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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAVALO DE TRÓIA (9–CANÀ) - P.3 / J. J. Benitez
CAVALO DE TRÓIA (9–CANÀ) - P.3 / J. J. Benitez

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAVALO DE TRÓIA 9

CANÀ

Terceira Parte

 

Não quis me enredar em mais enigmas. O Mestre me esperava. Isso é que era importante.

Deixei o óstraco onde eu o achara e me dirigi à praia.

O céu estava encoberto. Era possível que chovesse.

Procurei o Galileu. Eu o achei bem longe, caminhando pela orla do yam. Ele andava distraidamente, com as sandálias nas mãos. Brincava com as ondas, todas suaves e tímidas. O maarabit, o vento do oeste, já se despedia. As gaivotas o empurravam, gritando: Que absurdo!

A areia gemeu sob os pés. Foram gemidos brancos, negros e verme­lhos. No mesmo instante, recebi o inconfundível cheiro das peridinium, as algas que governavam o lago até o final de junho. A cor marrom das peridinium, como o seu perfume, preenchiam tudo.

Vislumbrei vários barcos. Os pescadores terminavam os prepa­rativos das redes e outros aparatos. Com o pôr do sol terminava o sábado e iniciariam os afazeres da pesca. A peridinium, como já men­cionei, formava grandes lençóis e atraía os cardumes de tilápias. A pesca estava garantida.

Alcancei o Mestre e, durante um curto espaço de tempo, permanecemos em silêncio, deixando que a água falasse. Certamente, em função do nervosismo, não tive a precaução de tirar as sandálias, e elas acabaram por ficar ensopadas...

O Galileu passou o braço direito sobre meus ombros (Ele sempre caminhava à esquerda de quem quer que fosse) e perguntou:

- O que vivenciaste desta vez?

A notícia do aprisionamento de Yehohanan já havia chegado ao yam. Jesus já conhecia a história, mas, ainda assim, me estendi ao co­mentar sobre o sequestro dos discípulos e sobre a captura do vidente por parte da guarda pretoriana de Antipas. O Mestre seguiu caminhando e escutando. Não interrompeu nem perguntou nada em nenhum momento. Para dizer a verdade, eu tive a sensação de que ele já sabia de tudo...

Não quis causar mais sofrimento e evitei falar sobre a questão do cárcere do Cobre.

Houve um momento em que eu o vi negar com a cabeça, como se não aprovasse. Foi na hora de contar sobre as injúrias de Batista.

Depois, continuou com o olhar fixo no horizonte.

O céu continuava negro e ameaçador.

Demos a volta e regressamos a Saidan.

Uma vez em frente à quinta pedra de amarração, em frente às escadas que conduziam ao casarão dos Zebedeu, o Mestre decidiu sentar-se sobre a borda de uma das barcas. Eu fiz o mesmo, ao seu lado. E por um instante fiquei contemplando o barco, que se chamava Zalapah ("Tempestade"). Era provável que quem a construíra fora o Filho do Homem.

E permanecemos em silêncio, contemplando a costa oeste do mar de Tiberíades.

Certamente chovia naquele lugar.

Não me enganei.

Pouco depois, vimos aparecer a magia do arco-íris. Foi um arco du­plo, mas não tão circular como o que avistávamos em Arbel, e, natural­mente, com as cores "em seu lugar"...

O arco primário se destacava com intensidade sobre o fundo escuro e nublado. Por acaso, contei as cores. Tudo parecia lindamente ordenado: o violeta em seu lugar (o mais intenso); depois os azuis, verdes e amarelos e, por último, os laranjas e os vermelhos. O arco secundário, mais acima, brilhava menos. Também inspecionei as cores. O vermelho se achava no interior e o violeta, onde correspondia, na borda exterior. Como se costu­ma dizer: tudo sábia e lindamente disposto...

E, entre ambos os arcos, uma região mais negra e opaca que o resto do céu. Chamam essa faixa escura de a zona escura de Alexandre.[1]

Na parte interna do arco primário se distinguiam algumas faixas ex­cedentes, desenhadas delicadamente em rosa e verde. Definitivamente, a beleza justa e correta... E pensei: "Que inteligência há no bom Deus!" Jesus me olhou, visivelmente satisfeito, mas não disse nada. Outra vez Ele o fizera. Outra vez havia entrado em minha mente. E acabei por fazer um comentário em voz alta:

Ninguém merece uma sorte assim...

Ele soube que eu estava me referindo a Yehohanan. Guardou silêncio durante alguns segundos e finalmente perguntou:

Sabes por que as formigas não olham para o céu?

O que é isso, uma adivinhação?

O Mestre sorriu, divertido.

Não exatamente...

E insistiu:

Sabes?

Nunca havia pensado nisso. Sinceramente, não tinha nem idéia. E foi isso que respondi.

Jesus replicou rápido:

Não olham para o céu porque não sabem que existe céu!

Compreendo...

O Galileu me olhou e sorriu, zombeteiro.

Tinha razão. Eu não compreendia. E reconheci o fato:

Bem, eu compreendo mais ou menos...

Jesus manteve o olhar e tive que me render:

Na verdade, eu não compreendo nada.

Assim está melhor - aceitou, sem deixar de ironia -, minha querida nemalâ...

Ele me chamou de formiga (nemalâ) e foi generoso...

Voltou a passar o braço sobre meus ombros e acrescentou com doçura:

Não se deve falar de boa ou má sorte. Tu não...

Desta vez entendi ainda menos, e Ele sabia.

Então Jesus apontou o arco-íris duplo e prosseguiu:

Se o bom Pai é capaz de imaginar semelhante beleza, não crês que saberá considerar, igualmente ou muito mais, a vida das criaturas humanas?

Tens razão. O Pai é extraordinariamente inteligente. É capaz disso e de muito mais, porém continuo sem entender. A vida é muito dura...

A vida é a vida, querido malak (mensageiro).

Fala comigo. Estou precisando.

Talvez não gostes...

Não importa. Dá-me a tua versão...

Minha versão?

Voltou a sorrir, surpreso.

Assenti, sem dizer palavra.

Está bem... Eu te darei a minha "versão", como dizes.

Voltou a ficar em silêncio. Desta vez fui eu quem se atreveu a entrar em seus pensamentos:

Acaba sendo difícil, não é mesmo?

-É...

Não te preocupes - disse, para incentivá-lo. - Vem mais perto. Com isso será suficiente. Aproxima-te da verdade...

Agradeceu ao final e tentou "traduzir" as palavras que, obviamente, não eram fáceis de "traduzir".

A vida não é o que parece...

E esclareceu na mesma hora:

A vida humana, naturalmente. A vida está pensada para que pareça outra coisa...

Espera - eu o interrompi. - Eu me perdi...

A vida não é somente o que se vê...

Tratei de ajudar em sua explicação.

Sei que existem coisas que não vemos...

Era isso que dizia o óstraco que acabara de descobrir sobre o traves­seiro da minha cama.

Agora eu falo da vida, não da realidade...

E completou sutilmente:

Esta, a vida humana, não é a realidade. Tu sabes disso. Algum dia, regressarás à realidade. Porém, não me distraias...

Não era a minha intenção. Ao contrário.

A vida humana está imaginada de forma que se acredite que é a única que existe. É outra genialidade do Pai.

Certo - ratifiquei. - A maioria dos humanos considera que a vida é a única coisa que se tem, a única coisa real...

E assim deve ser. Do contrário, a vida seria uma comédia.

Ah! E não é o que é?

É, meu amigo impaciente, porém não devia parecer...

Estou ouvindo...

Viver é uma oportunidade. Lembra-te? Também já falamos sobre isso...

Assenti com a cabeça.

Viver é a oportunidade de fazer e de sentir coisas que nunca mais voltarás a fazer ou sentir...

Olhou-me com curiosidade. E perguntou:

Estou indo bem?

Sorri, desconcertado.

Creio que sim, meu querido Homem-Deus. Tu és o Chefe...

Pois bem, então escuta o Chefe: viver é um presente. Que te foi dado para que experimentes...

Para experimentar a dor, a ignorância e o desespero...?

Para viver tudo isso e muitíssimo mais.

Prossegue, prossegue...

Viver é aproximar-se do tempo. Senti-lo. Degustá-lo. Ali, de onde tu vens e para onde regressarás, não há tempo. E aqui, na vida terrena, o lugar onde se pode experimentá-lo. Depois, quando voltares à realidade, viverás sem tempo. Não achas que é bom que fiques consciente dele?

Entendo. Para a maioria dos seres humanos, o tempo é somente algo que passa...

O Mestre prosseguiu:

E quanto à dor, à ignorância e ao desespero, agora tu não entendes, mas também são experiências únicas. Só na matéria, na imperfeição, é possível existir a tristeza, a impotência do doente e a amargura do que sofre e de quem vê sofrer... Amanhã, quando já não mais estivermos aqui, nada disso será possível. O reino de Abba, também falamos sobre ele, é um reino com outras leis: a perfeição invisível.

Experimentar... Essa é a questão...

Experimentar - resumiu o Galileu - para que ninguém precise te contar...

Viver para que ninguém me conte. Genial!

Vejo que começaste a compreender...

E o incentivei para continuar. Aquilo começava a fazer sentido.

... Viver é experimentar a limitação porque amanhã serás ilimitado.

"Viver é duvidar porque, em teu estado natural, não poderias te per­mitir a isso..."

"Viver é estar perdido, temporalmente. Depois acharás a ti mesmo, outra vez..."

"Viver é aceitar a morte; tu que, na verdade, jamais morreste nem voltarás a morrer..."

"Viver é divertir-se no aparentemente pequeno e insignificante. Amanhã não será assim. Amanhã, quando regressares à realidade, grandes coisas te esperam..."

Foi nesse momento que percebi um intenso aroma de tintal (terra molhada); o perfume que este explorador associava à esperança.

Não resisti e comentei.

Jesus de Nazaré revirou os olhos, inspirou profundamente e se limitou a dizer:

Hu nejat!

Isso significa o "Espírito que desce"...

E acrescentou, feliz:

O Espírito perfuma a vida. E sua essência. Um aroma agradável...

E repetiu:

Leréaj nijóaj! (Um aroma agradável.)

Não sei - comentei quase que para mim mesmo. - Tudo isso é belo. Tem sentido. Mas a dor, em compensação... Eu não quero viver para sofrer...

Eu te disse que não gostarias...

De viver para sofrer?

Não foi exatamente isso o que eu disse. Viver é muito mais. Sofrer é uma parte do todo...

O que se entende por viver?

Tu me surpreendes, querido mensageiro. Viver é tudo aquilo que sejas capaz de imaginar.

Eu esperava uma resposta mais concreta. Ele me viu duvidar. Esboçou um sorriso astuto e enumerou, sem interrupção:

Viver é despertar, regressar, chorar, sonhar, ver e não ver, querer e não poder, cair, levantar-se, saber e ignorar, despertar na obscuridade, ficar sem palavras, não partir, aborrecer-se, amar e deixar de amar, ser amado e deixar escapar, ver morrer e saber que vai morrer, trabalhar sem saber por que nem para quê, entregar-se, acariciar a criança, não esperar nada em troca, sorrir ante a adversidade, deixar que a beleza lhe abrace, ouvir e voltar a ouvir, contradizer-se, esperar como se fosse a primeira vez, envolver-se no que não quer, desejar acima de tudo, confiar, rebelar-se contra todos e contra si mesmo, deixar fazer, e sobretudo, olhar o céu...

E tudo isso para que ninguém te conte depois que morrer...

Algo assim, querido malak...

A vida não consiste em ser bom ou mau?

O Mestre riu com vontade.

Como é que te ocorres esse tipo de coisa? A bondade e a maldade formam parte da vida, mas esse não é o objetivo. Viver, como eu te disse, é muito, muitíssimo mais... O Pai tem tudo ordenado.

E apontou para o arco-íris duplo.

Ainda que não compreendamos.

Olhou-me intensamente e perguntou:

Entendes agora? A vida tem sido desenhada de forma que pareça outra coisa...

E me veio à mente a teoria de Aristóteles. O grande sábio (300 a.C.) propôs a ideia de que o arco-íris, ao contrário do que a maioria pensava, não era um objeto material (numa posição definida no céu), mas um con­junto de direções luminosas...[2]

Eu me rendi. O Filho do Homem nunca mentia. Assim é porque as­sim o digo. A vida é muito mais do que dizem e tem sido estruturada de maneira que não conheçamos sua verdadeira intencionalidade. E a única forma de vivê-la com intensidade e sem armadilhas. Não, não é possível criar armadilhas com a vida...

Porém - eu me lamentei -, por que tudo isso não é conhecido?

E para isso que vieste: para descobrires que o céu existe, querida nemalâ...

Lentamente, o arco secundário desapareceu.

Foi mágico.

Foi como se a natureza (?) quisesse sublinhar as palavras do Mestre...

Permaneceu somente o arco-íris primário, extremamente brilhante, mm um lado escuro e outro iluminado.

A vida e suas duas caras... Foi um sinal...

Mensagem recebida.

E o Filho do Homem murmurou:

Eleva teu coração, querido malak!... Tudo está disposto e orde­nado para o bem, ainda que agora não saibas olhar o céu... Confia. Eu te ajudarei. Para isso estou aqui. Tu farás chegar as minhas palavras ao teu mundo e muito mais: há gente que vive sem saber que vive...

E o arco-íris extinguiu-se.

A caminho do casarão, o Galileu me fez recordar algo. Eu havia esquecido...

Eu tenho algo para ti...

A que ele se referia?

Porém, o Mestre subiu apressadamente as escadas e se perdeu no casarão. Não me deu nem uma pista sequer...

Nesse momento caí em mim e me dei conta: não lhe falei sobre Ruth. Como pude ser tão desajeitado?

 

                   De 10 de junho a 31 de dezembro

O domingo, 16 de junho (ano 26), foi outro dia especialmente doloroso. Faltou muito pouco para que eu desistisse. Faltou pouco para que eu recitasse a chantagem de Eliseu, começasse a procurar o cilindro de aço, com as amostras, e regressasse ao meu tempo (1973).

Mas devo continuar de forma ordenada.

Naquela manhã, eu me apressei para visitar o estaleiro. Viajei desde Saidan com o Galileu, mas não perguntei. Não me atrevi. Ele sabia que eu estava apaixonado por sua irmã Ruth, mas fui incapaz de demonstrar interesse pelo estado da ruiva. Pura timidez...

Yu e o restante das pessoas se alegraram ao me ver. Não posso dizer o mesmo de Eliseu. Pareceu surpreso, mas isso foi tudo. E supus que o Engenheiro também me dava por morto.

Você o encontrou?

Foi essa a sua única pergunta.

Pensei que ele estivesse obcecado com o maldito cilindro. Estava errado. Era mais do que uma obsessão...

Nem sequer me incomodei em procurar.

Era a pura verdade.

O tempo está se esgotando...

Ele me olhou com frieza e acrescentou algo que, naquele momento, não consegui compreender:

Apresse-se. Pode ser que eu vá sem você...

Não quis entrar nessa dinâmica e fui direto para o que importava: Ruth.

Eliseu compreendeu, sim. Eu continuava apaixonado por aquela ga­rota. E ele aceitou falar sobre o ocorrido. Mas não era muito o que ele podia contar.

Aconteceu na semana da minha partida. Fiz alguns cálculos. A crise ocorreu em 21 de abril, quando este explorador se encontrava no vau das Colunas, à espera de Yehohanan.

Naquele dia, ela amanheceu inconsciente... Fui até a "casa das flores" e não soube o que fazer. Ruth parecia estar morta... Todo mundo gritava, todos corriam, mas ninguém sabia o que realmente estava acontecendo.

Fiz todas as perguntas que me ocorreram. Eliseu foi respondendo mecanicamente. Tive a impressão de que Ruth não lhe interessava. Mas eu não estou certo disso.

Por suas respostas, deduzi que a ruiva caiu em coma. Assim ela foi descoberta na manhã de 21 de abril.

Assim ela permaneceu por cinco dias...

Cinco dias sem consciência?

Eliseu assentiu.

Pouco depois chegou seu irmão... Mas tampouco soube o que fazer. Permaneceu ao seu lado, como o resto da família.

Jesus disse algo?

Nada que eu me lembre.

Ruth finalmente despertou, mas não era a mesma. Segundo Eliseu, ela estava com parte do corpo paralisado. Não podia caminhar, tampouco falar. Balbuciava, mas ninguém a entendia. Enxergava com dificuldade...

Eles recorreram aos médicos e aos curandeiros. Chamaram inclu­sive Meir, o rofé de Caná. Não serviu de nada.

E Eliseu resumiu:

Ela parece um vegetal...

Comecei a suspeitar do acontecido. Teríamos visto algo nos exames anteriores, quando a submetemos à "inspeção" dos "nemos". Mas eu não estava certo. Tinha que vê-la...

Nessa mesma manhã, obedecendo às minhas ordens (coisa que eu estranhei), Eliseu me acompanhou até a "casa das flores".

E fazia a terceira hora (nove da manhã) quando nos apresentamos no pátio. Meu coração acelerou ao vê-la.

Eliseu caminhou decidido até a romãzeira que dominava o lugar. Eu o fiz devagar, mais morto do que vivo...

O que vi, tal como eu supunha, me gelou a alma.

Deus!

Ruth estava ao pé da árvore, reclinada em uma velha cadeira de ba­lanço. Vestia a túnica azul de que eu tanto gostava...

Maria, a mãe, se achava aos seus pés.

Ao ver-me, a Senhora se levantou e correu ao meu encontro. E, com lágrimas nos olhos, implorou:

- Tu és médico... Podes curar a minha menina?

Eu a abracei, e assim permanecemos alguns segundos. A mulher se desfez em prantos. E eu, comovido, me perguntei: O que deveria fazer?

Não sei como, eu me aproximei da jovem. Deus bendito! Ela tinha somente 17 anos...

O que eu vi, como já disse, me derrubou.

Ruth havia sofrido um acidente cerebrovascular (não sei de que tipo[3] e se encontrava semi-paralisada. A metade direita do corpo não obedecia. Isso queria dizer que a região danificada no cérebro era a esquerda. Parte do rosto estava rígido. Provavelmente haviam sido afetados a língua, o paladar, as cordas vocais, os lábios e alguns músculos envolvidos no sistema respiratório. Um fio de saliva escapava pelo canto direito dos lábios. A boca entreaberta fazia esforços para articular palavras, mas somente conseguia emitir sons ininteligíveis. Ruth padecia de disartria (sons confusos e desarticulados), provavelmente originada pelo infarto cerebral.

A Senhora, atenciosa, procurava secar o fio de saliva e tentava animar Ruth com palavras carinhosas. E repetia sem cessar: "Ele o fará... Ele o fará..."

Nesses difíceis momentos, não consegui compreender. A quem ela se referia? Quem o faria?

O braço e a perna direita também estavam enfraquecidos. Em certas ocasiões eles se agitavam, mas os espasmos eram breves.

Os olhos verdes continuavam belíssimos. Agora voavam sem cessar, aterrorizados, como se buscassem explicação para aquilo que estava acon­tecendo. O olho direito parecia semi-fechado; os olhos eram o que havia de mais vivo naquela preciosa criatura.

Como eu a amava!

Ruth estava envelhecida e muito magra. O infarto a transformara quase em uma anciã.

De vez em quando ela levantava a mão esquerda, a única com mobi­lidade, e tentava transmitir algo. Porém, os movimentos eram lerdos e a Senhora não conseguia decifrá-los. E todos se desesperavam.

Por fim, ela desistia. Fechava os olhos e deixava cair a cabeça sobre o espaldar da cadeira de balanço. E o sono vinha em seu auxílio. Era o único que a compreendia...

Eu a olhei várias vezes diretamente nos olhos. Ela me reconheceu e soube que eu a continuava amando.

Esta, a mulher de Tiago, se apresentou em várias ocasiões e tentou dar-lhe água. Não conseguiu. A boca e a língua não respondiam, e o líqui­do acabava se derramando.

Eliseu não disse uma só palavra. Estava pálido.

Aproximei-me da jovem e tentei detectar alguma anomalia respira­tória ou cardíaca. Se eu tivesse à disposição um estetoscópio, tudo teria sido mais simples, mas isso era inviável.

O fluxo nas artérias do pescoço, nas carótidas, era normal. A obs­trução não havia se produzido nessa região. O pulso e a respiração eram erráticos. Ao examiná-la mais de perto, foi então que percebi o forte odor de urina. Ruth padecia de incontinência, ainda que não soubesse se nesse momento ela sofreria também de alteração dos esfíncteres.

Ruth, então, abriu os olhos e soube que eu sabia. Voltou a fechá-los e uma lágrima foi a sua única resposta...

Ao concluir a sondagem, a Senhora veio ao meu encontro de novo e exclamou:

- Fala com meu filho! Por favor! Fala com Ele! Eu sei que Ele pode curá-la!

Senti-me preso numa armadilha. Eu a amava e a mãe havia me re­pudiado. Ruth elegeu Eliseu... Por que tudo aquilo acontecia comigo? Por que ela solicitava a minha ajuda?

Não importava. Eu faria o que fosse necessário. Ela era o mais importante.

Disse que sim, que falaria com o Mestre. E a Senhora voltou a abra­çar-me. Acariciei os seus negros e belos cabelos e tentei consolá-la. Foi então que me chegaram aquelas imagens... Eu fiquei perplexo.

Deus do céu!

Como eu não havia me dado conta?

E um fio de luz elevou o meu ânimo.

Tratei de refletir. Não havia dúvida...

Conheci Ruth no ano 30, ou seja, no futuro. Eu a vi em Nazaré. Falei com ela. Era uma mulher saudável, sem sinal algum de incapacidade. Como podia ser?

Só achei uma explicação. Não sei como, mas Ruth se curou antes desse ano 30 de nossa era. Nós nos encontrávamos agora no ano 26. O que foi que aconteceu? Foi curada por seu Irmão? Os infartos cerebrais podem ser mortais, a curto e médio prazo, ou incapacitantes, em diferentes graus. Ruth conseguira recuperar-se por conta própria? Para mim, parecia difícil, ainda que não impossível. Teria que deixar que os acontecimentos se desenrolassem. Teria que haver uma explicação...

Naturalmente, guardei silêncio. Eu era somente um observador.

E uma imensa alegria se instalou no meu interior. Ruth não perma­neceria para sempre naquele estado.

E tomei uma decisão: eu lhe administraria de novo os "nemos frios". Precisava averiguar o ocorrido (agora mais do que nunca). Havia passado muito tempo (mais de dois meses) e talvez os "nemos" não conseguissem detectar nada, mas eu deveria tentar.

Eliseu, que não soube da minha "descoberta" (o engenheiro não viu Ruth no ano 30), aceitou. E preparou tudo novamente.

A operação foi praticamente uma cópia da anterior.

Subimos ao Ravid, programei as sondas biológicas, as demos de beber para Ruth, com notáveis dificuldades, sem dúvida, e retornamos ao "porta-aviões". Marcava as quatro da tarde (décima hora) de segunda-feira, 17, e “Papai Noel" nos ofereceu os resultados. Dos "bucoles", por certo, nem rastro.

Em síntese, os "nemos frios" detectaram o seguinte:

A hemiplegia foi produzida pela temida oclusão arterial já anunciada na revisão anterior. Não havia sinais de hemorragia cerebral, mas sim o rastro catastrófico de um coágulo (já desaparecido) que tapou a artéria cerebral anterior. O infarto (ictus) não se registrou na artéria cerebral pos­terior, como apontaram os "nemos". O erro foi de menos, o trágico é que o tapamento ocorreu e, com ele, a tragédia já relatada.

Os danos no núcleo do infarto[4], assim como na região de "penumbra", tinham sido devastadores. Foram afetadas áreas dos lobos frontal e parie­tal, assim como porções do corpo caloso, do núcleo caudado e da cápsula interna. Tudo isso foi que precipitou a referida hemiplegia ou paralisação de uma parte do corpo, a incontinência urinária e os transtornos na visão, na fala e nas emoções (confusão, apatia etc.). Também os gânglios basais e o tálamo foram comprometidos.

O prognóstico era grave...

Dado o tempo transcorrido desde o ictus (uns dois meses, aproxima­damente), os "nemos" não puderam detectar a fonte que provocou a apa­rição da trombose ou coágulo sanguíneo. Ele se formou em uma artéria, sobre uma placa? Vinha do coração? Como digo, não soubemos, ainda que a essa altura não era demasiadamente importante.

Os "frios" constataram igualmente um excesso de "NOS" (óxido ní­trico sintetase), a enzima que sintetiza o óxido nítrico (a partir da arginina) e que regula a pressão sanguínea.[5] Também se pôde observar um notável aumento de glutamato (neurotransmissor ativador) na região da "penumbra", provocada pelo infarto.[6]

Em outras palavras: o acidente cerebrovascular tinha danificado gra­vemente o cérebro de Ruth, deixando-a hemiplégica, com sequelas na fala e na compreensão, com dificuldades na visão e uma série de transtornos psíquicos (raciocínio abstrato, senso de juízo prejudicado, problemas no processamento de informação e na compreensão etc.) que convinha ava­liar. Prognóstico: "muito feio".

Dificuldades com a visão?

Creio que fui conciso...

O infarto cerebral tinha causado danos irreparáveis em amplas regiões neuronais e também no núcleo lateral geniculado, afetando a VI (o córtex visual primário).[7]

Repassei os dados, em estado de alerta, e comprovei que não existia erro. Os "nemos" dificilmente erravam...

Ruth estava ficando cega de maneira progressiva. A lesão na cha­mada zona VI era letal. A garota terminaria numa cegueira total e em questão de pouco tempo... No momento, estavam afetadas a cor, a forma e o movimento. Segundo os "frios", as lesões na zona V4 haviam provocado uma acromatopsia. Em palavras mais simples, a ruiva havia perdido a capacidade de ver em cores. O mundo agora era cinza. O mais triste é que seu cérebro não conservava a memória da cor. Ruth era incapaz de memorizar as cores. O mundo, simplesmente, deu uma virada ante seus olhos...

De outro lado, as lesões provocadas no cérebro (concretamente na região V5) terminaram conduzindo-a a uma acinetopsia. Ruth deixava de ver os objetos ou as pessoas que se moviam. Enquanto este explorador, por exemplo, permanecia diante dela imóvel, a mulher me distinguia (na cor cinza, mas me via). Agora, se eu me mexesse, desaparecia da sua vista. Tratava-se, em suma, de um acréscimo ao seu suplício.

Ruth estaria consciente do que estava acontecendo com ela? Não soube o que pensar. Provavelmente sim, ainda que as funções mentais parecessem lentas.

Eliseu esperou pacientemente. Não mostrou inquietude enquanto “Papai Noel" processava a informação. Parecia resignado...

Ouviu os resultados sem mover um músculo. Foi nesse momento que eu intuí: ele não estava apaixonado pela ruiva. Quem sabe ele nunca estivera.

Da minha parte, tive especial cuidado em não revelar o que sabia. Não achei que fosse oportuno que ele soubesse que Ruth terminaria cura­da. Pobre tonto! O Destino já tinha tudo calculado... Agora me arrependo. Fui egoísta, eu sei. Cheguei a pensar que, dessa forma, se meu companheiro renunciasse à garota, eu poderia ter mais chances. Quem em sã consciência se comprometeria com uma pessoa com impedimentos de saúde, quase paralítica e condenada à cegueira?

Mas o Destino, como eu disse, tinha outros planos...

Na mesma tarde de segunda-feira, dia 17 de junho, regressamos a Nahum.

Não houve comentários à família. Não era o correto.

Ruth havia sofrido danos graves e irreparáveis no cérebro. Seu mal não tinha cura, pelo menos naquele tempo. Era um processo irreversível que sem dúvida terminaria com a morte ou com algo pior: uma invalidez e cegueira que a desgastariam de forma quase total. E durante um tempo não pude afastar o pensamento: "como ela conseguiu se restabelecer"?

Paciência. Essa foi a chave daquela assombrosa aventura...

Eu administrei a ela uma dose de anticoagulante (heparina) se por acaso se registrasse um novo episódio isquêmico (que importavam já as normas do Cavalo de Tróia)[8] e deixei nas mãos de Eliseu uma medicação à base de benzodiazepina, puramente relaxante. Era o mínimo que se po­dia fazer por aquela criatura maravilhosa...

A Senhora, antes de retirar-me, insistiu:

- Fala com meu Filho... Ele pode curá-la... Ele pode!

Respondi que sim e saí da "casa das flores".

Meu coração estava confuso. Não conseguia apagar a imagem de Ruth, diminuída e aterrorizada, e ao mesmo tempo a esperança chamava constantemente à minha porta. Ela terminaria salvando-se. E pensava e pensava: "Como isso é possível?"

A lógica dizia que não, pois eu acabava de vê-la, convertida em um estado quase vegetativo. No entanto...

Quando cheguei ao casarão dos Zebedeu, em Saidan, todos dormiam.

Eu ardia de vontade de conversar com o Mestre, mas eu me resignei.

Como dizia o Filho do Homem, "Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã: porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Para cada dia bas­tam as suas próprias dificuldades".

E caí num profundo sono.

Esqueci.

Nessa noite de segunda-feira, dia 17, eu voltei a encontrar outra mensagem" sobre a almofada. Em um pedacinho de argila vermelha, alguém tinha escrito: "pega-me lentamente".

Dei voltas e voltas naquilo, sem compreender.

"Pega-me lentamente?"

E assim eu fui dormir com o óstraco entre os dedos. Alguém estava dizendo algo, mas este explorador não conseguia enxergar...

Na terça-feira, 18 de junho, tudo foi normal, mais ou menos (?).

Acompanhei o Mestre em uma viagem curta de barco, de Saidan ao estaleiro de Nahum, e decidi perguntar sobre Ruth. O Galileu foi categórico:

Não é uma enfermidade de morte...

A resposta me deixou atônito.

E Jesus mudou de assunto.

Eu não consenti e voltei à investida:

Como podes dizer uma coisa assim? Ruth está muito enferma...

Não é uma enfermidade de morte - insistiu, no mesmo instante que me olhava fixamente. - Tu sabes melhor do que ninguém...

Mas...

Deixa que o Pai faça seu trabalho. Não pretendas fazê-lo...

Mensagem recebida.

O Mestre sorriu e acrescentou:

Tudo está ordenado para a maior glória de Abba.

Compreendi.

Nunca mais voltei a tocar no tema de Ruth, pelo menos não na sua presença. Ele sabia e estava a par de tudo.

Jesus se dedicou ao seu trabalho no fosso, e quem isto escreve, pela primeira vez, não soube o que fazer. Não tinha idéia dos planos do Filho do Homem. E pensei na bolsa revestida que continha o pergaminho da Vitória". Ele havia levado ao pombal. Devia analisá-lo e devolvê-lo. Mas para quem? Pensei em Abner. Se o Galileu continuasse com sua rotina, no dia seguinte subiria ao Ravid e poria mãos à obra.

Sim e não...

Essa jornada eu a passei na "casa das flores".

Dediquei-me a estudar o caso da ruiva com mais calma e detalhamento.

A Senhora não deixava de chorar. E me perguntou umas mil vezes se eu tinha conseguido falar com seu Filho. Fiz a única coisa que podia fazer: pedi paciência.

Maria não prestou atenção aos meus conselhos. Na realidade não prestava atenção em nada nem em ninguém. Encontrava-se triste, deso­lada, afogada em seus pensamentos... A visão da garota era a sua única realidade.

Atendi Ruth da melhor forma que pude. Tomei suas mãos e lhe falei em silêncio, com o olhar. Ela respondeu à sua maneira, com lágrimas...

Notei como o frio a devorava.

Tinha problemas para beber. Engasgava-se com facilidade. Sugeri a Esta que acrescentasse algo que desse mais densidade à água. Isso a ajudaria.

Ela devia permanecer imóvel, para que continuasse me vendo.

Entrou gente na casa. A maioria, vizinhos. Todos se interessavam pelo estado da garota e todos traziam um presente. Geralmente comi­da. Ruth os olhava, mas, em alguns casos, parecia não reconhecer os rostos. Ruth estava padecendo também de prosopagnosia, um mal típico em tais circunstâncias.

Na última hora da tarde, com o trabalho terminado, o Mestre e seu irmão Tiago se apresentaram no pátio. Eu me retirei prudentemente. Jesus foi sentar-se aos pés da irmã e fez, mais ou menos, o que eu havia feito durante a parte da manhã: tomou as gélidas mãos de Ruth, as beijou do­cemente e assim permaneceu, em silêncio. De vez em quando a ajudava a beber ou a mudar de posição. Ou procurava animá-la com uma canção. Mas o consolo durou pouco. A Senhora, que tinha se mantido em seu quarto, acabou por se reunir com os filhos sob a romãzeira e voltou a so­licitar a Jesus "que fizesse algo em favor de sua irmã".

O Mestre não respondeu e continuou a acariciar a ruiva.

Senti-me incomodado. Pensei em abandonar a "casa das flores", po­rém algo me obrigou a permanecer atento...

Tu podes fazê-lo! - insistiu Maria, elevando o tom de voz. - Se desejares podes fazer isso!

O Mestre baixou os olhos e notei como ele empalidecia.

A Senhora tinha razão. Se o Galileu o desejasse, Ruth ficaria curada. Já o fizera com outras pessoas, que eu soubesse...

Mas o Mestre tinha outros planos, obviamente. E não cedeu aos la­mentos da mãe.

Tu podes fazê-lo! - soluçou a Senhora. - Olha como ela está! Só tem 17 anos!

Senti um nó na garganta. Se Maria conseguisse enternecer o coração do Galileu, quem sabe... Talvez se repetisse o prodígio que este explorador contemplou nas proximidades de Beit Ids, com o menino mestiço. Foram a ternura e a misericórdia de Jesus que realizaram a maravilha.

Tu podes!

E a Senhora caiu, desmaiada.

Esta acudiu em auxílio de sua sogra e Tiago também.

Jesus, com o rosto grave, se levantou, deu meia-volta e abandonou o pátio.

Eu fui atrás Dele, desconcertado.

Mas as surpresas não tinham terminado naquela terça-feira, 18 de junho do ano 26...

Regressamos ao casarão dos Zebedeu com o pôr do sol.

Jesus não abriu a boca durante a viagem, desde o porto de Nahum à quinta pedra de atar, na praia de Saidan. A tristeza o consumia. Imaginei seus pensamentos. Ruth era a irmã menor, muito querida. Ruth se encontrava impedida, quase morta. Ele poderia curá-la. Poderia, mas isso não era o que combinou consigo mesmo nas colinas de Beit Ids. Mais uma vez, não invejei sua situação...

Tiago, o irmão de sangue do Mestre, chegou ao casarão quando terminávamos o jantar. Não disse nada. Sentou-se no lugar habitual e se dispôs a receber os ensinamentos de seu Irmão e Mestre. Tiago era assim: frio e distante... Aparentemente.

E, pela primeira vez, o Galileu rogou à família dos Zebedeu que per­manecesse na "terceira casa". Tinha algo importante para comunicar...

Aquilo criou uma intensa expectativa. Todos nos olhamos, mas ninguém sabia...

E começou anunciando que não regressaria ao trabalho no estaleiro, pelo menos no momento.

Zebedeu pai foi o que ficou mais surpreso.

Outros assuntos, relacionados com o meu Pai do céu, estão me requisitando...

Os discípulos voltaram a trocar olhares e se interrogaram em silêncio. A que "assuntos" ele se referia? Como eu digo, ninguém sabia.

Estarei ausente por três dias...

Pedro se ofereceu para acompanhá-lo, e também João Zebedeu.

O Mestre pediu calma. Agradeceu o gesto, porém foi firme:

Ali onde vou não podeis me acompanhar...

Eles o olharam, perplexos. Para onde ele pensava ir?

Confiai em mim...

E, sem mais, passou para o segundo ponto.

Dirigiu-se a Tiago, seu irmão, e pediu que fosse falar com os respon­sáveis pela sinagoga de Nahum.

Gostaria de conduzir o serviço de sábado...

E acrescentou:

Tenho algo para comunicar...

Hesitou, mas terminou fechando a frase:

É algo importante.

Tiago assentiu com a cabeça e todos continuaram em silêncio.

Não consegui imaginar do que ele falava. Ir a um lugar ao qual não podíamos acompanhá-lo? Comunicar algo importante? Pensei em Yehohanan... Teria intenção de viajar até a prisão do Cobre? Pareceu-me arriscado.

Teria que esperar, uma vez mais. Aquele Homem era um mistério permanente.

E o Mestre passou ao terceiro e último assunto, o mais delicado, ao meu parecer.

No domingo, 23, os discípulos empreenderiam uma primeira viagem pelas margens do yam. Isso foi o que disse.

A satisfação foi geral.

Finalmente!

Porém, os discípulos não haviam entendido.

E lentamente, conforme Jesus falava, a alegria foi se esvaindo dos rostos.

Nesse primeiro contato com as pessoas, os discípulos iriam sozinhos. E sublinhou:

Não poderei vos acompanhar...

Sozinhos? Deveriam pregar sozinhos?

Os murmúrios se estenderam pela sala. Mas o Mestre não havia terminado:

É da vontade do Pai que sejam 12 os que me ajudem na difusão da boa-nova... Deveis selecionar os seis que faltam. Esse será o trabalho que deveis fazer nesta viagem pelo yam.

As perguntas se atropelaram umas nas outras. Todos queriam in­formações, detalhes... Jesus só respondeu a uma das questões: "seria uma ausência por duas semanas".

Comecei a fazer as contas. Os discípulos deveriam partir no domin­go, 23 de junho, e retornar no sábado, 6 de julho.

O Mestre solicitou calma e adiantou que daria os detalhes quan­do retornasse.

E prosseguiu com os ensinamentos, também sobre Abba e sobre o reino do invisível...

Não acredito equivocar-me se afirmo que foram poucos os que cap­taram o sentido daquela "aula". Todos, sem exceção, desapareceram em seus pensamentos. Uns pensamentos idênticos: "Pregariam, finalmente, a chegada do reino? Mas como fazê-lo sem o Filho do Homem? Como saber a quem selecionar?"

Tive a impressão de que sentiam medo. Estavam agoniados. Não sa­biam como agir nem por onde começar...

Sinceramente, eu fui o primeiro a ficar surpreso. Nada disso figura nos textos evangélicos...

E durante o ensinamento (nada novo para quem isto escreve) tratei de organizar as idéias. Que deveria fazer? Tentaria seguir o Galileu? Ele o permitiria? Havia sido bem claro:"... Ali onde vou não podeis me acompanhar..."

Optei por deixar o assunto nas mãos do Destino. Estava onde estava. Isso era tudo.

E depois de me despedir dos mais íntimos, quando já estava disposto a retirar-me, o Galileu me chamou e pediu que eu o acompanhasse. Subimos ao seu quarto. Eu esperei na porta. Ele se dirigiu à arca, pegou a bolsa azul profundo em que guardava o cálice de metal, presente de Ticra, e a pôs em minhas pecadoras mãos, ao mesmo tempo em que ordenava:

Guarda-o até que eu regresse...

Senti meu rosto ruborizar. Eu havia desejado, fervorosamente, examinar e acariciar a bela gavia ou taça de metal. Cheguei, inclusive, a entrar no seu quarto e a tive em minhas mãos... Ele o sabia. Ele havia lido a minha mente.

E pensei: "Terra, engula-me..."

Porém, o Mestre, maravilhosamente compassivo, sorriu com benevolência. Ele percebeu minha perturbação e tentou consolar-me:

Lembra-te: tudo está armado e...

Esperou a minha resposta.

Traguei a saliva e respondi com um fio de voz:

Sim, tudo está armado e bem armado...

Sorriu satisfeito e insistiu:

Guarda-o até que eu regresse. Para onde eu vou não podes acompanhar-me.

E deixou sair, com toda a intenção:

... E tu tampouco, por agora.

O sorriso foi se dissipando. Uma grande tristeza - eu o sabia - estava colocando raízes em seu coração...

Mensagem recebida.

Não devia acompanhá-lo. Mas para onde ele iria?

Ele desejou-me paz e desapareceu em seu quarto.

Eu regressei ao meu, me sentei na ponta da cama, peguei o belo cálice e o acariciei por um bom tempo. Estava frio, como a minha doce Ruth. E com toda a atenção o agasalhei entre as mãos, até que a gavia recuperou o mínimo de calor. Era o mínimo que poderia fazer por ela...

Foi então, quando eu me preparava para descansar, que reparei me­lhor naquela nova mensagem, escrita também em um pedaço de cerâ­mica. Repousava sobre o travesseiro, como os outros pedaços antes dele, delicadamente abandonados à sua sorte. Li, perplexo. Dizia: "Pega-me lentamente, com tuas palavras, com tua voz, com teus silêncios".

E pela minha mente cruzaram, rápidas, as imagens das mulheres da casa. Porém, quem era a autora daquelas mensagens secretas, tão belas? Ou não eram de uma mulher?

 

Na manhã seguinte, quarta-feira, 19, ao descer para tomar o café da manhã, comprovei que Jesus já não estava mais no casarão. Havia partido, tal como anunciara. Perguntei para Salomé. Não sabia de nada. Ninguém tinha informação.

E pensei: "Pode ser que ele esteja nas colinas..."

Desobediência? Deveria tentar encontrá-lo?

Não faria uma coisa dessas...

Tomei meu café da manhã e decidi que usaria aquele tempo para co­locar em dia os diários e as análises pendentes. Começaria por um estudo, a fundo, da gavia ou cálice de metal. Era o mais urgente. Também devia ocupar-me do "323", e de algo mais...

A oportunidade era única. Não apareceria outra tão perfeita...

Os céus pareciam ter planejado tudo... A meu favor.

E lá estava eu, meditando sobre as tais incumbências, quando ouvi vozes. Vinham do pátio traseiro.

Era muito cedo. Talvez seis da manhã...

Os homens haviam saído. Todos estavam em suas ocupações habituais.

Eu estranhei.

Quem dava aqueles gritos e por quê?

Fui espiar, cauteloso e intrigado.

No curral, além de um punhado de galinhas pretas madrugadoras, bicando sem parar, pude distinguir Salomé, a dona da casa, e também a sua filha Abril. Elas se encontravam junto à porta de madeira que dava acesso às escadarias e à praia. Com elas se achavam mais duas mulheres, desconhecidas para quem isto escreve. Eram jovens. Uma carregava um bebê entre os braços. A outra parecia acompanhada por dois meninos de pouca idade. Os pequenos seguiam as evoluções das galinhas e o faziam levando tudo muito a sério.

As mulheres falavam. Melhor, discutiam.

Salomé, irritada, era a que mais gritava. A princípio, não entendi o motivo da discussão.

E nisso, também alarmada pelas vozes, percebi a presença no pátio da esposa de Tiago Zebedeu. Chamava-se Maria. E com ela chegaram dois de seus quatro filhos. E a galileia se uniu à algazarra.

Finalmente apareceram as outras filhas de Salomé, e aquilo se con­verteu em um manicômio. Ninguém prestava atenção em ninguém. Todas gritavam. Todas se insultavam. Todas diziam ter razão. Todas gesticulavam e ameaçavam. Em um primeiro momento, as crianças, desconcertadas, não sabiam para onde olhar. Depois se esqueceram das pessoas adultas e decidiram pelas galinhas; e começaram a correr atrás delas, brincando.

A palavra mais repetida na discussão era shiga’on (loucura).

Eram as desconhecidas que falavam de "loucura" e as que se lamentavam.

E, durante um pequeno espaço de tempo, todas permaneceram em uma atitude hostil. Não me atrevi a mover-me e muito menos a intervir.

Depois de uma meia hora, as desconhecidas desapareceram, rumo à praia.

Pude ouvir alguns gritos e insultos vindo das escadarias.

"Voltaremos, estúpidas!"

E Salomé e as outras as chamaram de tudo.

Assim terminou a violenta cena.

Cada qual voltou aos seus afazeres e Salomé permaneceu no pátio. Estava vermelha de raiva. E se vingou nas galinhas. Ela o fez com uma vassoura, e as perseguiu durante um tempo, a vassouradas. As galinhas, claro, protestaram...

Quando a mulher se acalmou, fui até ela e perguntei. Quem eram aquelas pessoas? Por que discutiram?

Fiquei perplexo (mais desconcertado, inclusive, do que as galinhas).

A que carregava o bebê era Perpétua, a mulher de Simão Pedro. A outra era Zaku, que em hebreu significa "inocência". Era a esposa de Feli­pe, o discípulo. As crianças que Zaku trazia pela mão também eram filhos de Perpétua e Simão Pedro.

Segundo Salomé, pretendiam falar com o Mestre.

Com Jesus? Por quê?

Queriam esclarecer algumas coisas.

Salomé soltou uma expressão de enfado e acrescentou:

O que me incomodou foram as presunções, as pretensões. Chega­ram com exigências demais...

Não entendo...

Queriam falar com o Mestre para que explicasse a questão da via­gem pelo yam. É a segunda vez que tentam...

E chamaram a isso de "loucura"?

Isso foi o que elas disseram. Eu as fiz ver que o rabi não estava em casa e que tampouco sabíamos onde ele se encontrava.

"Não acreditaram em mim e me chamaram de mentirosa. Mentirosa, eu?"

Salomé voltou a enfurecer-se. Tratei de acalmá-la. Foi impossível. E começou a falar de novo de Zaku e Perpétua.

Esfomeadas! Não sabem quem é o Mestre nem merecem que os maridos sejam discípulos... Mortas de fome!

Elas se opõem à viagem pelo yam?

Dizem elas que eles estão loucos de amarrar... E se perguntam como sobreviverão... Quem vai se ocupar de trazer dinheiro enquanto estão fora...

Compreendi. No fundo se tratava de um problema puramente eco­nômico. As mulheres, logicamente, estavam assustadas. Tinham filhos. Quem levaria dinheiro para casa? Obviamente não entendiam...

A intervenção de Maria, a esposa de Tiago Zebedeu, não servira para nada. Ao contrário. A situação se complicou e Zaku e Perpétua terminaram indo embora, muito alteradas.

Elas prometeram voltar - comentou a dona com desconfiança.

Eu ouvi.

Salomé foi sincera:

Não gosto nada disso... São umas perdedoras... Veremos o que o rabi diz...

E Salomé regressou para o pátio de trás, desafogando sua raiva com as sofridas galinhas pretas. Ela as chamou de tudo enquanto tratava de devolvê-las aos galinheiros. Supus que os insultos não estavam sendo di­rigidos para as aves...

Fiquei perplexo.

Imaginei que os discípulos comentaram sobre a iminente viagem e as mulheres, como é natural, os interrogaram. Do que viveriam durante duas semanas? O que aconteceria com elas e com seus filhos?

Não precisaria ser muito esperto para entender que Perpétua e Zaku tinham feito um acordo e que unicamente pretendiam esclarecer o assunto. E desejavam fazê-lo com o responsável: Jesus de Nazaré.

Tive um mau pressentimento.

Prometi a mim mesmo que permaneceria atento. Desta situação violenta não se diz nada nos textos evangélicos e é certamente lógico. Falar de discrepâncias no seio das famílias dos apóstolos, e por culpa da difusão das boas-novas, não era o apropriado no império da Igreja. E os evangelistas guardaram silêncio. Mais uma vez...

Não me despedi de Salomé. Peguei minhas coisas e caminhei até o Ravid.

Também não me detive na "casa das flores" nem adverti Eliseu sobre minhas intenções de subir ao "porta-aviões".

Consegui provisões na plantação de Camar e aproveitei para pergun­tar ao velho badawi (beduíno) sobre os "bucoles" ou bandidos de Arbel. Não soube responder. Não sabia de nada. Não tinham regressado.

Isso significava que renunciaram aos seus planos de atacar o Ravid?

E nesta mesma tarde de quarta-feira, dia 19, pus mãos à obra. Enco­mendei a "Papai Noel" a análise do cálice de metal e quem isto escreve se concentrou em atualizar os diários.

A gavia era o mais urgente. Não voltaria a dispor de uma oportunidade como aquela. Na sexta-feira, dia 21, o Mestre regressaria. Eu deveria estar no casarão e devolver-lhe o seu "tesouro".

Nessa mesma noite, recebi os primeiros resultados. "Papai Noel" foi minucioso e impecável, como sempre.

A surpresa chegou de imediato.

O computador central se equivocou?

Repassei a informação, mas, aparentemente, tudo estava certo. Não houve erros...

O cálice era de aço inoxidável, de fato. Porém, como aquilo era possível? Esse tipo de aço, como disse, só começou a ser industrializado depois de 1910...

As medidas eram as seguintes: altura total: 13 centímetros; diâmetro máximo da boca: 6,35 centímetros; diâmetro mínimo da dita boca: 6,05 centímetros; altura da parte superior da taça: 6,73 centímetros; "nó" central: 1,10 centímetros; altura do pé: 6,27 centímetros (economizarei ao hipotético leitor dessas memórias o resto das medidas, tanto interiores como exteriores).

Peso do cálice: 505,6 gramas. Volume: 65 centímetros cúbicos.

Tratava-se de uma só peça, trabalhada com um polimento esquisito. Como disse, o brilho era deslumbrante.

Não apresentava nenhuma solda.[9] Era estranho. A peça tinha sido "extraída" de um único bloco.

Para identificar os materiais que integravam atavia, "Papai Noel" tra­balhou com um método chamado "fluorescência de raios X por energia dispersiva"[10], uma técnica bem exata que, além disso, não obriga a cortes de amostra. Em outras palavras: o cálice não sofreu nenhuma deterioração.

E chegaram as surpresas, uma após a outra...

A liga reunia os seguintes materiais: ferro, a 66,28 por cento; cromo, a 21,27 por cento; níquel, a 7,96 por cento; molibdênio, a 0,32 por cento, e manganês, a 2,32 por cento. Carbono não foi detectado, salvo alguns traços (menos que 0,03 por cento), e quase com toda a certeza a contami­nação foi produzida pela própria análise.

Tratava-se, portanto, de aço inoxidável (!), tipo austenítico[11] (duplex: Cr 20-30 por cento, Ni 5-8 por cento e C menos de 0,03 por cen­to), com umas características especiais: altíssima resistência à corrosão (incluindo a água do mar), ao fogo (até 400°C) e grande resistência mecânica (60 kg/mm2).

Fiquei desconcertado.

E as suspeitas iniciais, quando consegui examinar o cálice em Arbel, foram confirmadas. Era aço inoxidável (altamente especializado) que oficialmente "não podia existir naquele tempo". Esse tipo de liga, como se poderá lembrar, foi industrializado nos primeiros anos do século XX.

Eu estava confuso. Contudo, nem estranhei tanto. O que havia conntemplado em Jerusalém (ano 30), num bairro de forjadores, tinha sido igualmente espetacular...

Teria que regressar a Caná e perguntar à família de Nathan sobre a origem da singular gavia. Como ela chegou até eles? Quem a fabricou?

Porém, as surpresas não terminaram aí.

Foi o eficaz computador central que descobriu...

No interior do cálice, assim como na parte interna do pé, era possível apreciar - a olho nu - as espirais e os pontilhados, respectivamente, ocasionados (em princípio) pelo torno utilizado no polimento. As linhas do interior da taça (espirais) eram sutilíssimas. "Papai Noel" distinguiu 1668. No pé, o torno (?) aparentemente havia trabalhado de outra maneira, combinando as espirais com os pontilhados. O computador somou 306 espirais igualmente delicadas, quase imperceptíveis. As linhas do pontilhado eram oito. Formavam círculos concêntricos. Partiam do centro geométrico da concavidade interior.

Como eu digo, a olho nu, os referidos pontilhados eram somente isso: impactos. E eu me perguntei: Por que o autor do polimento combinou ambas as técnicas naquela região específica do cálice? Não teria sido mais lógico o uso das espirais na totalidade do interior do pé? A resposta não demorou a chegar.

"Papai Noel" avaliou o polimento como "mecânico". As distâncias entre as espirais, entre os círculos concêntricos, as espessuras de umas e de outros e os índices de erro nos traçados (praticamente nulos) o levaram à citada conclusão. Isso não foi o mais estranho. Os tornos eram conhecidos desde muitos séculos atrás, em especial os de arco. O que me desconcertou foi o seguinte passo do computador. "Papai Noel" examinou o pontilhado, utilizando para isso uma técnica de informática similar, de certo modo, ao que denominam "aplicação polinômica de texturas". As ampliações espetaculares alcançaram os 1.100 aumentos.

Quando eu vi, não pude acreditar.

Eu repassei mil vezes...

Não era um sonho, tampouco uma alucinação.

Aquilo era uma obra humana. Melhor dizendo, não podia ser obra humana... Eu já me explico melhor.

No "interior" de cada batida do entorno, em cada pontilhado, apare­cia um signo.

Assombroso!

Os sinais não eram visíveis a olho nu. Foi necessário o auxílio do microscópio para detectá-los.

Isso foi surpreendente, incrível e impactante!

Isso não poderia ser trabalho humano. Ninguém naquela época dis­punha de técnicas de impressão tão refinadas... E em metal.

Fui repassando até a exaustão. Desconcertante!

Honestamente, eu não era capaz de identificá-los. "Papai Noel" ofereceu uma explicação possível. No banco de dados apareceu um sistema de escrita relativamente semelhante. Hoje é conhecido como silabário chipro-minoico. Possivelmente, um conjunto de sinais e símbolos de origem cretense, como assegura Arthur Evans, ou talvez de natureza berbere, muito mais antigo. O silabário referido foi datado em cerca de 1500 anos antes de nossa era (Idade do Bronze). As primeiras "traduções" datam de 1871.

Bem, ao longo dos oito círculos concêntricos, e em cada um dos pon­tos (em milésimos de milímetro), foi impresso um símbolo. O computa­dor também encontrou um total de 46 sinais, equivalentes a números.[12] A "tradução" parecia tão incoerente que preferi não incluí-la.

Em suma, de acordo com esse último achado, a taça de metal era mui­to mais antiga do que eu imaginava. E atrevo-me a pensar em algo mais ou­sado: a taça não poderia ter sido gravada por mãos humanas. Ou poderia?

Aí terminou a análise. Poderia ter continuado com o pergaminho da "vitória", o chamado "323", mas optei por adiar a investigação. Os achados do "Papai Noel" no cálice me deixaram mergulhado em confusão. É muita coisa que nós ignoramos do passado...[13]

Quem fabricou aquela bela peça de aço austenítico? Qual a tecnologia usada? Como eles conseguiram gravar os sinais microscópicos? Por que este cálice tinha chegado às mãos do Mestre? Eu vi outros semelhantes no casamento em Caná. Eram todos feitos de aço inoxidável? Lembro-me de ter visto cerca de dez... Será que as taças apresentam também uma gravação como a que eu acabara de contemplar?

Teria que visitar de novo a família de Sapiah e tentar esclarecer as incógnitas.

E, acima de tudo, por que Jesus de Nazaré, e quem isto escreve, sentiam tamanha atração pela brilhante e rara taça? Era apenas um símbolo? O que representavam os sinais gravados na parte interna do pé? Por que contemplá-los me causou tanto impacto? Por que eu não tinha sido capaz de decifrar a "mensagem", presumindo que seja uma? Além disso, por que o Mestre entregou-me o cálice? Ele poderia tê-lo guardado em seu quarto. Ninguém se atreveria a tocá-lo...

Como dizia o Filho do Homem, "quem tiver ouvidos que ouça"...

Dediquei-me a pensar e a escrever nos dias restantes.

De vez em quando, tomava a taça entre as mãos, a acariciava e a esquentava...

Ela respondia ao meu afeto com todos os tipos de centelhas...

 

Na sexta-feira, 21 de junho, eu regressei a Saidan. Deixei no "berço" o "323" e também o jade preto que encontrei na sala secreta de Yu no estaleiro. Eu os analisaria em outra oportunidade.

O Mestre não tinha retornado. Ninguém sabia de nada. Comecei a me preocupar. Onde Ele estava? Não entendia muito bem a razão para aquela ausência.

Nova surpresa. No travesseiro da cama apareceu outra mensagem misteriosa, também sobre argila. Dizia: "envolve-me com paixão".

No sábado, 22, o dia amanheceu às 4 horas e 23 minutos. O tempo melhorou sensivelmente. Previa-se um dia quente e azul. O lago ainda se mantinha em quietude quando fui lavar-me.

E, com o amanhecer, vimos chegar o Galileu.

Ele trazia o rosto resplandecente. Era outra pessoa.

Onde Ele havia estado?

Eu tinha que perguntar...

Ele desceu para a praia. Tomou um banho, trocou a túnica vermelha pelas vestes brancas e tomou o café da manhã com o resto da família. Eu o encontrei despreocupado, sem nenhum traço da tristeza passada. O que teria acontecido?

O Filho do Homem não fez menção de dizer onde ou com quem esteve. Ninguém se atreveu a perguntar. Nós o contemplávamos, assom­brados e satisfeitos. Quando o Mestre aparecia feliz era contagioso...

Eu lhe devolvi o cálice, e, quando o fiz, ele piscou para mim. Não houve comentários. Eu sabia que Ele sabia...

E nesta manhã, como planejado, embarcou no barco que fazia a tra­vessia até Nahum. A família Zebedeu foi com ele.

A solicitude do Mestre para falar na sinagoga causou expectativa e emoção, uma vez mais. Todo o povo o esperava. Ali estavam os irmãos Jolí, sacerdotes e responsáveis pela sinagoga, os notáveis da população, e de ou­tras cidades e das aldeias da costa norte do yam, e, claro, espiões e confiden­tes de uns e dos outros.

Por que Ele dissera que tinha algo importante para comunicar? A que ele se referia?

Jesus conversou, amável, com seus compatriotas e amigos, perma­necendo por um tempo às portas do edifício. Eu não vi a Senhora, nem Tiago, o irmão do Galileu. Talvez eles já estivessem lá dentro.

E pela quinta hora (11 da manhã) todos se sentaram. Eu me instalei lá em cima, na galeria destinada aos gentios e convertidos.

Primeira surpresa: ali eu achei Yu, o chinês, carpinteiro-chefe do es­taleiro. "Eu fiquei curioso", disse.

Eu estava certo. Maria, a Senhora, se encontrava na galeria de mu­lheres judias na zona norte. Eu a vi na primeira fila, agarrando-se à grade que cercava a seção. Eu não vi Esta. Em seguida, juntou-se à Senhora de Zebedeu. Salomé a abraçou e conversaram.

Lá embaixo na sala, nos assentos preferenciais, eu distingui os dis­cípulos. Eles se sentiam eufóricos. Pressentiam algo de importante... Eles não estavam errados.

Foi um difícil trabalho localizar Tiago e Judas, os irmãos do Mestre. Apareciam perto da porta principal e se confundiam entre aqueles que permaneceram em pé. Notei uma sombra de pesar no rosto de Tiago, mas eu não sabia a que se poderia dever aquilo.

O Filho do Homem tomou seu assento na bema, o púlpito onde tinha sido situada a "torre" ou migdal, uma pequena mesa sobre a qual foram colocados os livros da Lei e dos Profetas. E começou a cerimônia.

Tarfón, o funcionário que se ocupava de quase tudo na sinagoga, abriu a tybh (armários dos rolos da Lei) e extraiu um dos estojos de madeira e nácar. Dentro do seu interior se achava o rolo previamente escolhido por Jesus. Removeu o envoltório de linho que o protegia e desenrolou o "livro", mostrando parte do texto. A congregação, vendo as colunas com tinta preta com a letra quadrada e medida do hebraico sagrado, irrompeu em um suspiro geral.

Era a Lei, era a palavra de Deus!

Tarfón, então, levantou o rolo sobre a cabeça e começou uma lenta caminhada. Para que todos pudessem ver a esmerada escritura. Esse foi o ponto.

E os fiéis, emocionados, saudaram a passagem da Lei com gritos, aplausos e vivas à Torá.

Finalmente chegou em frente à bema e depositou o rolo sobre a mesa. Ele procurou o parágrafo selecionado pelo Mestre e fez um gesto para o arquissinagogo ou Ros-ha-keneset. Jolí assentiu com a cabeça e o silêncio se fez.

Jesus de Nazaré se levantou e aproximou-se do texto marcado por Tarfón com o dedo indicador esquerdo. Leu mentalmente as palavras indicadas no pergaminho e, depois de dirigir um olhar para os presen­tes, começou a ler. Melhor dizendo, a cantar o texto. A voz profunda do Mestre se derramou pela sala, comovendo os corações. O silêncio foi total e respeitoso.

"E vós sereis para mim um reino de sacerdotes, uma nação santa..."

Ele parou e o meturgeman ou tradutor se ocupou da tradução do versículo em aramaico, a língua popular. Ele o fez sem olhar para o livro e de memória, tal como indicava a Lei.

Concluído o targum ou tradução, o Mestre continuou:

"Yaveh é nosso juiz... Yaveh é nosso legislador... Yaveh é nosso rei... Ele vai nos salvar... Yaveh é meu rei e meu Deus... Ele é um grande Rei sobre a terra..."

O tradutor interviu, impecável.

E Jesus concluiu:

"A benevolência recai em Israel... Bendita seja a glória do Senhor porque Ele é o nosso rei."

Jesus voltou para seu lugar e a assembléia se preparou para o mo­mento culminante: a "lição final", um discurso, geralmente breve, em que o darshan ou pregador expunha suas idéias sobre a passagem que acabara de ler. O Mestre, como não poderia ser de outra forma, escolheu o método que chamam de Maftir[14]: o ensinamento com palavras luminosas.

Foi nesse momento que eu pude perceber...

Nunca tinha acontecido isso comigo, ou muito raramente.

Poderia ser o cansaço? Parecia-me estranho. Eu tinha dormido bem...

O ponto é que eu não conseguia me lembrar a qual livro pertence o texto lido pelo Galileu. Era dos Profetas, mas qual?

Não dei maior importância. O Destino, no entanto, alertou...

O Mestre contemplou os que ali estavam reunidos. Ele o fez com o rosto sério. E a observação (eu diria que mútua) se prolongou durante alguns segundos. A Senhora e os discípulos se encontravam cheios de expectativas.

O tradutor também se preparou. Jesus falaria em hebraico e, a cada trecho, o meturgeman faria a tradução para o aramaico.

Tudo estava pronto...

E o Mestre quebrou o silêncio. Ele disse:

"Eu vim para proclamar o estabelecimento do reino de meu Pai..."

Parou e o tradutor traduziu corretamente.

Eu ouvi certo sussurro. E eu imaginei que a última frase - "o reino de meu Pai" - causou um choque e desagrado. De fato. Na galeria onde eu estava houve comentários: "O reino de teu Pai? Quem achas que és...?"

O Mestre advertiu os murmúrios, mas continuou:

"Este reino é composto da alma dos judeus e gentios, ricos e pobres, homens livres e escravos... porque o meu Pai não tem favoritos... Seu amor e misericórdia são para todos..."

O Galileu parou e incentivou o tradutor para que prosseguisse. E ele o fez, mas mudou o significado da declaração de Jesus. A versão foi: "Este reino abrange apenas a alma dos judeus... Seu amor e misericórdia são para todos".

O Filho do Homem hesitou. Ele entendeu perfeitamente, mas continuou com o discurso:

"O Pai Celestial envia Seu Espírito para ser derramado na mente dos seres humanos... e quando eu tiver terminado a minha obra na Terra..."

Ele se deixou traduzir para o aramaico. Mas o funcionário voltou a deturpar o que foi dito pelo Mestre:"... para que se derrame na mente dos judeus..."

Jesus levantou a mão esquerda e parou a versão mal-intencionada do tradutor. E educadamente, mas com firmeza, pediu para ele retornar ao seu lugar. O meturgeman corou de vergonha e se retirou. Olhei para Yehudá ben Jolí, o responsável pela sinagoga, e percebi como empalidecia. Nesse momento eu soube: o arquissinagogo e o tradutor estavam em conluio... Naquele dia, exatamente, começaram os problemas de Jesus com a casta sacerdotal. Jolí tinha tudo pronto para estragar as exortações do Galileu. Ele não teve sucesso...

O Filho do Homem tomou as rédeas da situação e prosseguiu, mas em aramaico. A maioria agradeceu-lhe.

... E quando eu tiver terminado minha obra na Terra, o Espírito da Verdade também será derramado sobre a carne."

