem.

Um nó na garganta me obrigava a respirar agitadamente.

"Nunca mais..."

E jurei pelo mais sagrado. Jurei por Ruth.

Minha querida Ma’ch!

E outro pensamento, não menos cruel, assaltou minha mente:

"Será que o Mestre descobriria que alguém entrara em seu quarto?"

Eu me neguei a aceitar aquela idéia. Só havia tocado a bolsa azul.

"Nunca mais..."

Eu estava tão indignado comigo mesmo e tão assustado que nem me preocupei com o recente visitante anônimo. Não inspecionei o quarto. Quem havia entrado, e por quê? E pouco depois, necessitado de ar e de paz, desci à praia e caminhei sem rumo.

"Nunca mais..."

As gaivotas pagaram por minha inépcia. E durante mais de uma hora fiquei atirando pedras nelas, com toda minha raiva.

Não jantei.

Não tive coragem de aparecer na "terceira casa" e assistir à habitual "aula" do Filho do Homem.

E lá permaneci, junto às infantis e tímidas ondas do yam.

Eu sei. As estrelas debocharam deste pobre e enxerido explorador.

Houve momentos bons e maus na Operação. Aquele foi especial­mente tenso.

Já bem avançada a noite, um pouco mais sereno, voltei para o pom­bal. O velho casarão dormia em silêncio. Todos voltaram a suas casas e a seus sonhos.

 

E amanheceu naquela sexta-feira, 29 de nisan (março-abril) do ano 26 de nossa era. Os relógios do "berço" apontaram o orto solar às 5 horas, 29 minutos e 35 segundos de um suposto TU.

29 de março...

Uma data para o esquecimento. Como é verdade que uma desgraça nunca vem sozinha...

Yeda, o falso martim-pescador, não apareceu naquela manhã na ja­nela do pombal. Foi um presságio.

Aparentemente, tudo correu normalmente. O trabalho no estaleiro se desenrolou sem incidentes. Supostamente, Jesus não se deu conta de meu atrevimento ao visitar seu quarto. Supostamente...

À décima hora (quatro da tarde), quando o dia já se dirigia para o pôr do sol, percebi certa agitação dos trabalhadores. Alguns abandona­ram suas tarefas e começaram a gritar. Eu estava, naquele momento, no galpão dos vernizes, atarefado na mistura de tintas. Precisei de alguns se­gundos para perceber aquele horror.

Alertado pelos gritos, acabei saindo do galpão e vi, atônito, uma coluna de fumaça que se erguia no centro de Nahum.

Era uma fumaça preta e densa que caracolava no ar.

Pouco depois, o maarabit, o vento do oeste, começou a empurrar a coluna. As cinzas não tardaram a varrer o estaleiro. Contemplei-as, des­concertado. Eram cinzentas. Pareciam restos de madeira.

Então, vimos os trabalhadores do cais correrem em direção à aldeia.

Trocamos olhares, sem compreender.

O que estava acontecendo?

E o trabalho ficou paralisado.

Ouvimos gritos. Eram distantes. Vinham do centro da aldeia.

Tive um pressentimento.

Jesus também parou de martelar. E Zal ficou ao lado do Mestre, com a vista fixa na coluna de fumaça.

Foram segundos intermináveis.

Ninguém se decidia. Ninguém sabia o que fazer.

Por fim, Yu tomou a iniciativa e mandou dois operários para se informar.

Olhei para Eliseu, e o engenheiro me devolveu o olhar. Ambos - ago­ra eu sei - pensamos a mesma coisa.

E esperamos com inquietude.

Talvez tenhamos perdido segundos preciosos. Quem sabe...

O Destino tinha tudo sob controle.

Mesmo que houvéssemos corrido para a coluna de fumaça preta, te­ria sido um esforço inútil. Mas vou tentar relatar ordenadamente.

Logo voltaram.

Meu coração deu um salto: Kesil, o serviçal, chegou com os operários.

O pessoal se aglomerou perto dos sufocados enviados. Yu teve que por ordem no alvoroço.

Eliseu e quem isto escreve fomos para cima de Kesil.

O que estava acontecendo? O que o criado tinha a ver com tudo aquilo? Por que estava lá?

Kesil arfava e chorava. Tinha dificuldade de se expressar. Seu rosto estava coberto de fuligem.

O engenheiro tentou acalmá-lo. Deu-lhe água. Kesil não conseguia articular palavra. Gemia e apontava para Nahum.

Ouvimos comentários. Os trabalhadores enviados por Yu falavam de um grande fogo, um incêndio. E julguei ouvir que o desastre estava localizado na insula de Taqa.

Eliseu e eu tornamos a nos olhar, desconcertados.

Taqa era nosso senhorio, o velho judeu que administrava a insula onde havíamos alugado os quartos.

Nossa insula estava em chamas?

O engenheiro urgiu Kesil, e este, como pôde, disse que sim: "o edifí­cio estava pegando fogo".

Empalidecemos.

E acrescentou, soluçando:

- Todos fugiram. Tentei salvar nossas coisas, mas...

A angústia o derrotou.

Eliseu e eu tivemos a mesma reação.

Não havia tempo a perder.

Saltamos o fosso e corremos pelo cais, em direção ao edifício da insula.

Pelo caminho, pensei nos papiros, nos amphitheatrica. Kesil os es­condera debaixo do triplo beliche de madeira, no quarto "39".

E aquele pressentimento voltou.

É curioso. Ambos corríamos, mas nossos impulsos eram diferentes.

E ao chegar às proximidades do edifício, no cardo maximus (rua prin­cipal), a multidão nos bloqueou. Aquilo estava um caos. Os moradores corriam, gritavam e se atropelavam; todo mundo gemia e se lamentava.

A insula ardia, sim, mas não como diziam. Grandes labaredas saíam pelas janelas do terceiro e último andar, bem como pelo terraço. E uma fumaça densa e preta fugia também com o fogo. As ruas e as casas vizinhas estavam cobertas com aquela cinza carregada pelo maarabit. O vento, ino­portuno, avivava o fogo. Eu o ouvia crepitar e devorar o madeirame. Como se pode recordar, a parte superior do edifício estava em obras. Quando alu­gamos os quartos ("39", "40" e "41"), a fachada estava coberta por andaimes, trançados com tábuas e varas.[39] Tudo era pasto das chamas.

Fiquei paralisado.

O fogo, em grandes línguas, saía pelas janelas do "41", o quarto de esquina, de onde vigiávamos o "olho do ciclope" e a "casa das flores". Essa última, um pouco mais ao sul, estava fora do alcance do incêndio.

E Eliseu, como pôde, abriu caminho a cotoveladas. Eu o segui, sem pensar.

A multidão fugia em todas as direções. Vi pessoas carregando todo tipo de coisas, fugindo dos imóveis próximos.

Não havia ordem nem conserto.

Nahum dispunha de uma unidade de algo similar ao corpo de bom­beiros, criada quatro anos antes por ordem do imperador Augusto. A base não ficava muito longe, mas ainda não haviam dado sinal de vida.

Caí algumas vezes, empurrado pelas pessoas aterrorizadas, e também pelo desespero. O fogo ameaçava as casas próximas, e as pessoas tentavam salvar o pouco que tinham. O chão estava coberto de cerâmica quebrada, roupas, galinhas pisoteadas, móveis destruídos e talhas vertidas.

Meu companheiro conseguiu atravessar a muralha humana e se colocar na primeira fila. Senti o calor do incêndio. Ao pé do edifício, a chuva de cinzas e fagulhas era contínua.

Vi duas ou três famílias saindo da insula. Habitavam também o an­dar superior. Uma delas era a do jovem Minjá, o epiléptico que eu conhe­cera nos bosques da alta Galileia. Morava no "46".

Eliseu perguntou se restava alguém no edifício.

A família de Minjá não soube responder. E fugiram.

Naquele momento de aturdimento não captei as intenções do engenheiro.

O fogo, incontrolável, avançava. Não encontrava oposição, ao contrário.

Algumas pessoas, mais corajosas, haviam organizado uma corrente humana e passavam de um a outro todos os tipos de baldes e recipientes. Mas a água acabava se derramando pelo caminho. Além de tudo, ao chegar ao pé do imóvel, ninguém sabia o que fazer com os baldes. Jogavam a água na porta de entrada da insula, quando, na realidade, as chamas estavam no alto.

Como disse, um caos.

Taqa, o senhorio, também estava na linha de frente. Gritava, chorava e arrancava os cabelos. Chutava o chão com raiva e agitava uma bolsa com moedas, estimulando as pessoas a abafar o fogo. Ninguém via nem ouvia. E ele gritava sem parar:

- É a ruína, é a ruína!

Não era só o "41" que ardia sem piedade. As chamas empurravam umas às outras e tomaram os demais quartos. O "40" e, o "39" e os do resto do corredor do terceiro andar também haviam sucumbido. Adeus ao meu "tesouro"! Dei-o por perdido. Não me enganei. Os papiros nos quais eu havia conseguido reunir informação sobre as viagens secretas do Mestre (de março do ano 22 a julho do ano 25) transformaram-se em cinza.

E uma fumaça preta, não menos agressiva, apareceu no térreo da insula. O pessoal da corrente humana retrocedeu.

Ninguém se atrevia a entrar no edifício. Era perigoso.

E os vizinhos das casas ao lado, alertados, começaram a jogar fardos, móveis e até crianças pelas janelas da insula. Outros colocaram colchões no chão e recolhiam as crianças.

O calor ficou mais intenso. Quase sufocante.

E nisso, também a cotoveladas e empurrões, vimos chegar Kesil e Gozo, a prostituta que morava no quarto "44", a mãe dos trigêmeos, os meninos "lua".

Kesil, aterrorizado, não conseguia falar.

Gozo estava pálida. A maquiagem corria por seu rosto.

A pobre mulher também não conseguia se expressar. A notícia do incêndio a surpreendera no cais, em pleno "trabalho".

Como o resto, não acreditava no que via.

E, de repente, explodiu:

- Meus filhos!

Eliseu e eu compreendemos.

Oh, Deus!

Perguntei pelos trigêmeos, mas Gozo não soube responder. Ela os deixara no "44", como todos os dias. Os albinos, como já expliquei em outro momento, sofriam de fotofobia (intolerância à luz), talvez por ques­tões oculares ou neurológicas. A mãe era uma prostituta. Emigrara da ilha de Melita. Estava havia pouco tempo em Nahum. Durante o dia tra­balhava no cais, e os meninos "lua" ficavam sozinhos no quarto da insula. Eliseu costumava lhes fazer companhia à noite. A fotofobia os obrigava a permanecer fechados, pelo menos durante o dia. Por isso os chamavam de meninos "lua".

Tivemos o mesmo pensamento, mas meu irmão se adiantou.

Rasgou a barra de sua túnica, introduziu o pano em um dos baldes e encharcou-o de água.

Tentei gritar e convencê-lo de que o que pretendia era uma loucura.

Não me ouviu.

E quem isto escreve ficou com a palavra na boca:

- Não podemos! É proibido!

Sim, eu realmente era um perfeito estúpido.

E embora a Operação Cavalo de Tróia proibisse uma ação dessa na­tureza, este explorador acabou contagiado, e imitei Eliseu.

Rasguei a túnica, encharquei-a na água e corri para a entrada da insula.

Não sei se Kesil gritou alguma coisa.

Alcancei meu companheiro e, no meio da fumaça e dos reflexos das chamas, subimos para o terceiro andar. Lá, precisamos cobrir o rosto com os lenços úmidos. A fumaça era asfixiante. E o calor era insuportável.

Tentei distinguir alguma coisa. O corredor do terceiro andar era puro fogo. As chamas, altas como torres, viram-nos. E se apressaram a nos devorar. Corriam (voavam) para nós.

Não havia ninguém lá. Quem poderia sobreviver naquele inferno?

E, de repente, ouvimos gritos. Eram gritos de terror.

Eliseu clamou:

- As crianças! As crianças estão ali!

O sangue gelou em meu coração. Como era possível? Aquilo era um mar de fogo. Tudo ardia. Tinha cheiro de madeira e tinta derretidas. A fumaça entrava pelos poros.

Não sei de onde ele tirou forças, mas o engenheiro correu para as chamas.

Eu também não pensei duas vezes, e fui atrás dele.

O que estávamos fazendo? Seria nosso fim? Não sei... Naquele mo­mento, eu não estava pensando.

E os gritos pararam.

Eliseu parou em frente ao "44" e, cercado pelo fogo, começou a chu­tar o que restava da porta, que saltou em pedaços.

Nisso, antes que pudéssemos reagir, outra língua de fogo saiu do quarto e caiu sobre meu companheiro, derrubando-o.

Também não sei como fiz aquilo. Puxei-o, arrastei-o com todas as minhas forças e cheguei às escadas. Lá, tirei a túnica e bati com ela no corpo do engenheiro, apagando as chamas que haviam tomado sua roupa.

Kesil apareceu. Segurava um balde d’água. Esvaziou-o em Eliseu e acabou de abafar o fogo.

Fugimos atropeladamente. Kesil e eu com ataque de tosse. Achei que fosse morrer.

Chegamos ao cardo maximus e caímos no chão, exaustos.

Mas o pior estava por vir, pelo menos para este explorador.

A fumaça continuava saindo aos borbotões tanto pelas janelas e pela rachada quanto pela porta da insula. Não dava trégua.

Eliseu estava meio inconsciente. Kesil, com lágrimas nos olhos, lim­pou seu rosto e deu-lhe água.

Logo se recuperou. E tornou a perguntar pelos trigêmeos.

Fiquei em silêncio.

O engenheiro entendeu que haviam morrido. Nenhum de nós três conseguia falar. Os meninos "lua" pereceram, calcinados, e nós não pude­mos fazer nada para ajudá-los. Chegamos tarde. Foi o Destino deles.

E nisso, no meio da multidão que contemplava o incêndio à distân­cia, destacou-se alguém.

Levantei-me, nervoso.

Era Ruth!

Atrás dela surgiu Tiago, seu irmão.

Ruth correu para nós.

Corria com os braços abertos.

Senti meu coração bater forte.

Era ela!

Estava lá! Corria para me receber! Ela me amava!

Não imaginei que aquela catástrofe pudesse ter também seu lado bom.

Ela correu, ansiosa.

E eu abri os braços, pronto para recebê-la.

Quanto a amava!

Por fim ela havia compreendido.

Não a deixaria jamais. Seria o amor da minha vida (ainda é). Eu re­nunciaria à missão se fosse preciso. Não voltaria a meu tempo. Ela era tudo.

Mas, ao chegar à minha altura, a ruiva se jogou sobre o engenheiro, e abraçou-o, e acariciou-o, e o encheu de beijos.

Oh, Deus!

Eu fiquei ali, em pé, com os braços abertos.

Então, senti algo que jamais havia sentido. Foi como se o universo desmoronasse.

Ruth chorava, abraçada a Eliseu. Kesil também chorava.

Tiago se aproximou e perguntou algo sobre o incêndio, mas não re­cordo o quê; não prestei atenção.

O universo era um monte de ruínas, exatamente como este explorador.

Tudo deixou de ter sentido.

O que não aconteceu comigo dentro da insula acabava de acontecer. Eu estava morto, como os meninos "lua".

Ela não me amava.

E Ruth, ajudada por Kesil e por Tiago, levantou meu companheiro, e se afastaram.

Ela não me amava.

Deixei-me cair no chão do cardo. Precisava chorar, mas não tinha lágrimas.

Tudo a minha volta perdeu o sentido. O incêndio continuava lá, atrás de mim, mas não me preocupou. Eu via, mas não via. Chegaram as redas, com os vigis, mas também não me importou. Eu ouvia, mas não ouvia.

O mundo se movimentava, mas não era verdade. Nada importava.

Ela me amava?

Não sei quanto tempo passei naquele lugar. Eu estava realmente morto.

Ela não me amava...

Sei que, de repente, alguém me cobriu com uma manta e pôs o braço em meus ombros. Então, caminhamos, mas também não me importou.

A insula e o caos ficaram para trás.

Esse alguém não falou. Continuou me acompanhando, sempre com o braço naquele "morto que caminhava".

Embarcamos, e julgo recordar (vagamente) que atravessamos o yam.

Nem sequer o olhei.

Desembarcamos, e ele me levou para dentro do casarão dos Zebedeu.

Ouvi gritos.

Salomé e Abril lavaram minhas queimaduras e me deram algum tipo de bálsamo. Isso tudo eu soube muito depois.

Ruth havia escolhido Eliseu.

E esse alguém, por último, ofereceu-me uma taça de vinho quente. Salomé, sabiamente, acrescentou umas gotas de Asparula odorata, um sedativo.

Eu continuava morto.

E o Mestre - foi Ele quem me encontrou e me conduziu a Saidan - aconselhou que fosse descansar. Acompanhou-me até o pombal e me ajudou a deitar.

Então, ao se retirar, disse:

Agora descansa, malak... Amanhã, deixa que o Pai te guie. Depois, volta e me informa.

Não compreendi.

E, prestes a fechar a porta, acrescentou:

Quando voltares a Saidan, recorda-me que tenho algo para ti.

Foi estranho. Eu não ouvia, não via nem sentia, mas aquelas palavras ficaram gravadas em minha memória. Nunca entendi.

Depois, silêncio. O sono rapidamente me salvou.

Ela não me amava...

Foi meu último pensamento naquela nefasta sexta-feira, 29 de março do ano 26 de nossa era. Uma data para o esquecimento.

No dia seguinte, sábado, 30 de março, Yeda me acordou com seus trinados. Precisei de tempo para me situar.

Não recordava bem...

E, de repente, em tropel, voltaram as imagens do incêndio, do corre­dor em chamas, dos gritos, do "44"...

Eu estava perplexo.

O sonho que este explorador tivera em Nazaré na noite em que o Mestre queimara seus quadros e destruíra as estatuetas de barro se realizara, em parte.

Era de enlouquecer!

Os meninos "lua", de fato, morreram na insula. No sonho, eu os vi calcinados. Ou melhor, primeiro os vi vivos, de mãos dadas com o ho­mem do sorriso encantador. Iam saindo um atrás do outro. Depois, ao entrar no quarto, encontramos os corpos.

Como entender aquela confusão?

Algum tempo depois, quando aconteceu o que aconteceu, Eliseu apontou uma possível explicação: o que vi no "sonho" não foram exata­mente os trigêmeos, e sim a alma deles. Custei a crer em uma coisa assim, embora o Filho do Homem houvesse falado em várias ocasiões sobre a vida depois da vida.

Eu era um cientista. E acrescento: um cientista "míope".

Espantei-me. A cena na qual Eliseu derruba a porta do quarto de Gozo e seus filhos me parecia familiar. E recordei que, em 19 de outubro do ano anterior (25), meu companheiro e eu, de fato, havíamos vivido uma situação parecida: ouvimos lamentos e vimos fogo pelas frestas da porta. Eliseu acabara derrubando-a com um pontapé.

Como era possível?

Mas o sonho - ou o que quer que fosse - só se realizou em parte. O final havia acontecido e não havia acontecido. Eu explico: os papiros foram des­truídos, sim, tal como mostrava o sonho, mas, na realidade, não os vi nem os recolhi do chão. No sonho, como se pode recordar, quem isto escreve pegava um dos pedacinhos de papiro e lia, em aramaico: "Viverás o não vivido".

Fiquei confuso também.

E recordei outra enigmática frase do Mestre, na qual sugeria que eu "buscasse a pérola do sonho".

Julguei entender. Em quase todos os sonhos existe uma "mensagem". Uma "mensagem" dos deuses?

Yeda me devolveu à crua realidade.

Ela não me amava.

Olhei a minha volta e descobri que, efetivamente, o universo havia resabado.

E as imagens, que esperavam impacientes à porta da memória, entra­ram e me derrubaram.

Fogo. Fumaça. Gritos de terror. Eliseu em chamas. Kesil. E, final­mente, Ruth, de braços abertos, correndo ao encontro de Eliseu. Ela o abraçou, e o beijou...

Então sim. Então as lágrimas surgiram e me aliviaram.

Que destruidora sensação de fracasso!

Não tenho palavras.

O sentimento de frustração foi tão intenso que não pude mover um músculo, muito menos os da alma.

Não estava morto, mas estava.

Os meninos "lua" haviam desaparecido. Meu "tesouro" se transfor­mou em fumaça. Meu amor também foi calcinado.

Que mais podia acontecer?

Sim, faltava alguma coisa. Faltava um pequeno "detalhe".

E as lágrimas fluíram.

Foi um pranto silencioso e amargo.

E Yeda, assustado, saiu voando. Não o tornaria a ver.

Não demorei a decidir. Foi outro erro, eu sei, mas a vida é assim.

Nem me preocupei com as queimaduras.

Eu me vesti, fiz a mochila, peguei a vara e me despedi de Salomé. Só dela. O resto estava dormindo.

A mulher também não entendeu. Estava começando a se acostumar com meus súbitos desaparecimentos. Não sei se disse a ela que voltaria. Na realidade, não recordo o que falamos. Meu pensamento estava em ou­tro lugar.

Nada me importava. Nem mesmo Ele.

Minha idéia simplesmente era...

Mas é melhor ir passo a passo.

Primeiro, visitei a "casa das flores". Queria ver Ruth pela última vez. Queria olhar em seus olhos e me certificar de que não me amava.

Era sábado, como disse. Quase todos estavam na casa.

Tiago e Esta me acolheram com alegria. Sabiam de nossa tentativa de salvar os trigêmeos. Ofereceram-me leite quente e mel. Fiquei assombrado com a frieza com que eu me movia. Falei com eles e perguntei pelo engenheiro.

Acompanharam-me ao quarto da Senhora. Eliseu estava na cama de Ruth. A ruiva estava ao seu lado, sentada.

Pareceu surpresa ao me ver, mas imediatamente se retirou do quarto. Não troquei um olhar com ela. A penumbra me traiu.

E, por puro compromisso, fui examinar Eliseu. Tiago e Esta permaneciam ao pé da cama, atentos.

O engenheiro quase não abriu a boca. Notei que estava muito abala­do com a morte dos meninos "lua".

E me deixou examiná-lo.

As queimaduras não eram graves. Tudo havia sido mais aparatoso que grave. Sinceramente, fiquei surpreso. Eram queimaduras de primei­ro grau (um pouco mais que as provocadas por uma insolação) que não requeriam uso de medicamentos tópicos. Com um tratamento minima­mente saudável, cicatrizariam em breve.

Seu pulso era estável. Também não tinha febre.

Esta me informou sobre os bálsamos que haviam começado a lhe aplicar: uma mistura de arnica (muito apropriada para uma melhor ci­catrização), clematite e alho (especialmente poderoso contra infecções).

Recomendei que limpassem as queimaduras duas ou três vezes ao dia e que continuassem lhe dando o bálsamo. Chamavam-no de rehas ("confiar"). Nunca soube por quê.

Da Senhora, nem sinal.

Não perguntei. Não me interessava.

Pouco depois, sem mais comentários, abandonei a "casa das flores".

Também não vi Kesil.

Passei em frente à insula, ou melhor, em frente aos restos fumegantes.

Não senti nada.

E afastei-me rapidamente rumo à tripla porta de Nahum.

Queria chegar ao Ravid o mais rápido possível.

Estava decidido. Aquela idéia me conquistou. Era a solução. Era o que eu pensava naqueles amargos momentos.

Evidentemente, como disse, eu estava total e absolutamente enga­nado, mas também é bom comentar os erros. Tudo foi intenso naquela incrível aventura.

E devo antecipar: como é verdade que Deus escreve certo por li­nhas tortas!

Não me lembrava de ter feito o caminho até o "porta-aviões" em tão pouco tempo: apenas três horas.

E cheguei ao "berço" sem novidade.

Nem olhei o precipício. Pouco me importava se os bucoles haviam aparecido novamente. Eu só queria acabar com aquela tortura.

 

Sim, esse era o objetivo: morrer.

Não queria viver; não nessas circunstâncias. Ruth era tudo para mim. Que sentido tinha a vida sem ela?

Decidi.

Poria fim à minha vida. E faria isso ali, no "berço".

Havia maquinado um plano que não podia falhar.

Pensei também em voltar ao meu "agora" (1973), mas era inviável. Não tinha a senha para ativar a SNAP 27, a pilha atômica. Estava preso naquele "agora".

Além de tudo, que importava acabar naquele momento ou em questão de seis meses?

Essa havia sido a sentença do "Papai Noel" quando descobrira que eu tinha uma amiloidose primária. Em outras palavras: um total de 19 tumores nas profundezas do cérebro, e outro de lambuja na língua. Tudo, provavelmente, consequência da maldita inversão de massa dos eixos dos swivels.

Não havia solução.

O "Papai Noel" havia sido muito claro: ou eu me submetia a uma in­tervenção cirúrgica, ou minha vida acabaria no prazo mencionado: cerca de seis meses.

O computador central, tempos atrás, quando detectara o problema, traçara um plano para combater a amiloidose. Mas o programa estabele­cia uma margem de erro de 20 por cento. Era uma intervenção perigosa.

"Perfeito. É justamente do que eu preciso", pensei.

E decidi me submeter à intervenção. Talvez a sorte me acompanhas­se e eu morresse na tentativa. Vinte por cento é um risco considerável.

Mas, para o caso de a cirurgia ser um sucesso, maquinei algo que "não podia falhar".

Primeiro, eu me submeti a um novo exame dos "nemos frios" (explo­radores). Tinha que ter certeza.

O resultado foi o já conhecido: 20 tumores malignos e outro "presen­te" inesperado.

O "Papai Noel" notou algo que não fora detectado no último exame: os "nemos" captaram sinais de uma iminente amiloidose secundária. Em breve, segundo essas estimativas, meu organismo seria afetado por outros tumores, que invadiriam o baço, o fígado, os rins ou os gânglios linfáticos, entre outros órgãos e sistemas. O fígado e o baço acabariam endurecendo e adquirindo a consistência da borracha. Os rins poderiam aumentar, e a morte chegaria muito antes. Talvez em semanas.

É curioso. Em outras circunstâncias, a notícia teria me derrubado. Era a catástrofe das catástrofes. Pois bem, fiquei impassível. E mais: acho que até me alegrei.

Minha vida podia acabar muito antes do que esperava.

Como disse, não me importei. E dei sequência ao plano previsto.

O computador se "esmerou". E preparou vários batalhões de "nemos quentes" ou "caçadores" (especialmente os chamados "naja", já descritos, que descarregavam medicação, destruindo as células cancerosas). Os "camicases" não foram incluídos.[40] Perigosos demais.

Foram acrescentados também os "nemos" que a Operação designava "cristais de ouro". Tratava-se de outro tipo de "robô orgânico" (de uns 100 nanômetros), recoberto com ouro, em cuja superfície aderiam-se anticorpos específicos. Uma vez na corrente sanguínea, os "cristais de ouro" impactavam os tumores, e os anticorpos destruíam as células malignas. Era simples e muito eficaz.

Mas o "Papai Noel" não ficou satisfeito e decidiu experimentar tam­bém mais dois tipos de "nemos caçadores": os "teos" e os "furadores". Os primeiros eram formados por complexas esferas de 70 nanômetros que ativavam seu poder destrutivo com a formação de micronanojatos coaxiais eletrificados com uma solução de tetraetilo e oligo-siloxano cíclico. "Derretiam" materialmente os tumores. Os "furadores" trabalhavam mediante pulsos. Cada pulso se prolongava por 200 microssegundos, com um comprimento de onda de 2,9 micrômetros. Eram também rápidos e impecáveis. Eliminavam qualquer tumor. O segredo estava na faixa de érbio-ítrio-alumínio-granate (YAG). Não posso dizer mais nada. Esses “nemos" são considerados segredo militar também.

Não me queixei. A "tropa" de "nemos" era de elite.

E sorri com meus botões.

Nada daquilo daria certo. Meu plano não podia falhar. Desbloqueei o caderno de Bitácora. A blindagem já não fazia sentido. Não importava que ou quem quer que fosse, tivesse acesso aos diários. Eu só queria acabar.

Preparei tudo, e me preparei.

Que estranho! Agora, ao recordar aqueles lamentáveis momentos, não consigo compreender. Eu tinha tudo. O Mestre pôs em minhas mãos o melhor que um ser humano pode ter: a esperança. Porém...

Eu só queria acabar.

Era impressionante! Esqueci o Filho do Homem!

Como é contraditória a natureza humana!

O plano, como disse, consistia em simular um acidente durante a cirurgia. O "Papai Noel" cuidava de tudo. O sistema era automático.

A chave estava em uma das fases do processo de anestesia.[41] Na tercei­ra etapa (digamos assim), que poderíamos chamar de "fase de entubação e relaxamento muscular", após a injeção do relaxante muscular (succinilcolina), quem isto escreve suprimiu o obrigatório processo de entubação oro/ nasotraqueal. Isso significava morte quase imediata. A succinilcolina, em uma dose de um miligrama por quilo, era letal se o paciente não dispusesse do correspondente sistema de ventilação, ou assistência respiratória. O refe­rido relaxante muscular esgota os depósitos de acetilcolina, e o falecimento é questão de minutos. A succinilcolina, além de tudo, não deixa rastro. Se Eliseu conseguisse voltar ao nosso tempo e fizessem uma autópsia em mim, ninguém notaria. O percalço poderia ser qualificado como um "acidente".

Tive dúvidas na hora de escolher o relaxante muscular. Pensei tam­bém no brometo de pancurônio, de efeito não despolarizante. Mas acabei me inclinando pela succinilcolina, de ação ultracurta.

Era simples... e fatal.

A última fase (manutenção e proteção neurovegetativa) foi controla­da com a mistura de fentanyl e droperidol. Eu sabia que não seria neces­sária. Eu já estaria morto. Mas, como disse, programei-a (por segurança).

Deitei-me e preparei um dos braços robóticos (conectado ao "Papai Noel"). Chequei o sistema de chaves e verifiquei se a "IV" (injeção intra­venosa) estava funcionando.

Conectei-me e, sem pensar, dei sinal verde para o computador.

O "Papai Noel" agiu.

Logo me senti cair em um poço sem fundo. E na negrura apareceram aqueles olhos verdes... verdes... verdes...

Era Ruth.

Vinha se despedir?

Eu estava prestes a morrer.

Fui anestesiado, e os "nemos" agiram. Foi tudo muito rápido. A in­tervenção cirúrgica foi feita em menos de meia hora.

Mas...

Minutos depois, acordei.

Estava morto?

Aquilo não me parecia o céu. Ou melhor, aquilo não me parecia a sala de ressurreição da qual o Mestre falava.

Tornei a fechar os olhos.

Sentia um gosto estranho na boca.

Que estranho! Morrer é mais bobo do que eu imaginava.

Abri de novo os olhos e vi, mais uma vez, o teto do "berço".

Merda! Não estava morto!

Eu me sentia bem, mas um pouco pesado.

O que havia dado errado? Por que não estava morto? Não fui entubado. Então...

E deixei que os minutos passassem. Procurei pensar. O que havia acontecido?

Não conseguia ficar naquela incerteza.

Desconectei o braço robótico, levantei-me e fui direto para a tela do computador.

Chequei o processo e li, com assombro:

"A amiloidose foi extirpada. A limpeza atinge 99,9 por cento."

Não podia acreditar.

Não só não estava morto como estava mais vivo que antes.

Oh, Deus! Por que tudo saía ao contrário para mim?

Não tardei a localizar a "falha".

Eu subestimara o "Papai Noel". Aquilo não era um supercomputador. Era mais que humano.

O computador "compreendeu" que, sem a entubação, a ação da succinilcolina teria sido letal. E suprimiu a dose de relaxante muscular. Simples assim. Seus parâmetros não contemplavam a morte, e sim a vida.

O "Papai Noel" havia acabado de me dar uma lição que eu jamais esqueceria.

Eu me enganei. A esperança não está no amor (com inicial minúscu­la , e sim no Amor. Ele se cansou de repetir isso.

Não tornaria a acontecer.

 

Três dias depois, o "Papai Noel" fez uma checagem.

Tudo estava em ordem. A operação, efetivamente, fora um "sucesso".

E a recuperação, razoavelmente rápida.

O computador, porém, dada a obscura origem do mal que eu sofria, programou um novo check-up geral para o mês de setembro. Era conve­rgente controlar os níveis de óxido nítrico, bem como o possível reapare­cimento da amiloidose (primária ou secundária).

Aceitei.

E aproveitei aqueles dias de solidão no alto do Ravid para atualizar os diários, e principalmente para refletir. Tinha muita coisa para pensar, e muito mais para corrigir em minha vida.

Não tornaria a bloquear o caderno de Bitácora.

Como pude ser tão estúpido? Eu era treinado para situações arriscadas e, não obstante, havia me deixado capturar por uma mulher. Como pude pôr em gravíssimo perigo a Operação Cavalo de Tróia? Será que não aprendi nada com o Homem-Deus? Ele me deu tikvá (esperança), e achei que tinha tudo. Assim está escrito nestes diários. E, de repente, queria jogar tudo para o alto.

Senti vergonha.

Não só esqueci o Filho do Homem como tentei o suicídio. Fui egoísta e um mau amigo. Bati a porta na cara do bondoso Deus.

Isso não tornaria a acontecer.

A vida (enquanto permanecemos nela) é a coisa mais valiosa que nos foi confiada. Jesus de Nazaré repetia isso sem parar. E ele brindava a ela a cada oportunidade: Lehaim!

Nunca mais...

Bem. E o que eu devia fazer?

Muito simples: prosseguir com a programação. O trabalho era obser­var, acompanhar os movimentos do Galileu, contar sua vida e seus pensa­mentos. Esse era o objetivo. Essa era a missão.

Assim seria.

E recordei as misteriosas e oportunas palavras do Mestre na noite do incêndio (29 de março):

- Agora descansa, malak (mensageiro). Amanhã, deixa que o Pai te guie. Depois, volta e me informa.

Ele sabia o que estava prestes a acontecer?

Não estranhei. Já havia visto coisas mais impressionantes. E tornaria a ver. Aquelas palavras me animaram, e não pouco:

"Deixa que o Pai te guie."

Foi o que fiz.

Deixei-me levar pela intuição, outro anjo de Abba.

Estávamos no mês de iyar (março-abril). Segundo minhas informa­ções, faltavam dois meses para outro acontecimento de especial relevân­cia: a prisão de Yehohanan. Isso aconteceria em tamuz (junho-julho). Era questão de semanas.

E tomei a decisão de ir para o vale do Jordão. Procediam de lá as últimas notícias sobre o Batista, como já mencionei. Ao que tudo indicava, havia abandonado o meandro Ômega e caminhava rumo ao sul.

O que pretendia? Por que em direção ao sul? Não teria sido mais lógico que se dirigisse ao norte e tentasse conversar com Jesus de Nazaré? Yehohanan provavelmente soube do prodígio de Caná. Qual era seu pensamento? Achava agora que o Mestre era realmente o Messias prometido das Sagradas Escrituras?

A mente de Yehohanan era um labirinto. Quem sabe o que podia estar maquinando?

"Depois, volta e me informa."

Compreendi.

Era importante que eu ficasse ao lado do Anunciador e que tomasse conhecimento do ocorrido durante sua detenção.

Mensagem recebida.

Quanto às últimas e não menos misteriosas palavras do Galileu naquela terrível noite, naquele momento, sinceramente, não me dera conta:

Quando voltares a Saidan, recorda-me que tenho algo para ti.

Fiquei intrigado. Pensei muito, mas foi inútil. Não sabia a que Ele se referia, nem remotamente. Foi uma grande surpresa. Só vou antecipar uma coisa: fiquei pasmo, mais uma vez.

E assim foram se passando os primeiros dias de abril.

Meu ânimo foi serenando, e recuperei parte da calma perdida. O asma "Ruth" foi minuciosamente "dissecado" e cheguei a uma conclusão: era um amor "violeta"; ou seja, impossível. Era um mistura do vermelho da paixão com o azul mais puro e terno (o amor transparente). Mas meu trabalho era mais importante, e de especial importância. Minha missão era "amarela" (equilíbrio e inteligência) e estava a serviço d'Ele (puro azul, puro Amor). Se eu fosse capaz de conjugar o equilíbrio e a inteligência (amarelo) com a energia (vermelho), o resultado seria a alegria (laranja); e não só o "laranja" para mim. Seria a alegria para muitos (no futuro). Além de tudo, se soubesse casar o Amor (azul) com a inteligência (amarelo), o resultado me deixaria louco: eu alcançaria a liberdade! (verde).