Jolí passou de pálido para vermelho de raiva. Alguns notáveis murmuraram. "Isso não foi ortodoxo... O darshan não poderia falar direta­mente em aramaico."

Mas o Mestre, impassível, seguiu do seu próprio modo:

"... Meu reino não é deste mundo..."

E ele repetiu:

"Meu reino não é deste mundo..."

A Senhora estava séria, muito séria.

"... O Filho do Homem não conduzirá exércitos nem fará batalhas para ganhar nenhum trono..."

Ele ficou em silêncio e olhou para a assembléia. Os discípulos (particular­mente João Zebedeu e Simão Pedro) permaneceram de boca aberta, atônitos.

Compreendi.

"... Eu sou o Príncipe da Paz e a revelação do Pai eterno..."

Foram poucos os que captaram o sentido daquelas palavras.

"... Os filhos deste mundo lutam pelo estabelecimento dos reinos materiais. Bem, em verdade eu vos digo que os que me seguirem entrarão no reino invisível e alado dos céus por suas decisões morais e seus triunfos espirituais... E lá encontrarão a alegria e a vida eterna."

A julgar pelos rostos, nenhum dos mais íntimos tinha compreendido.

"Reino invisível e alado?" Isso não era o que pretendia Yehohanan ou o que apontavam as Sagradas Escrituras pela boca dos profetas. O "reino" em questão (malku) era algo físico e da terra, governado pelo Messias, o "quebrador de dentes" e sucessor do rei Davi.

Os murmúrios de desaprovação foram gerais. A Senhora tinha baixa­do a cabeça, desconcertada ou desconsolada. (Ou talvez ambas as coisas.)

O único que assentia com a cabeça e sorria era Yu.

"... Se buscais o reino de meu Pai, todo o resto vos será dado por acrés­cimo... E eu vos advirto: para entrar nesse reino é preciso que o façais com a confiança cega de uma criança... Caso contrário, não sereis admitidos..."

Desta vez era eu quem não concordava com o Filho do Homem. Eu confesso. Eu sei que todos os seres humanos - TODOS - estão destinados a esse reino maravilhoso, invisível para a matéria, e deliciosamente alado. Ele me disse: todos regressarão ao Pai. E eu percebi que era outra abor­dagem para a verdade. Jesus não podia falar de outra maneira... O que eu creio, esse foi o seu verdadeiro "calvário".

A desaprovação foi aumentando.

Jolí e os notáveis se revolviam, nervosos, em seus assentos.

Mas o Mestre estava disposto a chegar até o final:

"Não vos deixeis enganar... Não prestais atenção aos que asseguram que o reino é aqui e ali... O reino de que vos falo não é visível para vós. Na verdade, ele está em todas as partes, mas não é deste mundo... Na realida­de, está dentro de vós, mas não o sabeis... Eu vim para tirar a venda dos olhos... Estou aqui para anunciar que o Pai existe, mas é muito mais do que imaginais... Yehohanan vos tem batizado com água para a remissão dos pecados, mas eu vos digo que para entrar no reino dos céus sereis batizados com o Espírito da Verdade."

Alguns pensaram que ele estava louco, e o boato correu.

"No reino alado não haverá judeus ou gentios."

Foi a gota d’água. E a assembléia, estimulada pelos notáveis, inter­rompeu o Mestre aos gritos de blasfemo e louco.

Maria começou a chorar, e os discípulos se olhavam. Pareciam aterrorizados.

"... E eu vos adianto - Jesus se impôs - que, em breve, estarei sentado com meu Pai, em seu reino..."

Alguns, escandalizados, se levantaram e abandonaram o recinto.

O Mestre, acidentalmente (?), estava desenhando o que seria o seu futuro ao longo da vida pública ou de pregação.

Estremeci. Os problemas foram suscitados antes do esperado.

Jesus esperou e o alvoroço foi se dissipando.

Quando o silêncio ficou levemente aceitável, o Galileu retomou seu discurso:

"Este novo reino alado é semelhante a uma semente que cresce em uma terra fértil. Necessita de tempo para se desenvolver... O mesmo acon­tece com o que estou anunciando... E chegará o dia em que se cumprirá o mandato de Abba: e sereis perfeitos como Ele é perfeito..."

E acrescentou, intencionalmente:

"Porém, não aqui nem agora..."

Aplaudi no meu coração. Agora sim eu reconhecia as suas palavras. Seremos santos (perfeitos), mas não aqui na matéria. Seremos perfeitos depois, ao regressar à "realidade"...

"Eu vim ao mundo para revelar esta boa-nova. Eu não vim para au­mentar a carga... Não peço nada em troca... Basta confiar no Pai... Vosso destino é glorioso, mas não o sabeis... Não penseis em exércitos marchando... Que não é esse o plano do Pai... Não penseis em derrocadas, ou em revoltas, nem mesmo em quebrar o jugo do cativeiro... Falo de outra coi­sa. Eu vos digo, meu reino não é deste mundo..."

As pessoas ouviam, mas não podiam compreendê-lo. Era demais para a mente delas.

E o Mestre concluiu:

"Esse reino é eterno. Em seu momento chegareis à presença do Sa­grado. Vós sois seus filhos, não vos esqueceis... E uma última questão: eu não vim para reclamar aos justos senão para os confusos..."

Ponto final. O Filho do Homem se retirou do púlpito e abriu passa­rem, saindo. Eu me apressei para segui-lo...

 

Esse foi outro momento histórico na vida de Jesus de Nazaré. Eu ti­nha acabado de presenciar o primeiro ensinamento "oficial" do Mestre. Na audiência anterior (2 de março, na mesma sinagoga), o Galileu praticamente não dissera nada. Paciência é apenas o que Ele solicitara aos que estavam reunidos. Agora Ele foi categórico. Ele pôde falar mais "alto", mas não de maneira tão clara. A assembléia não soube disso, mas naque­las palavras se encontrava a sua mensagem brilhante e revolucionária: o seu reino não é deste mundo; não era o Messias prometido pela tradição e pelos profetas; não entraria em assuntos mundanos, não guiaria exércitos; todos os homens têm a mesma origem e, claro, o mesmo destino, o que con­ta é a busca do Pai (o resto aparece como acréscimo e como consequência do Amor = ação); todos nós seremos santos (perfeitos) (amanhã); esse reino está dentro do ser humano (a partir da idade de 5 anos)...

Reafirmo: Ele poderia falar mais "alto", mas não de maneira tão clara.

E mais ainda: Jesus consumou um novo anúncio de sua morte, em­bora ninguém tenha captado, e muito menos os seus discípulos.

Em suma: ninguém neste dia e neste lugar veio a entender as pa­lavras do Filho do Homem. Acredito, inclusive, que houve uma sutileza na escolha do parágrafo que "cantou". Esse texto apresenta Yaveh como juiz, como um legislador, como rei, como salvador e como Deus, mas não como Pai. Jesus, ao fazer maftir, falou constantemente de seu Pai...

Porém, como eu digo, não foi entendido.

O início de sua vida pública não poderia ser mais significativo.

Isso foi o que o esperava: rejeição, incompreensão e zombaria.

Mas vamos passo a passo...

Eu não demorei em localizá-lo. Deveria ser 13 horas ou algo assim. Ele se encontrava em frente à fachada da sinagoga.

Aproximei-me com curiosidade.

Jesus estava rodeado por um grande grupo de judeus. No começo eu não entendi... Então me dei conta. E eu testemunhei uma cena que tam­bém não aparece nos Evangelhos e que advertia, igualmente, o Destino do Homem-Deus.

Eu abri passagem como pude e me coloquei na primeira fila.

Os judeus, sobretudo os fariseus, o repreendiam severamente. Cha­maram-lhe de tudo.

O Mestre os contemplava, mas não replicava.

Chamavam-no de carpinteiro louco, iluminado, presunçoso e blasfemo.

Senti fogo nas entranhas. Eu tinha me tornado seu amigo e, portanto, um péssimo observador. Porém, eu me contive.

Os "santos e separados" o censuravam pela falta de respeito à Lei e às regras. Foi a primeira vez que alguém se dirigiu à assembleia em aramaico, sem a ajuda de um tradutor. "Isso - eles diziam - era inadmissível."

Outros lhe jogaram na cara que ele estava se auto-proclamando o en­viado do Santo.

"Quem acreditas que és? - repetiam - O enviado do Santo, bendito seja seu nome?... Tu és apenas um carpinteiro e, para o cúmulo, de Nazaré..."

Alguns mais enfurecidos arrancavam os cabelos e gritavam:

"Como podes comparar os judeus com os gentios?... O Santo, bendito seja o nome dele, sim, tem favoritos: o povo escolhido! Nós!... Quem te pediu para ficar à frente dos exércitos de libertação?"

Eu contemplei o Mestre.

No começo, ele olhou para aqueles que o desafiavam. Então, conscien­te da inutilidade da discussão, ele baixou o rosto e permaneceu em silêncio.

Meu Deus!

Eu já tinha visto essa impotência no rosto do Mestre... Ou melhor, eu a veria.

"Blasfemo!... Volta para o teu pai, o carpinteiro!... Todos nós o co­nhecemos!... Não era tão soberbo, orgulhoso, nem tão prepotente como tu!... Maldito!... Some, vai embora para esse reino de efeminados!..."

Obviamente, eles não haviam entendido.

Mas o ódio daqueles energúmenos foi além. E alguns dos fariseus, cegos de cólera, empurraram o Filho do Homem pelas costas.

Jesus cambaleou.

Outros, contagiados, começaram a dar empurrões e pontapés no dócil Galileu.

O Deus-Homem empalideceu, mas não ofereceu nenhuma resistência.

Eu também empalideci.

O que eu deveria fazer?

Eu levava comigo a "vara de Moisés" na minha mão direita. Eu pode­rá usá-la. Com um par de descargas de ultrassom, a violência teria desaparecido. Mas esse não era o meu trabalho...

Felizmente, os céus foram benevolentes.

Na metade do tumulto vi aparecer os Tiagos (Zebedeu e o irmão de sangue de Jesus). Por detrás chegou Judas, outro irmão de Galileu. Ele carregava uma gladius, a temida espada de dois gumes.

Os "santos e separados", covardes, partiram. E os Tiagos levan­taram Jesus e o resgataram daquele punhado de fanáticos. Judas per­maneceu por alguns segundos na frente do confuso grupo exaltado, com a espada levantada ameaçadoramente. Então ele se virou e cor­reu atrás de seu Irmão. Uma chuva de pedras e maldições seguiu os fugitivos...

E eu os vi desaparecer no centro de Nahum.

Foi uma imagem igualmente dramática. Aquele Jesus espancado, pá­lido, silencioso e em fuga foi mais um anúncio do que estava por vir...

Em Beit Ids assisti a uma cena (31 de janeiro), na qual o Mestre tam­bém fora insultado pelos convidados na tenda de Yafé, o sheik. Naquela ocasião, no entanto, os badu não chegaram a levantar as mãos contra ele...

E, de repente, quando me distanciava dos fariseus e dos outros faná­ticos, disposto a reunir-me com o Mestre, alguém gritou:

Tu és um deles...!

Virei-me e, de fato, eles se dirigiam a quem isto escreve.

Deram alguns passos, ameaçando:

Nós temos te visto com ele... Tu és um dos seus seguidores!

Eu os enfrentei e disse que sim; que era. E me preparei. Acariciei a parte superior da "vara de Moisés". Se fosse atacado eu iria me defender...

Titubearam. Eles conversaram entre si e terminaram dando as costas para mim.

Alguém comentou com desprezo:

É apenas um velho...

E desapareceram na sinagoga.

Ao chegar ao cardo maximus, a principal rua de Nahum, eu distingui os discípulos. Eles estavam reunidos sob um dos pórticos. Discutiam. Não vi o Mestre nem seus irmãos.

Na chegada, eu fui questionado. Contei o que aconteceu e continuaram discutindo. Pedro e João Zebedeu eram os mais exaltados. Eles haviam sa­cado as espadas e queriam voltar e enfrentar os "santos e separados". As pessoas que passavam olhavam para eles com estranheza.

André e Tiago Zebedeu não permitiram. Eles forçaram os seus ir­mãos a guardar as armas e empurraram todos, literalmente, rua abaixo. Felipe e Bartolomeu, confusos, permaneceram mudos. E fizeram o que foi recomendado pelos prudentes André e Tiago.

Eu deduzi que o Mestre tinha ido em direção ao porto, pronto para embarcar a Saidan. Estava errado.

O Filho do Homem se deteve na "casa das flores". Assim se fez saber aos íntimos.

Ao chegar em frente à grande porta de madeira, os discípulos, de comum acordo, decidiram esperar na rua e proteger o Mestre de um pos­sível surgimento daqueles "miseráveis". Assim eles os chamaram.

Eu não pensei. Desejava ver Ruth...

Fui para o pátio a céu aberto e contemplei o que estava diante de mim.

Ali me esperava outra surpresa.

Ruth estava na cadeira de balanço. O Mestre estava a seus pés. Acariciou e beijou as mãos da menina ruiva.

Os irmãos, visivelmente nervosos, apareceram do lado da romãzeira observando a cena.

Nada havia mudado em Ruth. Ela olhava, parecia inquieta, sempre fazendo voar o belo verde de seus olhos.

Eu não vi a Senhora, nem Esta, a esposa de Tiago.

E, pouco tempo depois, o Galileu se levantou e virou-se para seus irmãos. Aproveitei e substituí Jesus. Eu me ajoelhei aos pés da menina e tomei as suas mãos. Estavam frias. E tentei aquecê-las. Ela me olhou e soube que eu continuava apaixonado. Eu sei que ela sabia...

Eu não tive saída. Eles estavam ali mesmo, bem ao meu lado. Inadvertidamente, ouvi a conversa entre o Galileu e os inquietos Judas e Tiago.

O Mestre ainda estava pálido. E gravemente, sem hesitação, lhes disse que não era aconselhável que a família viesse a fazer parte do grupo de discípulos que desejava reunir e que o sucederiam "quando Ele já não estivesse".

Tiago e Judas não entenderam, e o Galileu, paciente, explicou novamente.

Era uma decisão friamente meditada. A família não seria parte dos íntimos que deveriam acompanhá-lo durante a vida de pregação. É simples assim. E foi uma decisão não negociável. Não desejava que eles o encarassem com desprezo. Muito pelo contrário.

Eu faço - ele acrescentou - pela vossa própria segurança...

Nem Tiago nem Judas captaram a intenção do Irmão. E protestaram:

Nós temos estado contigo desde o início do batismo, no Artal...

Jesus ouviu com atenção e moveu a cabeça afirmativamente.

Eu sei - ele manifestou-se - e aprecio isso... Eu sei quanto vos importais com o novo reino, mas a decisão já está tomada...

Os irmãos baixaram os olhos, contrariados.

... É a vontade do Pai do céu...

Tudo estava dito.

E quando o Mestre se dispunha a abandonar a "casa das flores" por uma das portas, veio a Senhora. Caminhou decidida até os filhos e ficou na frente do primogênito.

Não tens vergonha...?

Entendi que ela havia escutado a conversa.

O Mestre a contemplou em silêncio.

Que difícil situação a dele!

E fez a única coisa inteligente que se podia fazer: não discutir.

Olhou para a mãe com tristeza, foi ao encontro de Ruth, beijou-a, e fez um gesto para mim para que eu o seguisse.

Maria, enfezada, gritou da romãzeira:

Então preferes os estranhos!

Jesus não replicou.

E quem isto escreve foi atrás Dele.

Porém, a jornada não havia terminado...

Na rua, como não podia ser diferente, outra surpresa me aguardava.

Jesus se deteve junto aos discípulos. Também estavam ali Salomé, a esposa do velho Zebedeu, as filhas, Maria, esposa de Tiago Zebedeu, e Perpétua e Zaku, as esposas de Simão Pedro e Felipe, respectivamente. Eles acabavam de chegar.

Pedro e João Zebedeu discutiam com Perpétua e Zaku. Os discípu­los, aparentemente, tratavam de retornar para casa com o compromisso "de que não se meteriam com as coisas dos homens".

Zaku não parava e gritava mais do que os discípulos. Ela os chamava de "irresponsáveis".

Jesus voltou-se para o confuso André e solicitou que reunisse os seis no casarão de Saidan. Eles tinham que falar sobre a viagem pelo yam.

Zaku ouviu o anunciado pelo Mestre e esqueceu-se de João e Pedro, aproximando-se do Galileu. E falou com ele. Fez isso com um especial tato...

É verdade, rabi?

Jesus estava recuperando a cor e a olhou, intrigado.

É verdade sobre a viagem pelo lago?

O Mestre se limitou a assentir com a cabeça.

Mas do que viveremos?

Pedro tentou intervir, dando por encerrado o assunto.

Jesus não o permitiu. Ele ergueu a mão esquerda e pediu calma. Fe­lipe havia empalidecido.

Eu já vos disse...

E Jesus apontava para o norte, em direção ao local onde ficava a sinagoga.

-... Se buscais o reino de meu Pai, todo o resto será providenciado a vós...

O Filho do Homem havia acabado de anunciá-lo na sinagoga.

Desta vez foi Perpétua, a esposa de Simão Pedro, que perguntou ao Mestre:

Mas do que viverão nossos filhos?

Simão Pedro a incendiou com o olhar.

Jesus levantou a mão novamente e, sem dizer nada, pediu silêncio.

Não me escutais - interviu o Galileu. - Eu vos digo... Não temais.

Mas, rabi, nós não temos dinheiro... Dizem que estareis fora por duas semanas... Quem trará o sustento para casa?

Estúpida!

Felipe não gostou nada do insulto de Pedro e encrespou com Simão. Foi André quem interviu, pedindo paz.

Então ouvi João Zebedeu. Referindo-se às recém-chegadas, exclamou:

Mulheres... Elas sempre têm que complicar tudo!

Foi até o Filho do Homem e acabou enlameando mais ainda a situação:

Não te preocupes, Mestre... Elas são mulheres! Elas não são muito inteligentes!

Desta vez foram elas que atearam fogo em Zebedeu, apenas com o olhar.

Jesus ficou sério e respondeu a João:

Tu estás errado... Para nascer mulher é preciso ser mais valente e inteligente do que para nascer homem...

Ninguém entendeu, mas elas se sentiram recompensadas. Jesus havia se colocado ao lado delas.

Por fim, o Galileu foi colocar as suas mãos sobre os ombros de Zaku e olhou para ela com ternura, enquanto pedia:

Confia! Nada vos faltará enquanto eles estiverem fora. Meu Pai e sua gente vão a um passo à frente de vós...

Ninguém entendeu, e muito menos isso de "sua gente".

E o Mestre caminhou até o porto.

Marcava a nona hora (três da tarde) quando o Galileu se acomodou na "terceira casa", no casarão dos Zebedeu, e se dispôs a informar aos seis sobre os detalhes da viagem iminente pelo yam.

Os discípulos, ansiosamente, aguardavam as instruções. Não conse­guiam acreditar que estivessem a ponto de deixar tudo para dedicar-se ao anúncio do novo reino...

A viagem, é claro, continuava de pé. Deveriam sair de Saidan com as primeiras luzes no dia seguinte, domingo, 23 de junho (ano 26).

O Galileu foi muito explícito. Ele não deixou pontas soltas.

Caminhariam em pares: André e Simão Pedro de um lado, Tiago e João Zebedeu de outro e, finalmente, Bartolomeu (o "urso" de Caná) e Felipe de Saidan.

Seriam eles que escolheriam o vilarejo em que viveriam aquela primei­ra "experiência pessoal". E o Galileu sublinhou "experiência pessoal". Não era para pregar em público e tampouco batizar. Ele repetiu várias vezes.

Pedro e João Zebedeu não ouviram. E se parabenizaram pela pos­sibilidade de - enfim - sair pelas ruas e anunciar a boa notícia: "O Messias está aqui..."

Jesus se viu obrigado a insistir: não desejava que falassem em pú­blico. Seu trabalho consistia em fazer contato com as pessoas e conhecer seus problemas. Jesus encorajou-os a sentar e conversar com todos os ti­pos de pessoas - judeus ou gentios, ricos ou pobres, torpes ou inteligentes, homens ou mulheres - e saber deles as suas inquietudes, suas preocupações. Isso era tudo.

Compreendi. Depois do que aconteceu com Yehohanan, não era apropriado que aqueles seis homens aparecessem nas aldeias do yam proclamando uma nova ordem. Antipas os detectaria imediatamente, e aquilo continha uma ameaça, um perigo que não deveriam correr. O Mestre sabia.

André, Tiago e o "urso" permaneceram pensativos.

Experiência pessoal?

Não conseguiam ver claramente. Mas o Filho do Homem sabia o que fazia...

Pedro e João seguiram por si próprios, incorrigíveis. Eles eram os embaixadores do Príncipe da Paz! Tampouco entenderam...

E quanto a Felipe, foi o único que perguntou e perguntou. Queria saber sobre tudo: alojamento, dinheiro, as provisões, o calçado, a roupa, a maneira correta de saudar, que deveriam fazer no caso de uma emergên­cia e como se comportar se alguém ficasse doente...

O Mestre deixou que ele falasse. Depois sorriu e replicou:

Confia, Felipe! Deixa que meu Pai faça o seu trabalho...

O engraçado de Felipe foi que ele não ficou satisfeito e continuou com as perguntas sobre o dia a dia...

Não me escutaste, Felipe...

Aquele que chegaria a ser o intendente do colégio apostólico captou a intenção do rabi e emudeceu, envergonhado.

Eu te dizia que meu Pai vos guiará... E de que bela maneira! Não te preocupes com o dinheiro, nem com o alojamento, nem com nada disso...

Desviou o olhar e me procurou. Então, olhando-me intensamente, repetiu:

Deixa que meu Pai e sua gente vos guiem...

Mensagem recebida.

Nem os discípulos nem quem isto escreve podiam imaginar nessa ocasião até que ponto "seriam guiados" naquela primeira aventura solitária pelas margens do yam... Sim, foi uma surpresa, especialmente para mim...

Jesus, então, pediu que decidissem para quais povoados iriam dirigir-se. Não houve acordo. Alguns apontavam para o sul e outros a oeste. Foi André, sempre equilibrado, quem estabeleceu o sistema de seleção: ele tiraria na sorte. Foi para a cozinha e voltou com um punhado de peças de cerâmica. Nelas, havia escrito o nome de uma dúzia de povoados, todos no mar de Tiberíades. E foi mostrando. Lembro-me de ter lido Nahum, Tabja, Ginnosar, Migdal, Hamat, Tariqueia, Hipos, Kursi, Betsaida Julias, entre outros. As cidades de um determinado tamanho, de certo porte - como Tiberíades ou a "metrópole" - foram excluídas pelo desejo expresso do Galileu. Saidan tampouco entrou no sorteio. Todos aceitaram.

André introduziu os óstracos em uma bolsa e agitou os pedaços de argila. Pedro foi o primeiro a tirar um óstraco. O rosto dele se iluminou. E cantou feliz:

Nahum!

O segundo par - o dos Zebedeu - deveria deslocar-se para Kursi, na margem oriental do lago, junto ao rio Samak, a um pouco mais de duas horas de Saidan. Felipe e Bartolomeu extraíram um óstraco no qual se lia Tiriqueia", um povoado que conheciam de passagem, localizado próximo da segunda desembocadura do Jordão, ao sul do yam.

Todos se deram por satisfeitos, especialmente Simão Pedro e An­dré. Acreditei entender. Nahum se encontrava muito próximo de Saidan. Poderiam regressar a cada noite e dormir com a família. Isso aliviaria a tensão entre Simão Pedro e Perpétua. E quanto a Felipe, prudentemente, guardou silêncio. Ninguém sabia como reagiria Zaku...

E o Mestre passou para o último ponto: a escolha dos seis outros discípulos. Ele foi igualmente conciso e claro. Era da vontade do Pai Azul que o grupo que devia acompanhá-lo estivesse constituído por um total de 12 homens. E enfatizou:

É a vontade do Abba...

Cada discípulo teria que escolher outro parceiro. Todos iriam trabalhar na divulgação da boa-nova.

Felipe perguntou:

Mas Mestre, como fazer uma coisa dessas? Sob que critérios?

Jesus o envolveu em um sorriso e declarou, no mesmo instante em que me buscava com o olhar:

Surpresa...

Surpresa?

Felipe era muito "pé no chão", e solicitou esclarecimentos.

Surpresa! - o Galileu insistiu, sublinhando com um sorriso travesso.

Surpresa... - Felipe resignou-se. - Surpresa...

E quem isto escreve foi o que ficou mais intrigado, se possível, do que os discípulos desorientados. A que ele se referia? Eu estava acostumado com as suas "surpresas" e joguei as mãos à cabeça...

O mestre riu, divertido.

Eu estava feliz. Ele tinha conseguido que a tristeza se distanciasse por um momento...

Mas João Zebedeu não concordava com a eleição dos novos discí­pulos e disse:

Mestre, tens certeza do que dizes? Esses seis são aqueles que com­partilharão conosco o que temos aprendido contigo? Temos estado contigo desde o início, no Vale do Jordão. Como eles poderão ser iguais a nós?

Jesus repreendeu-o, docemente. Era a segunda vez, que eu me lem­bre, que ele chamava a atenção do prepotente João Zebedeu:

Tenho certeza... Esses homens serão exatamente iguais a vós... De­vereis ensinar-lhes, e com alegria, tal e qual eu tenho feito.

João baixou a cabeça, mas, em seu íntimo, não estava de acordo com o Filho do Homem.

E o Mestre, concluída a reunião, saiu da "terceira casa", dirigindo-se à praia.

Zebedeu, sem dúvida, nunca falou em seu evangelho dessa segunda reprimenda. Não lhe interessava...

E os discípulos se envolveram em outras discussões. Pedro e João mantinham uma postura oposta à do Galileu. "Os novos não poderiam ser como eles."

A discussão teria sido interminável se não fosse a intervenção oportuna de André, a quem todos consideravam como um segan ou "chefe". O irmão de Simão Pedro falava com sabedoria e acabou con­vencendo a maioria: "O Mestre está certo. Somos poucos para um tra­balho tão ambicioso... É bom que aceitemos esses discípulos... Todas as mãos serão poucas..."

Partiriam ao amanhecer. Eles iriam à fonte de Saidan, que chama­vam de "asa do pássaro". De lá, se dirigiriam para seus respectivos des­tinos. Eles sabiam que Jesus não gostava de despedidas e não estaria presente. Aceitaram. Aqueles homens tinham começado a amar Jesus de Nazaré, embora não o compreendessem. Algo assim aconteceu com quem isto escreve...

Nesta ocasião, não desci para a praia. Eu sabia que o Filho do Ho­mem queria ficar sozinho. A tristeza voltou ao seu coração. E eu acreditei saber o motivo. Ruth pesava em seu ânimo como chumbo, e a distância entre Ele e a família se tornava maior, cada vez mais...

E eu me perguntei: o que pensava fazer o Homem-Deus durante essas duas semanas?

Eu me sentia perdido, mais uma vez...

Quando me retirei para o "pombal", outra mensagem me esperava, silenciosamente, sobre o travesseiro:

"Envolve-me para sempre."

Quem poderia ser? Eu teria que arriscar e perguntar. Mas por onde começaria?

E eu prometi que tentaria... Sem demora.

 

Era manhã de domingo, 23 de junho, quando descobri algo que me chamou a atenção. Examinei as peças de cerâmica com as mensagens e cheguei a uma conclusão: eram idênticas àquelas que André havia me mostrado no dia anterior, quando se realizou o sorteio dos povoados para onde deveriam se dirigir na primeira excursão. A cerâmica era a mesma. Pareciam os restos de um pote. Era uma de duas coisas: alguém aproveitou o objeto que havia se quebrado ou o objeto foi quebrado intencionalmente. Aquela era uma pista e eu a seguiria...

Mas, quando fui procurar na "terceira casa" a bolsa que André utilizou no mencionado sorteio, não conseguiu localizá-la. Deduzi que ele havia levado embora e, com ele, a argila vermelha. Eu perguntaria. Faria isso na cozinha. Eu tinha certeza de que acabaria dando com o autor ou a autora daquelas mensagens...

Eu tinha pressa.

Esqueci-me da cerâmica e fui até a fonte de Saidan, a leste da aldeia, junto ao rio ou nahal Zají.

Era incrível.

Ali encontrei metade da aldeia.

Todos queriam dizer adeus aos "heróis", como eles chamavam.

Ninguém tinha muita certeza do motivo pelo qual estavam indo embora, mas o importante é que estavam indo. Na pequena Saidan nada acontecia, e aquilo, sem dúvida, era um acontecimento.

As pessoas se beijavam, se abraçavam, choravam, desejavam sorte.

Era como se eles nunca mais fossem voltar.

Só faltou Zaku, a esposa de Felipe. Alguns asseguravam que ela havia deixado a aldeia. Outros, cheios de malícia, disseram tê-la visto em casa. "presa ao baú com os víveres". A maioria simplesmente interpretou a au­sência como um protesto. Foram esses últimos que acertaram...

Felipe se apresentou com uma volumosa bolsa de viagem. Parecia que o mundo ia acabar. O "urso", aturdido por aquela multidão tão barulhenta, ajudava como podia. Felipe estava falando para si mesmo, enumerando o conteúdo de sua mochila. Mas a minha surpresa foi total quando descobri que a dupla que deveria ir até a Tarqueia não ia sozinho. Felipe e o "urso " de Caná viajavam com uma cabra. Aquilo era um circo... Felipe - segun­do explicou o paciente Bartolomeu - tinha passado parte da noite fazendo manchas no animal com tinta de barco.

Eu não podia acreditar.

A cabra tinha sido pintada de vermelho, amarelo, branco e azul. As cores formavam anéis concêntricos, desde o focinho até a cauda. A única parte que se salvou foi o úbere.

É contra o mau-olhado - explicou o "urso". - Assim viajaremos protegidos.

Naturalmente - respondi. - Foi uma medida muito inteligente.

Bartolomeu respondeu com um sorriso maroto.

Perguntei por Zaku e ele, baixando a voz, resumiu a situação com uma frase:

É um mar de lágrimas...

O restante dos discípulos vinha chegando lentamente.

Pedro, eufórico, levantava os braços e deixava à mostra o gládio. André se manteve discreto entre os vizinhos. E o mesmo fez Tiago Ze­bedeu. Quanto a João, o que dizer... Estava radiante. Vestia uma túnica de seda, de um roxo brilhante, que achei ser caríssima, com um turbante combinando.

Ele acabou subindo em uma das muretas de pedra da fonte e come­çou um discurso inflamado sobre o novo reino de vida e de prosperidade que "já estava chegando". Tiago e André foram às pressas tirá-lo de lá, mas João teve tempo para lançar um último e incendiário grito:

Abaixo Roma!

E o grupo saiu sem mais demora, sob os gritos e os aplausos da paróquia.

Eu os vi seguindo ao sul. Pedro e André desviaram para a praia e ali pegaram um barco com destino a Nahum.

A sorte estava lançada. O que aconteceria com aqueles discípulos tão voluntariosos?

Comecei a tremer.

O mais normal de todos era, sem dúvida, a cabra. Na verdade, Felipe a chamava de Cipriota porque não havia maneira de entendê-la (?), e também porque viera de Cyprus (Chipre).

E às seis da manhã desembarquei no estaleiro.

Jesus já estava em seu posto de trabalho, no fosso, martelando. Zal per­manecia a seu lado, como quase sempre. O Galileu parecia sério. Não cantava.

Eu não vi Eliseu.

Perguntei a Yu e fui atualizado. Havia notícias. Algumas ruins, outras piores.

Todo mundo falava do que havia acontecido no dia anterior, na sinagoga. Todos discutiam sobre as palavras do Mestre, mas ninguém chegou ao fundo do discurso. O problema é que os boatos não demoraram a se espalhar... Boatos falsos e mal-intencionados. Com relação ao incidente em frente da sinagoga, as más-línguas garantiam que Jesus caíra de joelhos diante dos fariseus, que pedira por misericórdia, e que os "santos e separados" lhe haviam poupado a vida... E diziam que o Mestre tinha desistido de seu projeto em benefício do Santo, de seu povo e de sua família...

Encarei Yu intrigado, e disse a ele que tudo aquilo era falso. Yu já sabia que eram mentiras, mas se mostrou preocupado. E passou a contar o pior:

A família o deixou.

Que família?

A do Mestre... Hoje, ao amanhecer, eles alugaram uma carroça e deixaram Nahum.

Olhei para o Filho do Homem. Continuava ensimesmado.

Será que ele já sabe?

Yu assentiu.

Mas por quê?

O chinês deu de ombros.

Eu só sei que Tiago e os seus deixaram a aldeia.

E a "casa das flores"?

Fechada.

Então, pensei ter entendido a razão da ausência do engenheiro. Ele tinha ido embora com a família?

Para onde eles foram?

Eu não sei.

E o chinês voltou para suas obrigações.

Contemplei novamente o Mestre e compreendi a razão de seu rosto sombrio e o motivo de seu silêncio.

Eu hesitei. Deveria me aproximar d'Ele?

Deixei-me levar pela intuição e saí do estaleiro.

Yu estava certo. A "casa das flores" parecia fechada. Perguntei aos vi­zinhos. Todos concordaram. Ruth fora colocada num carro, junto a Esta, às crianças e a Senhora, e partiram todos para Nazaré. Tiago fora com elas. Perguntei o motivo dessa saída tão repentina, mas foram incapazes de me dizer ou não quiseram me esclarecer. Eu sabia o motivo. Na minha opinião, foram dois os motivos que desencadearam tudo: o discurso de Je­sus na sinagoga, que terminou abatendo a Senhora, e a rejeição de Tiago e Judas como discípulos. A isso tudo ainda era preciso acrescentar a penosa situação da ruiva (Jesus, segundo a mãe, nada havia feito para curá-la) e o acúmulo de confrontos anteriores.

Fiquei andando sem rumo. Senti tristeza pelo Galileu, uma imensa tristeza... Nada disso foi registrado pelos evangelistas.

Meus passos terminaram por levar-me à insula da "Gata". Ali encon­trei Eliseu e Kesil. O engenheiro estava ciente do que havia acontecido na "casa das flores", mas não quis falar sobre isso. Ele se limitou a perguntar a mesma coisa de sempre:

Você achou?

Mais uma vez, ele estava se referindo ao maldito cilindro de aço.

Nem respondi.

E voltei para o estaleiro. Uma coisa estava clara para quem isto escre­ve. Meu dever era ficar perto do Filho do Homem, e era isso que eu faria. Agora mais do que nunca. Tentaria confortá-lo, mesmo que fosse apenas com a minha presença. Ele sabia que eu sabia...

E foi assim que eu fiz.

Comecei a trabalhar na seção de corantes e tintas, embora, verdade seja dita, não por muito tempo. O Galileu, é claro, tinha planos...

Ao retornar ao casarão, permaneci especialmente atento. Jesus estava vi­sivelmente preocupado, e mal jantou. E, antes de nos retirarmos, nos separa­mos dos outros. Ele olhou para mim como só Ele sabia fazer, transbordando, e pediu sem pedir. Eu respondi que sim de imediato, embora não soubesse a que Ele se referia. Por fim, Jesus anunciou que estava determinado a viajar a Nazaré e que desejava um amigo no qual se apoiar nos momentos de solidão. Eu respondi com um "sim" que iluminou a "terceira casa".

Partiríamos ao amanhecer.

Não fiz perguntas.

E, ao retirar-se ao seu "pombal", me abraçou. Desta vez fui eu quem o acolheu entre os braços. E Ele deixou que um humano aliviasse a carga de um Deus. Eu me senti feliz e recompensado.

Naquela noite, também havia uma mensagem sobre o travesseiro. Foi mágico. Dizia: "Envolve-me e me apanha".

Levou tempo para que eu descobrisse quem escrevia aqueles óstracos. Com o tempo, eu o fiz, e devo reconhecer que alguém invisível, e com asas guiou a sua mão...

 

De acordo com os relógios internos do "berço", naquela segunda-feira, 24 de junho, o sol nascente se ergueu às 4 horas, 23 minutos e 24 segundos de um suposto Tempo Universal.

Fizemos nosso asseio pessoal. Tomamos o café da manhã e nos despedimos de Salomé e dos seus.

Abril me dedicou um sorriso breve, mas intenso.

E pensei: "Era ela quem escrevia aquelas mensagens?"

Eram seis da manhã quando saltamos em terra, em Migdal. De lá, sem atrasos, e no ritmo acelerado do Galileu, poderíamos chegar à aldeia de Nazaré em pouco mais de quatro horas.

O Mestre ergueu a cabeça e eu o segui, intrigado.

Foi uma viagem silenciosa. Mal nos falamos.

Ao deixar para trás a pousada do "Caolho", de tantas lembranças in­felizes, o Mestre se colocou ao meu lado e perguntou de novo sobre Yehohanan. Fiquei surpreso. Já tínhamos conversado sobre isso.

Eu disse o que pensava.

Jesus me olhou de soslaio e não disse nada. Depois de pouco tempo co­mentou, quase que para si mesmo, que se sentira tentado a interceder por ele junto a Antipas. Mas acabou deixando a questão nas mãos de seu Pai Azul:

- Ele sabe...

Não respondi. Tenho certeza de que Jesus, na época, estava plenamente consciente de qual era o Destino reservado a seu parente distante. Tenho certeza...

E pela quinta hora (11 da manhã), de fato, divisamos a branca e amontoada Nazaré, no sopé de Nebi. Duas ou três colunas de fumaça azul fugiam pela chaminé das casas. Nada parecia ter mudado no pequeno vi­larejo. As colinas, as oliveiras, as palmeiras, os silêncios, tudo continuava em seu mesmo lugar...

O Galileu tinha uma idéia muito clara do que queria, e a pôs em funcionamento.

Jesus atravessou a aldeia sem parar. Não sei se foi reconhecido.

E chegamos em frente à casa de Maria, "a dos pombais, no bairro alto. Agora, como já expliquei em outro momento, a casa estava ocupada por José e sua família, outro dos irmãos do Mestre. José era carpinteiro.

O Filho do Homem entrou na casa e eu fiz o mesmo.

Voltei a tropeçar no degrau. Maldita penumbra!

O lugar estava quase vazio.

Encontrei a Senhora no andar superior. Mexia em alguns pratos. Es­tava usando um avental.

No piso inferior, junto aos jarros, estava a ruiva. Eles a haviam colo­cado sentada em uma cadeira baixa. Muito perto dela luzia um candela­bro. A chama amarela das velas oscilou em torno de nós.

Ouvia-se um martelar na oficina. Achei que fosse José.

Fiquei surpreso ao não ver a volumosa Tesouro, esposa do carpintei­ro, nem os filhos, nem a cabra de chifres cortados.

A Senhora, surpresa, permaneceu imóvel por alguns segundos, con­templando seu Filho. Depois me dedicou um rápido olhar. Ela compreen­deu o motivo de estarmos ali.

Ela se dirigiu aos degraus que ligavam os dois níveis. Fez isso lenta­mente, enxugando as mãos no avental.

Jesus, com a bolsa aos ombros, aguardou.

A mulher aproximou-se e beijou o Mestre. Percebi alguma frieza. Ele correspondeu com dois beijos. Não foi uma recepção cordial, como em outras ocasiões.

A Senhora se encaminhou para a porta da oficina e, ao passar em frente a este explorador, me lançou um breve sorriso. Reclamou com José, que, imediatamente, parou de martelar.

O irmão o recebeu com a mesma frieza e distanciamento. Os beijos foram pura educação.

Concluí que a Senhora tinha avisado a família sobre o que acontecera na sinagoga e sobre a decisão do Mestre de não aceitar nem Tiago nem Judas como discípulos. Eu estava certo.

Jesus foi direto ao ponto. Pediu à mãe para convocar a família. Ele tinha algo a dizer.

A Senhora obedeceu imediatamente. Ela se ocuparia de chamar Mi­ram e Marta. José avisaria os demais.

Dito e feito.

Ambos deixaram a casa, e o Galileu, depois de deixar a mochila no chão, aproximou-se de Ruth. E ajoelhou-se diante da jovem. Eu me aproximei bem devagar e fiquei de um lado.

Jesus tomou as mãos da garota ruiva e as beijou, mais de uma vez. Não disse nada. Somente a beijava e beijava. Ruth estava com os olhos úmidos, prestes a chorar.

Senti um nó no meu estômago. E me perguntei: "Mas ele não sente misericórdia por ela? Por que não a faz sarar?"

Eu não conseguia entender. Ou conseguia? Ele havia tomado uma firme decisão em Beit Ids: não realizar milagres. Eu sabia disso, mas ela era sua irmã mais nova...

"Ele curou a criança mestiça, e também Aru, o negro tatuado. Por que não Ruth?"

E eu estava nisso, me atormentando com essas reflexões, quando irromperam na casa a Senhora e suas filhas, Miriam e Marta. Logo atrás chegou Tesouro.

Fazia muito tempo que eu não via Marta. Na minha última visita a Nazaré, não consegui me encontrar com ela, nem com Simão, outro dos irmãos do Galileu e que também residia em Nazaré.

Repetiram-se os beijos e os cumprimentos, mas também frios. Havia algo estranho acontecendo por ali... Aquela frieza não era normal. Mi­riam era muito efusiva, sem mencionar sua cunhada Tesouro. O que estava acontecendo?

Durante os minutos de espera pelos demais membros da família, eles falaram apenas sobre assuntos domésticos e sem importância.

Tudo estava indo bem, disseram elas, as crianças, o trabalho...

Marta faria 23 anos em setembro. Era linda. Seus olhos azuis deixa­ram rastros por onde passassem. Era, talvez, um pouco séria demais.

A tensão ficou mais espessa e quase palpável.

Miriam, nervosa e incapaz de dissimular, se retirou e dedicou sua atenção para a ruiva. Ajoelhou-se aos pés da garota e perguntou se precisava de alguma coisa. Ruth negou com a cabeça, como podia. Miriam olhou para baixo e assim permaneceu por um tempo. Tinha o coração destroçado.

Pela sexta hora (meio-dia), os outros irmãos se uniram às mulheres: José, Simão e Jacó, o pedreiro, o marido de Miriam. Não vi Tiago.

As saudações foram igualmente parcimoniosas.

Simão acabava de completar 24 anos.[15] Era pedreiro de profissão e tinha problemas de obesidade, como Tesouro. Era um sonhador invetera­do, mas não entendia o que pretendia fazer seu Irmão. Limitava-se a vi­ver, sem perturbar ninguém. As pessoas o apelidaram de tsav (tartaruga) porque não fazia nenhum movimento sem pensar demoradamente antes. Não cheguei a conhecer sua mulher e seus filhos.

Jacó, o pedreiro, que fora amigo muito próximo do Mestre na infân­cia e na juventude, foi o único a abraçá-lo com entusiasmo. E lhe comuni­cou que Tiago havia declinado o convite.

O mestre não respondeu. Seu rosto estava grave.

Era óbvio que Tiago não queria ver o irmão. E apoiaria o que a Se­nhora lhe dissesse.

Judas tampouco estava presente naquela decisiva reunião de família. Não houve tempo material para que ele fosse avisado.

E o grupo foi se acomodando ao redor da mesa de pedra. A histórica mesa, como se recordará, junto à qual se apresentou um ser luminoso no mês de novembro do ano -8, anunciando à Senhora a concepção e o nas­cimento do Galileu. Mas a mãe parecia ter se esquecido daquele evento milagroso.

Tesouro e José colocaram novos candelabros e eu fiz um movimento de me retirar da casa. Mas a Senhora, com um gesto, indicou que eu ficas­se junto da ruiva. Maria estava muito séria.

Olhei para o Galileu e este assentiu com um leve movimento da cabeça.

Fui sentar-me então aos pés da menina. Acariciei suas mãos. Esta­vam frias, como mortas. Ela me olhou, agradecida.

Foi assim que tive a oportunidade de participar de uma conversa que marcaria a ruptura definitiva entre o Mestre e sua família de sangue. Na­turalmente, nenhum evangelista dedicou uma linha sequer a isso...

O Filho do Homem foi direto ao que interessava. E, conforme ele falava, fui olhando para seus parentes, um por um.

Eu sabia, desde o início, que não havia nada mais a fazer. A decisão estava tomada. Eles rejeitariam o Filho do Homem.

Não tenho a intenção de magoar ninguém - disse Jesus delicada­mente, mas com firmeza. - Estou prestes a inaugurar minha carreira como e educador e como um enviado do Pai, e somente aspiro a fazer sua vontade...

Ninguém respirava.

... Por isso, insisto, é que me ajusto sempre para espelhar essa von­tade divina. É por isso que tento selecionar 12 homens que me acompa­nharão nos bons e maus momentos...

A Senhora franziu o cenho. Não gostava daquilo.

A escolha desses 12 homens é a vontade de meu Pai. E eu sempre cumpro a sua vontade.

O silêncio era denso. Parecia chumbo.

A família deve ficar afastada, para sua própria segurança.

Eu acho que nenhum dos presentes captou a sutileza do Mestre. Ninguém, naquele momento, podia imaginar o que estava por vir.

Jesus não se estendeu muito mais.

E acrescentou, com grande ternura:

Não pretendo que aceiteis cegamente a minha mensagem...

Fez uma pequena pausa. Miriam baixou os olhos novamente. A Senhora olhou para ele, desafiadoramente. O restante ficou ouvindo, confuso.

Mas, pelo menos, não me afasteis de seus corações. Vós sois a mi­nha família, e isso nunca vai mudar. Sempre estarei convosco...

Ruth apertou a minha mão. Ela estava ouvindo.

Mensagem recebida.

E ele fechou os olhos. Eu sabia que estava sofrendo duplamente.

O Mestre tinha terminado.

Alguns se retiraram, desconfortáveis. Todos se refugiavam naquele siêncio de chumbo. Bem, nem todos...

A Senhora tomou a palavra e falou em nome do resto.

Ninguém fez um movimento sequer. Ninguém disse que sim, mas tampouco disse que não.

E Maria, sem hesitar, começou a expor as suas condições. Se o Filho do Homem não as aceitasse, não haveria trato; ninguém o seguiria. Sim­plesmente: ele seria deixado sozinho.

Isto é o que eu me lembro:

Primeiro: Tiago e Judas, os irmãos, seriam admitidos como discípu­los. Além disso, seriam a mão direita do Galileu.

O Mestre ouviu atentamente.

Segundo: Jesus teria que se esquecer dessas idéias blasfemas e preten­siosas sobre Abba. Teria que se conformar com a tradição e com a Lei. Ele era o Messias prometido e teria que assumir essa responsabilidade. Teria que cumprir a profecia e conseguir a libertação de seu povo.

O Galileu baixou os olhos. Ele disse: não havia solução...

Terceiro: se ele foi capaz de transformar água em vinho, então podia também curar Ruth e levar Israel ao auge de sua glória. Esse era o seu Destino.

Se ele aceitasse as condições, a família, em bloco, o acompanharia e o protegeria.

Isso foi tudo.

A reunião não durou mais do que 45 minutos.

Nenhum comentário.

Tal como imaginei desde o início, as posturas eram inamovíveis.

Em suma: o Filho do Homem fora rejeitado primeiro pelos anciãos de Nahum e agora pelo seu próprio sangue.

O que aconteceu depois foi vertiginoso e não menos triste.

O Mestre, pálido e em silêncio, se levantou, pegou sua bolsa de via­gem, e se encaminhou para a porta de entrada.

Soltei as mãos de Ruth e fui atrás dele. A menina chorava.

Minutos mais tarde, das colinas, contemplamos a fumaça azul que fugia de Nazaré. Não era de admirar...

Jesus passou vários minutos com o olhar perdido sobre a aldeia. E um par de lágrimas escorria pelo seu rosto.

Aquela segunda-feira, 24 de junho, foi mais um dia amargo para o Homem-Deus.

 

Naquela noite, pernoitamos em Caná, na fazenda de Nathan.

Ticra, ao nos ver, chorou de alegria. Continuava agradecida pelo enorme "favor"... E repetiu isso mais de uma vez, e novamente, ao Fi­lho do Homem.

Nathan amaldiçoou o humano e o divino. Isso significava que ele estava contente com a nossa presença. Eu também me felicitei pela visi­ta inesperada a Sapiah. Foi uma decisão do Mestre. Era mais prudente passar a noite em um lugar familiar. E, como eu digo, eu me felicitei por isso. Essa visita me proporcionaria mais informações sobre a origem do misterioso cálice austenítico.

Durante o jantar, eles nos deram detalhes do casamento.

Havia durado sete dias. Atar, o persa, suportara até o final, mas acabara histérico. Ele era um tricliniarcha profissional e, ao final de seu contrato, desapareceu. Ninguém sabia onde ele estava. Ele poderia estar em qualquer rogar, organizando festas, banquetes, o que quer que fosse preciso...

E quanto ao "vinho prodigioso", como o chamava este escritor, eles o beberam todo. No segundo dia, não restava uma gota sequer. A família foi parabenizada pelos convidados.

Não vimos os recém-casados. Estavam ausentes.

Após o jantar, fui perguntar a Ticra sobre o cálice de metal com que havia sido presenteado o Filho do Homem. A mulher com a pinta em forma de co­ração no queixo me olhou de maneira estranha. Não havia muito que contar...

Ela disse que foi um presente de seu marido. No começo, tinham sido 11 taças. Foram compradas em Tiro, na Fenícia. Ela gostava. Mas não sabia muito mais do que isso.

Insisti e ela puxou pela memória.

O comerciante que as vendera era um grego chamado Thanos. Ele era inconfundível. Era cego e perdera ambas as pernas. Nathan pechinchou e conseguiu que os 11 cálices fossem vendidos por 916 moedas de prata (denários). Tinham estado em casa com eles há anos. Um belo dia, ela se deu conta de que faltava uma das taças.

- Não voltamos a vê-la, alguém a levou...

Pedi que me deixasse vê-las, e ela ficou feliz.

Logo, a serva colocava diante deste explorador um total de nove cálices.

Examinei-os detalhadamente.

Jesus continuava conversando com Nathan, mas não tirava os olhos de mim. Eu o vi sorrir levemente. Fiquei feliz, a tristeza estava indo embora...

Os cálices eram totalmente idênticos. Peguei as taças, uma por uma, e as submeti a uma inspeção completa.

Tinham o mesmo peso, o mesmo polimento, o mesmo material (apa­rentemente) e dimensões idênticas. Pareciam feitas em série (?). Inspecio­nei o interior de cada pé. Todos tinham oito espirais e círculos concêntri­cos, com os já familiares pontilhados.

Fiquei surpreso.

Eram iguais, inclusive no pontilhado!

A olho nu, não se conseguia distinguir nada mais. Será que os pontilhados teriam os mesmos números e símbolos que "Papai Noel" havia detectado no cálice de Jesus em Nazaré? Sem uma análise microscópica, era impossível saber. E eu desisti.

Era tudo que eu poderia investigar... Por enquanto.

E o Destino, eu suponho, sorriu ironicamente.

Ticra lamentou que fôssemos partir no dia seguinte. E voltou a beijar as mãos do Mestre, agradecida.

Naquela noite, eu dormi profundamente.

Pouco depois do amanhecer deixamos Caná, na direção do yam.

O Galileu tinha recuperado seu bom humor. Eu me senti mais tranquilo.

E, de repente, lembrei-me.

Maldito seja!

Esqueci o frasco que havia escondido entre os jarros, pouco antes do milagre. Estava vazio, mas...

Como eu pude me esquecer disso?

Pensei em voltar, mas desisti. O que eu poderia dizer ao Mestre ou a Ticra? Nem tudo estava bem, porque a ampulheta de barro permanecera em Sapiah. O lapso, no entanto, deixou-me preocupado. A memória vol­tara a falhar. Será que eu estava enfrentando uma nova crise? Se a amnésia que eu havia sofrido em El Firan se repetisse, não haveria solução, Eliseu não viria me procurar. Ninguém o faria.

Foi um segundo aviso.

Afastei meus pensamentos desse negro presságio e foquei a atenção em um assunto que me preocupava. Em 19, 20 e 21 de junho deste ano, como será lembrado, o Mestre desapareceu. Ele apenas disse, quando me entregou o cálice, para que eu o guardasse: "Para onde eu vou, ele não pode me acompanhar... e nem tu".

Eu estava ansioso para descobrir para que lugar ele tinha ido e por quê.

Levantei o assunto abertamente.

Jesus, enquanto caminhava, olhou para mim, entretido.

Ele manteve alguns segundos de silêncio, e, em resposta, disse:

- Tu comentas sobre tuas regras com as pessoas que estão à tua volta?

Ele continuou a andar em ritmo acelerado. Eu fiquei para trás. confuso.

Ele estava certo. Tinha razão. Eu não comentava sobre quem eu era na verdade, nem sobre o que estava fazendo no Ravid. Não tinha sentido. E eu deduzi... Bem, não deduzi nada.

Não voltei a perguntar sobre a ausência misteriosa do Filho do Homem

Na quarta-feira, 26, o Galileu voltou a se juntar aos trabalhadores no estaleiro. Não havia notícias dos discípulos. Isso poderia ser bom ou ruim...

Jesus parecia calmo. E me deixei levar pelo dia a dia.

Conversamos muito.

A cada entardecer, descíamos à praia de Saidan e passeávamos sem pressa. Foram sete dias intensos. Eu e Ele nos esvaziamos.

Foi durante essa semana que anunciou que, se assim fosse a vontade de Abba, nos próximos seis meses dedicaria todo o seu empenho em ensi­nar os discípulos. Não daria um passo para longe dali até que a mensagem fosse minimamente compreendida.

Tomei nota. Seis meses. Isso me situava em dezembro daquele ano 26 ou possivelmente no janeiro seguinte.

Eu teria que me organizar...

Organizar-me? Quando vou aprender que o futuro não existe?

Mas o mais notável dessas conversas com o Homem-Deus está para ser contado. Eu não o fiz porque a hora ainda não chegou. O que posso adiantar (e algum dia eu as farei públicas) é que marcaram a minha vida. Sim, nada é como parece... Incluindo o futuro.

E as mensagens misteriosas continuaram a aparecer no travesseiro: "Sonho com você...", "Sei que sonhas comigo...", "Ousa caminhar sem mim..."

Não me lembro de todos eles. Minto. Lembro-me de todos perfeitamente.

"Eu esperava por ti...", "Não importa que te afastes...", "Beija-me ontem..."

E, em 3 de julho, precisando de uma pausa, fui para o Ravid. Eu tinha trabalho a fazer...

Outras surpresas me aguardavam lá, mas de natureza muito diferente...

 

Comecei as investigações pendentes pela peça de jade preto, aquela que eu havia encontrado quando conversava com Yu, o chinês, em seu pavilhão secreto. Como já mencionei, o carpinteiro-chefe do estaleiro negou que fosse sua propriedade. E eu estava intrigado. Como teria che­gado a esse lugar?

"Papai Noel" organizou as análises em três capítulos. E aí começaram as surpresas...

O principal material, como suspeitava, era jadeíta. Nada estranho, exceto por um par de "detalhes"...

A gema viera das minas de Uru, um vale incrustrado em um afluente do rio Chindwin, na Birmânia.

Birmânia?

Isso ficava a mais de seis mil quilômetros de Saidan.

Como foi possível chegar até aqui?

O segundo "detalhe", ainda mais incomum, apareceu ao se perfurar a jadeíta.

Eu estava perplexo.

"Papai Noel" encontrou uma mistura impossível de minerais. Pri­meiro encontrou uma pedra chamada maw-sit-sit, também originária da Birmânia (da região de Namshamaw). Então, no fundo, havia um material que foi identificado como jade "arco-íris".

Eu, novamente, pensei em um erro do computador central. Nada disso. Não houve erro. O jade "arco-íris" era originário dos campos exis­tentes no rio Motagua na Guatemala de hoje (!).

Como eu disse, fiquei surpreso. A América não tinha sido descoberta na época de Jesus de Nazaré. Ou tinha? Como é que os chineses sabiam da existência desses depósitos? Ou não foram os chineses que chegaram até as minas de jade "arco-íris"?

Ao colocar a peça sob a luz ultravioleta de largo espectro, o resultado me deixou igualmente confuso e espantado. O jade respondeu com um brilho roxo-azulado (4.375 A). Era como se tivesse inteligência (inteligência geomântica). E o mais incrível é que o halo violeta, ou violeta-azulado, ia mudando de acordo com meu estado de espírito.

Realizei outros testes e o resultado foi o mesmo. Eu pressumi que a pessoa que o transportasse influenciava o jade. Ou era o contrário?

Eu estava ficando louco?

O segundo capítulo, dedicado à análise do ouro, era mais tranquilizador. O ouro era ouro (menos mal), mas sujeito a um banho químico me fez dele um coloide. Foram detectados tiossulfato de sódio e de ouro e aurotiopropanol, com um teor de ouro acima de 33 por cento. Esses sais proporcionavam algumas propriedades interessantes para o pingente, anti- tóxicas e anti-infecciosas (para ser mais exato: supostamente anti-tóxicas e alegadamente anti-infecciosas).

Nada disso era de estranhar. Os alquimistas chineses, especialmente os taoistas, eram capazes disso e de muito mais.[16]

A última parte da análise era dedicada às dimensões do jade preto. E aqui surgiram outras surpresas desconcertantes.

O diâmetro era de três polegadas, com um comprimento da circunferência de 9,4247787 centímentros. O peso mostrou outra figura reveladora: 3,1415929 gramas. O valor do número "pi"! Mais precisamente, o dos sete primeiros decimais. (Como se sabe, "pi" não tem fim.)

Todos os números, em suma, apareceram vinculados ou sujeitos ao "3", um número sagrado para os taoistas.[17] Não podia ser coincidência. Mas eu decidi não entrar no território do simbolismo misterioso e mágico. A autoridade, nesse caso, era Eliseu.

Eu o daria a Ruth...

E foi a vez do "323", o pergaminho da "vitória".

Não se sabia muita coisa sobre aquele hieróglifo não menos enig­mático. As informações também vieram do Batista.[18] Em outras pala­vras, teve que ser posta em dúvida. Durante a sua estada na garganta de El Firan, ele me explicou que o pergaminho em questão lhe fora forne­cido por uma hayyot (homem-abelha) (?), e durante a permanência de Yehohanan no deserto de Judá (por volta de 36 meses: nos anos 22-24 de nossa era). Eu não consegui descobrir o que ele entendia ser uma hayyot. O gigante de pupilas vermelhas não quis falar sobre isso. Segun­do a tradição judaica, uma hayyot era uma criatura celestial semelhante a um anjo. O profeta Ezequiel (1, 5-28) refere-se às hayyots como seres vivos em forma humana, com quatro faces e quatro asas cada. Algumas escolas rabínicas garantiam que havia um céu habitado por essas criaturas aladas (!). Era um céu enorme, cujo comprimento era equivalente a cem anos de caminhada, com uma altura semelhante à de outros 500 anos de caminhada.

Para o Batista, os números, as estrelas e as letras eram nada mais do que um "plano de ataque para a libertação de Israel". O pergaminho da Vitória" era isso: a vitória do Messias prometido sobre os ímpios.

Desenrolei o pergaminho e o contemplei com espanto. Na garganta a El Firan, como se recorda, não pude tocá-lo. Segundo Yehohanan, era um megillah sagrado, desenhado por uma das hayyot no interior de um merkavah (carro de fogo). A verdade é que não dei crédito às suas palavras loucas.

Loucas? Agora, após a análise realizada por "Papai Noel", não tenho mais tanta certeza...

Os relatórios iniciais tinham sido "normais".

Era uma pele gevil (não aberta em dois), em um couro intacto e bem trabalhado, que tinha pertencido a um asno selvagem. O peso foi de 93,001 gramas. Dimensões: 30 por 93 centímetros. Cor: castanho-claro. Provavelmente foi pintada no sistema de "junco partido", cantado no Salmo XLV. Era um método simples, no qual se utilizava um cálamo, talhado obliquamente e depois partido.

O cheiro do pergaminho era inconfundível: forte e picante.

Procurei tocá-lo com delicadeza.

"Papai Noel" projetou a análise em quatro fases. E aí começou o "impossível"...

Datação.

Eu escolhi a absoluta, aquela que fornece a idade real do objeto. Foi conseguida com um exaustivo rastreamento do pólen existente na amostra (palinologia).

O computador iniciou o processo de racemização de aminoácidos [19] e confirmou os resultados com o método "K-Ar" (potássio-argônio).[20]

Não havia dúvida. Os procedimentos coincidiram: o pergaminho ti­nha uma antiguidade mínima. Naquela época (ano 26) era praticamente de "ontem". Foi datado em 23 d.C.

Batista, portanto, não estava mentindo. O pergaminho da "vitória" era contemporâneo, de sua época.

Microscopia.

Graças à microscopia óptica e à eletrônica de varredura (em um sistema nanotecnológico que não estou autorizado a descrever), "Papai Noel" analisou todos os detalhes possíveis sobre a cor, morfologia e tex­tura do "323". Foi utilizada luz polarizada.[21] Esse tipo de microscopia permitiu o estudo de pigmentos e forneceu informações sobre a exe­cução das técnicas de desenho, assim como sobre os aglutinantes (aos experimentos foi acrescentada a técnica de "teste microquímico ponto de gota"). Veio a primeira surpresa...

Tintas.

Para o exame das tintas que supostamente foram utilizadas na preparação do pergaminho da "vitória", o computador central se ba­seou em um método relativamente semelhante (não idêntico) à es­pectroscopia chamado "Raman"[22], com base em variações de frequência da luz quando ela interage com as vibrações moleculares do objeto ou da amostra a ser estudada.

Encontramos os elementos habituais das tintas usadas na época: fuligem, procedente do carvão, e "deyo", uma mistura de fuligem com água e goma-arábica. Quanto à fuligem de pinho e do óleo queimado nas lâmpadas, tinham sido adicionados a ela musgo e gelatina de ori­gem animal.

Também encontramos ferro e cálcio. O primeiro poderia vir dos instrumentos utilizados na fabricação do pergaminho. "Papai Noel" não tinha certeza. Quanto ao cálcio, o mais provável é que sua origem esti­vesse na água contida no próprio pergaminho ou que tivesse sido utilizada nas fases de elaboração do suporte. Havia cloro e manganês, mas em proporções minúsculas. O restante dos ingredientes das tintas era normal... Ou quase.

A tinta vermelha utilizada nas estrelas era do tipo metalogálica, com uma porcentagem significativa de escarlate.

Também apareciam restos de sikra, um corante extraído de uma co­ca milha comum na costa da Fenícia.

Foi a partir da análise das tintas que começaram a surgir os "impossíveis"... E em cascata.

Deixe-me explicar.

O primeiro "impossível" era a anilina.

Esse derivado orgânico não apareceu no mundo até o século XIX. Como aparecia em um pergaminho do ano 23?

Segunda surpresa: "Papai Noel" detectou vestígios de fucsina, um corante vermelho, muito bonito, derivado da oxidação da anilina usando tetracloreto de estanho.

Impossível!

A fucsina foi obtida em 1859 por Verguin, um químico de Lyon (França).

O que está acontecendo?

Eu poderia estar louco, mas o computador central estava completa­mente são...

Anilina e fucsina na pintura dos hieróglifos?       

O terceiro "impossível" surgiu ao mergulhar nas letras centrais ("Yaveh"), bordadas em ouro.

Este explorador cometeu outro erro. Não era um bordado em ouro, mas sim letras pintadas na cor amarela, com um relevo mais que notável. Eu vi de longe e, como disse, eu estava errado. Bem, a pintura amarela em questão era Ti02 (anatásio), outro produto "moderno" descoberto em 1923. Os cristais sintéticos eram inconfundíveis.

Tive que parar as investigações.

Eu não conseguia entender...

Em breve retomei os testes, garantindo-me com a cromatografia lí­quida de alta resolução. Não havia erro. Aquilo era mesmo anatásio. E apareceu também o ácido carmínico, um elemento específico da tinta que se extrai do quermes, um inseto que vive nos galhos do carvalho, da macieira e da pereira.[23]

Algo parecia evidente. Alguém teve o cuidado de misturar o antigo e o novo nas tintas utilizadas para desenhar as imagens.

Este explorador não superava seu espanto...

Estudo das estrelas e dos círculos.

"Papai Noel" deu um veredicto: a incrível semelhança entre as 42 estrelas vermelhas e as 8 negras não era compatível com um artista que as tivesse desenhado à mão. O mesmo acontecia com os círculos. O com­putador não percebeu as variações lógicas que deveriam aparecer em um trabalho manual. Em outras palavras, as estrelas estavam suspeitamente semelhantes, bem como os seis círculos.

"Papai Noel" adiantou uma explicação: as estrelas e os círculos eram "cópias", coladas ao pergaminho.

Eu me recusei a aceitar a conclusão do computador central.

E solicitei verificações complementares.

Foram realizados testes de reflectografia infravermelha, espectrò- metro, fluorescência ultravioleta, macrofotografia e fotografia com luz rasante.

Não havia fotos ou desenhos embaixo.

E "Papai Noel", sob a minha responsabilidade, começou a desgrudar uma extremidade de uma estrela negra.

Surpresa! A enésima...

O computador estava certo: as estrelas e os círculos foram colados no pergaminho. A cola adesiva - à base de amido - era a usada na época.

Eu tinha que me render à evidência.

O "323" foi manipulado, e por alguém que conhecia as técnicas e os ingredientes da pintura moderna.

Tentei sintetizar as descobertas.

O pergaminho da "vitória" era daquela época (ano 23) e também parte da tinta usada no desenvolvimento do hieróglifo. Mas não era o caso de alguns dos ingredientes dos pigmentos. Eles eram modernos. E quanto à confecção das estrelas, o que se podia pensar?

O assunto me lembrou, de certa forma, a fraude do mapa de Vinland, um mapa que mostrava a Groenlândia e partes do Canadá e que, a princípio pensou-se ter sido elaborado no século XV.[24]

Seria possível considerar o "323" como uma fraude? Sim e não.

O que ficou claro é que alguém tinha colocado a mão naquilo, e esse alguém não tinha nada a ver com Yehohanan e sua época. Mas porquê? Qual era o propósito disso? E o mais importante: o que realmente significavam os hieróglifos? Eles se referiam a esse momento histórico? Eu duvidava, mas não quis me aprofundar nisso. Não quis saber... Ou melhor: eu prefiro não saber...

E voltaram à minha mente as palavras significativas do Batista: "É um megillah sagrado! Foi feito pelas mãos das hayyot!"

O que viu e viveu o gigante de olhos vermelhos durante esses 36 me­ses no deserto de Judá?

Talvez ele não estivesse mentindo...

Abner, em suas memórias, falou de "eventos extraordinários".

A que ele se referia?

E cheguei a uma decisão firme: eu tinha que tentar de novo, tinha que falar com Yehohanan e descobrir o que aconteceu no retiro do deserto.

Homem-abelha? Por que ele falava dessa criatura (?) como sendo a autora do "323"? Yehohanan afirmava que fora uma hayyot, ou "vivente", com o aspecto de um "homem-abelha" (?), quem desenhara o pergami­nho da "vitória"; e fê-lo também no interior de um merkavah ou "carro de fogo capaz de voar". Essas foram as suas palavras.

Não pude evitar. Vieram ainda à minha mente as imagens das mis­teriosas "luzes" que havíamos testemunhado em várias ocasiões. Será que elas teriam algo em comum com a elaboração e a entrega a Yehohanan daquele pergaminho?

Minha intuição disse que sim...

Interrogar o Batista? Mas como?

Ele estava na prisão.

Antipas não me deixaria chegar perto dele. Ou deixaria?

O destino, novamente, teria a última palavra.

É claro, eu estava disposto a tentar. Sim, eu faria isso o mais rapida­mente possível. Perguntaria ao Batista sobre as hayyot.

O que mais aconteceu no deserto de Judá?

Os discípulos se apresentaram em Saidan pouco antes do pôr do sol, no sábado, 6 de julho. Eu desci do Ravid no dia anterior.

Guardei a bolsa embreada e malcheirosa no "pombal" e decidi devol­vê-la o mais rapidamente possível.

Pensei em Abner. Faria isso. Entregaria o pergaminho da "vitória" ao pequeno grande homem.

Os "heróis" entraram no casarão dos Zebedeu aos brados. Jesus es­tava na praia.

Eles se encontravam eufóricos.

Salomé e as filhas trataram de averiguar o que estava acontecendo. Impossível. Eles falavam todos ao mesmo tempo.

Perguntaram pelo Mestre.

Eles tinham acabado de regressar da viagem pelo yam. Pelo que en­tendi, exceto os Zebedeu, nenhum deles tinha passado por suas respecti­vas casas. O povoado ainda não sabia do retorno deles.

Salomé explicou que o Galileu, provavelmente, se achava às margens do lago. E os seis correram para a escada que ligava o casarão à referida praia.

O "urso" de Caná tropeçou e rolou pelos degraus. Levantou-se mais rápido do que havia caído. E, mancando, se dirigiu até o Filho do Homem. Ele foi a último a abraçá-lo. Quem isto escreve ficou em se­cundo plano, observando e, certamente, atônito. A que se devia tanto alvoroço?

Durante alguns segundos foi impossível entender e se fazer entender. Tal como havia acontecido no casarão, os seis falavam, ou melhor, gritavam todos juntos.

O Mestre, recém-asseado, com os cabelos soltos, olhava de um para o outro, e tentava ouvir. Ele teve que levantar as mãos e pedir um pouco de calma.

André compreendeu e assumiu o comando.

O Mestre então se sentou ao pé de um dos barcos e os discípulos fizeram o mesmo ao seu redor. Uma distante brisa surgiu e, curiosa, agitou suas túnicas. Todos olhavam para o Filho do Homem como se tivessem acabado de conhecê-lo. Seus olhos brilhavam, e o sol, eu tenho certeza, se esforçava para não ir embora. Ele também queria ouvir os íntimos. O que tinha acontecido naquela primeira aventura?

André foi concedendo a palavra, um após o outro. Mas a ordem nem sempre era respeitada. Eles acabaram falando ao mesmo tempo, e André e o Mestre tinham de voltar a solicitar calma.

Foi a partir desse entardecer que André começou a receber, como de costume, o sobrenome de segan, que poderia ser traduzido aproximadamente como "chefe", ainda que seu verdadeiro significado em aramaico fosse o "governador ou comandante supremo". An­dré ganhou o pseudônimo não só porque foi o primeiro discípulo de Jesus, mas principalmente pela sua serenidade e capacidade de organização.

"Foi a experiência mais intensa da minha vida."

Assim se expressaram. Todos concordaram.

"As pessoas estão com fome de consolo... Elas escutam com espe­rança... Desejam saber mais sobre o Pai Azul, tão diferente de Yaveh..."

O Galileu os ouvia com atenção. Seus olhos da cor do mel também brilhavam muito. Eu sabia que ele estava satisfeito.

E o sol, não menos satisfeito, se deixou cair no horizonte do mar de Tiberíades e se despediu vermelho, belíssimo e eloquente...

"Tu és o Messias das Escrituras... É preciso que fales com o teu povo... Tudo é medo e escuridão, mas tu és a luz ..."

Os discípulos, segundo o que contaram, haviam conversado com uns e com outros. Eles foram os primeiros a ficar surpreendidos. Não fora tão difícil. Quando chegava a hora de falar, se produzia um estranho e emo­cionante fenômeno: era como se alguém falasse por eles.

Eles fizeram o que o Galileu solicitara. Não pregaram em público. Eles se limitaram a visitar os amigos e tentaram conhecer seus problemas, Era o que o Mestre pretendia: que tivessem contato com seus semelhantes e que vivessem uma primeira experiência apostólica.

Como eu digo, eles regressaram encantados e cheios de otimis­mo. Suas ideias sobre o Messias não haviam mudado, mas isso não importava naquele momento. Foi o batismo de fogo de alguns ho­mens que jamais imaginaram que um dia terminariam caminhando de povoado em povoado e falando de um "reino invisível e alado! Isso, pelo menos, foi o que aconteceu na vida do Mestre. Além disso, após a morte do Filho do Homem, as coisas mudaram. Mas isso e outra história...

No jantar, ante a expectativa da família Zebedeu, cada discípulo se­guiu contando e contando, e anunciaram quem eram os seis novos discí­pulos e como haviam chegado até eles.

Foi então que eu me vi surpreso novamente. Não podia acreditar no que ouvia.

Irei por partes e na ordem.

O primeiro a falar foi o "chefe" (André), que formava um par com Pedro. Explicou como haviam perambulado por Nahum e como fi­nalmente se decidiram por Mateus Levi, o gabbai ou arrecadador de impostos, que trabalhava na aduana, ao leste do povoado. André o co­nhecia há tempos e não sabe por quê, mas pensou nele. André chegou a Mateus, contou para ele sobre o Messias prometido e sobre o futuro reino, e o animou a integrar-se ao recém-organizado grupo. Mateus Levi disse que tinha que pensar e, sobretudo, que queria saber algo mais sobre o suposto Messias. Ficaram de se encontrar em um outro momento.

Houve algumas críticas. Em especial por parte dos Zebedeu. João e Tiago também conheciam Mateus e sua família. "Não é má pessoa - ex­pressou João - mas é cúmplice dos kittim (romanos). Seria melhor pensar em outra pessoa."

O silêncio se fez presente e esperaram uma resposta de Jesus. O Gali­leu conhecia Mateus. Em Nahum, praticamente todos se conheciam.

Lembrai-vos - respondeu o Mestre. - Abba não tem favoritos...

A maioria aceitou. Só João continuou renegando.

Simão Pedro foi o próximo a relatar sua experiência. Escolhera : Zelote. Ele vivia em Nahum. Havia sido mercador, mas agora trabalhava para a organização dos zelotes, o braço armado dos "santos e sarados" que já mencionei em outras oportunidades. Simão, o Zelote, era um membro ativo da organização terrorista que guerreava, como podia, contra Roma. Todo o povoado de Nahum sabia disso. Jesus, naturalmente, também sabia. Pedro propôs a ele ser discípulo do Galileu.

E João Zebedeu falou por ele e por seu irmão:

Será um grande discípulo. Ele sabe lutar contra os ímpios.

Assentiram.

Jesus, como eu falo aqui, ficou impassível.

E foi a vez do segundo par, formado por João e Tiago Zebedeu.

Naturalmente, foi João quem explicou o que aconteceu:

Meu irmão e eu pensamos muito e chegamos à mesma conclusão. Os irmãos Alfeu, de Kursi, são o melhor do melhor: trabalhadores, disciplinados e obedientes... São pescadores. Gente de pouco cérebro, mas de grande coração...

A maioria encolheu os ombros. Não conheciam os Alfeu (Tiago de Alfeu e Judas de Alfeu), os gêmeos.

Terminada a exposição, o Mestre interviu:

João, tu não sabes, mas é o meu Pai dos céus e sua gente quem escolhem...

O Mestre olhou para mim.

Mensagem recebida.

Os discípulos não souberam a que Ele se referia.

Em seguida falou Felipe de Saidan. E quem isto escreve não podia imaginar que me aguardava uma nova e desconcertante surpresa...

Felipe e Bartolomeu, o "urso" de Caná, se dirigiram à povoação na região sul de Tariqueia, muito próxima da segunda desembocadura do Jordão. Felipe explicou, e Bartolomeu ia assentindo com a cabeça:

Ali nós permanecemos uns dias, confusos e receosos. Não sabíamos o que fazer. Não tínhamos a mínima ideia de para onde ir, nem a quem selecionar. Não conhecíamos praticamente ninguém. E num belo dia...

Na terça-feira - corrigiu o "urso".

Isso, na terça-feira passada (dia 2), quando visitávamos um dos secadouros de peixe, vimos Tomé e Judas.

Não - interviu de novo Bartolomeu não foi assim.

Está bem - se resignou Felipe. - Então conta...

Encontrávamo-nos naquele secadouro, e de fato não sabíamos o que fazer. Haviam transcorrido nove dias desde a nossa partida. Faláva­mos com as pessoas, mas não tínhamos claro quem eleger. Não sabía­mos... Ali trabalhava um grupo de obreiros. Eles estavam trabalhando com os peixes e com os cântaros...

Jesus permanecia atento à narração do "urso".

E, então, aquele sujeito tão estranho se aproximou...

Estranho? - perguntou Pedro. - Por que estranho?

O "urso" olhou para Felipe e o de Saidan fez uso da palavra de novo:

Ele era muito alto. Como o Mestre, ou mais... Vestia uma túnica sem mangas. Era estranhíssima. Ela brilhava conforme a luz batia...

Senti um arrepio. Eu conhecia essa história; melhor dizendo, esse personagem...

Não entendo...

O comentário de João foi muito oportuno.

Quero dizer que ela brilhava com diferentes cores. Quando o su­jeito estava na sombra, a túnica reluzia em vermelho, ou em azul, ou em verde, ou em preto, segundo...

Os discípulos escutavam com a boca aberta. Suponho que não acre­ditaram na história de Felipe.

Eu estava perplexo.

O caso é que o homem veio até nós - continuou o de Saidan - e disse:

"Olha para esses dois..."

Ele se referia a Judas e a Tomé.

"São o que tu buscas..."

E sorriu com um sorriso incrível.

Nunca tinha visto um sorriso igual - completou o "urso".

O sujeito do sorriso encantador!

Os discípulos seguiam espantados e incrédulos.

Depois ele se distanciou. O corte do cabelo também era muito es­tranho. Levava no cinturão uma estrela de seis pontas, como o escudo do rei Davi...

Foi assim que chegamos até Tomé e Judas, chamado o Iscariotes.

O Mestre não pôde evitar e me procurou com o olhar. Eu, supo­nho, deveria estar pálido. E o Filho do Homem sorriu levemente, com ar de astúcia.

Tomé, em teoria, foi selecionado por Felipe. Vivia em Tariqueia. Era carpinteiro, assentador de pedras e o que mais fosse necessário.

E Iscariotes, ao que parece, se encontrava ali de passagem. Foi "escolhido" por Bartolomeu.

E Jesus solicitou de seus homens que submetessem à votação o que haviam ouvido.

A seleção foi aprovada.

E os seis seguidores prosseguiram contando e contando. Como eu digo, estavam ali felizes e entusiasmados. A primeira viagem fora um êxito.

Finalmente, o Mestre recordou que deveriam regressar para casa, para suas famílias. Eles haviam se esquecido delas...

Ao despedir-se deles, o Galileu deu instruções a André, o segan: na segunda-feira, dia 8 de julho, eles empreenderiam uma nova caminhada pelo yam e visitariam os que eles haviam proposto como novos discípulos.

"Sairemos à procura deles", comentou o Filho do Homem.

Eu me retirei, desconcertado.

A seleção dos seis últimos apóstolos não teve nada a ver com o que foi narrado nos evangelhos. O que eu estava estranhando?

Não foi Jesus quem escolheu, senão os próprios discípulos. Pelo menos, na teoria...

Esta noite precisei de tempo para pegar no sono.

Tentei colocar minhas idéias em ordem...

O que foi que eu presenciei?

A designação de Mateus Levi, o publicano, o cobrador de impostos, não foi bem recebida; especialmente pelos Zebedeu. A de Zelote, em contrapartida, foi bem acolhida. Quanto à seleção de Iscariotes, ninguém se pronunciou, nem a favor nem contra. Também era certo que, com exceção de Felipe e do "urso", o restante o conhecia (todos tinham sido discípulos de Yehohanan). E eu me perguntei: como Judas Iscariotes vivenciou o aprisionamento de seu ídolo, o Batista? O que ele fazia em Tariqueia?

Em breve eu ia averiguar isso...

O certo é que nada disso foi contado pelos chamados "escritores sagrados".

Mas aqueles pensamentos foram subitamente interrompidos.

Ouvi passos no pequeno corredor da casa.

Prestei atenção. Eram passos rápidos.

Logo pararam e se detiveram justamente em frente à minha porta.

Fiquei alarmado. Era tarde. Nós nos encontrávamos na segunda vigí­lia da noite (12 horas). Todos dormiam.

Alguém estava do outro lado. Acreditei ter ouvido uma respiração.

Peguei o candeeiro de barro e fui até a porta. Então eu a abri de uma só vez.

Ninguém. Ali não havia ninguém...

Fui dar uma espiada no curral.

Somente percebi a escuridão da noite.

Porém, quando eu voltava, acreditei ver uma sombra. Foi um segun­do. Desapareceu entre as casinhas. Pareceu-me ser uma mulher...

Uma mulher? A estas horas? Que estava fazendo ela em frente ao "pombal"?

E uma idéia iluminou a minha mente: seria ela a responsável pelas mensagens secretas?

Por certo, além disso, fazia dias que não recebia nenhuma...

Desconsiderei aquele pensamento. Quem sabe eu estivesse nervo­so. Podia tratar-se de uma simples casualidade. Alguém esqueceu algu­ma coisa e subiu até o "pombal". Isso é ridículo - rebati a mim mesmo. - Nestes quartos, os únicos que estão aqui são Jesus de Nazaré e quem isto escreve. E o Mestre dorme já faz um bom tempo... Ninguém teria como esquecer nada. Porém, e então?

Sempre fui desajeitado com as mulheres; já comentei isso em vá­rias ocasiões...

Esta foi uma delas.

Contudo, tentarei prosseguir com o que me coube viver naquela des­concertante aventura, e tentarei narrar com um mínimo de ordem...

 

Os discípulos passaram pouco tempo com as suas famílias.

Na manhã seguinte, domingo, eles se apresentaram no casarão junto com as primeiras luzes do dia.

Jesus e este explorador estávamos tomando o café da manhã. O Mestre contava seus planos. No dia seguinte, segunda-feira, 8 de julho, tinha previsto iniciar uma pequena viagem pelo yam, já anunciada aos discípulos, com o propósito de visitar os "novos". Assim, Ele chamaria os seis apóstolos selecionados pelos três pares.

Simão Pedro e Felipe pareciam particularmente alarmados. E não era para menos...

Quase não podiam falar.

Eu supus que a excitação do dia anterior estivesse ainda perdurando, mas não. A questão era outra.

E foi André, o que estava mais tranquilo, quem iniciou a explicação do que havia acontecido.

Segundo contaram Perpétua e Zaku, esposas de Pedro e Felipe, res­pectivamente, na segunda-feira, 24, no dia seguinte ao início da viagem pelo lago, quando o Mestre e quem isto escreve nos encontrávamos em Nazaré, alguém bateu à porta da casa de Pedro e de Felipe. Primeiro foi à de Perpétua. Era um personagem estranho, que causou uma vívida impressão a todos que o viram. Era muito alto, com uma vestimenta incomum, um sorriso encantador.

Lembro que engasguei com o leite quente.

O Galileu me auxiliou com umas amáveis palmadinhas nas costas. Eu o vi sorrir, com um ar divertido.

Em resumo: segundo Perpétua, aquele homem lhes entregou uma bolsa com uma importante soma de dinheiro: 413 denários de prata. E ao repositar a pequena fortuna nas mãos da esposa de Pedro, comentou: "De parte de Abba... e sua gente".

E então ele se afastou.

Isso ocorreu na sexta hora (meio-dia).

Pouco depois, sendo a nona hora (três da tarde), a cena se repetia. mas desta vez foi à porta da casa de Felipe, também em Saidan. A quantidade de moedas de prata foi a mesma, e também o comentário do "mensageiro".

Aquele dinheiro era suficiente para o sustento das famílias pelo me­nos durante um ano, ou até mais.

Salomé e as filhas conheciam o assunto. Perpétua e Zaku haviam comentado o fato.

Eu os questionei discretamente e a resposta coincidiu: era o mesmo personagem que falara com Felipe e com o "urso" e que "recomendara" Tomé e Iscariotes quando os discípulos se encontravam no secadouro de Tariqueia.

E eu me lembrei das palavras do Mestre a Zaku, em frente à "casa das flores", quando a mulher mostrou interesse sobre a sobrevivência das famílias:

- Confia!... Nada vos faltará enquanto eles estiverem fora. Meu Pai e sua gente vão a um passo à frente de vós...

Pedro e Felipe traziam os denários. Desejavam que o velho Zebe­deu administrasse o dinheiro e lhes proporcionasse algum rendimento.

Solicitei as bolsas e examinei o conteúdo.

De fato, eram denários de prata!

E observei algo estranho: eram moedas reluzentes, como se tivessem acabado de sair da forma.

E por que 413 em cada bolsa?

Senti-me perdido.

Devolvi os denários e, ao olhar para o Mestre, ele me respondeu com uma piscadela.

Mensagem recebida, claramente.

Sempre me perguntei: o que teria ocorrido se este explorador tivesse podido analisar uma daquelas moedas? Mas, deixa estar... Já tinha bastan­te a pensar com o que tinha...

O resto do dia, eles o dedicaram para conversar.

Na manhã seguinte, segunda-feira, como estava previsto, Jesus e os seis embarcaram rumo a Nahum. Eu fui com eles.

Era cedo. Talvez oito da manhã. O céu parecia limpo e os ânimos, para dizer a verdade, notavelmente mais relaxados. O misterioso apa­recimento do dinheiro operou o milagre: as famílias se tranquilizaram - algumas mais, outras menos. As Zebedeu, por exemplo, se pergun­taram por que a Perpétua e Zaku sim e a elas não. Os comentários chegaram aos ouvidos do Mestre. A explicação para quem isto escreve era simples: Perpétua e Zaku não dispunham dos recursos econômicos dos Zebedeu.

O grupo atravessou Nahum e se encaminhou diretamente à aduana, localizada a leste. Eu conhecia aquele velho edifício de pedras negras.

Mateus Levi atendia em um pedágio. Registrava as bolsas de um par de caminhantes.

André, que foi quem o selecionou, esperou perto dali. O resto ficou à beira do caminho. João Zebedeu parecia desgostoso.

Observei o futuro discípulo. Ele agia com a calma de sempre, sem agonias. Vestia a sua habitual túnica de linho branco. Ao terminar, Mateus foi em direção a André. Falaram por um minuto.

O publicano parecia surpreendido. Depois eu soube o motivo: ele quase havia esquecido a proposta de André.

Aproximou-se do Mestre e o olhou de frente. Como eu disse, eles se conheciam de vista.

Tudo foi muito rápido e intenso.

Mateus sorriu com timidez, sem saber o que fazer. Contudo, o Filho do Homem, como sempre, facilitou as coisas. Olhou intensamente para o rublicano e se limitou a comentar:

- Segue-me!

Isso foi tudo.

Mateus ficou tão atordoado e tão impressionado com aquele olhar da cor de mel líquido que não conseguiu dizer uma só palavra.

O grupo o felicitou, com exceção feita a João Zebedeu. No entanto, o novo discípulo precisou de alguns segundos para reagir.

André o incentivou a pegar suas coisas. Mateus entrou na aduana, pegou e trouxe consigo uns megillah (pergaminhos) e seguiu o grupo.

Pouco depois, entrávamos na casa de Mateus, em Nahum. A família ficou desconcertada. Melá, a esposa (cujo nome poderia ser traduzido como "a que está repleta"), não entendia nada, e protestou porque Mateus não a havia avisado. E, grunhindo, foi para a cozinha. Mateus nos convidou para almoçar.

Jesus falou de novo sobre o reino, porém Mateus estava mais atento ao assunto da comida e a que tudo estivesse a bom gosto dos convidados. Disse sim para quase tudo e agradeceu ao Galileu "por ter-lhe admitido entre os eleitos". O publicano sabia que os vizinhos o depreciavam e aquele gesto do Mestre o encheu de satisfação e de sincero agradecimento. Melá não voltou a aparecer.

E, já na porta da grande casa, Mateus se voltou para André e propôs celebrar um jantar em homenagem ao Mestre e como sinal de boas-vindas a esse "reino tão promissor".

André transmitiu o recado para o Galileu e este aceitou, encantado. A reunião ficou marcada para este mesmo fim de tarde, começo de noite, após o pôr do sol.

Minutos depois, por sugestão do Filho do Homem, Simão Pedro nos conduziu pelas ruas de Nahum até o cais. Ali esperava um segundo reco­nhecimento oficial por parte do Filho do Homem.

Pedro entrou em um dos armazéns do referido cais. Em um letreiro, logo na entrada, se esclarecia a natureza do lugar: uma empresa dedicada à fabricação de caixas de madeira para o armazenamento de peixe. Simão, o Zelote ou Zelota, trabalhava na dita empresa ainda que, em realidade, se tratasse de uma fachada para esconder a organização terrorista zelote.

Pedro não demorou em regressar para o cais. Chegou em companhia do Zelote. Creio que Jesus e ele já se conheciam, igualmente de vista.

O Zelote inspecionou o Mestre e também o grupo. Parecia confuso. E desconfiou.[25] Entretanto, Pedro lhe sussurrou algo ao ouvido.

Acariciando a barba crescida, o Zelote fixou o olhar no Filho do Homem.

E o mesmo aconteceu como antes, na aduana. Foi Jesus de Nazaré quem fez fácil o difícil.

O Mestre caminhou até os Simões e foi colocar as mãos nos ombros do Zelote.

Jesus olhou o guerrilheiro e o inundou.

- Segue-me!

Foi a única coisa que Ele disse.

O Zelote pestanejou, desconcertado.

O que continha o olhar daquele Homem? Até onde chegava o seu poder?

E o Zelote voltou a entrar no armazém. Dentro de poucos instantes o vimos regressar e, sem uma palavra, se uniu ao grupo. João Zebedeu estava feliz.

Naquela noite, como havia planejado Mateus Levi, nós jantamos em na casa. Ele vivia na região norte, no bairro das casas. Sua morada era esplêndida, muito ao estilo grego, bem decorada, com muitos mármores, estátuas e fontes. Tudo ali era bem servido.

O arrecadador de impostos foi rápido em convidar os outros gabbai, tão "pecadores" quanto ele, segundo o modo de sentir dos judeus. E lá de reuniu a flor e a nata dos "traidores do povo de Israel", segundo João Zebedeu. O discípulo soltava maledicências sem parar...

Também foram convidados os notáveis de Nahum, mas a maioria, ao saber que se tratava de uma homenagem ao "carpinteiro louco", arranjou uma desculpa e recusou o convite. Os fariseus, mórbidos, eles sim acabaram comparecendo.

E logo descobrimos que alguns dos "santos e separados" que se reu­niram na ampla casa de Mateus eram os mesmos que tinham insultado e agredido o Mestre às portas da sinagoga.

Foi uma situação estranha, desconfortável e violenta. Simão Pedro ia de um lado para o outro, furioso. O Filho do Homem teve que acalmá-lo.

Melá, a jovem esposa de Mateus, falou com André em diversas oca­siões. Eu estava perto. Ela estava indignadíssima.

"Que história era essa que seu marido contava? O que era esse novo reino em que Mateus chegaria a ser ministro das finanças? Por que ele havia deixado o trabalho na aduana? Que futuro lhes aguardava?"

André fez o que pôde, mas não foi o suficiente. O "chefe" tampouco sabia. E Melá continuou com sua zanga. A verdade é que, pela forma como os discípulos falavam, a mulher tinha toda a razão...

Antes do jantar, animados pelo vinho, João Zebedeu e Simão, o Zelote, levantando uma causa comum, discutiram longamente com os publicanos e os tacharam de "mendigos a serviço dos kittim". André se viu na necessidade de intervir uma outra vez e apaziguar os ânimos.

- Porém, tudo isso - resumiu João - está a ponto de mudar... O Mes­sias cortará o pescoço da grande meretriz.

Ele se referia a Roma.

Por sorte, os vapores do vinho fizeram efeito com rapidez e ninguém prestou atenção ao acalorado discurso de João.

O Mestre se mostrou cordial com todos, inclusive com os fariseus. Ele parecia ter esquecido os empurrões e chutes que lhe deram ao sair da sinagoga. Em nenhum momento falou do Messias, tampouco do Pai ou do novo reino. Restringiu-se a seguir a corrente de algumas conversas, essas totalmente sem sentido ou significado.

E o jantar chegou.

Eu sentei-me perto de Simão Pedro e Bartolomeu.

E, como era de costume, o anfitrião abriu a rodada dos brindes:

Pelo Mestre! Pelo novo reino, que tirará todos da escuridão!

Poucos levantaram as taças.

Outros também brindaram.

Por Roma! Pela paz e pela ordem!

As opiniões estavam divididas.

Pela liberdade!

O brinde de Simão, o Zelote, foi seguido pela minoria.

Finalmente, o Mestre levantou-se e se fez silêncio.

Levantou a taça e proclamou:

Lehaim! Pela vida!

Mateus, entusiasmado, se uniu ao desejo de Jesus de Nazaré:

Lehaim!

E os finos cristais das taças chocaram-se suavemente.

Pela vida! - repetiu o Galileu.

Notei um murmúrio de desaprovação entre os "santos e separados".

Parece que eu entendi. Não compartilhavam o feito de que o Mestre brindara com um "pecador", contudo não lhes importava sentar-se à mesa desse gabbai e desfrutar (gratuitamente) de sua comida. O Mestre os qua­lificaria de "hipócritas" e tinha razão.

Em um dado momento, um dos fariseus, vermelho de raiva, se apro­ximou de Simão Pedro e comentou em voz alta:

Como podes dizer que esse Homem é justo?

Pedro o olhou sem compreender.

Ele está comendo com publicanos e pecadores! Não vê? E um frívolo!

O discípulo se agitou, disposto a esmagar aquele verme, mas o "urso" o segurou a tempo.

Minutos depois, incapaz de conter-se, Pedro foi até o local onde o Mestre estava sentado e o informou sobre o que havia ocorrido. Jesus ou­viu em silêncio e continuou focado em si mesmo, conversando com Ma­teus. Pedro se voltou pálido e confuso. E manifestou:

Teria que lhes dar uma lição...

E o jantar transcorreu sem maiores incidentes.

Fiquei pensativo.

Os problemas seguiam rondando, como uma matilha de lobos...

Chegado o final do evento, tal como marcava o costume, o convidado de honra pronunciou umas palavras de despedida.

Jesus, bem sério, disse o seguinte:

Estamos aqui para dar as boas-vindas à nova irmandade de Mateus Levi e Simão... Traz-me satisfação presenciar a vossa alegria, entretanto, em verdade, eu vos digo que isto não é nada...

O vinho havia feito estragos. Poucos prestavam atenção. Contudo, o Galileu continuou:

... Deveis vos regozijar porque, algum dia, todos vós desfrutareis de uma alegria e de um vinho que não podeis sequer imaginar... Será a alegria e um vinho invisível do reino que vos anuncio: o dos céus.

Houve uma pausa, e se virou, olhando diretamente aos "santos e separados". Então proclamou:

E aos que me criticam porque como e bebo com os publicanos e recadores, deveis saber que estou aqui para despertar os que dormem, para libertar os que estão presos em si mesmos e para remover o véu do medo...

Os fariseus se remexeram, incomodados.

Porém, o Mestre não havia terminado.

... Tenho que recordar a vós que os sábios, como vós, não necessi­tam de luz? Não vim para despertar os justos, senão os que vós chamais de "pecadores". Venho para bater à porta dos confusos, e não à vossa...

Jesus voltou a se sentar, e os fariseus, muito alterados, optaram por sair da sala. Nem se despediram de Mateus.

Os problemas estavam se aproximando...

O Zelote, com mais vinho do que o desejável, tomou a palavra e ini­ciou um titubeante discurso sobre a necessidade de que os arrecadadores que estavam a serviço de Roma se unissem à causa nacionalista.

André, de reflexos rápidos, soube interpretar que a intervenção do guerrilheiro não era oportuna e se ocupou engenhosamente de silenciar o recém-estreado discípulo.

Praticamente foi aí que o jantar terminou.

Essa noite nós dormimos, e muito confortavelmente, na casa de Mateus.

Jesus falou a sós com o gabbai e o fez pelo tempo de quase uma hora. Mateus jamais falou sobre essa conversa que ele teve com o Homem-Deus. O certo é que, depois da dita conversa, o publicano não voltou a referir-se a si mesmo como o "futuro ministro das finanças".

Melá se dedicou a chorar. E o fez desconsoladamente.

Na manhã seguinte, terça-feira, 9 de julho (ano 26), Jesus e os seus se colocaram a caminho. E embarcamos em Nahum, rumo à cidade de Kursi, na margem oriental do lago.

Era a quinta hora (11 da manhã) quando desembarcamos sem no­vidades.

O dia prometia ser quente.

Kursi, às margens do rio Samak, tinha uma das populações mais pujantes da costa leste do mar de Tiberíades. Eu a havia observado lá de cima.[26] Era branca e negra, populosa, com uma importante frota pesqueira. Frente à desembocadura do Samak (em aramaico signifi­ca "peixes") se estendia uma ampla área de rochas. A favor desta cir­cunstância, Kursi se convertera em um centro nevrálgico do comér­cio pesqueiro. Ali viviam, em paz, diferentes raças, credos e línguas. Consistia, além de tudo, de uma região selecionada por Roma para o assentamento dos soldados veteranos (legionários e mercenários), es­pecialmente das legiões estacionadas na vizinha Síria. Abundavam as vilas de lazer, bordéis e fazendas de gado suíno, a maioria gerenciada por pagãos (o porco, como se poderá recordar, é um animal proibido para os judeus).

No cais tudo era movimentado. Os barcos entravam e saíam, tan­to com tilápias, o peixe mais abundante naquelas águas, como com toda espécie de mercadorias.

Os Zebedeu perguntaram pelos gêmeos Alfeu, os pescadores e can­didatos ao colégio apostólico. Ninguém sabia de nada. Percorremos todo o cais e finalmente um dos remendadores de rede falou de um barco chamado Masri ("A egípcia" ou algo assim). E apontou em direção ao lago. Os Alfeu, ao que parecia, estariam pescando. Não havia nenhuma outra solução a não ser esperar. Regressariam com o pôr do sol.

E o Mestre pediu calma. Aproveitariam o dia e visitariam a família dos Alfeu. Pareceu ser uma boa idéia a todos. E nos encaminhamos ao povoado.

Porém, quando nos achávamos no final do cais, aconteceu algo aparentemente sem importância, mas que me fez refletir. Em muitas localida­des pagãs, tanto nos portos como na própria cidade, era frequente a presença de pintores e retratistas ambulantes. Por umas moedas, eles produziam um desenho ou uma caricatura (dependendo dos recursos). Entre os judeus, em especial entre os muito religiosos (no caso, os fariseus e os doutores da Lei), as imagens estavam proibidas. Jesus, como mencionei, foi um excelente pintor. Posteriormente, como já referi, as pinturas e os desenhos do Filho do Homem foram queimados por Ele mesmo. Porém, o bichinho da arte se mantinha em seu interior. E, ao passar em frente de um desses pintores, o Galileu se deteve por alguns instantes, contemplando a coleção de quadros (quase todos eram paisagens do yam) e algumas das caricaturas e retratos, feitos a carvão.

O pintor aproveitou para perguntar se desejava que lhe fizesse um retrato. O Filho do Homem negou com a cabeça e elogiou a boa mão, o talento do artista. E nos distanciamos.

E quem isto escreve pensou: "Pode ser que alguém, em algum dia, chegue a pintar o Mestre... Ele o permitiria?"

Quem sabe...

Perto das 13 horas, alcançamos o bairro dos pescadores.

João e Tiago Zebedeu caminhavam à frente, seguindo as indicações dos vizinhos. Os Alfeu viviam ao fundo, "junto a uma grande figueira".

Nós nos perdemos várias vezes.

O bairro era enorme e "catastrófico". Era formado por centenas de choupanas de madeira e tijolo e casebres com os tetos de palha. O solo era de terra preta e aplainada. E por todas as partes havia sujeira, persistentes moscas, crianças nuas com a cabeça raspada, ma­tronas tagarelas e curiosas, jumentos famintos acorrentados, berros, cachorros esqueléticos e desconfiados, roupa estendida na qual tropeçávamos inevitavelmente, montanhas de redes, cheiros de todo tipo, pescadores bêbados e reclamões, e reverências na passagem do grupo, muitas reverências... Ninguém sabia quem éramos, no entanto parecía­mos importantes.

Jesus vestia a túnica vermelha, e o maarabit (o vento estival) se ocu­pava em agitá-la.

Foi inevitável.

Logo em seguida, ao entrar no Arad (assim chamavam o bairro dos pescadores de Kursi; arad, em aramaico, significa "asno"), um grupo de crianças sorridentes e desocupadas começou a nos seguir. E o Mestre, com ar divertido, se pôs a brincar com elas. Cutucava, elas lhe cutucavam, Ele corria atrás delas, ou a criançada corria atrás Dele.

Faltou pouco para que caísse de bruços sobre alguns dos grandes e fumegantes caldeirões que ferviam à porta das choupanas.

Finalmente, chegamos ao nosso destino.

Uma enorme figueira tinha nascido, milagrosamente, entre duas grandes e negras rochas de basalto. A ramagem cobria uma considerável extensão. Pois bem, à sombra da árvore sustentavam-se (é um modo de dizer) três cabanas de médio porte, remendadas com madeiras, peles de cabras e trapos velhos. Os tetos eram igualmente de palha. Bem próximo, entre a figueira e os casebres, resmungava (em seu idioma) uma enorme porca, com barro até as sobrancelhas. Alguém a mantinha presa ao pau que dominava o lamaçal.

E, por aqui e acolá, outros cães, outras galinhas e mais crianças...

João Zebedeu debruçou-se sobre uma das escuras bocas de uma das choupanas e perguntou. Vimos sair várias mulheres, todas carregadas de filhos. Três delas estavam grávidas. A sujeira as devorava.

Depois, após a saída das mulheres, apareceram mais crianças. Contei 15 ou 20.

Os Alfeu, de fato, estavam pescando. Não tinham hora para regres­sar. Quem sabe pudéssemos falar com eles no fim do entardecer, no pôr do sol, mas não era totalmente certo. Isso elas disseram.

Todas elas eram parentes dos gêmeos. Duas delas eram as mulheres de Tiago e Judas de Alfeu. Também eram gêmeas. Eram de origem drab (árabe). Chamavam-se Kabar, que significa "grande" (esposa de Tiago), e Kore, em hon­ra à deusa beduína de mesmo nome. Kabar tinha três filhos e esperava o quarto. Kore, a esposa de Judas, era mãe de dois meninos, também de tenra idade.

Alguém gritou do interior de uma das choupanas, e reclamou em drab a sua comida.

Depois eu soube. Era a mãe das gêmeas, uma anciã paralítica. O pai, também velho (ao que parecia rondava os 50 anos), se encontrava no yam, com os Alfeu.

Com Tiago e com Judas viviam três irmãos destes, e também eram casados e também com uma numerosa prole.

Em resumo, nos três casebres habitavam 12 adultos e ao redor de 20 criaturas, se não estava equivocado.

Todos os homens eram pescadores. Todos estavam ausentes.

E daí creio que entendi o porquê da porca. Os Alfeu não deviam ser muito observadores no que diz respeito à questão religiosa. De fato, haviam se casado com árabes, algo proibido na lei mosaica (referente à lei de Moisés).

Alguns vizinhos não demoraram a se aproximar dali. As notícias voa­ram em Arad. E Jesus e os seus se viram rodeados por uma multidão silencio­sa e cheia de expectativa. "Aqueles forasteiros estavam ali por algum motivo - diziam uns para os outros. - Deviam ser arrecadadores de impostos..."

Nem os discípulos nem o Mestre explicaram às mulheres o porquê de sua presença naquele lugar. O que contribuiu para engordar o mistério.

Por último, aborrecidos ou desencantados, todos se retiraram.

O sol apertava, tornando-se mais intenso, e o Mestre foi buscar uma sombra, sentando-se ao pé da figueira.

Parte dos discípulos fez o mesmo ou se dedicou a esticar as pernas. André se aproximou do Filho do Homem e o lembrou de que deviam comprar provisões. Jesus remexeu em sua trouxa e entregou umas moedas ao "chefe". E André, acompanhado de Felipe, partiu para a cidade. Pouco a pouco se perfilavam as responsabilidades. André como "chefe" ou respon­sável dos 12. Felipe como intendente.

Observei o sol. Deviam ser duas da tarde. Faltavam quatro horas e meia para o ocaso.

O calor era sufocante.

O que fazer nesse tempo?

As crianças nos ofereceram a solução.

Os filhos das famílias Alfeu acabaram por ficar ao redor do Mestre. Eram de todas as idades. E o Galileu os animou a sentarem-se e foi per­guntando seus nomes. Sinceramente, não prestei muita atenção. Só me recordo do nome de uma das meninas. Disse ser filha de Tiago de Alfeu. Ela se chamava Dahbi-Hdur, que em a’rab quer dizer "dourada presença". Todos a chamavam de "Da". Era uma criatura encantadora, de uns quatro anos, com uma característica especial: padecia de uma heterocromia (um dos olhos, o esquerdo, era verde; o outro, castanho como mel, parecido com a cor dos olhos do Filho do Homem). Tinha a cabeça raspada (para evitar os piolhos) e a sujeira tomava conta dela. Aparecia descalça e com um cachorrinho entre os braços. O Mestre perguntou e "Da", com desen­voltura, explicou que o cachorro se chamava Ftata ("Migalha").

Todos riram.

E o Galileu, após inspirar profundamente, reclinou a cabeça sobre o tronco da figueira e fechou os olhos. A felicidade, efetivamente, se mos­trava enredada na barba, nos cabelos e nos longos e espessos cílios... O Mestre se sentia bem e o transmitia.

Mas alguma coisa o incomodou, e Jesus abriu os olhos de novo. As crianças seguiram os movimentos com interesse.

O Mestre soltou as sandálias e as colocou ao seu lado. Contemplou a platéia, sorriu e fechou os olhos.

"Da" olhou as sandálias e, em seguida, me procurou com seus olhos coloridos. Aproveitei e lhe dei uma piscadinha. A pequena me respondeu com uma risada marota e luminosa.

Não perguntou. Foi até o local onde estavam as sandálias. As calçou como pôde e começou a correr ao redor da figueira. "Migalha" foi atrás dela, tratando de mordiscar os cordões. E assim continuaram por um bom tempo.

O Mestre abriu os olhos de novo e os contemplou, feliz.

O "urso" quis recuperar o calçado, mas o Filho do Homem fez um sinal para que ele deixasse "Da" brincar.

Quando a menina se cansou, voltou a deixar as sandálias junto ao com­placente Homem-Deus e, sem mais, foi procurar refúgio no colo do Galileu. Aconchegou-se entre os poderosos braços e ela, por sua vez, abraçou "Migalha".

Foram segundos intensos, pelo menos para quem isto escreve.

Um Deus abraçava uma de suas criaturas, ou melhor, duas, e cada qual mais indefesa...

E então o Mestre começou a contar histórias. Para ser mais exato, a cantar histórias. Eu as conhecia. Eram os contos que inventava (?) Yu nas mágicas "noites kui", nos bosques de Jaraba, na alta Galileia.[27]

E a gente miúda, e não tão miúda, escutou maravilhada.

E assim aquelas horas voaram.

Felipe e André regressaram com os alimentos e as mães acabaram cha­mando a criançada. Só "Da" e "Migalha", adormecidos, permaneceram entre os braços do Mestre.

O grupo se sentou ao redor do Galileu, e João Zebedeu, apontando a pequena, perguntou:

Rabi, essa mestiça será como nós quando entrarmos no novo reino?

O Galileu continuou acariciando uma das orelhas de "Da" e replicou com certo cansaço:

Quanto mais terei que ser paciente contigo, João...?

O Zebedeu não se calou.

Mas ela é uma mestiça - replicou - e, portanto, inferior...

"Da" não era mestiça, ainda que o fato de que a mãe não fosse judia a convertesse em cidadã de "terceira classe".

João, no reino de meu Pai não há níveis, exceto aqueles obtidos pela experiência ou porque Abba assim o decide... O Pai não discrimina entre as suas criaturas... Todos vós sois iguais porque todos vós sois imaginados por Ele... Todos têm a mesma origem e idêntico destino. Lembra-te disso?

Mas, Mestre, isso não é o que ensina a Lei...

O Zebedeu não arredava o pé.

Eu não vim para mudar a Lei, senão para melhorá-la. No reino de Abba não há homens e mulheres, não há judeus e gentios, não há homens livres ou escravos... Todos são ricos. Todos são iguais aos olhos do Pai. Todos são meus irmãos. Todos vós sois irmãos. Todos vós sois filhos de Deus. Todos vós sois imortais por natureza. Todos vós haveis recebido a herança antes de abrir os olhos para a vida...

João Zebedeu negou com a cabeça. Era teimoso.

Contudo, o Mestre prosseguiu como se não tivesse visto:

-... E, como consequência, não vos negará a dividir o pão com os mestiços, ou com os fariseus, ou com os kittim, ou com os escravos, ou com as mulheres...

Mateus estava feliz.

Em verdade, em verdade vos digo - concluiu Jesus - que nesse reino não há portas... Ninguém entra nele porque todos vós estais nele...

E sublinhou:

Estou aqui para retirar o véu do medo...

 

Quando regressei à nave, comprovei que, naquela terça-feira, 9 de julho, o ocaso solar se registrou às 18 horas, 38 minutos e 11 segundos (TU - Tempo Universal). Pois bem, pouco antes o Mestre animou os dis­cípulos a voltar ao cais e esperar o desembarque dos gêmeos.

No caminho, André perguntou:

Eu estava crente, rabi, de que o reino de que tanto falas estava por rhegar. Agora eu o ouvi dizer que estamos nele. Não compreendo.

Jesus se deteve. A questão pensada e exposta pelo "chefe" era importante.

O Mestre depositou as mãos sobre os ombros do sereno André e co­mentou:

É preciso que saibas que no reino não utilizamos palavras...

André olhou para Jesus, mas não sabia do que Ele falava.

Aqui, agora, as palavras não me ajudam...

Ninguém entendeu.

O reino está em vossa mente. O Pai está em vosso interior, no en­tanto muito poucos sabem disso...

Jesus se deu conta. Era difícil aproximar-se da verdade. E deixou correr:

Não vos preocupeis. Ainda que o reino esteja dentro... Nós o buscaremos.

O céu mudou sua indumentária e se vestiu de vermelho-cereja. Os remendadores de redes seguiam costurando com suas grandes agu­lhas de osso, mas sem deixar de olhar para o horizonte. "O vermelho é vento - diziam. - Amanhã pode bailar o qibela" Eles faziam alusão a um vento, procedente do sul, que provocava perigosas tempestades no yam. Eu estranhei. O qibela, segundo as minhas informações, soprava no inverno.

Era assombroso. Os remendadores eram capazes de costurar e de correr os olhos e esquadrinhar o lago ao mesmo tempo.

Por fim, apareceu.

Másri, o barco dos Alfeu, era um visível desastre. Tudo estava des­pencando nele. Era velho até dizer chega. Azuis desbotados se soltavam pela cobertura e pelo casco. Ninguém daria um denário por ele, contudo navegava com alegria. Isso era o que contava.

Os redeiros observaram "A egípcia" e exclamaram: "Boa pesca". Deduziram pela linha de flutuação, que se mostrava pouco acima da água, e pelo "aviário" que trazia no alto. Dezenas de gaivotas gritavam no regresso do Másri. Uma vela negra e carangueja fazia com bondade tudo o que podia.

Atracaram exatamente quando o sol fechava as portas do dia.

A pesca, efetivamente, fora excelente.

Com os Alfeu navegavam seus três irmãos e o sogro.

Saltaram à terra, e os gêmeos abraçaram os Zebedeu. Depois, com parcimônia, vieram as apresentações.

Jesus não disse nada.

Tiago e Judas de Alfeu eram idênticos: loiros, olhos verdes, bem magros, abrasados pelo sol e pelo vento, e cada qual com seu mesillah, ou guizos, ao pescoço. Falavam pouco.[28]

E aconteceu algo que não sei explicar.

Os gêmeos não prestaram atenção ao Galileu. Seguiram com suas coisas. Primeiro, eles descarregaram a pesca. Contaram as peças (75 ti­lápias e outros peixes que eu não soube identificar), ordenaram por tamanho, limparam-nas, colaboraram com a arrumação artística e com a limpeza do convés.

João Zebedeu, nervoso, não podia acreditar no que via.

Tentou ir falar com os Alfeu e fazer-lhes ver que o Mestre esperava. Jesus o impediu e pediu que tivesse calma.

O Filho do Homem estava desfrutando dos afazeres dos pescadores.

Em determinado momento, o Galileu se aproximou das tilápias e as examinou. Abriu a boca de uma delas e extraiu um punhado de crias, ainda bem pequeninas. Estavam vivas. Aproximou-se da beira do cais e as devolveu para as águas. Os discípulos o imitaram e cada qual se dedicou a salvar as crias que podia.

O sol fechou sua porta, em vermelho, e desapareceu.

O sogro dos Alfeu e os três irmãos recolheram suas coisas e empreen­deram o caminho de regresso ao Arad.

Foi em um desses instantes que os gêmeos se detiveram em frente ao Filho do Homem e o contemplaram em silêncio.

Jesus sorriu satisfeito e se limitou a dizer:

- Segue-me... Quando avaliarem que seja oportuno!

Não houve comentários e tampouco cumprimentos por parte dos íntimos.

Os Alfeu recolheram a parte da pesca que lhes correspondia e nos dirigimos ao bairro das choupanas.

Essa noite, de frente a um bom fogo, jantamos tilápias assadas.

Excelente, mesmo que fosse um peixe com espinhas demais. O "urso" lamentou:

O Pai teria dormido ao criar as tilápias?

Jesus e o resto de nós o contemplamos, surpresos.

Ao que te referes? - perguntou Felipe.

Bartolomeu cuspiu uma das espinhas e continuou lamentando-se:

Por que não as coloriu?

O Mestre riu com vontade e seguiu o fluxo:

Tomarei nota disso... Para a próxima.

E nisso, já escuro, vimos aparecer junto à figueira as crianças meno­res. Chegaram acompanhadas de suas mães. Chamou-me a atenção um detalhe. Todas ostentavam, ao pescoço, seus guizos. Durante o dia não levavam consigo.

Notei que as mulheres estavam nervosas. Nesse momento não soube dizer por quê.

Bartolomeu, sempre curioso, terminou perguntando o porquê dos mesillah.

Tiago de Alfeu respondeu com um frio e contundente "falar sobre isso atrai má sorte".

Mas Felipe se apressou em esclarecer a dúvida do seu amigo:

Os guizos conjuram os lilim... É preciso pendurá-los no pescoço das crianças durante a noite... Melhor dizendo, antes que escureça.

Quando retornei ao "berço" soube quem eram os lilim. A tradição ju­daica acreditava que Lilith foi a primeira esposa de Adão[29] e que foi expulsa do Éden por ser teimosa e, sobretudo, por negar-se a fazer amor com Adão na postura tradicional (ela embaixo). Os filhos de Lilith eram os lilim, todos "demônios perigosos", como a mãe. Aproximavam-se das crianças na escu­ridão, as acariciavam e as sequestravam. A música de um guizo, sem dúvida, os fazia retroceder. Daí a crença dos Alfeu e da maioria dos judeus.

Superstições! Os espíritos malignos não estão aqui para roubar crianças...

O comentário do "urso" não agradou. E Simão Pedro, irritado, repli­cou em voz baixa: "e que os demônios não ouçam".

E fez uma detalhada exposição em relação ao que os judeus acreditavam sobre esse tema em particular. Falou dos anjos bons (subordinados a Yaveh) e dos maus, que haviam caído por culpa das mulheres.

Contemplei Jesus. Escutava atento e com ar divertido.

"Os anjos - continuou Pedro - estão em todas as partes: no vento, no fogo, na neve..."

Pedro conhecia o livro dos Salmos. Em 104, 4 se fala disso.

Também invocou o dos Jubileus e expôs como os anjos vivem nas nuvens, nos trovões, no frio, nos raios e como enviam mensagens através dos sonhos.

Bartolomeu negava com a cabeça. Esse gesto efervesceu ainda mais o fogoso Pedro.

- Sabias que são 70 os anjos que governam o mundo?

Essa era a crença do povo judeu. Pensavam que o mundo estava in­tegrado por 70 nações. Os judeus se encontravam sob a tutela de Gabriel e Miguel. E Pedro mencionou o nome de outros espíritos benéficos e daqueles não tão benéficos: Adiriel, que se ocupava da alma dos arrependi­dos; Gadriael, que reunia a alma dos mortos pelos pagãos; Ahinael que cuidava da alma das crianças (judias, isso é claro) que não haviam tido a sorte de estudar a Lei; Adrahinael, responsável pela alma dos que se ar­rependem por má conduta (no último segundo de vida); Rahmiel, o que conduz os mortos diante de Yaveh...

E chegou a mencionar Luzbel e sua esmeralda, "a que se preci­pitou à terra quando ele foi vencido nos céus e que todos os povos continuam procurando..."

Depois se produziu um momento de especial emoção. Simão Pedro assegurou que, acima desses milhares e milhares de anjos, se encontra Micael, "o grande governante celeste". E o chamou de o "espírito que sabe contar estrelas".

O Mestre e eu nos olhamos.

Mensagem recebida.

E Simão Pedro, entusiasmado, se preparava para falar sobre os espí­ritos maléficos, "caídos - disse - por causa das más artes das mulheres", quando o Galileu fez um gesto para que ele parasse. Pedro não interpretou bem o sinal e prosseguiu com o tema dos anjos caídos, que são responsá­veis - segundo a tradição judaica, baseada, por sua vez, nas tradições per­sas - pelas doenças, pelas más colheitas, guerras, incêndios, inundações e até mesmo pelas sogras...

O Galileu deixou que ele se esvaziasse.

Todos escutaram, desconcertados. De vez em quando olhavam ao seu redor ou faziam soar, dissimuladamente, os guizos das crianças. To­dos acreditavam nos lilim, e de que forma...

Finalmente, quando Pedro terminou, o Filho do Homem tomou a pa­lavra e proporcionou algumas revelações, mas eles não compreenderam.

Jesus falou em primeiro lugar da natureza dos anjos. Disse que eram incontáveis. Eles não têm aspecto humano. São luz. E insistiu: "luz inteli­gente e bondosa". Eles são criação do Pai e são eternos. Não sabem viver sozinhos. São criados em pares. Às vezes abandonam seu estado e apare­cem no tempo e na matéria. "Pura experiência..."

Guardou silêncio por alguns segundos e acrescentou:

E nascem como um ser humano normal e comum...

Não captaram a sutileza do Filho do Homem.

Os anjos são o que vós sereis depois da morte...

E enumerou algumas das funções dessas (para nós) incompreensí­veis criaturas:

São sussurradores...

Pareceu a mim uma aproximação à verdade de forma bem didática. Segundo o Mestre, eles acompanham o ser humano desde o princípio da história. São os que "sussurram" piedade, ternura, poesia, beleza, senso de valor ou medo...

São os que lêem nosso Destino.

O "urso" não conseguiu se conter e interrompeu Jesus:

Se não têm aspecto humano, como eles são?

O Galileu apontou as chamas que bailavam diante do grupo e declarou:

Imagina que esse fogo pudesse pensar...

Sim, Mestre, imagino.

Pois é isso...

E acrescentou:

O invisível pensa mais do que o visível...

Depois Ele se referiu ao que aconteceu há milhares de anos, quando os 'illek (literalmente "eles") decidiram rebelar-se contra a ordem de Abba. Alguma coisa nos contara no Hermon...

Também os chamou de lajcôr ("os que perguntam").

Por que eles se rebelaram?

Os discípulos se interessaram vivamente pelos anjos "rebeldes".

Talvez tenham pensado demais...

A resposta do Galileu não convenceu Bartolomeu e muito menos Felipe.

Pensar é ruim?

Não, Bartolomeu, não é não... O que não é bom é pensar contra o estabelecido.

E o que é isso?

O Amor, com maiúscula. E esse Amor estabelece um ritmo e uma forma de progredir. Os lajcôr acreditaram que os humanos têm direito a utilizar atalhos...

E, nessa hora, eu também não entendi. Atalhos? De que estava falando?

O Mestre voltou a entrar em meus pensamentos e os leu.

Eles decidiram que a trajetória do homem até a perfeição tinha que ser mais curta... Isso haveria alterado os planos de Abba...

E houve guerra?

Cada qual ia em seu próprio ritmo, como sempre e em todas as ocasiões. E o Zelote não era uma exceção.

Não da forma como a imaginas, Simão... Não se derramou sangue, nas sim lágrimas.

E o que aconteceu aos lajcôr?

Estão ilhados e à espera de julgamento.

E o que nós, os homens, temos que ver com essa rebelião?

A pergunta de Simão Pedro foi muito oportuna.

Tudo e nada...

Os discípulos aguardaram um esclarecimento.

Vós sois vítimas, sem mais nem menos.

Vítimas?

Foram os responsáveis por este mundo que escolheram o caminho errado. Vós, os humanos, não tinham capacidade para saber, e muito menos para decidir de que lado estar...

E o Mestre, captando a inquietude geral, os tranquilizou:

Tudo está sob controle. Os rebeldes foram apenas um punhado...

E o que acontecerá quando forem julgados?

O mundo voltará à luz...

Nós chegaremos a vê-lo?

Sim, André, mas do outro lado... Tu e teus irmãos já não estarão aqui.

Não estaremos em Nahum?

A pergunta de Mateus Levi fez o Mestre sorrir. A ingenuidade daqueles homens era comovente.

Não, Mateus, não estarás em Nahum...

Mas então... onde?

Na metade do reino...

Ah! Compreendo...

Não era bem assim. Nem Mateus nem o resto entenderam as pala­vras do Filho do Homem. Contudo, Jesus não remexeu no assunto. Não valia a pena.

Então falou aos discípulos sobre o acontecimento no alto da monta­nha sagrada, no Hermon... E o fez com expressões fáceis. Mesmo assim, nenhum deles captou a essência do que ele estava contando.

Jesus lhes disse que, não fazia muito tempo (no verão do ano 25), subiu ao Hermon e recuperou o que era seu: a divindade. Tinha 31 anos, recém-completados.

Os lajcôr souberam da existência daquele Homem tão singular, se apresentaram na montanha e o interrogaram. "Quem és? Por que estás aqui?" Jesus explicou quem era na verdade, e os lajcôr trataram de subor­ná-lo, oferecendo-lhe poder. "Só servireis ao único Deus." E os rebeldes rejeitaram a clemência do Homem-Deus. Foi nesse momento histórico que o Galileu foi proclamado o Príncipe deste mundo.

E Jesus acrescentou, com ênfase:

Nenhum rebelde pode agora incomodar o homem...

Pedro não aceitou.

Conheço muitos endemoniados. E estes também...

Em verdade eu digo, Pedro, que o poder dos lajcôr sobre o mundo está terminado.

O discípulo continuou negando com a cabeça, e o Mestre fez a única coisa inteligente que podia fazer: deixou que ele acreditasse nos espíritos malignos.

Anos depois, quando Mateus e os demais "escritores sagrados" relata­ram a vida do Mestre, a passagem sobre o Hermon foi deturpada e, como já manifestei em seu momento, localizado em outro cenário (Beit Ids). Lamentavelmente, nenhum dos evangelistas falou do mais importante: a recuperação da divindade por parte de Jesus naquele mês de elul (agosto- -setembro). O Filho do Homem - também já falei sobre isso - não nasceu sabendo quem era. Viveu como um homem durante 31 anos, um homem atormentado, porém, um homem no final das contas.

Os discípulos, como eu digo, não estavam conscientes dessas revelações.

E nessa noite dormimos no chão, ao pé da figueira.

Dormir é uma forma de dizer...

A lua, quase na metade, se retirou logo do céu... Quero crer que adi­vinhava o que estava a ponto de acontecer...

Cada qual procurou abrigo (o mais longe possível do mal-cheiroso chiqueiro) e quem isto escreve dedicou alguns minutos para contemplar o céu.

Que nostalgia...

Próximo de Andrômeda brilhavam as estrelas Mirach e Almak. Enviaram-me sinais.

Mensagem recebida.

Eu também a amava.

E nisso, meu coração em pleno vôo em direção a Ruth, ouvimos uns gritos. Vinham de uma das choupanas. Inquietaram-me.

Tiago de Alfeu e sua mulher, Kabar, discutiam. Gritavam e se insul­tavam sem piedade. Ela o chamou de "influenciável" e o acusou de abandonar seus filhos "e aquele que estava a caminho". Os pais das gêmeas se somaram à briga. A frase mais repetida era "por que vais embora?" Tiago titubeava e falava de um "reino em que não teriam que trabalhar". Kabar ria e o chamava de "retardado".

Suponho que o Mestre e os demais escutaram as discussões. Mas ninguém fez um só comentário nem se moveu. O mais feliz, sem dúvida, foi Simão Pedro. Limitou-se a roncar, que era já sua característica.

A briga reiniciou duas horas depois.

As estrelas, esgotadas, deixaram-se cair sobre o horizonte e foram desaparecendo. Não estranhei.

E chegou a quarta-feira, 10 de julho do ano 26 da nossa Era.

Novo dia e novas surpresas...

O nascer do sol aconteceu cedo: às 4 horas e 29 minutos.

Nós nos preparamos, tomamos o café da manhã e nos dispusemos a caminhar até o cais. Os planos eram simples: viajar de barco até a locali­dade de Tariqueia, ao sul. Ali devíamos procurar os últimos candidatos: Tomé e Judas Iscariotes.

Mas os Alfeu expressaram seus temores. O qibela, o vento que havia mostrado no dia anterior, se pôs mais sério, e começou a soprar com rajadas que faziam ranger os galhos da figueira.

De todas as formas, tentaríamos...

E o grupo se pôs a caminho.

Eu fiquei ali meio que retardatário, não sei muito bem por quê, e as­sisti a outra cena que tampouco figura nos textos evangélicos. Mais uma.

Jesus e os discípulos, como digo, se distanciaram dos casebres. Nisso eu vi Kabar aparecer. Tiago de Alfeu estava entretido com "Da", a menina de olhos de cores diferentes. Ele a sustentava em seus braços e a beijava. "Da", por sua vez, abraçava "Migalha".

E Kabar, sem mais nem menos, se jogou aos pés do marido e se gru­dou a eles, gemendo e suplicando:

- Do que nós viveremos? Não te vás! Não te vás!

Senti um nó no estômago.

O Filho do Homem havia desaparecido entre os outros casebres.

Tiago tentou se safar do abraço da mulher, mas não conseguiu. E pouco faltou para que perdesse o equilíbrio. Segurou "Da" como pôde e ordenou à mulher que o deixasse ir. Kabar não ouvia. Só gritava e chorava.

E nisso chegou Kore, a gêmea. Temi pelo pior...

Os pais e os três irmãos, com as mulheres e os filhos, presenciavam a cena desde a porta das choupanas. Com frieza, Kore arrebatou a menina dos braços do cunhado e se retirou para um dos casebres.

Tiago conseguiu se livrar da esposa e se distanciou, pálido.

Foi então que eu vi se aproximar Mateus Levi. Caminhava só e com pressa. Portava consigo uma pequena bolsa de pano na mão direita. E com a outra carregava a trouxa.

Cruzou com o Alfeu, mas não se falaram.

E Mateus chegou até Kabar. A mulher desolada continuava gemendo e chorando com o rosto afundado na terra. A família continuava imóvel e impassível.

E o discípulo, sem nenhuma explicação, depositou a bolsa de pano nas mãos da árabe. Esboçou um leve sorriso, deu meio-volta e se retirou por onde havia chegado.

Kabar abriu a bolsa e, ao ver o conteúdo, intensificou seus gritos.

Não entendi.

E foi pegar um denário de prata. Ela o mordiscou e aí as lágrimas e la­mentações terminaram. Revolveu o resto das moedas, se levantou e correu até seu casebre, desaparecendo no seu interior. A família se foi com ela.

Eu me distanciei, com o coração na mão. Ninguém soube do gesto e da generosidade de Mateus.

 

Os Alfeu estavam certos. O vento, fortíssimo, levantava ondas de dois ou três metros.

Impossível navegar.

O mar de Tiberíades se apresentou para este explorador com toda a sua fúria.