Desci em várias oportunidades à plantação de Camar, o velho beduíno, e comprei provisões. Em uma daquelas visitas, com a ajuda de al­gumas moedas, ele "recordou" algo interessante: os bucoles, ao que tudo indicava, ameaçavam voltar ao Ravid. Era o que ele ouvira.

E acrescentou:

E voltarão com toda a sua gente.

Camar costumava estar bem informado. E as velhas preocupações voltaram.

Mas o assunto dos bandidos ficou em suspenso quando, na sexta-feira, 12 de abril, duas semanas depois da tentativa de suicídio, quem isto escreve viu Eliseu chegar ao "berço".

Encontramo-nos por pouco. Eu planejava abandonar o "porta-aviões" nessa mesma manhã, rumo ao Jordão.

A visita - foi o que disse - se devia ã rotina estabelecida. Pura manu­tenção da nave.

Acreditei.

Deixou que eu examinasse suas queimaduras. Haviam cicatrizado e seu estado era saudável, como sempre.

Não pareceu surpreso ao me ver no alto do grande penhasco. Não perguntou.

Isso me intrigou.

Mas quem isto escreve também não fez comentário algum sobre a razão de minha presença no Ravid. Obviamente, no caderno de Bitácora, não consta informação sobre a tentativa de suicídio. Não fazia sentido que os responsáveis pela Operação soubessem disso. A intervenção cirúrgica do "Papai Noel" ficou registrada, mas não citei a não entubação. Mesmo que Eliseu consultasse os diários (coisa que fez), não poderia saber.

E arranjei uma desculpa: estava no Ravid para organizar uma imi­nente viagem ao rio Jordão, "em busca do cilindro de aço". Em parte, era verdade. Durante esses dias eu me preparara para o encontro com Yehohanan e, acima de tudo, comigo mesmo.

Não sei se ele acreditou. Suponho que sim. No fundo, não importava. Eu havia tomado uma decisão (continuar acompanhando o Filho do Ho­mem) e a cumpriria. O cilindro, como disse, não me importava.

Quanto à "volta" a 1973, depois veríamos.

Por ora, não estava em minhas mãos.

Comentei a notícia dada por Camar. A resposta do engenheiro foi rápida:

- Eles que tentem. Tenho uma surpresa preparada para eles.

Não disse mais nada.

Eu tinha uma leve idéia sobre o tipo de surpresa que ele era capaz de bolar (jamais poderia esquecer o "encontro" com os ratos-toupeiras).[42] Fiquei relativamente tranquilo. Os bandidos teriam problemas.

E, naturalmente, interessei-me pelo Mestre.

Eliseu me informou com detalhes: Jesus de Nazaré continuava trabalhando no estaleiro, muito perto dele. E toda noite, após o jantar comunitário, passava seus ensinamentos aos "sete". Tiago, o irmão carnal do Galileu, era quem o informava pontualmente.

A Senhora não havia mudado de atitude. Pretendia que o Filho demonstrasse seu poder, e que o fizesse em público, como acontecera na boda de Caná. Passava as horas trancada em seu quarto. Não entendia absolutamente nada e se negava a receber conselho ou ajuda. Ruth e Esta faziam o que podiam para ajudá-la, mas era um trabalho quase inútil. Jesus não havia voltado à "casa das flores".

Perguntei se o Mestre estava a par do estado da mãe, e Eliseu declarou que sim. Tiago o mantinha informado.

Compreendi a difícil postura do Filho do Homem. Se fosse a Nahum e visitasse a família, Maria voltaria à carga, e o assunto se complicaria ainda mais. A atitude inteligente, evidentemente, era o silêncio. O bondoso Deus - como dizia o Galileu - tinha seus próprios planos.

As coisas entre Eliseu e Ruth melhoraram após o incêndio da insula. O relacionamento com a ruiva ia bem, e era sério. Foi o que afirmou.

Senti dor, mas soube sufocá-la. Como disse, havia assumido. Ruth era (é) um amor "violeta". Ele tinha (tem) prioridade.

Kesil arranjou um novo alojamento. Tratava-se de outra insula, porém mais perto do cais. De lá controlava o "olho do ciclope". Alugaram dois quartos. Um, provisoriamente, era dividido por Kesil e Gozo, a mãe dos trigêmeos calcinados no incêndio.

Em princípio, tudo parecia em ordem em Nahum.

Bom, nem tudo.

O engenheiro me falou dos rumores que corriam por ali. O de maior estaque, e mais desagradável, era o que afirmava que o incêndio da insula havia sido provocado por alguém.

Ninguém se atrevia a apontar o autor, ou autores, mas os nomes cor­riam de boca em boca: Kuteo e Nabu. Kuteo era o sírio que dirigia uma taberna onde Eliseu e eu tivemos um lamentável encontro, justamente com eles. Como se pode recordar, ao voltar do monte Hermon, o tal de Kuteo roubou a bolsa com dinheiro que meu companheiro carregava. Quando tentamos recuperá-la (coisa que fizemos), o samaritano e seu comparsa, Nabu, não ficaram muito bem. E Kuteo jurara se vingar.

O rumor tinha seu fundamento. Aqueles sujeitos não eram de confiança.

Uma vez concluída a atualização das informações, e terminada a ins­peção da nave, Eliseu e eu abandonamos o Ravid.

Os ganchos de ferro continuavam ancorados no precipício, com as cordas ao vento, como um aviso.

Não os quisemos retirar. Era melhor assim.

E à sexta hora (meio-dia) do sábado, 13 de abril, seguimos rumo a Migdal.

Meu plano era simples.

Uma vez em Migdal, nós nos separaríamos. Eliseu seguiria para Nahum, ao norte, e este explorador margearia o yam pela borda ocidental, até a segunda desembocadura do Jordão. Uma vez lá, seguiria para o sul, em busca do gigante das sete tranças louras.

Mas o Destino tinha outros planos.

 

Não sei o que aconteceu. Na última hora, prestes a nos separar, decidi acompanhar Eliseu. Também não dei explicações, nem ele as pediu. Foi a intuição que sussurrou em meu ouvido. Antes de fazer a nova viagem em busca de Yehohanan, precisava olhar nos olhos do Filho do Homem. Precisava saber que estava perdoado.

O engenheiro me conduziu diretamente ao novo albergue. Era outra insula, próxima ao cardo, e praticamente no cais de Nahum. Havia aluga­do dois quartos.

Kesil não acreditava no que via.

Os dois amigos, e sócios, reconciliados.

Sim e não.

Mas nem Eliseu nem eu demos explicações.

Nessa noite, fiquei na insula de Se. Esse era o apelido da dona. A "Gata" de Nahum.

Não cheguei a ver Gozo, a mãe dos meninos "lua". Segundo Kesil, a mulher estava arrasada. Só encontrava consolo na bebida. Se quisesse, podia encontrá-la na taberna do "maldito Nabu". E Kesil desabafou. Todo mundo falava disso. Eliseu comentara no Ravid: Nabu e Kuteo eram os autores do incêndio.

Perguntei em que se baseava para afirmar isso. E respondeu: "Eles mesmos andam apregoando sua façanha".

Ao que parecia, quando o sírio e o samaritano bebiam além da con­ta [coisa frequente), falavam demais, fornecendo todo tipo de detalhes sobre o incêndio da insula. Kuteo foi o autor material do fogo. Entrou no edifício pouco antes da décima hora (quatro da tarde), quando todo mundo estava no trabalho. Nabu ficou na rua, vigiando. O samaritano e o sírio sabiam que nossos quartos eram o "39", o "40" e o "41". E esperaram Kesil sair da insula. Foi quando Kuteo derrubou a porta do "39" e pôs fogo no triplo beliche de madeira. Ambos permaneceram nos arredores, presenciando o incêndio e se regozijando.

Eu não sabia o que pensar.

Sabia que eram detestáveis, mas não imaginava que pudessem chegar a tal ponto.

A versão de Kesil era certa. O próprio Nabu, à minha volta do Jordão, confessaria.

E no domingo, 14 de abril, assim que clareou, acompanhei Eliseu ao estaleiro. Lá nos despedimos.

Falei com Yu, o chinês. Ele se alegrou de me ver com tão boa saúde. E atribuiu isso ao jade em pó que me oferecia regularmente ("santo remédio - dizia - para chegar à imortalidade"), e que eu, com a mesma regularidade, jogava no lixo. Mas agradeci o gesto. Yu falava de coração.

Disse que teria que me ausentar de novo. Um importante negócio me chamava fora de Nahum.

Yu ouviu em silêncio e, quando terminei as explicações, comentou:

Já és rico. Esquece o dinheiro e enriquece tua alma.

É o que vou fazer, querido amigo, é o que vou fazer.

Yu sorriu e me deu uma nova dose de jade em pó. E acrescentou:

Volta logo. Já és da família.

E disse algo que não entendi bem:

Tu pintas com o silêncio.

Supus que se referisse a meu trabalho no estaleiro, como ajudante misturador de tintas. Não sei...

Mas meu objetivo naquele lugar, como disse, era outro.

Fui ao fosso onde o Mestre martelava. De início, Ele não me viu. Usava o avental de couro preto de sempre, com o torso nu. Tinha o cabelo preso no habitual rabo de cavalo. Nos lábios segurava uma série de pregos, e, ao mesmo tempo, cantarolava sua canção favorita: "Deus é ela...".

Contemplei-o durante alguns segundos. E me perguntei: "Ele me perdoará?"

Zal, deitado ao seu lado, não tardou a notar minha presença. Levan­tou-se e correu ao meu encontro, feliz. Acariciei-o em silêncio.

De repente, o Galileu parou de martelar. Voltou-se para quem isto escreve e me observou brevemente. Não me mexi.

Jesus sorriu e quase deixou cair os pregos.

Então, piscou para mim e prosseguiu seu trabalho.

Mensagem recebida.

Era o que eu necessitava.

E afastei-me, recompensado.

Assim era o Filho do Homem.

Nessa tarde, parei na base de abastecimento que se chamava "13 irmãos", nas proximidades da união dos rios Yavneel e Jordão, perto do yam. Lá, como comentei em outro momento, judeus e gentios haviam montado um "mercado", onde era possível adquirir provisões, armas e, evidentemente, contratar cisium (carruagens de duas rodas) ou redas (de quatro), com ou sem condutor.[43]

Não foi difícil localizar Tarpelay, o sais negro que eu conhecera em ou­tras viagens pelo Jordão. Eu gostava daquele guia. Ele sabia tudo sobre o vale e era discreto e silencioso. Foi o condutor que nos levou de Damiya a Migdal, quando Eliseu ficou doente. Tarpelay era um apelido. Assim chamavam os oriundos de Tarpel (atual Líbia). Comecei a chamá-lo de Tar. Ele não disse nada. Simplesmente, nunca dizia nada. Limitava-se a observar e, na medida do possível, procurava se antecipar a tudo e a todos. Isso me agradava.

Acho que já mencionei isso, mas insistirei. Tar era honrado (um luxo para os condutores de carruagens da região). Olhava de frente (algo quee explorador estima de uma forma especial) e jamais pechinchava. Dava um preço, e esse era o preço.

Era negro como carvão e orgulhoso como uma águia. Tinha a cabeça raspada e usava uma túnica longa, até os pés, sempre amarela. Jamais usava outra cor. Na faixa da cintura, viam-se três adagas curvas, sempre reluzentes e ameaçadoras. Suas empunhaduras eram de prata. Para dizer a verdade, jamais o vi usá-las.

Expliquei que queria encontrar o Anunciador, e ele assentiu com a cabeça.

Isso foi tudo.

Partiríamos ao amanhecer.

E assim foi.

Na "13 irmãos" sabiam de tudo (e de todos).

E descansei tranquilo. Tar preparou a carruagem, bem como os cavalos, e se acomodou a poucos metros. Sentou-se no cisium, e lá, suponho, dormiu. Quando o conheci melhor (?), soube que na realidade jamais dormia, ou dor­mia com um olho aberto. Mas isso não era de minha incumbência.

Tar foi de grande ajuda em meu trabalho. Isso foi importante.

E na segunda-feira, 15 de abril (ano 26), ao alvorecer (quando os relógios do "berço" indicavam 5 horas e 7 minutos), Tar e eu deixamos para trás a base de abastecimento, rumo ao sul. Segundo as notícias que circulavam pela "13 irmãos", Yehohanan e seu grupo estavam acampados nas proximidades de Damiya, em um lugar chamado vau das Colunas. Lá eu vira o Batista pela primeira vez, e ali, na casa de Nakebos, o al-qa’id, ou alcaide corregedor da prisão do Cobre, Eliseu ficou gravemente doente.

E os 67 quilômetros existentes entre a "13 irmãos" e a citada aldeia de Damiya, muito próxima à desembocadura do rio Yaboq no Jordão, foram cobertos sem problemas e em um tempo mais que aceitável. À quinta hora (11 da manhã) avistamos as brancas casinhas de Damiya.

Tar não permitiu que eu andasse até o vau das Colunas, no Yaboq. E deu um jeito de cruzar a aldeia e entrar com a carruagem pelo estreito caminho de terra vermelha que levava diretamente à margem esquerda do rio Yaboq.[44] Lá, como era habitual, o Anunciador havia montado seu guilgal, um círculo de pedras de dez metros de diâmetro, com uma árvore muito singular no centro: uma acácia de 20 metros de altura, copa arre­dondada e o tronco coberto de enormes nós.

Tar, assim como o Mestre, não era amante de despedidas. Preferia erguer levemente a cabeça. Era seu sinal de "adeus" ou "até logo". Dessa vez, porém, abriu uma exceção e falou, prometendo voltar uma vez por semana, caso eu "precisasse silenciar com alguém".

Agradeci.

Isso significava que toda semana o sais me encontraria, onde quer que estivesse.

Em parte, isso me tranquilizou.

E ele partiu.

A temperatura aumentou. O calor era sufocante.

Perto do Yaboq, na "praia" dos seixos brancos, vi um bom número de barracas de peles de cabra. O número de acampados (supus que eram seguidores de Yehohanan) era muito superior ao habitual. Calculei mais de mil.

E caminhei lentamente rumo ao guilgal. Pouco ou nada parecia ter mudado no local.

Pendiam dos galhos da árvore os pedaços de cerâmica com as já co­nhecidas frases da Torá. Tratava-se de outra ideia extravagante do Batista. Uma leve brisa fazia o barro balançar.

Logo reconheci Abner, o pequeno grande homem, lugar-tenente do Anunciador. Conversava com outros "justos" (discípulos de Yehohanan). Não vi o Batista, nem Belsa, o persa com o sol na testa.

Abner ficou feliz ao me ver.

- Esrin voltou!

Assim me chamava o Anunciador. "Esrin", em aramaico, significava "vinte". Eu era o discípulo número 20 do Batista.

Abner pediu que me sentasse com eles e que contasse. O pequeno grande homem tinha a mesma lamentável aparência de sempre: gengivas vermelhas e sangrando, com meia dúzia de dentes longe um do outro, uma pele enrugada e um saiote cobrindo um corpo esquelético, que pare­cia prestes a se quebrar ao menor sopro.

Mas Abner, como disse, era um ari; um leão, na linguagem dos ju­deus: um homem de pequena estatura e aspecto frágil, mas valente e nobre de coração.

O grupo dos discípulos havia diminuído sensivelmente. Esdras, um dos "justos", abandonara Yehohanan em fevereiro e levara um terço dos íntimos.

Judas foi o único que não me cumprimentou. Não me importei. Sabia de sua timidez.

Ficou atrás do grupo, escondido e ausente, como quase sempre.

Também não havia mudado. Sempre me recordou um pássaro; talvez por conta de seu nariz aquilino. Era imberbe, com uma pele quase trans­parente e os olhos negros profundos, sempre inquietos e inquisidores. Não perdia um detalhe. Era um observador incansável. Seus cabelos, também pretos, descansavam nos ombros. Era limpo e refinado. Sua educação havia sido excelente. Seus pais, de bom berço e dinheiro, esforçaram-se com ele. Mas Judas não compartilhava a filosofia de seus ancestrais (eram saduceus) e os renegara. Seus pais, como disse, deserdaram-no e o amaldiçoaram. Seu desejo, naquele momento, era entrar para a seita dos Zelotes, o braço armado dos "santos e separados" (fariseus). Mas suas tentativas não deram frutos. Os zelotes o mantinham em "período de observação".[45]

E falei do que podia falar. Basicamente do prodígio de Caná. Os "justos" sabiam o que havia ocorrido na festa de casamento. Na realidade, àquela altura, Israel inteiro sabia. Eu me limitei ao essencial. Não entrei em detalhes, evidentemente.

Discutiram entre si.

Yehohanan não fazia prodígios. Isso era preocupante. Assim disseram.

Então, eu perguntei.

Abner respondeu, lamentando que as coisas houvessem "piorado".

Não entendo.

O vidente - disse o pequeno grande homem, referindo-se a Yeho­hanan - está triste. Quase não fala. Não é fácil chegar até ele.

E me perguntei: "Quando foi acessível a alguém, além de suas abelhas?"

Mas guardei o comentário para mim mesmo.

Continua com o velho costume - prosseguiu Abner. - Desaparece nessa maldita margem - apontou para o bosque das acácias - e tu nunca sabes quando volta.

Nada de novo.

Também não faz sakak.

O segundo homem do Batista se referia à cerimônia de submergir os seguidores na água.

Desde que esse Jesus de Nazaré se despediu no meandro Ômega, nada foi igual. O vidente não é mais o mesmo.

O grupo assentiu. Judas ficou mudo e expectante.

Só volta para pronunciar esses horríveis discursos.

Eu não sabia do que ele estava falando.

Horríveis discursos? A que te referes?

Os "justos" complementaram:

Horríveis e desnecessários discursos.

Senti uma ponta de recriminação. Aquilo sim era novo. O que havia acontecido? Por que os incondicionais do Batista falavam desse jeito?

E, nisso, ouvimos o chofar. Foi um toque longo.

Um dos "justos", situado na margem do Yaboq, alertava sobre a pre­sença do vidente: Yehohanan.

Levantamo-nos e dirigimos os olhares para o bosque das acácias.

Devia ser meio-dia (sexta hora). O sol, no alto, observava, redondo e implacável.

Distingui a figura do Batista, com a inseparável colmeia na mão es­querda. Caminhava decidido, como sempre. Cobria-se com o "xale" de cabelo humano (seu cabelo).

E Abner, convidando-me a acompanhá-lo à margem dos seixos brancos, exclamou:

- Julga por ti mesmo!

Os acampados saíram rapidamente das tendas, largando tudo que estavam fazendo.

Alguns correram para a água. Outros levantavam os braços e grita­vam o nome de Yehohanan.

E, em segundos, a "praia" dos seixos se encheu de seguidores, curio­sos e vendedores. Eu conhecia mais ou menos a cena.

Mas não. Não era o que eu julgava. Foi pior.

Eu sempre disse: contemplar o Anunciador era um espetáculo. Não importa o que fizesse.

Pulou sobre a coluna mais próxima à margem e colocou a colméia do seu lado.

Durante alguns segundos limitou-se a contemplar os ali reunidos. E fez-se silêncio.

Mantinha o aspecto que tanto impressionava. Além dos dois metros de altura, usava os cabelos louros quase nos joelhos, cuidadosamente presos em sete tranças, e roupas breves e severas. Não faltava nada: o saq, ou sunga de rele de gazela, o saco de couro branco a tiracolo, e os colares de conchas, tilintando no peito. Sua cabeça, como disse, estava coberta com o "xale" amarelo.

E alguns seguidores, entusiasmados, estimularam-no com gritos. Mas Yehohanan não precisava de ânimo. Sabia como se comportar. Quem isto escreve o viu "agir" em outras oportunidades.

E foi isso que fez: agiu.

De repente, levantou os braços para o céu e abriu os dedos.

E assim permaneceu durante quase um minuto.

Um murmúrio de admiração se levantou entre os acampados.

Olhei para Abner, e ele, por sua vez, devolveu-me o olhar e balançou a cabeça negativamente. Estávamos de acordo sem pronunciar uma só palavra: aquilo era artificial e falso.

Não houve jeito. Comparei-o, mais uma vez, com Jesus de Nazaré.

Que desastre!

As igrejas e a tradição não sabem, ou mentem.

O que aquele homem tinha a ver com o Galileu? Por que a história o proclama seu "anunciador"?

Entramos na água e ficamos na primeira fila. Os "justos" se amontoa­ram. Percebi o medo em seu rosto. Mas por quê?

Não tardaria a descobrir.

Prudentemente, fiquei em um discreto segundo plano. Não queria que o vidente me visse; não ainda.

E a voz rouca de Yehohanan se ergueu, por fim:

Sabeis que o espírito de Deus está sobre mim!

As pessoas assentiram com a cabeça. Ninguém se atreveu a pronun­ciar uma só palavra.

Ele me ungiu!

Yehohanan continuava com os braços levantados.

Aquele discurso me pareceu familiar. Ele o repetia sem parar.

Mas não...

Ele me enviou para anunciar a boa-nova aos pobres! Estou aqui para enfaixar os corações partidos!

O tom foi subindo. As pessoas, cientes de que ele preparava algo "es­pecial", não respiravam.

Estou aqui para pregar a libertação dos cativos, para dar a liberdade aos reclusos.

Fez uma pausa estudada. O suspense aumentou.

E para condenar essa hiena do Tiberíades!

Foi imediato.

A multidão explodiu e começou a gritar o nome de Yehohanan.

Hiena do Tiberíades? De quem estava falando?

É um vigia cego! Não sabe de nada!

E os seguidores, enlouquecidos, interromperam-no de novo.

O que era tudo aquilo?

Não pude resistir e me adiantei, situando-me junto ao pequeno grande homem. Notei que sentia a mesma perplexidade de quem isto escreve. E comentei:

Isso é novo. Não sei a quem se refere.

Abner fez um gesto de resignação, tornou a mover a cabeça negativa­mente e comentou em voz baixa:

Eu te disse. Agora se dedica a fazer discursos horríveis e desnecessários.

E concluiu, quase com um fio de voz:

Fala de Antipas, o tetrarca.

Yehohanan prosseguiu, desafiador:

É um cão mudo, nem ao menos late!

Reconheci alguns versículos do profeta Isaías. Yehohanan os mani­pulava a seu bel-prazer, como era habitual nele.

Eu não entendia. A que se devia aquele furioso ataque a Herodes àntipas, tetrarca da Galileia e da Pereia? O vau das Colunas, como já nencionei em outro momento, ficava em pleno território da Pereia. Ou seja, sob a jurisdição de Antipas, filho de Herodes, o Grande. Por mais que tenha pensado, sinceramente não encontrei uma explicação lógica para isso.

Ele tem visões! É um cão voraz! Nunca está satisfeito! Hiena selvagem! Cãozinho de estimação da puta de Edom! Tu te esconderás da ira de Yaveh debaixo da saia da dusara?

Também não entendi o negócio da "puta de Edom", e muito menos a alusão à dusara.

Abner explicou, baixinho:

Está falando de Herodíade, esposa de Antipas. Ela é de Edom. Dusara é um deus árabe.

Isso eu sabia. Dusara era um dos deuses do império nabateu (árabe).

Eu estava perplexo. A situação havia me abalado. Era a última coisa que eu podia esperar daquele fanático insensato. E compreendi a preocu­pação dos íntimos. Antipas era temível. O gigante havia ficado maluco? O que estava pensando? Evidentemente, era um desequilibrado. Como já disse, padecia de uma esquizofrenia de tipo hebefrênico; uma complexa fragmentação do eu que fere a personalidade e transforma o paciente em um ser fantasioso e praticamente isolado da sociedade.

Por que me espantava?

Filho de feiticeira! Filho de adúltera, que te prostitui!

Os seguidores, cada vez mais excitados, quase não lhe permitiam falar, interrompiam-no com seus "vivas". Estavam encantados com os duros ata­ques do vidente. Eu sabia que Antipas não era querido pelos judeus religio­sos, mas aquelas manifestações contra o tetrarca me pareceram perigosas, tanto para Yehohanan e seu grupo quanto para os ali reunidos. Sem dúvida, Antipas tinha espiões. Com certeza estavam no meio dos acampados.

E olhei para o pálido Abner com preocupação.

Pai do incesto! Filho do incesto! De quem debocharás quando che­gar a ira do Santo? Antipas, engendro de pecado! Bastardo! Filho de degolador de crianças nas cachoeiras!

Falava do pai de Antipas, Herodes, o Grande! Falava da matança dos inocentes!

Mas os acampados não entenderam essa última alusão. Era lógico. Haviam se passado 31 anos desde aquele trágico episódio.

Fiquei intrigado. Por que Yehohanan introduzia no discurso algo já esquecido?

E prosseguiu manipulando Isaías:

Sim, tu te despiste e subiste, não comigo, e sim com essa puta de Edom!

Os "justos" estavam desanimados, com razão. Eu não conseguia de­cifrar o porquê daquele violento ataque a Herodes Antipas e a Herodíade. Eu conhecia o assunto pelas passagens evangélicas, mas...

Embusteiro! Embusteira!

As pessoas gritavam de prazer. E alguns clamavam: "Eis aqui um ho­mem de honra!"

Julguei entender. Para a maioria daqueles que acampavam junto ao rio Yaboq, o gigante das pupilas vermelhas era um enviado dos céus; al­guém capaz de enfrentar o abuso e a tirania de Roma. Yehohanan - acre­ditavam - podia conduzir o povo à vitória sobre os kittim (romanos). Sua audácia ao criticar Antipas, o reizinho da Galileia e da Pereia, era o melhor sinal. Antipas era uma marionete de Roma.

Essas palavras foram mais importantes do que, de início, imaginei. Foram a chave para a detenção do "imprudente" (?) Anunciador.

Mas devo ir passo a passo.

O que as pessoas ali reunidas não sabiam, obviamente, é que aquele indivíduo de aspecto feroz e voz rouca era um desequilibrado mental. E, mesmo que soubessem, as coisas não teriam mudado.

Yehohanan simplesmente não tinha razão, e, além de tudo, estava pisando em um terreno pantanoso. Eu não tardaria a certificar isso.

Ele prosseguiu, com a mesma teatralidade:

Vou denunciar teus fatos! Tu vives em pecado!

Fez outra pausa. E repetiu:

Vives em pecado, maldito, com a mulher de teu irmão!

Houve certa confusão entre os seguidores.

E perguntavam uns a outros: "De que está falando?"

Abner me olhou, desolado. E comentou, finalmente:

Ninguém se importa com isso.

Com o quê? - perguntei como um tolo.

Com o fato de que ele viva ou não com a mulher de seu irmão. Além de tudo, não é verdade.

Naquele momento, não reparei na importância do que o pequeno grande homem estava falando. Só depois me dei conta.

Aqueles judeus estavam ali pelo que já comentei anteriormente: a possibilidade de Yehohanan encabeçar uma rebelião contra Roma. O resto não tinha importância. Por isso não entendiam a alusão à "mulher do irmão".

Quando gritares, maldito, que te salvem os reunidos em torno a ti! O vento ardente de Yaveh levará a todos!

Yehohanan, aparentemente, recuperou o rumo, e as pessoas o pre­miaram com novos vivas.

A filípica, em termos parecidos, prolongou-se por três horas. Três cansativas horas nas quais acabamos pelo chão, entediados. Mas Yehohanan continuava praguejando contra Antipas, contra a "puta de Edom", contra os romanos, e contra todos aqueles que se atrevessem a pôr em dúvida sua palavra.

Usou Isaías a seu bel-prazer, virou-o do avesso, segundo lhe interessava, e manipulou o nome de Yaveh a sua conveniência.

Yehohanan era o oposto de Jesus de Nazaré.

A maioria, esgotada, acabou se retirando.

E por volta das quatro da tarde, diante da pouca audiência, o gigante optou por interromper a longa ladainha de insultos e baixarias. Contei 93 expressões ofensivas contra o tetrarca Antipas e 94 contra Herodíade. O mais suave foi "cachorro", "puta", "bosta" e a palavra favorita do Batista para desprezar alguém: hara’im ("excremento humano").

Esse era o anunciador do Filho do Homem?

Fico louco quando vejo as barbaridades que a Igreja Católica proclama.

O Batista finalmente compreendeu que aquilo estava esgotado e pu­lou da coluna. Pegou o "barril" colorido que fazia às vezes de colméia e dirigiu-se à nossa margem.

Abner e os demais se levantaram.

Passou diante do grupo, mas não cumprimentou. Ou melhor, cum­primentou do seu jeito.

Parou um instante e olhou da escuridão do capuz.

E simplesmente ordenou:

Esrin, fala-me!

Eu conhecia essa ordem. Ouvi-a muitas vezes durante minha perma­nência na garganta do El Firan.

Obedeci, naturalmente. Que mais podia fazer?

Yehohanan sentou-se ao pé da acácia. Continuava usando o "xale" de cabelo humano na cabeça.

Os "justos" sentaram-se também, cercando seu líder.

Eu me sentei de frente para o gigante. E coloquei a "vara de Moisés" sobre as pernas. Com aquele energúmeno, nunca se sabia.

Notei expectativa.

O fato de Yehohanan querer falar com um dos "justos" era um acon­tecimento e uma "honra".

Imediatamente percebi o inconfundível cheiro de suor que o Batista emanava. Não tive mais remédio que resistir. Alguns, disfarçadamente, tamparam o nariz.

Faltava uma hora, mais ou menos, para o ocaso. O sol fugia por cima das copas das acácias. Não estranhei.

E, de repente, ele tirou o "xale".

Eu o havia visto muitas vezes, mas a visão daquele rosto sempre im­pressionava.

Ele cravou suas pupilas vermelhas em mim e, montado em sua habi­tual arrogância, perguntou:

Já preparaste os exércitos?

A "borboleta" em seu rosto e a ferocidade daqueles olhos me descon­certaram durante alguns segundos.[46] Era difícil se acostumar.

Abner, ao meu lado, deu-me uma cotovelada. E "voltei".

Exércitos? Que exércitos?

Yehohanan me olhou, incrédulo.

Os exércitos de Yaveh. Todo mundo está esperando. Eu espero. O que espera Jesus para se levantar em armas? Já falamos sobre isso.

Sim, havíamos falado, e ele me mostrou, inclusive, aquele pergaminho fantástico, que eu batizei de "323", ou da "vitória". Lá, no pergaminho, segundo Yehohanan, estavam os exércitos de Deus reunidos contra Roma e liderados pelo Mestre e por Yehohanan, dentre outros profetas. Outra idéia delirante.

Não há exércitos.

Minha resposta acendeu as pupilas vermelhas. E o nistagmo vertical (oscilação do globo ocular em sentido vertical, provocada por espasmos involuntários dos músculos motores) ficou insuportável. Aquele contínuo subir e descer dos olhos fazia mal a quem o contemplava. Eu não fui uma exceção. Tive que engolir em seco.

Ele explodiu:

Estás mentindo!

Os "justos" se encolheram. Outra tempestade se aproximava.

Mas eu não me acovardei.

E o enfrentei.

Eu nunca minto! Não há exércitos! Ele triunfa com a palavra! Não precisa de armas!

Ele se levantou. Jamais ouvia o que não queria ouvir.

Inclinou-se para quem isto escreve e estendeu a palma da mão esquerda, situando-a a uma polegada de meu rosto.

Abner empalideceu.

Não retrocedi um milímetro.

Recorda quem sou! - gritou. - Sou d'Ele!

Isso estava gravado a fogo na palma de sua mão: "Seu". (Literalmente: "Eu, do Eterno", em hebraico.) Era outro sinal de "pertinência", de corpo e alma, ao Yaveh bíblico.[47]

Fiquei em silêncio, sem tirar o olho dele.

Seus lábios, grossos e sensuais, tremeram. E vi parte de sua dentição desorganizada. Não sabia o que fazer.

Ele gritou, em uma tentativa de me subjugar:

Sou d'Ele! Quem como eu?

Senti pena. Não havia dúvida, era um demente. Eu insisti, com firmeza:

Não há exércitos!

Yehohanan deu um passo atrás. Não era tolo. Compreendeu que com Esrin aquelas maneiras não adiantavam.

Tornou a se sentar ao pé da árvore, e Abner e os demais respiraram aliviados. Eu também.

Então, recuperando um tom mais adequado, deu uma guinada na conversa e perguntou pelo prodígio de Caná.

Que desejas saber?

Estavas lá?

Sim.

É verdade que Ele transformou a água em vinho?

Todos sabiam, mas queriam ouvir. E relatei o que julguei oportuno.

Sim, para maior glória de seu Pai dos céus.

Ele disse isso?

Foi o que disse.

Proclamou a ira de Yaveh?

Ele não acredita nisso. Seu Deus é diferente.

E qual é seu Deus?

O mesmo que o teu, e que o meu, e que o de todos. Um Deus des­conhecido, ainda.

Ele não compreendeu, nem lhe interessou.

E por que não transformou a água em sangue? Teria sido mais efetivo. Os "justos" aplaudiram o comentário. Era próprio de um desequilibrado. Dei de ombros. Não valia a pena entrar em discussões absurdas. Yehohanan prosseguiu.

E o que disseram os romanos?

Ignoro. Não havia romanos lá, que eu saiba.

Os kittim estão em todos os lugares..

Nisso tinha razão. Os scorpio ("escorpiões"), como chamavam seus espiões, não tardaram a saber do prodígio de Caná, e não precisaram de muito tempo para saber da existência daquele suposto profeta que pedia o arrependimento e que pretendia a ruína de Roma. Agora posso dizer: não foi Roma quem prendeu Yehohanan, mas o teria feito se Antipas não houvesse intervindo.

Que planos tem?

Desconheço-os.

Eu disse a verdade. Não conhecia os pensamentos do Mestre a respeito do futuro imediato.

E, bruscamente, ele parou de perguntar. Abandonou o grupo e se sentou fora do círculo de pedras. Abriu a colméia e tirou sua dose diária de mel. Ninguém comentou nada.

Terminado o jantar, sem uma palavra, pegou o "barril" colorido e entrou nas águas do Yaboq, afastando-se rumo ao bosque das acácias.

O sol foi com ele.

 

Acenderam-se as tochas e, com elas, as discussões.

Ninguém entendia nada.

Por que Yehohanan se preocupa com o carpinteiro de Nahum?"

"Ele é o verdadeiro Messias."

"Nesse caso, por que não faz portentos, como Jesus?"

O prodígio de Caná havia abalado o moral do grupo. Alguns "justos" pretendiam que o vidente fosse para a cidade mais próxima e que repetisse o ocorrido na festa da Sapiah. A idéia de transformar a água em sangue foi muito aplaudida. Mas em que cidade? A maioria apontou Jerusalém. Havia chegado a hora.

"A magia do Galileu seria resultado de um pacto com o 'senhor das moscas' (Belzebu)?"

"O que deviam fazer se as críticas chegassem aos ouvidos de Antipas? Desintegrar o grupo? Fugir? Enfrentar o martírio?"

Mais de um comentou, acertadamente, que Antipas já sabia. Gente estranha andava por aquele acampamento.

"Fugir? Nunca."

Abner se opôs com todas as suas forças. Não abandonaria seu ídolo. Yehohanan é o Messias libertador. Esse Jesus desapareceu."

Judas não abriu a boca.

Não houve jeito de entrar em acordo. Cada um puxava a brasa para sardinha, segundo seu entendimento e seus interesses.

Eu também fiquei em silêncio, atento.

Mas concordaram, e por unanimidade, com a "atração" popular do Batista. Repetiram isso várias vezes: "Era a hora. Convinha se organizar e levantar o povo contra os malditos kittim. Jogariam os romanos ao mar. Seria o início da glória".

Judas interveio. Estava eufórico:

Sim, temos que nos organizar. Devemos começar pelas armas.

Fez-se silêncio.