As ondas arrebentavam contra o quebra-mar e pulavam, brancas de espuma, sobre a doca. As embarcações, temerosas, se encolhiam umas nas outras, agitadas por uma ondulação menor. Os mastros gemiam e deixa­vam que a cordoaria voasse sobre todo o seu comprimento... Ao fundo, as águas se voltavam turquesa, de pura raiva, mas as peles de cabrito termi­nariam por ganhar a batalha.

Os remendadores de redes acertaram: "céu vermelho ao entardecer, pescado sentado até o amanhecer".

Ninguém em pleno juízo sairia ao mar enquanto governasse um qi-bela. Entre junho e janeiro, esse tipo de tempestade era frequente. Quem isto escreve teve a oportunidade de presenciar umas poucas, e sem falar de Eliseu...

As grandes folhas de palmeira, que habitualmente cobriam as choupanas, rodavam por toda parte.

As pessoas não se arriscavam a sair de casa. Com o qi-bela chegava também o pó do deserto. A temperatura e a pressão barométrica subiam, içando nos 30°C e 35°C e em torno dos 1.015 ou 1.020 milibares. E os homens, sem querer, se carregavam de vinganças...

O Mestre e André consultaram os Alfeu. Era melhor beirar o lago ou esperar. O mal dos qi-belas é que podiam se prolongar por dias e mais dias.

Jesus optou por se colocar a caminho a pé, e Pedro e o resto aprova­ram. Era o mais sensato.

E iniciamos um caminhar lento e penoso, já que custava para avançar. As rajadas de vento eram como muros. Tínhamos que parar a cada instante e nos proteger onde Deus bem entendesse (e eu não pretendo dizer nenhuma piada).

Deixamos para trás os povoados de Nuqev, Ein Gafra, En Gev e o porto de Hipos.

E foi nas proximidades de Kefar, a duas horas de Kursi, que um dos gêmeos, Judas, veio abaixo. O homem coberto de pó, meio cego, pouco acostumado a caminhar, desatou a chorar. Queria voltar para junto dos seus. Sentia falta, tinha saudade.

Santo céu!

Só haviam transcorrido duas horas...

Os Zebedeu tentaram acalmá-lo. Todos ajudaram. Todos lhe falaram do "reino que estavam a ponto de conquistar e do dinheiro que eles leva­riam para casa".

O Mestre não escutou essas conversas. Estava um pouco afastado, tratando de explorar o caminho.

E finalmente, como o esperado, após quase seis horas de caminhada, divisamos a cidade de Tariqueia.

Uma densa nuvem de pó amarelo cobria a cidade e as praias do yam.

Cruzamos as vielas com pressa, e Felipe e o "urso" nos conduziram diretamente a um dos secadouros de peixe. Tariqueia era um pouco me­nor que Nahum, mas com uma florescente indústria pesqueira e constru­ção de tonéis, cantada por Estrabón em sua Geografia (XVI,2).

As ruas estavam desertas; o qi-bela soprava na segunda desemboca­dura do Jordão com mais força e com piores intenções que na costa orien­tal. Era a boca pela qual se derramava no yam.

O trabalho do secadouro, ao ar livre, havia sido suspenso. Os operá­rios se refugiaram em dois grandes armazéns; ali martelavam sem descan­so, fabricando barris de madeira ou de ferro.

Deixamos as bolsas de viagem no chão e nos contemplamos mutua­mente. E o riso se soltou.

Todo mundo, sem exceção, estava branco, com pó e areia até os cí­lios. Nunca vi Jesus de Nazaré tão "maquiado"...

Felipe se interessou pelos trabalhadores que procurávamos: Tomé, também conhecido como o Dídimo (Gêmeo), e Judas Iscariotes.

Encontrou Tomé. De Iscariotes, não havia o menor rastro. Fazia dias que não comparecia ao trabalho. Ninguém soube explicar o motivo.

Deveria estar faltando uma hora para o ocaso...

Vi Felipe nervoso. Falava com Tomé e este respondia, mas o Dídimo (Gêmeo) não deixava de martelar.

Eu me aproximei e assisti a uma cena que me fez lembrar a recepção gélida dos Alfeu ao Filho do Homem.

Felipe tentava fazê-lo ver que o Mestre havia se deslocado até Tariqueia para conhecê-lo e admiti-lo no grupo dos "lutadores pelo reino". Isso foi o acordado. Mas Tomé negava com a cabeça e continuava com o martelo. De vez em quando exclamava:

- Boa é ‘Alam!

E prosseguia com o tonel.

‘Alam, que eu soubesse, significava "eternidade". De quem ou do que ele falava?

Foi inútil. Felipe não conseguiu que Tomé se desgrudasse do tonel.

Voltou-se para o Mestre e expôs a situação:

Ele diz que tem que terminar o trabalho... Do contrário não lhe pagarão.

Jesus se resignou, naturalmente. E o mesmo fez o resto. Esperaria-nos. Na realidade, não havia pressa.

De vez em quando, Felipe e Bartolomeu se aproximavam do esforçado Tomé e o questionavam. Este explorador os acompanhou em várias ocasiões. E ele sempre respondia o mesmo:

Tenho que terminar... Boa é 'Alam!

Perguntei aos discípulos. ‘Alam era a esposa.

Tomé, ao que parecia, se encontrava em pleno processo de divórcio.

Era exatamente como o "recordava" (como chegaria a conhecê-lo anos depois): musculoso, de escassa estatura, com um estrondoso estrabismo no olho esquerdo e muito feio.[30]

Finalmente, ele deu por terminado o trabalho. Cobrou o salário e se dirigiu ao lugar onde o aguardávamos. Chegou contando as moedas.

Cumprimentou-nos brevemente sem deixar de contar as ases e as eptas (moedas romanas da época) e respondeu, à sua maneira, as apresentações que o paciente Felipe de Saidan conduziu.

O Mestre lhe anunciou: "Tomé, não é de sua natureza a fé..., porém - eu te recebo. Segue-me!"

O discípulo não replicou. Nem levantou o rosto. Seguiu remexendo e contando as moedas na palma da mão e subitamente exclamou:

Boa é 'Alam!

Deu meia-volta e regressou para perto do patrão do armazém. Ele lhe mostrou a paga e discutiram. Pelo visto havia um erro.

Jesus, sorridente, estava desfrutando daquilo...

Tomé terminou integrando-se de novo ao grupo do Galileu e comen­tou, dirigindo-se ao Mestre:

Eles tinham me pagado a menos...

E o Galileu, com um ar divertido, resumiu:

Claro, boa é 'Alam!

Tu a conheces?

De sobra, Tomé, de sobra...

O novo discípulo não percebeu a dupla intenção do Filho do Ho­mem. Supus que se referisse à eternidade, não à sua mulher.

E o grupo, a pedido de Tomé, combinou que essa noite dormiria na casa do Dídimo (Gêmeo).

Ao entardecer, o qibela, esgotado, se enfraqueceu e se converteu em uma simples brisa, muito tímida.

A casa, às margens do lago, era tipicamente judia, com dois níveis, um curral e alguns animais.

Tomé tinha quatro filhos pequenos. A esposa era jovem e bonita. Muito bonita, ainda que com o quadril um pouco largo demais (para o meu gosto). Ela nos recebeu com alegria. A princípio, essa atitude me desconcertou. A mulher parecia jovial e bem-disposta. Sabia que o marido se dispunha a abandoná-los, mas isso não parecia importante. Ao contrário. Felipe me explicou. "Eternida­de" estava farta do marido. Brigavam tanto que estavam a ponto de se matar. De fato, como eu disse, ele havia solicitado o documento de repúdio ou divórcio. Segundo 'Alam, Tomé era insuportável, pessimista, maníaco por organização, viciado em jogo e mulherengo. Estava desejando mesmo que fosse embora...

O Mestre decidiu aproximar-se do lago e tomar um banho. Todos o seguiram, com exceção do "urso", Felipe, João Zebedeu, Judas de Alfeu e Tomé. Eu optei por ficar em casa. Eu me assearia mais tarde. Não me equivoquei em tomar aquela decisão.

Bartolomeu, o discípulo que havia proposto a candidatura de Iscariotes, se mostrou preocupado. Judas não aparecia. Como disse, ninguém no armazém sabia dizer onde ele se encontrava. Fazia dias que não se apresentava ao secadouro de pescado.

Felipe se mostrou de acordo com o "urso": era melhor sair e procurá-lo.

Foi nesse momento que Judas de Alfeu, o gêmeo, voltou a sofrer outra crise de nostalgia. E desatou a chorar. João Zebedeu se apressou a consolá-lo, e voltou a prometer riquezas e honras "se ele permanecesse com eles, junto ao Messias".

"Eternidade" ofereceu a ele vinho quente, e o homem se resignou.

Foi então que Tomé exclamou:

Vamos! Creio que eu sei onde encontrá-lo...

E nos pusemos a caminho, à procura de Iscariotes.

Felipe permaneceu na casa, cuidando do desconsolado gêmeo de Kursi.

E durante mais de uma hora, enquanto escurecia, Tomé, João Zebe­deu, Bartolomeu e quem isto escreve percorremos as ruas de Tariqueia e, sobretudo, as tabernas e as casas de jogos.

Tomé era experiente. Conhecia todo mundo...

Finalmente o encontramos.

A taberna, ou o quer que fosse, apresentava na porta um letreiro em que se podia ler, em koiné: "Pelicano gago".

Demorei a me acostumar com a densa penumbra. Tudo eram vozes, cânticos dos bêbados, luzes amarelas e gente preguiçosa encostada às pa­redes, mesas ensebadas, jarras de barro com vinho ou cerveja, prostitutas com os peitos para fora e um taberneiro com um nariz enorme e afilado, que serpenteava entre os clientes e gaguejava:

Mais vi-vi-vi-vi... nho! Mais cer-ve-ve-ve... ja!

Tomé andou ao acaso por ali e procurou no meio dos clientes; e se encaminhou até a frente de uma das mesas em um canto do "Pelicano gago".

Ali estava Judas Iscariotes na companhia de dois sujeitos de aspecto nada nobre, com uma sombra de deslealdade, mal-encarados e supostamente bêbados.

Pareciam confidentes, sabe lá a serviço de quem. Eram os que cor­riam em busca do pagamento das rondas.

Judas bebia vinho e sem medida.

Ele nos viu, mas continuou indiferente.

Tomé fez um gesto e os acompanhantes de Judas se levantaram e desapareceram.

Os discípulos sentaram-se e o "urso" reprovou Iscariotes por sua falta de palavra. Mas Judas, ébrio, se limitou a sorrir com má vontade.

O Mestre está à tua espera...

Judas escutou o comentário de João Zebedeu, mas continuou segu­rando sua jarra.

Nós combinamos de nos ver...

Eu não tenho nada com ninguém...

O "urso" insistiu:

Nós nos falamos no secadouro...

O Iscariotes não recordava, e o mais provável era que não queria recordar.

E, além disso - acrescentou em uma linguagem áspera e embolada não tenho certeza se eu quero ou não participar dessa vossa organização...

Por quê?

Judas pediu mais vinho e o fez aos gritos. Aquela faceta da bebida eu não conhecia. Senti pena por aquele homem solitário, sempre triste, sempre assediado pelos fantasmas, sempre um fracassado...

Apresentava olheiras bem aparentes, que alongavam o perfil de pássaro.

Não gostei como trataram Yehohanan...

Notei como sufocava. Que estranho...

E o Iscariotes foi soltando:

Esse Jesus, o carpinteiro, é um déspota, um prepotente, um blasfe­mo e um covarde...

João Zebedeu ficou vermelho.

Bartolomeu pediu calma. E perguntou de novo:

Por que estás falando assim?

Esse carpinteiro louco nunca atendeu aos requerimentos do verda­deiro Messias: Yehohanan...

Eu estava quase certo. Judas padecia de algum tipo de problema respi­ratório. As sibilâncias (ruído sibilante ao respirar), as tosses repetidas e a con­tínua dificuldade na respiração me fizeram pensar na asma (talvez do tipo bronquial) ou em algo pior (uma obstrução crônica pulmonar). E eu me per­guntei: que tipo de asma o atormentava?[31] Se não fosse isso, o que era então? E, sobretudo, por que não detectei no ano 30 quando o vi pela primeira vez?

O Zebedeu interrompeu o Iscariotes e o fez recordar do aconteci­mento em Caná.

Judas riu das palavras de João:

Os magos egípcios fazem isso diariamente...

Mas do que estás falando?

E eu direi mais - entusiasmou-se o Iscariotes entre os sibilos e taquipneias (respirações rápidas e superficiais). - Se Ele é o Messias como dizem, por que não moveu um dedo para libertar Yehohanan?

João Zebedeu, que também foi discípulo do Batista, teve que reco­nhecer que o Iscariotes falava com algum senso de verdade. Até esse mo­mento, o Filho do Homem não havia intercedido por seu parente distante. Em realidade, não devia...

Não, não estou certo de querer me associar a vós...

E o "urso" e o Zebedeu, em seu desejo de converter Judas, regressa­ram ao ponto de sempre, e falaram com entusiasmo sobre o futuro reino:

Dinheiro, Judas, muito dinheiro...

O Iscariotes encolheu os ombros. Não era dinheiro o que o atormentava.

O Messias libertará o nosso povo - continuou João com os olhos brilhantes (não sei se pelo vinho ou por suas crenças, ou por ambas as coisas) - e nós estaremos ali... Escreverão sobre nós, como fizeram com Pinjás, com Elias ou com os Macabeus...

Aí deu um acerto, pegou no ponto. Judas se remexeu, inquieto. Pinjás (neto de Aarão) e também os irmãos Macabeus eram seus ídolos, os grandes libertadores do povo. Ele, na verdade, se auto-proclamava maquisard ("guerrilheiro").

A glória, Judas! A glória nos espera! Jesus nos guiará até a vitória...

Nisso, em plena arenga do Zebedeu, aproximou-se da mesa uma das prostitutas, que também faziam às vezes de garçonetes. Ela depositou sobre a mesa cinco novas jarras com vinho barato, e Tomé, muito sério, aproveitou para deslizar a mão esquerda debaixo dos panos que cobriam o corpo sem graça da mulher. Ela permitiu que Tomé a acariciasse por um tempo. O discípulo percebeu que eu estava observando e, sem deixar de passar os dedos sobre ela, deu-me uma piscadela.

Judas hesitou.

Tu tens certeza? Ele tem entre seus planos a libertação de nosso povo?

Isso mesmo, caro amigo...

O "urso" assentiu com a cabeça.

E não apenas a libertação de Israel - continuou o Zebedeu. - Se te juntares a nós, vais testemunhar grandes maravilhas. Aquilo em Caná foi apenas o começo.

João não sabia, mas nisso ele estava certo.

... e libertará Yehohanan, não duvides disso.

A prostituta se afastou, feliz.

Não sei...

O ataque do Zebedeu continuou. Judas estava quase convencido.

E depois, mais glória, mais poder e mais dinheiro... Judas, tu vais nadar em ouro e prata! O reino anunciado está chegando. Entra em nosso carro agora, enquanto pode!

Os assobios do Iscariotes aumentaram.

E brindaram com fervor:

Abaixo Roma!

Foi então que João perguntou sobre o destino de Yehohanan. Todos sabiam que ele fora preso por Herodes Antipas e levado para a prisão do Cobre, mas João queria mais detalhes. No dia anterior à captura, como se deve lembrar, o Iscariotes tinha ido a Jericó com Abner, o pe­queno grande homem, e o restante dos "justos" e seguidores do Batista. Não fora testemunha, portanto, da prisão do gigante de olhos vermelhos. Mas, dominado pelo vinho, ele se deixou levar por suas fantasias. Assegurou que o Batista tinha lutado como um leão e deixado muitos corpos espalhados à sua volta. Depois, quando Antipas recebeu a notícia da prisão, mandou libertar Gad e José, os discípulos de Yehohanan que haviam sequestrados pela guarda no domingo, 9 de junho. E, segundo o Iscariotes, o tetrarca ameaçou executar Yehohanan se os seguidores - mais de 10.000, na versão de Judas - continuassem às portas de seu palácio, na referida cidade de Jericó. Aparentemente, a desesperança venceu, e a multidão se dispersou, voltando para casa. Abner e os mais próximos do Batista levaram vários dias para descobrir onde estava o Anunciador. Alguns sugeriram atacar a prisão do Cobre, mas a ideia não prosperou. E os "justos" terminaram desertando. Antipas colocou um prêmio pela cabeça de Abner, e ele fugiu. Judas não sabia seu paradeiro. E ele mencionou um detalhe que me intrigou: Antipas se aproveitou das lembranças do pequeno grande homem. Mas como Judas poderia saber disso se não estava presente no momento em que a guarda pretoriana do tetrarca registrou o guilgal?. Como eu disse, isso me pareceu estranho, mas não prestei mais atenção ao assunto.

Ele não contou muito mais. Judas, assim como outros "justos", cami­nhou sem rumo por um tempo. Em seguida, não sabia por quê, apareceu em Tariqueia, e dedicou-se à procura de trabalho na secagem de peixe. Foi assim que ele conheceu Tomé, e como contatou Felipe e Bartolomeu.

O Iscariotes propôs outro brinde:

Por Yehohanan!

Todos concordaram, e levantamos as jarras. Antes que alguém começasse a pedir uma nova rodada, o "pelicano" enfiou o incrível nariz e perguntou:

Mais vi-vi-vi-vi-vi... nho?

Judas disse que sim e, claro, terminamos todos bêbados e falando sobre o humano e o divino. Eu, inclusive, acho que acabei cantando em inglês. Mas ninguém se deu conta do estranho idioma daquele grego rico e excêntrico. O que cantei? Suponho que alguma música country, tão ade­quada àquele inferno. Ninguém reparou? Não tenho tanta certeza...

Brindamos por Shlomo e pelos mártires que levaram à captura de Yehohanan.

Bartolomeu pagou a conta e Judas Iscariotes jurou fidelidade eterna aos discípulos e à causa.

E nos despedimos do "pelicano gago" com outro "Abaixo Roma!"

Não tenho idéia de como voltamos para a casa de Tomé.

Acho que nos apoiamos uns nos outros, ou algo parecido...

E foi assim que o Iscariotes se uniu ao grupo do Galileu.

Tomé procurou alojar todo mundo.

O Mestre e os discípulos já dormiam. Não sei se notaram a nossa chegada.

Simão Pedro roncava, como de costume.

E não me lembro de mais nada. Sei que dormi profundamente e tive sonhos estranhos.

Estranhos?

Sim, e algo mais...

Foram três sonhos dos quais me lembro. Um deles me impressionou profundamente.

Estávamos no "Pelicano gago".

Estávamos bebendo a uma mesa.

Ali estavam Jesus de Nazaré e sua irmã Ruth, a seu lado. E sentados, também com jarras individuais nas mãos, estavam Yehohanan, Eliseu e Curtiss. Eliseu vestia o macacão de piloto, exatamente como eu. Curtiss aparecia com o uniforme de general da Força Aérea dos Estados Unidos.

Yehohanan bebia água.

Lembro-me de Curtiss, chefe da Operação Cavalo de Tróia, fumando um daqueles charutos intermináveis dos quais gostava tanto.

Eliseu e o general tentavam convencer o Mestre a se juntar à causa:

Há muito dinheiro e poder em jogo - explicavam-, e só precisa nos autorizar a cloná-lo.

E Eliseu mostrava um documento (em papel timbrado do Pentágono). Em um dos cantos se lia: Presidents eyes only. (Só pode ser lido pelo Presidente.)

Clonar Jesus de Nazaré?

E lembrei-me do cilindro de aço, com as amostras...

Bastardos malditos!

Fiz uma série de perguntas:

Por que o presidente dos Estados Unidos está ciente do Cavalo de Tróia? Por que ninguém me disse nada sobre a clonagem do Galileu?

Curtiss me ordenou que fizesse silêncio e disse:

Sua missão é escrever! Escreva! E resuma!

E me lançou uma baforada no rosto...

Basta assinar aqui.

Eliseu indicou o lugar onde Jesus deveria colocar sua assinatura.

Mas o Filho do Homem hesitava.

E Curtiss contra-atacou:

A CIA vai distribuir messias pelo mundo todo... Cem deles em Cuba! Dez mil na China comunista! Um milhão de messias nos países árabes! Entendeu? Será o novo reino! Mas, para isso, para que possamos proceder à clonagem, precisamos de sua assinatura...

Vós não compreendestes - respondeu Jesus.

Yehohanan interveio:

Tudo é uma mentira...

Ruth, paralisada, tentou falar. Não conseguiu.

E então o "pelicano" chegou e perguntou:

Mais vinho?

Olhei com espanto. Ele estava sem gagueira.

Ele me curou - explicou, apontando para o Mestre. - Foi ao pôr do sol...

E acrescentou, feliz:

Ele se dá muito bem no pôr do sol.

Jesus rejeitou a "oferta". Ele não assinaria.

Finalmente, decepcionado, Eliseu guardou o documento e sugeriu ao general:

Não adianta pressionar. Ele não vai assinar, eu o conheço. Seu reino não é deste mundo.

Não importa - retrucou Curtiss. - Nós o faremos sem permissão. E vamos fazer antes de chegar a grande rocha.

Ao ouvir falar da grande rocha, Yehohanan ergueu o jarro com água e disse:

Faltam 24.753,75 lunações para a grande rocha.

O que esse maluco falou? - quis saber o general.

Yehohanan repetiu e completou:

Faltam 24.753,75 lunações... Sindônicas, claro!

Mas que palhaço! - comentou o general, quase para si mesmo.

Tu não entendeste! - insistiu o Galileu. - Eu voltarei por trás da grande rocha.

Curtiss, aparentemente, não entendia o aramaico do Filho do Homem, e perguntou a Eliseu se ele poderia traduzir para o inglês.

Ele diz que vai voltar com a grande rocha...

Não foi isso o que eu disse - esclareceu Jesus ao tradutor. - Eu disse que voltarei por trás, e não com a grande rocha.

Seja como for, quem se importa?

Não é a mesma coisa - disse o Mestre.

O quê? - solicitou Curtiss.

Ele diz que voltará, meu general...

A Parusia! Ele está falando da Segunda Vinda!

E essa, quem é? - interveio o taberneiro.

Eliseu olhou para ele com desprezo e comentou:

Não é uma de suas prostitutas. A Parusia é o advento glorioso do Messias no final dos tempos.

Faltam 24.753,75 lunações... Sindônicas.

Yehohanan continuava a falar obstinadamente. Por que sindônicas?

Uma das garçonetes depositou outras jarras sobre a mesa e Curtiss deslizou a mão direita por baixo da túnica da jovem, acariciando suas nádegas.

Mas, desta vez, sem sorte. A garçonete, ofendida, se virou e lhe deu uma sonora bofetada. O general, vermelho de vergonha, retirou a mão e continuou a conversa:

Então é verdade... Você pensa em voltar à Terra...

Jesus assentiu em silêncio.

E o Vaticano já sabe?

O Mestre foi visto com um sorriso malicioso.

Então, não sabe.

Faltam 24.753,75 lunações...

Sim, nós já sabemos - cortou o general, mais do que cansado da cantilena do Batista. - Lunações sindônicas... Lunações de 29,53 dias...[32]

Ruth finalmente conseguiu falar:

Eles são o Vaticano... Eles, os discípulos.

E acrescentou furiosa:

Eles são traidores de meu irmão. Eles vão mudar a mensagem e fundar uma igreja. Jesus nunca quis uma coisa dessas...

Jesus pediu silêncio.

Mas quando vai ser isso da Segunda Vinda?

A pergunta de Curtiss pairou no ar. Ninguém respondeu. Ou melhor, Yehohanan fez isso a seu modo, com a história das lunações.

Comecei a adormecer. Outra vez aquele vinho barato.

Mas então fui despertado bruscamente.

Era o general, com as mãos em meus ombros, me sacudindo e gritando:

Traduza! Jasão, está me ouvindo? Está me ouvindo?

E fui acordado, mas na vida real. O Mestre me agitava suavemente, com as mãos em meus ombros. E repetia:

Jasão, estás me ouvindo? Acorda, nós já vamos...

Levei algum tempo para despertar.

Oh, minha cabeça... Parecia a de outra pessoa...

O Mestre sorriu, maliciosamente, e comentou:

Mas que noite, hein?

Maldito vinho e maldito "pelicano"!

Jesus piscou para mim e repetiu algo que eu já tinha ouvido em ou­tras ocasiões:

Procura a "pérola" em cada sonho...

Os discípulos, de fato, se preparavam para partir.

Foi um alarme falso.

Quando chegamos à porta, o qibela estava esperando, ameaçador. Assobiou por um tempo, agitou as túnicas e os cabelos e deixou claro que não era o momento de abandonar Tariqueia.

Tomamos o café da manhã e, finalmente, o Filho do Homem aproxi­mou-se do Iscariotes, dizendo-lhe:

Judas, ao recebê-lo, peço a Abba que tu sejas sempre leal...

O Iscariotes, sentado a um canto, nem sequer se levantou. Seus olhos estavam vidrados. Sua ressaca era pior que a minha. E o Galileu terminou a recepção oficial:

- Somos todos a mesma carne, não te esqueças... E agora, segue-me...

Os discípulos o rodearam, e o felicitaram; em especial João Zebedeu e o urso.

Mas Judas não disse nada. Realmente não entendia. Ele estava lá com um pedaço de pão e uma tigela de leite na mão, sentado na casa de Tomé, nas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Ele não compartilhava das idéias do Galileu. E mais: desconfiava dele.

Simplesmente, eu acho que ele se deixou levar pelas circunstâncias. Ele não sabia para onde ir. Seu ídolo Yehohanan estava na pri­são. Tanto fazia cinco ou 25...

E nessa quinta-feira, 11 de julho (ano 26), ficamos em casa.

Os 12 haviam sido recebidos finalmente, e digamos que "oficialmente” pelo Filho do Homem.

Jesus aproveitou o mal tempo para ouvir cada um deles. Todos fala­ram, exceto o Iscariotes, que quase não abriu a boca.

Assim foram conhecendo uns aos outros, suas respectivas famílias, em que trabalhavam, suas esperanças, seus desejos, seus amigos e por que estavam — pelo Mestre. Foi assim que eu soube que Mateus Levi tinha uma preocupa­rão que o consumia: um de seus quatro filhos, chamado de "Neve nas mãos" e que todos em Nahum conheciam como Telag, estava doente. "Muito doente", isse ele, mas não especificou o tipo de doença. Eu descobriria mais tarde, em uma das visitas domiciliares. O menino tinha síndrome de Down.

O Zelote se expressou com transparência, tal como era: seu sonho era atirar os kittim ao mar.

O Galileu ouviu em silêncio.

O mesmo foi defendido pelos Zebedeu.

Felipe, mais modesto, só queria levantar dinheiro suficiente para se dedicar totalmente ao seu laboratório de óleos essenciais e viajar para lon­ge, para a China.

Os gêmeos não tinham maiores aspirações.

Tomé encolheu os ombros e falou de sua esposa, ‘Alam, e do divórcio. “Eu queria ver o mundo..."

Pedro aspirava a ter seu próprio barco. Ele o batizaria de Êben (em aramaico significa "pedra", nome que, aliás, Jesus lhe dera), ou talvez "Per­pétua" (nome da mulher), "mas nunca Amata" (a sogra).

André só queria paz e saúde.

O "urso" fez um discurso, imaginando-se um grande latifundiário no Caná, dedicado inteiramente a seus netos e às suas romãs. Sua proprieda­de seria maior do que Sapiah, a propriedade de Nathan. Ele esperava ali morrer, cercado por livros...

O Mestre e quem isto escreve trocamos um olhar de cumplicidade, mais de um, e mais de duas vezes. Não era esse o Destino de Bartolomeu, o "urso" de Caná... Mas isso, claro, ele não podia saber.

Quanto a Judas Iscariotes, não foi possível extrair uma confidência sequer. Ele estava frio e distante, sempre montado naquele olhar negro e desconfiado.

Minto. Ele fez, sim, uma pergunta.

De repente, para surpresa de todos, ele se voltou para Jesus e pergun­tou sobre o destino do Yehohanan.

O Filho do Homem respondeu com uma frase:

- Permite que o Pai faça o seu trabalho...

Ninguém entendeu.

Fiz algumas contas.

Entre as esposas, filhos e outros parentes a seu cargo, o grupo conta­va com cerca de 34 pessoas ou mais, considerando quem dependia deles diretamente. Em outras palavras, de seus salários.

Eram 34 pessoas, 34 problemas.

Não tive inveja do Galileu...

No geral, foi um dia agradável e prático. Como eu disse, eles se co­nheceram um pouco melhor e, sobretudo, começaram a amar o Filho do Homem. Bem, nem todos...

Eternidade preparou a comida e nos ofereceu um saboroso jantar, à base de cordeiro assado e legumes do Jordão. E Tomé acabou pegando os dados e arriscando suas barbas...

O Mestre riu gostosamente.

No final, ao nos retirarmos para descansar, a casa parecia impregnada de um perfume familiar de mandarim, a essência que eu identificava com o carinho e o amor...

Não foi um mau começo para o grupo, apesar do "Pelicano gago".

 

Nessa madrugada, e com a missão cumprida, o qibela voltou para as terras do sul.

E o yam amanheceu azul e pacífico.

Nessa sexta-feira, 12 de julho, embarcamos para Saidan.

'Alam (Eternidade) estava pulando de alegria no cais. E veio se despedir de nós com toda a família. Tomé, no barco, a chamava de "tirânica e desagradável". ‘Alam agitava os braços e gritava (sem gritar): "Não voltes!"

Teríamos cerca de três horas de navegação.

O capitão enfunou uma vela negra e quadrada e rezou aos deuses para que o vento soprasse a favor. Ele era um fenício que se dedicava ao transporte de pessoas e de mercadorias. Eu o conhecia de vista. Estava sempre cantando.

O céu foi estendendo seus azuis e o mar se aproximou, curioso, brin­cando ao redor do barco. As algas, as peridinium, logo descobriram a embarcação e se uniram à brincadeira das pequenas ondas, perfumando-nos.

O Mestre sentou-se à proa e deixou que os cabelos voassem ao vento durante um tempo.

Ao longe, na costa de Kursi, outras velas perseguiam as tilápias e pa­reciam que estavam se movendo, mas disso não se tinha certeza.

E, de repente, ao receber uma brisa suave e perdida, o fenício, satis­feito, começou a cantar:

"Oh, Íris, quero ser esculpido em teus sonhos..."

Era uma canção triste. Fizemos silêncio. E cada qual se afastou com os pensamentos debaixo do braço.

Eu fui com Ruth...

"Oh, Íris, faz-me de argila, de pedra ou de madeira, mas faz-me..."

A brisa ficou entre as dobras da vela. Não quis se mover mais... Acho que adormeceu.

"... Oh, Íris, sei que me amas, mas me ama em teus sonhos..."

O Filho do Homem, feliz, inclinou-se sobre o lago e foi recolher água na palma de sua mão direita. Ele a contemplou e a deixou escorrer. As gotas brilharam, não menos felizes.

"Oh, Íris, sou a água quando me bebes... Bebe-me!"

O Mestre repetiu a operação e levou água ao rosto. As gotas desce­ram, entusiasmadas. Depois, fechou os olhos e deixou que outra brisa, mais afortunada, fosse lhe secando a testa, as pálpebras, o nariz, as boche­chas bronzeadas e as barbas.

"Oh, Íris, eu morrerei se me esqueceres... Lapida-me em teus sonhos como os deuses pintam os lírios... Oh, Íris, leva-me para tua nuvem!"

E o barco prosseguiu sulcando todos os tipos de azuis, alguns até mesmo bem profundos.

O Galileu, então, chamou a atenção de seus discípulos.

Todos eles se sentaram a seus pés. Apenas Judas Iscariotes permane­ceu indiferente e absorto. Seus olhos estavam fixos em Tariqueia, cada vez mais distante e providencial.

E o Filho do Homem falou sobre um tema de enorme importância, é claro, que eles não captaram. Assim era Ele. Aproveitava cada ocasião para ensinar e, sobretudo, para educar. Se eu tivesse que eleger um título que definisse o Mestre, escolheria o de educador.

No início, a julgar pelos rostos, eles pensavam que Jesus estava blas­femando ou estava fora de si...

Os íntimos se entreolharam e trocaram gestos ou sinais.

"Mas o que ele está dizendo?"

Simplificando, Jesus começou a falar sobre "outros deuses". Talvez tenha tomado a letra da canção emprestada. Eu não tenho certeza...

Ele disse que o reino de seu Pai Azul tinha muitos deuses.

Depois, dirigiu-se a quem isto escreve e afirmou:

- Com maiúscula, querido malak...

Mensagem recebida.

Um desses deuses, de particular importância, é chamado Espírito da Verdade, o "Ator ignorado". Assim foi definido. E entendi que ele estava se referindo ao que os crentes chamam de Espírito Santo (uma redundância, uma vez que os espíritos, especialmente os deuses, são sagrados, santos, perfeitos, por natureza).

Jesus não deu atenção para os sussurros dos discípulos.

Ele assegurou que o Espírito da Verdade é também um Deus silen­cioso e vital.

Habita na matéria, no imperfeito e no limitado.

"E sua especialidade."

Ele habita a matéria - rochas, plantas, chuva, raios, mar, a noite... - para divinizá-la.

"E assim o Divino, como um todo, é o dia."

Eu estava tão perplexo quanto os íntimos. Ou mais...

E vieram à minha mente algumas das conversas com o Mestre, nas quais desenvolvemos outra questão central: a presença do Número Um, Abba, em cada um dos seres humanos. O que este explorador chama de "centelha" para simplificar.

Se eu não entendi mal, assim como o Pai se fraciona e se instala na mente do homem (a partir dos cinco anos de idade), o Espírito da Verda­de faz o mesmo com a matéria inanimada (ou supostamente inanimada). Se assim for, e Jesus nunca mentia, cada planta, cada animal, cada rocha, cada cor, cada raio "contém" (?) uma fração divina.

"...Um Deus que anima, que cuida, e que se informa... em troca."

Que deifica a matéria!

O Mestre notou que os discípulos não seguiam sua explicação, e de­cidiu usar um exemplo.

Pegou de novo a água do yam, a mostrou em suas mãos espalmadas e em seguida, a derramou no convés. A água embebeu a madeira e os dois elementos se tornaram apenas um.

Mesmo assim, eles ainda não conseguiam entender.

"O Espírito da Verdade, prosseguiu Jesus, é água viva que fala..."

E ele olhou para mim intensamente.

Lembrei-me então do milagre de Caná. "Água falante. Um rio da água da vida..."

Eu senti uma emoção especial.

Era esse Espírito, esse Deus (novo para quem está escrevendo isto), cue se "introduziu" também na água dos jarros de Caná...

E surgiu bem clara em minha mente uma velha e querida canção: "Deus é ela". O Mestre a cantava de tempos em tempos, especialmente no estaleiro de Nahum.

"Deus é ela... Ela, a segunda Heh, habitante dos sonhos..."

A letra Heh, em hebraico, representa justamente o Espírito.

Entendi, acho.

A letra Heh está contida no sagrado nome de Deus, e por duas vezes. A segunda Heh, segundo os judeus, simboliza o referido Espírito da Verdade (a essência divina assegurada na matéria). Outros a chamam de Shekinah ou a Divina Princesa.

"Ela, a segunda Heh, habitante dos sonhos..."

Sim, comecei a compreender. O Espírito Mãe...

Bartolomeu, um dos mais cultos, levantou a mão e perguntou:

Mas, rabi, isso não é possível.

Jesus escutou a exposição do "urso".

Os doutores da Lei dizem que a Divina Princesa já não está mais onde sempre esteve... Quando os ímpios entraram em Israel, ela desapare­ceu. Agora vive com eles...

Como eu digo, Bartolomeu não entendeu a sutileza do Filho do Homem.

Jesus não se referia à Shekinah[33] que viveu, supostamente, no Tem­plo. Ele estava falando de um Deus difuso, capaz de ocupar o quarto nível, o mais baixo, pelo puro prazer de "dar" ou, como Ele disse, "para deificar o imperfeito".

De acordo com isso, tudo é sagrado...

E o Filho do Homem veio para confirmar esses pensamentos.

Pegou novamente a água do lago e a derramou sobre o rosto do sur­preso "urso". As gotas, se divertindo, esconderam-se em sua barba.

E Jesus disse:

- Em verdade vos digo, Bartolomeu, o Espírito da Verdade está vos fa­lando... Ele desce, pelo desejo expresso do Pai, para levantar o que está abaixo...

Final do ensinamento.

E cada qual o interpretou à sua maneira. Discutiram, mas Jesus não entrou em polêmicas. Limitou-se a ouvir. Algum dia, eles compreende­riam. Ele estava plantando, abrindo as mentes a uma nova e revolucio­nária ordem. Ele queria, acima de tudo, que imaginassem: que é a forma mais sagrada de adoração.

O Espírito da Verdade: um Deus feito matéria. Eu não tinha pensado nisso. Ele, Jesus de Nazaré, foi um Deus feito carne. O Pai, o Número Um, desliza para dentro da mente. O Espírito (Heh) desce até o último nível de imperfeição... E todos são enriquecidos. Nós nos enriquecemos.

Deus, quanta coisa eu não sei!

Enquanto navegávamos, apareceu o silêncio. Cada qual, como eu disse, passou a conversar com seus próprios pensamentos.

Como tudo era diferente com aquele Homem! Tudo novo!

Por que os evangelistas não contaram as coisas como deveriam? Por que tantas mentiras e tantas manipulações? Por que todos esses interesses mesquinhos?

E me deixei levar pelas idéias semeadas pelo Galileu.

Perfume de algas... O Espírito da Verdade flutuando sobre o yam.

Céu azul sem fim... O Espírito da Verdade que abre as asas.

A brisa, surgindo na ponta dos pés... O Espírito da Verdade que não deseja incomodar.

Água transbordando com vida... O Espírito da Verdade falando.

Mas a trégua durou pouco.

Imediatamente, como uma tempestade, voltaram à minha mente os escritos dos evangelistas. Nada daquilo que foi vivido durante a seleção e a recepção dos 12 tinha a ver com o conteúdo dos textos supostamente sagrados.

Mateus (4, 18)[34] não acerta uma. Não sei de onde ele tirou tantas mentiras...

A respeito de sua própria nomeação, narrada no capítulo 9, versículo 9, embora se ajuste à verdade, não deveria ter sido narrada após a cura de um paralítico. Jesus, na época, ainda não havia iniciado a série de grandes curas. Estava começando...

E o que dizer de Marcos?

Ele copia Mateus em 2, 13. Em 3,13,[35] o desastre aparece novamen­te. Não havia nenhum monte. Ele não o subiu para chamar quem queria. Não deu poder aos discípulos para que expulsassem os demônios. Não os enviou para pregar (não naquele momento). Não chamou de Boanerges aos filhos de Zebedeu ("filhos do trovão"). E tampouco ocorreu a eleição quando Marcos a menciona...

Lucas também não é muito confiável.

 

 

Em 5,1[36] ele se detém em coisas secundárias e de pouca importância e se equivocou sobre Simão, como creio haver me referido.

Em 5,27, ao falar sobre o processo de seleção de Mateus, ele copia Marcos que, por sua vez, copiou Mateus.

Em 6,12, Lucas copia de novo outros evangelistas, e mete os pés pe­las mãos, colocando a seleção dos discípulos em um monte, escolhendo todos de uma só vez e colocando logo a seguir o fato da cura de um para­lítico. Em outras palavras: quando um se equivoca ou falseia a verdade, o restante, ao copiá-lo, comete os mesmos erros.

Como eu disse, um desastre...

Eu digo mais. Em vista de tantos erros graves, por que qualificar os Evangelhos como a palavra de Deus?

Deus nunca comete erros... Que eu saiba.

João Evangelista, mais esperto, não diz nada sobre a nomeação dos outros apóstolos.

Olhei para os 12.

Isso eu não podia negar. O Mestre soube selecionar. Aquele grupo de homens (11 galileus e um judeu) era a representação viva daquele povo (na­quela época). Pescadores, agricultores, carpinteiros, pedreiros, comercian­tes e até mesmo um odiado cobrador de impostos. Não faltou um revolu­cionário (Simão, o Zelote) nem um traidor (Judas Iscariotes). Ele cuidou até mesmo de que dois deles (os gêmeos de Alfeu) não tivessem o mínimo de inteligência. Outro tinha soberba e arrogância (João Zebedeu). Simão Pedro não refletia antes de falar. Era corajoso, mas inseguro. Outros só se r reocupavam com o dinheiro (Felipe e Mateus Levi). E também se cercou ce um filósofo (Bartolomeu) e de um incrédulo e misógino (Tomé).

Na medida do possível, era uma representação aceitável do homem, tanto física como psicologicamente.

Para o meu gosto só faltou um negro e, claro, um discípulo do sexo feminino. Mas tudo chegaria a seu devido tempo... Além disso, quem sou eu para dar minha opinião?

Oh, Íris!... Leva-me para tua nuvem!

O barco do fenício se afastou, rumo a Nahum.

Nós desembarcamos em frente da quinta pedra, muito perto do ca­sarão dos Zebedeu.

Seria a terceira hora (nove da manhã) quando entramos na casa.

Salomé, a dona da casa, não gostou muito de ver tanta gente...

Jesus a tranquilizou. Os "estranhos" logo iriam embora.

E assim foi.

Jesus conversou com André, o "chefe", e este organizou a questão do alojamento.

Os gêmeos de Alfeu dormiriam na casa de Pedro e de André. Havia espaço de sobra, disseram. Tomé e Iscariotes foram acolhidos na casa de Felipe com Bartolomeu. Era o natural. Com Mateus Levi e o Zelote não houve problema. Eles foram para Nahum, para suas respectivas casas. No casarão dos Zebedeu não havia lugar para mais ninguém.

E Salomé suspirou, aliviada.

Eles marcaram um encontro no dia seguinte. Continuariam a organizar-se.

No meu quarto eu encontrei três novas mensagens. Dizia o seguinte: "Teu olhar me envolve", "Caminhemos com os olhos" e "Agora eu toco o céu".

Eu tinha quase certeza. A autora tinha que ser uma das filhas de Sa­lomé... Mas como seria possível entender que ela pudesse se apaixonar por um ancião como eu?

Guardei os óstracos com os demais e desci até a praia.

Aquela sexta-feira, 12, foi dedicada ao descanso e à conversa. Eu con­versei muito com o Mestre e também com a família de Zebedeu. Abril continuava me olhando com intensidade. Estava mais bonita e atraente do que o habitual.

Salomé não podia acreditar na escolha dos 12; especialmente na de Mateus, o publicano. Ou melhor, o "detestado publicano", segundo suas palavras. Nem gostou da escolha de Iscariotes. As mulheres não gostavam dele. Não olhava nos olhos e nunca sorria. E elas não estavam enganadas...

Quanto às minhas conversas com o Mestre, talvez seja melhor que eu as deixe para mais tarde. Há tanto para contar...

No dia seguinte, sábado, 13 de julho, os discípulos se apresentaram no casarão e se colocaram sob as ordens de André. O Filho do Homem retirou-se para as colinas próximas. Tinha que conversar com o Pai.

De acordo com André, o Galileu lhe havia confiado a organização do grupo.

E assim eles o fizeram.

Durante cinco dias, os íntimos se reuniram na "terceira casa" e fala­ram e falaram.

Quando o Mestre regressava, no final do dia, os discípulos se retira­vam. Ficou claro que o Mestre não queria participar das decisões, como eu poderia dizer, puramente domésticas.

Todo mundo respeitou essa sábia posição do Filho do Homem.

E na noite de quarta-feira, 17 de julho, quando todos estavam sen­tados ao redor do Galileu, no silêncio da praia de Saidan, André foi des­crevendo o papel de cada um, "a partir deste momento ou quando o rabi entendesse mais conveniente".

Jesus ouviu, visivelmente satisfeito.

E naquele dia, como eu digo, nasceu - oficialmente - a organização dos 12.

Em suma, isto foi o que eu ouvi:

De comum acordo, André foi eleito o "cabeça" de todos eles. Ele já desempenhava esse papel em teoria e na prática. Todos o procuravam quando havia um problema. André, como eu já mencionei, era uma pes­soa calorosa e serena. Seus conselhos eram sempre equilibrados. Pena que os evangelistas não o tenham levado em conta.

E André continuou enumerando:

Por ordem de seleção, Simão Pedro e os Zebedeu foram os seguintes. Os três fariam parte da "tabbah", uma espécie de "guarda pessoal" que protegeria o Mestre em todos os momentos, ou pelo menos enquanto ele permanecesse em contato com as pessoas. A "tabbah", quase sem querer, foi formada em 27 de fevereiro em Caná, quando Pedro, João e Tiago Zebedeu rodearam Jesus e tentaram, com sucesso, que os inoportunos convidados do casamento fossem mantidos à distância. Foi nessa quarta-feira, 17 de julho, que vi isso claramen­te. Esta foi a razão pela qual Jesus apareceu cercado, em sua vida pública, por estes três discípulos. Não era uma questão de preferência ou de sentimentos. Era uma atribuição aprovada por todos. O Mestre não tinha nada a ver com isso. Ele simplesmente limitou-se a aceitar a referida "tabbah".

O quinto discípulo selecionado, Felipe, foi designado o responsável pelos assuntos domésticos. E não podia ter sido de outra forma. Isso vinha sendo contado há tempos. Felipe era fascinado por duas coisas: cozinha e dinheiro. Ele era um bom administrador. Bastava a ele apenas olhar e já saberia onde estava cada coisa e o que poderia estar faltando. Ele parecia ter olhos de raios X... No início, seu trabalho foi fornecer alimentos para o Galileu e seus companheiros. Gradualmente, as funções de Felipe se es­palhariam pelas multidões que ouviam ou que acompanhavam o grupo. E isso provocaria bem mais do que uma ou duas dores de cabeça...

Mas vamos por partes.

O "urso", o sexto discípulo, recebeu uma das responsabilidades mais incômodas. Ninguém a queria. Houve longas discussões. Finalmente, eles tiraram a sorte e coube ao bom Bartolomeu. Ele deveria estar ciente das necessidades das esposas e dos filhos de cada discípulo. Isso significava ter que viajar regularmente a Nahum, Saidan, Kursi e Tariqueia, e verificar como eles andavam de dinheiro, além de relatar qualquer doença ou incidente grave. Dado o temperamento de algumas das esposas, e os ante­cedentes já conhecidos, todo mundo estava relutante em aceitar tal tarefa. O "urso" se resignou a isso, simplesmente.

Dada a sua longa experiência com dinheiro, Mateus foi nomeado o administrador-geral. Seria o responsável pela tesouraria. Mateus Levi iria lidar com o acompanhamento dos fundos do grupo e de sua gestão. Nove dos discípulos lhe deram o poder de parar as pregações, quando fosse ne­cessário, para que voltassem ao trabalho e assim reabastecessem o "fundo comum". Ele aceitou de bom grado. Era a cara dele. Judas Iscariotes e João Zebedeu se opuseram. Não digo que odiavam o publicano, mas quase...

Os gêmeos de Alfeu eram um caso especial. Foram nomeados os "ga­rotos de recados". Eles ajudariam todos, e naquilo que fosse mais necessá­rio. Eles não disseram que sim nem que não. Na verdade, eles nunca di­riam nada. Judas de Alfeu continuava com sua crise de nostalgia. E ficava perguntando: "Quando voltaremos para casa?"

Com Tomé também houve problemas. Ninguém sabia o que fazer com ele. Queria tomar conta do dinheiro, mas André sabiamente desviou a questão. E ele, acometido de estrabismo, foi submetido a um sorteio. Tomé adorou. A sorte (?) quis que ele lidasse com o planejamento dos alojamentos e das viagens. Quando fosse o momento (isto é, a vida de pregação do Mestre), Tomé deveria se encarregar de prever um bom lugar para dormirem e que rotas deveriam seguir. Ele disse que conhecia bem as tabernas e casas de jogo do yam...

O Iscariotes foi nomeado o "pagador". Ele deu de ombros. Estaria sob o comando de Mateus Levi. Pagaria o que lhe fosse ordenado. Era uma espécie de tesoureiro, nada mais. Deveria fazer relatórios semanais das despesas. Isso foi o estabelecido, mas nunca foi cumprido. Judas terminou prestando contas a André. Com Mateus, o cobrador, quase não se relacio­nou. Para Iscariotes, o homem era um "lixo".

E durante as discussões, enquanto André tentava organizar o grupo, Judas não se cansava de perguntar sobre aquilo que ele considerava essen­cial naquela organização incipiente: "Onde eles esconderiam as armas?"

Ninguém sabia responder, exceto Simão, o Zelote.

O guerrilheiro aconselhava fazê-lo no fundo das embarcações. Seria conveniente ancorá-las no yam, não muito longe.

Eu não saía de meu espanto. Todos ainda continuavam com aquelas ve­lhas idéias sobre o Messias e a libertação do povo de Israel. Como eu já disse em diversas oportunidades, não invejava o trabalho do Filho do Homem.

E eu deixei para o final Simão, o Zelote, porque a escolha de seu traba­lho foi sem dúvida a mais trabalhosa. Desde o primeiro momento ele quis abordar a formação de discípulos. Ele sabia bem como manejar uma espada e havia participado de várias escaramuças contra os "amaldiçoados kittim". Também pensava em organizar os arsenais e ter a coordenação com outros exércitos (?). Ele propôs, inclusive, um plano para resgatar Yehohanan.

André viu esses planos e quis guardá-los para apaziguar o entusias­mado guerreiro. E ressaltou que esses assuntos não eram da competência do "chefe".

Finalmente, o máximo que ele pôde fazer foi lhe dar um "trabalho temporário". O Zelote iria lidar com as formas de relaxamento dos discí­pulos e do Mestre "durante as viagens". André, eu acho, improvisou como Deus lhe deu a entender.

Simão ficou com cara de idiota. Mas aceitou. "É outra maneira de elevar o moral da tropa", disse ele.

Em resumo: ele se tornou o responsável pelos jogos e entretenimento durante as viagens.

Comecei a tremer.

O Mestre os contemplou um a um e perguntou se todos estavam de acordo. Eles assentiram.

Nada mais se disse.

O Mestre passou a outros assuntos, não menos complicados: traba­lho e família.

Ele disse que tinha pensado bem sobre isso. E declarou:

O novo período de ensinamento, que começaria praticamente naquela noite de quarta-feira, 17, iria se prolongar durante meses. Não disse quantos. Eu sabia que as intenções do Homem-Deus eram concretas e específicas. Ele lhes citaria e educaria ao longo do restante do ano. No total, mais de cinco meses.

Pois bem, durante esse tempo eles alternariam trabalho e ensino.

Simão, o Zelote, o interrompeu:

Isso quer dizer treinamento da tropa...

O Mestre sorriu, divertindo-se, e assentiu com a cabeça.

Compreendi. O que mais ele poderia fazer?

Em suma, eles dedicariam uma ou duas semanas por mês ao trabalho, e as restantes às "aulas".

Retificou imediatamente:

Melhor dizendo, o treinamento da tropa...

O Zelote, muito sério, balançou a cabeça concordando. João Zebebeu e Judas Iscariotes ficaram satisfeitos.

Eles formariam três grupos e se dedicariam, principalmente, à pes­ca. Jesus disse claramente: ele deixaria o estaleiro e acompanharia seus homens. Todos aplaudiram a decisão. Pescariam durante a noite. Uma parcela dos rendimentos iria para um fundo destinado às futuras viagens de pregação. Outras duas partes seriam destinadas à manutenção das famílias e ao pagamento das refeições na casa de Zebedeu, respectivamente.

Jesus submeteu essas propostas à votação e todos se mostraram de acordo com o Galileu.

Solucionado o problema.

E eu me perguntei: o que o Mestre faria com Zal, o seu lindo cão cor de estanho?

O velho Zebedeu se recusou a cobrar pelos almoços e jantares de Jesus e de seus discípulos. Salomé ficou uma semana sem falar com o marido...

Finalmente, por decisão do Filho do Homem, o grupo manteria um segundo dia de descanso por semana. Todo mundo ficou surpreso. Esse dia seria quarta-feira. E o Mestre esclareceu:

A dedicação à boa-nova requer um grande esforço. Esse dia será entregue, especialmente, à vontade do Pai. Não fazer nada, e vós vereis, é muito difícil...

Durante o resto do dia, o Mestre se dedicou a comentar outro pro­blema, não menos delicado. Ele falou das autoridades civis, religiosas e de ocupação (os kittim) e deixou muito claro que não queria conflitos com ninguém. Nenhuma crítica a Antipas...

Lembrei-me das invectivas do Batista.

O Mestre sabia o que estava dizendo... E acrescentou categoricamente:

Se achardes que os governantes devem ser censurados, deixai esse trabalho para mim... E atenção...

Os discípulos o seguiam, perplexos.

Nenhuma crítica aos kittim e muito menos a César!

O Iscariotes e o Zelote discordaram, mas Jesus insistiu:

Meu reino não é deste mundo...

As primeiras estrelas foram observadas, confirmando as palavras do Deus-Homem.

E Iscariotes - claro que seria ele - fez a sua pergunta de sempre:

O que será feito para ajudar Yehohanan?

E o Galileu, impassível, respondeu com a habitual:

Permita que Abba e seu povo façam o seu trabalho...

Judas não estava satisfeito.

No dia seguinte, quinta-feira, 18 de julho, o Filho do Homem colo­cou mãos à obra, de novo. E começou uma segunda rodada de ensina­mentos, mas desta vez praticamente do zero.

Quando saíam para pescar, dormiam até o meio-dia ou uma da tar­de. Despois, eles se reuniam no casarão de Zebedeu, e Jesus falava daquilo que ele e eu tínhamos conversado inúmeras vezes.

Quando se referia a Abba, era incansável, tenaz e imaginativo.

Os discípulos ainda não entendiam. A idéia de um Yaveh irado ainda era muito profunda em seus corações. Não era fácil a mudança daquele Deus racista e fiscalizador por um Pai bondoso e imaginativo que habita em nós, que espera (seja lá o que fizermos) e que, sobretudo, nos dá a imortalidade (não importa o quê).

Jesus se transportava quando falava Dele, e os íntimos o percebiam (ao menos a maioria deles). Os olhos cor de mel se iluminavam e as pa­lavras fluíam, cristalinas e inesgotáveis. Como era possível que ele falasse assim? A resposta era simples: ele sabia do que falava...

E foi alternando entre "aulas" sobre a natureza do Pai Azul com aque­las sobre o reino alado e invisível, que também vive dentro de nós "embora não o saibamos". Cansou-se de repetir isso: não é um reino material. Não é algo físico, embora seja a realidade das realidades. E lembrei-me do sonho da janela: "É hora de voltar à realidade".

Ele estava ali para despertar o mundo para a boa-nova: estamos sal­vos porque sempre o estivemos! Deus não é o que dizem e, muito menos, aquilo que nos vendem!

Eu estou aqui para vos revelar a natureza do Pai. A única possível. Vos agora, assim como o resto do mundo, sofreis de escuridão...

E explicou:

Uma escuridão causada por outros... Mas confiai. Seu Destino é esplêndido. Estou aqui para enxugar as lágrimas da humanidade... Deixai ce chorar por vós mesmos... É hora de olhar para cima! Não estais sós nem perdidos!... Meu Pai me enviou para remover o véu do medo... Vós não sabeis onde estais nem o porquê, mas isso não importa agora. Saibei que sois Dele e a Ele retornareis.

Os discípulos olharam para ele, incrédulos.

Pena que estas palavras não foram recolhidas pelos evangelistas...

Nesse momento, honestamente, os ensinamentos do Mestre me pa­receram uma batalha perdida. Parecia impossível que pudessem perfurar o chumbo da tradição e romper as velhas idéias sobre a Divindade. Mas ele fez isso...

O "urso" fez muitas perguntas:

E o que acontece com os maus e os perversos? Também são imortais? Se o Pai não é justo mas sim amoroso, como diz, Mestre, o que acon­tece com o pecado e as injustiças? Serão os ímpios tratados da mesma rorma que os justos e os eleitos? Por que Deus permite a maldade? Por que as crianças morrem? Por que alguns seres humanos nunca levantaram a cabeça e outros, no entanto, tiveram de tudo? Por que não sabemos o nos­so destino? Por que o mundo está vivendo no escuro? Por que tu, antes, vivias na luz?

O Mestre respondeu brevemente:

São as regras do jogo...

Poucos dias depois, o Filho do Homem mudou de tática.

Antes de começar cada ensinamento, os discípulos que foram es­colhidos em primeiro lugar falavam com os que foram selecionados por ultimo. Eles se reuniam na "terceira casa" e os seis primeiros tentavam colocar em prática o que o Mestre havia lhes ensinado. Discutiam, tro­cavam idéias e se apresentavam novamente perante Jesus com mais e mais perguntas.

Não serviu para grande coisa.

O Galileu, a cada dois ou três dias, se retirava para as colinas próxi­mas e fazia isso sozinho. Melhor dizendo, ia com Zal. Eu não sei como ele conseguiu convencer Salomé a permitir que o cachorro voltasse ao casarão. Na verdade eu sei, sim. Salomé o fez prometer que cuidaria de Zal. E assim foi. O Mestre cuidava de tudo. Zal, inclusive, dormia em seus aposentos. E reitero: os olhos vívidos e amendoados daquele kuvasz conquistavam quase todos...

Esse foi um período no qual os íntimos não aprenderam muita coisa, aparentemente, mas começaram a sentir afeição pelo Filho do Homem. Jesus conversava em particular com todos eles, exceto com Judas Iscariotes. E os discípulos, eventualmente, acabavam confessando suas preocu­pações, tristezas e sonhos. O Mestre descia com eles até a praia e ali cami­nhavam e caminhavam. Foi assim que eles abriram o coração para o Filho do Homem. Mateus Levi descreveu a situação muito apropriadamente:

Há pessoas que quanto mais eu conheço, mais eu desprezo. Com este homem acontece o contrário. Eu não o compreendo, mas quanto mais o conheço, mais o admiro...

Em um daqueles aprazíveis dias, quinta-feira, 25 de julho, sentados na "terceira casa", o Mestre fez uma advertência histórica.

Lembro que ele estava segurando o cálice de metal em suas mãos. Ele o acariciava, como sempre, enquanto Zal dormia a seus pés.

Observou os discípulos atentamente e, sabendo o que dizer, começou:

Refleti bem sobre o que vou comunicar-vos...

Os discípulos se entreolharam, sem entender.

A boa-nova que anuncio, e que continuaremos anunciando, deve ser a vossa única mensagem.

Eles, é claro, não sabiam sobre o que o mestre falava. Mas eu comecei a intuir...

Não é meu desejo que se desviem disso, pregando sobre mim e sobre meus atos.

Ele manteve alguns segundos de silêncio e, observando que não en­tendiam, insistiu:

Não vos desvieis... Não caís na tentação de organizar cultos sobre a minha pessoa... Eu não sou importante, mas sim Ele.

E dirigiu o dedo indicador esquerdo à testa.

Entenderam?

Alguns disseram que sim por pura obrigação.

Obviamente, era muito cedo para que eles chegassem a entender palavras tão proféticas.

E continuou, com doçura:

Vós sois humanos, mas é meu dever relembrar-vos agora... Quando chegar o momento, proclamai a boa-nova. Proclamai quem é o Pai ; qual é seu verdadeiro futuro... Dizei às pessoas que existe um reino invisível e que tudo está preparado para o bem. Não vos entretenhais em criar lendas, dogmas ou hierarquias. A boa-nova não precisa de tem­plos, mas de mensageiros...

Senti um fogo interno.

Ele, então, desviou o olhar e me procurou.

E insistiu, pausadamente, enfatizando as sílabas:

Men-sa-gei-ros... Men-sa-gei-ros...

Anos mais tarde, após a morte do Filho do Homem, estas palavras provocariam o primeiro cisma na Igreja nascente. Pedro, e parte dos 12, começaram a pregar sobre a figura de Jesus de Nazaré e sua ressurreição, esquecendo a verdadeira mensagem. Felipe, André, Bartolomeu, Tomé e Simão, o Zelote, lembraram-se dessa manifestação do Mestre e se distanciaram de Simão Pedro e do restante. Os evangelistas tampouco registraram o que foi dito pelo Galileu naquele dia 25 de julho. Não interessava...

Jesus não tinha pressa. Eu nunca o vi confuso ou perdido. Ele sabia o que queria e como e quando expô-lo. Era um espetáculo para ser visto. Nunca ficava alterado. Não se enervava diante da teimosia ou da miopia mental dos discípulos. Deixava que falassem até se cansar. Não discutia quando eles voltavam aos temas habituais: arsenais, armas, exércitos, generais do Messias, a distribuição das terras dos ímpios, a distribuição dos despojos...

Continuava acariciando o cálice ou permanecia de olhos baixos, pensativos. Depois, quando os íntimos, exaustos, ficavam em silêncio, ele prosseguia...

Mas os corrigia em outras questões: seu Pai e o reino invisível e alado.

Não permitia enganos a respeito da bondade de Abba.

Vós estais sentados sobre seus joelhos - disse. - Essa é a revelação que vos faço. Esquecei o fogo, a raiva e a frieza de Yaveh. Meu Pai não é assim. Isso é o que deveis dizer ao mundo... Vós sois imortais por um dom divino. Sois filhos de um Deus! Do que mais precisais? Olhai para vossos irmãos como sendo irmãos, porque é isso que sois.

Foi Mateus, o publicano, o primeiro a começar a despertar para a nova ordem. Foi o primeiro a intuir, ainda que tardiamente. Mais tarde uma frase sua tornou-se famosa, mas foi também ignorada pelos evange­listas: "Descobrir o Pai Azul é encontrar uma mina de ouro que, além do mais, trabalha sozinha".

Foi em 26 de julho, sexta-feira, que as notícias sobre Yehohanan co­meçaram a chegar. Elas se espalharam rapidamente pelo yam.

Eram confusas. Falavam de uma transferência do Batista para o sul, ao mar de Sal (agora, o mar Morto). Também correram rumores sobre Abner e os "justos" (os poucos que ainda permaneciam). As pessoas diziam que Ab­ner também havia sido capturado. Outros afirmaram que ele estava a salvo em Samaria, sua terra natal. Ninguém sabia se as notícias da perseguição aos seguidores do Yehohanan ordenada por Antipas eram verdadeiras ou não.

O Mestre ouviu todas as versões e ficou em silêncio.

O Iscariotes, muito irritado, não deixava de incomodar o Galileu com sua pergunta habitual: "Faremos algo por ele?"

André o repreendeu, mas Judas virou-lhe as costas.

No dia seguinte, sábado, o lago recebeu outra notícia. João Zebedeu, ao tomar conhecimento dela, cuspiu indignado. Tinha acabado de chegar à Cesareia um novo governador romano. Seu nome era Pôncio...

E lembrei que, no "berço", conservávamos um passe assinado pelo insano...[37] Esse documento foi (seria) assinado no ano 30, e nos deu a oportunidade de viajar pelo território sem problemas. Foi bom que, desde o mês de elul (agosto-setembro), ele foi colocado na bolsa de viagem.

E foi nessa tarde de 27 de julho que aconteceu algo que obrigou o Mestre a revelar seus planos aos íntimos.

De acordo com os relógios do "berço", o ocaso, nesse sábado, 27 de julho, ocorreu às 18 horas, 32 minutos e 16 segundos.

Estávamos na praia em Saidan. O sábado terminava. Em breve, com o pôr do sol, começaria o domingo.

Uma vez concluída essa jornada, Jesus e os 12 embarcariam e passariam a noite no yam, pescando. Cada noite de trabalho, como já me referi, o Mestre alternava com uma equipe. Desta vez, ele estava com o grupo dos Zebedeu.

Jesus e quem isto escreve estávamos perto dos barcos, brincando com Zal.

Notei que os discípulos estavam meio inquietos...

Eu não sabia o que estava acontecendo.

Eles conversavam entre si. Iscariotes levantou os braços. Parecia discordar. Discutiam.

O Mestre também percebeu, mas continuou atirando gravetos na água. Zal ia e vinha, com o pêlo da cor de estanho encharcado, e mais encharcado ainda de alegria. A cada graveto atirado, ele se arrojava no yam como se fosse a última coisa que faria em sua vida. Era um cachorro corajoso... E, bem, ele demonstraria isso no momento certo.

De repente, Pedro, Judas Iscariotes e Tiago Zebedeu separaram-se do grupo, avançando em direção ao Galileu. O restante dos discípulos permaneceu em expectativa.

O Filho do Homem viu a chegada dos três íntimos e parou o jogo. Zal manteve-se próximo ao Mestre, enquanto aguardava que atirasse o graveto que segurava na mão esquerda. Não tirou os olhos do graveto durante todo o tempo que a cena durou.

Jesus olhou para os discípulos e esperou.

Foi Simão Pedro quem tomou a palavra. Estava nervoso. No começo, não estava bem certo daquilo que gostaria de expressar:

Bem, senhor... Na verdade, esses aqui e eu...

Tiago era puro gelo, como quase sempre. Não movia um músculo sequer. O Iscariotes, mais nervoso do que Pedro, começou a remover a areia com os pés descalços.

Bem - continuou Pedro -, quero dizer que estivemos conversando e...

Zal balançou a cauda, incentivando o seu dono.

Jesus sorriu levemente, e ficou esperando.

Quero dizer que estivemos conversando...

Ele parou mais uma vez, e apontou para os companheiros. Eles, ao notar que Jesus dirigiu o olhar nessa direção, disfarçaram e fingiram que estavam fazendo alguma coisa.

... E nos perguntamos se já chegou o momento de entrar no reino...

O Mestre sentiu um inseto perto da cabeça e levantou a mão esquer­da, tentando assustá-lo. Zal esticou os músculos, preparando-se.

Alarme falso. E Zal olhou o Mestre, como dizendo: "O que há de errado?"

Temos discutido o assunto - continuou Simão Pedro, um pouco mais sereno -, mas não o compreendemos totalmente.

Jesus baixou a mão e Zal relaxou, mas continuou alerta. Assim que olhava para o graveto, dirigia seus olhos amendoados para os do Mestre.

O Filho do Homem incentivou Pedro:

Bem...

Pois é isso, rabi, nós não sabemos...

Não sabeis o quê?

Não sabemos se anunciarás o novo reino em Nahum ou se o farás na Cidade Santa (Jerusalém)...

Eu entendo.

O Iscariotes assentiu.

Jesus ficou em silêncio. Ele sabia que havia algo mais...

Por outro lado... - hesitou Pedro, sem saber como entrar no assun­to. - Por outro lado, eles e eu...

E Simão Pedro levantou o braço esquerdo, apontando para aqueles que permaneceram com os barcos. Zal não interpretou bem o gesto do discípulo e deu um salto, colocando-se na frente do aturdido Simão.

Alarme falso de novo.

-... Temos conversado sobre a questão que nos preocupa, e que preocupa as nossas famílias.

O Mestre sabia muito bem sobre o que o apaixonado e desajeitado discípulo estava falando, mas decidiu esperar...

Estou falando sobre os cargos que vamos ocupar assim que o reino for estabelecido.

Pedro ficou aliviado. Finalmente havia falado...

Cargos? Mas que cargos?

Imaginei que o Filho do Homem quisesse extrair a informação.

Generais, governadores, advogados... Como sabes.

E tu, Pedro, o que serias?

O governador do yam. Foi o que disse Perpétua, minha mulher...

Perpétua?

É que as mulheres querem saber...

Jesus ficou sério e cortou seco:

Por que vos escondeis atrás das mulheres?

Simão Pedro tentou continuar com as demandas, mas o Mestre não permitiu. Levantou a mão esquerda e chamou aqueles que esperavam na praia.

Zal se esticou novamente. E eu digo o que ele deve ter pensado: "Que estranho! O Mestre nunca engana..."

Os discípulos se aproximaram e Zal ficou totalmente confuso.

Quando todos estavam reunidos, apontou para Simão Pedro e disse:

Eu vou ignorar o que disse vosso irmão...

Alguns baixaram a cabeça, envergonhados. Eles sabiam muito bem do que estava falando.

Ele acrescentou:

Até quando eu terei que ser paciente convosco?

Pedro interveio:

Os Zebedeu querem monopolizar os cargos...

Isso não é verdade - gritou João Zebedeu, vermelho de raiva. - Nós o conhecemos muito antes que vós. Por isso, nada mais justo que aspire­mos aos cargos mais altos...

Isso mesmo - sentenciou seu irmão Tiago.

Mas todos nós vamos lutar por esse reino...

A declaração de Iscariotes foi apoiada pelo Zelote. O restante do grupo se manteve à espera, mais ou menos como Zal.

Jesus falou suavemente, mas com firmeza.

Eu não estou aqui para me sentar no trono de Davi. Eu não estou aqui para chefiar os exércitos, nem para fazer política, nem para tratar de assuntos materiais... Por que não entendeis?

Foi a primeira advertência do Filho do Homem sobre a questão igualmente sensível da política.

Vós sois mensageiros de um reino espiritual.

Eles continuavam sem entender.

Algum dia, e mais cedo do que supondes, vós me representareis no mundo. Devereis fazer tal e qual eu vos pedi. Falei de minha mens­agem, e não de política. Revelai ao mundo quem é Abba, mas não o mistureis nos assuntos mundanos. Eu não vim para mudar a ordem social, econômica ou política. Não é essa a minha missão. Se eu fizesse algo assim, amanhã os acontecimentos do próprio mundo terminariam com essa ordem.

Ele olhou para mim com intensidade. Eu sabia o que ele queria dizer.

Em verdade vos digo que é mais importante criar esperança do que bem-estar. Meus amigos, escutem-me: meu reino não é deste mundo... Eu não vim para mudar as leis ou para mudar os governantes, nem para abençoar ou condenar os sistemas políticos ou econômicos... Estou aqui para fazer a vontade do Pai. Que deve ser o grande objetivo de todo homem e toda mulher. Essa é a minha mensagem. Isso é o que eu quero que vós transmitais para o mundo.

Os 12 ficaram chocados.

Na minha humilde opinião, o problema (por agora) não tinha conserto.

Jesus pediu que eles se sentassem ao seu redor. O graveto continuava em sua mão esquerda, para espanto e alegria simultâneos do paciente Zal.

E Jesus falou com toda a franqueza, expondo seus planos imediatos. Eles trabalhariam e receberiam instruções durante os próximos cinco me­ses. Em janeiro, se essa fosse a vontade de Abba, eles se lançariam pelos caminhos e proclamariam o novo reino.

Desta vez, eles entenderam.

Aquilo era concreto, muito concreto. Cinco meses de "treinamento das tropas".

E todos ficaram satisfeitos.

Pedro queria se levantar e dizer algumas palavras, mas Tomé se adiantou:

Nós não sabemos que reino é esse, rabi, mas não importa. Estamos contigo... Vamos!

Jesus os abraçou, um de cada vez. O Iscariotes foi o único que não se deixou abraçar.

O sol, dourado e satisfeito, foi rolando para o poente, e o Mestre exclamou:

Agora vamos pescar... E amanhã eu os farei pescadores de homens.

E o Galileu, feliz, acabou jogando o graveto nas águas do yam. Zal se apressou em ir buscá-lo. Finalmente...

Minutos depois, ele os via partir. Em um dos barcos navegavam os Ze­bedeu, os gêmeos e o Galileu. No segundo, seguiam Felipe, o "urso", Tomé e Judas. No terceiro estavam André, Simão Pedro, Mateus e o Zelote.

Peguei Zal e voltei ao casarão.

Eu nunca vou esquecer a noite desse sábado, 27 de julho...

Preparei a comida do cachorro, jantei e conversei com a família.

Fiquei surpreso de não ver Iyar (Abril), mas também não perguntei nada.

Haviam chegado novas informações sobre o Batista. Aparentemente pelo menos de acordo com os rumores, os seguidores haviam tentado um se­gundo ataque à prisão de Cobre. Fora mais um fracasso espetacular. Mas não se podia confiar nesses boatos. A cada dia nascia e se espalhava um novo...

Mas pensei: teria sido por causa dessa tentativa de ataque que Yehohanan havia sido transferido para o sul?

Também conversei com o velho Zebedeu. Fazia dias que uma idéia me rondava, mas não cheguei a contá-la para ninguém. O Mestre, como se disse, estaria dedicado à pesca e a passar seus ensinamentos a seus dis­cípulos durante os próximos cinco ou seis meses. Isso significava que ele não sairia de Saidan. Eu teria, portanto, tempo e tranquilidade de sobra, ao menos em teoria. Será que eu conseguiria convencer o patriarca dos Zebedeu para que me permitisse copiar, novamente, o conteúdo dos 20 rolos onde se relatavam as viagens secretas (?) de Jesus?[38] Eu tinha ficado sem informação como consequência do incêndio na insula, em Nahum. Ele aceitaria? Tive minhas dúvidas. Este explorador conseguiu acesso aos papiros no ano 30, quando o Filho do Homem já havia falecido. Agora era diferente. O velho Zebedeu prometera ao Mestre que guardaria segredo “enquanto vivesse".

Não importava. Gostaria de tentar...

E após o anoitecer, depois de deixar Zal na "terceira casa", dirigi-me ao ''pombal". Eu continuava remoendo a idéia e a conservando em minha mente. Como poderia explicar a Zebedeu? Não seria fácil...

De repente, levei um susto.

Vi luz sob a porta de meu quarto.

Eu parei.

Estranho...

Eu não tinha o costume de deixar aceso o candeeiro de azeite. Fazia isso sobretudo pela segurança.

Caminhei lentamente.

Não, eu não estava errado. Por debaixo da porta podia se perceber o tímido oscilar de uma chama amarela.

A madeira rangeu sob meus pés.

Olhei em volta.

Tudo estava escuro.

Não havia ninguém lá.

Mas então, quem estava no meu quarto?

Aproximei-me da porta para tentar ouvir.

Nada. Silêncio.

Talvez tivesse sido um erro deste explorador. Quem sabe eu tivesse me esquecido de apagar o candeeiro.

Isso não seria possível. Eu era extremamente cuidadoso, sobretudo em se tratando de fogo...

Eu podia sentir meu coração batendo. Alguma coisa estava para acontecer. Eu sabia...

Pensei em me virar e regressar à "terceira casa". Mas por quê? Do que eu tinha medo?

A "vara de Moisés" estava lá dentro. Se fosse um ladrão...

Não, não tinha lógica. No quarto não havia nada de valor, exceto o saco de viagem com o "323" e o jade preto.

Eu não tinha escolha. Ou melhor, eu tinha sim, mas estava sendo consumido pela curiosidade, um dos meus piores inimigos...

E meu coração avisou: "Você não deve abrir essa porta".

Não obedeci, é claro.

Empurrei a porta lentamente.

A madeira se deixou abrir e me ofereceu uma visão que jamais esquecerei.

O candeeiro realmente fora aceso e estava sobre o grande baú, como de costume.

A suave luminosidade tremia um pouco, abalada por uma leve e não menos curiosa brisa procedente do lago.

Eu estava certo.

O coração continuava bombeando, mais e mais rápido.

Eu estava perplexo, sem saber o que fazer.

Quase recuei e fugi, mas não podia fazer isso...

Sentada na borda da cama estava Abril, uma das filhas de Salomé.

Nesse momento eu soube: era ela a autora das mensagens nos peda­cinhos de cerâmica.

Ela olhou para mim com atenção.

Usava o cabelo vermelho recentemente escovado e uma túnica bran­ca de linho, imaculada.

Estava escondendo alguma coisa nas mãos.

Seus olhos me seguiram com atenção. O castanho habitual tinha desapa­recido. Agora era um castanho doce e luminoso. Não piscava. Mal respirava.

Fechei a porta, nervoso. Eu não sabia o que dizer.

Eu a contemplei e tentei sorrir, acho.

Meu coração estava prestes a saltar para fora da janela.

O que eu deveria fazer?

Já disse: sempre fui desajeitado com as mulheres. Isso estava muito claro...

Ela não falou nada. Apenas estendeu o braço esquerdo e me entregou um óstraco, um pedaço de cerâmica. Seu toque com os dedos me fez estre­mecer. Havia outra mensagem curta.

Li, atordoado: "Eu quero te beijar, mas não posso".

Olhei-a novamente.

Percebi como se agitava. Seu peito começou a oscilar, muito lentamente.

Mas continuou sem pestanejar, com o rosto sério.

Aquela mulher falava com os olhos, como a maioria delas.

E achei ter entendido a sua linguagem: "Vem..."

Mas eu não me mexi.

Finalmente, percebendo a minha falta de jeito, ela exclamou:

Sabes por que eles me chamam de "Setenta e sete"?

Não me lembro de minha resposta. Eu estava hipnotizado. Suponho que tenha dito que não sabia.

Ela se levantou e, lentamente, começou a soltar o cordão que fazia às vezes de cinto.

Ela me olhou de novo, e me atravessou com seus olhos. Os lábios, finos e pálidos, se umedeceram.

Então abriu se inclinou, pegou a túnica pela barra e foi retirando-a até puxá-la pela cabeça.

Ela estava completamente nua.

Deixou a roupa cair sobre o tapete vermelho e ajeitou o cabelo rapidamente.

Ela era bonita, muito bonita...

Aproximou-se do baú, pegou a lâmpada e começou a passear a luz pelo corpo.

Os seios pontudos eram firmes. E quanto às pernas, eram suaves e termináveis.

Ao iluminar o lado esquerdo do ventre, ela deteve o movimento da lamparina de azeite. A região estava povoada de nevos, as típicas pintas, elas eram de todos os tamanhos. Parecia uma constelação.

Eles dizem que são setenta e sete, mas não se tem certeza...

Ela fez um ligeiro movimento com a mão, convidando-me para me aproximar.

Pálido, eu dei alguns passos.

São 217 - esclareceu. - São 217 pintas...

Não sei...

Queres confirmar?

As palavras não saíam.

E ela, hábil, continuou excursionando a pele com a ajuda da traiçoeira chama amarela.

Os seios não tinham pintas. Apenas o pescoço e os ombros.

Então ela me entregou a lamparina, se virou e me incentivou a examiná-la.

Suas costas eram doces, como ela, e também cheias de constelações de pintas. As nádegas, desafiadoras, me chamaram. E faltou pouco para que eu as acariciasse.

Estás vendo? - perguntou ela, sugestivamente.

Eu respondi com voz sumida:

Sim, estou vendo.

Ela se virou de novo e sorriu com aqueles olhos enigmáticos.

Pegou a lamparina e a depositou no chão.

Os olhos estavam brilhando. Foi se aproximando muito lentamente.

Eu queria voltar, mas não fui capaz. Ela me atraía. Eu gostei.

Sorriu brevemente e notei a sua proximidade. Seus seios me tocaram. Notei como eles se agitavam, para cima e para baixo.

E um intenso perfume de terra molhada me envolveu.

Abril então fechou os olhos e ficou na ponta dos pés sobre mi­nhas sandálias.

Esperou...

Mas aquele beijo não chegou.

Eu a afastei delicadamente e sussurrei, do melhor modo que pude:

Não me leves a mal, tu és luminosa, mas meu coração está em ou­tro lugar...

Ela abriu os olhos e olhou para mim, incrédula.

Sinto muito... - murmurei.

Quis sorrir, mas o sorriso escorregou e caiu no chão.

Eu não sei como fiz aquilo. Eu não sei como fui capaz de articular uma só palavra. Não sei por que reagi assim. Minto. Sim, eu sei. Eu amava Ruth..

Não houve um gesto errado da parte dela.

Acho que intuiu.

Ela me olhou muito séria, recolheu a túnica, vestiu-se, abriu a porta e desapareceu na escuridão da noite.

Eu fiquei lá, na companhia da lamparina traidora e dos meus pensa­mentos e desejos, todos lutando e em desordem.

O que tinha acontecido?

Permaneci longo tempo na janela, na expectativa das estrelas e das tochas que navegavam no yam.

Não consegui dormir. Meu amor por Ruth era violeta (impossível). Por que não aproveitei a oportunidade que Abril me dera? Ruth estava hemiplégica e quase cega. Sua mãe não me aceitava. Eu era um ancião. Por que continuava amando aquela mulher? Nada fazia sentido. Ou fazia? O que teria acontecido se Abril e eu...?

Recusei-me a continuar pensando.

Empacotei minhas coisas, preparei a bolsa de viagem, deixei a "vara de Moisés" à mão e, decidido, esperei o amanhecer.

E durante esse tempo, com o olhar fixo nas estrelas brilhantes, alguém repetia dentro de mim: "Confia!" Era uma voz familiar.

"Confia!"

E foi assim, atormentado e confuso, que vi chegar a cor laranja do amanhecer.

 

Decidi sair do casarão. Salomé ouviu minhas desculpas (nem lembro o que eu disse), sem deixar de lidar com os afazeres na cozinha. Estávamos sozinhos. Era muito cedo.

Notei certa reprovação em seus olhos.

Nesse momento, ainda não tinha percebido. A mãe sabia de alguma coisa. Melhor dizendo, sabia de tudo...

Não tomei café da manhã. Tinha pressa para chegar a lugar nenhum.

Não conseguia ver nem o Mestre nem os íntimos. Eles ainda não tinham voltado.

E fui diretamente para o Ravid.

Mais uma vez, menti. Sim, eu me despedi de alguém. Acariciei Zal e me afastei de Saidan.

E pela terceira hora (nove da manhã), sem problemas, entrei no módulo.

Tudo estava em ordem. Tudo, menos meu coração...

Tentei raciocinar, mais uma vez.

Por que eu havia fugido? Porque era assim que as coisas eram, afinal de contas.

Nunca soube o motivo. Simplesmente, eu não queria continuar no casarão e correr o risco de cruzar com Abril e suas 217 pintas...

Os "bucoles" não deram sinal de vida. Camar, o badawi, tampouco tinha notícias dos bandidos. Decidi remover os ganchos e as cordas que estavam dependuradas no penhasco.

Novo erro...

E durante quase três dias fiquei escrevendo febrilmente.

Antecipei o check-up previsto pelo "Papai Noel" para o mês de se­tembro.

Negativo. Nenhum sinal de tumores. A amiloidose continuava desa­parecida.

Os níveis de óxido nítrico, no entanto, estavam elevados. "Papai Noel" fez uma advertência: os radicais livres - portanto, o envelhecimento - conti­nuavam a vencer as redes neurais. A situação teria que ser observada de perto.

Dei de ombros. Não era isso o que mais me preocupava naquele momento.

Foi outro aviso...

No primeiro dia de agosto, quinta-feira, mais calmo, decidi viajar para Nazaré.

Foi puro instinto.

Eu queria ver Ruth...

Ficar no "porta-aviões" foi benéfico. Recuperei o espírito e organizei meus pensamentos. Incidentes como o ocorrido no "pombal", com Abril deveriam ser considerados normais em uma aventura como aquela. Não lhe daria maior importância. O que era vital era Ele: suas palavras, seus atos, seguir o Filho do Homem.

Assim eu o faria.

Depois de visitar Ruth eu ia me dirigir a...

Mas não, não é bom fazer planos além de sua sombra. Essas palavras não eram minhas.

Eu me deixaria levar pelo Destino, ou por quem quer que fosse.

Ninguém me esperava em Nazaré, é claro. Mas se alegraram com minha visita, creio.

Miriam me disse para ficar em sua casa.

Ruth havia piorado.

Já quase não enxergava.

A hemiplegia do lado direito a mantinha prostrada e arruinada, físi­ca e mentalmente.

Eu a encontrei na casa da Senhora, no mesmo canto, sentada junto aos grandes jarros.

Miriam me avisou: "Ela está agressiva. Não suporta nada nem ninguém".

Ela já não controlava os esfíncteres. O cheiro confirmou as palavras da irmã.

Ajoelhei-me diante dela e a observei.

O olho direito estava fechado quase que completamente. As mãos continuavam frias.

Miriam me apontou os tornozelos. Estavam inchados e azuis.

E, de repente, ela exclamou, com uma voz irreconhecível:

- Que... que... queeeero!

Foi a única coisa que ela conseguiu pronunciar.

Miriam e eu nos entreolhamos.

Ruth estava envelhecida, deformada e dolorida.

Deus meu! O que fazer?

Eu fiquei com ela por três dias.

Àquela deformação se juntou um processo de alteração de comportamento.

Ela não prestava atenção a mais nada. Sua capacidade de concentração havia se esvaído. Vivia em constante mudança de humor. Em um momento permanecia em silêncio e, depois, balbuciava a esmo. Vomitava e de forma vulcânica. Tudo em torno dela ficava constantemente sujo...

Ela não falava, mas as agressões com a mão e com o pé esquerdos eram contínuas. Ninguém estava a salvo a seu lado.

Eu achei que ela estava perdendo a consciência de si mesma.

Pensando bem, isso era a melhor coisa que podia acontecer...

Eu lhe administrei benzodiazepínicos por via oral e consegui que ela relaxasse. Ruth dormiu muito. Precisava disso.

De vez em quando abria aquele olho verde, agora apagado, e olhava com desânimo. Eu conhecia seus pensamentos...

Ajudei a alimentá-la. Levei-a nos braços para passear pela aldeia. To­dos a olhavam com estranheza.

Contei-lhe histórias fantásticas, quase todas falsas, e ela sorria a partir do verde de seus olhos. Apertava suas mãos até que conseguisse aquecê-las.

Eu fiquei profundamente triste.

Eu continuava amando-a, e como...

Conversei com a Senhora. Não muito. Ela estava apática.

Ela perguntou por seu Filho. Eu lhe contei a verdade, a mesma que todo mundo conhecia: "Ele está bem. Já escolheu 12 seguidores... Agora ele os está ensinando".

Ela me ouviu com atenção e murmurou:

Eu não o entendo, Jasão... Não sei o que ele quer...

Tu deves confiar...

Confiar? Confiar em quê?

Ele sabe...

E Maria sentava-se a meu lado e escutava também as histórias kui. De tempos em tempos eu conseguia roubar um sorriso, o que não foi pouco...

Com Tiago quase não conversei. Ele sempre estava fora. Evidente­mente não havia perdoado seu Irmão. Segundo Miriam e Jacó, o assenta­dor de pedras e seu esposo, "não havia nada a fazer". A ruptura era defi­nitiva. As condições estabelecidas pela mãe naquela histórica e desconhe­cida reunião familiar continuavam de pé. A Senhora não havia recuado nem um milímetro. Ela era teimosa. Como já mencionei: o distanciamen­to seria para sempre. Maria foi ao Gólgota e viu seu Filho morrer, mas ainda não compreendia. Foi apenas depois da morte, e ao se comprovar a Ressurreição, que ela cedeu e reconheceu seus erros. Mas isso, eu acho, está contado...

Quão equivocados estão os crentes a respeito de Maria, a Senhora!

Foi na véspera de minha partida, depois do jantar e de colocar os filhos para dormir, que Miriam e Jacó se interessaram por algo que pesava em meu coração. Agradeci pela conversa. Eu me senti mais livre...

Por que estás fazendo isso?

Miriam era como a mãe: direta.

Fazendo o quê? - perguntei como um idiota.

Por que te preocupas com Ruth e com todos nós? Ele nem sequer voltou...

Deduzi que se referia ao Mestre.

Não sei - menti. - É que vós sois como se fôsseis da família...

Miriam sorriu, incrédula.

Os homens não sabem mentir... E tu muito menos.

Não entendo.

Miriam foi direta, sem rodeios, ao que interessava. Jacó assistia à conversa, muda como sempre.

Tu a amas...

Baixei os olhos e reconheci o fato.

Desde quando?

Desde que a vi...

Mas tu não vês o estado em que ela se encontra?

E o que isso tem a ver?

Minha resposta a confundiu. Então eu desaguei:

Não peço nada em troca. Só vê-la de vez em quando... Eu a amo, tu compreendes?

O verde-folha dos olhos de Miriam foi se iluminando.

Claro que compreendo, mas isso não é comum... Ela não se recuperará. Está quase cega. Morrerá em breve...

Uma razão a mais para estar a seu lado.

E o que se passa com teu amigo? Por que não vem para vê-la?

Falava sobre Eliseu. Eu disse a verdade, ou quase:

Eu desconheço o motivo. Quase não nos vemos...

Estive tentado a falar-lhes do futuro. Ruth se recuperaria. Não sabia como, no entanto, mas ela se curaria.

Não disse nada, naturalmente. Não era o meu papel.

É uma forma estranha de amar - murmurou Miriam. - Não recebes nada em troca...

Engano. Recebo mais do que entrego.

Miriam me olhou, confusa, e acrescentou:

Não te entendo...

Pensar nela me faz voar, me transforma e me enriquece. Não importa que eu não a veja...

Alguém falava por mim.

Sonho com ela, e essa é a forma mais bela de permanecer com alguém. Tenho contado os seus olhares, como um tesouro. Sempre me acompanham.

E decidi revelar um grande segredo:

E sei que ela também me ama...

Por que dizes isso?

Não entendo as mulheres - hesitei. - Sei que falais uma língua pró­pria... Ela me disse... Com o olhar.

Miriam não teve outra saída senão assentir com a cabeça.

E terminou confessando:

Isso é típico de Ruth...

Mas não te alarmes - intervim, desconcertado perante minha última revelação. - Não causarei problemas... Devo partir e ocupar-me de outros negócios.

Chama-me de Mir-yam - cortou Miriam. - E, sim, tu és da família...

Titubeou por alguns segundos e, olhando no mais profundo deste explorador, perguntou:

Negócios? Que negócios?

Não me deixou esclarecer.

Minha mãe disse que tu és alguém especial... Quem és, realmente?

Eu me senti preso.

Por que estás com meu Irmão?

Sou um malak - sorri, - segundo Ele...

Um mensageiro? De quem? Meu Irmão é tão importante assim?

Sou um mensageiro de mim mesmo - repliquei, tratando de esca­par da incisiva mulher.

Tu não me enganas. Eu olho e vejo que és uma pessoa diferente. Não tens nada a ver com os gregos que eu conheço...

Eu vivo em uma Grécia distante e desconhecida... Eu vou te confessar algo: teu Irmão é importante para gente como eu, que só sabe duvidar...

Acreditas que Ele curará minha irmã?

Miriam ou Mir-yam, como ela gostava de ser chamada, era um pe­rigo. Pensava com agudeza e gabava-se de que não era possível esconder-lhe os pensamentos.

Escapei como pude do atoleiro.

Confia...

Que seja, já passou, mas eu havia me apoderado de uma palavra que não era minha. Assim é a vida...

E no domingo, dia 4 de agosto, bem cedo, compareci à casa da Se­nhora e permaneci um tempinho aos pés de Ruth.

Não disse nada. Somente a contemplei.

Finalmente eu me levantei, me aproximei da garota e a beijei nas pálpebras.

Ninguém me viu, acredito.

Foi o único beijo que roubei...

E parti de Nazaré, mas sem meu coração. Ali ele ficou, aos pés da ruiva.

Eu me sentia só, extrema e alarmantemente só. Não tinha nada nem ninguém. Voltei a mentir. Eu tinha a esperança, mas eu a esquecera.

E me deixei levar pela intuição.

Chorei com toda a aflição, quando ali ninguém poderia me ver. Cho­rei por ela, por quem isto escreve e por aquilo que nunca fui...

 

Dirigi os passos até a base de aprovisionamento dos "13 irmãos", ao sul de Tariqueia, no vale do Jordão.

Sim, eu me deixei guiar pelo instinto... Esse nunca trai.

Abracei Tarpelay, o sais negro, e voltei a contratá-lo.

O condutor de carruagens continuava igual. Nada o alterava. As três adagas continuavam vivendo na sua cintura, enfiadas nas empunhaduras de prata. O olhar, de ferro, também era o mesmo. E idênticos eram seus silêncios e seu amarelos. Eu gostava daquele líbio...

Fechamos um trato: 14 denários de prata por semana e comida e alojamento (se houvesse) por minha conta. Se, ao finalizar o trabalho, eu estivesse satisfeito, Tar receberia um extra, como quase sempre.

Era bom que alguém me protegesse com o silêncio.

No dia seguinte, segunda-feira, quase ao meio-dia, eu cruzava a grande porta da prisão de Cobre, nas proximidades de Damiya. Tarpelay esperou no embarcadouro, do outro lado do rio Yaboq.

O al-qa'iá teve uma boa surpresa. Não esperava me encontrar tão cedo.

Improvisei.

Desejava averiguar onde se achava o Batista e o que havia sido feito dele. Era verdade que havia sido transferido para o sul?

Nakebos, o alcaide, me observou com curiosidade.

Isso que me perguntas é segredo, mas para ti eu posso contar.

E ratificou o que eu já sabia: Yehohanan fora conduzido ao mar de Sal, a uma fortaleza praticamente inexpugnável a que chamavam de Maqueronte. Negou-se a confirmar se a transferência foi por consequência de uma segunda tentativa de ataque à prisão por parte de Abner e dos "justos".

Por que tens tanto interesse nesse louco?

Continuei improvisando.

Sou também um kásday (astrólogo) e tenho visto algumas coisas...

Kásday? Verdade?

Assenti sem dar-lhe demasiada importância. Eu sabia da atração que aquela gente sentia por esse tipo de predições. Já tinha ocorrido algo assim com Pôncio, no ano 30...

E o que viste?

Isso eu só direi a Antipas, pessoalmente...

Queres uma audiência com o tetrarca?

Isso mesmo. E tu podes consegui-la.

Sem dúvida, posso sim.

Ficou pensativo. Depois se levantou e ordenou que viesse a comida.

Algo ele tramava...

Bem - retomou a conversa -, tu sabes que sou capitão da guarda... Eu tentarei. No entanto, deves me dar algum tempo. Antipas regressará ao mar de Sal quando começar o inverno. Sua mulher não gosta das chuvas da Galileia. Diz que afetam a sua pele.

Inverno. Isso significava os meses de kisléu ou tebet (novembro ou dezembro, respectivamente).

Não importa - repliquei, aparentemente satisfeito. - Sei esperar. O futuro nunca chega...

Isso é o que um astrólogo costuma dizer?

Praticar a astrologia não significa acreditar nela.

Aprecio a tua sinceridade.

Um dos nêsher (preso de confiança) serviu o r'fis, outro prato típico do Jordão. Eu o havia provado em Damiya. Consistia em uma pasta de farinha, recém-levada ao forno, e na qual enterravam tâmaras sem caroço deliciosamente maceradas. O r'fis era polvilhado com uma calda dulcís­sima, de iridescente âmbar, extraída igualmente das tâmaras, e que era reduzida com a ajuda do vinagre preto.

Falamos de outros assuntos, e também de Belsa, o persa do sol na testa. Segundo meu anfitrião, ele se encontrava no norte, "em uma mis­são especial, encomendada pelo próprio Antipas". Não tive como arrancar mais nada. E o meu instinto avisou: Belsa na Galileia?

E voltamos ao assunto de Antipas. Nakebos acertou:

Suponho que solicitarás que te permitam conversar com o iluminado...

Isso seria importante para confirmar, ou não, meus augúrios... A não ser que tu...

Arrisquei-me.

A não ser que tu me leves até Yehohanan sem que ninguém saiba de nada...

Isso seria uma traição, querido amigo, e tu sabes. Eu não faria uma coisa dessas...

Retrocedi. Não era o caminho correto. Assim eu não conseguiria chegar diante do gigante das pupilas vermelhas.

Esperarei...

Consideraste a nossa oferta?

Fiz-me de desentendido.

Que oferta?

Trabalhar para Antipas. Informar sobre o carpinteiro louco...

Sim, andei refletindo sobre isso - menti. - Estou de acordo. Eu vos informarei - continuei inventando -, mas com uma dupla condição.

Nakebos me animou a prosseguir.

Olhei para o nêsher que nos observava e o alcaide entendeu.

Não há problema. É surdo e mudo...

Está bem - continuei a representação. - Trabalharei para o tetrarca se me for autorizado visitar o vidente quando eu avaliar oportuno...

Nakebos não se alterou. Pareceu estranho a ele, isso sim.

E a segunda condição?

Não quero dinheiro... Se eu precisar de outro favor, farei com que tu saibas...

Eu te darei um conselho...

Nakebos se colocou numa postura séria.

Não traias Antipas. Ele te jogaria para suas meninas...

Suas meninas? A quem ele estava se referindo?

Essa noite tive que suportar um jantar na casa de Nakebos e con­sequentemente um rio de legmi, o licor favorito do alcaide do Cobre.

Preparei-me para beber o imprescindível; o que quer dizer muitíssimo.

Eu me sentia sujo por dentro. Não pensava em trair o Mestre, mas o simples fato de aceitar uma proposta como aquela me deixou com um gosto ruim na boca. Chegado o momento, eu informaria a Nakebos sobre o que acreditava ser oportuno. A questão era garantir o acesso ao Batista. Algo me dizia que era importante. Tinha que estar atento, muito atento.

Com o amanhecer, abandonamos Damiya. Voltei a mentir para Nakebos, e comentei que regressava para o yam, com o "carpinteiro louco".

Não foi assim.

Assim que saí do povoado, ordenei a Tarpelay que dirigisse os cava­los para o sul.

Não perguntou. Obedeceu.

Na metade do caminho, durante uma parada, eu lhe expliquei. Queria aproximar-me o mais perto possível do palácio-fortaleza de Maqueronte.

Assentiu em silêncio e retomamos o caminho. A reda, de duas rodas, respondia bem e com alegria. Tar conhecia o lugar e sabia como chegar.

O que pretendia fazer?

Nem eu mesmo sabia.

Nakebos havia sido explícito. Maqueronte era inexpugnável. Ninguém podia ver o Batista sem a permissão de Antipas. Por que eu me arriscava?

No entanto, fui leal à idéia que acabava de se debruçar em minha mente: tentaria o impossível; buscaria uma forma de entrar na fortaleza e apresentar-me perante o gigante.

"Você está louco" - disse para mim mesmo.

Sim, maravilhosamente louco...

Consultei o sol ao chegar ao vau de Josué, de tantas lembranças amargas. Devia ser a terceira (nove da manhã) de terça-feira, dia 6 de agosto (ano 26 da nossa era).

As candeias continuavam acesas na menorah. E o vigilante de cabe­los loiros continuava ao pé do candelabro, atento às chamas.

Nós nos detivemos.

E entramos no delta do Jordão.

Eu o vi à distância.

Era uma espécie de semi-círculo enorme que começava na altura do nahal ou rio Jisbón, um dos afluentes ocidentais do Jordão. No total, uns quatro quilômetros de baixa vegetação, canaviais, urzais azuis, seixos e pedregulhos brancos e enormes como ovos de dinossauros, bancos de areia e mais de 20 "piscinas" naturais intercomunicadas, lenta e exaustivamente trabalhadas pelo pai tempo. Os pequenos caminhos serpenteavam inteligentes e se cruzavam sem aparente ordem, sem nenhum acordo em comum. Tar poderia ter guiado a reda pelo caminho oriental, que lambia o delta e que salvava como podia os wadis ou leitos secos que se chamavam Gharaba e Udheimi. Passando por ali, deixando o povoado de Gassul à nossa esquerda, nós entraríamos no Gor, na bacia do mar Morto propriamente dita. No entanto, o líbio que sempre se vestia de amarelo desejava me mostrar algo...

Nas piscinas, todas de água doce, pulavam uma infinidade de peixes, sobretudo carpas.

Fiz um gesto com a mão, mostrando que queria descer do carro. De­sejava refrescar-me em uma das lagoas. Tarpelay proibiu. E se limitou a comentar: "Perigo..."

Perigo? Os crocodilos viviam mais acima, no leito do Jordão...

E prosseguíamos sob um sol implacável. A temperatura estava aci­ma de 30°C.

Ao se aproximar de uma das "piscinas", o sais, sem nenhum comen­tário, parou o carro. Desceu e me fez um gesto para que eu permanecesse no reda. Obedeci, claro! Tar sabia bem o que fazia.

Contemplei as águas. Eram assombrosamente violeta. Não soube como se produzia aquele curioso efeito. Talvez fosse algum tipo de alga.

Tar caminhou até uma enorme e voluntariosa tamargueira do Nilo. Apresentava milhares e milhares de flores brancas e azuis. À sombra da árvore mal se equilibrava uma humilde choupana de barro e palha.

Tar entrou na cabana e saiu logo depois, acompanhado de um an­cião. Parecia um badawi, um beduíno.

Conversaram um pouco.

Depois, o ancião regressou ao interior da cabana e saiu de novo, mas com algo nas mãos. Era um macaco. Tinha as mãos e os pés presos. Ele se remexia inquieto.

Tarpelay fez sinais para que eu me reunisse a ele.

Aproximei-me e verifiquei que, de fato, se tratava de um mandril peque­no, uma cria. De onde ele havia saído? No Jordão eles não eram frequentes.

Tar pegou o macaco, agarrando-o pela nuca, e se encaminhou até a margem do reservatório violeta. Eu o segui intrigado. O badawi permane­ceu à porta da choupana.

Ao aproximar-me da água, Tarpelay fez um gesto, recomendando que eu não chegasse perto demais.

O que havia naquela lagoa?

Fixei o olhar com atenção e observei, nas margens, numerosas grutas bem pequenas, com bocas de 15 a 20 centímetros de diâmetro.

Que animal habitava aquele lugar?

O líbio balançou o mandril duas ou três vezes e acabou jogando-o na água da lagoa.

Foi tudo muito rápido.

As águas começaram a borbulhar, o macaco se agitou, gritando com desespero.

Num piscar de olhos, o animal se viu coberto por dezenas e dezenas de caranguejos vermelhos, vorazes como piranhas.

Os gritos do macaco se prolongaram por 30 ou 40 segundos, não mais do que isso. Depois, a "bola" de caranguejos terminou por afundá-lo e desapareceu.

Fiquei sem fala.

Tarpelay repetiu:

- Perigo...

O negro adivinhou meus pensamentos. Que caranguejo era aquele? Não tinha notícias de nada parecido no Jordão...

Pegou uma ramagem e a introduziu na água. Pouco depois a ti­rou e me mostrou. Vários caranguejos, de uns 10 ou 15 centímetros de diâmetro, igualmente coloridos, se aferravam ao galho e o disputavam com obstinação.

Tar o jogou no chão e esmagou os caranguejos com as sandálias.

E então o meu procedimento foi examinar os restos.

Alguns mais jovens eram acinzentados. O maior alcançava, em me­dida, cinco por três polegadas.

Ao retornar ao "berço", verifiquei que o explorador Henry C. Hart tinha razão. Ele os havia descrito... Eram os temidos caranguejos canibais do Jordão: os telphusas (Potamophilon fíuviatilis).

Não esqueceria.

"Perigo..."

E retomamos o caminho em direção ao mar de Sal.

O sol seguiu jogando fogo e não tivemos outra saída senão nos refu­giar à sombra de um pequeno bosque de gengibres amarelos. Os cavalos suavam e nós estávamos desidratando. Tar aconselhou uma pausa. Espe­raríamos algum tempo.

A um passo se distinguia a planície de prata do mar de Sal, hoje co­nhecido como mar Morto.

Tar acomodou o carro, soltou os cavalos e os levou para beber.

Fez apenas um comentário. Devia ter cuidado com as pedras.

Não levantar...

Isso foi tudo. O que se escondia sob as pedras?

E, após um breve descanso, agoniado pelas nuvens de insetos e pela alta temperatura, decidi dar um passeio pelos arredores.

O sais continuava com os olhos fechados, reclinado contra um dos gengibres.

Enquanto eu me distanciava, ele gritou:

Não levantar pedras...

E continuou com os olhos fechados, supostamente dormindo.

Nós nos encontrávamos no último trecho do delta.

Nessa época (ano 26 de nossa era), o rio Jordão desembocava a quase três quilômetros a oeste do que constitui o deságue atual (século XX).[39]

O rio penetrava rápido e suicida no mar de Sal e o fazia com uma considerável carga de despojos: ramagem de todos os tipos, animais mor­tos e inchados como globos, lixo em geral, troncos avariados, e inclusive cadáveres de seres humanos.

As correntes distribuíam os arrastos e formavam duas grandes bar­reiras que despontavam no lago a várias centenas de metros. Sobre essas estrumeiras voavam, e disputavam os fragmentos, centenas de sanguinolentos abutres egípcios, com os pescoços pelados, além de corvos de pes­coço marrom e de rabo em leque, tão grandes quanto implacáveis. Eram os “inquilinos" habituais daquela região do delta. Existiam milhares deles. Formavam nuvens negras e apagavam o rumor das águas com seus per­manentes e fúnebres grasnidos.

Um pouco mais abaixo, após o delta visível, se podia adivinhar o sub-aquático. Nessa época, de acordo com o que foi detectado por via aérea, o delta submarino se prolongava por quase 200 metros mar adentro.

O cheiro de podridão era insuportável. Teria que me acostumar. Era : "perfume" típico daquele mar estranho e misterioso, sempre quieto, amo o chumbo.

Procurei uma sombra e tratei de lembrar as referências.

O que sabia sobre o mar de Sal?

Era a primeira vez que chegava a ele, ao menos a pé, e naquele tempo.

Tarpelay seguia minhas evoluções, atento.

O nome mais comum não era mar Morto ou mar da Morte. Essa descriminação nasceu no século II da nossa era, das mãos de Pausânias, um geógrafo e historiador grego nascido em Lod. A referência à morte não tinha nada a ver com as citações sobre a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, ao sul do referido mar Morto. Foi a Igreja Católica que vinculou essa denominação - mar Morto - às supostas destruições, por parte de Yaveh, das mencionadas cidades bíblicas. No entanto, isto ocorreu em plena Idade Média. Para os gregos, a qualificação do mar da Morte tinha margem no fato - segundo eles - de que o lago carecia de vida. Aristóteles, no século IV a.C., em seu livro Sobre o céu, já propunha algo semelhante, determinando que a dita carência de vida se devia à alta salinidade das águas. E tinha razão, em parte.

O autêntico nome do mar Morto, como era conhecido habitualmente (nome que Jesus também pronunciou), era yam ha-melah (em aramaico), que significa "mar ou lago de Sal".[40]

O nome mar de Betume, ou de Asfaltite, era comum, mas não tão frequente como o de Sal. Como eu teria a oportunidade de verificar algum tempo depois, o nome mar de Asfaltite se devia aos blocos de betume que apa­reciam com relativa frequência (especialmente ao sul), flutuando nas águas, e que constituíam toda uma indústria entre os habitantes das margens. Os "santos e separados" chamavam este mar como o Deuteronômio faz (3, 17): mar de Arabá. Também gostavam de denominá-lo "mar do oriente", como o chama o profeta Ezequiel (47,18).

Contudo, visto do bosque dos gengibres, não se distinguia com am­plitude o grande lago, e optei por me mexer, subindo numa rocha de are­nito vermelha.

Sei que Tarpelay abriu um olho, inquieto.

E me fez sinais para que descesse da pedra.

Não obedeci...

O espetáculo, à quinta hora (11 da manhã), foi inesquecível.

O céu estendia o seu azul do começo ao fim. O sol, às minhas costas, estava se divertindo em pintar reflexos nas águas. Havia desenhado es­carpas em ambas as margens em cor rosa, como correspondia à pedra de arenito núbia. O azul do céu também tinha desabado sobre as águas. Uma ou duas nuvens, brancas e perdidas, flutuavam na superfície do mar. O so: aproveitou a ausência do vento e desforrou, pintando.

Ao fundo, na margem sul, dava para pressentir o silêncio e o princi­pal habitante do mar de Sal: o mistério.

Tudo era quietude. Tudo parecia morto; aparentemente morto.

Jamais vi uma desolação semelhante.

Como resumir o que eu tinha à vista?

Sal, deserto, azuis, rosas, insetos e uma temperatura inimiga (quase 40°C). Apenas se moviam no Jordão, aventurando-se ao mar de Sal, os abutres, os corvos e minha curiosidade.

Naquele tempo o mar de Sal era menor do que agora na atualidade. As águas cobriam uma superfície menor. De norte a sul, 73 quilômetros. Na re­gião do En Gedi, o lago alcançava a sua largura máxima: 15 quilômetros.

Tar se colocou em pé e continuou fazendo sinais para que eu desces­se da pedra vermelha.

Eu o fiz ver que estava tudo bem e continuei com as observações.

Nessa data, segundo dados obtidos no voo visto do "berço", o nível do mar de Sal se achava em "menos 408 metros" em relação ao Mediterrâneo. Também medimos a profundidade. Existiam, por aquele momento, duas fossas principais: uma localizada em frente ao wadi Zarqa e a segunda na "cintura" do lago [entre o povoado de En Gedi e o leito ou wadi do rio -Mujib (Arnón)]. Ambas rondavam os "menos 730 metros". Profundidade real, portanto, entre 322 e 350 metros. Profundidade média: ao redor de 292 metros. O fundo era lodo, com uma espessura de uma centena de metros. Esses dados resultariam de especial transcendência quando, algum tempo mais tarde... Bem, não devo adiantar os acontecimentos.

Não, o fundo não era lodo. Era pura areia movediça...

Qualquer objeto que pudesse cair nas águas, ao chegar ao leito, era absorvido e sepultado para sempre...

Eu me encontrava, pois, diante de uns escarpados de rochas carbo­natadas (especialmente da margem oeste), pertencentes ao Cretáceo superior. Os da margem oriental, formados basicamente por arenito núbio (mais jovem), eram mais altos, com inclinações bem demarcadas (até 30 graus). Era um lugar impressionante, basicamente de cor rosa, com uma antiguidade não excessiva: ao redor de 15 mil anos.

Porém, a característica mais notável do grande lago era (e é) sua sa­linidade. Registramos percentuais que oscilavam em torno de 27 e 27,5 por cento. Somente o lago Hot, no Estado de Washington (EUA), supera o de Sal, ainda que a profundidade daquele não se rebaixe aos três metros. Em outras palavras: para cada litro de água do mar Morto achávamos 345 gramas de sais. A densidade foi calculada em 1,236 gramas de sais por centímetro cúbico (a uma temperatura de 20°C).[41] No resto dos mares, a porcentagem de salinidade é muito mais baixa (entre 4 e 6 por cento).

A esse alto índice de salinidade contribui - e de que maneira... - o alto grau de evaporação que experimenta o dito mar de Sal. Então, foi estimado em 25 milímetros por dia (no verão).

O mar de Sal dispunha, além disso, de outra característica que o fazia quase único: as águas superiores (desde a superfície até 40 metros) são menos salgadas e mais leves que as águas inferiores (de 100 metros até o fundo); a salinidade na massa de água superior oscilava entre 284 e 290 gramas por litro, com uma densidade (na superfície) de 1,201 a 1,205 gra­mas por centímetro cúbico. Na base a densidade chegava a 1,215 gramas. Na massa de água inferior, a salinidade era de 332 gramas por litro com uma temperatura que oscilava entre 21 e 21,7°C (numa profundidade de 150 metros). A densidade da água foi fixada em 1,234 gramas por centí­metro cúbico (para a dita massa de água inferior).

Em resumo: o mar de Sal é um lago "meromítico" com uma clara distinção de água mais salgada no fundo e água menos densa e menos salgada na massa "de superfície".[42]

Essa forte salinidade é que provoca em boa medida a falta de vida no lago e, sobretudo, a impossibilidade de afundar homens, animais ou materiais leves.[43] E recordei o que foi escrito por Flávio Josefo.[44] O general ro­manizado tampouco soube por que não havia forma de afundar no mar de Sal. Essa circunstância aumentou o mistério que rodeava o lago. Se alguém tivesse tido a possibilidade de levar até o fim uma simples análise química da água haveria comprovado o enigma, em realidade muito simples.[45]

Eu não devia esquecer que me encontrava numa zona sísmica. A depressão ou Gor do Sal é uma prolongação do Mar Vermelho e, em consequência, está sujeita ao movimento de deriva horizontal. Isso significa terremotos, a maioria deles fracos. Contudo, não poderia me fiar nisso. Zonas como a de Masada, o wadi Arnón e a ribeira de Qumran, ao norte do lago, foram estremecidas e derrubadas. Em 1759, segundo essas informações, morreram em Safed 300 judeus. Pouco depois, ou­tro sismo também em Safed provocou duas mil mortes. Flávio Josefo fala também de um grande terremoto (no ano 31 a.C.) que resultou em 11 mil vítimas.

Era igualmente importante que me preparasse para as altas temperaturas naquela região do sul de Israel. Se desejava visitar o Batista (tudo dependia da sorte e da autorização de Antipas), o mais provável é que tivesse que cruzar aquela região desértica em mais de uma ou duas ocasiões.

Não me equivoquei.

Os verões no mar de Sal eram abrasadores, com temperaturas que se apro­ximavam dos 50°C, inclusive mais que isso. A radiação ultravioleta era sensi­velmente inferior, devido ao fato de a camada de ar existente sobre a depressão ser mais grossa do que o normal. Nossos cálculos estimaram que o número de horas de radiação solar ao ano era de 4.000 (das 4.336 horas possíveis). Os invernos, em contrapartida, eram suaves e benéficos, com temperaturas médias de 20°C. Os ricos procuravam a temperança e fugiam do norte e das inclemên­cias da Judeia. Nakebos havia me avisado: Antipas e Herodíade se instalariam no palácio-fortaleza de Maqueronte até os meses de novembro ou dezembro. Para as mulheres, o mar de Sal era especialmente atrativo. O barro do lago, com suas propriedades medicinais (que eu havia referido), deixava a pele mais rija e rejuvenescida. Podiam se banhar em qualquer época, e no verão as águas alcan­çavam 32°C e 33°C. No inverno não baixavam mais que 25°C.[46]

A umidade era outro problema que também considerei. A fortíssima evaporação provocava um aumento considerável de umidade absoluta, e o calor, por sua parte, multiplicava a umidade relativa. No verão, a relativa se fazia insuportável, escalando cotas de 95 por cento ou mais. No inver­no, era mais leve, com "apenas" uns 85 por cento.

E nisso eu estava, absorvido nestas e em outras reflexões de índole mais ou menos técnica, quando me vi surpreendido pela chegada do sais. A verdade é que eu não senti ele se aproximar.

Ele levou o dedo indicador da mão direita aos lábios e me fez o sinal internacional de silêncio.

O que estava acontecendo?

Depois indicou que não me movesse.

Não me movi.

Tarpelay estava sério. Parecia irritado.

Que erro eu havia cometido? E lembrei como me fez sinais para que descesse da grande rocha vermelha.

Desobedeci...

Olhei ao redor, desconcertado. Onde estava o perigo?

Não havia nada ali...

Tar extraiu uma das adagas e subiu, ágil e silencioso, ao alto do penhasco.

Indicou que eu me colocasse atrás dele, assim eu fiz.

O negro foi agachando-se, devagar, até que deu com um dos joelhos na pedra. E levou a ponta da adaga a uma pequena fissura. Fez isso lentamente.

Não a havia visto ou, quem sabe, não tinha prestado atenção.

Que seja!

Era uma brecha estreita, de uns quatro ou cinco centímetros de lar­gura. Coroava parte da pedra.

Eu havia me movido sobre ela enquanto contemplava o mar de Sal e anotava as referências.

Ele introduziu o ferro na fenda e aos poucos eu os vi aparecer...

Oh, Deus!

Um era enorme. Deveria medir ao redor de 16 centímetros. Era de cor laranja.

Por detrás se apresentou um segundo escorpião, menor, em uma tonalidade amarela polida.

O primeiro, forçado pela adaga, fugiu pela rachadura com o rabo levantado, se colocando disposto para o ataque. Do seu abdômen luziam 12 segmentos, com um ferrão curvo, agudo e para fora em sua devida posição.

Estremeci.

Tar deixou que o grande desaparecesse pedra abaixo. Mas esmagou o amarelo com a sandália.

E comentou:

- Perigo...

Fiquei lívido.

A "pele de serpente" não protegia os pés, nunca tive a precaução de pulverizá-los. Foi um aviso. Aquele erro poderia custar-me caro. Não dispunha de antídoto, e aqueles exemplares, pelo que eu pude verificar quando regressei ao Ravid, eram altamente perigosos.[47] Os akrab, como chamavam os judeus, eram muito frequentes no mar de Sal. Escondiam-se durante o dia sob as pedras e nos vãos das rochas e saíam ao entarde­cer, ou ao anoitecer, à caça. Eram rápidos e ligeiros. Podiam penetrar nos sacos de viagem ou inclusive entre as roupas. No caso em que estamos envolvidos agora tropeçamos com um exemplar de "matador hebreu" (o maior), pertencente à espécie Androctonua amoreuxi hebraeus. A picada é mortal. O segundo escorpião (amarelo) era uma fêmea de Androctonus australis, igualmente perigoso. A picada mata em dois minutos.

Tarpelay fez bem ao esmagá-lo. Cada fêmea traz ao mundo 45 crias.

Nós nos achávamos em plena época do cio. Sua periculosidade aumentava.

Aprendi a lição. Obedeceria às indicações do sais.

Tinha que prestar mais atenção...

 

Talvez já fossem cinco da tarde. Consultei o sol. Descia até a margem oeste. Faltava uma hora e meia para o crepúsculo.

Não tinha idéia de quais eram os planos de Tarpelay. Confiava nele.

E o guia e condutor de carruagens se debruçou sobre o lago. Verifi­cou algo e exclamou:

- Agora sim! Vamos!

Com o tempo fui aprendendo. A essas horas, especialmente no verão, aparecia pelo noroeste uma brisa com um jeito de vento, que mudava tudo no mar de Sal. Era uma brisa nascida no Mediterrâneo que se apresentava ao lago com uma pontualidade britânica. Sempre às 17 horas. Trazia empurrões: soprava a 30 e 40 quilômetros por hora. Com ela, como eu digo, registravam-se mudanças notáveis. Descia a umidade e naturalmente a temperatura, fazendo respirável o Gor, o que não era pouco. O mar maru­lhava e movimentava pequenas e vaidosas ondas, mesmo que ainda fossem ridículas. A verdade é que todos agradeciam àquela variação adiabática.[48] A brisa que vinha da terra até o interior do yam chegava e apagava os belos re­flexos que com tanto trabalho o sol havia feito. Os laranjas, azul-celestes ou pretos desapareciam, e em seu lugar o vento deixava cair tons azul-escuros. Às vezes, com sorte, o escarlate resistia e acompanhava o sol até a sua morte.

Vamos!

Tar conhecia bem o caminho até Maqueronte.

Abandonamos o delta do Jordão, cruzamos a via seca de Udheimi e nos integramos ao caminho de terra batida que se dirigia ao sul. Não tardamos a alcançar os marcos que assinalavam a direção de Betaramta (Julias) e Bet Peor, o povoado em que Moisés supostamente foi enterrado.

Tomamos o caminho do mar de Sal. Betaramta e Bet Peor ficaram à esquerda, perdidas entre as colinas azuis e sombreadas de Abarim e um remoto monte Nebo, suave e desnudo.

De repente, ao sair de uma curva, Tar parou o carro.

Nós nos achávamos em frente a um verde e compacto bosque de canas.

Tar desceu do carro, se emaranhou entre seus utensílios e foi pegar uns sacos vazios de juta.

O caminho, valente, sem perguntar, entrava no canavial, agora reme­xido pela brisa do Mediterrâneo. Eram canas grossas como punhos, altas como pinheiros, de até 10 ou 15 metros.

Chamou-me a atenção algumas telas vermelhas, amarradas às canas de um lado e do outro da trilha. Pareciam avisar algo. Não perguntei.

O sais, em idêntico silêncio, caminhou até os cavalos e cobriu a cabeça deles com os sacos. Depois se voltou até quem isto escreve e levou de novo o dedo indicador direito aos lábios, pedindo silêncio.

Assenti com a cabeça.

E o guia, bem sério, comentou:

Perigo! Parpâr!

Se posicionou à frente dos cavalos e os puxou.

Por que não subia no reda?

Qual era o perigo?

Parpâr queria dizer "borboleta"...

Por que tinha coberto a cabeça dos cavalos? A quem temia?

Desta vez eu me preparei. Tomei à mão a "vara de Moisés" e perma­neci atento.

E penetramos entre as canas...

Durante alguns minutos fui todo ouvidos, todo olhos. Mas não distingui nada estranho. As canas, com a cumplicidade do vento, se debruça­ram e nos contemplavam, não sei se pasmas ou quase mortas de tanto rir.

Parpâr?

Eu sabia algo sobre as numerosas lendas que corriam entre os supers­ticiosos judeus e não judeus...

Diziam que em locais como aqueles, nos grandes canaviais, habi­tavam mariposas gigantes, de até 30 ou 50 centímetros de envergadura. Eram parpâr enfeitiçadas. Em realidade se tratava de mulheres (filhas de Lilith) que tentavam regressar à realidade. Mas para isso deviam pousar em um ser humano e cantar. A melodia paralisava o caminhante e o fazia chorar com sentimento. Era o momento esperado da diabrura. A borbo­leta então bebia as lágrimas e se convertia em mulher de carne e osso. E o infortunado caminhante pereceria.

Outros asseguravam que, ao sussurrar a canção à vítima, esta se fazia invisível e vagava eternamente pelo canavial sem que ninguém pudesse vê-la ou ajudá-la.

Compreendi o temor do sais.

E eu, como um idiota, permaneci igualmente atento às possíveis dia­bruras aladas...

Pouco a pouco, conforme fui percorrendo o mar de Sal, enriqueci-me com a diversidade de histórias e lendas, cada qual mais falsa que a ou­tra. Mas isso era o de menos. O que importava era o grau de imaginação e até que ponto eles acreditavam.

Quando visitei a cidade do Sal (de que falarei em seu devido mo­mento) pude ouvir todo tipo de contos. Todos acreditavam de pés juntos. As margens do lago - diziam - se achavam marcadas com os ossos dos caça-tesouros. Ficavam no ar, como castigo das criaturas que habitavam o bosque submerso.[49]

O número de seres monstruosos era interminável. Uns habitavam nas profundidades (no referido bosque submerso e petrificado), outros nas sa­linas do sul, nas margens ou nos canaviais. Havia serpentes avermelhadas (do tipo Tyrus) (?), intermináveis com chifres que cuspiam o mesmo fogo que acabou com Sodoma e Gomorra, entre as outras cidades do sul do lago. Não faltava Adam-adom, o homem dos olhos vermelhos que extraía o sangue dos animais, e também um monstro gigantesco, como uma baleia, que era o responsável pelo mau cheiro do lago, assim como pelos vapores que matavam tudo o que voasse sobre ele. James Joyce, em Ulisses, se deixou influenciar por essas patranhas.[50]

Contudo, a lenda que mais me impactou foi a relacionada com os reem, que equivalia a "unicórnio". Tratava-se de uma criatura silenciada pelas Sagra­das Escrituras. Foram criadas em pares e com conta-gotas, para que não tira­nizassem o mundo. Yaveh ordenou que se emparelhassem a cada 70 anos. Era o momento da procriação. Depois se distanciavam um do outro, em direções opostas, até que voltassem a se reunir, passados outros 70 anos. Durante a ausência choravam sem cessar. Tinham um período de gestação de 12 anos. Sempre davam à luz gêmeos (macho e fêmea). Ao nascer, o reem morria. E os unicórnios recém-nascidos caminhavam em direções opostas. Voltavam a encontrar-se aos 70 anos. Os judeus asseguravam que o unicórnio foi o primei­ro animal sacrificado a Yaveh. Adão o fez quando assistiu ao primeiro pôr do sol. Ele acreditou que a noite seria eterna e sacrificou um reem para solicitar a clemência do Santo. Porém, Deus - contava a lenda - se encontrava dormindo e não despertou em 12 horas. Daí vem que a noite dure esse tempo.

Como Shakespeare teria desfrutado desses relatos!

Tarpelay se deteve algumas vezes. Olhou ao redor, tentando ouvir, e enfiou a mão na empunhadura de uma das adagas.

Alarme falso.

As enfeitiçadas não apareceram. Que pena...

O que vimos, sim, foram borboletas comuns e normais, do gênero Ornithoptera, com as asas azuis, amarelas e verdes, ligeiramente sombreadas por uma linha aveludada preta (outro detalhe de Deus). Também havia as do tipo etíope, contudo mais austeras na indumentária...

Finalmente, deixamos para trás o canavial (a partir desse momento o denominei bosque das "borboletas feiticeiras") e fomos recebidos por um pequeno caminho mais alegre e igualmente serpenteante. Corria pela margem do mar de Sal bem colado à água e com certa inocência. É tudo o que há para dizer dele.

Decidi descer e caminhar por algum tempo.

Tar me olhou, satisfeito. Retirou o saco da cabeça dos cavalos e fez uma só indicação; dormiríamos perto de Calirohi.

Não sabia nada sobre a dita aldeia, salvo que se achava relativamente próxima ao palácio-fortaleza de Antipas.

O importante é que o sais havia saído triunfante do bosque das "bor­boletas feiticeiras".

O sol dizia adeus e o fazia com seus típicos modos em vermelho e laranja. Tudo, ao nosso redor, mudou de cor. A desolação diminuiu.

À nossa esquerda, como acredito já ter dito, se levantavam grandes falésias de arenito núbio, agora mais rosa, se cabe afirmar. Eram escarpas íngremes sem rosto que se precipitavam no lago de forma suicida, com desníveis e precipícios muito acentuados. Não havia forma de distinguir uma só giesta, um só ramo de flores ou uma só árvore, ainda que fosse um tronco morto.

Pura desolação...

Na distância as suaves colinas, também em laranja, apareciam sulca­das por dezenas de caminhos de cabras. Distingui alguns rebanhos de ca­bras pretas, esquálidas, de cara branca e longas orelhas. Não iam acompa­nhadas por pastores. Eram conduzidas por jumentos de pequena estatura e a pele abrilhantada pela fome e pelo sol. Era o costume em Gor. Eram os asnos que pastoreavam. Iam e vinham e sempre retornavam para onde tinham que retornar.

Precisei de tempo para me acostumar ao cheiro fétido do mar de Sal. O odor preenchia tudo.

Na margem, num barro negro similar ao petróleo, comia e revoava um bom número de aves. Acreditei distinguir garças, pelicanos, gaviões, cegonhas, bútios, narceja-comum, papagaios-do-mar, pardais, águias, fal­cões. Nem se alteravam ao nos ver passar.

Aqui e ali sobressaíam ossos de animais, cobertos de sal, como uma advertência...

À nossa esquerda ficaram duas pequenas vilas de pedra e barro - Gassul e Bet Yesimot - sentadas à metade das colinas, como se temessem aproximação. Quem vivia em semelhante inferno?

Cruzamos cinco wadis, todos eles secos e abrasados, habitados, su­ponho, por escorpiões e serpentes.

Por último, com o sol rendido, divisamos outro canal que chamavam Zarqa ou Naj aliei. Este sim trazia água. Ele se achava a 16 quilômetros do delta do Jordão, segundo minhas apreciações.

Final da viagem, por hora...

Tar indicou a ponte de troncos que pulava sobre o wadi e resumiu:

Calirohi do outro lado...

E dispôs tudo para passar a noite.

A lua, esguia, nos acompanhou até as 21 horas, 43 minutos e 49 se­gundos. Isso rezavam os relógios do módulo quando o Destino permitiu que eu regressasse ao Ravid.

Fiquei novamente extasiado.

Ao desaparecer a lua, o firmamento se apresentou com todo o seu esplendor. Tarpelay me convidou a contemplá-lo com outro de seus habi­tuais silêncios.

Oito mil estrelas somente para nós dois!

Não sei se disse. Eu as contei em várias oportunidades ao longo da­quela inesquecível e fascinante aventura com Jesus de Nazaré.

Oito mil estrelas a olho nu! Oito mil brigando umas com as outras para brilhar mais do que a sua vizinha!

Jesus de Nazaré...

Eu sentia a sua falta.

Cassiopeia me deu várias piscadas. E pensei nas misteriosas luzes que havia visto em Beit Ids e no alto do "porta-aviões". Voltaria a vê-las?

Algenib e a constelação de Peixes também me cumprimentaram. Todas o faziam. Pareciam querer abandonar seus postos e nos deixar às escuras. Mas não...

Desfrutei imensamente. Só faltava ela...

Tar não permitiu que eu dormisse sobre a terra. A temperatura era excelente (em torno de 20°C), mas ele se negou:

Perigo...

Retirei-me para o interior da reda, e assim se passou a primeira noite no mar de Sal.