Abner pôs as coisas em seu devido lugar:

E de onde tiramos dinheiro?

Aí, o entusiasmo acabou.

Ninguém quis comprometer fazenda ou fortuna. Uma coisa eram palavras e intenções, e outra a realidade, como sempre, e como em todos os lugares.

Precisaram de tempo para retomar a discussão. O assunto, de fato, não era tão simples.

E o pequeno grande homem, por último, levantou o que, sem dúvi­da, era o problema capital naquele momento: os duríssimos ataques de Yehohanan ao tetrarca Antipas e a Herodíade.

Nisso também houve unanimidade.

Ninguém entendia o porquê do perigoso comportamento do viden­te. E ninguém recordava por que começara a absurda e desagradável cam­panha contra o filho do Grande.

Isso me interessava, e fiz perguntas.

As respostas me desconcertaram. Nunca haviam conversado sobre isso. Nunca estimularam Yehohanan a atacar Antipas, e muito menos He­rodíade. Por que fariam uma coisa dessas? A libertação de Israel ocupava seus pensamentos.

Estavam confusos e, o que era pior, temerosos. Herodes Antipas era digno filho de seu sanguinário pai. Podiam esperar qualquer reação (de dia ou de noite). Antipas era bem capaz de prender a todos e de passá-los na faca ou desterrá-los.

Assenti. Antipas era cruel, injusto, ambicioso e covarde.

Péssimo negócio, pensei.

Antipas não permitiria a menor ameaça de rebelião, pelo menos não em seus territórios. Os "justos" sabiam, e tinham ciência também de que Roma estava por trás do tetrarca da Pereia e da Galileia. Se Yeho­hanan arrastasse a multidão, como acontecia, e fizesse a mínima alusão à insurreição contra o poder estabelecido, adeus Yehohanan. Sua prisão poderia ser fulminante.

Todos estavam cientes dessa delicada situação. Por isso o terror.

Ao começar a ouvir a filipica, reconheço que me distraí. Conhecia os textos evangélicos, nos quais os "escritores sagrados" (?) contam sua versão sobre a prisão e morte de Yehohanan.[48] Não sei o que aconteceu comigo. O ataque a Antipas foi tamanha surpresa para mim que precisei de tempo para reagir. Eu conhecia o tetrarca. Foi o sujeito que tentou interrogar o Mestre na dramática madrugada de sexta-feira, 7 de abril do ano 30. Jesus, como se pode recordar, não abriu a boca. Antipas também foi o injusto governante que negou a indenização à família do Galileu após a morte de José, quando este construía um edifício público na cidade de Séforis, capital da Galileia. Jesus, pessoalmente, solicitou a indenização, mas Antipas negou. O Filho do Homem tinha 14 anos.[49]

E foi ali, no vau das Colunas, que comecei a esclarecer as dúvidas.

Os evangelistas - como não - eram responsáveis, em boa medida, por minha confusão.

Simplesmente: a condenação a Herodes Antipas era injusta.

Herodíade não era mulher de seu irmão, como escrevem os citados "escritores sagrados" (?). Herodíade era a legítima esposa de Antipas. Eu fui o primeiro equivocado.

A história, uma vez mais, fora manipulada. Em síntese, isto foi o que consegui saber sobre o assunto: Antipas, um dos muitos filhos legítimos de Herodes, o Grande (os ilegítimos eram dezenas), era casado com uma princesa nabateia (árabe). Mas, em uma de suas viagens a Roma (possivelmente no ano 25), ao visitar Herodes Felipe, um de seus meio-irmãos (filho da terceira esposa do Grande), conheceu Herodíade, mulher do referido Herodes Felipe, e se apaixonou por ela. Outros afirmavam que o tal H. Felipe era, na realidade, Herodes, filho de Mariane II, que também se casou com o Grande. Herodíade, por sua vez, era filha de Aristóbulo (estrangulado por ordem de Herodes, o Grande) e, em consequência, neta deste último. Do casamento entre Herodíade e Herodes Felipe nasceu Sa­lomé, a célebre bailarina que pediu a cabeça de Yehohanan. A questão é que Antipas propôs casamento a Herodíade, e ela aceitou. E ambos decidiram que, ao voltar a Israel, Antipas se divorciaria da princesa árabe e se casaria com He­rodíade. E assim foi. Herodíade e Antipas assinaram os devidos documentos de repúdio, ou divórcio, e se casaram com todas as bênçãos legais.

Em outras palavras: Herodíade não foi mulher de seu irmão, e sim de seu meio-irmão. Não era sobrinha de sangue de Antipas. Ou seja, do ponto de vista do parentesco de sangue, a relação era distante.

Os evangelistas mentiram ou foram enganados.

E o mais importante: Antipas e Herodíade haviam se casado legalmen­te; não podia ser diferente, dado o status real de Antipas e a origem também nobre de Herodíade. Roma não teria aceitado uma situação ambígua.

E aconteceu que a esposa nabateia de Antipas, chamada Fasaleia, acabou sabendo do complô e fugiu para Sela, a "Rocha" (atual Petra, na Jordânia). Lá, refugiou-se no império de seu pai, Aretas IV.[50] E o nabateu jurou vingar-se de Antipas. (Na realidade, as disputas entre Antipas e Aretas IV eram antigas, e quase todas tinham origem em problemas de territorialidade ou de controle das rotas principais. Alguns atritos remontavam à época de Herodes, o Gran­de.[51] Anos depois [em 36], Aretas IV acabou derrotando Antipas.)

Em resumo: alguém manipulou a verdade e fez a posteridade acredi­tar no que não era verdade. A saber:

Antipas não "roubou" a mulher de seu irmão.

Seu irmão, na realidade, era seu meio-irmão.

Herodíade não era sobrinha de sangue de Antipas.

Houve divórcio prévio ao casamento entre Antipas e Herodíade, como exigia a lei.

Antipas não prendeu Yehohanan por causa de Herodíade, como afirmam os evangelistas. As razões foram outras, e mais graves, como re­latarei mais adiante.

Os "escritores sagrados" (?) não dizem que naquele tempo o casamento entre parentes era permitido, e inclusive recomendado. Ainda mais na família herodiana. Só alguns poucos, especialmente os "santos e separados", polemizavam a respeito. E nem entravam em acordo entre si. Para o povo, como se pode compreender, essas discussões legais e religiosas pouco importavam.

Yehohanan, como os demais discípulos, estava a par dessas notícias e esses pormenores. Por que, então, deu início àquela imprudente campanha contra Herodes Antipas?

 

Os "justos", insisto, não entendiam, e quem isto escreve também não.

A não ser que...

Mas descartei a idéia. Pareceu-me absurda.

Algum tempo depois, quando o Destino permitiu que contemplasse o que contemplei, compreendi que a intuição sempre acerta.

Mas não quero me antecipar aos acontecimentos. Tudo deve andar passo a passo na vida, e ainda mais nesta assombrosa história.

Além de tudo - repetiam os discípulos, com razão -, que importa Herodíade? Estavam debatendo algo de maior envergadura e de extrema importância: o Messias e a libertação de Israel.

Por que o vidente insistia em insultar o tetrarca e sua legítima esposa?

Havia uma razão - uma poderosa razão - mas, como disse, naquele momento passou despercebida para este explorador. Os "justos" também não se deram conta disso. Quem poderia imaginar uma coisa assim?

 

O vidente só voltou três dias depois.

Pensei em adentrar o bosque das acácias, como já fizera em outra oportunidade, mas desisti. Achei mais interessante assistir às discussões entre os discípulos. Eram constantes e cada vez mais acaloradas.

"Aquele não era o caminho", afirmava a maioria.

"Era urgente que Yehohanan mudasse de tática para pregar."

"Os insultos ao casal Antipas-Herodíade não contribuem em nada à ne­cessária sublevação de Israel. Muito ao contrário: podem conduzir ao desastre."

E uma parte do grupo propôs a Abner a possibilidade de abandonar :o vidente, "caso não aceitasse essas condições".

O pobre Abner viu-se entre a cruz e a espada. Reconheceu que aqueles que assim falavam tinham razão. E prometeu expor o assunto a seu ídolo. Ou­tra questão era a reação de Yehohanan. Todos sabiam que ele era imprevisível.

Nesses dias, para minha surpresa, o número de acampados cresceu consideravelmente. Contei mais de 1.500. As pessoas se aglomeravam no vau como podiam, e os vendedores e oportunistas sorriam à toa. Eram de toda classe e condição. Procediam dos lugares mais remotos e inesperados.

Todos queriam (exigiam) ver e ouvir o novo profeta. Todos queriam saber do homem que anunciava o fim de Roma e dos tempos. Todos queriam se arrepender e, de quebra, derrubar alguma coisa.

Percebi uma enorme falta de informação entre os ali reunidos.

Confundiam Yehohanan com Jesus de Nazaré. Chegavam com a idéia de que o prodígio de Caná acontecera no vau das Colunas. Inclusive pergunta­vam pelo "vinho prodigioso". Houve quem oferecesse dinheiro para prová-lo.

Os discípulos do vidente ficavam nervosos. "Yehohanan - diziam - não se dedica a essas minúcias."

Muitos se sentiam decepcionados. E as polêmicas surgiam aqui e ali, como as fogueiras.

Para piorar, Yehohanan havia desaparecido.

Na quarta-feira, 17 de abril, ao amanhecer, Abner e quem isto escreve estávamos na margem dos seixos brancos. Contemplávamos o panorama. Centenas de pessoas iam e vinham, discutiam, esperavam. E o pequeno grande homem fez um comentário, alertando-me sobre algo que eu não havia notado. Apontou para uma série de indivíduos e, de fato, percebi: eram sujeitos estranhos, com um comportamento não menos estranho. Não eram judeus nem badu (beduínos). Estavam misturados na multidão, quase sempre em duplas. Não falavam com ninguém. Só entre si. Apesar das altas temperaturas (naquele momento, devia beirar os 25°C), usavam manto e capuz. Sim, era chamativo.

Abner confessou seus temores. Provavelmente estávamos diante de um grupo de espiões de Antipas. Também podiam ser "escorpiões" (a serviço dos kittim).

E disse que estavam com eles fazia tempo. Viram-nos no bosque dos lenços. Sempre se comportavam da mesma forma. Eram fugidios. Jamais participavam. Nunca punham os pés no guilgal, nem haviam se subme­tido à cerimônia de imersão nas águas. Ninguém os viu perguntar sobre Yehohanan. Dormiam no acampamento ou nos arredores. Observavam tudo, mas, como disse, ficavam à margem.

Abner foi além e confessou que podiam ser membros da guarda pre­toriana de Antipas.[52]

Isso era importante.

Eu os havia visto em Jerusalém, durante a visita ao palácio de Antipas, no triste dia 7 de abril do ano 30. A guarda pessoal do tetrarca era temível.

Os que cheguei a ver usavam uniforme: túnicas verdes de meia manga, com o tronco e o ventre cobertos por uma "camisa", ou armadura, trançada à base de escamas metálicas. Nas costas carregavam estojos de couro cheios de flechas. Eram especialmente hábeis com o arco.

Esses, os camuflados com os mantos, vestiam-se "à paisana".

Tratava-se dos somatophylax, os sanguinários "guarda-costas" de Herodes Antipas. Era preciso ter cuidado. Aquela guarda, formada fundamentalmente por gauleses, era famosa por sua brutalidade e pela fidelidade ao tetrarca.

E Abner, com bom-senso, recomendou prudência.

Mas aconteceu o inevitável.

Alguns dos acampados também notaram a presença dos encapuzados na margem e, tão ousados quanto ignorantes, os interpelaram.

Abner e eu nos olhamos, desconcertados.

E o azar fez com que Judas, o Iscariotes, se encontrasse nas proximidades.

Mas a dupla de estrangeiros não respondeu às perguntas dos acampados. E continuaram sentados nos seixos brancos. Pareciam não enten­der o aramaico de quem perguntava. Não eram perguntas difíceis. Queriam simplesmente saber o lugar de origem dos encapuzados.

Abner pensou em intervir, mas hesitou. Fez bem.

E um dos curiosos, que dirigia o grupo, elevou o tom, recriminando o silêncio e a má educação daqueles que se cobriam com os mantos.

Outros acampados, alertados pelas vozes, aproximaram-se.

E aquele que perguntava insistiu. Mas também não obteve resposta. Juguei, sinceramente, que os encapuzados não entendiam.

Abner chamou minha atenção sobre outras duplas de encapuzados. Haviam começado a se aproximar do grupo.

Se efetivamente fossem da guarda gaulesa, aquilo podia se transfor­mar em uma tragédia.

Lamentei não dispor da "vara de Moisés". Eu a havia deixado no guilgal.

Tudo se precipitou em questão de segundos.

O acampado que dirigia as perguntas acabou se aborrecendo e, com um movimento brusco de mão, tirou o capuz de um dos que se escondiam sob o manto. A capa caiu no chão, e o indivíduo se levantou de um salto. Era jovem, de cabelo louro, quase branco, e os olhos claros. Era um gaulês, sem dúvida. Abner estava certo. Podia ser um mercenário, a serviço de Antipas.

O rapaz (não devia ter mais de 20 anos) pegou sua sica, um punhal curto, e brandiu-o diante dos acampados.

Retrocederam, atônitos.

O gaulês usava um longo bigode, também louro, e tinha o torso nu. No peito, nos ombros e nas costas, tinha várias tatuagens azuis. Eram to­das idênticas. Pareciam pegas (os pássaros).

O segundo encapuzado também se levantou e ameaçou os presentes com outro punhal.

Ninguém se mexeu.

E os gauleses trocaram algumas palavras em seu idioma. Depois, de comum acordo, retrocederam, encarando os acampados. Os demais enca­puzados observavam a cena à distância. Não havia dúvida de que estavam dispostos a intervir, se fosse preciso.

A situação parecia resolvida, quando, de repente, o homem das tatua­gens tropeçou em um dos perplexos observadores.

Ambos rolaram pelos seixos.

Era Judas!

Abner correu para o grupo.

O gaulês se ergueu de imediato, mas chegou a ouvir umas palavras, pronunciadas pelo furioso Iscariotes. Judas amaldiçoou o gaulês. E emitiu um som que, de início, eu não soube interpretar.

Repetiu-o. Era mais ou menos assim:

- Ak-ak!

Em aramaico significava "pega", mas não compreendi por que a alu­são às tatuagens. Ou não era isso?

O gaulês colocou a sica na garganta de Judas. Ele entendia aramaico.

Não sei o que teria acontecido sem a rápida intervenção do segundo encapuzado. Ele segurou o braço de seu companheiro e o arrastou para a trilha de terra vermelha. E ambos se perderam em direção a Damiya. Os outros encapuzados foram atrás deles.

Ao ver o punhal no pescoço de Judas, temi o pior.

Depois, sorri com meus botões. O Destino, obviamente, não teria permitido que Judas se desse mal.

Abner rapidamente foi ver o estado do Iscariotes, e também de alguns acampados.

Ele estava mais pálido que o habitual.

Não disse nada.

Deixou-se conduzir pelo pequeno grande homem e retornamos ao guilgal.

Judas se limitou a beber água e permaneceu em seu habitual mutismo.

Não tornamos a ver os gauleses durante aquele dia.

-Alguns "justos" se prestaram a ajudar o lívido Iscariotes e o felici­taram por seu comportamento. Foi quando eu soube que o som emitido pelo discípulo era um insulto contra os malditos e odiados gauleses. Todos, ou quase todos, possuíam tatuagens semelhantes. Era um dos símbolo da tribo à qual pertenciam, a Hallstat. A pega-azul, ou pega-rabuda, era um dos pássaros da sorte para aqueles mercenários. Acreditavam que essas tatuagens lhes propiciariam bons butins. (Diz a lenda que a pega, um corvídeo especialmente inteligente, guarda em seus grandes ninhos todo tipo de objeto brilhante.)

Sinceramente, o gesto de Judas não me pareceu um sinal de valentia; foi mais uma insensatez. Abner concordou com este explorador. Insultar um gaulês podia ser patriótico, mas nunca inteligente.

Seja como for, a questão é que a maior parte dos discípulos se sentiu constrangida com o incidente. Tinham que falar urgentemente com Yehohanan. A situação, uma vez confirmada a presença da guarda pretoriana de Antipas, tornava-se especialmente perigosa.

Mas quando ele voltaria?

E alguém falou de enviar um mensageiro ao bosque das acácias.

 

Não foi necessário.

Yehohanan, como se intuísse alguma coisa, apareceu no dia seguinte, quinta-feira, 18 de abril. Outra data difícil de esquecer.

Não me cansarei de insistir nisso. Yehohanan não era uma pessoa normal (em nenhum sentido). Era um perturbado, mas, às vezes, mostrava - como definir - uma "lucidez" que desconcertava. Naquele dia, tornou a demonstrar isso.

Porém, antes de ele aparecer no vau das Colunas, aconteceu algo que também não foi normal.

Acabava de amanhecer.

Eu fui ao rio, a fim de me lavar. Então, eu os vi.

Abner e outros "justos" também os detectaram.

De início, pensei em novos seguidores. Se os números não mentis­sem, naquele momento o número de acampados no vau e arredores supe­rava os 1.500.

Mas não. Não eram seguidores do Batista.

Foi algo pior.

Eram os gauleses, de novo.

Voltaram, em um grupo notável. Contei mais de 200.

Todos estavam encapuzados.

Ocuparam a trilha de terra vermelha que ligava o vau à aldeia de Damiya e se espalharam pela "praia".

Pareciam nervosos.

Os acampados continuavam com suas coisas, ocupados no asseio matinal, na preparação do café da manhã, na coleta de lenha, ou na ten­tativa de enxotar a nuvem de vendedores e pilantras. Tudo mais ou me­nos normal.

E nisso estava eu, atento à guarda pretoriana de Antipas, quando ouvi o chofar. Foi outro toque longo e cansado.

Yehohanan surgiu do outro lado do rio. Estava de cabeça descoberta, sem o costumeiro "xale" de cabelo humano. Em sua mão esquerda, o "bar­ril" colorido, a temida colméia.

E foi avançando, devagar, pelas águas.

Abner e os discípulos correram para a margem. Eu me juntei a eles.

Alguns comentaram que havia chegado a hora. Dessa vez, conversa­riam com o vidente. Se ele não aceitasse as condições estabelecidas - es­quecer os insultos ao tetrarca e a sua mulher, Herodíade -, abandonariam o grupo. E insistiram: "A liberdade do povo está em jogo."

Os vários seguidores e curiosos ficaram indecisos por alguns mo­mentos. Depois, reagiram. Deixaram de lado o que estavam fazendo e se reuniram na margem, expectantes.

Os gauleses que estavam perto da água também se aproximaram.

Eram cerca de 60.

Posicionaram-se formando um círculo e obrigaram os acampados mais próximos a se retirar. As pessoas obedeceram, temerosas.

E vários mercenários começaram a assoviar. Eram sinais, evidente­mente. O pessoal da trilha ouviu os assovios e atuou imediatamente.

Yehohanan já havia subido na pilastra de costume. Colocou a col­méia ao lado e jogou as sete tranças louras para trás.

Abner e quem isto escreve não sabíamos para onde olhar.

E pelo caminho de terra vermelha surgiu uma pequena comitiva. Contei seis pessoas; todas também encapuzadas.

Os gauleses foram rapidamente escoltá-las e guiá-las. Mais de cem homens cobriram os flancos. Os acampados se afastaram, ou simplesmente eram afastados à força.

Os "justos" ficaram alarmados. Quem eram aqueles "principais"? Foi assim que os chamaram.

Abner pediu calma. Podiam ser altos funcionários de Antipas ou tal­vez sacerdotes de Jerusalém. Judas não concordava. A guarda pretoriana do tetrarca não estava ali para proteger a casta sacerdotal. Ele tinha razão.

Tratava-se do próprio Herodes Antipas?

Ninguém foi capaz de afirmar. Ninguém o reconheceu. Todos, como disse, estavam com a cabeça e o corpo cobertos com os mantos. Pela forma de se movimentar, um dos recém-chegados parecia uma mulher, mas não tive certeza.

Três servos, munidos de grandes guarda-sóis vermelhos e azuis, acom­panhavam a comitiva e tentavam proteger os "principais" do sol ardente.

Alguém disse algo a respeito do vidente. Convinha avisá-lo. Tarde demais.

Os "principais" alcançaram a margem e se acomodaram nos seixos brancos. Os gauleses engrossaram o círculo protetor e se colocaram de fren­te para os surpresos acampados. Entre estes e a guarda, não devia haver mais de 50 metros. Nós estávamos águas abaixo, a uma distância similar.

E começou o "teatro".

Abner, em voz baixa, pediu calma pela enésima vez. Ninguém devia se mexer. Essas foram as ordens do ari. E acho que todos obedeceram.

Para dizer a verdade, a atenção do grupo estava dividida entre Yeho­hanan e os recém-chegados.

Eu me perguntei: "Como o Batista reagirá?"

Yehohanan não enxergava bem, conforme apontei em outro momento. Era outra consequência do albinismo ocular de que padecia. Chegaria a perceber a presença dos estranhos?

E o Anunciador, seguindo o costume, após dois minutos de tensa espera, foi erguendo os braços.

Ouvimos um murmúrio de admiração.

Yehohanan abriu os dedos e apontou com eles para o azul do céu.

O silêncio voltou a reinar. Os "principais" não falavam. A guarda permanecia atenta, sem perder os acampados de vista.

A intuição tocou meu coração.

Aquela não seria uma filípica como as outras.

Eu também não sabia em quem prestar atenção.

Tentava descobrir se Antipas ou Herodíade estavam entre os "princi­pais", mas não sabia como.

E deixei que o Destino cuidasse disso.

E saindo - começou o Batista -, verão os cadáveres daqueles que se rebelaram contra mim.

O silêncio foi total. Não sei se as águas pararam também.

E sairão, e verão os cadáveres dos homens que transgrediram con­tra mim; porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagará; e eles serão um horror para toda a carne.

Dessa vez, o "sermão" começou com o último versículo do capítulo 66 do profeta Isaías, um de seus favoritos. Ele o manipulou, claro está:

Assim, pois, de lua nova em lua nova, todo mundo virá se prostrar diante de mim.

Fez uma pausa e deu início às acometidas:

E tu, Antipas, o chacal, virás me prestar obediência? Assim diz Yaveh.

Não houve movimento algum entre os "principais".

O povo ali congregado reagiu. E surgiram os primeiros vivas.

A seguir, foi a vez do profeta Jeremias. Ele mudou os textos a seu bel-prazer, sem o menor pudor:

Declarai a guerra santa! Em pé, subamos contra os ímpios! Yaveh nos chama! É hora da ira e da vingança! Onde te esconderás, Roma, puta das putas?

Os vivas foram gerais.

Alguns seguidores tentaram chegar à água e se aproximaram perigo­samente do círculo formado pelos gauleses. Eles se interpuseram e obri­garam os acalorados acampados a retroceder. Em pouco tempo, outros encapuzados, que montavam guarda na trilha de terra vermelha, foram em auxílio do pessoal do círculo. Não precisaram agir. A multidão recuou.

Abner balançou a cabeça negativamente. A situação era muito des­confortável.

Ai de nós! O dia vai caindo e Yaveh continua sem recompensa.

E tornou a arremeter contra o tetrarca:

Atropelo! Despojo humano! Aprende, Antipas! Não seja que se afaste minha alma de ti! Não seja que te transforme em desolação! Antipas, acorda! Antipas, atropelador! Eu também estou cheio de sanha de Yaveh! E cansado de retê-la, eu a verterei sobre a criança da rua e sobre o grupo de mancebos juntos. Mas, acima de tudo, sobre ti, Antipas, carniceiro! E sobre a mulher, a dusara!

A multidão não entendia a miscelânea dos ataques a Roma, as alu­sões à vingança do colérico Yaveh e os insultos a Herodes Antipas e à badawi (Herodíade).

Dava no mesmo.

Era a palavra "Roma" que arrastava tudo. E aplaudiram, e gritaram o nome do vidente, cada vez com mais raiva.

"Abaixo Roma! Abaixo as marionetes de Roma!"

Esses foram os gritos que às vezes abafavam as palavras de Yehohanan.

Os olhos de Judas brilhavam. Yehohanan era seu homem.

No círculo dos "principais" ninguém mexeu um dedo. Os únicos que pareciam vivos eram os escravos dos guarda-sóis. De vez em quando erguiam a vista e verificavam a posição do sol.

Antipas e Herodíade serão presos!

O clamor quase desapareceu.

Ele e a dusara cederão suas casas a outros! E se envergonharão das abominações que fizeram. Cairão com os que caírem! E será muito longe, no fim do mundo! Atenção ao toque do chifre! Eis que trago desgraça a este povo porque a minhas razões não atenderam e porque repudiaram minha lei!

E surgiu a surpresa principal (houve outras), pelo menos para quem isto escreve. De repente, erguendo de novo os braços e a voz, clamou:

Antipas, maldito, Yaveh fala contigo!

O silêncio foi sepulcral.

Há 161 luas novas desenhadas sobre ti e sobre essa puta de Edom!

E repetiu:

Há 161 luas novas para pôr fim a tua rebeldia! Há 161 luas para selar teus pecados, para expiar tua culpa e para instaurar a justiça!

Abaixou os braços lentamente e ficou em silêncio durante um longo minuto.

Ninguém respirava.

O que ele quis dizer? Seria outra loucura sua?

Abner fez contas com os dedos, mas estava confuso demais. Eu pre­cisei de tempo para entender.

Yehohanan se apoiava no capítulo 9 do livro de Daniel. Mas o texto do profeta não diz isso. E dei de ombros.

E ele prosseguiu com o livro de Daniel.

Sejam confundidos os que a teus servos fazem mal! Tu, Antipas, e tu, Herodíade, ficareis cobertos de vergonha! Sereis privados de todo po­der! Sereis arrancados dentre os homens e vossas unhas crescerão como as das aves!

Continuava manipulando a seu bel-prazer. Essas palavras pertencem ao capítulo 4, mas Daniel jamais faz alusão ao tetrarca da Pereia e da Gali­leia. Como podia fazer, se o livro, como disse, foi escrito dois séculos antes?

Por isso Yaveh enviou a mão que te adverte! Meneh: Deus mediu teu reino! Antipas, corrupto! E lhe pôs fim! Teqel: Deus pesou tua alma na balança e te encontrou sem peso! Parsin: teu reino foi dividido e será entregue aos teus!

As três enigmáticas palavras significavam (em aramaico) "medir" (meneh), "pesar" (teqel) e "dividir" (Parsin). Na realidade, era um velho jogo de palavras que fazia alusão aos persas (parah) e a seu declínio. Mas Yehohanan se apossou dele e o deturpou, naturalmente.

E Yaveh mandou revestir de púrpura seu profeta! Tu me concede­rás, chacal de rapina, um colar de ouro que adorne meu pescoço? Ou o cortarás com o machado em tua bebedeira?

Senti gelo nas veias.

Yehohanan não sabia do que estava falando. Não tinha consciência de que acabava de anunciar sua própria morte. Yehohanan era uma cria­tura estranha, sim. Não resta dúvida de que alguém dirigia suas palavras.

Os "ilustres" se remexeram, inquietos. Haviam chegado ao limite da paciência. E acabaram se levantando. A guarda se preparou.

Por fim, deram as costas ao vidente e caminharam rumo a Damiya. Mas Yehohanan captou a cena e arremeteu de novo contra os encapuzados.

Não fujais, covardes!

Os "principais" pararam. Ou melhor, um deles parou. O resto o imitou.

Meu Deus enviou seu anjo! O fim chegará para ti, para a puta de Edom e para os ímpios que queimam incenso para os deuses do Ocidente!

Voltaram os vivas e, ao mesmo tempo, os assovios de repúdio aos que te retiravam. Abner não sabia se ria ou chorava.

Mas o vidente não havia acabado.

Entende e compreende, filho de Baal-Zevuv (Deus das moscas)! A partir deste instante, Yaveh traçou o fim! Quando Gog chegar, a profecia será realizada!

Fiquei perplexo. De que diabos estava falando?

E Yaveh enviará a grande rocha, para que todos saibam de quem é o mundo! E o mundo se vestirá de luto e de gelo! Mas a desolação não será eterna! Então, aparecerá um Filho do Homem e o mundo será ancorado na luz!

Os "principais" se negaram a continuar ouvindo. Deram meia-volta e se afastaram. E todos os gauleses foram com eles.

Yehohanan não se alterou e prosseguiu em cima da pilastra vomitando insultos e inconveniências contra o tetrarca, contra a esposa, contra os kittim e, especialmente, contra os que não prestavam atenção aos profetas. Anunciou o fim do mundo mais de dez vezes, e sempre de forma dife­rence. Ameaçou com fogo, com guerras, com fome e, acima de tudo, com aquela misteriosa "grande rocha que cairia dos céus".

As pessoas estavam fora de si. Ovacionavam-no. Aplaudiam. Choravam. Abraçavam-se. Pediam sangue. Não importava de quem. Ameaçavam Roma. Exigiam armas. Queriam a liberdade e a guerra.

"Abaixo Roma!"

Foi o grito unânime que pairou no vau das Colunas durante muito tempo.

Abner e os discípulos pulavam e gritavam de prazer. Esqueceram as críticas a Antipas. Só a sublevação e a preparação do novo reino contavam. O Messias estava lá, no alto daquela pilastra, com uma colméia aos seus pés, as pupilas vermelhas, uma "borboleta" no rosto e sete tranças louras ao vento.

Que mais podiam querer?

Contei uma centena de insultos e insolências contra o tetrarca e Herodíade.

E acabei sentado nos seixos brancos, confuso e abalado.

Seguindo aquele caminho, Yehohanan e os seus não tardariam a ser esmagados. Fosse por Roma ou por Antipas, a certeza é que seriam.

Não me enganei.

E às 11 da manhã, após quase cinco horas de filípica, o vidente pulou para as lentas águas do Yaboq e se juntou aos "justos" no guilgal. Quando passava, as pessoas o estimulavam, abençoavam-no, beijavam-no, toca­vam-no.

Foi, sem dúvida, um dos dias de glória do Batista. Todos estavam eufóricos. Todos menos quem isto escreve.

Foi a única vez que vi Yehohanan chorar, mas nunca soube se o pran­to era de alegria ou de pesar. Ele, naquele momento, sabia que a sorte (a dele) estava lançada.

Por fim, ele foi se sentar ao pé da acácia. E todos o cercaram, extasiados.

Abner beijou suas mãos, e o resto fez o mesmo. Eu fiquei em segundo plano, desconcertado. Nada disso foi escrito pelos evangelistas.

Mas o dia não havia terminado.

Suponho que tenha sido inevitável. Também não havia muito que contar.

Um dos "justos" acabou informando o Batista sobre o incidente do dia anterior, entre o gaulês e Judas. E exagerou. Isso também era normal. Contou a Yehohanan que mais de dez sujeitos atacaram o Iscariotes, e que este se defendeu com bravura, e que os pôs para correr.

"É um herói!", clamou o grupo.

Quem isto escreve estava novamente perplexo.

Os "justos" pareciam não saber da personalidade egocêntrica de seu líder, ou talvez, movidos pelas circunstâncias, esqueceram. E o conflito estourou.

O vidente mandou chamar o Iscariotes.

Todo mundo se felicitou.

Judas caminhou devagar e receoso para o centro do guilgal. Creio que já falei: o Iscariotes era extraordinariamente inteligente. E intuiu o perigo.

Parou e ameaçou dar meia-volta. Os companheiros não consentiram. E quase o obrigaram a ir à frente do gigante das sete tranças.

Yehohanan o olhou de cima a baixo. Seu rosto era pura pedra. Não mexeu um músculo.

Levantou-se, e o Iscariotes empalideceu.

E enquanto todos esperavam um elogio ou uma bênção, o vidente se cobriu com o "xale" de cabelo humano.

Fez-se silêncio.

Poucos segundos depois, diante da surpresa geral, Yehohanan cuspiu nas sandálias de Judas. E soltou dois de seus insultos favoritos:

- Haraim! Ewill

("Excremento humano" e "mais que estúpido", respectivamente).

A seguir, sem explicações, saiu do guilgal, pegou a colméia e se afastou rumo ao bosque das acácias.

A consternação caiu sobre o grupo como chumbo derretido; espe­cialmente sobre o Iscariotes.

Assim era Yehohanan.

Judas foi o primeiro a reagir.

Pegou seus pertences e, em silêncio, sem se despedir de ninguém, dirigiu-se para Damiya.

Abner percebeu. Captou o ocorrido e saiu atrás do discípulo, imploran­do compreensão. Mas as súplicas do pequeno grande homem não serviram de nada. Judas também era complicado. Não suportava que o insultassem, e muito menos em público. Seu senso de ridículo estava acima do perdão e até da lógica.

Se não me recordava mal, essa era a segunda vez que o Anunciador o "maltratava" diante das pessoas. A primeira foi nos lagos de Enavan, ao norte, em um incidente com os levitas, a guarda do Templo. Naquela ocasião, Judas pulou em um dos policiais e colocou a sica na garganta do surpreso levita. Yehohanan ordenou que retirasse o punhal e o envergonhou na frente de todos, chamando-o de ewil e hara’im.

Ninguém disse nada, mas todos pensaram o mesmo: Yehohanan não permitia sombras em sua liderança. Todos sabiam disso. O gesto de Judas, maldizendo o gaulês e, de certo modo, enfrentando o invasor, podia tirar méritos do "profeta". E eu me perguntei: "O que aconteceria se o vidente acabasse se unindo ao grupo de Jesus de Nazaré?" Descartei a idéia. Isso era inviável. Os pensamentos e as maneiras de um e de outro eram incompatíveis. Algo assim não teria prosperado. E elogiei, uma vez mais, a inteligência do Mestre. O Destino sabia.

Não tornamos a ver o Anunciador (?) durante duas semanas.

Em boa medida, todos agradecemos por isso. Conviver com aquele homem era uma tortura.

E demos por certo que estava no bosque das acácias, com suas loucu­ras, suas vozes interiores e seus projetos para a libertação de Israel.

Nessa mesma noite de quinta-feira, 18 de abril, chegou ao guilgal um rumor pouco tranquilizador. Ao que parecia, aqueles que haviam visitado o vau naquela manhã eram Antipas, Herodíade e quatro altos funcioná­rios da corte herodiana. A notícia foi difundida pelos próprios gauleses. Voltaram ao acampamento e fizeram correr o rumor. E acrescentaram, da parte de Antipas e de Herodíade (principalmente de Herodíade): "Fugi enquanto podes. Fugi ao fim do mundo".

Não era preciso ser muito inteligente para adivinhar que Antipas e Herodíade abandonaram o local preocupados e aborrecidos. A palavra exata não seria "aborrecidos".

Yehohanan estava semeando ventos, e não tardaria a colher uma ca­tastrófica tempestade. Naquele momento, eu era o único com certa pers­pectiva (e por razões óbvias).

Por mais que tenha pensado nas cenas da manhã, não consegui intuir qual dos seis "principais" era o tetrarca da Pereia e da Galileia. Eu o havia visto, no "futuro", como já expliquei, durante a tentativa de interrogatório em Jerusalém ao Filho do Homem. Antipas esteve diante deste explorador como um indivíduo de uns 50 anos, envelhecido, extremamente magro, com a pele semeada de crostas sujas e cinzentas. Antipas padecia de uma doença que chamavam de mentagra (as úlceras começavam sempre pelo queixo). Talvez se tratasse de sífilis.

Acabei me resignando. O que eu não imaginava naquele momento é que, meses depois, estaria de novo na presença do tetrarca, outro sujeito desprezível e perigosíssimo.

Mas essa é outra história.

Os dias seguintes (até a quinta-feira, 25, desse mês de abril) foram de relativa calma e de especial expectativa. Yehohanan não voltava, e os acampados, impacientes, foram abandonando o vau. Corria todo tipo de rumor. A maioria, falsa. Houve quem tenha associado a ausên­cia do Batista com a ira de Antipas e de Herodíade. E se empenhavam em afirmar que Yehohanan havia sido preso naquela mesma manhã de 18 de abril. Outros alimentaram os boatos com um possível envene­namento do vidente promovido pela guarda gaulesa. E cheguei a ouvir histórias tão absurdas... como que o Batista havia perdido faculdades e que agora vivia no Egito, com Esdras e os dissidentes. Faculdades? Que faculdades?