Na manhã seguinte, bem cedinho, me banhei no lago. Conhecia a sensação. Eu havia me banhado no mar Morto em outras oportunidades em nosso tempo). Agora foi diferente.

O alvorecer se pôs violeta e debruçou nos escarpados, curioso.

Flutuar sem querer não é simples.

Tar me contemplava atento.

E decidimos aproveitar o relativo frescor do amanhecer para alcan­çar Calirohi.

O líbio tinha razão.

A aldeia se achava bem próxima ao wadi Zarqa. Calculei dois quilô­metros e meio.

Calirohi - também chamada Callirroe - era um mísero punhado de casebres de pedra branca e teimosa, com tetos de palha, cada uma mais desordenada que a outra. Somei 20 casas e outros tantos currais.

A aldeia se apresentou na metade da trilha, como por arte da magia.

O lago se encontrava ali mesmo, mas acredito que nem se falavam, de puro tédio.

Tar foi diretamente a um desses casebres. Eu o esperei na reda, to­mando notas.

Alguns vizinhos deixaram-se ver. Pareciam arab. Na realidade o eram. Quase todos eram nabateus. As crianças estavam sendo comidas pelas moscas, literalmente.

Os asnos também apareceram, vindo dos currais. E algumas cabras colocaram suas "mãos" sobre as cercas, observando-nos. Depois eu soube: nós éramos a primeira visita em muitos dias.

Não vi uma só sombra.

Isso me preocupou.

Calirohi se encontrava habitada até então pela família dos Jemâr. Eram primos, irmãos, sobrinhos e parentes em segundo e terceiro graus. Ninguém que não fosse um Jemâr podia habitar em Calirohi de forma permanente. Eram os melhores exploradores do mar de Sal. Sua especia­lidade era o asfaltite (vem daí o nome). Eram especialistas na localização das massas de betume que flutuavam nas águas. Com o tempo tive opor­tunidade de contemplar esse tipo de "captura" e as guerras que provocava a possessão de tais blocos.

Os Jemâr guardavam seus segredos. Vem daí que não admitiam nin­guém que não levasse seu sangue nas veias.

Eram gente boa, mas ninguém os ensinou a pensar mais para fora e adiante. O Mestre também dedicou algum tempo a eles, ainda que jamais tenha sido dito...

Devido ao sal, e às duras condições do Gor, os Jemâr se tornavam ve­lhos aos 30 anos, ou antes. As mulheres nem isso. Era gente enrugada, ainda que somente por fora. A maioria terminava com problemas de visão ou to­talmente cegos. Eram quase negros, com um alto percentual de olhos claros.

As crianças eram abertas e carinhosas. Aproximavam-se e se limitavam a olhar. Nunca soube quem comia quem: as moscas a eles, ou o contrário.

Tarpelay chegou a um arranjo. Os Jemâr o conheciam e o estimavam.

Nós deixaríamos a reda e os cavalos sob a custódia de um dos vizinhos. Mais soluções seria questão de trocados.

Prosseguiríamos a pé.

E assim o fizemos.

Ninguém perguntou nada em Calirohi. Era o costume no mar de Sal. Ninguém perguntava nada a ninguém. Já tinham o bastante com suas próprias vidas para preocuparem-se com a vida alheia.

Tar foi moderado como sempre:

Perigo...

Não discuti. E me resignei.

Deviam ser mais ou menos oito da manhã quando divisamos a grande torre.

Havíamos caminhado outros dois quilômetros.

O guia parou e examinou o lugar.

Não encontrei nada diferente. Tudo seguia sendo deserto, laranja e desolação.

E repentinamente, como eu digo, surgiu aquela enorme torre, que se achava ao pé da trilha.

Era alta e robusta, plantada como um quadrado e com pouco mais de oito metros de altura. Havia sido erguida com pedras negras basálticas, transportadas Deus sabe de onde...

Muito perto da torre se abria caminho ao enésimo wadi ou canal seco. Recebia o nome de Zarad.

E o líbio fez um sinal para o alto de uma das colinas na direção leste, ao mesmo tempo em que exclamava:

Maqueronte...

Sobre um cone quase perfeito se distinguia, de fato, uma fortaleza, meio apagada pelas sombras.

Ali se encontrava o Batista, segundo Nakebos.

Mas onde está a estrada?

Tarpelay encolheu os ombros e replicou:

Não estrada...

Para chegar à fortaleza, era preciso aventurar-se entre os penhascos, subindo e descendo sem parar. Calculei em torno de seis quilômetros. Maqueronte se encontrava a 400 metros de altura.

Aquele, o enclave da torre, era o lugar adequado para iniciar a subida até o palácio e fortaleza de Antipas. A entrada principal, com a estrada correspondente, se achava, justamente, do outro lado, na direção leste. Era um caminho que eu desconhecia.

Tar interpretou meus pensamentos com perfeição. Alcançar a forta­leza pela porta principal seria uma perda de tempo e uma temeridade. Por este lado, quem sabe tivéssemos uma possibilidade...

Duvidei. Possibilidade de quê? De entrar no forte?

Algo em meu interior me disse que eu estava cometendo um erro...

O sais fez um gesto para que eu o seguisse, pois na torre vivia alguém que poderia nos proporcionar mais informações.

Não chegamos a dar quatro passos quando ouvimos os latidos.

Tar não se alterou e continuou em frente, decidido.

Pouco depois, por trás da torre, apareceram os mastins brancos, com uma cara pouco amigável. Instintivamente levei os dedos ao instrumento de ultrassom. Não foi necessário.

Correram até o líbio, como se o conhecessem, e pularam ao seu redor, celebrando a chegada do negro que sempre vestia amarelo.

Detive-me, por prudência.

Ao chegar à torre, Tar entrou em seu interior acompanhado pelos cães.

Olhei em volta.

Encostada na face esquerda se via outra construção de médio porte, de uns dois metros de altura, sem portas e sem janelas. Deduzi que se tra­tava de uma cisterna, destinada a recolher as águas pluviais. A única porta da torre se colocava na direção leste. Supus que eu me encontrava diante de uma velha edificação militar, utilizada em seu devido momento para a transmissão de sinais (geralmente luminosos, como eu havia observado no caminho para Cesareia).

Por trás da torre se levantava um cercado de troncos e juncos, ama­relos e entediados. Imaginei que se tratava de um curral.

Algo mais abaixo, a uns dez metros, me olhava um diminuto em­barcadouro, com umas tábuas intensamente negras e brilhantes e umas estacas, branqueadas pelo sal, que vigiavam não sabia o quê.

Não vi embarcações.

Decidi chegar perto da torre.

Ao chegar à frente da porta, descobri algumas inscrições, gravadas sobre o umbral. Uma, em a'rab, dizia: "Allat me protege. Mas quem me protege de mim mesmo?"

Allat era uma deusa árabe, identificada posteriormente com Afrodite.

A segunda gravação, também na pedra, aparecia em grego: "Na boa sorte. Zeus Oboda ajuda a Abdalgos que construiu esta torre sob bons presságios, no ano 188, com a ajuda do mestre de obras Wailos e Êutiques".

E nisso, enquanto refletia sobre o que havia lido, Tar regressou. Che­gou acompanhado de várias mulheres. Três eram jovens, ou, pelo menos, não tão enrugadas como as outras duas.

Os cães se aproximaram e me cheiraram. Acariciei um deles. Tinha uma máscara negra.

O líbio parecia satisfeito. Aqueles mastins, fiéis guardiães, não faziam amizade com qualquer um...

As mulheres falaram em drab.

Disseram algo sobre um tal de Raisos. Era o dono da torre. Havia saído. Encontrava-se no lago e regressaria com o cair da tarde.

Tarpelay ficou pensativo.

Finalmente, após consultar-se consigo mesmo, e por último com este explo­rador, decidiu que esperaríamos. Conversar com Raisos era importante. Tratava-se de um dos fornecedores habituais do palácio-fortaleza de Maqueronte. Como Tarpelay o chamou? Creio que utilizou o termo lehasig, que poderia traduzir-se como "conseguidor". Raisos conseguia tudo, não importava o quê ou para quê. Com aquele indivíduo me aguardavam novas e desconcertantes surpresas...

Foi nesse momento, conversando com as esposas de Raisos, que per­cebi algo de anormal. As mulheres mais jovens terminaram por descobrir o rosto e comprovei que sofriam de uma enfermidade pouco comum. A princípio pensei em algum tipo de lepra, mas não era.

O rosto e o pescoço apresentavam uma intensa tonalidade verde. Eu me lembrava de ter lido algo sobre este assunto em particular, mas jamais vi nada semelhante. Grupper descobriu isso em certa ocasião e atribuiu o problema dermatológico a uma dieta vegetariana muito rígida, consisten­te em cebolas e cenouras como única alimentação. Também o peito e os genitais se tornam verdes. Não sei...

Duas das jovens (?) padeciam igualmente de uma espantosa defor­mação no nariz. Era como se as ratazanas o tivessem devorado.

Fixei o olhar com detalhamento e vi que estava quase certo. Aquilo era uma leishmaniose cutânea. Neste caso, de tipo úmido ou rural, com elevações eruptivas pequenas e sólidas (pápulas indolores de crescimento lento). Os nódulos se achavam ulcerados. Na realidade, o nariz como um todo era uma úlcera. As infelizes não podiam permanecer muito tempo com as feridas ao ar. As moscas caíam nelas aos batalhões.

Era provável que tivessem sido infectadas por algum tipo de roedor, tipo gerbo, gerbil ou esquilo da mongólia, ou pelo mosquito (fêmea) do gênero Lutzomyia (mosquito-palha).

Uma pena. Os olhos das garotas eram grandes, verdes e cheios de luz.

Foi assim que eu soube como e por que a torre do wadi Zarad era conhecida no yam como a torre das "Verdes".

Mas as mulheres não pareciam se importar com o problema. Elas riam, conversavam e brincavam com o líbio. Eles se conheciam de muito tempo. Além disso, Raisos tinha oferecido uma de suas filhas em casa­mento. Tar não aceitou. Tinha trabalho suficiente com seus cavalos e para manter as adagas brilhantes.

Tarpelay esquadrinhou o horizonte do lago. Nenhum sinal do barco de Raisos.

E resumiu a situação:

Esperar...

Depois recordou algo e, conhecendo-me, advertiu:

Não levantar pedras...

O sol se encontrava ainda se divertindo sobre as falésias e as colinas. Era difícil para ele despertá-las. E decidi aproveitar o relativo frescor da manhã. O lugar, em breve, se converteria em um forno.

Tar permaneceu na torre com as "Verdes".

Um dos mastins, o da máscara negra, veio ficar comigo.

A companhia do cão me tranquilizou. Na proximidade de um es­corpião ou de uma serpente, ele seria detectado pelo animal muito antes deste desastrado explorador. Além disso, eu portava a "vara de Moisés". Não poderia me acontecer nada de mal... (!)

Quem poderia imaginar naquela época que, algum tempo depois, quem isto escreve voltaria a andar por aquelas mesmas vielas a ermo, e na companhia do Mestre... Nós já sabemos: o Destino... Mas eu tenho que ser forte. Eu devo chegar ao final desta aventura.

Não demorei a vê-lo.

Encontrava-se do outro lado do wadi.

O que era?

Na distância não consegui distinguir com nitidez.

Parecia...

Caminhei na direção sul, desci até o canal seco do rio Zarad, me es­quivei dos seixos brancos e subi por um pequeno barranco, reintegrando- -me à trilha que viajava pela margem do lago.

Não estava nem um pouco errado.

Era o que eu acreditava ter visto.

Fui aproximando-me, vagarosamente.

O mastim começou a latir. O sol se deu conta da nossa presença e começou a mostrar um grande interesse por nós. Teríamos que ter pressa.

Do outro lado do wadi, como eu digo, a cerca de cem metros da torre das "Verdes", habitava uma família de penhascos. Somei cinco. Eram ver­melhos, de puro arenito núbio. Estavam ali por toda a eternidade.

A senda corria aos seus pés, contudo sempre em silêncio.

Uma das rochas era adulta. Alcançava uns 17 metros de altura. Era plana, e sua face a oeste era a que dava para o mar de Sal. No alto havia nascido uma jovenzinha macieira de Sodoma. Assomava-se ao vazio com precaução.

Os penhascos restantes eram de menos corpulência. Simplesmente faziam companhia ao principal.

Toquei a pedra. Estava despertando. Estava fria.

Olhei para o alto e voltei a surpreender-me.

Incrível!

Como terão feito isso?

A pergunta era uma estupidez.

"Como acredita que tenham feito? Com uma escada, tonto!"

Podia ser, mas com uma escada de tantos metros...

"E por que estava ali?"

A isso eu não soube responder. Não tinha ideia.

Pensei em regressar e perguntar ao sais, ou às mulheres. Eles deviam saber...

Faria isso mais tarde.

E gravei na memória o que tinha diante de mim.

A cerca de 15 ou 16 metros do solo se distinguia uma legenda (?), gravada na rocha,

Era em aramaico antigo.

Li com dificuldade.

A gravação era impecável. Não parecia recente. Alguém teria se dado o trabalho... e muito.

Pensei em subir acima da rocha de arenito e inspecionar com mais detalhamento. As letras eram perfeitas e de idênticas dimensões. Só uma palavra aparecia com mais destaque.

Sim, eu subiria o penhasco e exploraria...

A legenda - ou o que fosse - começava com a frase:

"Eram 200 os que baixaram de cima do monte Hermon."

Como eu disse a mim mesmo. "Nem idéia".

O restante formava cinco colunas de nomes. Lido da direita para a esquerda, dizia textualmente:

Primeira coluna: SEMIHAZAH (era a única palavra maior entre as demais). Ao seu lado se lia: "chefe dos encantamentos".

E continuava na referida primeira coluna:

Arteqof (segundo chefe e conhecedor dos signos da terra).

Ramtel (terceiro conjurado).

Hermoní (o que ensinou a desencantar).

Segunda coluna:

Baraqel (o que ensinou os signos dos raios).

Kokabel (o que conhece as estrelas e pratica a ciência das estrelas).

Zeqel (o que sabe de relâmpagos).

Ramael (o sexto).

Terceira coluna:

Daniel (o que conhece as plantas).

Asael (o décimo de todos eles).

Matarel (o que conhece os venenos).

Iahel (o que conhece os metais).

Quarta coluna:

Ananel (o que conhece os adornos).

Satoel (décimo quarto).

Shamsi (o que conhece os sinais do sol).

Sahariel (o que conhece e ensina os signos da lua).

A quinta e última coluna aparecia apagada em sua totalidade. As letras haviam sido marteladas, intencionalmente. Não pude reconstruir nem um só dos possíveis nomes.

A leitura, como eu digo, não me recordou de nada, salvo um dos nomes: Iahel. Os calíbios (mestres fundidores) do cárcere do Cobre me fa­laram de alguém com um nome parecido (Iahel). Segundo eles, foi o anjo caído que ensinou aos seus ancestrais os segredos da metalurgia.

Pensei numa casualidade. No entanto, desde quando este explorador acreditava em casualidades?

Encontrava-me diante de uma lista de nomes de anjos caídos? Por que mencionava o monte Hermon? Fora ali, justamente, onde ocorreu o encontro do Mestre com os representantes dos rebeldes, quer dizer, dos anjos caídos. Porém, esse "encontro" aconteceu no verão do ano 25 da nossa era... O que tinha à minha vista era uma inscrição muito mais anti­ga. Como era possível? Não conseguia entender.

Quem era o autor daquele escrito?

Quando retornei ao Ravid e consultei os arquivos do "Papai Noel", só obtive algumas pistas... Poucas e fracas. Os essênios, baseando-se em um livro apócrifo de Enoch (6, 4-8, 1), faziam alusão a estes e outros nomes dos supostos anjos rebeldes, conjurados no monte Hermon. Foram os cé­lebres "filhos dos deuses, que se misturaram com as filhas dos homens".

Quem isto escreve não podia imaginar a extraordinária transcen­dência do que tinha adiante. Quão certo é que Deus escreve certo por linhas tortas!

Mas eu, logicamente, não sabia... Isso sucedeu depois, quando acon­teceu o que aconteceu.

A coincidência com aquele nome - Iahel - me superou. E a curiosida­de subiu de tal forma, quase como quando a água chega à altura do nariz.

Tinha que averiguar algo mais sobre a singular inscrição na rocha desde esse momento a batizei como a "pedra dos graffiti”; eu sei, foi algo irreverente).

O que fazer?

Devia constatar detalhes: medidas exatas, grau de oxidação das linhas etc.

Para isso teria que subir e observar a legenda o mais perto possível.

Dito e feito.

Procurei uma trilha e escalei o penhasco. O mastim ficou lá embaixo alucinado: "o que estava se passando com aquele ser humano?"

E, enquanto eu subia, eu me lembrei da advertência do guia negro:

"Não levantar..."

Cheguei ao alto sem dificuldade. O panorama era esplêndido.

O lago se tornara rosa e, pouco a pouco, era empurrado para o novo dia. A jovem macieira (uma Calatropis procera), de apenas um metro, fi­cou me olhando, com as folhas desconcertadas. Mais atônito estava eu. Como ela havia conseguido prosperar em semelhante inferno?

Maqueronte também me contemplava, suponho. Apesar da distân­cia, os guardas podiam me ver. Isso me preocupou, mas só por alguns segundos. Deixei a trouxa e o saco embreado na rocha e me dediquei àquilo que importava.

Debrucei-me ao fio do penhasco e verifiquei que a inscrição havia sido disposta com bastante minúcia e ao longo de três metros e meio. Servi-me da "vara de Moisés" para medir.

Cada coluna ocupava 50 centímetros, exatamente. Todas mediam o mesmo, tanto em altura como em largura.

Fiquei pensativo. Que estranho! Como era possível que as medidas coincidissem? Alguém havia planificado e tinha trabalhado com esmero; disso não restava dúvida...

E, de repente, o mastim começou a latir. Eu o olhei, mas não entendi.

E continuei o que estava querendo fazer.

Necessitava comprovar o grau de oxidação das linhas gravadas. Era importante para descartar que fosse recente. À primeira vista, as estreitas incisões na rocha apresentavam a mesma tonalidade do resto da pedra. Isso significava que o grau de oxidação era idêntico em ambos os locais. Por consequência, as inscrições não eram "modernas". O ideal era pegar uma amostra e analisá-la no "berço"...

E por que não?

Não tinha por que causar nenhum dano à inscrição. Algumas mili­gramas do arenito, extraídos da superfície riscada, seriam suficientes. O "roubo" na rocha seria mínimo.

Durante alguns minutos pensei como fazer.

O mastim continuava latindo, muito alterado. O que acontecia?

Olhei ao redor. Não observei nada de incomum.

Em cima do penhasco não se viam fendas. Isso me tranquilizou.

A legenda aparecia a um metro e meio do fio da grande rocha. Como chegar até ali?

Não devia tentar uma descida sem o mínimo de proteção. Cair de uma altura de 15 metros poderia ser mortal...

Somente me ocorreu uma solução.

Era arriscada, mas factível...

Desceria pela parede, aproveitando as saliências, me colocaria na al­tura das gravações e empregaria o laser de gás para "recortar" uma das incisões e conseguir a amostra.

E o faria preso.

Parecia simples, mas não gostei. Se eu caísse...

Eu sei. Fui um estúpido. A extração da amostra podia ser feita do solo, lá do chão. O laser tinha um alcance efetivo superior a 20 metros...

Mas, ofuscado pela curiosidade, não levei isso em consideração.

Precisava de uma corda.

Dei uma olhada na trouxa. Negativo.

E no saco não encontrei o que necessitava.

Só restava uma alternativa.

Não pensei.

Soltei as cordas egípcias que serviam de cíngulo, calculei as distân­cias e terminei por atá-las à base da macieira.

Era o suficiente.

Puxei com força. A jovem e voluntariosa Calatropis resistiu e tam­bém a corda que me servia de cinturão.

Vamos lá!

Amarrei dando um nó nas egípcias ao tornozelo direito e, sem mais, iniciei a descida pela parede. Eu fiz o movimento devagar, firmando cada pé nas rugosidades da rocha. Não eram muitas. Tinha que manobrar com cautela. A "vara de Moisés" na mão esquerda era um estorvo, mas não tinha opção...

O mastim continuava latindo.

E lentamente fui me aproximando das inscrições.

Calculei bem.

A corda se esticou. Até ali eu podia chegar...

Achava-me em frente à quarta coluna. Examinei as incisões. Eram perfeitas. Tinham sido trabalhadas com minuciosidade. A superfície ris­cada, de acordo com as minhas suspeitas, apresentava o mesmo grau de oxidação que o resto da rocha. Eram gravações muito antigas, sem dúvida.

E me dispus a manipular a "vara de Moisés".

O equilíbrio era precário. As pontas das sandálias não encontravam fendas...

Selecionei a palavra Ananel. Só tinha que ativar o laser e, com paciência, "recortar" a parte da última letra. O dano seria mínimo...

Depois recolheria a amostra e "Papai Noel" se ocuparia do resto.

O cachorro seguia como um louco.

Que diabos estava acontecendo?

E um súbito pensamento me prendeu: "Se eu escorregasse e caísse, a macieira de Sodoma resistiria?"

Engoli em seco.

Foi um pressentimento?

Olhei para baixo. O mastim ia e vinha na base do penhasco muito inquieto.

A Calatropis tinha que resistir. Isso era uma ordem!

E nisso eu estava, com os nervos à flor da pele, quando aconteceu...

Escorreguei, perdi o equilíbrio, a "vara de Moisés" pulou pelos ares e quem isto escreve se precipitou ao vazio...

E nesses segundos não se pensa.

E me vi de cabeça para baixo, milagrosamente preso pela corda que havia amarrado no tornozelo direito.

Oh, Deus!

Mas a Calatropis e as egípcias resistiram.

E ali fiquei, oscilando como um pêndulo a uns 15 metros acima do chão. Se a corda se rompesse, adeus explorador... Isso não foi o pior. De repente, "a luz se apagou"...

A túnica, obediente à lei da gravidade, e como não poderia ser de outra forma, deslizou em direção à minha cabeça... Perdi o controle. Que desastrado!

E ali ficou aquele "inteligente e aguerrido piloto da Força Aérea ame­ricana", de cabeça para baixo, com o rosto coberto pela túnica e o saq ou tanga para o ar, para ainda deixar a vergonha mais crua e nua... Tentei subir por trás. Impossível.

As rugosidades que me auxiliaram na hora de descer... já não esta­vam mais. Desapareceram!

O mastim latia e latia, com razão. No alto estava dependurado um idiota em tamanho natural.

E o sol, percebendo o apuro em que me encontrava, não teve a mí­nima compaixão por quem isto escreve. Comecei a suar copiosamente. E tentei uma outra vez. Negativo.

A túnica se enredava cada vez mais. Batalhei para desembaraçar-me dela. Negativo.

Tudo era negativo nessa ridícula manhã...

O que eu podia fazer?

Gritar? Para quem?

Daria uma ordem ao cachorro?

Senti-me perdido.

Tentei pensar. Tinha que achar uma solução... E, de repente, me veio à mente a imagem do Mestre. Não pude evitar. Imaginei que estivesse rindo muito... Notei como as forças me falhavam. Tinha que sair do atoleiro. Mas como?

Foi o mastim que resolveu a comprometedora situação.

Era um cachorro inteligente.

O animal não demorou em ir até a torre e deu o aviso.

As "Verdes" e Tarpelay compreenderam que algo acontecia e saíram às pressas.

Não demoraram em descobrir-me, com as pernas para o ar, e o saq ensopado de suor.

Ouvi os gritos... E os risos.

O líbio subiu à rocha "dos graffiti" e puxou a quem isto escreve, liberando-me.

O sais me olhava com os olhos espantados e repetia:

- Mim não compreender... Mim não compreender...

Não soube o que dizer.

Recolhi as coisas, desci da maldita pedra, recuperei a maldita "vara de Moisés" e acariciei o bendito cachorro. Eu estava lhe devendo uma...

Ele se chamava Bêji ("O que chora").

Eu também tinha vontade de chorar...

O restante do dia passei em um canto, morto de vergonha e fazendo anotações sobre a torre. Eu sei: eu não tenho conserto...

Tar me acompanhava, ainda com o susto presente na alma e no cor­po, e movia a cabeça negativamente:

"Mim não compreender..."

Finalmente, consegui serenidade e terminei perguntando algo coe­rente: "Alguém sabia alguma coisa sobre as inscrições na rocha?"

As "Verdes" estavam de acordo com Tar: "Era obra dos gênios..."

E aí terminou a aventura com a pedra "dos graffiti". Minto. Ainda restavam uma segunda e terceira partes...

Eram 17 horas, e com a chegada da brisa do Mediterrâneo o sais deu o aviso de alerta: uma vela se aproximava do embarcadouro.

Tratava-se de uma barcaça pançuda e cheia de artimanhas, daquelas que se atiravam conforme o vento. Aparecia pintada de laranja, como a vela. Tudo tinha sua explicação...

E com Raisos, patrão, esposo das "Verdes" e dono da torre, desem­barcou um velho amigo.

Abner, o segundo de Yehohanan! O pequeno grande homem! O ari!

Ao ver-me no embarcadouro, fez sinais para que não dissesse nada e para que mantivesse distância. Tar e eu nos olhamos, atônitos.

Acredito que compreendi.

Antipas havia posto um preço pela sua cabeça...

Abner apresentava um aspecto diferente. A dentição seguia calami­tosa, com as gengivas avermelhadas e sangrentas e meia dúzia de dentes inclinados e briguentos entre si, mas a aparência melhorou, em parte. Isso se devia ao corte do cabelo. Tinha raspado o couro cabeludo, estava care­ca. Uma túnica açafrão escondia o corpo de criança.

Em um aparte, enquanto o patrão abraçava Tarpelay, Abner se apres­sou em esclarecer que se achava como incógnito e que trabalhava sob as ordens de Raisos, o "conseguidor".

As suspeitas se confirmaram.

Depois, sentados na embarcação, um pouco mais relaxado, Abner começou a contar o que, em boa medida, eu já sabia.

Após a prisão do Batista, os seguidores se dispersaram. Ele conseguiu reunir vários "justos" e, após localizar o paradeiro de Yehohanan, planeja­ram um primeiro e segundo assalto-resgate ao cárcere do Cobre, nas pro­ximidades de Damiya. Foram estrepitosos e notórios fracassos. Careciam de armas e, o que era mais importante, de organização.

O tetrarca foi informado e ordenou que transferissem o Batista ao mar de Sal. Pôs um preço ao pequeno grande homem: 500 denários de prata.

Abner fugiu e, como o resto dos discípulos, se refugiou no Gor. Encontrou trabalho às ordens de Raisos e ali continuava, ajudando-lhe nas tarefas de transporte de mercadorias; a torre das "Verdes", como disse, achava-se próxima de Maqueronte, e isso proporcionava esperanças ao ari. Quem sabe dali pudesse receber notícias de seu ídolo e inclusive chegar até ele. Fiquei admirado diante da fidelidade daquele samaritano.

Abner não sabia nada sobre o Iscariotes. Judas participou de ambos os assaltos-resgate à prisão do Cobre, mas acabou fugindo como os outros.

Não disse nada sobre o fato de que se unira ao Galileu. Em breve se inteiraria...

Ao perguntar o motivo de me encontrar no lago, expliquei que o procurava para entregar-lhe algo e, sobretudo, porque desejava averiguar como se achava o Yehohanan.

Agradeceu meu interesse e me jurou fidelidade "até o fim". Eu seguia sendo Esrin ("Vinte").

Nessa noite, a sós, eu fiz a entrega do "323". Ao contemplar o perga­minho da "vitória", chorou. Ele o conservaria como um tesouro, e nunca mais voltei a ver o saco embreado e mal-cheiroso...

Após o jantar, Tar engendrou uma forma de desviar a conversa ao ponto que lhe interessava: Maqueronte. Raisos conhecia bem a região e rambém o palácio-fortaleza de Herodes Antipas.

Mas Tar, inteligentemente, não expôs a questão de maneira aberta. O sais conhecia minhas intenções: este explorador queria averiguar se era possível entrar na fortaleza, e como. E o líbio utilizou a astúcia...

Raisos era um sujeito curioso. Havia deixado para trás os 50 anos e já fazia um bom tempo... Era míope, com as pernas tortas, e sobretudo um en­ganador, que tomava sempre o melhor para si... Jurava que um antepassado seu, alto funcionário do rei de Petra, algo assim como Abdalgos (o nome que figurava sobre o dintel da porta da torre), era o construtor daquele lu­gar. Ele o herdou. Era a'rab e patrão do barco dos pecados. Essa era sua verdadeira profissão. Era um trabalho que nenhum judeu desempenhava. A lei oral estabelecia que os pecados chamados nefandos ("diante dos quais Deus oculta a vista") não podiam ser satisfeitos - do ponto de vista econô­mico - no Templo de Jerusalém ou nas sinagogas. O dinheiro que servia para reparar (?) tais ofensas a Deus devia ser arremessado às águas do mar de Sal. Assim conta na Mishná (tratado Nazir, capítulo IV). E assim ganhava a vida o arab. A barcaça que dormia agora no embarcadouro era hata', a única embarcação autorizada a transportar o dinheiro dos pecados. Por isso foi pintada naquele laranja tão chamativo. E me recordou o mot, o barco da morte que navegava no mar de Tiberíades, cuja missão era transportar cadáveres. Tudo no mot era branco. Obrigatoriamente branco.

Mas, feita a lei... Feito o embuste.

Raisos jogava "as bolsas dos pecados" ao lago e na presença dos "pe­cadores", mas logo depois, cumprida a cerimônia de submergir o dinheiro, a bolsa era içada e eles repartiam as moedas. E todos regressavam felizes e "perdoados"...

Este era o suculento "negócio" de Raisos, porém não era o único.

O arab da torre das "Verdes" tinha outras paixões...

Por exemplo: conseguir coisas. Quanto mais difíceis, melhor.

Outro exemplo: os ditados. Ele conhecia todos. Creio que os colecio­nava. Falava utilizando provérbios.

Por exemplo: se gabava por encantar escorpiões.

Ao pescoço luzia um canino de hipopótamo. Servia para espantar pesadelos. Isso é o que diziam...

Raisos era conhecido pelo apelido de lehasig ou "conseguidor". Era o grande lehasig do lago. Todos recorriam a ele, inclusive Antipas. Isso me interessou.

Pelo que fui averiguando, o tal Raisos era um intendente de primei­ra. Desfrutava de excelentes contatos. Vendia trigo de Moab, verduras do oásis de En Gedi, bálsamo de Jericó, canas "antiborboletas" procedentes da Nabatea, lamparinas de sal[51] "para trazer serenidade aos espíritos ator­mentados", sangue de morcego "para ver na escuridão"[52], bandagem com mel (para moribundos)[53], um algodão azul especial (nunca soube como ele o obtinha), cristais de cores para ver o futuro (?), amuletos de todos os tipos (em especial contra os escorpiões)[54], vestimentas de seda (supos­tamente preparadas contra o fogo) e urina das "Verdes" para amaciar os blocos de asfaltite, entre outras "lindezas".

Contudo, a grande "fraqueza" do patrão, como digo, eram os escorpiões.

Falou deles durante horas. Disse ser um jerp serket ou "encantador de escorpiões". Aprendera (?) a arte no Egito no livro santo de Rá, na Casa da Vida, em Alexandria. Provavelmente, era alguma invenção por parte dele, mas desfrutamos da beleza.

E Tar se deixou cair na metade da explicação sobre os escorpiões. Brincou com Raisos. Inventou, mas fez isso com habilidade. Expôs que aquele grego rico, que guiava, havia ouvido falar do veneno do escorpião, capaz de fazer sonhar em cores a quem bebia pequenas doses, e acrescen­tou que se tratava de um escorpião sem mãos. Alguém o havia visto nas fendas das ladeiras de Maqueronte...

Fiquei perplexo.

Nunca ouvira Tarpelay durante tanto tempo e com semelhante desenvoltura.

Raisos caiu na armadilha, caiu no embuste.

"Um escorpião que faz sonhar colorido?"

Ele conhecia essas fendas...

E ficou tudo acertado. Ele nos guiaria e ajudaria a encontrar o fan­tástico akrab.

Tarpelay me olhou e deu uma piscada.

A armadilha foi perfeita. Raisos era bem conhecido pela gente armada da fortaleza. Não suspeitariam se nos vissem perambular com ele pelos arredores...

E a curiosidade me venceu, mais uma vez.

Terminei questionando o "conseguidor" sobre Yehohanan.

Abner não podia acreditar na minha ousadia. E me fez sinais para que esquecesse o assunto. Eu compreendi. O patrão poderia ser um confidente. Arrisquei-me.

Raisos resumiu com um dos seus habituais provérbios:

Se tu desfrutas, sentes prazer com o amargo, deves saber cultivá-lo... Esse Yehohanan é um louco...

Por quê?

Estimado amigo, dar cabeçadas à outra cabeça pode não te causar nenhum dano... Se o fazes contra uma rocha, se quebra.

Não tive outra solução senão confessar. Havia sido seguidor do Batis­ta e me interessava pela sua situação...

Ninguém sabe de nada - explicou. - Ele é um prisioneiro especial...

Além disso - acrescentou, ao mesmo tempo em que apontava para as paredes da torre -, os ouvidos, mesmo que não estejam ao norte, ou­vem as palavras do norte...

Abner protestou. Ele não era confidente...

A idade e a prudência contam, inclusive entre os macacos...

Tarpelay, astuto, colaborou da sua maneira. Enchia e enchia a taça vazia de Raisos. E o legmi foi surtindo efeito. A língua do patrão se desenredou.

Abner ficou em silêncio.

Não acredito que seja para tanto - improvisei. - Esse louco é inca­paz de matar uma mosca.

A abóbora pública não deve se lamber por baixo...

Não te compreendo.

Se te dedicas a procurar mel, deves saber que as abelhas podem te picar...

Ele é alguém que fala e fala. Só isso...

A intenção é uma casa que é telhada só por seu proprietário... Fala por ti mesmo, se desejas. Quem sabe encontras alguém mais idiota que tu, que te escute...

Yehohanan pedia arrependimento - menti. - Só isso...

O Batista exigia outras coisas, muito mais sensíveis, e Raisos sabia disso...

Alguém não pode ser mestre (utilizou a palavra marabú) se antes não tenha sido discípulo... Arrependimento? Do que deves se arrepender se és menos do que uma mosca?

O "conseguidor" era um filósofo. E não lhe faltava razão.

Não é melhor ser paciente do que sábio? Por que ele a pregar para os crocodilos?

Suspirou, consumiu mais uma taça de legmi e acrescentou:

Agora está preso e lamentando... As lamentações são filhas da pres­sa e do descuido...

Tar perguntou:

Yehohanan é um profeta?

Os profetas se distinguem, sobretudo, porque deixam tudo por fa­zer. O que fez esse louco?

O patrão voltava a falar com razão. O Batista só aqueceu as massas, colocando-as contra Roma e contra o tetrarca. Sua mensagem e seu pen­samento - já disse isso - não tinham nada a ver com a filosofia do Filho do Homem. Nunca entendi por que o qualificaram como o Anunciador.,

Eu te direi o que ele fez... O tal Yehohanan pretende ter mais visão que um ancião sentado, mas só é uma criança em pé. Quer vender prospe­ridade com uma vela na mão... A prosperidade não vem. Está ou não esta.

Arrisquei-me.

Existe alguma possibilidade de vê-lo?

Nenhuma sem a permissão da rocha...

Da rocha?

Antipas...

E Raisos colocou o dedo na ferida, de novo:

Esse louco cometeu dois erros: atacar Antipas e insultar uma mu­lher... Não é o mesmo insultar uma mulher que atacar um homem... O pensamento deve ser contido antes da língua.

Talvez não tenha sido a sua intenção insultar Herodíade...

Meu argumento era insustentável.

Se vendes algo, lembra-te sempre que isso te vende...

Abner mordia os punhos de nervosismo, mas soube permanecer em silêncio.

E te dei mais ainda: o discurso pode soar melhor ao orador que para aquele que escuta: sobretudo se o que escuta é uma mulher... Queri­do grego: com frequência, alguém se afoga no rio que tenha subestima­do... Nunca subestimes uma mulher... nem pelo bem nem pelo mal.

Tu crês que Antipas acabará por soltá-lo?

Raisos caiu na risada.

Tu não conheces a rocha. Ele crê que é o sol e que pode apagar as listras das zebras...

Mas o libertará ou não? Tu dizes conhecer bem Antipas...

Eu o sirvo há tempos, verdade, mas ainda não falo o idioma dos crocodilos... Sou um malandro patife, mas não roubo a alma dos meus se­melhantes. Antipas sim. Yehohanan, se ele o soltará? Sim, o soltará. Mor­to, ou quem sabe o soltará para suas meninas...

"As meninas", outra vez. O que queria dizer com isso? Logo eu iria averiguar...

Tar se interessou por Antipas.

Como ele é realmente?

Ainda que passe décadas em um rio, um pau não pode converter-se em crocodilo. Com o tetrarca acontece o mesmo: nunca será um ser humano... Ele já nasceu odiando. Isso vem de família. Ele é um louco, rodeado por pessoas razoáveis.

Nakebos o advertiu. Era impossível chegar à presença de Yehoha­nan... Segundo Raisos, a Guarda Pretoriana estava em todo lugar. Maqueronte era uma ratoeira. "Se conseguires entrar sem ser visto, o que é impossível, nunca sairás vivo. Se conseguires sair, é porque estarás morto." Era esse o destino que aguardava o vidente...

Concentra-te em procurar esse escorpião - sentenciou o "conseguidor". - Eu te ajudarei, mas esquece o Yehohanan. Dez não pode ser nove, e nove não pode ser dez...

Ele me olhou nos olhos e proclamou:

Quando a grande árvore cai, as aves se dispersam...

Isso continuou por parte da noite. Raisos tinha ditados e provérbios para tudo e para todos.

Eu me recusei a aceitar as dificuldades. Gostaria de tentar penetrar na fortaleza. Não sabia como, mas eu o faria...

Nesse momento, eu percebi que era minha obrigação estar na pre­sença do Batista.

O dia seguinte, quinta-feira, 8 de agosto, amanheceu às 4 horas e 47 mi­nutos (segundo os relógios do módulo). E nos preparamos para sair. O objeti­vo, como já me referi, era impossível: visitar as cavernas de Maqueronte e pro­curar um escorpião sem mãos e que, além disso, provocava sonhos em cores...

Raisos seria o guia.

Abner recusou o convite. Ele disse que tinha outras obrigações. Fi­cou claro que ele não queria correr riscos. Eu entendi.

Antes de sair da torre, o senhor ordenou-nos que nos emplastásse­mos (dos pés à cabeça) com gordura de lebre. Era outra das soluções con­tra escorpiões e víboras. Pelo menos foi o que me garantiu Raisos. Não tive escolha a não ser obedecer. Tar recusou. "Suas adagas é que eram um bom remédio..."

O fedor durou dois dias.

E, com as primeiras luzes do dia, partimos.

Raisos ia na frente. Atrás vinha o guia negro, com o odre de água. Eu era o último, como sempre, carregando a bolsa com as provisões.

Fomos acompanhados por dois cães. O patrão insistiu que eles de­viam ser contratados, "como um a mais". Aquilo me pareceu um abuso, mas depois eu entendi...

Entramos no leito seco do Zarad. Tudo era uma questão de seguir o wadi, numa escalada contínua, até alcançarmos a base do grande cone sobre o qual se assentava a fortaleza de Maqueronte. Calculei que seriam uns seis quilômetros. O terreno, muito acidentado, nos forçava a andar de forma lenta e insegura. Iríamos precisar de pelo menos duas horas. Era importante aproveitar a tepidez da manhã. Quando o sol começasse a subir pelo azul do céu, o calor seria sufocante, superando os 40°C ao meio-dia. Nessa hora já deveríamos nos encontrar nas cavernas.

Eu estava errado. A distância até Maqueronte era maior. Iríamos pre­cisar de, no mínimo, três horas.

Raisos conhecia o terreno que pisava. Não o vi hesitar em nenhum instante.

Não existia uma estrada propriamente dita.

Como descrever o wadi?

Era uma área rochosa branco-amarelada, sem mais sombras do que as rochas que nos viam passar, e aquelas de um par de nuvens totalmente perdidas na imensidão azul. Olhasse para onde olhasse, distinguia apenas ocres, arenito que se preparava para ser cozido, colinas que despertavam amarelas e sem esperança, desolação (que se estendia como um gigantesco manto), cabras ao longe, tentando em vão movimentar a paisagem, caver­nas que não eram convidativas para se dar uma espiada, barrancos ansiando por um verde, moscas-varejeiras, algumas ervas que fugiam das cabras e que Raisos qualificou como sendo benéficas (contei 36) e silêncio... Um si­lêncio incomodado por pensamentos e pelo rolar das pedras, precipitando-se a cada um de nossos passos através dos declives.

Que tristeza imensa ser uma pedra!

Tudo correu bem durante a primeira hora.

Mas, às seis da manhã, um dos cães alertou nosso "conseguidor".

Raisos solicitou silêncio (isso sobrava) e que não nos mexêssemos.

Os mastins, vorazes, entraram em um buraco ao pé de uma rocha. Só se via uma poeira vermelha e os cães atacando e atacando, mais de uma vez.

Tar estava impassível, com a mão direita abraçando a empunhadura de prata de uma das adagas.

Raisos esperou, tranquilo.

Aos poucos, a luta terminou.

A poeira vermelha foi se tranquilizando e Bêji, o mastim da máscara negra, foi em direção a seu dono, abanando o rabo em triunfo. Em suas mandíbulas se pendurava uma serpente de quase 80 centímetros de com­primento.

Tarpelay se aproximou dele e cortou a cabeça da cobra com um golpe.

O cão deixou cair o corpo da cobra e ela se contorceu por alguns segundos.

Eu continuei a examinar os restos.

Era uma áspide (víbora) de cabeça triangular, pupilas verticais e a pon­ta do focinho voltada para cima. Tinha um "V" invertido entre os olhos.

Não havia dúvida. Era uma cobra venenosa[55], com barriga rosa e uma cauda muito estreita.

Foi a partir desse momento que eu tive certeza. O wadi estava infes­tado por serpentes.

Elas deslizavam e se escondiam por todas as partes. Algumas delas, inclusive, enfrentavam os passantes. Enroscavam-se todas, preparando-se para o ataque. Os cães obedeciam a Raisos e as deixavam de lado.

Eu me lembro de ter visto 30 delas, de diferentes espécies.[56]

Era um momento difícil.

Meus pés não estavam protegidos.

Desde aquele dia, o Zarad recebeu outro nome: o wadi das cobras.

Raisos resumiu bem a situação:

Anda com os olhos...

Bêji, inteligente e carinhoso, andava ao meu lado, me alertando.

As cobras saíam da clandestinidade no frescor da madrugada e iam caçar. Elas também eram vistas no crepúsculo. Estes eram os piores mo­mentos do dia. Nós tivemos que passar com muita cautela.

Apesar de todas as precauções, vê-las rastejar em terra e no solo ro­choso colocava os meus cabelos em pé. É difícil lidar com essas criaturas.,

E pouco antes da terceira (cerca de oito horas da manhã), Raisos parou.

Ele apontou para o enorme cone de terra branca que tínhamos à nos­sa frente e disse:

Maqueronte... Os legumes não crescem para aqueles que não se mexem..,

Calculei 15 quilômetros desde a torre das "Verdes".

A colina, com 400 metros de altura, estava no meio do nada. Flávio Josefo tinha razão ao descrevê-la: "A fortaleza consiste em uma protube­rância rochosa de grande altura, o que já a torna difícil de conquistar, mas a natureza a tornou ainda mais inacessível. Ela é, de fato, completamente rodeada por ravinas..." (Guerra dos Judeus, livro VII, 6, 2-3).

Ravinas? Flávio Josefo, tão propenso ao exagero, acabou ficando aquém na descrição de Maqueronte, também chamada de Macairous ("espada").[57] Hoje, no século XX, os árabes lhe dão o nome de Jebel al-Mishnaqa ou "morro da forca". Outros lhe chamam de "torre negra" e "a coroa".

Maqueronte era um grande cone truncado de base circular, branco e perfeito, com uma fortaleza no topo. Uma enorme fortaleza de pedras, também brancas, com um total de seis torres quadradas. Uma delas, cons­truída em pedras negras, tinha mais de 28 metros de altura. Era a torre que dava nome ao palácio. Olhava para nordeste.

As encostas tinham desníveis que superavam 40 por cento. Ninguém conseguia escalar sem ser visto.

Um olhar já foi o suficiente para perceber. Eu havia subestimado o lugar. Maqueronte era uma fortaleza de acesso muito difícil...

E fomos rodeando a base do cone, de norte a leste.

Examinei a muralha exterior. Era enorme, compacta, sem portas e com alturas que oscilavam entre os 10 e os 20 metros. Eram paredes diagonais, com as torres estrategicamente distribuídas. Em todas elas era possível distinguir o brilho do capacete dos guardas pretorianos.

Segundo Raisos, a guarnição era composta por cerca de 500 homens. Talvez até mais...

Eu conhecia a sua maneira de agir e suas características, mas o patrão os descreveu melhor:

São leões velhos, mais perigosos do que lobos jovens...

A alvenaria me impressionou. Os blocos de calcário eram enormes. Alguns tinham cerca de dez metros e, possivelmente, dez toneladas de peso. Como eles tinham conseguido trazer esses blocos até o alto do cone? Muito simples: com lágrimas, suor e sangue...

No interior da fortaleza - pelo que fui averiguando - havia um palá­cio e aquilo que eles chamavam de "cidade baixa", uma aldeia de serviços que recebia o nome de Ataroth. Ali vivia a guarnição e suas famílias, e também o conjunto de criados e muitos dos fornecedores.

Demos a volta no grande morro e fui tomando nota de todas as re­ferências possíveis.

Não notei um único ponto fraco.

Raisos, como que adivinhando os meus pensamentos, comentou com sarcasmo:

Empurrar este bote para a praia exige um monte de gente.

E chegamos às cavernas. Elas apareceram na encosta oriental de Ma­queronte. Contei dez delas. Pareciam desabitadas. Em algumas, eles guar­davam o gado.

Fizemos como se estivéssemos em busca do maldito escorpião e de­cidimos passar nelas o resto do dia. O calor era sufocante.

A partir desse ângulo eu podia ver o lado leste da fortaleza como um todo. A porta principal, e única, era enorme. Um caminho nascia no portão, descia de lá, se contorcendo entre as falésias, e desaparecia nas montanhas de Moab. No canto sul, eu descobri uma notável peça de engenharia. Um aqueduto de tamanho considerável trazia água ao longo da encosta do Maqueronte. Dali a água era jogada em duas "piscinas" situadas a cerca de 30 metros da muralha. Fileiras de jumentos e de escravos eram responsáveis por levar os odres cheios ao interior da fortaleza.

Não consegui ver muito mais.

Raisos e Nakebos estavam certos. Penetrar no Maqueronte sem au­torização era um suicídio. Eu teria que me acostumar com a idéia. Não se podia visitar Yehohanan sem a bênção de Antipas. Mas, para isso, seria preciso conseguir marcar uma audiência com a "rocha", como o chamava o chefe da torre das "Verdes".

O retorno ao mar de Sal foi rápido e agoniante.

O sol parecia chumbo derretido. Não tínhamos escolha a não ser caminhar nessas condições. E com o cair da tarde as coisas ficaram mais comprometidas. As víboras estavam mais agressivas...

Raisos descreveu a situação com outro provérbio:

Reconhece a estatura daquele que é mais alto do que ti.

Mensagem recebida.

E às 17 horas divisamos, finalmente, o azul esmaecido do mar de Sal.

Minha primeira aventura no Lago da Morte foi chegando ao fim.

Informei ao pequeno grande homem e ele estava de acordo: ninguém sabia se voltaríamos a ver o Batista.

Tudo dependia do Destino.

Na sexta-feira, 9, antes do raiar do dia, nos despedimos.

Prometi a Abner e a Raisos que voltaria. Não sabia dizer quando, mas eu o faria. E voltaria com "algo" especial. Isso foi dirigido ao patrão.

Raisos me olhou, com ar cético, e murmurou:

Sê generoso apenas com aquilo que te pertence...

E, às portas da torre, insisti:

Eu voltarei!

O "conseguidor" agitou as mãos em sinal de despedida, e deixou cair outro de seus provérbios:

- Visita menos o teu vizinho, ou vais odiá-lo amanhã.

Bêji nos acompanhou por um tempo. Depois, voltou à torre. A ma­nhã, violeta, foi buscá-lo e encheu o lago de luz.

No dia seguinte, sábado, 10 de agosto, Tar me deixou às portas do casarão dos Zebedeu, em Saidan.

Eu li em seus olhos. Tarpelay queria trabalhar a meu serviço perma­nentemente.

Eu não disse nada. Não era o momento.

Eu sei que voltaríamos a nos ver.

Entrei na casa com alguma apreensão.

O Mestre não estava.

Abril e eu nos olhamos. Parecia mais calma. Continuou fazendo suas atividades, mais nada. De vez em quando ela me olhava.

Salomé, a mãe, sim, me acolheu de braços abertos.

O Mestre estava na praia, com Zal.

Eu fui atualizado sobre as coisas. Jesus continuava com seus ensina­mentos, e os discípulos, ao que parece, com sua teimosia. Além de obsti­nados, eles não o compreendiam. Nada de novo...

Deixei as coisas no "pombal" e me dirigi ao lago. Desejava ardente­mente rever o Galileu. Eu queria falar com Ele e que Ele me falasse...

Faltavam duas horas para o anoitecer. Parecia um bom momento para tomar um banho.

Não consegui ver o Filho do Homem. Nem Zal. Às vezes eles passeavam um longe do outro.

Não havia ninguém entre os barcos encalhados na areia.

Eu não pensei duas vezes.

Tirei a roupa, deixei o manto e o saq na proa de um dos barcos, lar­guei minhas sandálias e corri para a água.

Estava fresca e limpa.

Aproveitei o banho de mar. Nadei e me distanciei um pouco da orla.

Depois de algum tempo, já relaxado, voltei à praia. Caminhei lenta­mente em direção ao barco. Eu me vestiria e esperaria pelo Mestre.

Mas...

Ei! Onde estavam as minhas roupas?

Eu tinha colocado na proa do...

Inspecionei as outras embarcações.

Negativo.

A roupa não apareceu... Mas como era possível?

Tampouco encontrei minhas sandálias.

Olhei em volta.

Não havia rastro dos pescadores nem dos remendadores de redes.

Eu estava sozinho na praia. Lógico. Era sábado.

Que mistério era aquele?

Pensei em alguém do casarão... Abril? Teria sido ela a levar a túnica, a tanga e minhas sandálias?

Nem tive tempo de pensar direito. Ouvi um grunhido. Depois, algu­mas risadas mal contidas.

Vinham de um dos barcos. Dirigi-me até ele, cauteloso.

E, quando espiei para dentro, eu os vi.

- Mas será possível?

Era o Mestre, agachado, segurando o cachorro de cor de estanho. Na mão esquerda, vi minhas roupas e minhas sandálias.

Jesus de Nazaré estava segurando o riso quanto podia, mas não deu mais e ele escapou.

E antes que este explorador pudesse reagir, soltou uma gargalhada, liberou Zal e, dando um salto, escapou da barcaça. O cachorro o seguiu. E ambos se afastaram pela costa.

Eu também não pensei muito.

Fui atrás dos dois, correndo.

Mas o Filho do Homem era um atleta. Eu, em contrapartida...

Depois de pouco tempo, caí na areia, exausto e ofegante.

O Mestre voltou. Zal simplesmente me lambeu e ficou me olhand : com aqueles intrigantes olhos oblíquos.

Nós não falamos por um tempo. Mas rimos e rimos.

Eu me vesti e contemplei.

Aquele era o verdadeiro Jesus de Nazaré: um brincalhão empedernido.

Depois, a seu pedido, comecei a contar. Ele me observava, feliz. Apre­ciava as minhas histórias. Na verdade, ele gostava de tudo.

Não me perguntou sobre Yehohanan, mas ficou impressionada com a história do wadi das cobras. Tive que dar mil explicações sobre tudo o que vi.

Finalmente, ficou sério e me perguntou de Ruth.

Eu disse a verdade, como sempre.

A resposta, apesar de conhecida, me deixou confuso:

- Não é uma doença de morte...

E passou a me contar sobre seus planos imediatos. Queria que eu o acompanhasse. No dia seguinte, ia começar uma nova experiência com os íntimos. Melhor dizendo, com dois dos discípulos. Ele caminharia com a dupla ao longo das margens do yam e eles permaneceriam duas semanas longe de Saidan. Depois, trabalharia alguns dias. E então, durante mais ou­tras duas semanas, repetiria a aventura com uma segunda dupla de discí­pulos. E assim sucessivamente. No total, faria isso por cerca de três meses.

Eu calculei.

Isso nos situaria em novembro.

Eu não tinha ideia do que ele queria. Os evangelistas também não dizem nada sobre aqueles três meses.

De qualquer forma, o importante é que eu tinha voltado a tempo.

Naquela noite, antes da "aula", André fez o sorteio. A primeira dupla cue deveria acompanhar Jesus foi a formada por Tiago Zebedeu e Judas de Alfeu, um dos gêmeos. Eu disse a mim mesmo: "Mas que dupla... Um fala pouco e o outro nem fala".

Fiquei intrigado. Qual seria o propósito do Galileu? Ele estava ten­tando inaugurar a etapa da pregação pública?

Logo descobriríamos.

Os outros discípulos não protestaram. Eles estavam tão confusos quanto este explorador. Enquanto a ausência perdurasse, eles se ocupa­riam de seus trabalhos; principalmente da pesca.

E no dia seguinte, 11 de agosto, domingo, saímos à primeira luz da manhã. Jesus não permitiu que Zal ficasse no casarão. Ele nos acompanharia.

Nós carregamos os sacos de viagem com provisões e aquilo que fosse essencial e marchamos para o sul.

Zal era o que estava mais contente. A essa altura ele estava com nove meses de idade. Começava a se tornar um cachorro a se considerar. Era tão grande quanto leal, e tão belo quanto inteligente.

Jesus se colocou à frente. Atrás vinha Tiago, perdido em seus pensa­mentos. Por último, vinham o Alfeu e quem isto escreve, sem palavras. Zal corria na frente do Mestre e parava de vez em quando. Olhava para o chefe, compreendia que tudo estava bem e se empenhava em novas corridas.

O que me chamou a atenção foi que passávamos ao largo das cidades e das aldeias. Demorou alguns dias para que eu começasse a compreender, ou compreender em parte, quais eram as intenções do Filho do Homem.

Ele só parava nas casas e nas granjas isoladas. Procurava por qual­quer motivo para manter contato com os moradores. Não importava qual fosse. Um dia era água, no outro para perguntar a forma de chegar não se: onde, em outro a oportunidade de ficar à sombra de uma árvore...

A questão é que ele conseguia falar com os habitantes locais e entrar nas casas, indo até a cozinha...

Ouvia incessantemente. Escutava todo mundo. Não importava se fossem jovens ou velhos, livres ou escravos, crianças ou adultos, homens ou mulheres... Ouvia e fazia isso como se fosse a última coisa que faria em sua vida. Ele se misturava com todos. Perguntava sobre os problemas da rua, sobre os doentes, sobre a pesca ou sobre a colheita... Sentava-se na última cabana do último povoado e deixava que as moscas o comessem vivo. Apenas para conhecer a família de mendigos e de marginais que lá vivessem. Brincava com as crianças, segurava-as nos braços, ajudava a limpar as infecções nos olhos, consolava aqueles que nada tinham, sor­ria para aqueles que não sorriam, ajudava a carregar água, cortava lenha, cozinhava para todos, repartia o pouco que restava nas bolsas de viagem, cantava com os pagãos, ajudava alimpar estábulos e currais, bebia da jarra comum e comia da mesma panela...

"Eles são meus filhos", dizia.

Os discípulos escutavam e viam, desconcertados. Não entendiam o motivo de ele fazer tudo aquilo. E eu comecei a intuir, eu lhes afirmo, ao segundo ou terceiro dia.

Jesus evitava as aglomerações. Fugia das cidades. Ele só queria o pe­queno, o perdido, o aparentemente miserável; em resumo, o humano...

Nessas duas semanas, o Mestre fez apenas um único discurso. Não disse quem era tampouco o que pretendia. Ele se limitou - insisto - a buscar o contato com seus semelhantes, a permanecer a seu lado (e, se possível, a ouvir), a rir com eles e a apreciar as pequenas grandes coisas.

Era um Homem-Deus que observava suas criaturas...

Não tenho palavras para descrever essa atitude, mas, para o meu governo, eu escolhi uma palavra em aramaico que a descreve, embora com alguma dificuldade: 'im. A tradução seria "em companhia de". "Fa­zer 'im" seria uma das mais altas aspirações de um Deus encarnado. "Fazer 'im era beber e dar de comer ao mesmo tempo (um jogo de palavras que, em aramaico, se dizia teem e team, respectivamente). O Homem-Deus "be­bia" dos demais e "dava de comer", embora fosse apenas com os olhos. Ele experimentava (lajavôt) com o contato direto e pessoal e se enchia (mela), ao mesmo tempo em que derramava (nesak). O aramaico, nesse sentido, era muito bom.

Jesus deu continuidade, assim, ao que havia iniciado anos antes (be­ber de suas criaturas), mas na companhia daqueles que seriam seus em­baixadores. Pena que nada disso foi contado...

E, como eu disse, durante essas duas semanas, e nas restantes, o Filho do Homem se dedicou por inteiro a esse contato pessoal. Ele "fez 'im" sem parar. Misturou-se com o último, leu o último dos corações, deu de comer ao último, abraçou o último, tornou-se uno com o último e foi o último. Para ser exato, foi o último entre os últimos.

Ele nunca o disse, mas eu sabia: "fazer Hm" era exercer a mais impor­tante virtude de um Homem-Deus, a misericórdia.

E em um desses entardeceres em frente ao yam, o Mestre explicou, não sei dizer se claramente:

Ninguém é inferior a ninguém. Todos são superiores a todos...

Nem Tiago nem Judas de Alfeu conseguiram perceber, de momento,

as bordas daquela verdade.

Jesus sabia e tentou incentivar os discípulos confusos:

Depois da morte, as dúvidas permanecerão na tumba. Ânimo!

Tiago o olhou, intrigado. Como Jesus podia saber que ele era todo dúvidas?

O Filho do Homem desceu de novo ao poço de seus pensamentos, leu todos e sorriu ao Zebedeu. Depois explicou:

Vós não sabeis disso, meus amigos, mas a dúvida é o estado natural do ser humano. O espírito não duvida. A matéria, sim...

Judas de Alfeu não se atreveu a abrir a boca. Não tinha muitas dúvi­das. Era realmente um homem de sorte.

E Jesus continuou:

O começo da sabedoria não é o medo, como afirma o salmista, mas a dúvida...

O Mestre fazia alusão ao Salmo 111 (10): "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria; têm bom entendimento todos os que cumprem os seus preceitos..."

E direi mais: a dúvida prolonga a vida. Não existe nada mais frágil do que a autoconfiança.

O Galileu apontou o lago. O maarabit, o vento do oeste, ondulava as águas e fazia ondas que vinham até a praia. Algumas se recusavam a morrer em terra.

Vedes as ondas? As dúvidas são assim, inevitáveis... A própria vida as impulsiona. Não temais. Duvidar é um triunfo.

E enfatizou a expressão "triunfo": le nétzaj netzajim.

Animai-vos! Vesti-vos com as dúvidas, como Moisés se vestiu com a nuvem, então segui em frente e subi a montanha...

O Mestre se referia ao que estava escrito no Êxodo (24, 18), mas os íntimos também não compreenderam.

Judas de Alfeu interveio e colocou um ponto final nas palavras do Filho do Homem:

Se... Se... Se... nhor. Tenho uma dú... dú... dú... vida.

O Alfeu, como talvez eu tenha advertido, sofria de um problema de disfemia, ou gagueira. Seu irmão gêmeo Tiago, no entanto, não sofria desse distúrbio no sistema nervoso. Eu nunca perguntei. Talvez Judas dc Alfeu tivesse sofrido algum trauma na infância que o tenha levado a essa descoordenação entre os hemisférios cerebrais.

Jesus esperou e sorriu, encorajando-o.

Judas tentou perguntar:

Pre... Pre... fe...fe...re car...car...ne ou pe... pei...

Sim, peixe - simplificou o Galileu.

Definitivamente, o gêmeo não tinha grandes dúvidas.

Na sexta-feira, 16, por volta das 22 horas (segunda vigília da noite alguma coisa "catastrófica" aconteceu, de acordo com os discípulos. "É o anúncio de uma desgraça, eles disseram. Quem vai morrer desta vez?"

Estávamos no bairro das choças, em Kursi.

Minutos antes, os cães começaram a uivar.

Zal ficou agitado. Ele se sentou ao lado do Filho do Homem e perma­neceu lá, olhando o céu.

A lua estava cheia.

Bem, às 22 horas e 18 minutos (de acordo com os relógios da nave houve um eclipse parcial da lua. Com a duração de 78 minutos.

Para aquelas pessoas, um fenômeno astronômico dessa natureza (ab­solutamente normal e comum) representava um aviso; um sinal dos deu­ses, de Yaveh ou dos espíritos infernais. Algo estava prestes a acontecer. Algo ameaçador, é claro.

Judas de Alfeu se recusou a olhar para o céu. E cobriu a cabeça com seu manto.

Tiago Zebedeu baixou os olhos e se refugiou no silêncio, como de costume.

Jesus manteve os olhos fixos no eclipse enquanto acariciava Zal.

Nós nos olhamos um par de vezes, mas não nos falamos.

Finalmente, tocando no ombro do assustado Alfeu, o Filho do Ho­mem proclamou:

- Vós somente enxergais a pedra-pomes... Abba também é ouro e prata...

Eu não entendi.

Naquela noite, depois que tudo passou, Jesus de Nazaré e quem isto escreve tivemos outra conversa - como melhor defini-la? - "confidencial". Ele me revelou um "segredo" fora do alcance de qualquer mortal. Os discípulos não estavam presentes. Mas eu tratarei dessa questão em seu devido tempo. Ainda resta muita coisa a contar sobre a vida daquele Homem, e muito pouco tempo me foi concedido... Não sei se o hipotético leitor des­tes diários aceitará perdoar esses adiamentos.

Mas vamos lá.

Cinco dias depois do eclipse da lua, o Galileu recebeu uma pequena grande notícia.

Era quarta-feira, 21 de agosto.

Sinceramente, me deu um "branco". Esqueci completamente.

Quando penso agora, deduzo que foi outro aviso... Algo estava erra­do de novo em meu cérebro.

Era o aniversário do Mestre. Fazia 32 anos.

E lembrei-me que o último aniversário fora comemorado no monte Hermon, na companhia de Eliseu. Eram outros "tempos"... (?)

E claro, nada sabia sobre o engenheiro.

Como eu estava dizendo...

Estávamos em uma fazenda perdida, ao norte de Hipos, perto da costa oriental do yam.

Era um lugar fedorento, dedicado à criação de porcos. A fazenda era administrada por uma família a'rab a quem chamavam de Nsura ("Uru­bus"). Eles eram tudo, menos afetuosos. E isso era compreensível. O trabalho os escravizava, e que trabalho! O dia inteiro entre porcos, com lama até os tornozelos, levando rebanhos pelas colinas, fedendo o tempo todo, sendo rechaçados pelos judeus e desprezados pelos gentios. Eles eram a escória da escória.

E o Mestre decidiu ficar naquela fazenda por um par de dias.

Lá eu conheci Hbal, outro árabe. Hbal era um homem velho com sintomas avançados do mal de Alzheimer: desorientação espaço-temporal, distúrbios de linguagem, alterações motoras, incontinência dos esfíncteres, falta de memória e agressividade quase constante.

Ele era mantido amarrado a uma cerca com uma corrente de três metros. Não podiam soltá-lo porque, se Hbal se visse livre, terminaria fugindo e desapareceria. Isso já havia acontecido várias vezes.