Abner lutou contra os rumores até que compreendeu que era uma batalha perdida. Yehohanan estava se transformando em um mito, em um profeta à altura de Isaías, Elias, Ezequiel ou Daniel. Isso, pelo menos, era o que dizia o povo. E o ari, ciente disso, dedicou-se, com renovada energia, a dar sequência a suas "memórias". O bondoso homem sonhava: "Aquele diário, um dia, será também um texto santo". Abner não imaginava o que estava prestes a acontecer, e o fim que teriam aquelas "memórias".

Quem isto escreve esteve prestes a abandonar o vau das Colunas. Eu sentia falta do Mestre. Lá, praticamente, não tinha nada a fazer. Mas, ape­sar desses pensamentos e desejos, alguma coisa me reteve no rio Yaboq. Não sei explicar. Era uma voz interior, que aconselhava: "Confia. Espera".

E obedeci. Não saí do lugar.

Aproveitei esses dias para conversar longamente com Abner e com os "lustos". Assim como os outros discípulos (os do Filho do Homem), aque­les traziam desde o berço os conceitos messiânicos. Não era fácil fazê-los mudar de opinião. Tudo se centrava na glória e na liberdade de Israel. Tudo era Yaveh (colérico e vingativo). O Messias (Yehohanan) já estava lá. A luta era iminente. Israel subjugaria o mundo, e eles, os "justos", marcha­riam à frente dos exércitos. Depois, chegariam os dias de glória. O reino estava ao alcance da mão.

Fiquei em silêncio, naturalmente. Limitei-me a ouvir e a perguntar.

Abner e os outros me apreciavam, e acho que foram sinceros.

Não invejei o papel de Jesus de Nazaré. Tinha muito trabalho pela frente, e um trabalho ingrato que não seria compreendido. E mais: custaria sua vida.

Sim, sentia falta dele.

E aproveitei aquele relativo sossego para meditar sobre outro assunto que me deixara perplexo: as palavras de Yehohanan na filipica da quinta-feira, 18 de abril.

Como ele podia saber?

Ao longo do "sermão", como se pode recordar, o Batista soltou frases como as seguintes:

"Antipas e Herodíade serão presos."

"Ele (Antipas) e a dusara (Herodíade) cederão suas casas a outros."

"Cairão com os que caírem. E será muito longe, no fim do mundo."

"Há 161 luas novas desenhadas sobre ti (Antipas) e sobre essa puta ie Edom (Herodíade)."

"Há 161 luas novas para pôr fim a tua rebeldia. Há 161 luas para selar teus pecados, para expiar tua culpa e para instaurar a justiça."

"Tu, Antipas, e tu, Herodíade, ficareis cobertos de vergonha. Sereis rrivados de todo poder. Sereis arrancados dentre os homens."

"Deus mediu teu reino e lhe pôs fim. Teu reino será dividido e será entregue aos teus."

"Tu me concederás um colar de ouro que adorne meu pescoço ou o cortarás com o machado em tua bebedeira?"

Estávamos em abril do ano 26 de nossa era. Insisto: como ele podia saber?

Simplesmente assombroso!

Antipas, pelo que conta a história, foi destituído na localidade de Baias (Itália), perto do mês de agosto do ano 39 d.C. Foi o imperador Calígula quem se encarregou de acabar com a tetrarquia de Herodes An­tipas, desterrando-o no sul da França (possivelmente na região de Lugdunum Convenarum, na vertente norte dos Pirineus). Herodíade negou-se a voltar a Israel e acompanhou seu marido até a morte. O reino de Antipas (Galileia e Pereia) foi posto nas mãos de Agripa I, irmão de Herodíade. Ou seja, "o reino de Herodes Antipas foi entregue aos seus". Yehohanan acertou: Antipas e Herodíade foram humilhados e cobertos de vergonha. Antipas foi derrotado pelos nabateus no ano 36. Depois, após ser destituído, teve que sofrer o desterro. Todos os seus bens e suas propriedades pas­saram às mãos de outros. Não foram presos, mas quase. Calígula os reteve, até que finalmente Antipas foi despojado de tudo. E o mais incrível: entre esse mês de abril do ano 26 e agosto de 39 passaram-se 161 luas novas.

Que estranha criatura, o Batista!

Antipas e Herodíade "caíram", e acabaram a vida no lugar que naque­les tempos era considerado o "fim do mundo" (Ocidente).

Algum tempo depois, Antipas, em plena bebedeira, mandou cortar a cabeça de Yehohanan. E se cumpriu a penúltima profecia (?). Eu não podia saber disso naquele momento, mas chegaria a ser testemunha do trágico acontecimento.

 

Não mencionei, mas Tarpelay continuava aparecendo no vau das Colunas uma vez por semana, conforme havia prometido. Falávamos em silêncio e percorríamos os arredores. O negro da túnica amarela conhe­cia a região como a palma de sua mão. Aquelas viagens curtas e intensas foram muito úteis para as seguintes e não menos apaixonantes aventuras. Mas falarei disso em outro momento. Ou não?

Como dizia: na quinta-feira, 25 de abril, por volta da quinta hora (11 da manhã), recebemos uma visita inesperada. Apareceu no vau um grande grupo de "notáveis". Era uma delegação de saduceus e de escribas. Vinham da Cidade Santa (Jerusalém).

Os saduceus eram inconfundíveis. Viviam cercados de todas as comodidades havidas e por haver, e algumas mais.

Chegaram ao Yaboq com uma caravana de onagros, redas e mais de uma centena de servos. Durante horas foram a distração dos acampados, e, evidentemente, de Abner, dos "justos" e de quem isto escreve.

Descarregaram as coisas, e eu fiquei maravilhado. Dispunham de tendas confortáveis, banheiras de madeira, leques de penas de avestruz, vasilhas de ouro e prata, cozinheiros badu, guarda-sóis coloridos, espanta-moscas, proteção armada, camas dobráveis, concubinas, neve do Hermon em baldes cobertos com samambaias e até contadores de histórias, equilibristas e anões bufões.

Dificilmente passavam despercebidos. Vestiam-se com os melhores te­cidos do Oriente ou do Ocidente. Usavam turbantes com pedras preciosas e pérolas e trocavam de calçado toda hora (tudo dependia do barro ou do pó da estrada). Eram acompanhados por secretários e servos de companhia, inclusive no "quarto secreto". Eram os aristocratas e os nobres da nação judaica. Não formavam uma comunidade no sentido das "fraternidades" dos "santos e separados” (fariseus), mas vangloriavam-se de proceder de um homem santo: Sadok, um sumo sacerdote cujos descendentes haviam exercido o sumo sacerdócio no Templo desde a época de Salomão (cerca de mil anos antes de nossa era).

Os escribas, vestidos de linho branco, sempre imaculado, eram mais discretos. Acompanhavam os saduceus como assessores, mas muitos pertenciam ao partido deles. Também havia escribas que comungavam com os "santos e separados". A maioria, porém, era freelancer. A Lei proibia que cobrassem por seus ensinamentos, mas eles sabiam contorná-la, e obtinham benefícios até com o mais insignificante conselho. Oficialmente eram carpinteiros, diaristas, pescadores, comerciantes, pedreiros, refinadores de linho, e o que fosse necessário. Mas só "oficialmente". Em viagem como essa, até o rio Yaboq, a serviço dos saduceus, os "conselhos se valorizavam, alcançando preços superiores a 200 denários.

E saduceus e escribas montaram o acampamento perto do guilgal, a uma considerável distância do "povinho fedido", como chamavam os acampados. Evidentemente, não tardaram a mandar mensageiros ao guilgal, chamando por Yehohanan.

Abner, alguns "justos" e quem isto escreve fomos até os recém-chegados.

O encontro não podia começar pior.

- Tu és quem batiza?

Abner negou com a cabeça.

Viemos ouvir esse pretenso profeta - explicaram os saduceus, recli­nados em suas almofadas. - Dizem que é Elias.

E riram da piada.

Nas almofadas de veludo vermelho lia-se, bordado com ouro, o nome das famílias às quais supostamente pertenciam. Li "Arah" (da tribo de Ju­das), "Parosh", "Adin" (também de Judas), "Pajat-Moab", "Zattuel", "Senaá" (da tribo de Benjamim), "Yonadab" (da tribo de Recab), e assim até 20.

Ele não está aqui.

A resposta de Abner não agradou aos saduceus.

Viemos de Jerusalém - replicaram com desgosto. - Onde está?

Não sabemos.

Abner fez bem em não revelar o bosque onde estava o vidente. Não se devia confiar naquela gente.

Quando voltará? Não temos o tempo todo.

Abner deu de ombros.

E a atitude do pequeno grande homem irritou ainda mais os prepo­tentes saduceus.

Então, não sabem nada sobre vosso profeta? Não sois vós seus discípulos?

Abner insistiu: não podia responder às perguntas do notável.

Cochicharam entre si e, finalmente, expuseram o que realmente os preocupava.

Dizem que está levantando o povo contra Roma.

Abner, inteligentemente, tornou a dar de ombros. E se passou por tolo.

Dizem que é a reencarnação do profeta Elias.

O ari não pôde se conter, e explodiu:

Ele não é Elias!

Ah! Então, quem é?

O Libertador!

O Libertador?

E os escribas e saduceus riram em uníssono.

Os discípulos se remexeram, nervosos, mas Abner estendeu a mão e pediu calma. O "leão" era extremamente prudente e valente.

Vós não o podeis entender - disse Abner com todo o tato de que foi capaz. - Yaveh, bendito seja seu nome, manifestou-se a Yehohanan e lhe mostrou o futuro. O machado está na base da árvore.

O futuro? De modo que teu amo também vê o futuro...

Abner disse que sim com a cabeça.

Pois nós te diremos algo: nós também vemos o futuro. Principal­mente o desse profeta. E parece um futuro muito negro.

E um dos saduceus comentou:

Esse profeta não é do agrado de Roma, nem de Herodes Antipas.

Estava claro. Aqueles indivíduos não haviam ido até o vau das Colu­ras para satisfazer sua curiosidade pessoal (não só). O que realmente im­portava era esclarecer até onde chegava o poder de convicção do Batista, e se, como diziam, incitava o povo à sublevação. Essa era a chave.

Por último, os recém-chegados - sempre depreciativos - dispensaram Abner e os "justos". Esperariam o retorno de Yehohanan, embora ninguém tivesse idéia do momento de sua volta.

Abner ficou inquieto. Aqueles indivíduos não eram de seu agrado. Não lhe faltava razão.

O cerco em torno ao Batista continuava se estreitando.

No dia seguinte, tive uma surpresa.

Apareceram no guilgal dois saduceus e um escriba. Os primeiros eu não conhecia. O segundo, sim. O escriba, e fariseu, era Nicodemos, outro velho amigo. Ele, evidentemente, não sabia quem era este explorador. Ele era membro do Grande Sinédrio e fazia parte da chamada "nobreza laica". Foi o homem que, valentemente, na companhia de José de Arimateia, se atreveu a solicitar o cadáver do Filho do Homem e a levá-lo para a caverna funerária de propriedade de José. Lá o limparam e o depositaram sobre uma laje, à espera da chegada do domingo, 9 de abril, do ano 30.

Nicodemos era um homem pouco agraciado. Devia ter 1,50 metro de altura. Tinha a pele rosada, como um bebê. Era calvo, mas fazia esforços para que os quatro fios de cabelo que nasciam nas regiões parietais se ajei­tassem na forma de cachos, como exigia a fraternidade dos "santos e separados". Usava uma barba preta (tingida), sempre enroscada nos dedos. Mas o mais chamativo eram as orelhas. Descolavam-se sem o menor respeito aos seus 40 e muitos anos. Tinha um olhar limpo e confiante, que conheci (que conheceria) no ano 30.

Nico, como disse, era escriba. Atingiu o grau máximo: hakam ou "doutor ordenado". Era um homem rico, parente dos poderosos Gorion, uma das famílias de maior prestígio em Jerusalém. Era um fariseu de "esquerda"; ou seja, simpatizante de Hillel. Naquele tempo, como mencio­nei em outras oportunidades, as haburot, ou comunidades fariseias, andavam de picuinha entre si, como consequência da existência de duas es­colas rabínicas que não entravam em acordo em praticamente nada. Uma dessas tendências era a de Hillel, mais progressista e tolerante. Na escola de Hillel praticava-se o liberalismo (dentro da rígida ortodoxia fariseia). Na beth de Schammai (a segunda escola, ou casa rabínica, de importân­cia na época), o que importava era o fundamentalismo. Os seguidores de Schammai eram mais ritualistas, rígidos e reacionários.[53]

Nicodemos, por sua personalidade gentil e generosa, identificava-se mais com as idéias abertas de Hillel que com a "direita raivosa" de Schammai.

E demonstraria isso quando chegasse a hora.

Os saduceus - um de tal Shemaya e Rabban Gamaliel -, mais discre­tos que os que eu havia conhecido no dia anterior, também se mostraram amigáveis.

Queriam conversar - a sós - com Abner e os discípulos. E queriam que fosse sem atrito e sem os maus modos de seus colegas.

O ari desconfiou, mas, após olhá-lo nos olhos, aceitou.

Foram direto ao ponto. Não se preocupavam se Yehohanan incitava ou não o povo contra Roma ou contra Antipas. "Esse - disseram - é um problema menor." O que tentavam esclarecer era o delicado assunto do Messias. "Ele era ou não era o Batista, o Libertador?" E algo mais: "Que sabiam os 'justos' sobre esse pretenso e benéfico 'reino de Deus'?"

Abner fez o que pôde, o que não foi muito.

Eu, de minha parte, aproveitei a oportunidade para ter com eles uma deliciosa conversa. Foram entrevistas que deram luz ao panorama geral, e, em especial, aos grupos de saduceus e de escribas, que tanta relevância acabariam adquirindo na vida pública do Mestre e, tristemente, no fim de sua vida carnal.

Minha informação a respeito de uns e outros era incompleta. Eles, como disse, me ajudaram a centrar o problema.

Eis alguns dados interessantes para entender, insisto, os futuros e psres enfrentamentos dos três grandes grupos (fariseus, saduceus e escribas) com Jesus de Nazaré:

Os saduceus, de fato, não acreditavam na ressurreição dos mortos. Isso provocaria tensões com o Galileu; principalmente depois da ressurreição de Lázaro. Mas nem todos os saduceus pensavam assim. E Shemaya e Raban explicaram:

Não acreditamos na ressurreição da matéria, e sim na imortalidade da alma.

Aquilo me deixou perplexo. E acrescentaram:

A alma é imortal por natureza. É um dos presentes de Deus, bendito seja seu nome. Para que precisamos do corpo depois da morte?

Eu havia ouvido idéias semelhantes de lábios do próprio Jesus de Nazaré, e também do velho Abba Saul, o sábio de Salem com quem cheguei a viver um tempo.

E os saduceus, baixando o tom de voz, disseram-me que essas informações tinham uma origem remota. Procediam do próprio Sadok, e este, por sua vez, recebera-o de outros iniciados. E falaram de um "príncipe da paz" que chamavam de Malki Sedec.

Eu conhecia a história. Tratava-se do misterioso enviado de Elyon, o Altíssimo. Malki Sedec foi um homem sem nascimento, sem família e sem morte, que usava branco e que exibia no peito uns estranhos círculos. Três exatamente. Três círculos concêntricos azuis (a cor do amor).

Foi esse príncipe que ensinou que a alma é imortal e que chega ao ser humano ao mesmo tempo que o Espírito, uma fração do próprio Deus. Eu sabia desse assunto. O Mestre nos instruíra sobre isso.

Estava claro que eu estava diante de membros da secreta ordem dos "melquisedec". Mas não me atrevi a perguntar.

E falaram também sobre a liberdade humana. Os saduceus acreditavam nela. Meus interlocutores, porém, aceitavam "que tudo está escrito". E afirmaram algo surpreendente:.

O homem e a mulher, quando nascem, sabem para que vêm.

Como isso é possível?

É, simplesmente. Assim foi revelado pelo "príncipe da paz". Sim­plesmente, ao nascer, o tikun (a missão de cada ser humano) é apagado. Depois da morte, compreendemos.

O Mestre também defendia a imortalidade da alma e a presença do Espírito (a "centelha divina") no ser humano. A maioria dos saduceus, porém, repudiava essas propostas. Esse foi outro motivo de discórdia.

Mas o que realmente interessava àqueles inquietos homens era o Messias. E tinham uma poderosa razão. Malki Sedec anunciara isso 1.980 anos atrás: "E chegará o dia, venturoso, em que um Bar Nasa (Filho do Homem) abrirá os olhos dos humanos e os fará compreender que são filhos de um Deus, que são imortais (aconteça o que acontecer), e que seu destino é um reino espiritual; sua verdadeira pátria".

Yehohanan era esse homem?

Abner e os íntimos do Batista não souberam responder. Na realidade, não sabiam do que ele estava falando. Um reino espiritual? Imortais por natureza? Condenados à felicidade? Todos os seres humanos exatamente iguais? Um Deus pai, benéfico? Sentados em seus joelhos? Um enviado que falaria de paz e que não quebraria os dentes dos ímpios?

Não entenderam e, a julgar por seu rosto, pensaram que os três indi­víduos não estavam bem da cabeça.

E Nicodemos e os saduceus começaram a intuir que haviam feito a viagem por nada. Mas silenciaram a esse respeito.

Nicodemos, por sua vez, falou sobre os escribas, e pude entender que nem todos eram iguais, obviamente.

A casta dos chachamim (sábios) era responsável pela interpreta­ção da Lei escrita, e também pela oral; mas, acima de tudo, "pela lei que não se lê nem se ouve". Nicodemos estava entre os afortunados que trabalhavam com o saber secreto e esotérico: a "chave da ciência", como definiria o próprio Jesus algum tempo depois. Essa tradição eso­térica - segundo Nico - era mais importante até que a própria Torá. "É o que a justifica", sussurrou. Mas eu não compreendi o profundo significado daquelas palavras.

Nicodemos falou da merkavah (a carruagem que voa), a represen­tação viva de Yaveh e de seus anjos. Não pude evitar: voltaram a minha mente as imagens das "luzes" sobre o Ravid.

Sim, quem tiver ouvidos, que ouça.

E falou de coisas impressionantes, como a "topografia" de Deus, a eternidade (anterior e posterior à criação), como as mentiras e Moisés (arrebatado aos céus por outra merkavah, e jamais morto); a "ilha eterna do Paraíso" (sempre imóvel), como o rapto de Enoch Elias, que jamais voltaram; como a magia dos nomes santos de Yaveh e seus prodigiosos efeitos na natureza e no homem; como o poder das letras sagradas do alfabeto hebraico, como os sete grandes universos, como o "não tempo", como o fim dos tempos (que nunca chegará).

E falou, especialmente, dos 94 livros apocalípticos, que contêm a sabedoria dos escribas. Todos, segundo ele, de inspiração divina.

Julguei entender por que os chachamim se indignaram com o Mestre. Simplesmente porque Jesus de Nazaré falou de assuntos proibidos que tinham por que chegar aos ouvidos do povo. O saber esotérico era propriedade" de poucos - segundo os escribas -, e o Galileu permitira "os impuros bebessem nos registros santos".

EÉ importante compreender que esses escribas, os depositários do saber secreto da Lei, eram considerados os sucessores dos antigos profetas. Alguns eram mais que profetas. Assim rezava a Lei oral: "O escriba não tem necessidade de ser garantido" (Ber. I 7,3b 56 [I,17]). Os escribas, enfim, não tinham que provar sua pureza de origem. A santidade era proporcionada pelo conhecimento. E Jesus, não obstante, metera-se com eles.

Aproveitei também aqueles dias de "descanso" para visitar a aldeia de Damiya; mais exatamente, a casa de outro velho amigo: Nakebos, o nabateu o al-qa’id, ou alcaide corregedor da prisão do Cobre, na pequena ilha situada na desembocadura do Yaboq.

Ele me recebeu de braços abertos, com uma jarra de legmi, uma das bebidas típicas do vale do Jordão, obtido da fermentação da seiva da tamareira; uma bebida perfumada e traidora que eu já havia experimentado e que deixara Eliseu bêbado na visita anterior à localidade.

Foi o instinto - tenho certeza - que me levou até a casa de Nakebos. Conversamos e bebemos até o anoitecer.

Tentei arrancar dele informações sobre a recente visita de Antipas ao vau (Nakebos, segundo minhas notícias, era também, e acima de tudo, um dos oficiais da guarda do tetrarca e homem de confiança de Antipas).

Negativo.

O astuto árabe não disse nada.

Só no final, quando nos despedimos, deu-me um conselho: "Se fores esperto, abandona esse grupo de loucos, como fez Belsa".

E recordei que o persa do sol na testa não visitava Yehohanan fazia tempo. O que Nakebos sabia? Por que Belsa havia desaparecido? Algo es­tranho pairava sobre o vau das Colunas.

E amanheceu a quinta-feira, 2 de maio (ano 26).

Os dias, pouco a pouco, iam se alongando. Nessa ocasião, os relógios do "berço" apontaram o orto solar às 4 horas, 47 minutos e 48 segundos de um suposto Tempo Universal.

Dia maravilhoso. Céu aberto e altas temperaturas à espreita.

E ouviu-se o chofar.

Yehohanan voltou ao vau.

O acampamento se revolucionou.

"Finalmente! - gritavam. - Voltou o vidente!"

E as cenas de sempre se repetiram.

Os saduceus saíram de suas luxuosas tendas. Estavam meio adorme­cidos. Nenhum deles se levantava antes da terceira hora (nove da manhã). Tinham rolos de madeira nos cabelos. Seus camisolões eram de seda. As concubinas estavam nuas.

Corremos para a "praia" e tomamos posições.

Yehohanan era o de sempre, salvo por um pequeno detalhe: dessa vez, apareceu com o saco embreado e malcheiroso onde guardava o "323", o megillah, ou rolo da "vitória", do qual já falei em outro momento.

O que pretendia?

Dificilmente voltava ao guilgal com aquele "tesouro". Sempre o es­condia longe.

Eu me preparei. Estava tramando alguma coisa.

O Batista pulou sobre a pilastra de costume, a pouca distância da margem, deixou a colméia colorida ao lado e se preparou para a "representação" habitual.

Observou os acampados e fez o também costumeiro minuto de silêncio, alimentando a tensão.

Depois, ergueu os braços. Na mão esquerda, brandia o saco embreado, como se fosse uma espada ou uma maça.

Os acampados o aclamaram.

Lentamente, saduceus e escribas foram chegando à "praia" dos seixos brancos. Olhavam uns e outros, aturdidos. Os homens que os protegiam estavam com eles.

Abner tremeu.

Como acabaria a manhã?

E começou o "discurso", com toda sorte de tropelias dialéticas, insultos e acusações ao divino e ao humano. Antipas e Herodíade, naturalmen­te foram arrastados pelo barro. E o mesmo aconteceu com os kittim, com Tibério, o imperador, e com "essa mancha de sujos e corruptos sacerdotes de Jerusalém". Não ficou pedra sobre pedra.

A multidão, ensandecida, delirava.

E os saduceus e escribas, desconcertados, olhavam-se. Faziam cons­tantes comentários. Os escribas eram os mais escandalizados. Não era de estranhar. Yehohanan usava os textos dos Profetas a seu bel-prazer e os virava do avesso como se fossem meias.

Pouco a pouco, a indignação dos chachamim foi aumentando, e não tardaram a se remexer, nervosos, convidando seus companheiros a se afastar daquele louco. Mas os saduceus continuaram na margem do Yaboq.

E a nova filípica se prolongou por três longas horas.

Quando já havia soltado um pouco mais de 50 insultos contra o tetrarcaa e Roma, os escribas deram meia-volta e se retiraram.

Abner e os "justos" sabiam o significado daquela retirada: Yehohanan havia sido desqualificado como profeta, e, evidentemente, como Libertador de Israel. Para os escribas, não havia dúvida: o Batista era um desequilibrado.

E às nove da manhã, como disse, o suplício acabou.

Os acampados, satisfeitos, voltaram a seus afazeres.

Abner e os discípulos cercaram o vidente e o escoltaram até o guilgal.

Até então, tudo andava mais ou menos normal.

Mas o desastre estava para chegar.

Yehohanan se sentou ao pé da acácia, cobriu-se com o "xale" amarelo e fez silêncio. Abner passou a lhe informar as novidades. E, naturalmente, falou da delegação que havia chegado da Cidade Santa.

O Anunciador não disse nada. Seguindo o costume, limitou-se a ouvir.

Nas tendas dos saduceus, percebia-se um ambiente tenso e agitado. Iam e vinham, discutiam aos gritos e arrancavam os cabelos, maldizendo e renegando suas respectivas estrelas. Pelo que pude captar, os escribas pre­tendiam voltar a Jerusalém de imediato e dar conta do visto e ouvido. Alguns saduceus - entre os quais estavam os "melquisedec"- queriam falar direta­mente com o Batista. E argumentavam, com razão, que a viagem era longa e que não podiam voltar com as mãos vazias. Não haviam tido oportunidade de fazer perguntas a Yehohanan. Não podiam voltar sem interrogá-lo.

Os escribas cuspiam no chão e chamavam os saduceus de "cegos". Yehohanan - segundo eles - era um demente e, acima de tudo, "um perigo público". Tinham que advertir o Grande Sinédrio acerca da delicada situa­ção. A maioria dos saduceus apoiava essa atitude. Não consentiriam que um louco arrastasse as massas e que a nação fosse envolvida em outro banho de sangue. Roma não tinha piedade com as sublevações. Eles bem sabiam.

Mas, finalmente, os saduceus decidiram dar uma oportunidade ao Batista.

E o grupo seguiu para o guilgal.

Abner e os seus, ao vê-los, levantaram-se. Yehohanan não se mexeu. Ficou sentado, com o saco embreado e pestilento nas mãos.

Os saduceus e escribas, com a tropa que os protegia, chegaram até o círculo de pedras, mas não o atravessaram. Não se atreveram.

E um dos saduceus ergueu a voz e perguntou ao vidente:

Tu és o Libertador?

Creio que não exagero quando digo que assisti a um diálogo (?) qua­se grotesco (para não dizer coisa pior).

Yehohanan se ergueu e deu dois passos para os que perguntavam. Percebi temor no rosto deles. Alguns retrocederam. Aqueles dois metros de altura eram assustadores, ou, no mínimo, dissuasivos.

Retirou o "xale" e deixou à mostra a "borboleta" e as pupilas verme­lhas. Yehohanan era desequilibrado, mas não tolo. Conhecia bem o efeito que produzia a visão daquele rosto dos diabos.

Ouvi um murmúrio dos recém-chegados.

E o da pergunta repetiu a questão:

Tu és ou não o Messias que a nação espera?

E o Batista replicou com voz rouca e judiada por conta da recente peroração:

Haveis chegado e haveis sujado minha terra.

Os saduceus e os escribas desviaram os olhares para o círculo de pedras. Não haviam entrado nele.

Não entenderam as palavras do Anunciador. Ele continuava invocando Jeremias.

Deixastes minha herdade nojenta.

Os escribas logo perceberam. O gigante das sete tranças louras repe­tia palavras do profeta Jeremias; e fizeram o jogo dele, divertidos:

Não te perguntamos onde está Yaveh, bendito seja seu nome, e sim quem és tu.

Sou a voz que clama! Nem vós, os peritos da Lei, me conheceis.

Tu és um profeta que profetiza pelo poder de Baal?

Andais atrás dos inúteis? - perguntou por sua vez Yehohanan, prosseguindo com o capítulo segundo de Jeremias.

Os escribas se deram por aludidos e cochicharam entre si. Yehohanan não era um inimigo menor.

E continuarei litigando convosco - prosseguiu o Batista -, e até com os filhos de vossos filhos, maldita raça de víboras.

Que mal fizemos vindo até aqui?

Haveis feito um duplo mal: ao meu povo, por dar-lhe falsas esperanças, e a mim, por tentar me enganar.

Os saduceus começaram a perder a paciência, e voltaram à primei­ra questão:

Quem és?

Sou d'Ele! Sou o escravo de Israel. Vós haveis levado o país à desolação, haveis incendiado suas cidades e as haveis deixado sem habitantes.

Não tinha jeito.

Yehohanan manipulava os versículos a seu bel-prazer.

Os saduceus e os escribas olharam para ele, perplexos.

Como te atreves a nos insultar?

E vós, como podeis dizer "somos sábios, e possuímos a Lei de Yaveh, bendito seja"?

Porque assim é.

Em mentira a transformastes! - explodiu o gigante. - Vossa pena (referia-se aos escribas) é mentirosa! Vós, sábios, passareis vergonha e sereis abatidos e presos, como esse chacal e a dusara, seu amante.

Outro murmúrio se elevou dos atônitos e indignados escribas e sa­duceus. Os homens de armas olharam para seus chefes, os saduceus. Só esperavam uma ordem para intervir.

Mas os "melquisedec" e Nicodemos pediram calma.

Abner não sabia o que fazer.

E Yehohanan, fora de si, prosseguiu:

Eis que haveis descartado a palavra de Yaveh, bendito seja seu nome. De que vos serve vossa sabedoria?

Mas, dize-nos, quem és realmente? Tu és Elias, como dizem? Talvez o Messias que deve vir? Responde, e com clareza!

O Batista repetiu, mostrando a palma da mão esquerda:

Sou d'Ele! Quem como eu?

Os escribas e saduceus leram a "tatuagem" e deram de ombros. O lema em questão era comum para muitos judeus ortodoxos. Alguns, in­clusive saduceus, tatuavam-no na testa.

Isso é tudo?

Envergonhem-se meus perseguidores, porque eu não me envergo­nho! Espantem-se eles, porque eu não me espantarei! Eu vos condeno, em nome do Santo! Ele trará para vós o dia aziago e vos quebrará duas vezes!

E os escribas, mais que fartos, replicaram:

E diz Yaveh, bendito seja seu nome: "Não deis ouvidos às palavras dos profetas, que vos profetizam, ensinando-vos vaidades; falam da visão do seu coração, não da boca do Senhor."

Os escribas, inteligentemente, deram-lhe seu próprio "remédio". Aque­les eram versículos de Jeremias (capítulo 23), mas enunciados corretamente.

Yehohanan não se rendeu e voltou à carga:

Enviarei a tempestade de Deus e farei explodir sua ira sobre vós, raça de corruptos e desgraçados! Um turbilhão vos arrebatará e não se apaziguará a ira de Yaveh, bendito seja o Santo, até que a execute!

Fantasias! - clamaram os escribas.

O Batista, então, levantou o saco embreado e pestilento e o agitou, ameaçador, acima da cabeça, gritando:

Aqui está o plano! Ele mo entregou!

O grupo, obviamente, não sabia do que ele estava falando.

E Yehohanan arremeteu, pronunciando outra sentença singular:

Em dias futuros vos dareis conta disso! Ao chegar a lua 528, ardereis!

A lua 528? Isso nos situava no ano 70 d.C. Ele estava anunciando o cerco e a destruição da Cidade Santa pelo general Tito!

Fiquei novamente perplexo. Como podia?

E os saduceus explodiram, uma vez mais:

Fantasias! Tu és um louco!

Mas os "melquisedec", intrigados, perguntaram o que ninguém havia perguntado:

Que contém esse saco?

São os planos de Yaveh, bendito seja.

Que planos?

Por que vais acreditar em minhas fantasias? Se por meio de minhas palavras se propaga a impiedade, como dizeis, por que me ouvis?

Dessa vez foi o Batista quem os humilhou.

Quem te deu esses planos?

O gigante hesitou, mas foi só um segundo. E acabou respondendo algo que eu sabia (ele mo confessara na garganta do El Firan):

O homem-abelha.

O homem-abelha?

O homem-abelha o desenhou para mim, e me entregou em uma markavah. É um megillah santo!

Foi demais. Os escribas morreram de rir, um riso coletivo, e contagiaram os saduceus.

Segundo Yehohanan, o homem-abelha em questão era uma das hayyot (uma criatura celeste) com quem - segundo ele - havia conversado em várias oportunidades. E o "323" (o pergaminho da "vitória") fora desenhado pela referida hayyot e entregue ao Batista dentro de uma carruagem voadora. O pergaminho, portanto, era sagrado.

Como disse, era demais para os chachamim.

Aí acabou o incrível diálogo.

E os saduceus e escribas se retiraram. Os comentários foram unâni­mes: "louco de pedra" e "louco perigoso".

Mas, enquanto se dirigiam às tendas, alguém, escondido no grupo, jogou uma pedra no guilgal. E acertou o peito de Yehohanan.

O gigante das sete tranças louras não se mexeu, mas os discípulos, in­dignados, pegaram suas gladius e as desembainharam. E avançaram para aqueles que se afastavam.

Os saduceus e os demais notaram a manobra, mas não souberam da pedrada. Viram apenas uns homens que se dirigiam para eles, armados, e não com boas intenções. Pararam, e a guarda armada se adiantou, pondo suas mãos nas espadas e maças.

Foi novamente Abner, auxiliado por Nicodemos e pelos "melquisedec", que se mostrou ágil e diplomático. Ordenou a seus homens que guardassem as armas e os obrigou a voltar para o guilgal. O perigo foi conjurado em segundos.

E escribas e saduceus deram início à desmontagem das tendas.

 

Nesse entardecer, quando a delegação abandonou o vau das Colunas, Yehohanan deu uma ordem seca: "Amanhã partiremos para o sul".

Não houve mais explicações. Abner não soube como interpretar a or­dem. Ninguém sabia. Ainda assim, os rumores correram pelos acampados. Cheguei a ouvir de tudo: "O vidente está indo para Jerusalém"; "Chegou a hora"; "Finalmente ele se colocará à frente dos exércitos"; "Roma tremerá".

E, ao alvorecer do dia seguinte, sexta-feira, pusemo-nos a caminho.

O Batista tomou a dianteira. Os "justos" o seguiram, em silêncio.

Seguimos na direção sul, pela trilha que corria paralela à margem es­querda do nahal, ou rio Jordão. Tratava-se de uma estrada de terra batida, menos frequentada que a da margem direita, pela qual este explorador havia caminhado em diversas oportunidades. Aquele percurso era novo para mim.

Quais eram as verdadeiras intenções do Batista?

Fui incapaz de imaginar uma única minimamente racional. Mas ha­via algo racional na mente daquele homem?

Resignei-me. Imaginei que ele tinha tudo calculado.

Sim e não.

Logo após abandonar o vau, parte dos acampados na "praia" dos sei­xos brancos nos alcançou. Calculei umas 200 pessoas.

Aquilo era inquietante.

O que pretendia Yehohanan? Que pensava fazer à frente daqueles fanáticos?

Não caminhamos muito.

Na periferia de Adam, Yehohanan parou e ordenou que traçassem um guilgal ao pé das muralhas. Ninguém entendia nada. Os discípulos obedeceram. E no meio da manhã, quando o vaivém de homens e animais se tornou mais intenso, o Batista subiu em uma das redas que esperava às portas da cidade e deu início a um de seus habituais "sermões". Os segui­dores o cercaram de imediato e o animaram com seus vivas e aplausos. Pouco depois, aquilo era um fervedouro de pessoas e de rumores: "É o Libertador, prestes a enfrentar os kittim. As armas estão a caminho".

Nenhuma novidade. Os mesmos insultos, os mesmos despropósitos e a mesma loucura (individual e coletiva).

A situação estava começando a me entediar. Continuava sentindo falta do Mestre. Mas tinha que continuar ao lado daquele insensato. E me armei de paciência.

Todo dia percorríamos um pequeno trecho: entre três e cinco quilômetros; não mais. Sempre para o sul e sempre com um "discurso" no meio da manhã. Não importava que fosse em um vilarejo ou no meio do nada. Yehohanan subia em uma pedra, ou em uma carruagem, ou no lombo de um onagro, e praguejava contra os de sempre, no mesmo tom. As pessoas, felizes, incitavam-no. Não sei como, mas, dia a dia, o número dos seguidores foi crescendo. Apareciam em qualquer cruzamento e se juntavam ao grosso, ovacionando e gritando o nome do Libertador. E abertamente. Abner e os íntimos estavam em êxtase. Não acreditavam no que viam. E, pouco a pouco, foram aceitando o constante ir e vir de boatos sobre "exércitos, arsenais, batalhas iminentes, romanos covardes, fuga de Herodes Antipas e não sei quantas invenções mais sobre a chegada do reino dos céus".

Yehohanan não fazia comentários. Acabado o "discurso", pegava a inseparável colméia, afastava-se dos "justos" e dos acampados e não tornávamos a vê-lo até o dia seguinte, ao retomarmos o caminho.

E chegou a segunda-feira, 6 de maio (ano 26).

Nesse dia, paramos em uma aldeia pequena chamada Halak. Os moradores nos receberam surpresos.

E Yehohanan, segundo o costume, enroscou-se em uma nova filípica.

Os humildes felah, que só entendiam de flores e de hortaliças, não compreendiam as estranhas e duras palavras daquele sujeito de dois metros de altura, montado no muro de um poço e insultando pessoas ilustres, como Antipas ou sua esposa, Herodíade. E entenderam ainda menos os ataques aos kittim e as promessas de um mundo melhor, "onde só os pagãos trabalhariam".

Mas as quase mil pessoas que seguiam o Batista o acolheram com seus gritos, e os aldeões, perplexos, acabaram se unindo ao coro geral, pedindo a morte de quem fosse preciso. Não importava quem. Essa era a triste e crua realidade depois de percorrer 15 quilômetros em apenas quatro dias. O que podia acontecer quando aquele bando de loucos chegasse à Jerusalém? Ou não eram esses os planos de Yehohanan?

E nisso estávamos, mergulhados em plena diatribe contra Roma e contra o tetrarca, quando os vimos à direita da estrada, não muito longe, trotando paralelamente à selva que cobria o rio Jordão.

Houve um breve silêncio.

Yehohanan também os viu, mas, após um instante de dúvida, prosse­guiu com seus venenosos ataques a Roma, agitando a ira de Yaveh como uma bandeira.

Não pararam. Seguiam rumo ao sul.

E a multidão, ao vê-los, incendiou-se, e os gritos e insultos acabaram sepultando as palavras do Anunciador.

Era uma turma, uma unidade de cavalaria do exército romano, for­mada por 33 mercenários. Trotavam em três filas, com os decuriões à frente de cada uma delas. Diferentemente das turma e que eu havia visto em outras ocasiões, os cavaleiros dessa turma usavam, sob as cotas de metal, uma espécie de "camisa" de manga longa, violeta. As calças, muito justas, cobriam até metade da perna. Eram vermelhas, muito chamativas. Os decuriões, ou chefes de fila, usavam elmos dourados e longas espadas na cintura. O resto da turma usava elmos de couro e carregava pilum, ou lanças de 2,5 metros, com cabos de ferro. De um lado, presos às selas, os típicos escudos hexagonais, ornados com bordas metálicas. Fechando o grupo, um trio de cavaleiros sobre cavalos preto-e-brancos, em cujas ga­rupas haviam sido arranjados feixes de lanças, um pouco mais curtas que os pilum. Pela indumentária, deduzi que estávamos diante de uma patru­lha de origem síria, especialista no lançamento de projéteis de pedra. Eu os havia visto agir nas proximidades da pousada do "caolho", na estrada que ligava o yam com a Cesareia. Eram temíveis. Tratava-se de um corpo especial, e especialmente agressivo. Aqueles fundeiros podiam acertar seu alvo a mais de cem metros, mesmo alvos em movimento. Se parassem e enfrentassem os seguidores do Batista, o encontro poderia acabar em tragédia, e não exatamente para a turma.

Os insultos recrudesceram. E alguns fanáticos, histéricos, pegaram pedras e correram para a turma, jogando-as.

Abner empalideceu. Apesar de seus gritos e pedidos, ninguém obe­deceu. E centenas de loucos correram para os cavaleiros. Distingui os re­flexos de algumas espadas erguidas.

Eu não sabia o que fazer.

Mas os decuriões, atentos, ergueram os braços, e a turma avivou a marcha, afastando-se.

O prudente gesto dos romanos foi mal-entendido pela multidão que corria e vociferava, e os ânimos se agitaram até limites inacreditáveis. Era a vitória. Era o sinal que esperavam. Os kittim estavam fugindo.

"Abaixo Roma!"

Durante minutos eternos, os seguidores e os "justos" se abraçaram, choraram e amaldiçoaram os ímpios.

Este explorador estava desolado. Aquela gente não compreendia. Se a patrulha houvesse se defendido, naquele momento estaríamos contando cadáveres.

Situação nada boa, pensei. As coisas estavam se complicando.

Os romanos conheciam perfeitamente os movimentos de Yehohanan seus seguidores. Era mais que possível que os "escorpiões" estivessem camuflados no meio daqueles fanáticos. E todos os dias, presumivelmente, informavam seus superiores. A presença da turma não era uma coincidência. Os romanos simplesmente pareciam controlar a capacidade de reação dos rebeldes. Foi o que pensei. Não me enganei.

E a viagem prosseguiu, entre felicitações e novos boatos:

"Roma parlamentaria. Roma tinha medo. O Libertador chegaria a Jerusalém e exigiria a rendição dos kittim. Mas Yehohanan não teria piedade."

Eu estava cada vez mais confuso. Todos haviam perdido a cabeça. ao chegar ao nahal Auja - outro afluente do Jordão - pela vertente oriental, no meio de uma daquelas filípicas, Yehohanan, após os insultos de praxe ao tetrarca Antipas, à dusara e a Roma, falou de outra "visão" que, sinceramente, eu não soube classificar. Eis o que disse naquela quarta-feira, 8 de maio, em uma pequena aldeia chamada Sad:

Vejo uma caverna. É o monte de Moisés.

Pensei no Sinai, mas não.

Lá o conduziu Yaveh, bendito seja seu nome, para que visse sua herdade.

Podia estar se referindo ao monte Nebo, de onde Moisés contemplou a terra prometida antes de morrer (ou antes de desaparecer, como afirmavam os "melquisedec"). E prosseguiu:

Vejo uma caverna onde foi depositada a Tenda, e também a arca sagrada.

Falava - supus - da Tenda da Reunião, usada pelos judeus como san­tuário durante sua peregrinação pelo deserto, e da arca da aliança, desaparecida praticamente desde os tempos do rei Salomão, havia mil anos.

Vejo a Tenda e a arca sagrada, e a verdadeira história de Bar Nasa (Filho de Homem), escrita por quem não existe, mas existirá. Esse lugar ficará desconhecido até que Deus, bendito seja, volte a se unir a seu povo e lhe seja propício.

Fim da "visão".

Ninguém sabia do que estava falando. Julguei reconhecer um dos livros dos Macabeus, mas não tive certeza. Algum tempo depois, quando aconteceu o que aconteceu, eu fui o primeiro a me surpreender. Não foi só uma "visão". Foi muito mais.

Dois dias depois, ao chegar ao fim da selva do Jordão, muito perto de uma aldeia que chamavam de Tera, a pouca distância do wadi Nimrin, tornamos a ver os kittim. Nessa ocasião, foram duas patrulhas, duas tur­mae, idênticas à anterior. Ultrapassaram-nos, também pelo lado da selva, a uns 200 metros, a trote.

E os seguidores, animados pelo resultado do primeiro encontro, torna­ram a se rebelar. E se repetiram as pedradas, a correria, os gritos, os desafios e os insultos. Abner desistiu. Era impossível apaziguar aqueles fanáticos.

Os cavaleiros deixaram que os judeus se aproximassem e, no mo­mento oportuno, saíram a galope, deixando os furiosos seguidores a ver navios. E se afastaram rumo ao sul.

Estávamos a um passo da tragédia.

Yehohanan não se pronunciou, nem a favor nem contra.

A partir da quinta-feira, 9 de maio, as turmae aumentaram nas proxi­midades do grupo que caminhava, supostamente, rumo à Cidade Santa. As patrulhas se mostravam, ou nos acompanhavam, sempre à distância, de um ou de outro lado da trilha que corria paralela à margem esquerda do Jordão.

Os ânimos estavam alterados, irremediavelmente, avivados pelos "sermões" do vidente. Mas os kittim, cumprindo ordens, não arriscavam. Mantinham-se fora do alcance das pedras ou das lanças atiradas pelos mais audazes - ou pelos mais cegos. E digo bem: cegos. Sinceramente, eu não conseguia entender a atitude daquela gente. Naquele tempo, segundo nossas notícias, a Palestina estava ocupada por quatro legiões romanas: a décima, a terceira, a sexta e a décima segunda. No total, a província da Síria, que incluía a Judeia (Israel), concentrava nove legiões e cerca de 70 unidades auxiliares. Isso somava um contingente de 54 mil soldados, aproximadamente. Cada legião, por sua vez, contava com um corpo de cavalaria de 300 cavaleiros, divididos em unidades menores (turmae). A qualquer momento, Roma podia ordenar a seus homens que caíssem em cima do grupo de Yehohanan, pulverizando-o.

Mas ninguém, como disse, parecia se dar conta da situação.

No caso do vidente, era compreensível. Suas faculdades mentais estavam diminuídas, ou alteradas. Mas não acontecia o mesmo com o resto. Era gente normal - a maioria, camponeses - que conhecia o poder dos invasores. Aquele "não agir" dos kittim não significava que não estivessem atuando.

E Yehohanan prosseguiu com as filípicas, e com as provocações.

O que tudo aquilo tinha a ver com a mensagem do Filho do Homem?

Os três últimos dias daquele lento caminhar foram mais laboriosos do que eu poderia imaginar. Caminhávamos pela Pereia (território de Antipas), uma região ocupada basicamente por pagãos. Pois bem, casualmente, esses dias (9, 11 e 13 de maio) eram considerados "particularmente nefastos”. Os romanos, e os gentios em geral, celebravam a festa dos Lemúrias. Ninguém saía à porta de casa. Os mortos voltavam - isso dizia a lenda - e se vingavam. Era uma festividade semelhante à Parentalia, mas celebrada na intimidade. Era uma homenagem aos mortos, sob o medo da volta dos falecidos. A origem estava no assassinato de Remo por seu irmão Rômulo. Diziam que Remo aparecia toda noite, e Rômulo, para conjurar o malefício, instituiu a festa dos Lemúrias nos dias 9, 11 e 13 de maio. Tudo ficava suspenso durante esses dias aziagos: negócios, casamentos, cerimônias religiosas, execuções. A atividade social e econômica ficava paralisada.

E o grupo teve problemas de abastecimento. Não foi fácil arranjar comida. As pessoas recorreram a Yehohanan. Esperavam que o suposto Messias fizesse um prodígio, como o de Caná. Mas o vidente fingiu que não era com ele. Ele não tinha problemas nesse sentido. A colméia lhe proporcionava a única coisa que ingeria: mel em abundância.

Jamais esquecerei aquela imagem: o gigante das sete tranças louras, à frente dos fanáticos, com a colméia na mão esquerda e o "xale" amarelo cobrindo sua cabeça. Nada a ver com o Filho do Homem.

Disso os evangelistas também não falam.

E chegou o domingo, 12 de maio.

Fim da viagem. Uma viagem tensa e extenuante, e não por conta dos 30 quilômetros percorridos, e sim pela atitude dos seguidores (mais de mil), pela ameaça das turmae e pelo tom dos discursos de Yehohanan.

O objetivo do Batista não era Jerusalém, como afirmavam, e sim o vau de Josué, também chamado vau das 12 Pedras. Lá ele havia começado a pregar 13 meses antes, em 3 de março do ano 25. Lá conhecera Abner, seu primeiro discípulo. Lá iniciara sua carreira de profeta e, curiosamente, lá a terminaria. Mas, antes, aconteceram outras coisas, também notáveis. Irei passo a passo.

O vau de Josué era um lugar especialmente santo. Segundo a tradição oral e os livros sagrados, foi naquele trecho do Jordão que se deu o primei­ro prodígio do caudilho Josué, o homem que cuidou do "povo escolhido" após a morte (?) ou desaparecimento (?) de Moisés. Ao chegar à margem, Yaveh ordenou a Josué que introduzisse a arca da aliança na água. E assim ele fez. Quando os sacerdotes que carregavam a arca entraram no rio, as águas do Jordão pararam 30 quilômetros acima, dizem que na região de Adam e Damiya (vau das Colunas), e o povo e o gado cruzaram o Jordão. Em homenagem a esse milagre, Josué mandou tirar 12 grandes pedras do leito seco do rio e ergueu um monumento. Cada pedra representava uma das 12 tribos de Israel (as que haviam atravessado o rio).

O vau de Josué, enfim, era um lugar estratégico, tanto do ponto de vista das comunicações quanto da história e da religiosidade de Israel. Ali se cruzavam as rotas que partiam para Jericó e Jerusalém, a oeste, as que buscavam Betaramta (Julias) e o "caminho dos reis", pelo leste, e o mar de Sal (atual mar Morto), ao sul.

O vau em questão protagonizava um constante fluxo de peregrinos que visitava o monumento de Josué, seja para orar, seja para cumprir uma promessa, ou simplesmente por curiosidade. A questão é que o lugar era um contínuo ir e vir de caravanas, raças e credos.

Yehohanan soube escolher.

Ao deixar o wadi Nimrin para trás, entramos na região de influência do vau de Josué. Este explorador o havia visto de cima, quando voamos de Massada ao yam; mas agora, em solo, era diferente.

Foi um espetáculo deslumbrante.

O vau ficava a 7,5 quilômetros da costa norte do mar de Sal. Era um imenso verdor, de uns 4 quilômetros de largura, com um rio Jordão, às ve­zes verde, às vezes ocre, ziguezagueando entre bambus, hortas, plantações de flores, bosques de tamariscos, choupos, vinhedos, pomares e extensos palmeirais. Aquilo que estava diante de mim não tinha relação alguma com o que hoje (dizem) é o histórico vau das 12 Pedras.

Entre os verdes e os ocres, distinguia-se meia dúzia de aldeias, todas lutan­do para chegar ao pai Jordão. Eram pequenas. Quase cabiam na palma da mão. Eu conhecia algumas: Betânia e Haghtas, no lado oriental, e Bet Abara, Bet Hoglah e Yahud, no oeste. E um pouco além, a dez quilômetros do vau, a festiva e branca Jericó, adormecida entre milhares de palmeiras e as não menos célebres plantações de bálsamo, o grande negócio do momento. Ao sul, a exuberância reaparecia de repente. E entrávamos nos domínios do delta, uma região árida, extremamente salina, antessala do lendário e misterioso mar de Sal, semeada de brancos e de azuis. Quando a visitei, contei mais de 20 piscinas naturais e artificiais onde se criavam peixes e caranguejos ou se extraía sal.

E Yehohanan e Abner, decididos, adentraram as plantações. Conhe­ciam bem a região.

Os felah, ao ver aquele grande grupo de judeus, abandonavam o que estavam fazendo e corriam a perguntar.

- É o Messias - respondiam os seguidores. - Anuncia o reino e o fim de Roma.

Os moradores ficavam mudos. Os mais velhos balançavam a cabeça negativamente. E murmuravam "que aquilo não podia ser grato aos céus". Não lhes faltava razão. Logo descobririam.

Calculo que devia ser a sexta hora (meio-dia) quando entramos em um pequeno bosque que dava, tímido e rosado, para as rápidas águas do Jordão. Era um bosque formado por resedas, de madeira muito apreciada (chama­m-na de jarool), de até 15 metros de altura, com os galhos muito separados e uma virtude que os tornava especialmente vistosos: as flores, nascidas em espigas apicais, mudavam de cor ao longo do dia. Pela manhã eram rosa. À tarde, talvez cansadas, tornavam-se violeta, a cor do amor impossível.

Yehohanan escolheu uma das resedas de maior envergadura e ordenou aos seus que arranjassem pedras e desenhassem o costumeiro círculo, ou guilgal.

Dito e feito.

Os discípulos obedeceram cegamente, e os demais seguidores, co­nhecida a notícia de que o líder acamparia naquele lugar, distribuíram-se pela região, sempre mantendo a distância exigida pelo vidente (não po­diam colocar as tendas a menos de cem metros do guilgal). Outros prefe­riram as aldeias próximas.

Faltavam seis horas para o ocaso, e decidi dar uma olhada na região. A intuição me dizia que estávamos em um ponto-chave. Algo ia acontecer naquele vau; algo de especialíssima importância.

Tomar referências era vital.

Não me enganei.

Por onde começar?

Comecei pelo mais próximo. O bosque das resedas ficava entre o rio e um pequeno promontório, de uns 45 metros de altitude, que, sem querer, havia se transformado em um vigia. Daquele penhasco divisava-se um am­plo setor (praticamente todo o vau). Chamavam-no de monte de Kharrar, mas, realmente, de monte tinha pouco. Contei os passos até o cume. Do guilgal ao topo, pelo caminho mais curto, não chegavam a 200. Tratava-se de um montículo de marga esverdeada, composta por argila e carbonato de cálcio. Era um terreno dócil e suave, onde crescia, feliz, uma colônia de estevas e arbustos de médio porte. Mas o que mais me surpreendeu foi o pequeno arvoredo que coroava o cume. Eram árvores de até seis metros, com as flores em longos cachos pendentes e de uma belíssima cor de ouro. Mais tarde, soube que se tratava do Laburnum anagyroides, uma legumino­sa cujas sementes são letais. Os naturais do local chamavam essas árvores de "chuva de ouro" e usavam suas sementes pretas como poderoso veneno (tanto para pescar quanto para outros "interesses" menos confessáveis. Antipas, ao que parecia, era um importante comprador). Supus que estivesse diante de outro boato, mas não.

O Kharrar, como consequência das árvores venenosas, havia se transformado em um lugar pouco ou nada frequentado. Registrado. Do alto do penhasco da "chuva de ouro" (assim o batizei), apreciei com mais clareza todo o vau de Josué propriamente dito. A uns cem metros da base do promontório, e a 200 metros do guilgal, saltava sobre o Jordão uma pontezinha de troncos, mais bem-intencionada que bem montada. Bem perto, na margem esquerda do rio, divisei o famoso monumento, suposta­mente erguido pelo caudilho Josué. Era formado por uma série de pedras (seixos pesados) e, no alto, uma menorah, ou candelabro de sete braços.

O monumento ocupava o centro de uma grande planície. Um pou­co mais ao sul, no fim da esplanada, vi sete cabanas, apoiadas umas nas outras. Em frente ao monumento, ao pé da trilha pela qual havíamos che­gado, e que seguia, negra e batida, rumo ao delta, vi duas enormes rochas avermelhadas. A mais alta não passava de quatro metros de altura. Eram rochas de marga, arredondadas pelo tempo e pelos olhares das pessoas.

E nessa mesma margem do rio, entre hortas e pomares, a 200 metros do candelabro, cochilava a aldeia mais próxima: chamavam-na de Haghtas. Era marrom, com alguns penachos de fumaça. Não fosse pelo verde das plantações próximas e pelo branco azulado das colunas de fumaça, ninguém teria dito que era uma aldeia de vivos. Nunca ninguém passava por ali. E muito menos o tempo.

Do outro lado do Jordão, na margem direita, destacavam-se duas aldeias pintadas da mesma cor cansada: ocre. Eram cercadas por palmeiras, pomares, uma intrincada rede de trilhas, uma mais avermelhada que a outra, e outro aspirante a rio, o nahal Hoglah, que deslizava em silêncio rumo ao sul de Bet Abara e desembocava no Jordão, muito perto da ponte de troncos. Todos, logicamente, alheios ao que estava prestes a acontecer.

Dei uma nova olhada, tomei outras referências e desci do penhasco da "chuva de ouro" com a intenção de examinar a planície do monumento.

Naquela região do vau sempre havia gente. Geralmente peregrinos ou curiosos, como quem isto escreve.

O monumento era simples e belo.

Alguém se dera o trabalho de procurar e transportar 12 pesadas pedras (na realidade, seixos), talvez de cem quilos cada, e de empilhá-las em forma de pirâmide na margem do Jordão. Eram todas brancas.

No alto, foi colocada uma menorah de bronze de um metro de altura, provida, como disse, de sete braços. Era um lindo candelabro, limpo e reluzente, e sempre aceso. Não sei como conseguiam, mas as sete taças de metal ficavam acesas dia e noite. Minto. Sei como conseguiam. Perto do monumento uma equipe de vigias se movimentava constantemente. Eram chamados de schomer. Um deles, em particular, me impressionou. Era alto, de cabelos louros, sempre soltos, magro como um bambu, de olhar azul atento às chamas amarelas. Estava havia 40 anos no mesmo lugar e, segundo o povo, na mesma posição, atento ao fogo da menorah. Aquele schomer jamais respondia às perguntas. Sua missão era outra.

Ao longo dos dois braços inferiores do candelabro, foi gravado um texto de Zacarias (4, 6): "Ele me respondeu, dizendo: 'Esta é a palavra do Senhor a Zorobabel', dizendo: 'Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito', diz o Senhor dos exércitos." Nos cinco braços restantes, distribuído, lia-se outro texto do mesmo profeta: "São estes os sete olhos do senhor, que discorrem por toda a Terra". E na base, em uma roseta, as duas primeiras palavras da mais conhecida prece judaica: "Ouve, Israel".

Águas abaixo, no fim da grande esplanada, acocoradas umas nas ou­tras buscando sombras impossíveis, erguiam-se como podiam sete cabanas de bambus e tetos de folhas de palmeira. Era um mercado, de muito sucesso entre os caminhantes e caravaneiros. Era dirigido por moradores das aldeias próximas. Encontrei de tudo lá: comida, roupas, armas, plantas medicinais, feitiços contra "Adom-adom" (a misteriosa criatura que semeava o terror no vale) "mapas de viagens", vinhos e cervejas, prostitutas a bom preço e, naturalmente, "o que fosse preciso", desde que se tivesse dinheiro.

Memorizei o rosto dos vendedores. Nunca se sabia quando pode­riam ser úteis.

Não havia muito mais na planície da menorah. Ao sul continuavam as hortas, os bosques e o Jordão, com sua pressa.

Subi na ponte de troncos e examinei o nahal. O rio, como disse, descia rápido. A inclinação era acentuada nessa região. Estávamos a 333 metros abaixo do nível do Mediterrâneo. As águas arrastavam troncos, ramagem, animais mortos, caixas de madeira semidestruídas, dejetos e lixo das dezenas de aldeias que cercavam o rio. Efetivamente, o Jordão era impuro. O mais impuro dos rios, segundo os "santos e separados". O madeirame gemeu sob meus pés. Era uma ponte velha e cansada.

Caminhei pela margem direita e timidamente entrei na aldeia que chamavam de Bet Abara, a mais notável do vau. O mundo parecia haver parado dentro daqueles muros de adobe. Os verdadeiros habitantes eram as moscas e o esquecimento.

Prudentemente, dei meia-volta e retornei à velha ponte. Era cedo para novas aventuras.

Bem próximo, um riacho que imitava o Jordão em tudo, conhecido como nahal Hoglah, chamou-me de suas águas verdes e nervosas. Aten­di, por pura curiosidade. Era um afluente presunçoso, mas infinitamente mais limpo que seu pai, o Jordão. Tinha uma esmerada escolta de choupos brancos. Eram árvores amabilíssimas. À menor brisa, agitavam-se e cum­primentavam com milhares e milhares de folhas de prata.

Comprei provisões - só o necessário - no mercado da menorah e tentei fazer amizade com alguns moradores. Eram badu (beduínos). Deixei-me enganar nas pechinchas, e isso facilitou as coisas. Gravei seu rosto, seus nomes, e eles também. Isso era conveniente para nós.

Acertei. Os acontecimentos que se avizinhavam requeriam todo o do mundo, e um pouco mais.

Ao voltar ao guilgal, Yehohanan havia desaparecido. Perguntei, e Abner apontou para o alto do cerro da "chuva de ouro". Como também era habitual, Yehohanan não dera ouvidos aos conselhos dos "justos" e fora para o Kharrar. O pequeno grande homem deu de ombros. Já estava acostumado.

Antes de ir para o "chuva de ouro", definiu o "programa" do dia se­guinte. Mais ou menos o de sempre: ao alvorecer, quando a temperatura no vale era mais suportável, toque de chofar. Os discípulos deviam permanecer atentos a sua chegada. Depois, nada.

E em 13 de maio, segunda-feira, às 4 horas e 37 minutos, coincidindo com o orto, ou saída do sol, os íntimos, ao pé do cerro, tocaram o chofar.

O Batista passou em frente ao guilgal e, sem uma palavra, seguiu para a planície da menorah. Nós o seguimos, intrigados.

Situou-se em frente às 12 pedras brancas, colocou o barril colorido a um metro e tentou subir ao alto do monumento. Os schomer não permiti­am E o gigante das sete tranças louras foi chacoalhado e empurrado sem cerimônia. Os schomer o xingaram. E a multidão que havia começado a se reunir perto de Yehohanan fez silêncio. Os vigias tinham razão. Ninguém jamais tentara uma coisa daquela.

O único que não se mexeu foi o schomer dos cabelos louros. Parecia viver em outro mundo, exatamente como o Batista. Mas o vidente também não se alterou nem se incomodou. Pegou a colméia e se dirigiu às pedras de marga avermelhada que se erguiam do outro lado da trilha de terra preta e batida. Tornou a deixar o barril no chão e subiu, ágil, na rocha mais alta.

E deu início à nova "representação".

Yehohanan fez uma de suas habituais, monótonas, insultantes, intermináveis e negativas filípicas.

E as pessoas o ovacionavam e clamavam, entusiasmadas, cada vez que arrastava pelo chão o nome do tetrarca, da dusara, dos kittim e de Roma.

Os vendedores não sabiam se riam ou se choravam. Aquilo era formidável para seus negócios, mas os impropérios não pressagiavam coisa boa. Antipas podia pisoteá-los. E os kittim também.

E olhavam sem parar para a estrada de Jericó. Os gauleses e as patrulhas romanas, porém, não apareceram.

Os ataques do Batista se prolongaram por quatro horas.

Terminada a absurda e incompreensível peroração, o homem das pupilas vermelhas pulou ao chão, pegou a colméia e desapareceu no alto do cerro da "chuva de ouro". Ninguém se atreveu a interrogá-lo. Estava claríssimo: "Só um homem capaz de enfrentar dessa forma os kittim e Herodes Antipas podia ser o Libertador de Israel". Foi o que proclamaram seus seguidores o resto do dia.

E assim foi durante 20 dias. Exatamente, 21.

Nesse tempo não aconteceu nada estranho, aparentemente. Eu ex­plico: as turmae não apareceram, nem ao longe. Também não vimos os gauleses, mas todo mundo sabia que entre os seguidores havia uns e ou­tros. E direi mais: os tor (bois), espiões do Grande Sinédrio e das castas sacerdotais, também se misturaram com a multidão. Como disse, eram fáceis de identificar. Faziam muitas perguntas.

No domingo, 2 de junho, o vau e os arredores estavam lotados. Não tenho certeza, mas o número de seguidores (ou supostos seguidores) do Anunciador rondava os cinco mil.

Aquilo era um manicômio. As aldeias estavam lotadas.

E em cada filípica os seguidores pulavam de alegria e choravam de entusiasmo, e contagiavam uns aos outros: "era a hora".

O grito unânime era incontrolável:

"Abaixo Roma!"

Foi nesse tempo que descobri movimentos "estranhos" nos acampa­dos. Depois dos "sermões", reuniam-se em rodinhas, sempre afastados, e falavam e discutiam durante horas.

Eu me aproximei algumas vezes, mas, quando me juntava aos gru­pos, eles faziam silêncio ou prosseguiam com assuntos sem importância. Vários "justos" participavam dessas rodinhas.

Estavam tramando alguma coisa.

Por fim, decidi interrogar o ari. Mas a resposta de Abner me deixou mais confuso ainda:

Mais vale que não saibas.

O que está havendo?

É para tua própria segurança - disse o pequeno grande homem. - É melhor que fiques de fora.

Deduzi que os partidários do Batista estivessem preparando alguma coisa - como dizer... - "especial".

Não insisti, mas fiquei alerta.

Yehohanan jamais participou dessas reuniões, que eu soubesse. Mais ainda: tenho certeza de que não sabia o que estava sendo tramado ao seu redor. Os fatos ocorridos na fatídica quarta-feira, 12 de junho, acabariam me dando razão.

Interroguei os vendedores badu, quantos me foi possível, mas os resultados foram negativos. Ninguém sabia de nada, ou melhor, ninguém queria se comprometer. Todos podiam ser espiões de todos. Alguns, inclusive, espiões duplos e triplos. Os únicos que não pareciam alterados naquele momento eram o schomer que vigiava as sete chamas amarelas do candelabro e o próprio gigante das tranças louras. Mas o Destino estava à espreita, naturalmente.

E chegou a segunda-feira, 3 de junho, o início do fim de Yehohanan.

 

Os relógios do "berço" marcaram o orto solar às 4 horas, 24 minutos e 54 segundos.

A noite foi escura e sem lua. Chovia de vez em quando, mas distraidamente. As nuvens não estavam muito interessadas, e seguiram rumo ao leste.

Este explorador mal descansou. Eu estava inquieto, mas não sabia porquê. Atribuí a inquietação à incerteza. Morria de vontade de voltar ao yam e ficar ao lado do Mestre. Yehohanan não era o que dizem que foi. Eu estava decepcionado.

Ao longe, rumo ao delta, e nas cachoeiras do mar de Sal, ouvia-se o lamento dos chacais.

Só o firmamento parecia me entender. De vez em quando, aparecia por entre as nuvens e piscava para mim. Agradeci.

Até quando teria que esperar? Junho era o mês no qual, segundo meus informantes, o Batista seria preso, especificamente por Herodes Antipas.

Precisava ser paciente.

E decidi aguentar um pouco mais. Só aquele mês.

Não foi preciso tanto tempo. O Destino, como dizia, estava à espreita.

Lua nova.

Devia ter imaginado.

Uma hora depois do alvorecer, os "justos" que estavam no guilgal começaram a comentar o anormal atraso do Batista. Em dias anteriores, assim que amanhecia, o responsável pelo chofar já havia dado os primeiros toques de advertência. Dessa vez, porém, Yehohanan não aparecia.

Que estranho!

Estaria dormindo? Achei estranho. Yehohanan quase não dormia.

Os discípulos fizeram conjecturas. Talvez estivesse em outro lugar. Era típico dele. De repente, mudava de idéia e montava o quartel-general a cinco ou dez quilômetros do guilgal. Já havia feito isso em outras ocasiões.

Alguns se inclinaram por uma explicação menos lógica: o vidente, nesse dia, não queria pregar.

A maioria se opôs. O vidente adorava as filípicas, e em especial os ataques a Roma e ao tetrarca.

Essa não podia ser a razão.

Por fim, chegaram a uma conclusão medianamente sensata: era preci­so subir ao cerro da "chuva de ouro" e descobrir o que estava acontecendo.

Mas surgiu um problema: quem subiria? Todos arranjaram descul­pas. Todos tinham algo importante a fazer. Falso. Ninguém tinha nada a fazer. Era o medo que os impedia de ir até o cume do penhasco. Temiam o vidente, e com razão. Yehohanan era imprevisível. Se o surpreendes­sem fazendo quem sabe o quê, a reação dele poderia ser tão desagradável quanto violenta. E foi preciso sortear.

Os "agraciados" protestaram, mas acabaram aceitando o exigido pela maioria. E subiram o monte, com mais medo que vergonha.

Foram minutos eternos.

Ninguém falava.

Todos olhávamos fixamente para o arvoredo da "chuva de ouro".

Também não ouvimos gritos.

Talvez tivessem razão os que apontaram a possibilidade de que ele houvesse mudado de lugar.

Mas não.

Minutos depois, voltaram. Desciam correndo, tropeçando aqui e ali. Pareciam assustados.

Precisaram de tempo e ar para reagir.

Abner os interrogou várias vezes. Todos os interrogaram, mas os dis­cípulos, pálidos e alterados, não conseguiam falar.

Ouvi a palavra "ossos".

Abner se impôs:

Que ossos?

Ossos humanos! - replicaram os enviados por fim. - Há ossos por todos os lados!

E o vidente?

Está morto! Com os olhos arregalados!

Morto? - repetia Abner. - Isso não é possível!

Os enviados sentaram-se no guilgal e se juntaram aos gemidos e ao pranto geral.

Abner e eu nos olhamos. Ele achava que Yehohanan não podia estar morto. Eu sabia.

E o ari correu para o alto do Kharrar. Este explorador foi atrás dele. Outroa "justos" nos seguiram. A cena que contemplei no meio dos laburnum (árvores que "choviam ouro”) me deixou sem fala.

Aproximamo-nos devagar, sem saber o que esperar.

Estava realmente morto?

Yehohanan estava sozinho, sentado ao pé de uma das árvores. Ao seu lado, a colméia ambulante e o saco embreado.

Abner parou a poucos metros.

Yehohanan estava de olhos arregalados, sim, mas não estava morto; não me pareceu.

Aos pés do Batista havia uma caveira. Outros ossos estavam distribuídos perto do gigante da borboleta no rosto. Talvez uns 30.

E, de repente, ouvimos um gemido.

O vidente abriu a boca e disse algo. Nenhum de nós conseguiu entender. Balbuciava.

Yehohanan ergueu o braço esquerdo e apontou para o crânio aos seus pés.

Abner e os demais compreenderam. O vidente estava em choque. Estava aterrorizado.

E julguei saber por quê.

Um dos "justos", a uma ordem de Abner, desembainhou a gladium e intro­duziu a ponta da espada por uma das órbitas da caveira. A seguir, jogou-a longe. Os outros discípulos fizeram o mesmo com os ossos, afastando-os.

E, lentamente, com dificuldade, ajudado por seus homens, Abner conseguiu levantar o Batista. E o levaram para fora do arvoredo.

Yehohanan repetia, monótono:

É tudo mentira. É tudo mentira.

Quando fiquei sozinho, dediquei alguns minutos à exploração do lugar, e também dos ossos.

Como disse, acho que sabia por que o vidente estava alterado e por não havia comparecido ao encontro com seus seguidores. Alguém, aproveitando a lua nova, subira até o alto do cerro e, após localizar o gigan­te das pupilas vermelhas, espalhara pelo lugar um monte de ossos, violan­do um dos princípios básicos dos nazir, a seita à qual o vidente pertencia desde a infância. Para os nazir (não confundir com notzri: habitante de Nazaré, ou nazareno), havia três grandes compromissos: não beber vinho, nem provar nenhum outro produto derivado da videira (passas, mosto, vinagre etc.); conservar o cabelo longo (símbolo de santidade) e não tocar os mortos (nem mesmo o corpo dos pais, irmãos ou familiares). Ninguém estava autorizado a cortar o cabelo de um nazir. Podiam fazer tranças, mas era proibido cortar ou pentear o cabelo. Se o nazir (voluntária ou involuntariamente) bebesse vinho ou tocasse um morto, tinha a obrigação de cortar o cabelo e começar do zero sua condição de "guardado ou reservado" (é o que significava nzr. nazir). Examinei a caveira e deduzi que não se tratava de um humano. Os arcos superciliares, a glabela, o recorte supraorbital etc. eram diferentes. Eram os restos de um macaco; possivelmente de um mandril.

Inspecionei os ossos que ficaram espalhados pelas árvores e cheguei a conclusão: eram de gado bovino, onagros e, com certeza, cabras, encontrei um único osso humano.