Hbal era o pai do clã. Ele trabalhou e construiu a fazenda até que co­meçou a sofrer aqueles descuidos. No começo eram pequenos e de pouca importância. Mas a amnésia se agravou e tornou-se mais ampla e incapa­citante. Hbal acabou sem saber quem era ou quem eram seus familiares e amigos. E caiu em um perigoso processo de agnosia, não reconhecendo mais pessoas ou objetos.

Agora eles o chamavam de Hbal ("Loucura") porque acreditavam que um ou mais espíritos malignos haviam entrado pela boca ou pelos ouvidos e o mantinham sob controle.

Jesus não hesitou em se aproximar do pobre homem.

Eles o advertiram. É violento. Ele dá golpes com as mãos, com a ca­beça e com os pés.

Nada disso aconteceu.

O ancião, com a pele amarelada e as pálpebras inchadas, limitou-se a olhar o Mestre e a repetir diversas vezes:

- A Luz... a luz... a luz... a luz...

Hbal sofria de afasia total.

Fiquei espantado.

O Filho do Homem não se separava de Hbal. Tratava-o com uma doçu­ra interminável. Ele o abraçava. Tomava suas mãos e as beijava. Ele acariciava suas costas e, sobretudo, assobiava. Ao ouvir os assobios, Hbal sorria. Foram, provavelmente, alguns momentos de felicidade para o velho enfermo.

O Mestre se encarregou de despi-lo e lavá-lo. E fazia isso com uma ternura comovedora. As pessoas que trabalhavam nos chiqueiros deixa­vam suas tarefas de lado e se aproximavam para vê-los. E levavam as mãos à cabeça, perplexos.

Para que Hbal bebesse ou comesse, o Mestre colocava em frente ao ancião uma jarra de água, ou uma tigela com legumes ou peixe, e assobiava.

Mão de santo.

Hbal bebia ou comia.

Os discípulos não se atreviam a se aproximar. Hbal estava possuí­do pelos demônios. Os espíritos malignos poderiam aparecer saindo pela boca e saltar sobre eles.

O Filho do Homem nem tentou convencê-los de nada. Nem mesmo os informou sobre Hbal. O seu exemplo era mais eloquente do que qual­quer discurso.

E foi nessas circunstâncias que vimos chegar a já citada quarta-feira, 21 de agosto do ano 26.

Tiago Zebedeu e quem isto escreve, como já disse, não nos lembramos do aniversário do Galileu. Mas alguém, sim, lembrou. E foi alguém que, aparente­mente, tinha pouco entendimento. Foi Judas de Alfeu quem fez a surpresa.

Ao entardecer, enquanto preparava o jantar, o gêmeo se apresentou perante o Homem-Deus e deu-lhe um presente.

Nesse momento, me veio à mente as palavras de Jesus: "Ninguém é inferior a ninguém..."

Eu não sei como ele sabia. Mas isso foi o de menos. O caso é que ele sabia e encantou o Líder.

O Mestre recebeu o pacote com surpresa. Olhou o gago e o rosto de ambos brilhou de felicidade.

É pa... pa... pa... pa...

Eu sei - adiantou-se o Galileu. - É para mim.

Isso...

E Jesus apressou-se em retirar o lenço preto que envolvia o presente.

Oh!

O Mestre se levantou. Analisou de um lado e de outro. Procurava avaliar se estavam bem. Perfeitas.

E abraçou o Alfeu, agradecendo-lhe.

Eram calças persas, em seda azul, ajustadas na altura dos tornozelos. Eram frescas e folgadas. Ao redor da cintura, bordada em ouro, aparecia uma frase em arab. Dizia: "A coisa mais fácil torna forte os fracos".

E nesse instante fui assaltado por outra dúvida. Até onde eu podia me lembrar, no ano 30, quando fui apresentado pela primeira vez aos gêmeos de Alfeu, Judas não gaguejava, ou pelo menos eu não percebi. Era estranho. Aconteceu o mesmo com Simão Pedro e suas alterações de sono, e também com André e a psoríase da qual ele sofria. Mas acabei ignorando o assunto...

O Mestre vestiu as "persas" até regressarmos a Saidan. Ele levantava o manto vermelho até a altura dos rins e se vangloriava de suas calças; era ou­tra das modas que faziam furor em grande parte da bacia do Mediterrâneo.

Eu nunca tinha visto o Galileu de calças...

O jantar de aniversário foi saboroso. Judas de Alfeu se esmerou. Além de um bom pescador, era também aceitável como cozinheiro.

Ele preparou um pato assado recheado com cascas de laranja, fatias de tangerina, mel, canela, suco de limão, sal em abundância, alho, cebolas picadas e pimenta-preta.

Lembrei-me daquele aniversário no Hermon, e o pato selvagem car­bonizado...

Jesus de Nazaré levantou a taça de metal cheia de vinho e pronunciou seu brinde favorito:

Lehaim!

E todos nós respondemos:

Pela vida!

Foi Tiago quem lembrou ao Filho do Homem do velho costume dos judeus, e dos não judeus: antes do pôr do sol, aquele que estivesse feste­jando seu aniversário deveria fazer um desejo; só um.

O Mestre acenou com a cabeça, satisfeito. Levantou o rosto para o céu azul, já partindo, e fechou os olhos.

Ele permaneceu assim por alguns segundos.

Todos nós ficamos com vontade de saber qual teria sido o desejo. O que poderia pedir um Homem-Deus?

Depois ele nos olhou, um por um, mas não disse nada. Estava no topo da paz... E, você sabe, quando há paz acima de tudo...

Jesus se levantou e pediu licença. Tinha que assobiar para Hbal.

Algumas estrelas desceram até o lago e se puseram a brincar de fazer reflexos. Eu sabia que era uma desculpa para ver o Homem-Deus de perto.

No dia 24, sábado, regressamos ao casarão dos Zebedeu.

Ao longo do caminho, o Senhor recomendou algumas coisas a seus discípulos. Eles não deviam falar sobre Yehohanan nem sobre sua prisão. Isso era importante.

Tiago e Judas de Alfeu prometeram.

Nem era bom também comentar o assunto de Caná. Havia boatos demais rodando por todo lado, e eram todos falsos. E Ele lhes disse:

Falai sempre sobre aquilo de que tendes certeza. Porque vossos ini­migos vão cuidar das mentiras...

Quando o restante dos discípulos perguntou do que se tratava aque­la experiência, nem Tiago nem o Alfeu souberam o que responder, mas uma coisa estava clara no coração deles: amavam um pouco mais aquele Homem tão único e cativante. O mesmo acontecia com este explorador...

Durante três dias, o Mestre fez uma pausa. Ele saía para pescar com seus homens ou se retirava para as colinas próximas. Ali, conversava com o Pai. Zal o acompanhava e ficava admirando-o com aqueles intri­gantes olhos oblíquos... Eu também fui com Ele em algumas ocasiões. E nós conversávamos ou não. Mas isso era o de menos. O mais interessante era contemplá-lo.

No domingo, 25, assim que regressei, ocorreu algo novo para este escritor.

Primeiro, foi o cheiro intenso de enxofre.

Olhei pela janela e vi.

Ao descer do "pombal", todos estavam impacientes e inquietos.

O Mestre estava nas colinas, com Zal.

- Eu sabia - gritava Tiago Zebedeu. - Eu sabia!

Fui até a praia e verifiquei de perto o que eu havia visto da janela: milhares de peixes mortos boiando ao longo da costa.

Os Zebedeu jogaram a culpa nos lilim (espíritos malignos). O eclipse tinha sido um aviso.

A grande mortandade se estendia por todo o leste, norte e oeste do yam. As águas eram uma grande massa de peixes, de todos os tipos, ba­lançando lenta e tragicamente.

As mulheres choravam. E se perguntavam: "Do que vamos viver?"

Os discípulos não demoraram muito para chegar ao casarão. Discu­tiram. Simão Pedro era um dos mais exaltados. Ele pretendia ir buscar o Galileu e convencê-lo a dar a vida de volta aos peixes. A maioria se opôs e considerou aquela uma proposta "sem sentido".

E todos se envolveram em uma amarga controvérsia.

"Os espíritos maléficos - diziam - vão continuar agindo. Depois dos peixes, eles matarão as galinhas e as cabras..."

Felipe, pálido, invocou os céus e pediu clemência para sua Cipriota.

Eu não podia acreditar no que estava vendo...

Com exceção de Tomé e André, o restante do grupo estava uma pilha de nervos. Pura superstição.

Quanto ainda restava a fazer!

Quando voltei para o Ravid, "Papai Noel" deu uma explicação. A grande mortandade de peixes no mar de Tiberíades era algo rela­tivamente comum. Tudo se devia a um processo natural, descrito por especialistas como Nun e Yeshuv.[58] O responsável era o maarabit, o vento de verão. Quando soprava com força, ele levava a massa de água de oeste para leste e as lâminas inferiores subiam até a superfície do lago, cobrindo assim o "oco" que surgia com o referido deslocamento. O desastre ocorria precisamente quando a massa de água inferior che­gava a uma profundidade média. Ali ficava a maior população de pei­xes, que era pega de surpresa pelas seiches, ou "ondas interiores", como são chamadas por Mendel Nun. Essas águas inferiores, sem oxigênio e com altos níveis de enxofre tóxico, acabavam envenenando toneladas e toneladas de peixes.

E, durante horas, o yam era um imenso amontoado de peixes podres cheirando a enxofre.

Os discípulos teriam continuado a discutir se André não tivesse ar­rumado a casa. Era desejável aproveitar o momento e sair para pescar. Mas eles pretendiam encher os barcos com peixes mortos? Não exatamente...

Aqueles pescadores veteranos sabiam que, nessas circunstâncias, muitos peixes não chegavam a morrer, e ficavam flutuando na superfície das águas, fracos e abalados.

Juntei-me a eles e comprovei o resultado.

Não muito longe da costa, os peixes realmente estavam se agitando na superfície. A pescaria era tão fácil quanto se inclinar na borda do barco e capturá-los com as mãos.

O medo e a superstição desapareceram naquele momento diante da alegria daquela "pescaria" excelente. As embarcações se encheram até a amurada.[59]

Nessa mesma tarde, quando o Mestre regressou ao casarão, os ínti­mos continuavam discutindo sobre os espíritos malignos e sobre o nefasto futuro que os aguardava.

Jesus os observou por algum tempo. Pegou o cálice de metal e, como de costume, começou a dar polimento nele, silenciosamente.

Não havia maneira de os homens chegarem a um acordo. A pergun­ta, repetida mais de uma vez, era a seguinte: "Quem vai morrer desta vez?"

Finalmente André, em uma tentativa de esfriar os ânimos, pediu a opinião do Galileu.

Jesus foi conciso:

Vós acreditais que Abba é responsável pela chuva?

Eles se entreolharam. Não entenderam a pergunta.

E o Galileu explicou:

Não culpeis os céus pela escuridão... A noite chega sozinha, sem a necessidade de Deus...

Mas isso significa - perguntou Pedro, confuso - que os espíritos malignos não são os responsáveis por essa matança dos peixes?

Os espíritos malignos, como tu os chamas, já têm o suficiente com o que possuem... Não procureis culpados porque eles não existem, não da maneira como pretendes. O Pai inventou a morte, mas, sobretudo, inven­tou a vida.

Mas esses peixes...

Pedro era teimoso como poucos.

Tudo obedece a uma ordem, Pedro. O Espírito, sobre o qual já falei, a tudo impregna, a tudo permeia. Achas que Ele deseja o mal?

Simão Pedro continuou balançando a cabeça.

Em verdade, em verdade vos digo: não culpeis a Deus por vossa ig­norância... E mais: não percais vosso tempo e vossa energia erguendo os pu­nhos contra Abba. Aquele que se rebela contra Deus é porque não enxerga.

No dia seguinte, segunda-feira, 26, o yam mantinha-se com seu cheiro podre e de enxofre, e milhares de peixes mortos continuavam chegando às praias. De repente, a superfície do lago ficou verde e começou a borbulhar.

Os discípulos caíram em terror: "Eram os espíritos, que nos avisavam..."

As explicações eram igualmente simples. O yam ficou verde como consequência das "ondas interiores". Elas acabaram arrastando para a su­perfície algumas algas esverdeadas chamadas Botriococum. Um fenômeno espetacular, mas inofensivo. Já em relação às bolhas, não eram espíritos malignos que estavam retornando, mas simplesmente os gases produzi­dos pela peridinium, outra alga agonizante nessa época do ano.

Custou para que Pedro e os outros saíssem para pescar...

Finalmente, pressionados pelas mulheres, eles saíram ao mar e não se arrependeram. Os peixes capturados sem necessidade de lançar a rede foram em excelente quantidade. Eles só tinham que correr o "risco" de enfiar as mãos nas águas borbulhantes...

Na terça-feira, 27, assisti a uma cena que também não foi narrada nos evangelhos.

Na noite anterior, o Mestre decidiu acompanhar seus homens ao yam. E, munidos de tochas, fizeram uma pescaria não menos excepcional. Os peixes saltavam na superfície do lago.

Eu os esperei na praia. Ao meu lado estavam Zal e o romper da aurora.

Eles chegaram felizes.

Aquele saque (não se podia falar em pescaria) somara um total de 750 peixes, considerando os três barcos.

E participei de um ritual de costume: o Mestre e alguns de seus discí­pulos começaram a colocar as peças em ordem (pela espécie e por tama­nho). Outros se ocuparam de lavar o convés das embarcações.

Debrucei-me sobre os peixes e os contemplei, admirado. Eu só conhe­cia algumas daquelas espécies. E o Mestre, inclinado sobre mim, começou encantado a sanar as minhas dúvidas. De início, listou o nome das espécies mais destacadas. O amnun, ou tilápia, era o mais numeroso. Assim como o sefamnun, ou bagre. Depois, foi me mostrando os binit, ou salmonetes. Também havia espécies diferentes. Muitos daqueles peixes eram conside­rados "puros", e outros, "impuros", como já foi explicado em outra ocasião, mas o Galileu não prestava atenção a essas considerações bíblicas.

Um deles, o grypus, era enorme. Chegava a um metro de compri­mento. O Mestre explicou que ele tinha sido trazido ao yam após o exílio na Babilônia. Eles o chamaram de sibbuta.

Também me mostrou o giríit, um peixe que, de acordo com os gêmeos, sabia a língua das vacas.

E fiquei sabendo mais sobre as enguias e os hipusa, que roncam com a boca fora dagua.

Jesus apontou Pedro e fez uma brincadeira:

É primo do Pedro...

O discípulo olhou para o Mestre, depois para o hipusa e continuou com seus afazeres. Não entendeu a piada. Pedro não tinha senso de hu­mor, pelo menos naquela época.

E estes são os saltanit...

Eles eram os menores, parecidos com sardinhas. Brilhavam como se fossem feitos de prata.

Também são chamados de "tarít"...

Nisso, João Zebedeu aproximou-se e interpelou o Filho do Homem:

Por que perder tempo com esse grego?

O tom da frase era insípido.

Fiquei imóvel, petrificado.

O Galileu ficou sério. Contemplou o Zebedeu e esse, não satisfeito, voltou à carga:

Ele é um homem muito rico e desocupado. Não sei que importân­cia ele tem ao nosso lado. Não sei o motivo de lhe dar tantas explicações... Ele que pague, se quiser saber...

O Mestre se aproximou do irritado João e colocou as mãos sobre os ombros do discípulo. E disse suavemente, mas com firmeza:

Este grego é um malak... Evita ofendê-lo. Ele divulgará a minha mensagem quando chegar o momento...

Fez uma pausa e acrescentou:

E será mais confiável do que ninguém... Amigo João, não corrige para que nunca sejas corrigido. Não difama, para que não sejas difamado. Não semeies as trevas... Ninguém é inferior a ninguém... Não julgues, por­que isso é tão perigoso quanto dormir em pé...

Eu me senti desconfortável, porque a atitude de João Zebedeu não foi agradável. Será que a triste história vivida no ano 30 se repetiria agora?

Fui otimista.

Quis acreditar que não...

E na quarta-feira, 28 de agosto, Jesus partiu então com a segunda du­pla: os Simões (Pedro e o Zelote). Jesus era muito respeitoso com relação aos sorteios.

Permaneceríamos outras duas semanas em algum lugar do yam.

Fomos diretamente para a região de Kefar Zemaj, a sudeste do mar de Tiberíades. Também era terra de criadores de porcos.

Pedro começou a aventura entre protestos.

Aquelas pessoas, em sua maioria, eram pagãos (quase todos arab).

E Pedro começou a murmurar: "Por que começar anunciando a boa-nova na terra dos porcos? Qual o problema com a Cidade Santa? Não seria me­lhor anunciar o novo reino entre os eleitos?"

O Mestre não gostava de ser obrigado a repetir as coisas. Ele as anun­ciava e tomava como certo que todo mundo as tivesse compreendido. Com os íntimos, porém, não era assim. Jesus se viu com a necessidade de insistir e repetir mais de uma vez a mesma coisa:

Quantas vezes terei que ser paciente contigo? - disse a Pedro. - Eu não vim revelar o Pai a um povo em particular. Eu vim para mostrar a espe­rança... Pura. E isso interessa a pobres e ricos, a escravos e a homens livres, a jovens e velhos, a mulheres e homens... Deixa-me fazer o meu trabalho.

A reprimenda de nada serviu. Pedro continuou criticando. Quando ele viu o Filho do Homem "fazendo 'im, perdeu o controle de novo e la­mentou "a perda de tempo, de dinheiro e de energia".

E disse entredentes, quando Jesus estava longe:

Essa gente não sabe lidar com uma espada. O que faremos com eles?

Quão diferente da realidade é a imagem que as igrejas têm hoje do fogoso e errático Pedro!

Jesus não dava atenção a esses murmúrios. O Galileu continuava se dedicando a seu trabalho, atento aos menos favorecidos.

O Zelote, mais alerta, interpretou o 'im como uma espécie de ensaio geral. Ele não estava tão equivocado...

Um bom líder - proclamava - sabe quando cobrir de lama as suas sandálias...

O guerrilheiro de olhos negros e de barba até o peito dedicava parte de seu dia a visitar as regiões onde paramos a fim de procurar esconderijos para esconder as armas da revolução.

Quando Simão Pedro compreendeu que não havia nada a fazer, e que o Filho do Homem dedicava tempo, e toda a sua atenção, a crianças e mendigos, mudou de tática. Ele se fixou no companheiro e empreendeu uma campanha de críticas contra ele.

Quem isto escreve não conseguiu superar seu espanto.

Fora justamente Pedro quem escolhera Simão, o Zelote. Eles eram amigos e se conheciam há muito.

Pois bem, como eu dizia, ele começou a implicar com aquele que ti­nha uma cicatriz do lado esquerdo do rosto. O Zelote tinha um problema com odores corporais, especialmente nos pés, e Pedro soube aproveitar a circunstância. Ele o chamou de todos os nomes existentes sob o sol e o obrigou a dormir a não menos do que 20 passos do Mestre.

"Temos que fazer uma seleção - justificou-se. - Neste grupo de em­baixadores sobram incompetentes..."

Esse era o Pedro dos primeiros tempos: falastrão, de escassa compreensão e sem refletir sobre nada. Depois, lentamente, o contato com o Mestre o foi moldando, embora não muito...

Simão, o Zelote, por sua vez, não deixava barato. E respondia às provocações e maledicências com patadas nos lugares mais íntimos de Pedro. Ele o qualificou de "corno, beberrão e fantasioso, capaz de en­xergar fantasmas no guisado". Tendo em vista o que aconteceu algum tempo depois, ele realmente tinha um pouco de razão. E arrematou com uma venenosa alusão aos roncos: "És tu que deves dormir no fim do mundo, desgraçado".

As discussões continuavam, mas sempre na ausência do Chefe.

Quando Jesus voltava, a dupla mudava de assunto, e eles pareciam dois loucos, desdobrando-se para servir ao Filho do Homem.

Eu sei que Jesus sabia...

Senti falta do silêncio da dupla anterior - Tiago Zebedeu e Judas de Alfeu - e sua quase nula conversação.

Mas assim eram as coisas...

No sábado, 7 de setembro, nos aproximamos de um poço que estava situado no sopé de uma colina. No topo, conseguíamos distinguir duas ou três choupanas.

Jesus decidiu parar e beber água.

E estávamos fazendo isso, debaixo de um sol sufocante, quando desceram da colina uma mulher idosa e um menino de 4 ou 5 anos. Imaginei que fosse o neto dela. Eram os dois arab.

Ao ver que estávamos junto ao poço, a mulher se deteve e hesitou.

Ela segurava um aro de madeira de um metro de diâmetro, que rodeava as pernas. Com ambas as mãos, junto ao aro, sustentava dois baldes de metal separados.

O aro era uma "ferramenta" muito utilizada na hora de transportar água. Eles o chamavam de jishüc. Dessa forma, evitavam que as latas lhes batessem nas pernas.

O fato é que a velha acabou se aproximando do poço. Precisava en­cher os baldes, e a criança trazia um terceiro recipiente.

Ela cumprimentou em árabe, e Jesus e o Zelote responderam, tam­bém em arab.

A mulher, algo apressada diante da presença dos galileus, foi rápida em puxar a corda e recuperou um odre negro e inchado com água. Então o esvaziou nos baldes e encheu também o recipiente do menino.

Despediu-se laconicamente e tentou levantar os pesados baldes.

Fez isso com muita dificuldade.

Ela deu dois passos, mas teve que largar os recipientes no chão. O menino vinha atrás, também com pressa. As latas que a mulher levava deviam pesar em torno de dez quilos...

Jesus deixou sua bolsa de viagem aos pés do poço e foi, determinado, na direção da anciã.

A mulher fez uma segunda tentativa.

E eu me perguntei: "Como ela pretende chegar assim até o alto do morro?"

Nenhum dos discípulos fez qualquer movimento.

Ela era árabe e, ainda por cima, mulher...

O Mestre lhe pediu que soltasse o aro e Ele ocupou seu lugar. Carre­gou a água e caminhou na direção das choupanas.

A velha senhora permaneceu em silêncio, confusa.

Fui até o menino e tentei ajudá-lo com o balde. Mas a avó não per­mitiu. Colocou o recipiente sobre a cabeça e seguiu os passos do Galileu.

E ali ficamos os três; os discípulos ainda mais perplexos do que este escritor.

O Mestre passou o dia nas choupanas. Era uma família de pastores. Cuidavam de porcos e de cabras. Somei mais de 50 arab.

E Jesus se interessou por suas vidas, por suas ilusões (quase ninguém sabia o que era isso), por aquilo que possuíam (quase nada) e pelo que es­peravam vir a possuir (alguns porcos a mais e que as cabras parissem bem).

Ele não falou do Pai nem do reino invisível e alado. Eles não o teriam entendido. Eles estavam no nível que estavam...

Mas o Filho do Homem desfrutou do pouco que havia. Em troca, Ele deixou um rastro de luz, alguns carinhos mais do que oportunos e uma sensação de bem-estar. Ninguém jamais subia aquela colina...

Nessa noite, Pedro perguntou:

Rabi, por que ajudaste aquela mulher? Tu sabes que era sábado...

Pedro, se o próprio Abba estivesse presente ali, teria rompido o shabbat para ajudá-la...

Mas os Simões não captaram a mensagem.

E assim foram correndo aqueles dias, entre brigas, "localização de referências" por parte do Zelote (e ele não era o único) e contatos diretos e pessoais do Homem-Deus com suas criaturas, "as mais modestas de seu universo", segundo Ele.

Pedro e o Zelote não tiveram mais alternativa a não ser reconhecer que Jesus era diferente. Ele amava a quem mais ninguém amava. Ouvia todos os que não tinham voz. Acariciava os asquerosos. Olhava nos olhos dos cegos. Brincava com os bastardos. Aprendia com os inúteis. Compartilhava o pão com os impuros e ria com os surdos-mudos.

Eu também aprendi a minha cota. Desde então eu me fixo mais nas ressoas, eu as toco, eu as escuto. Ninguém é superior a ninguém.

Na segunda-feira, dia 9, de volta a Saidan, decidimos acampar às margens do lago.

Jantamos. As estrelas se uniram à reunião, mas em silêncio.

Pedro, que continuava com suas farpas, perguntou ao Filho do Ho­mem, e com um mal disfarçado sarcasmo:

Mestre, quantas vezes eu devo perdoar a esse tonto?

E apontou o Zelote.

Talvez sete vezes, para chegar limpo ao shabbat (sábado)?

Mateus, em seu evangelho (18,21), faz alusões a essas perguntas, mas modifica seu sentido, tanto em relação ao que foi dito por Pedro quanto a resposta do Galileu.[60] Pedro não se referiu a "irmão" em sentido geral, mas sim ao Zelote, a quem chamou de "tonto".

Sem comentários...

Jesus conhecia bem os pensamentos desastrados de seu amigo, e porque de perguntava uma coisa semelhante a essa.

Ele olhou intensamente para Simão Pedro e esse ficou vermelho. O Zelote havia empalidecido. Mas teve o bom-senso de não responder à provocação do companheiro.

O Mestre se inclinou ligeiramente sobre a areia vermelha e preta da praia e começou a alisá-la. Depois passou a desenhar com o dedo indicador esquer­do (Jesus, como eu acredito ter mencionado anteriormente, era canhoto).

Eu não digo sete vezes, Pedro...

Eu o vi desenhar o número 7. E continuou:

Sabias que o caminho para o reino de meu Pai começa justamente no perdão?

Silêncio.

Depois, desenhou a letra yod (equivalente ao número 10) e prosseguiu falando:

Ayin representa a humildade...

A letra hebraica ayin é o resultado da multiplicação de 7 por 10. Essa foi a minha interpretação. Ayin, portanto, equivalia a 70.

Pois bem, Pedro, bebe na humildade, no 70, para seres capaz de perdoar.

Compreendi a metade.

Jesus jogava com os conceitos cabalísticos. O 7 era a letra zain (que simboliza a fertilidade). Ayod (o 10) era (e é) a Unidade Primordial, Abba, o maravilhoso e benéfico Pai Azul. O resultado da multiplicação de 7 x 10 é 70 (a letra ayin representa a humildade).

Como dizia o Mestre, quem tem ouvidos que ouça...

Jesus continuou falando na mesma linha:

O perdão vai te abrir todas as portas. A humildade é um rio de vida. Atira-te nele...

As estrelas piscaram, perplexas.

E o Mestre insistiu:

Não digo sete vezes, Pedro, mas setenta vezes sete... O perdão deve ser exercido do mesmo modo que o ato de comer e dormir... Perdoa se­tenta vezes sete e vais rejuvenescer.

Pedro estava com a boca aberta. Duvido que ele chegou a compreen­der a profundidade daquelas palavras.

Então notei um perfume quente e delicioso no ambiente. Cheirava a nardo. Cheirava a misericórdia...

Olhei em volta. Estávamos no litoral. Ali não cresciam nardos. E as estrelas, cúmplices, piscaram os olhos, todas ao mesmo tempo.

Mensagem recebida.

Era Hu Nejat ("O Espírito que desce") mais uma vez...

Eu nunca serei suficientemente grato àquele Homem.

Sim, a resposta do evangelista Mateus estava certa ("Não digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete"), mas estava incompleta. Lamentavel­mente incompleta.

O Zelote interveio. Não suportava mais de tanta curiosidade.

O que é mais importante, Senhor, perdoar ou saber esquecer?

O Galileu o observou com complacência. E agradeceu com o olhar que o Zelote soubera perdoar as inconveniências de Pedro.

Se fores humilde, Simão, irás perdoar. Se fores compassivo, irás perdoar setenta vezes sete...

Sorriu levemente e completou:

E se fores humilde e compassivo, quer dizer que és inteligente. Por consequência, esquecerás setenta vezes sete...

Mas a resposta não foi respondida - insistiu o guerrilheiro. - Devo escolher? Perdoar ou esquecer?

Mas eu respondi, Simão, eu respondi... Mas o farei de novo. Perdoa sempre. Depois, se desejares, mantém a lembrança da ofensa, mas que o ran­cor não te devores. E isso não vai acontecer se tiveres perdoado de verdade.

Olhou os discípulos com infinita piedade e proclamou:

A memória está livre de pecados. Guardai as boas e as más, sem manchar-vos. Porque essa será a única coisa que ireis trazer após a morte... Não duvides, Simão. Perdoa e serás assim testemunha de mais um milagre do Espírito: teu inimigo, ou aquele que te ofendeu, vai se afastar de ti misteriosamente. E o mais importante: tu beberás paz até ficares saciado...

Juntei-me ao brilho das estrelas e aplaudi, à minha maneira, com o silêncio.

Mas a conversa, que deveria ter terminado naquela altura, foi sal­picada de assuntos mais prosaicos. O Zelote não conseguiu se conter e levantou novamente a "necessidade de nos organizarmos politicamente". O Mestre o deixou falar. Finalmente, com resignação, recordou a eles que não estava ali para "encher os bolsos, mas os corações".

Eu estou aqui para fazer a vontade de Abba - declarou. - Não para fazer a tua vontade, e tampouco a minha. Somos mensageiros do invisí­vel. Não o substituas pelo humano. Deixa que o mundo resolva os seus assuntos. Limita-te a apontar o caminho que, inevitavelmente, cada ser humano irá percorrer depois de sua peregrinação pela vida. Isso é o que e importante.

Continuaram sem entender. Aquilo nada tinha a ver com o Messias ou com a libertação do povo escolhido.

Resgata o mundo da escuridão e deixa que ele sozinho se liberte do resto.

Na quarta-feira, 11 de setembro (ano 26), voltamos a Saidan.

Foi um alívio.

Jesus concedeu a si mesmo sua pausa habitual e eu aproveitei aqueles três dias para entrar no Ravid, colocar meus diários em dia e visitar Ruth mais uma vez. A ruiva continuava sua curva descendente. Já quase não ouvia, e não enxergava.

Voltei ao yam com a velha angústia me estrangulando.

Pensei muito sobre Ruth.

O que eu poderia fazer?

E, mais de uma vez, apareceram em minha mente as palavras do Fi­lho do Homem: " Não é uma doença de morte..."

Foi assim que vi chegar o dia 15, domingo. De lua cheia.

E partimos com a terceira dupla, que era formada por Felipe de Sai- dan e Tomé, aquele do estrabismo no olho esquerdo. A nova experiência não poderia ser pior da que tinha sido vivida com Simão Pedro e com o Zelote... Ou poderia?

Metade da cidade chegou para se despedir de nós.

Felipe me surpreendeu, mais uma vez. Parecia que ia partir para a guerra, ou para a sua amada China...

Ele apareceu no casarão usando um turbante, uma túnica e um man­to furiosamente amarelos, tipo gema de ovo. Carregava duas bolsas de viagem, cada uma mais volumosa do que a outra. Do cinto vinham pen­durados dois pares de sandálias. No rosto, além dos olhos vivos e de cor verde, usava um sorriso que não o abandonaria pelas próximas semanas. O sorriso deixava a gengiva inferior a descoberto, desprovida de dentes e com uma gengivite[61] que fazia sangrar essa gengiva com regularidade.

Eu teria que dar uma olhada naquele desastre dentário.

Naturalmente, ao lado de Felipe, obediente e orgulhosa, aparecia a Cipriota, a cabra-irmã-amiga do discípulo, recém-retocada com pintura de barco. Como já expliquei na ocasião, a Cipriota abastecia seu dono com leite e, ao mesmo tempo, por conta dos círculos coloridos que a cobriam, ainda o protegiam de mau-olhado.

Naquela noite, aparentemente, Felipe havia se esmerado, repintando a cabra com círculos vermelhos, amarelos, brancos e azuis, desde a barbi­cha até a cauda.

Como eu disse, parecia que ele ia para a guerra, ou para sua amada China.

Zal cheirou a cabra, mas, diante daquela singular "camuflagem" op­tou por não se intrometer. E fez bem. A Cipriota era alguém com quem não seria bom se meter, pois tinha um coice que era uma arma...

Tomé, mais discreto, limitou-se a levar o imprescindível, como ha­viam sugerido André e o próprio Mestre. A saber: seu habitual pessimis­mo e os dados... Para que mais?

Dessa vez, entramos na cidade de Tariqueia, na segunda desem­bocadura do Jordão, ao sul do lago. Foi um pedido de Tomé. O Galileu concordou em satisfazer ao estrábico, desde que a visita à família fosse breve.

E assim foi.

Tomé abraçou seus quatro filhos, mas 'Alam ("Eternidade"), a esposa, (melhor dizendo, a "ex"), se manteve distante. Ao vê-lo, ela o amaldiçoou.

"Boa é Alam!"

A família, juntamente com os pais de Tomé, estava prestes a se mu­dar para Tiberíades.

Na terça-feira, 17, saímos de Tariqueia e nos dedicamos a explorar a costa sul do yam, sempre longe de Bet Yeraj, da cidade de Kennereth ou de f enabris. A visita a essas povoações chegaria mais tarde. Mas disso quem cuidaria seria Eliseu...

Jesus retomou os contatos diretos e pessoais com o povo, e assim foi até o domingo, 29 de setembro, data de retorno a Saidan.

Foi uma experiência muito confortável e benéfica. Não me enganei. As duas semanas com Pedro e com o Zelote, em comparação, tinham sido um suplício.

Felipe e Tomé, eles já eram outra história.

O intendente falou e falou (ele falava pelos cotovelos) de sua verda­deira vocação. O que ele gostava de fazer na vida era trabalhar com os óleos essenciais. Ele possuía um modesto "laboratório" em Saidan. Disse haver aprendido com Meir, o rofé ou curador de rosas em Caná.[62] Tinha visitado o Egito e aspirava agora juntar dinheiro suficiente para viajar à China, seu sonho dourado. Ele sabia tudo sobre a China (pelo menos, o que se podia saber naqueles tempos).[63]

Felipe era encantador, divertido e espontâneo, mas apegado demais ao dinheiro e sem um pingo de imaginação.

Ele gostava de amarrar pequenos trançados com alhos pendurados em cada tornozelo. Assim espantaria os lilim. Pelo menos, é o que ele di­zia. Era vegetariano "por parte de pai" e especialista em frutas. Chegaria a ser o "médico" (ou o paramédico) do grupo. Ele fazia bem quase tudo, exceto as comidas: insossas demais para o meu gosto.

Em suma, era uma pessoa falante, boa, curiosa e de espírito medíocre.

Passava horas olhando para um denário de prata, que corria para esconder na faixa. Jamais o utilizou. Era seu amigo e confidente. Felipe lhe perguntava: "Você vai me abandonar?"

Lembro-me de uma conversa entre o Galileu e Felipe precisamente sobre esse assunto: o dinheiro.

Era a primeira vez que eu ouvia o Mestre falar sobre isso. E jamais esqueceria. Suas palavras me ajudaram muito na vida...

Felipe discutia com o Filho do Homem...

Este denário - dizia ele - é o meu melhor amigo.

É apenas dinheiro, Felipe.

Mas existe alguma coisa mais importante do que isso?

Jesus olhou para ele, incrédulo. Acho que não sabia por onde começar.

Dize, Felipe, para que serve o dinheiro?

Mesucrán ("Curiosidade" - era assim que o Mestre e os íntimos também o chamavam) contemplou seu "amigo", o brilhante e impecável denário de prata, e o passou de uma mão para outra enquanto respondia, com orgulho:

Ele compra tudo.

Tudo, não.

Felipe esperou uma resposta. E o Galileu a deu; acredito que tenha dado, pelo menos...

O dinheiro não serve quando não há saúde. O dinheiro não engana a morte. E nem te dás um único pensamento.

Felipe tentou refutar, mas o Mestre estava falando a verdade...

Se amas o dinheiro, não vais prestar a devida atenção à beleza, e muito menos a teus semelhantes. Tua cabeça vai soar como uma pa­nela repleta de ases (de moedas de troco). O dinheiro é uma névoa no coração.

Isso só diz aquele que não necessita dele...

Eu tenho alguns anos a mais que tu, Felipe, e também viajei mais. Dá-me um mínimo de credibilidade.

Felipe ainda não tinha se dado conta. Ele estava conversando com um Homem-Deus...

Eu vou te contar para que serve o dinheiro.

Tomé e a Cipriota olharam para cima, na expectativa. Aquela cabra era mais esperta do que parecia...

Felipe esperou, um pouco cético.

O dinheiro foi inventado para duas coisas...

Só duas? Eu poderia citar duzentas.

Jesus pediu calma. A Cipriota balançou a cabeça. "Esse Felipe é um ipressadinho, mesmo", deve ter pensado a colorida.

... Para ajudar e para divertir.

E acrescentou:

Não te esqueces de que o dinheiro não é uma invenção humana. Alguém, muito acima, pensou nisso antes que vós.

E reafirmou o que foi dito:

O dinheiro é bom para ajudar teus semelhantes, não importa em que circunstâncias. Depois, se fores esperto, vais empregá-lo contigo mesmo, em tua própria diversão.

Ajudar aos outros e se divertir. Gostei. Desde esse dia, tenho coloca­do essa ideia em prática. Se você pensar nisso friamente, o dinheiro não tem outro sentido.

Além do mais - acrescentou o Galileu -, por que apreciar tanto uma coisa que não poderá levar até o "outro lado"?

Jesus me olhou, divertido. O do "outro lado" tinha se apresentado a Eliseu durante a nossa estada no monte Hermon.

Felipe não entendia.

Como "outro lado"? Está se referindo à China?

Não, Felipe - sorriu o Mestre. - Mais longe...

Mais longe? Impossível. A China é o fim do mundo.

A Cipriota se levantou e emitiu um par de balidos muito eloquentes. "Esse cara é muito bobo, mesmo...", traduzi.

Quando morreres - esclareceu o Filho do Homem -, quando pas­sares para o "outro lado", o dinheiro ficará aqui. Lembra: tu estarás levan­do apenas as tuas memórias.

Mas eu não vou abandonar o meu "amigo"...

Ah, então pensas em levá-lo junto? Mas como?

Não sei, eu escondo...

Eu estarei a teu lado quando despertares nas salas de ressurreição. Se eles descobrirem esse denário, irão removê-lo.

Então é possível. Poderei esconder o dinheiro...

Jesus se deu por vencido. E a Cipriota também.

A morte não é o que pensas, Felipe. O corpo fica aqui. Não passa de um manto velho. Tu não poderás levar nada, a não ser tuas lembranças.

Nós havíamos conversado sobre isso em Beit Ids.

Felipe, confia em mim: na reunião de meu Pai tu não precisarás de dinheiro. Usa-o agora, porque é assim que foi ordenado, e faz bom proveito, mas não te esqueces do que te recomendei: os demais e tu. Só isso justifica o dinheiro. O dinheiro serve para medir e para te medir. Nos céus não há medi­das; e por isso não há dinheiro. Emprega o dinheiro como se fosse uma ferra­menta. Com o martelo ou com a rede, obténs o necessário para teu sustento. Pois bem, isso é tudo. Não te ajoelhes diante do dinheiro; não compres dig­nidade com algumas moedas. Não o persegues e o dinheiro irá procurar a ti.

E Jesus concluiu com a chave:

Abba sabe. Ele, e seu povo, irão te proporcionar, a cada momento, o que for justo e necessário. Não implores aos céus por riquezas. Há assun­tos mais importantes...

Mas a Felipe, - aliás "Curiosidade" - faltava imaginação, e ele não conseguiu enxergar através das palavras do Mestre. Tomé continuou em silêncio. Não acreditava nem deixava de acreditar. A tudo ele era indife­rente. A tudo menos a "ex"...

Em outra ocasião, na periferia da metrópole, enquanto Felipe cozi­nhava, Jesus se aproximou da panela. Felipe preparava uma sopa de tilá- pias. O Mestre a provou e balançou a cabeça negativamente:

Falta sal...

Naquela noite, a falta de sal na sopa de Felipe serviu de pretexto para arejar um assunto do qual nunca havíamos falado: a imaginação. Felipe e Tomé escutaram, mas foi como assistir à chuva cair. Zal e a Cipriota permaneceram por perto, aparentemente na expectativa, mas eu não sei...

Nem mesmo este explorador andava repleto de imaginação...

Jesus disse:

A imaginação é como o sal. Ou a sopa tem, ou não tem...

E respondeu às minhas perguntas com transparência: "A imaginação - disse ele - se desenvolve e se exercita, do mesmo modo que o corpo e a mente, mas não nos deixemos enganar... A imaginação (Ele a chamava dimiôn, em hebraico) é um dom. É o sal da inteligência".

Entendi que a imaginação aparece com o sujeito, da mesma maneira como ele nasce ruivo ou com pés chatos. Beethoven tinha esse dom e sou­be exercitá-lo. A mesma coisa aconteceu com Michelangelo. Os céus lhes deram imaginação e ele a moldou e pintou.

Assim, ninguém deve ser culpado por lhe faltar imaginação.

Jesus olhou para Felipe, mas o intendente pareceu não entender que se referia a ele.

Abba é sagrado porque desfruta do máximo da imaginação... Em verdade eu vos digo que não é o poder que distingue o Pai, mas sim a sua capacidade imaginativa.

E resumiu:

Toda a criação visa assemelhar-se a Abba...

Depois, colocou alguns exemplos. Eu me lembro dos seguintes:

"Os seres humanos que desfrutam do dom da imaginação são men­sageiros especiais. Eles anunciam o céu."

"É por isso que a poesia é o que existe de mais parecido com a perfei­ção". (Ele usou o termo "santidade", e eu entendo que perfeição e santidade sejam sinônimas.)

"Por isso - porque imaginais - é que vós invejais os pássaros..."

"Por isso é preferível a intuição à razão."

Desta vez foi Tomé quem não compreendeu. A razão era algo intocá­vel para o discípulo de Tariqueia. A intuição era algo de que só as mulhe­res e os iluminados falavam...

E o Mestre esclareceu:

"Aquele que imagina intui sem cessar. E aquele que racionaliza se equivoca sem cessar..."

"Por isso - para que possais imaginar- o reino de meu Pai é invisível e alado."

"Por isso, a criação nasce do nada... aparentemente."

"Por isso, para que possais imaginar, o silêncio é sonoro."

"Por isso, Deus não é o fim."

"Por isso, para que possais imaginar, Deus não tem aparência."

"Por isso, Deus não é religioso."

"Por isso, para que possais imaginar, Deus é simetria."

"Por isso, o 'para além' cabe na palma da tua mão."

"Por isso, para que possais imaginar, nada é para sempre."

"E por isso que o amor é apenas divisível por si mesmo."

"Por isso, para que possais imaginar, eu Tenho porque Dou."

Recordei-me da fórmula do pavilhão secreto de Yu, corrigida pelo Mestre: "A=TxD".

"Por isso, Deus não grita, sussurra."

"Por isso, para que possais imaginar, a matéria é visível."

"Por isso, Deus viaja sem se mover."

"Por isso, para que possais imaginar, morrer é regressar à realidade."

"Por isso, vós estais condenados a ser felizes."

"Por isso, para que possais imaginar, descei sempre ao 'vós', tal como eu faço."

Entendi que aqui estava se referindo a "fazer 'im".

"Assim, enamorar-se é ensaiar a vida eterna."

"Por isso, para que possais imaginar, Deus imaginou a curva..."

Jesus era um fã de seu Pai. Acho que já devo ter dito isso. Como re­sultado, era um fã da imaginação. Sempre a utilizava na medida do possí­vel. Metáforas e parábolas o acompanharam pelo resto da vida.

Ele continuou falando e falando da imaginação. Fiquei com aquilo que pude, o que não foi muito. A última frase do Galileu seria um salva-vidas para quem isto escreve:

"Se morreres imaginando, não saberás que estás morto."

Tomé escutou em silêncio, respeitosamente. O mais feio do grupo tinha imaginação, sim - muito mais do que Felipe -, mas a sua situação pessoal era angustiante. Como descrevê-la? Para Tomé, a vida era "dois mais dois". Aí tudo terminava. Sua mente, naquela época, era um deserto. Talvez, em algum momento da vida, tenha aprendido o que era ilusão. Mas isso havia desaparecido em uma vida monótona, na qual todos os incentivos e atrações foram afogados, um a um.

Ele não lamentava a sua sorte, mas sua aridez espiritual era evidente. Ela emanava por onde quer que ele passasse. Era um homem triste e inte­ligente ao mesmo tempo; uma das piores combinações possíveis...

O Mestre sabia. Ele lia os corações...

Foi ao entardecer de quinta-feira, 26, que o Filho do Homem, com sutileza, despertou a alma de Tomé, aquele que era apelidado de Zut ("Meticuloso").

Estávamos acampados nos arredores de Migdal, na costa oeste do lago. Dentro de dois dias estaríamos de volta a Saidan.

A aventura, até então, tinha decorrido com suavidade.

Jesus teve a oportunidade de "fazer 'im" (contatar suas criaturas), e Felipe e Tomé se limitaram a observá-lo. Não mais do que isso.

Naquela tarde, o céu ainda estava quieto e azul. Ele parecia saber...

Felipe, terminado o jantar, dedicou-se aos seus afazeres mais aprecia­dos: esfregar, limpar, esfregar... Era incansável.

A lua, quase nova, havia se lançado às 15 horas e 49 minutos. O ocaso, tímido, podia ser visto sobre as colinas, como se não soubesse o que fazer.

Zal perseguia as borboletas, ou qualquer criatura que voasse, e a Cipriota simplesmente ruminava sobre o "agora". Que outra coisa ela poderia fazer?

Tomé avivou o fogo, espalhou seu manto sobre o chão e se dedicou a seu jogo favorito: rolar os dados.

Eu havia examinado esses dados em outras ocasiões. Eram três, de marfim, impecáveis e lustrosos, com os números gravados em grego (koiné).

O Mestre então se sentou ao lado da fogueira e contemplou Tomé.

Os dados rodopiaram sobre o manto e Tomé, segundo o costume, cantou um lance:

"134!"

Havia outras possibilidades de "leitura", mas o discípulo escolheu o referido lance "134".

E então, quando Tomé estava prestes a recolher os dados e realizar um segundo arremesso, o Filho do Homem, sem mais, começou a cantar:

"Eu gostaria de acender uma luz... Eu gostaria de acender uma ilusão que me ajude..."

Tomé olhou para o Mestre, terminou de reunir os dados e voltou a arremessá-los.

E cantou:

"333!"

E o Galileu prosseguiu com a canção:

"Eu gostaria de acender uma ilusão... Talvez a neve entre os dedos..."

Felipe parou de esfregar e ficou observando, intrigado.

No terceiro arremesso, Tomé cantou o número "626".

E Jesus retomou a melodia:

"Eu gostaria de acender Deus em meu coração..."

Quarto arremesso:

"255!"

"Eu gostaria de cantar que sou ágil à tua chamada, meu Pai..."

"353!"

"Eu gostaria de te dizer: o segredo do Eterno é a alegria... Eu gostaria de te acender..."

Tomé parou de jogar; melhor dizendo, parou o aparente jogo. Ele olhou o Galileu e perguntou:

O que estás querendo me dizer, Senhor?

Jesus respondeu, mas cantando:

"Eu gostaria de acender uma ilusão em teu coração... Hoje, nesta noi­te. Amanhã, Deus dirá..."

Eu não sei o que é isso - respondeu Tomé. - Sobre o que estás falando?

Estou falando de acender uma ilusão na mente de Tomé.

As ilusões flutuam, elas não caminham...

Felizmente, Tomé.

E como eu faria, então?

Tu só tens que me observar...

O Filho do Homem não disse mais nada. E Tomé, inteligente como era, captou a intenção do Mestre. Fui eu quem não percebi parte dessa "mensagem"; uma parte importante... Seria Eliseu, algum tempo depois, quem o traria à luz.

Aquela canção ainda ressoa em meus ouvidos:

"Eu gostaria de acender uma luz... Eu gostaria de acender uma ilusão que me ajude... Eu gostaria de acender uma ilusão... Talvez a neve entre os dedos... Eu gostaria de acender Deus em meu coração... Eu gostaria de cantar que sou ágil à tua chamada, meu Pai... Eu gostaria de te dizer: o segredo do Eterno é a alegria... Eu gostaria de te acender..."

E um mecanismo mágico ativou-se na mente de Tomé, e na minha também.[64] Desde aquele dia 26 de agosto (ano 26), busco diariamente uma ilusão (quanto menor, melhor) que me mantenha vivo até o dia se­guinte. E pouca coisa, mas serve, do mesmo modo que serviu a Tomé...

No sábado, dia 2, retornamos a Saidan. A experiência com Felipe e com Tomé foi pacífica. Eles não aprenderam muito naquele momento, mas, como eu digo, passaram a amar um pouco mais o Filho do Homem. Era uma delícia ouvir o que dizia, ou simplesmente ficar contemplando.

E quem estas linhas escreve aproveitou os dias de descanso que se seguiram para colocar em dia outro assunto pendente: visitar a casa de Felipe, Simão Pedro, Mateus Levi e Simão, o Zelote. Eu tinha curiosidade de saber como eles se comportavam no ambiente doméstico.

Todos permitiram que eu os visitasse. Todos menos um. O Zelote não consentiu. Ninguém pisava em sua casa. Eu respeitei sua vontade, naturalmente.

O Mestre foi para as colinas vizinhas, acompanhado por Zal.

Ele desejava conversar com Abba.

Felipe e Pedro eram vizinhos. Suas casas eram parede com pare­de, na entrada de Saidan (na estrada que levava a Nahum). Ali mes­mo, em frente às casas de pedras negras, havia um forte desnível de cerca de 30 por cento, que caracterizava o nascimento de Saidan nessa região norte e pelo qual se deixava cair, contente, o caminho das cinzas vulcânicas.

As casas, pequenas e sem grandes ambições, observavam o lago sem­pre que podiam. Estavam situadas em frente à segunda pedra de amar­ração. Do outro lado, a leste, a vista era igualmente esplêndida: pomares, moinhos para levar a água, canalizações meticulosas, frutas e os felah, sempre curvados.

Saidan, acredito que eu tenha dito, era agrícola e pesqueira.

A casa de Felipe me atraía especialmente.

Durante a aventura de duas semanas por Tariqueia, e pela costa oci­dental do yam, Felipe falou e falou sobre seu mabadâ [que poderia ser traduzido como "laboratório"(?)].

Felipe era um especialista em óleos essenciais, como expliquei, e sentia-se orgulhoso disso.

Ele me mostrou seus "domínios", encantado com a oportunidade. Ninguém em sua família compartilhava de seus sonhos. Zaku, a esposa, odiava aquele lugar, ao qual sua entrada era proibida. Ela dizia que aquele era o "quarto dos horrores". Tinha e não tinha razão...

Depois de atravessarmos a sala principal, com os dois níveis típi­cos, e outros três cômodos labirínticos, cada qual mais escuro do que o outro, Felipe me conduziu a um pátio localizado na parte de trás da casa. Ali havia um jardim, as correspondentes latrinas e uma construção fechada com uma porta de ferro. O metal havia sido pintado com um nejushtán de um metro de altura (a serpente construída por Moisés que, segundo Números [21, 9], tinha a propriedade curar picadas de cobras.

Bastava olhar para o nejushtán - isso era o que dizia a tradição - e a vítima ficava curada).

Em um canto pude ver a Cipriota. Ela nem me olhou, tão cheia de si que era.

Felipe vasculhou entre as enormes chaves de ferro que se pendura­vam em seu cinto. Não aparecia aquela que ele estava procurando. Pediu licença e foi tentar encontrá-la em outro lugar.

Aproveitei para dar uma boa olhada.

Oh, que surpresa!

O jardim não era bem o que eu imaginava...

Eu me aproximei. Não havia dúvida.

Mas...

Aquilo era uma pequena plantação de mandrágoras e de papoulas...[65]A primeira era considerada a "flor do amor". Diziam que era um dos me­lhores afrodisíacos. Da segunda se extraía o ópio, entre outras coisas...

Fiquei perplexo.

Felipe voltou, abriu a porta de metal e pediu que eu esperasse.

Eu o percebi se movimentando no escuro. Acendeu várias lampari­nas e me convidou a entrar em seu "templo, refúgio e verdadeiro lar".

Como eu poderia descrever aquela sala retangular, de cinco metros de comprimento, com teto negro e inatingível?

O que mais me impressionou no mabadâ foi a desordem. Era caóti­co. E depois o cheiro, impossível de ser identificado. Era uma mistura de madeira, pó, essências mil e lugar fechado.

O intendente espalhou cinco lamparinas de óleo em pontos estraté­gicos e me convidou, sorridente, a dar uma olhada.

Eu não sabia por onde começar.

No meio da sala ficava uma grande mesa, dotada de uma paciência franciscana. Sobre ela se acumulava de tudo: frascos, alambiques de dife­rentes calibres, latas com as bocas abertas, frascos que ele chamava de foliatum, do tipo que impedia a passagem da luz, esquilos dissecados, enor­mes jarras de vidro transparente com cobras vivas, cabaças "para guardar os raios da lua cheia", pétalas e pétalas de rosas, secas, e rolos e mais rolos de papiros e pergaminhos com todos os tipos de receitas "médicas". Felipe me permitiu olhar esses papiros. O que eu li foram receitas estrambóticas, e outras nem tanto, sobre a couve chinesa ("ideal para curar úlceras e tu­mores malignos"), o aipo ("revigorante sexual"), a cenoura ("para não en­velhecer nunca"), a canela ("para manter a energia e não sofrer desmaios indesejados")... A lista era interminável.

E, de repente, eu vi.

A Ilíada e a Odisseia.

Perguntei a Felipe, incrédulo.

O discípulo confirmou. Ele era um assíduo leitor de Homero. E explicou:

- Esse gênio sabia tudo sobre plantas e óleos essenciais. Tudo o que eu preciso está aqui.

Ele pegou um dos rolos e procurou. Depois apontou um parágrafo e sugeriu que eu o lesse.

Correspondia ao livro IV da Odisseia. No parágrafo se falava de uma droga (nepente) que Helena dá de beber a Telêmaco. Provavelmente, um alucinógeno.[66]

Mas que grande erro considerar os apóstolos incultos. Todos, menos os gêmeos de Alfeu, haviam recebido estudos (pelo menos os elementa­res). A sinagoga de Nahum, onde estudara a maioria dos 12, era conside­rada de grande prestígio.

Sinceramente, fiquei intrigado e fascinado por esse homem.

Depois, ele foi me mostrar a parte mais "nobre" do laboratório: alcovas e nichos localizados nas quatro paredes e que guardavam cen­tenas de jarros de todos os tamanhos e cores. Eram os óleos essenciais, seu "tesouro". Cheguei a contar 390 recipientes. Felipe coletava ou com­prava a planta, extraía sua essência e submetia o produto a uma desti­lação minuciosa. Era assim que o óleo essencial se materializava. Em certas ocasiões, ele trabalhava com as folhas e também com os pelos e as glândulas embutidas na casca ou nas zonas fibrosas. Ele também desenvolvia óleos essenciais a partir da casca de frutas cítricas. Era um especialista.

Cada óleo essencial recebia um nome: "Íris = Abril", "a última chuva do ano", "a terra prometida", "a sede do Heh", "a pedra da Arca" e "a menina dos olhos", entre outros.

Seria exaustivo enumerar todos os remédios preparados pelo míope e voluntarioso Felipe. Tinha de tudo e, presumivelmente, para todos os tipos de males: essência de alecrim e hortelã para combater a depressão e o desgosto amoroso; preparados contra a flatulência e a gordura; para reme­diar as fraturas; contra hemorragias; para combater a insónia; para resolver dores de cabeça, queimaduras, asma e malária; para ter um pensamento mais claro; contra a tristeza que carregava o maarabit... E seu grande se­gredo: o puchaput (óleo de patchouli), uma planta proveniente da China que era infalível contra picadas de cobra. Em uma das jarras eu li a palavra "calvície". Perguntei a respeito e Felipe me disse que se tratava de extrato de raízes de peônia, também de sua querida China. Aparentemente, tendo em vista sua própria calvície, não funcionava...

Felipe era um zeloso seguidor de Hipócrates e de seus livros. Ele teria gostado de pertencer a uma Asclepíades (uma espécie de academia ou de uma reunião de médicos), mas, em Nahum, aquilo era um sonho.

Ele gostava de ser chamado de "holístico" (ele considerava que, na medicina, o corpo era um todo, não apenas uma coleção de partes).

Na época em que se juntou ao grupo do Galileu, Felipe estava ten­tando novas experiências. Uma delas lhe trouxe complicações na vida... Ele estava convencido de que o poder do alho era total. Se pudesse en­contrar o procedimento adequado, ele acabaria com os males do mun­do. Felipe tinha começado amarrando cordas com alhos aos tornozelos, esperando que o "perfume" do alho se transmitisse ao restante do corpo, incluindo o hálito. Dessa forma, dizia ele, com um alho ao pé, seria pos­sível curar "sem sentir" enxaquecas, tumores, mau-olhado e não sei mais quantas outras doenças.

Eu o ouvia espantado e entretido. Era uma alegria ouvir Felipe falar...

Fiquei no laboratório dele durante dois dias.

Aprendi muitas coisas, a maioria delas inútil. Mas isso não importava...

E também pude entender por que Zaku, a enérgica esposa de Felipe, odiava o mabadâ. Ela ficava com os nervos atacados só de saber que ha­via todos aqueles répteis vivos em sua casa. As broncas eram contínuas. Somente a Cipriota o compreendia (mais ou menos).

Quanto a Perpétua, a mulher de Simão Pedro, eu a encontrei paci­ficada. As ausências do marido "lhe davam vida". Além disso, o dinheiro que aquele sujeito de sorriso encantador lhe dera ainda não tinha se esgo­to. Falando nisso, eu não o tinha visto...

A casa de Pedro (melhor dizendo, de Perpétua) não era tão interessante quanto a de Felipe. Tinha a sala principal (com os dois níveis comuns nas casas judaicas), duas salas sem janelas, um pátio a céu aberto, com um galpão e um poço, e pouco mais. Por esse poço desfilava toda a vizinhança para buscar água, cada um com seu balde.

Na casa, escura como poucas, vivia o casal, os três filhos, André, os gêmeos de Alfeu e Amata, a sogra de Pedro.

Amata era uma "anciã" submissa, com saúde precária. Tinha vivido 45 anos. Também teve seu papel na vida do Mestre. Mas essa é outra história...

Sobre a casa de Mateus Levi, no bairro ao norte de Nahum, eu já a co­nhecia. Era confortável, luminosa e, como já disse, coberta de mármore. Mas o que realmente me interessou foi um dos seus habitantes.

Já tinha ouvido falar em Tariqueia, e dos lábios do próprio Mateus. Mas agora estava diante de mim...

Naquela ocasião não fui capaz de imaginar como seria importante aque­le encontro com Telag (sobretudo para o futuro). Mas vamos por partes...

Mateus era divorciado. Ele se casou duas vezes. Melá era a segunda esposa. Não teve filhos com ela. Os quatro filhos do cobrador de impostos foram o resultado do seu casamento com Hélem (que se traduz aproxima­damente como "Visão"): Ruth era a mais velha (algum tempo mais tarde, ela fez parte do grupo de mulheres que se juntou ao Mestre). Vinham depois Isaac e Seleh ("Tranquila") e, finalmente, o referido Telag ("Neve").

Telag tinha seis anos. E tinha síndrome de Down.

E não sei por quê (agora eu sei), senti uma atração especial por aquela criatura. Examinei-o cuidadosamente. Eu pude brincar com ele e verificar o que era óbvio: olhos oblíquos, cabeça pequena e arredondada, capacida­de de falar escassa e desajeitada, língua para fora, linha única e profunda que atravessava toda a palma da mão, entre outras características típicas.[67]

Problemas com o cromossomo 21...

Mau negócio.

Não sei quanto tempo ele conseguiria viver, mas a verdade é que Telag estava condenado à morte, e em curto prazo. Um menino com síndro­me de Down tem grandes possibilidades de sofrer de uma enfermidade cardíaca congênita. Nos estudos realizados por Fabia e Drolette (1970), entre 40 e 60 por cento das crianças portadoras de síndrome de Down apresentavam cardiopatia congênita e não conseguiam chegar aos dez anos de idade. Telag tinha seis anos, como eu já disse...

Teria sido necessário administrar os "nemos" no menino para fazer uma análise em maior profundidade, mas eu não o fiz. Infelizmente, eu não o fiz... E não devemos nos esquecer daquela mancha singular na plan­ta do pé esquerdo: uma espécie de trevo de cinco folhas, de cinco centíme­tros de diâmetro. Seria muito útil, em seu momento...

Na quinta-feira, 3 de outubro, o dia amanheceu chuvoso.

Jesus começou uma nova aventura, desta vez com João Zebedeu e o segundo gêmeo, Tiago de Alfeu. Zal ficou no casarão sob os cuidados de Abril.

A frente, tínhamos duas semanas...

Destino? Eu não sabia. Na verdade, nenhum de nós sabia. O Mestre não quis nos revelar. João insistiu em saber, mas o Filho do Homem repe­tia: "Confia... deixe que o Pai faça o seu trabalho".

A atitude do Zebedeu não me agradou. Quando ele notou que eu me juntava à pequena expedição, olhou-me de cima a baixo e cuspiu entre as minhas sandálias.

Jesus andava na frente de todos. Não viu.

Eu não disse nada. Eu fiquei em último lugar, de acordo com meu costume, e deixei as coisas nas mãos do Destino...

Milhares de cegonhas e de pelicanos foram passando pelo yam. Eles vinham do lago Hule, ao norte, e possivelmente iriam em migração até o mar de Sal em questão de dias ou semanas.

Contemplei o "rebanho", maravilhado.

O erroneamente chamado pelicano branco (na verdade é de um rosa pálido com as pontas das asas negras) era mais numeroso que seu irmão, o pelicano crespo. Não creio estar errado se afirmar que a colônia superava os 30 mil exemplares. Os crespos eram mais tranquilos. Os brancos voavam sabre as margens e caíam como uma maldição sobre o lago, esgotando as reservas de peixes. Cada pelicano precisava de mais ou menos um quilo de peixe por dia. Era uma catástrofe, de acordo com os moradores vizinhos ao mar de Tiberíades. E eles tinham razão. O "sindicato" dos pescadores do yam (uma fraternidade conhecida pelo nome de Al) tentava o que podia para combater os "malditos sacnâi". Eu os vi fazerem de tudo: veneno, varas, fogo, cães treinados, armadilhas, pedras e gente cantando... Nada deu certo.

As cegonhas eram outra história. Elas também chegavam aos mi­lhares, mas ocupavam nichos diferentes. Elas eram extremamente be­néficas. Em poucas semanas terminavam com a maior parte dos gafa­nhotos, cobras, grilos e insetos da região. Elas também pescavam, mas o impacto era mínimo. Havia judeus que plantavam ciprestes com a fina­lidade de ajudar as ciconias a construir seus ninhos, como está citado no livro dos Salmos (104, 17).

Elas nos viram passar, brancas e circunspectas, com os bicos e patas pintados de vermelho, como se estivessem vestidas de gala.

Acho que elas sabiam quem nos estava liderando...

Fomos para o sul, ao longo da costa e em bom ritmo.

O tempo, como eu digo, estava desbotado. As tempestades começa­ram a se tornar frequentes e pesadas. E a temperatura caiu sensivelmente.

Eu pensei em Antipas. Logo ele se mudaria para o palácio-fortaleza de Maqueronte, no Gor. Era importante que ficássemos atentos.

Mas as primeiras coisas em primeiro lugar. Ele tinha prioridade...

Para onde nos levava desta vez?

Surpresa...

Jesus adorava fazer surpresas. Como as chamava? Sim, de "pratos amorosamente cozidos..."

Paramos no Arad, o bairro das choças de Kursi. Tiago desejava ver sua família. Não sei se ficaram alegres, porque ninguém disse nada.

Almoçamos e continuamos em direção ao sul.

João era pertinaz, tentando persuadir o Galileu. O Mestre era incor­ruptível. Sorria, travesso, e isso era tudo. Jamais falava além do necessário. Ninguém era capaz de extrair um yod se Ele não se prestasse a isso. Eu ate que tentei, mas finalmente compreendi.

Deixamos Ein Gafra para trás e, finalmente, avistamos a vila de En Gev.