Ou muito me enganava, ou Yehohanan havia sido enganado. Depois, observei o terreno. A argila, úmida pela chuva dessa mesma noite, tinha uma série de pegadas que me deixou pensativo e desconcertado. Distingui com clareza o desenho das solas das sandálias pelos legionários e mercenários romanos. Tive oportunidade de examiná-las na fortaleza Antônia, em uma de minhas visitas anteriores na sexta-feira, 7 de abril do ano 30. Era um calçado inconfundível. A sola era reforçada com um total de 14 pregos, em forma de "S". O desenho se distribuía por toda a sola do pé. Era um calçado concebido para que o soldado pudesse pisar firme no solo e, evidentemente, planejado como arma. De fato, o corpo do Mestre seria destruído por esses pregos durante a Paixão e Morte. Os pontapés dos mercenários que o escoltaram foram terríveis.

Pois bem, lá estavam aquelas pegadas em forma de "S", repartidas por entre as árvores.

Contei mais de 30, pertencentes a pelo menos meia dúzia de indivíduos . Dois deles pareciam mais corpulentos que o resto. As marcas eram profundas.

Teria sido uma patrulha romana a jogar os ossos no lugar onde des­cansava o Batista? Estaria eu diante de uma estratégia dos gauleses, a guar­da pretoriana de Antipas? Ou outros é que haviam perpetrado o sacrilé­gio? Sacrilégio? Na realidade, à vista dos ossos (todos de animais), não havia sacrilégio ali. O vidente teria se dado conta disso? E os discípulos?

A situação estava complicada. Como reagiria Yehohanan? Como rea­giriam os milhares de seguidores quando soubessem do ocorrido no alto do penhasco?

Como já mencionei, foi o início do fim do assim chamado Anuncia­dor do Filho do Homem.

Quando voltei ao guilgal, era só confusão. Os discípulos iam e vinham sem saber por quê. Gritavam todos juntos, mas não tinham ideia do porquê. Yehohanan estava encolhido ao pé da reseda. Eu me aproximei e o exami­nei. Seu olhar estava perdido. Estava pálido e a musculatura de seus braços e rosto se agitava em uma típica contração tônica. Estava mergulhado em um estado catatônico. Não falava. De vez em quando, dava um gemido, muito abafado, e entoava a costumeira ladainha: "É tudo mentira".

Não sei o que aconteceu no arvoredo da "chuva de ouro", mas o Ba­tista estava assustado e abatido. Aquela catatonia era outro sintoma da esquizofrenia de que padecia. Era fácil para ele passar da melancolia à obsessão, e desta ao estupor e ao decaimento físico.

E, apesar das sensatas recomendações de Abner advertindo os "jus­tos" a não comentar o assunto dos ossos, a notícia voou pelo vau. O pior foi que logo corria montada em todo tipo de mentira, uma mais absurda que a outra: "O Batista enfrentou um grupo armado de mais de 500 ho­mens e os pôs para correr"; "O vidente - diziam - é um herói. Lutou com uma corte e venceu. No cerro ficaram os restos, desmembrados, de seus inimigos. A ira de Yaveh caiu sobre os ímpios".

Não havia nada a fazer.

A indignação dos discípulos e dos seguidores circulava mais rapida­mente que as águas do Jordão.

Dediquei o resto do dia a observar. Evidentemente, tive especial cui­dado de não mencionar que os ossos não eram humanos.

Yehohanan permaneceu na mesma atitude e posição. Estava total­mente alienado. Não reconhecia ninguém nem respondia às perguntas. Abner me consultou. Só pude dar de ombros. Talvez fosse uma crise passageira, um choque causado pela experiência vivida no alto do Kharrar. Mas eu não tinha certeza. Com Yehohanan, tudo era possível.

E a partir da sexta hora (meio-dia), a agitação no vau foi desaparecendo. As pessoas voltaram a suas tarefas habituais, e os "justos" ficaram perto do vidente, atentos e silenciosos.

Foi estranho. Ninguém subiu a colina da "chuva de ouro". Ninguém se preocupou com os ossos ou pensou em examinar o lugar do suposto encontro com os "500 homens armados". Todo mundo deu por certo que a história era verdadeira e que o lamentável estado do vidente podia se dever ao esgotamento e à angústia provocada pela luta feroz.

Mas o dia não havia terminado.

Por volta da décima hora (quatro da tarde), notei uma atividade incomum em alguns seguidores e parte do grupo dos íntimos de Yehohanan. Os acampados convocaram os "justos", e todos eles foram se reunir em lugares reservados. Primeiro, no fundo do bosque das resedas, onde estávamos. Depois, desconfiados, atravessaram para o outro lado do Jordão e se perderam na aldeia de Bet Abara.

Abner foi chamado em duas ou três oportunidades.

Sempre voltava lívido e sério. Examinava seu ídolo e se sentava perto, armado de silêncio.

Ao entardecer, enquanto este explorador oferecia um pouco de água ao abatido Yehohanan, Abner decidiu falar. Estávamos sozinhos no guilgal. É possível que precisasse desabafar. A pressão, a julgar pelo que estava prestes a me contar, era insuportável. E deixei o Destino agir. Ele sabe. Abner começou se desculpando:

Deves nos perdoar.

Não entendi.

Nós te mantivemos de fora, mesmo sendo Esrin.

De fora do quê?

Abner se sentiu reconfortado com a ingenuidade daquele companheiro que todos chamavam de Esrin (Vinte).

Sorriu levemente e prosseguiu:

O plano de libertação está muito avançado.

Notou minha perplexidade e pediu que não o interrompesse. Assim fiz.

O que vou te contar não é fruto da improvisação, nem o trabalho de uns iluminados.

Aguardei, na expectativa.

Somos muitos, demais, que desejamos a pronta libertação de Israel. Sabes disso.

Assenti.

Pois bem, há tempos esse projeto foi concebido e está prestes a ca­minhar. Libertaremos nosso povo do poder ímpio e Yehohanan marchará à frente do "Nogha".

"Nogha"? A palavra, em aramaico, significava "amanhecer" ou "luz do amanhecer". Não compreendi, mas deixei-o falar.

Esse é o nome do plano - "Nogha" - e, como te disse, está quase concluído. Muitos dos que seguem o vidente são membros ativos do "No­gha". Todos somos "Nogha". Tu também, embora não soubesses.

Abner esperou minha reação. Foi um momento delicado. Não o po­dia decepcionar.

E assenti de novo, em silêncio.

Sabia que podíamos contar com Esrin.

Sorri, sem vontade. Em que nova confusão estava me metendo? Um plano para libertar o país da opressão romana?

Temos dinheiro - prosseguiu o ari, cada vez mais entusiasmado. - Temos arsenais. Temos gente que nos apóia, dentro e fora do país.

Não pude me conter e perguntei:

Aliados?

O pequeno grande homem se abriu por completo. Eu era de confian­ça, segundo ele.

Aliados importantes.

Deixou-me em suspenso durante alguns segundos e desfrutou o momento.

O exército de Eneias está disposto a servir sob as ordens do Mes­sias. Já fizemos reuniões e foram estabelecidas as condições.

Eneias era o nome original de Aretas IV, rei dos nabateus, o império dos arab, fronteiriço com os territórios de Herodes Antipas.

Comecei a compreender o porquê das estranhas e misteriosas reuniões no vau.

Que pretendiam aqueles insensatos?

Dispomos de um exército de dez mil homens.

Os olhos de Abner brilharam.

Primeiro cairá Betaramta. Depois Maqueronte. Depois Tibérias. Depois...

Betaramta era uma cidade-fortaleza situada ao leste, a cerca de 18 quilômetros do Jordão e a mais 20 quilômetros da fronteira com os naba­teus. Antipas a fortificara e mudara seu nome, chamando-a de Livias, em homenagem à mulher de Tibério, o imperador romano. Mais tarde, seria conhecida por Julias.

- Avançaremos pelo vale do Jordão - prosseguiu o ari, convicto - e expulsaremos esse lixo. Primeiro cairá Antipas, conforme anuncia o vidente. Depois chegará a vez dos kittim. E Yehohanan será coroado rei.

Pelo que deduzi das palavras do empolgado Abner, o plano em questão - "Nogha" - dependia de uma última e importantíssima reunião, à qual possivelmente compareceria o próprio Eneias. Foi o que afirmou o pequeno grande homem. Perguntei onde e quando aconteceria essa reunião com os generais nabateus e o rei Aretas IV, mas Abner, prudentemente, fez silêncio. Apontou para o céu, já estrelado, e deu-me uma única pista:

Será na próxima lua cheia.

E insistiu em algo que já anunciara em outra ocasião:

Lamento. Não posso te dizer nada mais. É para tua própria segurança. É melhor assim.

O retorno dos discípulos interrompeu a conversa. Era suficiente.

E fiquei um longo tempo em silêncio, tentando organizar os pensamentos.

Era tudo muito estranho.

Abner não era um louco. Ao contrário. O pequeno grande homem era só sensatez e prudência. Havia provado isso muitas vezes. Mas, se estivesse sendo sincero (e não tive a menor dúvida), alguma coisa não se encaixava. Alguma coisa estava errada naquela aliança. Os nabateus odiavam Antipas. Isso era verdade. Os atritos, como disse, vinham de muito tempo antes, em consequência dos limites fronteiriços. O pai de Antipas - Herodes, o Grande - já havia tido problemas nesse sentido, e também com Aretas IV. Quanto à relação dos a’rab, todos beduínos, com Roma, o assunto era diferente. Não se davam bem nem mal. Embora Augusto - como escreve Flávio Josefo em seu livro Antiguidades (XVI, 10-9) - tenha tido inimizade com Eneias no início de seu reinado, posteriormente o reconhecera como rei e ajudara os nabateus sempre que pudera (ver assunto de Sileu, executado em Roma a pedido de Aretas IV). E um dado importante: com a morte de Herodes, o Grande (ocorrida em 13 de março do ano 4 a.C.), quando Varo, o legado romano na Síria, se voltou com suas legiões contra Israel, Aretas IV pôs à disposição de Roma um bom número de tropas auxiliares. Assim conta Josefo em Antiguidades (XVI, 10-9) e em Guerras dos judeus (11,5-1).

Em outras palavras: os nabateus sabiam do poder militar e econômico de Roma e, de fato, colaboravam com os kittim. Como aceitar que agora (ano 26) se colocassem do lado de uns "loucos visionários" que diziam obedecer a um pretenso profeta?

Obviamente, se as reuniões com os árabes fossem verdade - e, insisto, não tinha por que duvidar de Abner alguém estava enganando alguém.

Nessa mesma noite, quando foi possível, perguntei ao ari se Yehohanan sabia do "Nogha". A resposta foi categórica:

É melhor que fiques de fora do não importante.

Mas...

Abner não permitiu qualquer insinuação.

Yehohanan tem sua missão - sentenciou. - Ele conduz e guia. Ele é o símbolo do "Nogha". Dos detalhes, cuidamos nós. O que importa é que o plano funcione, e o "Nogha", como te disse, está em andamento. Querido Esrin, dias de glória nos esperam.

Não era preciso ser muito esperto para imaginar como terminaria aque­la loucura. E eu me espantei, mais uma vez. Por que nenhum dos evangelistas faz alusão aos planos dos seguidores do Batista? Os textos evangélicos, como mencionei, só falam dos ataques de Yehohanan a Herodes Antipas, "por ter tomado a mulher de seu irmão".

No dia seguinte, terça-feira, 4 de junho, o grupo teve uma surpresa.

Bem avançada a manhã, Judas Iscariotes apareceu.

Quem isto escreve ficou estarrecido.

E os "justos" o ouviram com desconfiança.

Disse estar arrependido "por seu comportamento infantil" e suplicou que o acolhessem novamente no seio dos escolhidos. "O importante é a luta", afirmou. Judas não queria renunciar à independência de seu povo. Sem o grupo dos "justos", sentia-se perdido.

Abner e os outros ouviram, mas um tanto perplexos.

Simplesmente desconfiaram. Mas o vidente não estava em condições de aceitar ou rejeitar a presença do Iscariotes, e Abner se responsabilizou pela admissão. E Judas teve uma nova oportunidade. A verdade é que Ab­ner tinha outras preocupações - mais urgentes -, e não pensou no que estava fazendo.

Acho que todos no guilgal pensamos a mesma coisa: Judas teria algo a ver com o feio "episódio" dos ossos? Por que apareceu poucas horas de­pois? Coincidência? Mas ninguém indagou.

Os seguidores do Batista estavam começando a se inquietar. E em diversas ocasiões foram até o círculo de pedras. Queriam ver e ouvir o líder, mas o vidente continuava encolhido feito um novelo, largado ao pé da reseda. Não falava, não comia, mal bebia, salvo se alguém lhe um pouco de água na boca, e ficava o tempo todo com os olhos arregalados, em estado de choque. Comecei a me inquietar.

Abner e os demais arranjaram desculpas para fazer os fanáticos se afastarem do guilgal. Mas a estratégia - eles sabiam - acabaria se esgotando. Nesse caso, o que fazer?

Abner me consultou. Eu era médico. Não sabia o que lhe dizer. Ou melhor, não pude lhe dizer nada.

E limitei-me a pedir paciência.

Acertei.

Na quarta-feira, dia 5, Yehohanan "acordou" de sua letargia. Despertou subitamente.

Todos nos alegramos (eu mais que todos), mas ninguém se atreveu a interrogá-lo. Foi uma das constantes na relação do Batista com seus íntimos: o medo. Que enorme diferença com o Mestre!

Olhamos para ele, expectantes.

Como reagiria? Faria alusão aos que jogaram os ossos e supostamente o contaminaram?

Não disse uma palavra.

Dirigiu-se à colméia, abriu-a, sentou-se ao seu lado e tirou várias porções de mel. Comeu em silêncio, e sem olhar ao redor.

Ninguém se atreveu a respirar.

Terminado seu café da manhã, saiu do guilgal e urinou.

Depois, voltou para a reseda e, após contemplar os ansiosos discípulos, chamou Abner.

Uma vez em sua presença, Yehohanan deu uma ordem seca e desconcertante:

- Corta as tranças.

Cortar o cabelo?

O ari dirigiu um olhar a seus companheiros. Todos haviam ouvido. E a maioria negou com a cabeça.

Abner olhou nos olhos do Batista e se negou.

Yehohanan, então, usou um truque que quase sempre dava resultado. Levantou-se e avançou para o pequeno grande homem.

Inclinou-se sobre Abner e o chamou de jel’a (desprezível).

O ari não retrocedeu, nem se alertou com o "ataque" do vidente. E tornou a se negar.

As pupilas vermelhas ficaram a uma polegada do rosto do ari. E os insultos caíram em cascata sobre o aturdido lugar-tenente. O vidente o chamou de tudo.

Abner, respeitosa, mas firmemente, explicou-lhe que ninguém podia cortar o cabelo de um nazir. A Lei proibia. E assim era. Só o nazir estava autorizado a cortar seu próprio cabelo, e nas circunstâncias previstas pela Lei.[54] Aquele, evidentemente, não era o caso; pelo menos, era confuso. Aceitando que o nazir (Yehohanan) houvesse sido contaminado pelos os­sos, antes de fazer o corte, como prescrevia a Lei, tinha que se apresentar diante dos sacerdotes, ser aspergido com a água da purificação e oferecer os correspondentes sacrifícios. Isso podia ser feito na Cidade Santa ou em "províncias". Uma vez concluído o ritual, o nazir procedia à raspagem do cabelo, que era jogado ao fogo. Jamais devia ser guardado.[55]

Yehohanan gritou:

Sabes quem sou?

Abner assentiu com a cabeça.

Pois obedece, maldito kuteo (samaritano)!

O ari tornou a pedir ajuda aos discípulos, mas só uns poucos se atre­veram a insinuar que o corte do cabelo podia ser um grave erro, e que Yehohanan sofreria o mesmo castigo de que padecera o lendário Sansão, quando fora enganado por Dalila.

O vidente ignorou a argumentação, e os insultos choveram, em partes iguais, sobre todos os "justos", houvessem ou não houvessem falado.

Os discípulos acertaram. Após o corte das sete tranças, Yehohanan não foi mais o mesmo. Tudo se voltou contra ele, como se fosse um castigo. Mas vamos nos ater aos fatos.

Abner acabou obedecendo e, resignado, pegou uma navalha. Pediu a colaboração de um dos íntimos e se preparou para executar a ordem do vidente.

O Batista se sentou ao pé da reseda e o deixou agir.

E as tranças, uma por uma, caíram ao chão.

Abner chorava, e também os "justos". O único que permaneceu impassível, com o rosto grave, foi o Iscariotes.

O ajudante recolheu o cabelo e o guardou em um saco.

Yehohanan nem o olhou. Ficou de olhos fechados e a cabeça levemente baixa.

Abner cortava o cabelo que continuava despontando louro, quase branco no crânio; e, finalmente, banhou-o em espuma e o raspou sem piedade.

Ao terminar, como se fosse um aviso, surgiu o maarabit, o vento do oeste e balançou as peças de cerâmica que pendiam dos galhos da árvore. Foi uma advertência.

Pouco depois, após o vento, chegou uma frente fria, muito ativa. E começou uma chuva interminável, que se prolongaria por nove dias. To­dos no guilgal se protegeram como puderam.

Sim, as palavras dos "justos" foram proféticas. A partir dessa manhã, foi obscuro e lamentável.

Fiz as contas. Segundo minhas informações, fazia quatro anos que Yehohanan não cortava o cabelo. A última vez fora no mês de elul (agosto-setembro) do ano 22 de nossa era, quando o Batista tinha 28 anos de idade. Nessa ocasião também não tinha razão. A morte de Isabel, mãe do gigante das sete tranças, aconteceu antes de Yehohanan chegar ao Hebron, onde vivia a solitária e cada vez mais decepcionada mulher. Nem sequer chegou a vê-la. Como disse, não havia razão para que cortasse o cabelo. E, não obstante, raspara a cabeça.

E, de repente, debaixo da chuva, como que movido por uma força in­visível, impossível de controlar, o vidente se levantou, ergueu o rosto para a densa ramagem da reseda e clamou com aquela voz rouca que o caracte­rizava:

Oh, Deus Eterno, bendito seja teu nome! Lembra-te de mim! Eu te rogo, fortalece-me!

Os discípulos, perplexos, levantaram-se também. Não entendiam nada.

E permaneceu com o olhar perdido no cinza chumbo dos céus:

Eu te rogo! Só mais uma vez! Oh, Deus, bendito sejas, para que só por essa vez possa me vingar dos kittim!

Eu não acreditava no que ouvia.

Yehohanan invocava o livro dos Juízes, com palavras parecidas com as que Sansão usara para pedir ajuda a Yaveh depois de Dalila ter cortado seu cabelo (Juízes 16, 28).[56] A única mudança notável que observei foi no final. Sansão não menciona os kittim (romanos), e sim os filisteus.

Definitivamente, aquela criatura estava transtornada.

Deixou que a chuva o encharcasse e, lentamente, foi baixando a cabeça.

O que pretendia?

Pegou o saco embreado e malcheiroso e o barril colorido. E, agitando o forro negro que continha o pergaminho da "vitória", correu para a espla­nada da menorah. Todos o seguimos, desconcertados.

A chuva, tenaz, afogava-nos.

Os seguidores o viram se aproximar da rocha vermelha de marga e rapidamente o cercaram.

Yehohanan colocou a colméia ao pé da grande pedra e, como era habitual nele, subiu até o alto.

A multidão se cobriu como Deus lhe permitiu e ovacionou o vidente antes que começasse a falar. Chamou-o de herói e gritou em coro um nome que eu já ouvira em Caná: "Inon", outra referência ao Messias.

E os gritos de "Inon! Inon! Inon!" se propagaram pelo vau.

E assim, debaixo daquele dilúvio, ele deu início a um dos discursos mais estranhos que me foi dado ouvir.

Hoje ainda não compreendo.

Eis que o Eterno, bendito seja, sai de seu lugar! E deixava as pausas livres. Era outro truque seu. As pessoas ouviam com emoção.

E o fará na forma de grande rocha!

Nova pausa.

Assim, todos saberão de quem é o mundo!

Outra vez a "grande rocha". O que estava anunciando?

Uma fortíssima descarga elétrica fez recuar muitos seguidores. O estouro foi perto, águas do Jordão acima.

Yehohanan ergueu os braços, e o saco, ensopado, onde guardava o “323” se iluminou com mais dois raios.

A multidão explodiu:

Inon! Inon!

Eis que o Eterno, bendito seja seu nome, sai de seu lugar, e descerá, e pisoteará os altos da Terra!

Eu não tinha certeza, mas me pareceu que o Batista, dessa vez, recitava o profeta Miqueias.

E as montanhas derreterão debaixo d'Ele! E os vales racharão, como a cera diante do fogo!

A água não dava trégua, mas os seguidores continuavam animados.

Eis aqui nosso homem - repetiam. - Ele nos conduzirá à vitória.

E Yehohanan prosseguiu:

Ele vestirá o mundo de gelo e de luto! E derramará fogo!

Fez silêncio e permitiu que os relâmpagos o substituíssem. A multidão, assustada, esperou. E eu me perguntei: "De que está falando?"

Primeiro marchará contra a água e depois desatará sua cólera com um fogo implacável! E as águas se derramarão como nunca antes! Depois, enviará o dia da cinza!

Ergueu de novo os braços e perguntou:

Por que acontecerá tudo isso?

Os seguidores murmuraram: "Pela transgressão de Roma".

O Batista esperou. E ouviram-se novos comentários: "Pela impiedade dos kittim".

Por fim, clamou:

Pela transgressão de Antipas acontece tudo isto, e pelos pecados da casa de Israel!

De fato, usava os escritos de Miqueias... à sua maneira.

Por isso farei do mundo um monte no campo, e farei rolar o que nunca havia rolado! Será o dia de Gog! Eu sou d'Ele! Eu vos anuncio que Gog che­gará e, com Ele, descobrirei as fundações do mundo! E serão despedaçadas todas as imagens, e todos os galardões serão queimados a fogo, e todos os ídolos não serão nem significarão nada! Serão cobertos pela cinza de Gog!

Gog? Eu sabia alguma coisa sobre esse personagem (?) meio mitológico,[57] mas não entendi por que o citava.

E insistiu várias vezes:

Gog! Ele já vem! Ele já vem! E com Ele o luto e o gelo!

Estava completamente louco.

Porquanto da paga de uma puta, ela, a dusara, reuniu riquezas, e pela paga de uma puta se voltarão!

Não podia faltar a alusão a Herodíade.

Por isso me lamentarei e gritarei! Eu me despojarei e andarei nu! Da­rei gritos lastimosos como os chacais, e me lamentarei como os avestruzes!

As pessoas não pareciam se importar com o dilúvio. Continuavam eletrizadas com a contundência daquelas palavras, embora também não entendessem grande coisa.

E me veio a palavra do Eterno, bendito seja, dizendo: "Filho de Homem, põe teu rosto para Gog e profetiza!"

Agora se apoiava em Ezequiel (38). E, como sempre, a seu bel-prazer, sem respeitar o que o profeta escrevera.

Assim diz o Eterno, bendito seja seu nome! Eis que sou contra ti, Antipas, príncipe da Pereia e da Galileia! Far-te-ei voltar e porei ganchos em tuas mandíbulas, e te puxarei para fora com todo teu exército, cavalos e cavaleiros!

A multidão explodiu de novo e o aclamou, ensandecida.

E gritaram "Inon" com tanta força que abafaram a voz do vidente. As frases seguintes não foram ouvidas por quem isto escreve.

Por fim, os seguidores (eu diria que vários milhares) deixaram o profeta" falar.

E acontecerá naquele dia, quando Gog vier contra a Terra, diz o Santo, que minha fúria se levantará com meu fôlego.

Outro raio se precipitou sobre o Kharrar e o vau se iluminou com uma luz que feriu pupilas. As pessoas emudeceram, aterrorizadas. E a detonação fez que muitos corressem. Outros se prostraram, tomando os trovões como uma advertência dos céus.

Yehohanan não se alterou. Continuou agitando o saco embreado e anunciou com a voz arrasada pelo esforço:

De tal sorte que tremerão diante da minha face os peixes do mar, as aves do céu, os animais do campo, e todos os répteis que se arrastam sobre a terra, bem como todos os homens que estão sobre a face da Terra!

Dessa vez, a invocação do profeta Ezequiel (38, 20) foi quase literal.

Gog derrubará montanhas e abrirá outras! Cairão os penhascos e todo do muro será abatido! Nada escapará à minha cólera, diz o Eterno, bendito seja! Cobrirei o mundo com a mão de Satã e manterei a escuridão por nove anos!

E clamou com teatralidade:

Gog! Já se aproxima! A grande rocha me fará justiça!

Por que misturava o nome de Gog com a "grande pedra"? De fato, assim chamava a rocha: Gog.

Não soube, não entendi.

A espada de cada homem será contra seu irmão! Todos roubarão e saquearão! Nada será de ninguém! Todos perderão! E saberão quem é Deus o Eterno, bendito seja seu nome! Nesse dia, terminarão os reinos e os reinados! E reclamarão a peste e a morte como um bem! Gog porá cada um em seu lugar!

A multidão emudeceu, estupefata. O vidente estava profetizando? Para mim, ele era vítima de outra crise.

Nove anos de escuridão, de fome, de brigas entre irmãos, de ncia do Santo, bendito seja seu nome, de longas buscas inúteis, de gelo e de luto!

A chuva cedeu, e a tempestade se afastou momentaneamente. E o vidente prosseguiu com seu "Gog" e seu "Magog", e com as alusões ao fim do mundo. Deduzi que se referia aos sinais apocalípticos que precederiam o surgimento do profeta Elias.

 

Essa era a crença generalizada dos judeus,[58] como já mencionei em outros capítulos destes diários. Em suma: nenhuma novidade.

Assim foi durante cinco dias.

Toda manhã, a mesma filípica apocalíptica, a mesma "grande rocha", as mesmas ameaças, o mesmo fervor dos seguidores, as mesmas reuniões secretas (e não tão secretas) e a mesma chuva, inclemente.

O vau e o bosque das resedas se transformaram em um lodaçal. Eu estava entediado e desesperado. Aquela loucura parecia não ter fim.

Mas tenho que ser sincero. Nem tudo foi negativo nesses dias de junho.

No sábado, 8, assim que amanheceu, tive uma grata surpresa: Tarpelay, o sais negro, apareceu no bosque com uma reda, uma carruagem coberta. Dadas as circunstâncias, foi uma bênção. Abandonei o guilgal e me refugiei na carroça. Tar se negou a partir, pelo menos enquanto durasse a chuva.

Ele estava preocupado. Acabou confessando que temia por minha se­gurança. Corriam pelo vale rumores pouco tranquilizadores. Antipas havia chegado ao limite da paciência. Era possível que mandasse seus homens para cima do vidente e que o prendesse. E, com Yehohanan, também os outros íntimos.

Mas isso não era o pior.

Roma também parecia disposta a acabar com aquela situação des­confortável. No Jordão, estavam a par das incursões das turmae e sabiam que os kittim não ficariam de braços cruzados. Yehohanan e seus simpati­zantes estavam começando a incomodar. Se Herodes Antipas não captu­rasse o Batista e não acabasse com aquela tentativa de sublevação, Roma o faria, e sem contemplações.

Era melhor que abandonasse quanto antes aquele grupo de loucos, ou pelo menos que me distanciasse por um tempo.

Tarpelay não era um homem expressivo, e muito menos suplicante. Dessa vez, porém, suplicou. Rogou, quase ordenou que eu saísse do vau imediatamente. Uns ou outros, gauleses ou romanos, ou conjuntamente, estavam para chegar.

Era o segundo aviso. O primeiro, como se pode recordar, foi-me dado por Nakebos, o alcaide da prisão do Cobre.

E eu disse que sim, que pensaria.

Tar não voltou a falar no assunto. O negro da túnica amarela nunca repetia as coisas. Era inteligente, e assim considerava os outros.

Meu objetivo era esperar a lua cheia. Nessa data (18 de junho, terça-feira) segundo Abner, deveria celebrar-se a importante reunião entre os partidários de Yehohanan e o exército nabateu. Seria o momento-chave. O "Nogha" entraria em ação, nas palavras do pequeno grande homem.

Mas os acontecimentos se precipitaram. Ou os precipitaram. A questão é que no domingo, dia 9, à nona hora (três da tarde), aconteceu algo grave e imprevisto.

Gad era o cozinheiro dos "justos". Era um homem agradável.

E, como todo dia, foi ao mercado das sete cabanas. Sua intenção era adquirir víveres.

Os badu o conheciam.

Mas, nessa oportunidade, não sei exatamente por que, talvez por tédio, Gad foi acompanhado por mais dois discípulos: José e Shlomo.

Eu os conhecia pouco. Eram discretos, como Gad.

O caso é que, assim que entraram em uma das cabanas de bambu, segundo as versões dos badu, os três "justos" foram abordados por um grupo armado. Saltaram de uma reda coberta, estacionada perto das cabanas.

Shlomo resistiu. Empunhou sua sica e os enfrentou. Foi a pior coisa que podia ter feito. Os soldados o fulminaram com um golpe de maça na cabeça. Caiu no chão, em uma poça de sangue. Gad e José não opuseram resistência. E os armados, após amordaçá-los, empurraram-nos para dentro da carruagem coberta. No peito de Shlomo, ficou um pedaço de vasilha de barro onde alguém havia escrito: "Voltai de vossos maus caminhos, e guardai as minhas leis".

Quando li a inscrição na argila, reconheci o texto. Era uma frase do livro II de Reis (17, 13), levemente modificada.[59]

Houve grande agitação no vau. Abner e os seguidores do Batista in­terrogaram os beduínos, testemunhas do fato, mas as informações não foram muito além.

A carruagem coberta cruzou a ponte de troncos e afastou-se pelo ca­minho que levava a Jericó. A reda rodava veloz. Seis mulas a puxavam. Mais duas redas menores apareceram na esplanada e foram atrás da primeira.

A julgar pelas descrições, os armados eram gauleses. Usavam a indu­mentária habitual: túnicas verdes até os tornozelos e cotas de metal por cima das túnicas, até metade da coxa. Todos usavam elmos de metal, cônicos, com proteções laterais. Brandiam espadas e maças com espinhos. Falavam uma língua indecifrável para os badu.

Não havia dúvida: era a guarda de Antipas.

Tudo parecia minuciosamente calculado. Sabiam dos movimentos de cada um, e souberam escolher.

Examinei Shlomo. Estava inconsciente. A maça havia aberto uma ferida na região da sutura esfenoparietal, perto do olho esquerdo, mas, felizmente, era mais feio que grave. A copiosa hemorragia fez crer coisa pior. Com um pouco de sorte, acabaria se recuperando.

A chuva, incansável, tornou as indagações mais penosas.

Ninguém sabia mais nada, ou simplesmente ninguém queria se com­prometer. Temiam Herodes Antipas e, acima de tudo, sua guarda pretoriana.

Shlomo foi levado para o guilgal, e Abner e os seguidores discutiram o que fazer. Não era fácil tomar uma decisão.

Antipas estava em Jericó, alojado em um dos palácios de inverno, cons­truído por seu pai, o Grande. Nós contemplamos (contemplaríamos) a mara­vilhosa construção no vôo, indo do monte das Oliveiras ao yam, em abril do ano 30. Era um palácio-fortaleza, muito bem defendido. Nele - diziam - foi assassinado Aristóbulo, cunhado de Herodes, o Grande, no ano 35 a.C.

Examinei de novo o óstraco e compreendi: Antipas estava dando um aviso.

"Voltai de vossos maus caminhos, e guardai as minhas leis."

O tetrarca respondia a Yehohanan usando a tática do vidente: apoiava-se em uma frase bíblica e a manipulava a seu bel-prazer. Esse era o estilo do Batista. E, para causar maior efeito, empregou um pedaço de cerâmica, exatamente como Yehohanan no guilgal. Antipas estava a par de tudo.

Houve muitas especulações. A maioria exigia vingança. Não retrocederiam um só palmo. Se fosse necessário sacrificar a vida de Gad e de José, seriam sacrificadas. O "Nogha" em primeiro lugar. Judas Iscariotes foi um dos ardorosos defensores dessa postura. Outros advogavam por um "razoável entendimento com o tirano". Alguns, mais ousados, traçaram um plano para assaltar o palácio de inverno de Jericó. Logicamente, foi rejeitado. A fortaleza era defendida por pelo menos 500 homens bem armados.

Observei Yehohanan. Ele assistiu a várias dessas conversas e intrigas, mas ficou em silêncio. Eu não sabia (ninguém sabia) o que ele pensava sobre o sequestro de seus íntimos. Para dizer a verdade, a sorte de Gad e de José parecia não lhe preocupar.

Abner também não sabia o que fazer.

Mas, assim que escureceu, deu-se uma novidade que acabaria modificando a situação. De repente, um dos badu apareceu no guilgal. Trazia um pequeno megillah, um rolo de papiro, minuciosamente enrolado e lacrado.

Um cavaleiro encapuzado havia acabado de jogá-lo aos seus pés, nas sete cabanas. Ao jogar a megillah, gritara:

"Para esse meshugah (louco) de borboleta no rosto!"

E afastou-se a galope, cruzando para o outro lado do Jordão.

Abner rasgou o lacre e abriu o papiro. Yehohanan estava dormindo.

O ari leu o conteúdo e empalideceu.

A seguir, entregou-o aos outros "justos".

O texto, em um aramaico limpo e claro, detalhava as condições para a libertação dos discípulos.

A vida deles - rezava a megillah - pela do vidente."

E exigiam a dissolução imediata dos seguidores. Naquele momento, segundo meus cálculos, superavam os três mil.

O prazo para a troca expirava ao entardecer da terça-feira, dia 11. O grupo, portanto, tinha dois míseros dias para fazer um acordo ou simplesmente rejeitar a oferta de Antipas. A megillah, naturalmente, não tinha assinatura.

E Abner e os íntimos abandonaram o guilgal e se refugiaram na aldeia próxima, Bet Abara. Lá, discutiram a noite toda, mas não chegaram a nada concreto. As opiniões, divididas, acabaram confrontando-os. A maioria se negava a entregar o Batista. "Se fosse a hora de Gad e de José, bendito seja." Outros recriminavam essa pouco caritativa postura e incitavam o resto a lutar. "Lutar? - perguntavam, com razão. - Com pedras e paus? Eles são muitos, e bem armados."

E se chamaram de covardes e insensatos.

Assim se passou aquela noite interminável.

Abner, ao alvorecer, confessou-me que temia o pior. O rei dos naba- teus sabia do ocorrido e provavelmente daria para trás. Nesse caso, adeus aos sonhos de liberdade e de glória. Adeus ao "Nogha"!

Ao longo do dia seguinte, segunda-feira, uns e outros se obstinaram em suas já conhecidas posturas. Ninguém quis ceder. E chegou a hora em que uma parte dos seguidores, esgotada e temerosa, optou pelo mais pru­dente: abandonar o vau.

"A situação não está nada boa."

A frase de Tarpelay foi premonitória.

Algo denso e escuro se palpava no ar.

Yehohanan ficou no guilgal, fortemente custodiado. Não lhe permi­tiram abandonar o círculo de pedras, e nem foi informado da chegada da megillah. Ele nada soube do ocorrido naquela noite, nem da deserção de alguns seguidores que acampavam no vau e nas aldeias próximas.

Senti tristeza por ele.

E, durante aquela segunda-feira, tudo foi pressa, agitação e novas reuniões; todas tão inúteis quanto as anteriores. O prazo estava se esgo­tando, e Antipas podia executar Gad e José.

O que fazer?

O único que não parecia alterado naquele manicômio era o schomer dos cabelos louros. Continuava em frente à menorah, com os olhos fixos nas sete velas. Os vigias haviam coberto o monumento com uma grande tenda de peles embreadas. E lá permanecia o schomer, em seu mundo.

Minto. Yehohanan também estava alheio a tudo. Não se pronunciou nenhuma vez sobre o sequestro. Aquela criatura desafortunada, de fato, não tinha relação alguma com o magnífico e misericordioso Mestre.

E foi ao amanhecer da terça-feira, dia 11, que os "justos" e os segui­dores chegaram a um acordo: iriam a Jericó e tentariam negociar com o tirano. Evidentemente, não entregariam Yehohanan.

E assim foi.

Nessa manhã, à sexta hora (meio-dia), o vau ficou deserto. Abner e parte dos "justos" se puseram à frente de uma longa comitiva e seguiram rumo ao palácio de inverno do tetrarca. Em questão de duas ou três horas, chegariam à cidade das palmeiras.

Yehohanan, como disse, foi deixado à margem do assunto. Ele per­maneceu no guilgal, vigiado por um total de 20 homens armados até os dentes. Cinco desses homens eram discípulos. Eu cuidei de Shlomo. A ferida, conforme eu havia prognosticado, começou a melhorar.

Judas Iscariotes escolheu participar das negociações com Antipas.

Sinceramente, hesitei. Em um primeiro momento, eu não sabia que partido tomar. Acompanhava os seguidores do Batista até o palácio de inverno? Assistia às negociações? Prometiam ser intensas e interessantes.

Foi Tar quem propôs que o mais prudente seria ficar no vau de Josué. E concluiu:

- Essa marcha pode terminar em massacre.

E o vau ficou deserto, com a única presença dos schomer, os badu do mercado, os armados que guardavam o Batista, a chuva e quem isto escreve.

Antes do ocaso chegaram as primeiras notícias. Abner, sabiamente, montou um sistema de correspondência, a cavalo, que nos manteve informados. A ordem foi categórica: nenhuma informação ao vidente.

As negociações aconteceram no corpo de guarda do palácio de Antipas. Participaram dois funcionários do tetrarca, Abner, três "justos" (Judas não foi incluído) e mais três representantes dos seguidores de Yehohanan. As discussões foram longas e intrincadas.

Antipas exigia a dissolução daquele "movimento de loucos". Se os simpatizantes do profeta voltassem a suas casas, o tetrarca prometia o perdão geral. E perdoaria a vida de Gad e de José, inclusive a de Yehohanan, se o vidente não tornasse a pôr os pés em seus domínios. Em outras palavras: ele podia pregar, mas longe da Pereia e da Galileia.

Aquilo me pareceu estranho.

O prazo, como disse, acabava com o pôr do sol dessa terça-feira, 11 de junho.

Abner e os seus se retiraram para deliberar.

As notícias seguintes chegaram ao guilgal na segunda vigília da noite (já quarta-feira, 12): na nova rodada de negociações também não houve acordo.

Abner propôs a libertação dos discípulos e a renúncia de Herodes Antipas. "Era o povo contra o tirano."

O tetrarca não cedeu, mas quis demonstrar um gesto de "benevolên­cia" e prorrogou o prazo até o entardecer de 12 de junho.

Como não percebi? Antipas tinha tudo previsto, e bem previsto.

A negociação - segundo a última mensagem - se estenderia. Os quase três mil seguidores que haviam acampado na periferia do palácio de inverno estavam dispostos a manter sua atitude o tempo que fosse necessário. Inclusive, se fosse a vontade de Yaveh, ofereceriam sua cabeça ao tirano.

Tarpelay estava inquieto. E fez um comentário ao qual não prestei a devida atenção:

- Se eu fosse Antipas, agiria exatamente como está agindo.

Compreendi horas depois, quando aconteceu o que aconteceu.

Mas vou tentar seguir a ordem dos fatos.

Yehohanan e seus "guardiões" não tardaram a adormecer. A chuva deu uma trégua, e as resedas, assim como o resto do vau de Josué, entrega­ram-se ao silêncio. Tar e quem isto escreve nos refugiamos na reda. E du­rante um tempo desfilaram estranhos pensamentos por minha mente: por que Antipas estava negociando? Ele não tinha necessidade disso. Era cruel e desprezível. Eu não conseguia compreender. Algo não se encaixava.

E acabei caindo em um sono profundo.

Foi quando voltei ao Ravid e pus os diários em dia que soube que o orto solar, naquele histórico 12 de junho do ano 26 de nossa era, regis­trou-se às 4 horas, 22 minutos e 54 segundos (TU).

Sim, um dia para a história.

Tudo começou minutos depois do alvorecer. A chuva golpeou de novo o couro que cobria a reda e me acordou. A visibilidade era pouca. E senti a urgência de fazer minhas necessidades.

Tar estava dormindo.

Desci da carruagem e, um tanto apertado, fui até a margem do rio.

A reda de Tarpelay (não sei se comentei) estava estacionada no meio do bosque, a uma centena de passos do círculo de pedras, e a pouco mais de três metros da margem do Jordão. Os cavalos comiam pelos arredores, com as patas dianteiras travadas. Só se ouvia o silêncio.

Não se percebia movimento algum no guilgal. Supus que todos ali também dormissem.

Eu me abaixei dentro do rio e fiz o que tinha que fazer.

E nisso estava quando, de repente, ao norte, ouvi o relinchar de cava­los. Pensei nos animais de Tar, mas não.

Pela estrada de terra batida, entre as árvores, vi uma tropa de gente armada e várias carruagens, de duas e quatro rodas. Eram redas cobertas.

Não sabia o que pensar.

Não podiam ser os seguidores do Batista. Procediam do norte, e, além de tudo, estavam a cavalo.

Eram gauleses!

Eu me precipitei para a margem e me escondi como pude, no meio dos juncos e dos bambus.

Eram muitos. Talvez 300. Trotavam rápido e sem ruído.

Como era possível? Os cavalos não faziam barulho.

Depois, reparei. Os cascos haviam sido cuidadosamente envolvidos em sacos de aniagem.

Usavam cotas de metal e calças verdes justas até a metade da perna. Também os típicos elmos cônicos, metálicos, muito brilhantes. Nas cos­tas, os estojos vermelhos cheios de flechas.

Entraram no bosque dos reseda com decisão.

As mulas que puxavam as redas também foram providas de sacos nos cascos. Era impressionante. Nenhuma roda chiava. Provavelmente haviam sido lubrificadas.

Cheguei a me perguntar se estaria sonhando. Mas não. A visão era real.

Corria para a carruagem de Tar? Avisava o pessoal do guilgal?

Eu não estava em condições de fazer nem uma coisa nem outra. Assim que abandonasse a margem, teriam me visto. Além de tudo, eu era só um observador.

Quantas bobagens se pensam em momentos assim!

Os cavaleiros, como se a manobra houvesse sido ensaiada, espalharam-se pelo bosque e cercaram o guilgal com um duplo cinturão. E tomaram posições. Pegaram suas flechas e prepararam os arcos.

Alguns cavalos relincharam, inquietos, mas os gauleses rapidamente os acalmaram. O silêncio reinava no bosque ainda, um pouco incomodada pela chuva, cada vez mais intensa.

Vários cavaleiros se aproximaram do lugar onde eu me escondia. Ins­pecionaram a área e continuaram atentos ao círculo de pedras.

Eu me encolhi no meio dos juncos e quase parei de respirar. Não estava com a "vara de Moisés". Ela tinha ficado na carruagem. Se me des­cobrissem, estava perdido.

Eu usava a "pele de serpente", sim, mas minha cabeça não estava protegida.

Pensei em Tar. Aparentemente, continuava dormindo. A reda não estava muito longe. Os gauleses deviam tê-la visto, mas, até então, não lhe prestaram atenção. Seu objetivo, de fato, era outro.

E tentei manter a calma.

As carruagens pararam em frente ao guilgal, muito perto; talvez a dez metros. Eram cinco redas. Uma delas, a maior, puxada por seis mulas, situou-se à frente. Outra a ultrapassou e se dirigiu ao fundo da trilha. E a uns cem metros para o sul, bloqueou o caminho. Uma quinta reda fez o mesmo, mas na parte norte, por onde haviam surgido.

Tive um mau pressentimento.

A partir desse momento tudo foi muito rápido. Obviamente, a ope­ração foi traçada com minúcia, e ensaiada.

Das três carruagens que permaneciam em frente ao círculo de pedras, desceram cerca de 50 homens armados. Um deles usava um elmo cónico dourado. Parecia o chefe.

Os gauleses, a um sinal do oficial, dividiram-se em dois grupos. Um, à direita do capitão, era formado por 20 homens. O outro, à esquer­da, somava 30 soldados. Vestiam-se e se armavam como a guarda pre­toriana que eu já havia visto em outras ocasiões: cota de metal, túnicas verdes, elmos prateados e grossas maças com pregos, bem como espadas de dois gumes.

O capitão ergueu o braço direito e os 50 homens armados, em abso­luto silêncio, correram para o guilgal.

O contingente de 20 gauleses caiu sobre o adormecido Yehohanan e, em segundos, colocou-o de joelhos, amarrou suas mãos às costas, amordaçou-o e cobriu sua cabeça com um saco. Depois, com o mesmo sigilo, empurrou-o para a carruagem de seis mulas e o obrigou a entrar.

O segundo grupo havia tomado posições. Cercou os "justos" e os seguidores e, com espadas e maças em punho, aguardou ordens.

Eu estava perplexo.

Haviam acabado de capturar o Batista, e sem que o gigante oferecesse resistência alguma. Estava entregue, como se estivesse esperando aquele instante.

E uma velha idéia cruzou de novo minha mente. Os ataques ao tetrarca teriam sido uma estratégia do Batista para que o capturassem?

A carruagem das seis mulas partiu em seguida, perdendo-se em dire­ção ao sul, rumo à esplanada da menorah. Aqueles que haviam capturado Yehohanan entraram na segunda reda e esta se afastou, também a galope, na mesma direção.

O pessoal do guilgal foi acordando com as espadas na garganta.

Os cavaleiros que cercaram o círculo retesaram os arcos, preparados.

O gaulês do elmo dourado esperou as carruagens partirem e se aproximou dos homens armados que vigiavam os "justos" e demais seguidores.

A chuva se tornou densa. Era uma cortina que impedia a visão.

Não tenho certeza (não enxergava direito), mas acho que foi Shlomo, apesar de seu estado, quem conseguiu se levantar primeiro e puxar uma sica. E a brandiu contra o gaulês que o ameaçava. Os demais seguidores se levantaram e pegaram nas armas. Mas os homens das túnicas verdes pareciam estar esperando esse instante. O oficial gritou algo em seu idioma e os gauleses se lançaram com fúria a um ataque corpo a corpo.

Julguei que fosse morrer.

O primeiro a cair, decapitado, foi Shlomo.

O resto lutou, mas não teve melhor sorte. Três ou quatro caíram ime­diatamente. A força, ferocidade e habilidade dos gauleses eram muito superiores. E os "justos" e seguidores, cientes da situação, acabaram jogando suas sicas e espadas no chão, fugindo em todas as direções.

Esse foi outro momento trágico.

Os cavaleiros dispararam seus arcos, alvejando os que fugiam.

E foram feridos no pescoço, nas costas e nas pernas.

Dois ou três correram para o Jordão e pularam nas águas. Nadaram com várias flechas cravadas no corpo. E se afastaram sob a intensa chuva.

Alguns, também feridos, correram para o cerro e se perderam na encosta do Kharrar.

Os cavaleiros não os perseguiram.

Outros ficaram no bosque, mortos ou feridos.

Havia sangue por todos os lados.

O do elmo dourado deu uma ordem, e os cavaleiros se agruparam perto das redas. A tropa a pé entrou nas carruagens e cavaleiros e redas partiram na mesma direção, para o sul.

Depois, só ficou a chuva, tão desolada quanto este explorador, e os lamentos dos feridos.

A operação se consumou em dez minutos.

Então, vi tudo com clareza. Tudo havia sido uma argúcia para lim­par o vau. Tudo: o sequestro dos discípulos, a megillah com as condições, tudo. O importante era afastar os milhares de fanáticos e fazer que o vi­dente ficasse sozinho, ou na companhia de um mínimo de seguidores. Um ataque dos gauleses no meio de três mil furiosos simpatizantes do profeta e suposto Messias não seria recomendável, e não o fizeram.

Antipas era um assassino, mas também inteligente.

Dois minutos depois, eu me vesti e saí do meu esconderijo, disposto a chegar à carruagem de Tar. Minha mente estava confusa.

Mas, depois de dar dois passos, alguém se interpôs em meu caminho.

Não sei de onde saiu. Surgiu do meio das árvores e interceptou meu passo.

Era um cavaleiro gaulês.

Logo apareceu um segundo armado, também a cavalo. Provavelmen­te pertenciam a uma patrulha que percorria a região após a operação. Os outros cavaleiros não deviam estar longe.

Olharam para mim, perplexos. Acho que não souberam o que pen­sar. Mas as dúvidas logo se dissiparam.

Trocaram umas palavras em seu idioma e aquele que interceptara meu passo preparou o arco.

Então, vi Tarpelay ao lado da reda. Ele percebeu a situação, mas não sabia o que fazer. Se gritasse, os gauleses o descobririam e iriam atrás dele.

Senti fogo no estômago. Eu estava indefeso.

Eu estava certo. Os cavaleiros eram exploradores ou faziam parte de uma tropa avançada. Pela trilha de terra batida, ao norte, surgiu o grosso da patrulha. Os gauleses, a cavalo, acompanhavam outras duas redas, também cobertas. Com uma olhada calculei 50 cavaleiros. Um grupo marchava à frente e mais 20 ou 30 fechavam a comitiva. Estariam escoltando alguém?

O pensamento foi inevitável: Antipas?

O homem do arco continuava apontando para mim. Parecia gostar da situação.

Mas os céus vieram em auxílio deste perplexo e confuso explorador.

O segundo gaulês gritou alguma coisa para o do arco, deu meia-volta e trotou em direção à patrulha.

O soldado baixou o arco, guardou a flecha e sorriu com malícia. Era jovem, um pouco gordo, com a pele vermelha e descascada por conta do sol. Suas mãos e seus braços eram totalmente tatuados. Eram desenhos de serpentes, com as cabeças sobre as unhas e pontas dos dedos.

E, prestes a se voltar e se afastar, falou em um aramaico quase indecifrável:

- Tu, sorte! Agora não matar. Ti!

Piscou para mim e saiu trotando, tranquilo, para se juntar a sua unidade.

Respirei aliviado. Nunca soube para que lugar apontava com a flecha. Se fosse na cabeça, e se houvesse atirado, minha sorte teria terminado.

Tarpelay quis se aproximar, mas fiz sinais para que ficasse perto da carruagem. Ele obedeceu.

E, escondido atrás de uma reseda, fiquei observando a patrulha.

As carruagens haviam parado em frente ao guilgal, como fizeram as anteriores. Os cavaleiros se espalharam perto do círculo, exatamente como na primeira ocasião, quando capturaram Yehohanan.

Um dos gauleses que permanecia junto às redas bateu na madeira de uma carruagem, e de dentro saiu um grupo de infantes, também armado. Entraram no círculo de pedras e passaram a revistar os mortos e feridos, e a carregar os sacos, as armas e os pertences dos "justos" e dos seguidores que guardavam o Batista.

A manobra também foi rápida. O material foi depositado na reda de onde haviam saído e voltaram para dentro da carruagem. Pouco depois, a patrulha se afastava em direção ao monumento.

E me veio à mente o saco embreado e malcheiroso em que Yehohanan guardava o misterioso pergaminho da "vitória". Também pensei nas "memórias" de Abner. O pequeno grande homem as escondia em um dos sacos de viagem. Tudo, parecia, acabava de ser confiscado pelos guardas de Herodes Antipas.

Eu me enganei. Nem tudo.

A questão é que a operação havia terminado.

Agora sim. Dei meia-volta e fui para a carruagem de Tarpelay.

Minha mente estava nublada.

Poucos passos depois ouvi uma voz atrás de mim que me pareceu familiar. Voltei-me e me vi diante do soldado da pele queimada. O cavaleiro estava no meio das árvores, a não mais de 20 metros. Apontava de novo para mim com seu arco. O cavalo estava com a cabeça baixa, mordiscando o mato.

Sorriu, malicioso, e, um segundo antes de atirar, comentou:

- Agora sim matar. Ti!

A flecha (de caça), de grande diâmetro e considerável peso, entrou em meu ventre, à altura do umbigo. O golpe foi tão forte que perdi o equi­líbrio e caí de costas.

Possivelmente, essa queda me salvou.

O gaulês achou que havia me liquidado e se afastou.

Tar correu para mim e tentou me ajudar. Estava desconcertado. E não era para menos.

A flecha, ao acertar a "pele de serpente",[60] se quebrou.

Eu me sentei e verifiquei os "danos".

A túnica rasgada. Isso foi tudo.

Tar olhava para mim, sem acreditar. Não havia sangue. Não havia ferida.

Peguei os restos da flecha e os examinei. A haste, de madeira de ce­dro, partira-se ao meio. As plumas eram de peru, enormes, azuis e verme­lhas, colocadas em forma helicoidal. Assim, aceleravam a estabilização do projétil. Aqueles malditos gauleses sabiam das coisas. A ponta, de bronze, antes triangular, estava deformada.

Tar a inspecionou e me olhou, confuso. Não disse nada. Para quê?

Peguei a "vara de Moisés" de dentro da reda e, sem uma palavra, fui para o guilgal. O fiel negro continuou mudo, mas não se afastou de quem isto escreve.

Aquilo havia sido um massacre.

Contei seis mortos (cinco eram "justos"). Fora do guilgal, espalhados pelas resedas, havia cinco feridos. Só pude lhes dar água e todo o consolo de que fui capaz.

Os gauleses levaram até as sandálias.

Fiz as contas e vi que faltavam nove seguidores dos que protegiam Yehohanan. Dois ou três se jogaram nas águas do Jordão. Quem sabe se estavam mortos. O resto, creio, conseguiu fugir para o alto do Kharrar.

Deus do céu! Por que nada disso foi mencionado pelos evangelistas? Mateus, o primeiro apóstolo que começou a escrever sobre o Mestre, e tal­vez o mais explícito, diz a respeito: "Pois Herodes havia prendido a João, e, maniatando-o, o guardara no cárcere, por causa de Herodíade, mulher de seu irmão Felipe; porque João lhe dizia: 'Não te é lícito possuí-la. E queria matá-lo, mas temia o povo; porque o tinham como profeta".

Mateus não acerta uma. A verdade, uma vez mais, foi maltratada.

Os nomes dos cinco discípulos mortos pelos soldados de Antipas eram os seguintes: Shlomo (o primeiro mártir da cristandade), Davi, Arki, Issacar e Ageu. O nome do sexto falecido (um dos fiéis seguidores do Batista) eu jamais soube. Posteriormente, quando o Destino quis que voltasse a encontrar Abner e os demais "justos", eu soube que mais quatro seguidores também haviam falecido em consequência dos ferimentos causados naquele amanhecer do dia 12 de junho. No total, dez mortos. Os dez primeiros mártires do cristianismo, aceitando que as prédicas e a filo­sofia do Batista tivessem algo a ver com a mensagem e com o pensamento do Filho do Homem.

E está dito.

E aconteceu que, no exame de um dos cadáveres, ao virá-lo, encontrei o saco embreado e malcheiroso que guardava o "323". Os gauleses não haviam encontrado.

Peguei-o e decidi levá-lo ao "berço". A história que Yehohanan contava sobre sua possível origem[61] me deixava intrigado. Queria analisar o pergaminho, esclarecer as dúvidas e devolvê-lo ao vau de Josué, onde o havia encontrado. A análise não alteraria o devir natural dos acontecimentos.

Tar me urgia.

Tínhamos que abandonar o local o mais rápido possível. Se algum sobrevivente houvesse conseguido chegar à esplanada das sete cabanas, provavelmente todos já estavam avisados. Os badu, ou os schomer, não tardariam a chegar ao guilgal. Nesse caso, se nos surpreendessem com os corpos, poderiam nos acusar de ladrões e saqueadores.

"Péssima idéia", comentou.

Além de tudo, a guarda de Antipas podia voltar.

Haviam se passado duas horas desde a captura de Yehohanan. A notícia não tardaria a chegar aos ouvidos de Abner e dos seguidores. Era lógico que aparecessem imediatamente no guilgal. Esperá-los seria uma loucura. Arriscado demais. Por outro lado, ninguém podia imaginar a reação do tetrarca. Uma vez atingido seu principal objetivo - descabeçar o grupo que importava o resto? Havia a possibilidade de que os prendesse ou os executasse. Tudo era possível.

Reconheci que o fiel sais tinha razão. O mais sensato era partir.

E assim fizemos.

Às sete da manhã, a reda deixou para trás o vau de Josué, também chamado das "12 Pedras". A experiência foi profunda e angustiante.

Eu precisava pensar.

E a carruagem se dirigiu ao norte, a galope.

Sim, eu precisava pensar.

Não lembro muito daquela viagem. Galopamos para o norte, sempre para o norte, até que Tarpelay compreendeu que aquela "fuga" não tinha sentido. Ninguém nos perseguia. E diminuiu o ritmo da reda.

Acho que lembro que lhe dei uma única indicação: tínhamos que chegar ao yam.

Não falamos durante o resto do caminho. E quem isto escreve conti­nuou pensando, pensando...

Flávio Josefo, o historiador judeu romanizado, foi o único que acer­tou.[62] Yehohanan foi preso por razões puramente políticas. Alguém teve medo. Alguém pensou que ele podia arrastar as massas a uma sublevação e cortou o mal pela raiz. Esse "alguém" foi Herodes Antipas.

Roma esteve envolvida na detenção?

Era muito possível. A presença de uma patrulha romana nas proxi­midades do guilgal, responsável, talvez, pela manobra de contaminação do nazir com os ossos, era eloquente. A história nunca esclareceu isso.

E os pensamentos me levaram até Jesus de Nazaré. Como reagiria à pri­são de seu primo distante? Sairia em uma pregação aberta? Se bem me lem­brava, isso fora estabelecido por Ele próprio em Beit Ids: não pregaria, não falaria publicamente de Abba, até que o Batista "terminasse seu trabalho".

Eu não tinha ideia do que o Mestre planejava. A que se referia com "finalização do trabalho" de Yehohanan? Pensava no fim de suas filípicas ou na morte do gigante?

A intuição tocou de novo meu ombro e sussurrou algo importante: era muito cedo ainda. Nem ao menos havia escolhido os outros apóstolos. Eu tinha que ser paciente. Estava tudo organizado, e bem organizado.

Pensei também em Judas. Que faria a partir daquele crítico momen­to? Seguiria com Abner?

Foi outra incógnita.

Eu sabia que ele acabaria se juntando ao Galileu, mas ignorava como e em que momento.

Nenhum dos "justos" confiava nele. Teria tido algo a ver com a cons­piração contra Yehohanan? O fato de ele aparecer no vau de Josué poucas horas depois do incidente com os ossos foi suspeito. Sabia de alguma coisa? Delatara o grupo? Não me pareceu lógico. Não era necessário. Todo mundo conhecia os costumes do Batista. Além de tudo, segundo dizia, Yehohanan era seu ídolo. O fato de, anos depois, ter traído Jesus de Nazaré não tinha por que o transformar em traidor naquele momento. As circunstâncias, no caso do Filho do Homem, foram diferentes. Sim, eu estava me precipitando.

E dediquei boa parte da viagem a imaginar a entrada do Iscariotes no círculo dos íntimos do Mestre. Como pôde chegar até Ele? Judas havia visto o Galileu no bosque dos lenços, perto do rio Artal, mas não lhe prestara muita atenção. Foi o que me pareceu. Judas era um fanático dos zelotes. Queria fazer parte da organização. Judas era um extremista. Apoiava a subblevação armada e a luta contra Roma. Eu não entendia como se tornou um apóstolo. O Mestre, desde o início, inclinara-se pelo amor e pelo “reino espiritual" de Abba. Eu não conseguia assimilar como o Iscariotes entrara no grupo de Jesus. Quem o convenceu? Foi o Mestre?

Tudo tinha uma explicação, que chegaria a seu devido tempo.

Senti pena de Yehohanan.

O que aconteceria depois da captura? Ele foi executado de imediato ou passou-se um tempo? Os evangelistas se inclinam pela última alterna­tiva. Dizem que ficou na prisão e que manteve algum tipo de comunica­ção com o Filho do Homem. Mateus (14, 6) aporta um dado sobre a data execução do Batista: "Festejando-se, porém, o dia natalício de Herodes (...)”. Não tinha idéia da data em questão. Referia-se ao aniversário de An­gras ou ao aniversário de sua subida ao trono? Não consegui encontrar um único indício e, além de tudo, também não confiava em Mateus. Seus erros, em outros capítulos da vida do Mestre, eram terríveis. Nesse assunto também convinha esperar. O Destino mostraria o rumo. E acho que o fez! E de que forma!

As carruagens e os cavaleiros da guarda gaulesa haviam se afastado em direção ao sul. Isso significaria que estavam levando Yehohanan para a região do mar Morto? Lá existia uma fortaleza (Maqueronte), onde, segundo a tradição, o Batista foi executado. Também não era uma tradição confiável. Ao chegar à ponte de troncos existente perto do monumento da menorah, a tropa poderia ter tomado outro caminho. Estariam indo para o leste? Bem perto, por essa estrada, erguia-se outra cidade-fortaleza: Betaramta. Estaria preso nesse lugar? Teria escolhido Jericó? Pareceu-me arriscado. Também podiam ter escolhido a estrada que corria paralelamente ao Jordão, pela margem direita. Isso os teria levado para outras fortalezas, para não falar da Galileia.

Imaginei que eu logo saberia. Essas notícias, apesar das precauções de Antipas, acabavam vazando. O que eu não imaginava naquele momen­to é que estava a um passo da solução do enigma.

E o que dizer dos seguidores de Yehohanan? Como reagiriam os mi­lhares de fanáticos quando soubessem da captura do "profeta"? Que destino teriam os discípulos sequestrados por Antipas? Como acabariam as nego­ciações com os nabateus? Seria o fim do sonho de Abner e dos "justos"?

Fui assaltado por outra velha ideia; algo que havia caído no esqueci­mento: qual foi o papel de Belsa, o persa do sol na testa, naquela história? Por que ele abandonou os discípulos do Batista? Belsa era trigo limpo? Já insinuei isso uma vez, mas... Mais ainda: por que Nakebos, o alqaid da prisão do Cobre, recomendou que eu fizesse o mesmo e me afastasse daquele "grupo de loucos e iluminados"? O que Nakebos sabia?

Foi então, perto de Damiya, que voltaram as recordações de um sin­gular e enigmático "sonho" (?), ocorrido tempos atrás na garganta do El Firan. Nesses helem, ou "visão" (os judeus consideravam esses sonhos muito mais que um sonho), quem isto escreve, como já comentei, viu "cair" do céu uma série de letras e números. E, ao se depositarem em mi­nhas mãos, formaram palavras. Uma dessas misteriosas "palavras" dizia "BELSASSAR", com um número, também em hebraico sagrado: "126".

Não sabia o que pensar. Aquilo era muito estranho.

"BELSASSAR 126" podia significar "Belsa" e a data 12 de junho.

12 de junho? Esse era o dia em que estávamos, o dia da prisão do Batista.

"BELSASSAR" é uma palavra persa. Belsa também era. Coincidência?

A questão é que eu estava diante do terceiro "acerto".

"ÔMEGA 141" e "PRODÍGIO 226" haviam se cumprido.

Alguém estava me "avisando". Belsa podia estar envolvido em tudo aquilo.

Assim sendo, o que queriam dizer as demais e não menos enigmáti­cas "palavras"?[63]

A chegada a Damiya interrompeu essas especulações. Por um lado, agradeci. Eram muitas dúvidas e incertezas. Mas o Destino aguardava, e não muito longe.

Devia ser a quinta hora (11 da manhã).

Tar conduziu os cavalos com grande habilidade, mas eles precisavam de um descanso. Nós também.

E, de mútuo acordo, concedemo-nos um respiro. Como disse, já não havia pressa. A ameaça principal estava conjurada.

Minha intenção era chegar à base dos "13 irmãos" nessa mesma noite ou, talvez, na manhã do dia seguinte. De lá iria para o casarão dos Zebedeu, em Saidan, e informaria o Mestre, conforme solicitara.

Mas o homem propõe e Deus dispõe.

Optei por dar um passeio. E, mergulhado nesses pensamentos, caminhei sem rumo fixo.

Os passos, não sei por que, levaram-me à casa de Nakebos, o nabateu. E decidi entrar. Queria cumprimentá-lo.

Os servos, atentos, informaram-me da ausência do patrão. Nessa nesma manhã - disseram a guarda de Antipas havia chegado a cavalo, e Nakebos se fora com ela. Estava na prisão do Cobre. Não sabiam quando Ataria. Eu podia esperar. E a intuição avisou de novo.

Gauleses a cavalo? Interroguei os criados, e eles confirmaram mi­lhas suspeitas: estavam levando um preso importante. Foi preso no vau de Josué. Eram gauleses, de fato. A notícia correu, rápida, por Damiya. O preso era um velho conhecido da gente do lugar. Havia pregado no vau Colunas, muito próximo da aldeia. Tratava-se de Yehohanan.

Compreendi. Antipas tornara a usar outra argúcia. Fez crer que a patrulha se dirigia ao sul, mas, como imaginei, mudaram de direção, pos­sivelmente na ponte de troncos do vau de Josué.

Certamente pegaram a trilha já mencionada (a que corria pela mar­gem direita do Jordão), mais confortável e segura.

Mas por que Antipas escolheu a prisão do Cobre?

E os planos, efetivamente, mudaram em questão de minutos, como quase sempre, e como em todos os lugares.

Eu iria para a ilha. Precisava falar com o alcaide, Nakebos, e confir­mar a notícia: o Batista estava na prisão?

Voltei para junto do sais e expliquei a situação. Ele me acompanhou até a confluência do Jordão com os rios Yaboq e Tirza, afluentes oriental e ocidental, respectivamente, e me preparei para embarcar. Nesse lugar, bem perto de Damiya, como expliquei em outro momento, existia um embarcadouro, quase exclusivamente destinado ao transporte a partir da terra firme à ilha do Cobre, e vice-versa. Na ilhota erguia-se uma constru­ção um tanto insólita, um misto de fundição e de prisão.

Notei muita agitação no embarcadouro.

As pessoas protestavam.

Tarpelay interrogou os barqueiros.

As pessoas que vendiam coisas às portas da prisão tinham acabado de ser expulsas pela guarda gaulesa de Antipas. Todos os vendedores, prostitutas, aguadores, mendigos, oportunistas e afins, que ficavam às portas e até entravam e saíam do recinto, foram obrigados a voltar para o embarcadouro onde estávamos. Ninguém podia permanecer nos arredores do Cobre.

Vi cavaleiros patrulhando ao pé da muralha.

Agora tinha quase certeza. Yehohanan estava ali dentro. Porém, inep­to e teimoso, quis me certificar, e contratei os serviços de um barqueiro. Tar não concordou. Os soldados não permitiriam que eu desembarcasse, e muito menos que tentasse entrar na maldita prisão.

Mas insisti, e partimos rumo à ilhota. Tar ficou cuidando da reda.

Ele não se enganou.

Não cheguei a pôr os pés em terra. Antes que a barca se aproximasse da margem, um grupo de cavaleiros cavalgou para nós e, gritando, mandou que déssemos meia-volta e desaparecêssemos. O barqueiro não perguntou. Não queria desafiar as flechas dos gauleses. E remou com vigor de volta ao nosso ponto de partida.

Ouvi a martelagem, ao longe.[64]

Eu me resignei.

Tinha que encontrar outra forma de chegar à presença de Nakebos. Poderia ter invocado o nome do al-qaid, mas não me pareceu prudente. En estava protegido pela "pele de serpente" e tinha a vara, mas o barqueiro estava comigo. Eu não tinha direito de arriscar sua vida. Parou de chover.

Ao saltar à terra, o velho barqueiro respirou aliviado. Quando lhe pa­guei, deu-me uma notícia que confirmou minhas suspeitas: "Acontecera com o vidente o que acontecera como Sansão".

E esclareceu que, segundo os presos, o Batista havia perdido suas longas tranças louras. Yehohanan já não tinha força nem sorte. "De lá, não sairá vivo."

O dado, como disse, foi definitivo. Alguém viu o Batista dentro da prisão, e de cabeça raspada.

Mas a sorte não me acompanhou.

Não houve jeito de chegar até Nakebos. Esperei o dia 12 inteiro, e também o 13. Ninguém cruzou para o outro lado e ninguém saiu da pri­são. Nakebos não apareceu em sua casa, em Damiya. Algo importante, de fato, estava acontecendo na prisão do Cobre.

Tar insinuou que devíamos seguir para o yam. Hesitei.

Eu sabia que Yehohanan estava naquele lugar, mas era importante que confirmasse.

Não sairia dali.

No embarcadouro, as coisas também não melhoraram. Cheguei a contar cinco caravanas imobilizadas, com todo tipo de mercadorias. Al­guns, impacientes, tentaram chegar à ilhota. Tiveram a mesma sorte que este explorador. Viram-se na obrigação de dar meia-volta e desembarcar. A indignação era geral.

Mas, na madrugada do dia 13 para 14, tudo mudou.

Aguardando no embarcadouro, vimos passar as redas que haviam transportado Yehohanan e o resto da tropa. Eram escoltadas por cavalei­ros gauleses.

Passaram velozes, em direção ao sul. Possivelmente estavam voltan­do a Jericó.

E as barcas se mobilizaram, iniciando um intenso vaivém de homens e animais. O fluxo com a ilha se restabeleceu, e as portas da prisão-fundição foram abertas.

Às cinco da manhã, com as primeiras luzes, estava diante dos indi­víduos que montavam guarda na grande porta de entrada da prisão. Os controles eram muito estritos. Ninguém podia entrar sem a autorização expressa do alcaide. E os habituais comerciantes do local protestaram. Os vigias não lhes deram ouvidos e obrigaram os não autorizados a ficar lon­ge das portas. A vigilância do Cobre, como no caso de outras prisões, era de responsabilidade dos tsahov, vigias, ou schomer, que sempre se vestiam de amarelo (por isso o nome tsahov. Não confundir com os levitas ou policiais do Templo, que também se vestiam de amarelo). Esses guardas - os tsahov - eram mercenários. Serviam a quem mais pagasse. Usavam túicas até os joelhos, cor de narciso, com sicas (punhais) ou espadas curtas na cintura. Em geral, eram pagãos.

O caso é que os tsahov ouviram meu pedido e perguntaram por que queria ver Nakebos. Só me ocorreu invocar nossa velha amizade. Eu estava de passagem por Damiya e queria cumprimentá-lo.

Não ficaram muito convencidos.

Um dos "amarelos" acabou cedendo e, de má vontade, ordenou que esperasse.

Com os tsahov moviam-se outros indivíduos, vestidos de uma forma muito peculiar. Pareciam vigias, mas de menor categoria. Usavam uns cole­tes cor de cinábrio. Viam-se de longe. O "uniforme" era complementado por calças brancas, muito largas, presas aos tornozelos, e umas varas de aveleira, sibilantes e ameaçadoras. Outros, dentro do Cobre, usavam coletes pretos e brancos. Nakebos, pouco depois, explicaria que os homens dos coletes e das varas eram presos de confiança. Eram chamados de nesher, ou "abutres". Estavam havia anos na prisão. Os que se vestiam de vermelho ajudavam os vigias no que se relacionasse à segurança. Os de colete preto cuidavam dos consertos e da manutenção em geral. Os de branco dirigiam as cozinhas e a intendência. Todos obedeciam aos tsahov. Ao que parecia, não era fácil chegar a ser um "abutre" ou preso de confiança. Além da fidelidade ao alcaide e ao sistema, o "abutre" tinha que ser mais corrupto que os outros corruptos. Segundo Nakebos, nem todo mundo servia.

Tarpelay me observava da outra margem.

E durante alguns minutos, enquanto aguardava, dediquei-me a uma de minhas fraquezas: observar.

Explorei com a vista tudo que estava ao meu alcance (tomarei como referência a porta de entrada da prisão).

Não vi Yehohanan. Pensei que podia estar dentro de um dos barracões que se alinhavam à minha direita, ao pé da muralha leste.

A prisão era um recinto praticamente quadrado, protegido por muros de cinco metros de altura. Tudo estava manchado de fuligem: desde os olha­res dos prisioneiros até a última pedra das muralhas. No centro do pátio, erguia-se uma construção de um andar, totalmente circular. Era a yesuqah, ou fundição, propriamente dita. Tinha várias portas. Por quase todas, viam-se as labaredas e os reflexos oscilantes dos fornos. As sombras dos operá­rios iam e vinham. Cinco altas chaminés tentavam escapar do lugar, mas era inútil. Só a fumaça, às vezes branca, às vezes preta, conseguia.

Ao longe, por trás dos fornos, ouvia-se sem parar o monótono e permanente barulho da martelagem no metal. Era o som que este ex­plorador havia escutado em muitas ocasiões, tanto no vau das Colunas como em Damiya. Era um martelar que, se me permitem a licença, fazia parte da paisagem.

Grandes foles, ou tuyer, foram acoplados aos flancos do edifício cir­cular. Uma série de orifícios havia sido aberta no muro, em especial pelo lado oeste, aproveitando, assim, os ventos dominantes. Vários presos, pra­ticamente nus, vigiavam as correntes de ar e os foles.

À direita, ao pé da muralha leste, como dizia, espremiam-se dezenas de casinhas, todas iguais, todas reduzidas à mínima expressão, todas pretas, e todas com as portas abertas, como um aviso. Eram os barracões dos presos.

Em cada esquina, uma torre de vigilância. E em cada torre, dois ou três "amarelos", acompanhados de outros tantos "abutres". Neste caso, os tsahov, ou amarelos, estavam armados com arcos.

Mas o que mais chamou minha atenção, pelo menos naquele mo­mento, estava a uma centena de passos, perto da yesuqah. Eram três postes de madeira de quase dois metros de altura cada um. Estavam alinhados, e praticamente no meio do pátio. Era um lugar estratégico. Todo mundo passava pela frente.

Pois bem, em cada poste um recluso havia sido crucificado. Os infe­lizes foram colocados de ponta-cabeça, com as mãos amarradas às costas e grandes pregos que atravessavam seus pés. O sangue e as moscas os co­briam quase por completo. Um deles se agitava, entre gritos e lamentos. Os outros permaneciam imóveis. Talvez estivessem mortos.

O mais triste é que ninguém prestava atenção. Os trabalhadores pas­savam diante deles, mas nem olhavam.

Senti um calafrio.

Que lugar era aquele?

À esquerda, junto à muralha oeste, vi outros edifícios. Pareciam ar­mazéns. Estavam fechados. Às portas, alguns "amarelos" vigiavam. O vi­dente estaria lá?

Também não vi nenhum rastro da guarda pretoriana de Antipas. Os gauleses cumpriram as ordens: levar o Batista até a prisão do Cobre. Uma vez lá, a vigilância era coisa dos tsahov.

Por último, naquela apressada observação, examinei as construções existentes à direita e à esquerda da grande porta de entrada da prisão. Eram construções de um andar, aparentemente mais bem cuidadas. Vi “amarelos" entrando e saindo. Podiam ser do corpo de guarda e dos aloja­mentos dos mercenários.

Não houve tempo para colher mais referências. O guarda voltou e indicou que o seguisse.

Entramos em um daqueles edifícios, à esquerda da porta, que eu havia imaginado ser o pavilhão dos mercenários.

O "amarelo" ordenou que esperasse e desapareceu por uma das portas. Eu estava em uma sala praticamente nua, iluminada por uma alta e estreita janela. As paredes estavam decoradas com escritos de di­versos profetas. Só tive tempo de ler um dos textos. Era de Jó (capítulo 2S, 5-12). Dizia assim: "Quanto à terra, dela vem o pão, e debaixo dela é revolvida como pelo fogo. As pedras que ali se encontram são o lugar de safiras, e há pó de ouro. A ave de rapina não conhece esse caminho, e ele nem foi visto pelos olhos do falcão. As feras altivas não pisaram, nem passou por ali o leão. O mineiro estende sua mão sobre a pederneira; "Transforma as montanhas desde suas raízes; corta canais entre as pedras e seus olhos descobrem todas as coisas preciosas. Tapa os veios d’água para que deixem de fluir, e traz para a luz aquilo que estava escondido. Mas e a sabedoria? Onde ela poderá ser encontrada?"

Foi então que se abriu outra porta e vi Nakebos. Atrás vinha o guarda que tinha me acompanhado.

Nós nos abraçamos e o "amarelo", mais confiante, desapareceu por onde havíamos entrado.

Mas surpresa...

Nakebos me convidou para que eu me instalasse em seus aposentos e foi ali que encontrei novamente o desaparecido Belsa, o persa que havíamos conhecido no dia 24 de setembro do ano 25, quando Eliseu e quem isto escreve atravessávamos o Vale do Jordão, em busca do Mestre.

Ele também me abraçou, comovido. Não tinha mudado. Belsa, o chefe aos "escaladores" na "selva" do Jordão, era um homem alto, forte, seme­lhante a Jesus de Nazaré. É por isso que nós o confundimos naquela viagem inesquecível.[65] Um "sol" na testa - símbolo de sua religião, o mitraísmo - o deixava inconfundível. Sua pele continuava branca (nunca permitia que fi­casse exposta ao sol), e a barba era cuidadosamente raspada.

Ele me contemplou de cima a baixo, e seus olhos negros e profundos, ligeiramente amendoados, brilharam de satisfação. Belsa e Nakebos não haviam se esquecido de minhas atenções quando ambos caíram enfermos em Damiya. Acho que gostavam de mim. Sempre fui honesto com eles. Nunca tentei enganá-los ou tirar proveito de sua amizade. Mas isso estava prestes a terminar...

Sentamo-nos e começou a correr o legmi, o licor favorito de Nake­bos. Era cedo, mas nunca para beber, diziam eles.

Nakebos e Belsa sabiam que eu frequentava o grupo dos "justos" e preferi contar a verdade, ou ao menos uma parte dela.

Eu lhes disse que tinha assistido à captura de Yehohanan e que, ain­da que não soubesse como, consegui escapar da guarda de gala. Não fiz alusão ao incidente com o cavaleiro nem mencionei o sais que me acom­panhava, o fiel Tarpelay.

Eles ouviram em silêncio. De vez em quando, trocavam olhares elo­quentes. Percebi que eles estavam cientes de tudo, e de muito mais...

Após a exposição, Nakebos encheu minha taça de novo e perguntou:

E agora, o que vais fazer?

Fui tão honesto quanto poderia ser.

Eu vou continuar buscando a verdade...

Belsa sorriu com benevolência.

Tenho pensado em me unir ao grupo desse Jesus de Nazaré.

O tema despertou um vivo interesse, especialmente em Nakebos.

Conheces esse louco?

Não muito bem.

Mas tu o acompanhaste em ocasiões diferentes.

Comprovei novamente que eles estavam bem informados.

Isso mesmo. Eu tive essa sorte.

Por que dizes isso?

Seus pensamentos são profundos. Não faz mal ouvir. E seus atos...

Nakebos acenou com a mão e parou a conversa.

Atos? - perguntou ele. - Tu queres dizer aquele de Caná?

Eu balancei a cabeça, confirmando, enquanto tomava um segundo legmi.

Conheço alguém que é muito interessado nesse homem dos milagres...

Belsa sorriu novamente. Dessa vez, notei certo ar de zombaria em seu rosto.

Então era verdade - prosseguiu o nabateu. - Esse carpinteiro é capaz de transformar água em vinho doce...

Como Nakebos sabia sobre o vinho doce? Esqueci-me da pergunta. Todos sabiam...

Conta-nos sobre esse iluminado.

Eu me contive. Tinha que demonstrar frieza.

Não sei... Não tem nada a ver com o Anunciador.

Isso é verdade - destacou o do sol na testa. - Esse Jesus é mais inteligente...

E pensei: como Belsa sabia que o Mestre era mais inteligente que Yehohanan?

Isso o faz mais perigoso - interveio o terceiro, Nakebos. - O que achas?

Não soube o que dizer.

E o administrador voltou ao assunto de Caná.

Qual foi o truque? Tu estavas ali. Como ele fez? Como ele transformou a água em vinho? Meu senhor fica fascinado com os prodígios e estaria disposto a...

Nakebos compreendeu que estava falando muito e tratou de conter-se, mas a legmi era uma bebida traiçoeira...

Ao seu senhor - zombou Belsa - e à sua senhora... Sobretudo à sua senhora...

Supus que se referissem ao tetrarca e a Herodíade. E aproveitei a oportunidade:

Antipas está interessado no prodígio de Caná?

Nakebos deixou de dissimular. Eu era como alguém da família. E disse.

Sim, meu senhor sente uma fraqueza pela magia... E pelos bons magos.

E ainda mais a sua senhora...!

O comentário de Belsa me fez suspeitar. Ele parecia conhecer bem Herodíade...

E o persa, consciente do erro que cometera, tratou de retificar o lapso:

Bem, é isso o que eles dizem...

Tarde demais. As suspeitas começavam a se tornar verossímeis. Belsa não era trigo limpo. Quem era ele, na realidade? Um confidente? Para quem ele trabalhava? Para Antipas? Ou quem sabe para os kittim Foi ele que informou aos gauleses e permitiu a captura de Yehohanan?

Porém, o legmi começou a nublar a minha mente.

Em resumo - interveio de novo o administrador do Cobre -, qual é a tua opinião sobre esse construtor de barcas de Nahum?

Preciso ouvi-lo e vê-lo antes. Preciso de tempo - menti. - Penso unir-me a Ele enquanto seja possível. Essa é a minha intenção. Dirigia-me ao yam, eu ia a seu encontro, quando parei em Damiya e quis cumpri­mentá-lo.

Os deuses têm tudo previsto - sentenciou Nakebos. - O que dizes interessa a todos nós...

Não compreendo...

O nabateu trocou mais um olhar de cumplicidade com o persa. E este assentiu com um ligeiro movimento de cabeça.

O que eles tramavam?

Nakebos foi diretamente ao que lhes interessava:

Tu queres trabalhar para nós?

Continuo sem compreender...

Belsa interveio e esclareceu o que eu pedia:

Ambos informamos aos nossos senhores...

Ele me olhou intensamente. Achei que entendia. E ele prosseguiu decidido:

Tu farás um grande favor se, de vez em quando, nos informar sobre as atividades e sobre os pensamentos desse iluminado...

O Jesus de Nazaré?

Isso mesmo. Só tens que segui-lo. Depois nós faremos chegar essa informação aos nossos respectivos senhores...

Estava claro. Nakebos era um homem de confiança de Antipas. E quanto a Belsa, ele trabalhava para Roma? O persa havia falado de "se­nhores", no plural...

Duvidei, e foi o melhor que eu pude fazer.

Nakebos se adiantou e tratou de tranquilizar-me:

Não é preciso que decidas agora... Pensa... Nós acreditamos que possa ser conveniente para ti... O pagamento é bom...

E acrescentou algo que me pareceu interessante:

Além disso, eu poderia conseguir para ti uma audiência com meu senhor...

Prometi pensar. A proposta me pareceu atraente. Conversar com o tetrarca podia esclarecer dúvidas. Eu devia meditar sobre a "oferta"...

Certamente, não era minha intenção trair o Filho do Homem, nada disso. Era uma questão de "equilíbrio"... O contato com Antipas podia proporcionar informação extra e, quem sabe, acesso ao Batista... Quando fosse necessário.

Nakebos aceitou.

Esperaria o regresso deste explorador. Eu o faria saber...

Foi então que decidi jogar o jogo. Por isso eu estava ali.

Gostaria de falar com o vidente...

Nakebos parecia estar esperando por esse pedido. E comentou:

É muito tarde...

Insisti.

Não podes falar com ele, mas eu permitirei, sim, que o vejas.

E acrescentou feliz:

Assim conhecerás meus domínios...

Fiquei satisfeito. Era isso o que eu necessitava. Estava apenas tentan­do confirmar a presença do Batista no Cobre.

E o administrador nos chamou, e nos colocamos a caminhar.

Vamos, antes que o sol fique mais forte...

Deveriam ser seis da manhã, aproximadamente.

Foi imediato. Bastou pisar no pátio e três "amarelos" e três "abutres" nos rodearam, protegendo-nos com espadas e lanças. E iniciamos uma visita difícil de esquecer...

Dirigimo-nos até as casinhas dos reclusos, na muralha oriental. Mas, ao passar perto dos crucificados, não pude resistir à tentação e perguntei. O que havia acontecido para merecerem um castigo tão cruel?

Nakebos sorriu, desdenhosamente, e pontuou:

Não cumpriram a martelagem...

Não entendi.

Entenderás em instantes - sorriu o nabateu com malícia. - Enten­derás já...

Belsa interveio e arredondou a informação:

São lixo.

E apontou para dois dos infelizes, acrescentando:

Eles violaram seus próprios filhos.

A lei judia era muito rigorosa com esse tipo de delito. Segundo o Deuteronômio (22,29) e o Levítico (18,29), os acusados de violação de­viam ser severamente castigados. A pena de morte era por abrasamento.[66]

Saímos dali.

Dois dos crucificados estavam mortos. Não demorariam em retirá-los e arremessá-los aos fornos.

Um dos cachorros que morava na prisão (contei mais de dez) se aproximou de Nakebos e se deixou acariciar pelo administrador. Depois, caminhou até o violador que continuava vivo e começou a lamber o san­gue que gotejava pelo rosto. E ali ele permaneceu um tempo. Foi, segura­mente, o único "consolo" do condenado...

Nakebos foi espiar uma das casinhas dos prisioneiros e deu meia-volta, visivelmente alterado. Limitei-me a dar uma olhada e compreendi o motivo das náuseas do nabateu. As casinholas eram um ninho de insetos, enormes como grão-de-bico. Corriam pelas paredes e pelas pernas dos beliches com in­teira liberdade. Alguns dos presos, enfermos, tremiam em seus catres. Procurei não chegar perto. Eles se coçavam sem parar, assediados pelos piolhos e, pro­vavelmente, pelas pulgas. O fedor era insuportável. Alguém fez suas necessi­dades e se mantinha em cima delas, porém ninguém parecia se importar com isso. E imaginei que as epidemias fossem tão mortais quanto o trabalho na fundição. As pulgas são transmissoras de uma perigosíssima peste bubônica, e os piolhos do corpo podem provocar tifo. A isto teria que se acrescentar a ma­lária, endêmica na região do Jordão, e outras febres não menos destruidoras.

O administrador se afastou, apressado, das casinholas e me convidou a observar o coração da yesuqah, a fundição. E iniciou suas explicações. Nakebos estava orgulhoso. Ali chegava cobre de toda a região, principal­mente do mar Vermelho. Tratava-se de minas muito antigas, já exploradas nos tempos de Salomão (1000 anos a.C.), e cantadas, inclusive, nas Sagradas Escrituras: "Cujas pedras são ferro e de cujas colinas poderás extrair o cobre" (Deuteronômio 8, 9). Também entrava mineral de Asiongeber, próximo de Elat (o que o grande arqueólogo Nelson Glueck qualificou como a "Pittsburgh da antiga Palestina"), das regiões de Jirbat, ao norte de Edom, de Dana, no watii Faynan, e de Timná (as autênticas minas do rei Salomão, exploradas desde o quarto milênio antes da nossa era). O administrador tomou nas mãos algumas das pedras azuis e pediu que as tocasse.

- Trazem sorte - manifestou. - Aquele que as possui tem sonhos azuis...

O cobre chegava também em lingotes, previamente preparados em condições como a de Ezion-geber ou Asiongeber, já mencionada. Tanto em um como em outro caso, a matéria-prima era fundida nos fornos que eu via e era transformada em todo tipo de armas, ferramentas, adornos ou utensílios de cozinha.

Os fornos haviam sido cavados na terra, com as paredes interiores recobertas de tijolo refratário e argila. Os enormes nichos se enchiam com carvão e com as pedras azuis ou com os lingotes. O cobre então se misturava com óxido de ferro ou com manganês. Acendia-se o fogo e se avivava o carvão mediante os grandes foles e os tiros praticados no muro. A corrente de ar elevava a temperatura acima dos 1.200°C, e o óxido reduzia a viscosidade do líquido fundido. Em algumas ocasiões, acrescentavam o estanho (a 4 por cento), conseguindo assim o bronze, um material mais duro e resistente. O processo de fundição se prolongava entre cinco e sete horas. Depois, graças ao uso de conchas metálicas de longas hastes, o cobre fundido era transportado para moldes de pedra ou de cera e ali experi­mentava uma segunda fase de transformação. Antes de encher os moldes, o cobre ou o bronze eram filtrados para separar as substâncias aderidas fundamentalmente o enxofre). Concluída a manobra, os presos faziam uma abertura lateral nos crisóis (alguns com até cinco metros cúbicos de capacidade) e esvaziavam a escória restante.

Nesse momento, entre a fumaça, o fogo, o resfolegar dos foles, o calor sufocante e os olhares atravessados dos presos, vimos aparecer um grupo de "abutres". Carregavam o cadáver de um dos crucificados. E, sem mais nem menos, atiraram-no dentro de um dos fornos. O odor da carne quei­mada se misturou com o do enxofre. E o corpo se desintegrou entre o borbulhar do cobre fundido.

Ninguém fez nenhum comentário. Todos seguiram com seus labores.

Tentei me aproximar dos fornos, mas Nakebos me impediu. Tinha razão. A temperatura era tão alta que qualquer roupa terminaria por incendiar-se. Então compreendi por que os presos trabalhavam total­mente nus. Ainda assim, a permanência perto dos crisóis era sempre limitada. Os trabalhadores eram substituídos continuamente. Alguns tinham como missão lançar baldes de água sobre o corpo daqueles que remexiam o mineral fundido. Outros, de vez quando vertiam um estra­nho líquido nos fornos. Perguntei e o administrador explicou que esse era um dos segredos dos calibios, os mestres fundidores, os únicos que não cumpriam pena no Cobre. Eram peritos na fabricação de ferro, aço e bronze. Tratava-se, ao que parecia, de uma tribo de raça cita. Eram descendentes dos habitantes de Hattusas, a mítica capital do império hi- tita, destruída num incêndio no ano de 1200 a.C. O "segredo", segundo Nakebos, residia numa mistura de urina e o sangue de um verme des­conhecido que os próprios calibios procuravam no vale. Isso - diziam - proporcionava hitpa ao metal, enriquecendo-o.

Agradeci a saída da yesuqah. O espetáculo foi tão intenso como de­molidor. E compreendi as palavras de Belsa: "O Cobre é um lugar maldi­to". A pergunta era: Yehohanan seria usado para esses fins?

E Nakebos e o persa me conduziram aos pavilhões de transformação do cobre e do bronze. Eram as salas de martelagem, outro lugar infernal...

Eu acreditava ter visto de tudo naquela aventura, mas não.

Uma vez vertido nos moldes, o metal era refundido e, graças à técnica de martelagem, transformado em ferramentas para toalete, hastes metálicas para prender o cabelo, instrumental para a escrita, medicina ou o comércio, peças de todo tipo, selos, chaves, ferramen­tas, armas, colares, braceletes, fíbulas, lamparinas, bridas para as cava­larias, espelhos em forma de pêra, rodas de carroça, pontas de lanças, flechas e outros elementos que, sinceramente, não recordo. O negócio era redondo. O cobre, de fácil transporte, era vendido com facilidade, trazendo grandes lucros aos responsáveis pelo cárcere. Aquela prisão tinha deixado Antipas milionário e também a seus "sócios". Para que façamos uma idéia: somente os caldeus da Mesopotâmia consumiam ao ano em torno de dez mil talentos de prata em incenso (umas 260 toneladas). Isso significava um volume enorme de recipientes de cobre, de todos os tamanhos, fabricados na ilha.

A demanda era constante. Pois bem, uma das chaves do sucesso da fundição se achava, justamente, nos pavilhões de martelagem.

Nakebos se mostrou feliz. Ali, em três grandes salas, tudo funcionava minuciosamente e graças, de novo, aos mestres fundidores, os calibios...

Cada peça requeria uma martelagem concreta, com ritmo e com um número de batidas determinado. Os calibios a conheciam com perfeição.

O administrador foi explicando, entusiasmado.

O que fosse destinado para a cavalaria, por exemplo, exigia 258 mar­teladas. Nem uma a mais, nem uma a menos. Um machado, 210, se era considerado como ferramenta, e 260 se fosse uma arma. Os machados duplos, de guerra, demandavam 910 marteladas, em sequências de "três". Em sumo, toda uma arte, com uma complexidade muito grande de elaboração. Um trabalho que apresentava também uma face obscura e dramática... E eu explico.

Os presos que martelavam eram vigiados constantemente pelos calibios. Os mestres não perdiam nem um detalhe sequer. Contavam mentalmente as batidas. Cada calibio era capaz de fiscalizar cinco ou seis operários ao mesmo tempo. E aí surgia a parte trágica. Qualquer erro, seja na "entonação" da martelada, no número de batidas, ou nas sequências, era detectado no mesmo instante. O trabalho se interrompia e o preso era admoestado. Até aí, pareceu para mim, era uma atitude aceitável. O problema para o recluso começava a partir dessa advertência. Se ele voltasse a errar, era punido com uma redução na ração de comida. Se ele recebia uma fatia de pão e duas cebolas ao dia, o fornecimento caía pela metade. Se o operário cometia um terceiro erro, a questão se complicava. O cativo era transferido para um quarto que chamavam de bor ("cova") e lá era submetido a torturas e vexames. Segundo o administrador, a tortura mais temida e efetiva consistia em limar os dentes (especialmente os dentes incisivos centrais). Os carrascos, quase sempre os "abutres", talhavam os dentes no formato de um "V" invertido, deixando ao ar a polpa e os nervos. Isso produzia uma dor muito intensa e não só durante a limagem. O dente limado provocava um sofrimento de forma quase permanente. O atrito com o ar, com qualquer líquido (incluindo a saliva), ou com a comida, ex­citava os nervos, ocasionando uma dor infernal. A tortura havia sido "inventada" pelos egípcios.

Um quarto erro era fatal. O preso era conduzido ao pátio e crucifica­do de boca para baixo nos postes de madeira que eu acabava de ver.

Então compreendi a explicação de Nakebos: "Não cumpriram a martelagem..."

Prestei maior atenção aos presos e comprovei que, de fato, alguns de­les apresentavam os temidos talhados e as fraturas nos incisivos centrais e também nos laterais esquerdos. Eram homens aterrorizados. Eles sabiam o que o Destino lhes reservava se cometessem uma só falha. E os olhares e as mentes permaneciam fixos nas peças incandescentes. Nada os distraía.

O trabalho era de sol a sol...

Sim, ninguém saía vivo daquele inferno.

E eu me perguntei de novo: Yehohanan resistiria a um suplício seme­lhante? Não acreditei. O Batista, se ficasse no cárcere do Cobre, tinha os dias contados.

Com certeza, tínhamos percorrido praticamente todo o presídio e eu não havia tido a oportunidade de vê-lo. E imaginei que eles o mantivessem escondido.

Sim e não...

Ou será que Nakebos havia esquecido sua oferta? O administrador nunca esquecia... Isso eu iria aprendendo com o tempo.

E agora que caio em mim, eu estou esquecendo um dado que me pareceu importante. Segundo as explicações de Nakebos, recolhidas, por sua vez, dos cruéis mestres fundidores, as técnicas metalúrgicas que eles dominavam foram ensinadas a seus ancestrais por alguns seres "vindos do céu" e que os judeus conheciam como "anjos caídos". Essas criaturas, imortais, violaram as leis estabelecidas na Criação e se uniram com as fi­lhas dos homens. Isso aconteceu - segundo os calibios - uns 300 mil anos atrás. Pois bem, esses "anjos caídos ou rebeldes" foram os que ensinaram aos homens as artes e técnicas conhecidas: desde a agricultura à domes­ticação dos animais, passando pela maquiagem de homens e mulheres, a tecelagem e a confecção de roupas, a arte da pintura e, naturalmente, a metalurgia. Os calibios recordavam o nome do "anjo caído" que ensinou os segredos da fundição. Eles o chamavam de Iahel e o traduziam como "Deus respirando a si mesmo".

Seria apenas outra lenda? Quem sabe?

E terminei por agradecer que tivéssemos saído daquele lugar. A angús­tia dos que martelavam o cobre produzia mais barulho do que as maças...

Nakebos anunciou: "Só falta uma coisa..."

E nos encaminhamos na direção da torre de vigilância localizada a noroeste. Dali, eu supunha, após visitar os armazéns e depósitos, retornaríamos aos aposentos do administrador.

Comecei a ficar preocupado. Onde estava o Anunciador?

Porém, a incerteza acabou logo em seguida...

Ao chegarmos perto da referida torre, Nakebos, Belsa e a escolta viraram de repente à direita e entraram em um longo beco, localizado entre a muralha e os pavilhões que acabávamos de visitar.

Eu os segui, sem saber...

Então, ao descobrir, fiquei paralisado.

Nakebos percebeu a minha surpresa, sorriu com malícia e me esti­mulou para que eu o continuasse seguindo.

Eu o fiz, atônito...

E chegamos ao centro do beco.

Não era possível...

Os guardas armados se detiveram frente a um poço de pedra de um metro de altura. A um passo aparecia uma roda hidráulica de madeira de três metros de diâmetro, provida de um engenhoso mecanismo com que se extraia a água.

Um par de jumentos, cinzentos e aborrecidos, olhou-nos desde a muralha. Estavam presos por uma argola. Em princípio, eram eles os responsáveis pela extração da água. Os asnos estavam enganchados à roda e eram obrigados a caminhar em círculo, esvaziando assim os baldes da roda hidráulica em um longo e sujo bebedouro.

No mesmo instante, os tsahôv e os "abutres" ocuparam suas posições entre a grande roda e Nakebos. Belsa e este surpreso explorador permanecemos um pouco mais atrás. Belsa o inspecionou com curiosidade e exclamou:

- Ele fez por merecer... Por ser estúpido!

Não pude evitar. Experimentei uma intensa tristeza...

Agora, era Yehohanan que girava a roda...

Havia sido acorrentado às barras para empurrar o mecanismo. Cor­rentes nos punhos, nos pés e no pescoço.

Senti o sangue gelar.

Deus do céu!

O Batista tensionava a musculatura e empurrava com força a arma­ção de madeira. Dois "amarelos" o vigiavam permanentemente. Um car­regava um chicote na mão esquerda. Ambos se mantinham atentos aos movimentos do gigante.

Foi uma observação silenciosa, rompida apenas pelo rangido das madeiras e por um cantarolar que me era familiar.

Yehohanan, com o olhar fixo no chão, sussurrava uma de suas frases favoritas:

Tudo é mentira...

O vidente havia perdido uma das sandálias, e os tornozelos sangra­vam por causa do roçar com os grilhões. As moscas procuravam as feri­das. Logo seriam manchas negras sobre o sangue.

Comprovei que o Batista havia sido despojado do pouco que tinha. Achava-se totalmente nu. Nas costas e nos ombros, apareciam sinais do chicote. Imaginei que o gigante da "borboleta" no rosto era golpeado a cada vez que parava ou que titubeava.

Tudo é mentira...

Ao passar em frente ao grupo, ele não levantou a cabeça. Sabia que estávamos ali, mas não se dignou a olhar. Suponho que eu, meio oculto por trás dos guardas armados e de Nakebos, tampouco fui visto. Melhor assim. Não sei o que teria acontecido se o homem das pupilas vermelhas chegasse a me detectar...

Tudo é mentira...

Nakebos perguntou:

O que ele quer dizer? Por que ele repete essa frase?

Não soube explicar-lhe. Eu tampouco sabia do que se tratava.

Ele é um bastardo! - bradou o administrador. - Nem tem testículos!

Minutos depois, abandonávamos o beco. Eu não sentia muita simpa­tia por aquele desafortunado, mas o seu final me inquietou, e me deixei submergir na dor. Ninguém merece uma sorte assim...

E na nona hora (três da tarde), após prometer ao administrador e a Belsa que retornaria, e já com uma resposta para a sua proposta, distan­ciei-me da ilha. Já havia visto e sofrido o bastante...

Nessa sexta-feira, 14 de junho do ano 26 da nossa era, Tar e quem isto escreve dormimos na base de fornecimento dos "13 irmãos". Não tínhamos pressa, mas eu tinha toda a pressa do mundo... Ele me esperava. Eu sabia.

Como senti falta dele!

Haviam transcorrido dois meses e meio.

Que estranho e formidável magnetismo daquele Homem!

Por outro lado, quanta surpresa nos reserva a vida... Nunca ima­ginei que a captura de Yehohanan me afetaria tão profundamente. Nunca se sabe...

Nada disso foi escrito pelo evangelistas.

No dia seguinte, sábado, à nona hora (três da tarde), o fiel sais me deixou em frente ao casarão dos Zebedeu, em Saidan. Paguei o que foi combinado e desejamos boa sorte um ao outro. Isso foi tudo. E o vi distanciar-se com sua carruagem...

Sabia que voltaríamos a nos ver e que isso não demoraria. Porém, tratarei de ir passo a passo. Foi tanta coisa que me coube viver...

Jesus não se achava em casa. Era sábado. Seguindo o costume, o Galileu e seus discípulos haviam comparecido à sinagoga de Nahum. Ali estudavam a Lei.

Salomé e a família me receberam com lágrimas nos olhos. A boa mulher chegou a pensar que eu havia morrido. E durante um tempo tive que ouvir, resignado e em silêncio, as carinhosas críticas de Salomé e sobretudo das fi­lhas. Melhor dizendo, de Iyar (Abril). Nós nos olhamos várias vezes. Seu olhar era tão intenso que me transpassou. Fiquei desajeitado. Não compreendi.

A senhora da casa me colocou em dia com os fatos já ocorridos. Não tinha acontecido muita coisa - isso foi o que ela disse -, mas sim algumas...

E prestei atenção.

Abril se mexia inquieta. De vez em quando vinha dar uma espiada na sala de jantar (o que este explorador chamava de "a terceira casa"), comprovava que continuávamos conversando e desaparecia. E voltava mais uma vez. Não dizia nada. Só olhava. E o fazia como só uma mulher sabe fazê-lo. Com o tempo, aprendi que as mulheres se expressam melhor com o olhar do que com a palavra, é natural. Porém, isso aconteceu muito depois...

Este foi o relato de Salomé:

Em primeiro lugar, fora o Mestre quem me ajudara a chegar a Saidan na imarga jornada do incêndio na insula. Minhas recordações, como disse, eram confusas. E foram elas - Salomé e sua filha Abril - as que deram início a uma primeira cura de quem isto escreve. Elas me lavaram e me enfaixaram.

Jesus continuava trabalhando no estaleiro do velho Zebedeu. Nesse sentido, não havia mudado em nada. Comparecia a cada manhã e regres­sava com o cair da tarde. Após o jantar em comum, o Filho do Homem se dedicava a ensinar aos seis, e também a Tiago, seu irmão carnal. Às vezes aparecia Judas, o outro irmão, que morava em Migdal.

Salomé confessou que escutava às escondidas, mas não compreendia grandes coisas. Não tinha como conseguir entender esse Abba, esse Pai do céu de quem Jesus tanto falava. Não aceitava que fosse um Pai bondoso. Não era isso o que haviam lhe ensinado desde criança. E tampouco se enquadravam os ensinamentos sobre esse reino invi­sível e espiritual ao qual fazia alusão o Filho de Maria, que era sua parente distante.

Salomé se consolava ao ver o rosto dos discípulos. Também nada entendiam.

Certamente - intervim. - E como está Maria?

Salomé moveu a cabeça negativamente e esclareceu:

Pior que amanhã...

Era um ditado judeu.

Maria não se conforma. Ela quer ver o Filho no topo, porém Jesus permanece em silêncio. Desde o ocorrido com Ruth, só a visitou em duas ocasiões... É desesperador.

O ocorrido com Ruth?

E a mulher, à sua maneira, começou a explicar que a ruiva havia so­frido uma nova e grave crise. Um dia despertou meio paralisada e quase cega. Desde então não saía da "casa das flores".

Não fui capaz de reagir.

Paralisada e cega?

Insisti, mas ela não soube dar detalhes. Só a tinha visto uma vez.

É uma pena... Uma criatura tão bela e tão boa...

Senti como se tudo tivesse vindo abaixo. Apesar dos meus firmes propósitos, apesar de minha intenção de esquecê-la, ela continuava no mais profundo do meu coração. Eu a amava e a amarei sempre...

Tinha que vê-la. Tinha que saber o que havia acontecido. Tinha que interrogar Eliseu. Era sábado. Certamente eu o encontraria na "casa das flores", ou na insula de Si, a "Gata" de Nahum, o novo alojamento do enge­nheiro e de Kesil. Tinha tempo. Ela era o mais importante.

E comecei a imaginar um modo de como partir imediatamente.

Salomé continuou falando, mas eu não a escutava mais. Sei que Abril continuava observando, porém meus pensamentos estavam longe...

A senhora disse algo sobre outro problema. Algumas das esposas dos discípulos tinham ido até o casarão e tentaram interrogar o Mestre sobre aquela "loucura" de sair pelo mundo para pregar.

Francamente, não prestei muita atenção.

Eu seguia imerso em Ruth.

E, logo, os meus planos foram desmontados. Quando vou aprender?

Devia ser a décima hora (quatro da tarde).

Primeiro vi Tiago Zebedeu. Logo atrás apareceu João, seu irmão, e por último o Galileu...

Os Zebedeu me cumprimentaram com frieza e acabaram se retirando.

O Mestre permaneceu quieto, contemplando-me.

Não sei como explicar. Não há palavras.

A angústia desapareceu.

Ele estava ali, a dois passos de mim, recebendo-me com aquele olhar fque envolvia, que não escondia nada, que sabia de tudo...

Fiquei em pé e Salomé guardou silêncio.

Foram segundos muito intensos.

O Galileu vestia a túnica vermelha. Apresentava os cabelos mais longos do que o habitual, quase na metade das costas. Ele os trazia soltos e despenteados. Notei o rosto mais bronzeado, com a barba bem cuidada, mas com alguns pelos brancos recém-chegados.

Os olhos, cor de mel, se iluminaram.

E um sorriso, a princípio distante, foi amanhecendo naquele rosto belo e único.

Um "fogo" familiar me percorreu por dentro. O que havia acontecido com meus recentes pesares?

Desapareceram!

E Ele terminou de desenhar o sorriso e veio na direção deste explorador.

Não me mexi. Ele fez tudo. Abriu os braços e me acolheu, apertando-me.

Notei seu coração, poderoso e literalmente bom.

Eu também o abracei e deixei a alma naquele gesto. Ele soube, percebeu e me abraçou com mais força.

Senti que as lágrimas vinham, mas tratei de contê-las.

E todas as angústias foram descarregadas no Homem-Deus.

Agora eu sei. Um abraço do Filho do Homem é um renascimento. Eu nasci muitas vezes.

Finalmente, Jesus falou:

- Bem-vindo, malak!

E, sem deixar de sorrir, me convidou para deixar ali minha mochila de viagem, para que me instalasse e o acompanhasse. Tínhamos muito que conversar...

Disse que me aguardava na praia.

E se distanciou.

Então percebi um perfume familiar, de malva; a essência que eu as­sociava com o sentimento de amizade.

Duvidei.

Eu estava indo ao "pombal", meu antigo aposento?

Salomé me animou com outro sorriso.

- Você está em casa - acrescentou. - Você é da família. Ou já esqueceu?

E piscou o olho para mim. Tampouco compreendi. O gesto da mu­lher escondia outras intenções. Porém, como eu já disse mais de uma vez, sempre fui lerdo com as mulheres...

Subi ao "pombal", deixei a "vara de Moisés" e a bolsa e dei uma olhada no pequeno quarto. Tudo, de fato, continuava igual. Quer dizer, quase tudo...

Sobre a arca encontrei um pequeno jarro de argila e nele um lin­díssimo lírio azul, um iris versicolor. Pensei em Salomé. Era uma mu­lher sensível e delicada. Aquele detalhe era próprio dela. Tinha que lhe agradecer.

A segunda "novidade" era um pedacinho de cerâmica (que eles cha­mavam de óstraco), depositado sobre o travesseiro da cama. Alguém havia escrito algo na argila.

Eu o peguei com curiosidade e li: "Também existe o que não vemos".

Não compreendi.

O que era aquilo? Quem havia escrito? Por que o haviam colo­cado sobre a cama?

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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