Devia ser meio-dia, ou um pouco mais.

Jesus deu a volta na aldeia e se desviou para leste.

Prestei atenção. Aquilo era novidade para mim.

Ninguém falava.

O Galileu procurou a margem direita do nahal (rio) En Gev e pros­seguiu com seus passos clássicos e determinados. Evidentemente, sabia muito bem qual era o nosso destino.

E fomos subindo por um terreno plano, verde e povoado de flores.

O Mestre se deteve um par de vezes, inspirou profundamente e con­templou o yam. O sol rompeu lentamente por trás das nuvens, mas che­gava ao lago com autoridade suficiente para domá-lo e desenhá-lo em um azul profundo.

Jesus usava o manto vermelho. A familiar fita branca segurava os ca­belos. Aos pés, a sacola de viagem.

Deixou que a brisa o envolvesse, apertou os olhos e eu sei que deu graças ao Pai (por tudo). Eu conhecia essa atitude...

Se fôssemos continuar naquela direção, não demoraríamos a alcan­çar o território da Gaulanitis, uma região pouco aconselhável. Os "bucoles' (bandidos) eram frequentes também naqueles barrancos. Mas Ele sabia...

E numa questão de uma hora e meia (eram 14 horas), a expedição dei­xou para trás o leito do rio e subiu ao topo de um platô. Ali voltamos a parar.

Tínhamos andado cerca de cinco quilômetros desde En Gev. Segundo comprovei mais tarde no meu retorno ao Ravid, estávamos na elevação 284.

Diante de nós, como disse, se abria um platô estimável, de cinco por seis quilômetros, total e absolutamente atapetado de verde; o verde de milhares de vinhas.

Fiquei atordoado por alguns segundos. Como eu digo, não conhecia o lugar.

Ao voltar ao "porta-aviões" soube que, do outro lado do platô, se erguiam três povoados de tamanho médio, que eram chamados de Zaki: Seshur e Eli. Quase todos habitados por gentios.

Naquele dia 3 de outubro, quinta-feira, o ocaso se registrou às 17 horas, 20 minutos e 16 segundos (TU). Naquela ocasião, faltavam pouco mais de três horas para que se fizesse a escuridão. O Mestre sabia disso e caminhou, depressa, por entre as ordenadas fileiras de vinhas as célebres kerem da Bíblia). Eu as examinei enquanto marchava.

Eram videiras altas, de um metro e meio, postas com cuidado ao isdlo grego. Esse era o método aconselhável em um lugar como aquele, sujeito a chuvas em que as precipitações superavam os 600 milímetros. Dessa forma, em estacas altas, a planta evita o contato com o solo, e o risco de enfermidades é menor.[68]

À distância, e estrategicamente colocadas, levantavam-se as obrigatórias torres de vigilância, como havia sido ordenado pelo profeta Isaías (21, 8). Eram negras e quadradas, de dez metros de altura. Tudo tinha sua razão. O negro era um "aviso aos ladrões", o quadrado simbolizava a "pureza e defesa", e os dez metros de altura, uma forma de "aproximar-se de Deus" (a letrayod ou iod é o símbolo do Eterno). Cada torre ou migdâl era um "milagre"; ou pelo menos era isso que diziam os judeus. E tinha um fundamento científico. As grossas paredes protegiam os guardas, e suas famílias, do rigor do ve­rão (o professor Zwi Ron demonstrou que a temperatura no interior de um migdâl é cinco graus mais baixa do que a do lado externo). Mas os principais ladrões de uvas não eram os seres humanos, e sim as raposas, seguidas de perto pelos javalis, que formavam manadas e tinham alta periculosidade. Os guardas se posicionavam no alto das torres e lançavam flechas ou dardos envenenados quando detecta­vam uma sombra suspeita. Os vigilantes eram submetidos a exames especiais. Nem todos estavam capacitados. Eles eram chamados de "o olho de Isaías".

A uva era esplêndida: branca, com os cachos inchados, e com uma bela transparência.

Eu as provei às escondidas.

Ela se separava facilmente do pedúnculo. Tinha um agradável sabor adocicado, sem aspereza e com um sumo viscoso.

Era a estação.

Em Israel, os que entendiam do assunto procuravam atrasar a colheita. Assim, eles conseguiam fazer vinhos mais alcoólicos, mais doces e, em última análise, de melhor qualidade.[69]

Era possível notar que as anavim (uvas) eram mantidas com cuidado.

Iríamos colher uvas?

Uma idéia me apareceu, na ponta dos pés...

Andamos cerca de meia hora em um bom ritmo, sempre entre as videi­ras, até que começamos a ouvir latidos. O Galileu, então, diminuiu a marcha.

Logo apareceu uma grande casa, de pedra vulcânica preta, como as torres. Os cinco cães que a guardavam estavam amarrados com cordas.

Ficamos a uma distância segura.

A casa, com dois andares, era rodeada por 14 árvores bastante curio­sas, que eles chamavam de "árvore lírio". Eram árvores bastante ramificadas desde a base, e com flores em forma de sino que tinham a virtude de mudar de cor de acordo com a incidência da luz. Primeiro, ao amanhecer, elas se mostravam douradas, depois verdes e, finalmente, quando o sol se punha, luziam com um roxo intenso. Consultei, em seu devido tempo, o "Papai Noel" e deduzi que se tratava de um híbrido (possivelmente um cruzamen­to entre Magnolia denudata e Magnolia liliflora). Eram fascinantes.

Imediatamente, veio o capataz. E, com um sinal, ordenou silêncio para os cães. Eles obedeceram.

Ele nos convidou a nos aproximar.

Na porta, sobre a verga, lemos: "Não entregue às feras a alma da tua rola".

Era um salmo. Pertencia ao 74 (19).

Estávamos na frente da fazenda Yehuda, de propriedade da família de mesmo nome. Eram fariseus, mas do ramo ultraortodoxo. Não demo­raríamos a comprovar isso...

Os Yehuda eram imensamente ricos. Metade da Gaulanitis era deles. Aquela fazenda destinada ao cultivo das vinhas reunia 10.028 cepas.

O Mestre pediu trabalho.

João Zebedeu estava atordoado. Acho que a ideia de colher as uvas não o agradou.

Colher uvas! Eu bem que havia intuído!

O capataz respondeu negativamente. Os postos de colhedores estavam todos ocupados. Os Yehuda tinha o hábito de contratar com bastante antecedência. Neste caso, os coletores foram os gregos, provenientes da península de Chalkidiki. Eram os gregos que também se responsabiliza­vam pelos cuidados da plantação; a uva, de fato, era de origem grega (par­ticularmente da Trácia e da Acaia).

O Galileu permaneceu pensativo.

E o capataz deu uma solução. Nós poderíamos participar da limpeza das latrinas e das prensas de uva.

O Mestre não hesitou. Aceitou.

Agora eu sei. Ele estava procurando por isso...

E, novamente, depois de concordar com o pagamento (um denário por dia), o homem levou-nos por entre os corredores da vinha, no sentido leste, para o acampamento dos referidos gregos. O local, também rodeado de vinhas, ficava a mais ou menos mil metros da casa.

Observei João. Ele estava pálido. O Zebedeu sabia muito bem o que estava por vir. Eu, francamente, não tinha ideéia...

O acampamento era composto por dez grandes barracas, um fogão a lenha e duas latrinas, também feitas de tábuas. Cada latrina era, na verda­de, uma grande caixa com um poço escavado no chão. Nas aberturas eram depositadas latas de metal nas quais devíamos defecar obrigatoriamente. Os Yehuda eram intransigentes. Nenhum pagão podia contaminar, com suas "impurezas", a terra judaica. Era proibido inclusive que os gregos uri­nassem fora das latrinas. Alguns dos gentios eram contratados como "esvaziadores" (eles percorriam as vinhas com baldes e coletavam a urina dos que faziam a colheita; as mulheres não trabalhavam como colheitadeiras). Uma vez cheias, as cubas das latrinas eram retiradas e transportadas no lombo de burros, ou dos próprios pagãos contratados. Viajavam entre três a quatro quilômetros até os povoados de Eli e Zaki, respectivamente. Ali eles vendiam a urina e os excrementos como fertilizantes.[70]

Comecei a tremer...

O capataz nos atribuiu uma das tendas. Deixamos lá nossas bolsas de viagem e ele nos conduziu de novo ao sul da grande casa principal. Ali, escavadas nas rochas calcárias, se alinhavam três grandes vinícolas, com suas correspondentes prensas e barricas de carvalho. Nosso trabalho consistia em limpar as latrinas e as prensas de uva. O capataz nos explicou como fazer isso. Era simples... E muito desagradável.

Com as prensas de uva não havia problema. Elas eram cobertas de gesso e de pedra, o que facilitou as coisas. A tarefa consistia, basicamente, no branqueamento das paredes (feitas à base de uma pasta de cal à qual se adicionava sulfato de cobre) e na limpeza dos pavimentos. Tudo era uma questão de levar água limpa, e de forma constante. Os barris de madeira eram limpos com sal comum, previamente dissolvido em água fervente. Convinha agitar e esfregar os barris várias vezes com a citada água quente. Depois eles clareavam, e clareavam, até que o capataz dissesse que estava bom. No caso de alguns tonéis, era o capataz que cuidava da parte interna, com pequenas quantidades de enxofre. Com isso conseguia uma aceitável ação desinfetante por causa do dióxido de enxofre que se formava na par­te interna. Ele usava três ou quatro gramas por hectolitro.

A raspagem dos barris, com a finalidade de resgatar o tartárico, era uma coisa dos gregos. Eles friccionavam com escovas e obtinham assim um máximo de sedimentos. O tartárico era vendido pelos Yehuda (como quase tudo).

João Zebedeu não hesitou.

Ele não aceitou compartilhar uma tenda com os "malditos gregos, cúmplices dos kittim", e muito menos "limpar a merda dos pagãos".

Ele me olhou, muito irritado.

O Mestre não respondeu. Continuou fazendo suas coisas e desfazen­do sua bolsa de viagem.

Creio que o silêncio foi o que mais contrariou o Zebedeu.

Ele acabou pegando sua bolsa, cuspiu de novo entre as minhas san­dálias e saiu da barraca com pressa. Pelo caminho foram caindo maldi­ções e cuspidelas...

Assim era de verdade o "discípulo amado de Jesus".

O Filho do Homem, Tiago de Alfeu e quem isto escreve trabalhamos nas latrinas e nas prensas de uva durante nove dias.

A coisa mais difícil, sem dúvida, era o "negócio" de latrinas.

Eu nunca poderei apagar essas imagens...

Jesus se despia, entrava na caixa de madeira e, com a ajuda de Tiago de Alfeu ou de quem isto escreve, tirava o pesado caldeirão e o puxava para fora. O mau cheiro e a visão das fezes eram insuportáveis. No começo eu vomitei.

O Mestre fazia a tarefa cantando.

Tiago cobria o rosto com um pano e ajudava com grande coragem. Jamais reclamou ou se lamentou. Era um homem simples e igualmente admirável.

Depois, esvaziávamos os caldeirões em sacos de couro que, por sua vez, repousavam sobre jumentos ou mulas. Então, antes de empreender a marcha até as aldeias onde venderíamos os "fertilizantes", fazíamos a limpeza dos caldeirões. Era outro momento "delicado".

Nesses nove dias, o Filho do Homem não teve um gesto ruim (o que seria compreensível). Não o vi renegar sua sorte ou dizer uma pa­lavra mais alta do que outra. Foi desconcertante. Ele trabalhou nessa tarefa ingrata com o mesmo entusiasmo que o fazia no estaleiro ou com as redes no yam.

À tarde, nós voltávamos para o acampamento e o Mestre tinha tempo de lavar-se e de conversar em koiné com os gregos. Era uma esponja. Per­guntava e perguntava. Ele se interessava pelas famílias, pelas vinhas, pelos salários, por seus sonhos e projetos... As pessoas acabavam terminando por ter carinho... Assim, ganhava pulso...

Com o gêmeo, mal falava. Tiago chegava esgotado. Comia alguma coisa e ia dormir.

Eu resistia, mas o sono acabava me vencendo. Mais de uma vez fui despertado pelo Galileu. Ele me ajudava a caminhar até a barraca.

Conheço apenas uma palavra para qualificar o comportamento do Filho do Homem na fazenda Yehuda: admirável.

Foi sem dúvida a obra mais repugnante que veio fazer. No entanto, nenhum evangelista falou dela...

Na sexta-feira, 11, fomos chamados pelo capataz. Haviam se registrado diversas baixas entre os colhedores de uvas. Tinha aparecido um surto de gastroenterite. Algo muito perigoso naqueles tempos. E Jesus, Tiago de Alfeu e quem isto escreve abandonamos as latrinas e as prensas e nos unimos aos bandos de colheitadores.

Fiquei muito satisfeito, especialmente por Ele. Eu não conseguia me acos­tumar com a imagem de um Homem-Deus afundado diariamente na merda.

O Mestre continuou a trabalhar com o mesmo sorriso. Nem bem se agitava como "esvaziador", correndo de um lado para o outro com o balde de urina, logo cortava os cachos ou ia ajudar os companheiros. Com as uvas, tinha um comportamento único. Limpava com delicadeza, conver­sava com os bagos, separava os danificados, um a um, e cantava para eles sua canção favorita: "Deus é ela..."

Nessa ocasião, a colheita foi atacada - moderadamente - por um fungo importado pelos gregos e que, segundo minhas informações, era a causa da chamada "podridão cinzenta". Os Yehuda conheciam tudo isso e conseguiam assim fazer vinhos muito mais finos.[71]

O Mestre enchia os cestos de vime e o fazia lentamente, até a meta­de, evitando que o peso pudesse danificar as uvas. Onde havia aprendido isso? Atrevi-me a perguntar, e o Galileu, sorrindo, respondeu:

- Eu já viajei muito, querido malak...

Presumi que ele estava se referindo à chamada "viagem secreta"...

Eu teria que voltar a copiar os rolos do velho Zebedeu.

Cada uma das cestas era esvaziada nos carregadores existentes no estábulo. Os Yehuda eram rigorosos quanto a isso: cada carregador deve­ria ser truncado, com base elipsoidal e elaborado com aduelas de avelã. Assim rezavam as leis orais...

A carga de um carregador desses não era maior do que 90 quilos. Cada jumento levava dois carregadores.

Após as transferências das uvas nos estábulos, os recipientes usados teriam que descansar de cabeça para baixo. Assim era a lei.

Ao voltar para o acampamento, o Galileu se ocupava dos doentes. Continuava "fazendo 'im”...

O Mestre se tornou popular por causa de suas canções.

Na quarta-feira, 16, concluída a colheita, voltamos a Saidan.

A chuva ficou mais intensa.

E eu pensei em Antipas e em Yehohanan. Era necessário encontrar uma brecha e viajar de volta para o mar de Sal, eu não sabia por quê, mas eu tinha que fazer isso.

Jesus caminhou lentamente em direção ao litoral. A estada na fazen­da dos Yehuda lhe devolveu o otimismo, fazendo-o esquecer do incidente com João Zebedeu. E cantava debaixo da chuva forte.

Fiz alguns cálculos.

Faltavam dois pares. Aqueles formados por Bartolomeu e Judas Iscariotes, e André e Mateus Levi.

Eu me submeteria ao Destino...

João Zebedeu nos recebeu com frieza.

Ninguém perguntou, ainda que todo mundo soubesse que havia acontecido algo de estranho. O gêmeo Tiago de Alfeu se mostrou discreto e prudente, como sempre.

Três dias depois, Jesus deu as devidas ordens. Partiríamos.

E no domingo, dia 20 de outubro, sob aquele intenso aguaceiro, o Mes­tre, o "urso", Judas Iscariotes, este explorador e Zal abandonamos o casarão dos Zebedeu. Ninguém, salvo o Galileu e André, conhecia o destino da­queles expedicionários.

Felipe, o intendente, obrigou cada um de nós a se cobrir com grossos sobretudos (casacões) de pelo de camelo, adquiridos por ele em Nahum. Eram chamados de aba e costumavam ser utilizados por pastores e por condutores de burros. Eram pesados e incômodos, mas se mostraram muito práticos. O pelo do camelo atuava como nossos modernos imper­meáveis e fazia com que a chuva se tornasse mais suportável, mais leve.

Nessa ocasião não viajamos para longe.

Caminhamos até o sul, pela costa e a três quilômetros da desembo­cadura do Zaji, o nahal que morria perto do cais de Saidan. O Mestre, mantendo-se à frente, girou para leste, seguindo o curso de outro rio que chamavam de Kanaf. O território entre ambos os rios (Zaji e Kanaf) era um mosaico de lagos e riachos, entre os quais se destacava o nahal Daliot. Eu tinha contemplado o lugar em nosso périplo pelo ar. Correspondia ao que denominávamos "Galileia-2" e parte de "Galileia-3".[72] No total mos­trava 24 quilômetros quadrados de lagoas, bosques e vegetação aquática.

A região era conhecida como os "pântanos de Kanaf" ou simplesmente Agam (lagoas). Contei 16, muitas delas intercomunicadas. Os bosques eram espessos. Frequentemente encontrávamos ciprestes, carvalhos, azinheiras velani, as chamadas "galhas" (valentes), algarobos, e, sobretudo, os geshem (olmo cano). Os frutos - bolotas aladas - flutuavam por toda parte. Zal passava horas perseguindo-as.

Caminhamos entre as lagoas, seguindo trilhas quase invisíveis, ca­mufladas por plantas aquáticas. Distingui mais de 200 espécies. As mais entusiastas e prolíficas eram a cana, a énula viscosa, a adelfa e o papiro. Na realidade, eles formavam "bosques" impenetráveis.

Para onde se dirigia o Filho do Homem? Que surpresa nos reservava nesta ocasião?

Em questão de uma hora, apesar do dilúvio, alcançamos uma clareira em que se alçavam duas choças de canas e juncos. Ao retornar ao Ravid soube que era cota zero. Essa foi a referência no futuro: "nível zero".[73]

As choças se achavam perdidas no meio de um "bosque" de juncos da lagoa, os altos e maleáveis Scirpus lacustres (bunho), muito utilizados na construção, assim como para reforçar cercados e confeccionar reci­pientes. As cabeças dos juncos ou agmon apareciam inclinadas e maduras, como se estivessem nos dando as boas-vindas. E lembrei-me das palavras de Isaías (58, 5) "... e dobraram as cabeças como juncos".

Aquilo me pareceu uma linda deferência.

Ali nos instalamos. E a partir do "nível zero" e durante duas semanas percorremos o restante das lagoas e dos bosques. Era uma região habitada por caçadores de gansos e cisnes.

Foram duas semanas de chuva e de um aprazível contato com a natureza.

O dono da maioria das choças e líder dos caçadores era um sujeito que vivia no "nível zero". Apelidaram-no de Gelal (Pedra lavrada), em alu­são a uma varíola que havia bombardeado o seu rosto. Era seco e silencio­so, como Tarpelay, mas extraordinariamente eficaz. Ele nos recebeu com os braços abertos. Era um velho conhecido de Jesus e de alguns de seus discípulos. O Mestre o ajudara no estaleiro quando as coisas não iam bem para ele nos pântanos.

Agora, como eu digo, vivia da captura de gansos e cisnes.

As lagoas eram visitadas por quatro espécies de gansos: os acinzentados, sempre gordos; os Anser anser, os maiores; os careto, fáceis de dis­tinguir pela larga faixa branca que luzia na testa, como se estivessem a ponto de empreender uma viagem; os Anser fabalis, com os bicos e patas impecavelmente laranja; e os caretos menores, de olhos maquiados com um anel amarelo. Às vezes chegavam à noite, fazendo um grande estron­do, e partiam aos poucos, para o sul, com o pescoço estirado para a frente e desenhando no céu formações de "flechas" e "grades".

Os caçadores utilizavam todos os meios a seu alcance para capturá-los. Desde veneno em pequenas doses (suficiente para atordoá-los e capturá-los) até redes, passando por anzóis, cachorros adestrados, pe­dras, paus ou a captura corpo a corpo (no fator surpresa). Também imi­tavam o canto da fêmea e os atravessavam com flechas, arpões e lanças de pequenas dimensões. Incomum era o dia em que não caçavam 30 ou 40 exemplares.

Jesus os acompanhava, mas nunca participava da caça. Para dizer a verdade, jamais tive conhecimento de que chegara a matar um animal, pelo menos enquanto permaneci a seu lado. O Mestre (creio já ter men­cionado) sentia uma repulsão natural por qualquer tipo de violência. Ele não suportava.

Em algum momento, durante a estada nas lagoas, o Filho do Homem ralou com saudade de Telat, a gansa que conhecera na granja de um de seus tios, nas proximidades de Migdal. Telat (que poderia ser traduzido como "a terceira no governo") havia sido companheira de brincadeiras de Jesus quando criança. O Mestre sorria feliz e comentava:

- Nunca vi uma gansa com tantas pulgas...

Os gansos eram vendidos em Nahum e nos arredores.

Com cisnes tinham que ter mais esmero. Eles precisavam ser captu­rados vivos e ilesos. Caso contrário, não haveria negócio. Em geral, eram comprados por patrícios romanos e judeus ricos. O mais cotado era o cis­ne cantor, de testa plana, bico preto e pescoço reto e delicado. Ofereciam por ele entre 200 e 300 denários. Gelai o caçava ao entardecer, no mais absoluto silêncio, e com horas e horas de santíssima paciência. Ele e seus ajudantes cravavam uma estaca na margem entre os juncos e amarravam um tecido vermelho numa altura mediana. Depois se escondiam na água ou nos lamaçais. E ali esperavam o milagre. O cisne macho via o pano vermelho e se aproximava, curioso. Então caíam sobre ele e o prendiam. As vezes os caçadores falhavam. O cisne conseguia se safar ou bicar os surpreendidos caçadores e então fugia a toda a velocidade, sapateando a superfície da água e a favor do vento. Precisava de 10 ou 15 segundos para decolar. Nesse caso os cães agiam e o pegavam, mordendo unicamente pernas e testículos.

Soube também do cisne mudo, branco e senhorial, e do pequeno (Cygnus columbianus), menos atrativo que as outras espécies.

O cantor vivia principalmente nas lagoas do norte. As lagoas eram chamadas de "Manasés", "Lontra" (e, aproveitando, não vimos nenhuma delas), "O mal espírito" e "Suf" (um gigante criadouro de espadanas de três, quatro metros de altura, cantado em Êxodo [2, 3-4], em Jonas [2, 5] e Isaías [19, 6]).

O "urso" de Caná (Bartolomeu) desfrutava essas caçadas.

Judas Iscariotes fechou a cara quando soube que ficaríamos duas sema­nas naquele lugar "esquecido da mão do Santo". Contudo, não agiu como João Zebedeu. Seguiu ao nosso lado, em silêncio e com uma postura depreciativa. Odiava os galileus em geral e os habitantes dos pântanos em particular.

Ao entardecer, nos protegíamos no "nível zero", jantávamos depressa e nos apertávamos na choça de Gelal, dispostos a ouvir as mil histórias que "Pedra lavrada" contava. O Mestre e o "urso" passavam o tempo se di­vertindo e, como digo, jantavam rápido a fim de aproveitar o tempo. Não me cansarei de repetir: Jesus era como uma criança.

O Iscariotes assistia a tudo com cara séria. Jamais falava. Ele se man­tinha atento e olhava por cima do ombro.

Jesus percebia, mas não dizia nada.

E assim foram se passando os dias e as noites.

"Pedra lavrada" assegurava que na lagoa da "Azinheira", bem perto dali, se erguia uma árvore oca, de mais de mil anos, que tinha resistido às macha­dadas de mil raios. Inventava e exagerava, como quase todos os caçadores e pescadores. E afirmava que era um milagre que a árvore em questão seguisse com vida. Dias depois, quando tive que caminhar pela margem da dita lagoa, descobri, de fato, uma centenária azinheira, praticamente oca, da qual havia saído uma apreciável ramagem verde. Algum raio a partira em dois e isso alimentou a lenda. A explicação para a vida que brotava naquele cadáver, e que resistia em pé, era simples. A vida se preparou para prosperar no inte­rior da casca, no câmbio vascular e no xilema (o anel mais recente). Isso era tudo. Como dizia o Mestre, "o milagre da vida".

Gelal narrou também a história de outra lagoa - "A negra" - na qual, segundo ele, habitava uma serpente com cabeça, mas sem fim. A "negra" - dizia convencido - fora depositada no pântano pelos kittim, o exército romano. Naturalmente, quando visitei a lagoa, não descobri rastro algum da fantástica "negra".

O Mestre escutava e fazia perguntas. Eu não saía do meu assombro. Para o Filho do Homem, essas fantasias eram encantadoras, e Ele as vivia intensamente.

O "urso" também participava, e de que forma!

Cada noite ele tomava impulso e apresentava histórias de todas as cores e tamanhos. A maioria, eu conjecturava, seria inventada ou lida.

Falou, por exemplo, da cidade de Angamán, onde os homens (não as mulheres) têm cabeça de rato. E disse saber isso de boa fonte. Acreditei sa­ber quem era a fonte de informação: seu amigo e sócio Felipe, que adorava a distante China. (Bartolomeu se referia, provavelmente, às ilhas de Andamán, no golfo de Bengala, longe da China. Mas... o que isso importava?)

Outra noite, contou a história dos "chineses" que comiam carne hu­mana e que adoravam ao primeiro que vissem quando se levantavam. Essa coisa podia ser um cavalo, uma pedra ou uma mulher. Ele os chamou de "chineses apaixonados".

Jesus ficava com a boca aberta, e eu mais ainda.

Gelal não o deixava respirar e solicitava novas histórias; mais histó­rias e mais, e mais...

Cada vez que terminava uma narração, Bartolomeu era aplaudido pelos caçadores de gansos e de cisnes; o "urso" se levantava, inclinava a cabeça levemente e agradecia às demonstrações de respeito e admiração. Judas ficava frenético.

Jesus também solicitava novas histórias. Isso me fez recordar das be­las "noites kui", na alta Galileia...[74]

Bartolomeu era inesgotável. Sabia de tudo e sabia contá-lo. Criava expectativa, temor e ansiedade. Era um gênio.

O que mais o fascinava eram as lendas que tinham como protagonistas os chineses (nítida influência de Felipe). Assegurava que na província de Talas (?) já se conheciam os trajes de asbesto. Com eles era possível caminhar entre as chamas. Os inventores - chineses, naturalmente - "tinham feito importan­tes e decisivas demonstrações". E assegurava que, no futuro, as túnicas e outras roupas seriam de asbesto e ninguém morreria nos incêndios.

Se não fosse pelo fato de que era impossível, eu poderia acreditar que o "urso" teria lido Marco Polo...

Também mencionou umas tribos, muito distantes, que comiam trigo em forma de macarrões compridos (de até um metro).

Os caçadores ficavam satisfeitos e maravilhados.

O Iscariotes, sem dúvida, torcia a cara e negava com a cabeça. Judas não gostava de Bartolomeu. Para ele, era um sujeito nada sério. Em reali­dade, Iscariotes não gostava de ninguém, começando pelo Mestre.

Uma manhã, na lagoa "Lontra", enquanto assistíamos a uma das ca­çadas de gansos, o Iscariotes se aproximou de Jesus e, aproveitando a au­sência de Bartolomeu, foi criticar o comportamento do "urso", taxando-o de "frívolo e indigno".

Jesus escutou em silêncio.

Além disso - arrematou Judas Iscariotes -, está fisicamente impos­sibilitado de caminhar. Deveríamos prescindir dele para a proclamação da boa-nova...

O Mestre o interrompeu imediatamente:

Cuidado, Judas! Não tomes atribuições que não são tuas. Ninguém deve julgar a seu irmão...

Mas Bartolomeu não é sério. Ele conta histórias mentirosas...

O Pai não exige somente seriedade. Tu estás enganado, Judas. A vida, e a vida no novo reino, é alegria... Deixa teu irmão em paz e permite que preste contas a Abba... Faz bem o teu trabalho. Isso é tudo.

Judas, pálido, se distanciou do lago. Foi outro momento de tensão. O Iscariotes nunca se esqueceu da repreensão do Filho do Homem. Era rancoroso e foi somando o que considerava como sendo uma afronta à sua dignidade. Não seria o último aviso do Galileu...

Bartolomeu, como eu já adiantei em outras oportunidades, sofria de varizes. Isso lhe fazia manquejar na hora de caminhar, mas não era corre­to afirmar que se achava impossibilitado de andar. Judas exagerava. Bar­tolomeu ou Bar Tolmay (filho de Tolmay) tentava aliviar o problema com faixas de couro que apertava ao redor da perna esquerda.[75] Felipe de Saidan, seu amigo e sócio, havia lhe proporcionado uma boa dose de sumo de uva vermelha, especialmente recomendado contra as varizes. Não fal­tava razão à Felipe. A uva vermelha contém taninos e derivados polifenóis que ajudam no retorno venoso do sangue até o coração. Esse tipo de uva, além disso, é rico em pectina, carotenos, açúcares e vitaminas A, C, B1 e B2. Tudo nela ajuda como diurético e reconstituinte. Felipe, portanto, não estava equivocado em suas recomendações.

E abro um parêntese.

Bartolomeu (também conhecido como Natanael) padecia de varizes, mas foi um dos discípulos que mais caminhou. Após a morte do Galileu, ele se opôs às ideias de Pedro e se dirigiu ao leste. Morreu na Índia.

Fecho o parêntese.

Nessa manhã de 30 de outubro, quarta-feira, quando Judas se distan­ciou, atrevi-me a perguntar ao Mestre sobre dois assuntos que me manti­nham desconcertado.

Por que Jesus insistia em não julgar? Ele proclamou isso com João Zebedeu e agora com Iscariotes.

O Mestre escutou a pergunta com atenção e me animou a caminhar pela margem. Estávamos na lagoa que chamavam de "Lontra", mas, como eu disse, não conseguimos ver nenhuma.

Teus irmãos cumprem um papel... E para isso eles vieram... Por que ulgar o que tu desconheces?

Não entendo...

Querido mal 'ok, tentarei me aproximar da verdade...

Isso eu entendia. Não era fácil encontrar as palavras certas.

Nada é que parece ser. Nada é o que acreditas. Tu não estás aqui para o que supões estar...

E para que estamos na vida?

Já falamos sobre isso, tu te lembras?

Sim, disseste-me que a vida é uma série de experiências, ou mais ou menos assim...

O Galileu sorriu.

Mais ou menos... A vida é uma experiência...

Não o deixei terminar.

Isso.

Voltou a sorrir e continuou:

A vida é uma experiência suficientemente importante para que não se veja sujeita ao acaso.

Ele me olhou intensamente. Acreditei saber por onde ia.

Quer dizer que está tudo programado?

Algo assim...

Então a liberdade humana...

O Galileu ficou sério, contudo não respondeu de imediato. Conti­nuou caminhando entre os juncos. De repente, parou. Em frente a Ele se abriam duas pequenas trilhas. E perguntou:

Qual delas devo escolher: a da esquerda ou a da direita?

Não sei...

E escolheu a que corria para a esquerda. Depois de três passos, ali se deteve de novo, me olhou e declarou:

Nada é acaso. Quem sabe chegues a acreditar que tenhas escolhido o caminho da esquerda porque assim tenhas decidido.

Titubeou. Não sei se Ele se arrependeu do que havia dito.

Não é tu que eleges, e ao mesmo tempo é.

Não entendo...

A casualidade não existe. São os sábios os que se escudam nela.

Tinha razão. Em meu tempo são os cientistas os que mais utilizam esse vocábulo. O que não se encaixa com as ideias deles é falso ou casual.

Por que me dizes que sou o que escolhe, mas não...?

Voltou a hesitar. Compreendi que fazia um grande esforço. Estava a ponto de revelar um segredo.

Tu escolhes... antes de te aproximares da vida. Depois, já na maté­ria, acreditas que és livre porque caminhas pela esquerda ou pela direita...

Sorriu com certa amargura.

Não escolhes, porque já o fizeste.

E por que sonhamos com a liberdade?

Porque a vida está magistralmente projetada. Também já conver­samos sobre isso...

Eu não me lembro de ter escolhido nada...

Claro...

Como "claro"?

Assim é... Estou te dizendo. A vida é um prodígio de imaginação. Se recordasses disso, nada seria igual...

Jesus nunca mentia. Eu já disse isso muitas vezes. Assim, ainda que não visse sua exposição com muita clareza, eu aceitei. A liberdade é um belo sonho.

Respondi à tua pergunta?

Eu a havia esquecido.

Que pergunta?

Por que não se deve julgar um irmão...

Assenti em silêncio. E ele arrematou:

Julgar não é justo nem ético. Quem sabe sobre o que tenha escolhi­do teu irmão e por quê?

Deixou que os segundos se perdessem na vala do tempo e acrescentou:

Todos cumprem um papel. Tudo está ordenado.

Não pude conter-me e, tendo em vista o que o aguardava, exclamei:

E se alguém é torturado e executado injustamente?

Ele me olhou intensamente de novo e senti fogo em seu interior.

Não julgues, malak. O mal também tem seu papel no jogo. Assim está concebido na imperfeição. Não serão julgados nem mesmo do "outro lado", como disse teu irmão... Não te esqueças: a ordem é muito rígida. Xada é o que dizem que é. Nada é o que vendem. Tudo é infinitamente melhor do que se pode supor.

Mas o mal...

O mal não procede do norte, como declara Jeremias.[76] Eu vim para mudar isso...

Não sei o que se passou, mas eu pensei no meu tempo e no "norte", no meu país...

E o Filho do Homem fez outra declaração histórica:

... O mal acompanhará o ser humano até que os anjos rebeldes se- ;am julgados. O mundo então retornará à luz.

Quer dizer que o mal, como o conhecemos, tem os dias contados?

Não tenhas a menor dúvida, malak. Nada é para sempre.

A curiosidade foi maior e me venceu, e acabei perguntando:

Quando será isso?

Jesus voltou a sorrir com ar maroto, mas não respondeu, pelo menos com palavras.

Afastou-se uns passos e procurou o pântano. Eu fui atrás Dele.

Partiu um junco, colocou-se de cócoras diante do barro e começou a escrever, em aramaico, sobre a negra e macia superfície.

Isto foi o que consegui ler:

"Pergunta ao terceiro malak"

E eu o vi distanciar-se, sorrindo, como se estivesse se divertindo. Ali ficou o junco, cravado no barro.

A lagoa terminaria por apagar a frase. A que Ele se referia? Quem era o terceiro mensageiro?

Eu o alcancei e expus a segunda dúvida. Ele havia falado da alegria que domina o reino invisível e alado do Pai. Isso foi o que eu entendi.

Devo aceitar que o Pai tem senso de humor?

O Mestre voltou a deter-se. Parecia perplexo.

Senso de humor? Tu te referes a Abba?

Assenti.

Claro, Ele o inventou.

Isso não pode ser...

Ora! E por que não?

O sentido de humor consiste, sobretudo, em rir de si mesmo... Não imagino o Pai rindo de si mesmo... Ou será que sim?

O Mestre me observou, com ar satisfeito, e não replicou.

Distanciou-se alguns passos e o vi procurar entre as plantas que atapetavam aquela margem do "Lontra".

Fiquei quieto, à espera.

Ele continuou o que estava fazendo, dando voltas e mais voltas. Che­guei a pensar que teria esquecido a pergunta, mas não. O Mestre nunca esquecia...

Resolvi me sentar. E se passou uma hora, mais ou menos.

O Filho do Homem olhava, olhava e olhava de novo entre as plantas.

Estava intrigadíssimo. Não conseguia entender aquele estranho com­portamento. Pensei que Ele havia perdido alguma coisa...

Ao final de um bom tempo, como eu digo, regressou para perto deste perplexo explorador.

Trazia algo em suas mãos.

Ele me presenteou e sorriu, feliz.

Eu o contemplei, mas não soube...

Ele se deu conta da minha confusão misturada com quem quer dis­farçar e comentou:

E a resposta para a tua pergunta...

Que pergunta?

Ele riu para valer.

Tu estás pior que eu...

E esclareceu o que este explorador havia esquecido:

O Pai tem senso de humor?

Contemplei o trevo que acabara de presentear-me. Contei as folhas. Quatro! Um trevo de quatro folhas!

Permaneci com a boca aberta, ao mesmo tempo em que uma voz (?) sussurrava em meu interior: "Os trevos riem do método científico!"

Mensagem recebida.

E o Filho do Homem, muito sério, comentou entredentes:

Que estranho! Antes eu os encontrava num piscar de olhos...

Assim era Jesus de Nazaré.

Regressamos a Saidan no sábado, dia 2 de novembro.

Tudo continuava igual.

O "urso" falou e falou e não parou.

Eu destinei aqueles dias de descanso ao "Papai Noel" e a Ruth. Guar­dei o trevo de quatro folhas no "berço", coloquei em dia os diários e enchi a casa da Senhora, em Nazaré, de lírios azuis. Era a flor favorita da ruiva. Ela já não estava mais muito consciente...

Às escondidas, recitei para Ruth alguns versos de Claudel; sobretudo o do lírio azul. Ela nunca soube disso...

E na quarta-feira, 6 de novembro (ano 26), partimos para a última aventura no yam. Ultima não; vamos deixá-la como penúltima.

O par era formado por André, o tranquilo, e Mateus Levi, o publicano. Mateus seria o primeiro dos discípulos a compreender a mensagem do Filho do Homem.

Passaríamos duas semanas na costa ocidental do yam. Melhor di­zendo, eles passariam. Eu tive que me ausentar antes de concluir as duas semanas. Porém, vamos por partes.

O tempo melhorou um pouco. As tempestades e os aguaceiros se distanciaram.

E nessa manhã do dia 6 de novembro, como eu digo, nós desembarca­mos na região do En Sheva, hoje conhecida como Tabja ou "lugar das sete fontes". Eu conhecia aquela parte noroeste do lago. Tinha cruzado por ela em inúmeras oportunidades (sobre todo o caminho para o Ravid). En She­va se encontrava entre os povoados de Ginnosar, ao sul, e Nahum, ao norte. Era um esplêndido jardim no qual brotavam três fontes principais e vários mananciais satélites que jorravam em Nahum e em um complexo labirinto de acéquias, e lá havia também a mais importante concentração de moi­nhos farinheiros do lago. Contei nove. E no centro do grande jardim, entre os palmeirais, hortos e árvores frutíferas vindas de meio mundo, abria-se uma piscina octogonal de 20 metros de diâmetro e 8 de profundidade. Ela recolhia as águas de um veio espetacular, com um caudal próximo dos três mil metros cúbicos. Era um manancial de água sulfurosa, aflorando a 27°C.

No jardim de En Sheva se elaborava a farinha para boa parte do yam, e inclusive para Jerusalém. Junto aos moinhos farinheiros se levantavam outros, destinados à serragem da madeira, à trituração da azeitona e da uva, e também à moenda da pimenta.

En Sheva tinha boa fama por seu pão. No jardim descobri cerca de 30 choças, muitas delas especializadas em confecção de fogaças de trigo, de centeio, de cevada e uma mescla de pão preto e branco ao qual chamavam de tsel. Delicioso. Em certas ocasiões o coziam com passas, com nozes ou com mel e amêndoas. O Mestre adorava o tsel de passas.

No ano 30, nesse lugar, quem isto escreve conheceria Nakdimon, o funcionário responsável pelo fornecimento de água à Nahum e à indústria dos moinhos. Pelo que pude apreciar nos dias que permanecemos acam­pados junto à piscina octogonal, Nak não era ainda funcionário. E isso não era de estranhar. Estávamos no ano 26.[77]

Tanto o Mestre como os discípulos conheciam bem o lugar, assim como os moendeiros, funcionários das águas e panificadores.

Deram-nos autorização e acampamos, como disse, bem próximos da piscina de água sulfurosa. Jesus sabia...

Aqueles banhos a 27°C foram uma bênção.

Ali permanecemos até sábado, dia 9.

Jesus "fez 'im" à vontade. Conviveu com gente de En Sheva e traba­lhou como moendeiro e como padeiro. Cuidou dos moinhos de pedra, engraxou os pinos de ferro, limpou o grão, passou a farinha pela peneira e a peneirou ao som de sua canção favorita. Terminava sempre com as sobrancelhas, a barba e os cabelos brancos.

Como padeiro era um desastre (tudo deve ser dito).

Esmerava-se, mas a massa não "crescia" quando Ele trabalhava nela. Algo estranho acontecia. E os padeiros se enfezavam com razão.

Terminou escavando nos fornos.

Também o fazia cantando.

Soube dos problemas de todos, conviveu com as crianças e com os jvens, auxiliava os velhos quando transportavam água aos seus casebres, : impartilhava o pão com eles e, sobretudo, os ouvia. Jesus de Nazaré era zm mestre na hora de escutar. Deixava que as pessoas falassem e se expressassem, e só intervinha quando o coração tinha esvaziado e, em ou­tras ocasiões, apenas com o olhar. Era suficiente. Os felah, moendeiros, funcionários ou padeiros, agradeciam que alguém se dispusesse a ouvi-Los. Naquele tempo, como agora, ninguém escutava ninguém. Por não ouvir, não se ouviam a si mesmos...

André foi cúmplice de Jesus nesses exercícios, nesses ministérios, de rizer contato direto e pessoal. O discípulo acreditava nessa estratégia e a demonstrou ao longo de sua vida.

O irmão de Pedro ajudava em tudo e era sempre o primeiro a sentar-se aos pés de Jesus e escutar. Tinha o máximo cuidado em esconder as nãos. Sempre estava preocupado com o mal a que estava submetido: a psoríase. Não tinha as unhas, como já expliquei, e as manchas brancas e escamosas apareciam pelo pescoço, mãos, braços e couro cabeludo. As placas eram incontáveis e possivelmente se estendiam pelo resto do corpo. Em nenhum momento ele se banhou em público. Não desejava que soubessem que era um sapáhat (quase pestilento). Admirei sua coragem. O nome ("valente") lhe fazia honra.

E quanto a Mateus, não sei como explicá-lo... Parecia que estava mais triste do que o normal. Colaborava, mas sempre que podia se retirava para um canto e ali permanecia cabisbaixo. O Mestre se deu conta disso desde o primeiro momento. Algo acontecia...

E no sábado, dia 9, o Galileu levantou acampamento e nos transfe­rimos a um quilômetro de En Sheva, na direção sul, também na costa. O local continuava sendo um lugar próspero, com dezenas de hortas e plan­tações, e com uma surpresa: uma agradável surpresa...

O Mestre e André decidiram que a lagoa que chamavam de "Minnim", as margens do yam, era o lugar adequado para acampar. Soltamos as trou­xas e me dediquei ao que era meu: explorar as imediações. Nós nos achá­vamos relativamente perto da via Maris, a estrada romana que rodeava o mar de Tiberíades pelo flanco oeste e pela margem norte. Pois bem, entre a dita estrada e o yam, alguém com muita sabedoria havia disposto dezenas de "estufas" (para chamá-los de alguma maneira) nas quais cultivavam todo tipo de flores, ao estilo das plantações do vale do Jordão. Os engenhosos felah construíam as "estufas" à base de grandes pirtigas (varaus) e finas redes de esparto (planta: Stipa tenacíssima, L.), de malha bem fechada que permi­tia a passagem da luz, mas não dos pássaros. Chamavam-na de tjamamâ. Na realidade, não era uma invenção judia, e sim etrusca.

A totalidade das "estufas" era de propriedade de Herodes Antipas. Ao que parece, estávamos diante de um próspero negócio. Herodíade, a esposa do tetrarca (amo e senhor da Galileia e da Pereia), era um dos principais clientes.

Os jamamâ ficavam sob os cuidados de um exército de felah ou cam­poneses (a maior parte de origem etrusca), dirigido por um casal de idosos procedente do vale do Fiora, ao sul da cidade de Sovana (atual Itália). Ela se chamava Suvas ("Fogo selvagem") e ele recebia o nome (também etrusco) de Senti, que poderia ser traduzido como "o que tem pressentimentos".

Jesus passou muitas horas com eles, trabalhando e dialogando.

Era um casal peculiar. Amavam as flores acima de tudo e, em espe­cial, as íris. Ambos eram especialistas em hibridação. Viviam como suas flores: durante o dia. Jamais falavam do futuro. "Isso é uma invenção de Roma", eles diziam.

Costumavam se vestir de azul, como muitas das íris, e prendiam os cabelos em longas tranças. Nenhum cabelo deveria cair nas flores. Isso as afogava (?). Desde a aurora apareciam maquiados: sobretudo se preci­sassem entrar nos recintos das íris azuis. Tinham aprendido jardinagem na cidade de Cortona, também pertencente ao velho império etrusco (já desaparecido). Desconfiavam dos deuses. Acreditavam na reencarnação e rezavam diariamente para que as suas vidas futuras fossem "azuis, amare­las ou verdes". Em outras palavras, para nascerem flor...

Cheguei a contar mais de cem espécies do gênero íris. Haviam conse­guido cruzamentos que proporcionavam cores espantosas: bronze, bordó, framboesa, laranja, púrpura e 20 tonalidades de azul. Ela era a encarregada de "batizá-las". Então as chamavam de "azul esmaecido", "azul profundo", "azul que rodeia as nuvens", "azul perto" ou "azul distante", segundo eles...

Senti que estavam obcecados, por muitos anos, pelo fato de não te­rem conseguido uma única íris vermelha intensa brilhante. Eu também amava as íris e sabia por que nunca iria obter um exemplar com essa to­nalidade (que era um problema de falta de pelargonidina), mas não pude explicar a eles. Foi melhor assim. Senti que eles acordavam a cada dia com a ilusão de que iriam conseguir.

O Mestre também trabalhou na "estufa" e soube das penúrias em que viviam os felah. Na parte da tarde, nós nos reuníamos com Senti e com Suvas e falávamos sobre Íris, é claro. Segundo Suvas, a flor em questão era uma mensageira dos deuses. Íris era a representação do amor puro. E eu pensava em Ruth. Sem saber disso, acertei com as flores que levei para Nazaré...

Suvas insistia. A mulher tem um coração "íris": doce, terno, espiritual e positivo. O Mestre ouvia, cativado. Desde então, tenho dedicado muito tempo estudando a Íris e reconheço que os etruscos tinham razão: até os mortos as agradecem...

Senti que eles iam além e proclamaram, em voz baixa, que haviam visto anjos em sua "estufa". André questionou, cético, e o etrusco respon­deu com uma explicação que me deixou atordoado. Ele disse que, em al­gumas noites, via luzes no céu, e que essas luzes desciam e penetravam nos jamamâ. Tudo se iluminava como se fosse de dia. Então se apresen­tavam os mencionados "anjos". Um deles era mais alto do que o resto. Usava uma túnica incrível, capaz de brilhar em cores diferentes, e tinha um sorriso encantador.

O Mestre e eu nos olhamos. Creio que este explorador estava lívido.

E os "anjos" - assegurava Senti - se dedicavam a colorir as íris, uma por uma.

E, pelo amanhecer, apareciam belíssimas...

Avaliei que tudo fora inventado, menos uma coisa: o "anjo" do sorri­so encantador...

E a conversa acabou desembocando em outro dos temas favoritos do Mestre. As íris foram a desculpa perfeita.

Diante da perplexidade geral, o Galileu foi levado pelo instinto e fa­lou - quase em êxtase - sobre a beleza e a inteligência de Abba na hora de criar. Suvas e Senti dispunham de um "catálogo" de 30 mil deuses (adora­dos na bacia do Mediterrâneo), mas não prestavam muita atenção a qual­quer um deles. Esse Pai Azul, ao qual se referia o Filho do Homem, eles não o conheciam. E ouviram atentamente.

O Mestre utilizou uma palavra que sintetizava ambos os conceitos: a beleza e a inteligência. Era uma invenção sua, uma licença literária. Bellinte, como tal, não existe em aramaico nem em hebraico, tampouco em koi- né (grego internacional). Ele falava de iôbi, que foi traduzido como a soma da metade das palavras iôfi ("beleza" em hebraico) e binâ ("inteligência", também do hebraico sagrado). Iôbi, portanto, seria equivalente a bellinte.

Foi, como digo, um monólogo excepcional.

Todos nós acabamos com a boca aberta e gratamente surpresos. Todos não...

Foi nesse momento, enquanto Jesus elogiava a bellinte do Criador, que reparei em Mateus Levi. Encontrava-se sentado perto do Mestre. Os olhos azuis estavam úmidos. Notei como os lábios tremulavam ligeira­mente. O que ocorria? O primeiro pensamento que me veio foi de que as palavras do Galileu o haviam emocionado.

Sim e não...

O Mestre continuou, entusiasmado, e, de repente, Mateus começou a chorar de maneira incontrolável.

Jesus parou. Todos nós olhamos para o discípulo, e André, solíci­to, jogou o braço em torno dos ombros do gabbai, tentando confortá-lo. Mas... o que houve? Qual era o problema?

André perguntou ao arrecadador e este, incapaz de evitar, dei­xou que as lágrimas corressem. Ele abaixou a cabeça e gemeu des­consoladamente.

Suvas empalideceu.

Notei um nó na minha garganta.

E o publicano finalmente acabou confessando.

Jesus falava e falava da maravilhosa bellinte do Pai, mas ele não podia afastar de sua mente e superar a imagem distorcida e perdida de seu filho Telag, a criança com síndrome de Down.

"Onde está a bellinte em alguém assim?"

Mateus soltou.

"Telag é um endemoniado..."

Jesus replicou, negando com a cabeça. Contudo Mateus, com o olhar baixo, não viu. E relatou, com requinte de detalhes, como a criança enve­lhecia a cada instante e como todo mundo fugia dele. Naquela casa, em Xahum, havia peregrinado um exército de rofés ou "auxiliadores" (mé­dicos), sem contar o punhado de bruxos, caldeus, jogadores de carta, as­trólogos, feiticeiras e vigaristas... Mateus gastou uma fortuna inutilmente. Recomendaram a ele de tudo para curar Telag: pó de formigas; cinza de cascos de jumentos selvagens; respirar o ar de pombas; olhar para os olhos delas por dias inteiros; criá-las na casa como se fossem rainhas; que Telag dormisse em contato com um cão de pequeno porte; que comesse filhotes de falcão; carne de víbora, esfolada com abundância de água e azeite; car­ne de cascavel; bile verde de víbora e, muito especialmente, que bebesse sangue de cobra macerada com mel...

Sinceramente, estava aborrecido. Pior do que isso: estava desesperado.

Senti tristeza. Telag tinha seis anos, mas, de fato, parecia mais velho. Tudo se devia a um problema genético: o desequilíbrio da porção genética originada pela existência de três cromossomos 21 (em lugar de dois). Por essa razão, os neurônios do portador de Down se oxidam mais rapida­mente e morrem antes do normal. Porém, como dizia, quem isto escreve não tinha como esclarecer o tema para Mateus.

E ele, em sua cegueira, lamentou não ter seguido o conselho dos anciãos. A lei oral (como está refletido no tratado Berakot) recomenda­va que as crianças do sexo masculino fossem concebidas em camas que estivessem orientadas de norte para sul. Do contrário, poderiam ocorrer abortos ou criaturas diabólicas poderiam ser concebidas (como foi o caso de Telag, segundo eles).

Quando Mateus se acalmou, Jesus insistiu:

Teu filho não é um endemoniado...

O publicano seguia sem prestar atenção ao Filho do Homem.

Sei que tudo se deve aos meus muitos pecados...

Mateus - disse o Galileu, levantando o tom de voz -, Telag não é a consequência de tuas culpas...

O publicano olhou para Jesus e tentou compreender.

Ninguém pode ofender o Pai, ainda que o pretenda... Também havíamos falado sobre isso.

Contudo, Mateus, André e o casal etrusco não entenderam. Não importava. Jesus continuou:

Telag faz parte dos desígnios de Abba.

Então por que nasceu assim? - murmurou o publicano. O Mestre repetiu e com ênfase:

Telag não é um possuído pelo demônio nem é consequência de teus muitos pecados...

Ele deixou correr uma pausa e disse, assertivamente:

Teus muitos pecados? Ele sorriu e acrescentou:

Com os dedos de uma mão se poderia contá-los...

Mateus Levi não deu atenção à interessante conclusão do Mestre so­bre seus pecados e voltou ao que lhe atormentava:

O que é Telag, então?

O Filho do Homem respondeu com uma segurança que me surpreendeu:

Um guibôr!

Jesus usou o hebraico, não o aramaico. Guibôr significa "herói". Nós nos olhamos, perplexos.

Suponho que o publicano tenha pensado: "o rabi está zombando de mim..." Mas não. Esse não era o estilo do Filho do Homem. E o Mestre leu a mente do seu entristecido discípulo:

Não estou zombando, Mateus...

Eu sei, rabi, mas eu não entendo... Telag é um herói?

E Jesus decidiu continuar a explicar o que havia me adiantado nos pântanos de Kanaf: você escolhe antes de nascer...

Creio que os homens não acreditaram. Suvas, em contrapartida, as­sentiu surpreendida.

Mateus resumiu o sentimento dos homens:

Como pode ser que alguém escolha uma coisa dessas?

No reino do espírito - declarou Jesus - existem leis e razões que a matéria ignora... Eles escolhem encarcerarem-se em si mesmos e viver uma experiência dramática...

Reservou um tempo num respeitoso silêncio e acrescentou:

A mais dramática... Entendes por que os chamo de heróis?

Silêncio.

E eu tentei olhar a mente daqueles portadores da síndrome de Down, com paralisia cerebral, autismo, gente que eu tenho encontrado, que co­nheci e que conheço. Heróis? Criaturas "encarceradas" entre as grades de si mesmas? Se fosse verdade - e o Mestre jamais mentiu essas experiên­cias dramáticas fariam sentido, eu suponho...

O Filho do Homem leu igualmente em meu coração e se apressou em declarar:

Esses heróis, além disso, multiplicam o amor, ali onde estejam e por onde passam. Ninguém ama tanto como aquele que ama uma dessas criaturas...

Retificou:

Ninguém ama tanto como aquele que ama uma dessas maravilho­sas criaturas...

Mateus, atônito, deixou de soluçar. O azul de seus olhos se fez mais "profundo ou intenso", como diria Suvas.

Mateus, ninguém exerce a generosidade e o amor puro como fa­zem os pais ao cuidarem desses seres... únicos. Sim, filhos meus... Telag e os iguais a ele são, na realidade, heróis... É preciso muita coragem para dar continuidade a um trabalho dessa natureza... Eles também constro­em o mundo, e com amor puro. Mateus, não olhes apenas as vestimentas de Telag...

Jesus usou a palavra begadim (vestimentas), mas não consegui captar o sentido exato do termo. Pensei que poderia fazer alusão ao corpo, como "vestimenta" da alma e da "centelha".

Aprende a olhar o interior das pessoas. A leitura não é a mesma...

Observou intensamente Mateus e perguntou:

Tu acreditas agora que Telag é uma bellinte?

Suvas tinha os olhos umedecidos. Ninguém se atreveu a responder.

A anciã se levantou e, em silêncio, caminhou até uma das "estufas".

Jesus prosseguiu com a voz trincada pela emoção:

Ajoelhemos a alma quando estivermos na presença de um guibôr...

"São a admiração dos céus."

Mateus e André estavam pensativos, muito pensativos... E nisso Suvas regressou. Trazia um lindo ramo de íris amarelas. Eram íris com os cálices pontilhados em negro e umas ligeiras manchas verdes. Desfrutavam de três pétalas cada um. Eram lindas. Pareciam roubadas do jardim de Monet, em Giverny, ou de algum dos quadros do genial Van Gogh.

Ela se aproximou de Mateus e lhe entregou as flores, ao mesmo tem­po em que desejava:

Aceita-as, para que Telag cumpra a sentença com brevidade... Entre a crença daquela gente, as íris amarelas representavam boa sor­te e riqueza. Sei que, desde aquele instante, o arrecadador as conservou em seu coração, e com ele se secaram.

Jesus apontou o ramo de íris e acrescentou:

Se Abba pinta à mão, a cada noite, todas e cada uma dessas flores, o que fará por uma criatura humana?

Olhou para Mateus, depois para André, e por fim ao casal, e quase gritou:

Confia! A beleza de Telag é infinitamente maior do que a de uma íris. Mateus se levantou e, sem palavras, abraçou o Galileu. E o discípulo

chorou de novo (suponho que de alegria). Todos nós choramos...

Na quinta-feira, 14 de novembro (ano 26), recebi uma surpresa. Tarpelay, o guia negro, se apresentou nas "estufas".

Ele me procurava.

Estava há três dias dando voltas pelo yam.

Nakebos, o alcaide da prisão do Cobre, reclamava a minha presença.

Tar desconhecia a razão. Eu a imaginei: Antipas desejava me ver. De­via agir com prudência...

Tive um aparte com o Mestre e lhe expliquei.

- Vai e vê - replicou e conta-me...

Não houve despedidas. Só um "até breve", segundo o costume do Fi­lho do Homem.

E o instinto tocou em meu ombro:

"Cuidado com o tetrarca! É cruel e sanguinário!"

Decidi preparar-me.

Pedi a Tarpelay que esperasse às portas de Migdal e me dirigi, andan­do, ao topo do Ravid.

Tudo continuava em ordem. Eliseu comparecia à nave uma vez por semana, conforme nosso acordo.

Renovei a "pele de serpente" e pulverizei, inclusive, os pés. Fiz isso pensando no wadi Zarad, nas víboras. Era possível que tivesse que cruzá-lo de novo.

Preparei-me com uma nova dose de antioxidantes, peguei um pouco de dinheiro e o salvo-conduto estendido por Pôncio (válido até o mês de dul: agosto-setembro do ano em que nos encontrávamos [26 de nossa era]).

No último minuto consultei o fiel "Papai Noel". Lembrei-me do patrão da torre das "Verdes" e sua fixação pelos ditos e provérbios e memo­rizei quantos pude, procurando entre os países mais exóticos. Raisos me agradeceria por isso.

Naquela noite, dormimos na base dos "13 irmãos", perto da segunda extremidade do Jordão. O sais preparou a reda de duas rodas e, na manhã •eguinte, ao alvorecer, nós começamos nossa viagem para Damiya.

Ao meio-dia eu ingressava na prisão.

Nakebos nervosamente confirmou as suspeitas. Herodes Antipas estava em Maqueronte, disposto a passar o inverno, e havia autorizado a audiência.

O alcaide me deu um conselho:

- Se tu falares como um astrólogo, procura dizer-lhe que seu futuro é ma­ravilhoso... Caso contrário, eu te vejo servir de alimento para suas meninas...

Pressenti algo. Não me senti à vontade, não gostei da nova aventura.

Nakebos enviou o correio correspondente, anunciando ao tetrarca que chegaríamos ao palácio-fortaleza em torno do meio-dia do domingo, dia 17.

E assim foi.

Partimos para Damiya, no sábado, dia 16, e, por segurança, passa­mos a noite no vau de Josué. Eu viajava na primeira reda que ia à frente, lar nos acompanhou atrás no seu.

Nesse domingo, dia 17 de novembro, o nascer do sol se registrou às 6 horas, 5 minutos e 15 segundos. O declínio - de acordo com "Papai Noel" - ocorreria às 16 horas e 37 minutos. A lua apareceria na fase minguante às 19 horas e 43 minutos e se ocultaria às 10 horas e 6 minutos. Tudo foi calculado. Melhor dizendo, quase tudo...

O amanhecer se apresentou distante e violeta, como quase sempre.

E começamos o caminho até a fortaleza; uma nova trilha para quem isto escreve. Fiquei atento durante toda a viagem observando todas as referências do caminho.

Os primeiros 17,5 quilômetros (do delta do Jordão à base do monte Nebo) foram percorridos numa boa velocidade. Nakebos imprimia um contínuo galope aos cavalos. O terreno, quase plano, ia permitindo. Em seguida, começou a subida e seguimos a borda das colinas nuas de Abarim, ressecadas desde os tempos bíblicos. Medeba, a antiga cidade arab, se achava a seis quilômetros de Nebo. Percorremos sem novidades. E o deserto, vermelho e pedregoso, apareceu de repente. O céu azul se esten­dia além de Moab, e nós tínhamos pressa. A temperatura logo iria subir e os lugares se tornariam um óleo poeirento e sufocante. Tar não tardou em cobrir o rosto com um pano (amarelo, claro). Ele levantou o chicote e me fez ver que tudo estava em ordem.

Tomamos o caminho dos Reis e o trajeto se tornou mais suportável. Era uma pista mais bem cuidada, de quase cinco metros de largura, que seguia em direção ao mar de Aqaba, a mais de 200 quilômetros.

Cruzamos com várias caravanas, quase todas do império nabateu.

Mas o bom teve vida curta. Na altura de uma aldeia chamada Libb, a 12 quilômetros de Medeba, Nakebos virou à direita e se deixou cair por uma trilha estreita, branca, cheia de curvas e desolada como as falésias que eu tinha diante de mim.

Descemos por um tempo, sempre segurando os cavalos. Libb estava a 737 metros de altitude e Maqueronte, a 717.

O mar de Sal brilhava à distância, mas em tons de prata. Ainda era muito cedo para que os ventos o pintassem de azul.

A última aldeia, antes de ver o grande cone branco sobre a qual re­pousava a fortaleza-palácio de Antipas, era conhecida como Atarüz. Difi­cilmente poderei esquecer...

Ficava a pouco mais de sete quilômetros de Maqueronte. Havia qua­tro barracos de adobe, cercados por poeira e esquecimento.

Cruzamos, velozes, levantando uma nuvem de poeira e de protestos. Alguns moradores atiraram pedras. Nakebos não se alterou.

Mas, logo após deixar para trás o povoado, a reda em que eu seguia viajando foi forçada a parar abruptamente. Algo interrompeu a passagem.

Quando a poeira se dissipou, Nakebos e quem isto escreve distingui­mos na metade daquele pequeno caminho outra reda, maior, descoberta e puxada por quatro mulas.

Talvez fossem 11 da manhã.

No topo do carro três soldados se mexiam, três soldados gauleses com as típicas túnicas verdes de meia manga. Não levavam consigo as "camisas" ou as couraças, armaduras trançadas com escamas metálicas. Tampouco usavam capacetes nem traziam armas.

Pareceu-me estranho.

Outros dois gauleses permaneciam em terra, alertas para os compa­nheiros que estavam no alto da reda.

Não havia dúvida. Eles eram os somatophylax, os sanguinários "guarda-costas" de Antipas.

Eles se encontravam a cerca de 30 ou 40 passos das casas. De um lado da estrada distingui as armaduras e os arcos, bem como as temidas aljavas com as flechas.

Nakebos desceu e me encorajou a segui-lo.

Agora tu verás quem é Antipas...

Os gauleses saudaram Nakebos e continuaram com o que levavam em suas mãos.

Os que estavam na reda alçavam uns cabazes negros (cestas mais fundas com alças), feitos de esparto, perfeitamente cobertos, e os desciam à terra. Ali eram carregados pelos soldados que permaneciam junto ao carro e caminhavam com eles para o penhasco mais próximo. Uma vez na beira do barranco, deixavam cair as cordas que mantinham os cabazes fechados e seu conteúdo era despejado.

Eu tremi, sentindo um calafrio.

Uma bola de serpentes vivas caiu rolando encosta abaixo, perdendo-se no wadi.

Nakebos, malicioso, disse:

O tetrarca quer um inverno tranquilo, sem intrusos...

Isso explicava a abundância incomum de víboras no wadi Zarad. Segundo Nakebos, de tempos em tempos a guarda pretoriana "semeava" as cobras nos arredores de Maqueronte. Que tipo de sujeito eu estava prestes a enfrentar?

E então, quando os soldados voltaram para o carro, me fixei com mais atenção em um deles.

Era ele!

Foi aquele gaulês que me havia feito de alvo com uma flecha na ma­nhã de 12 de junho, quando Yehohanan foi capturado.

Não tinha dúvida: jovem, gordo, com a pele esfolada pelo sol, e os braços e mãos tatuados com serpentes azuis.

Nem olhou para mim.

E os da reda trataram de entregar mais outro lote de cobras.

Mas a má sorte foi que uma das cordas que sustentavam o cesto se­guinte se rompeu e ele caiu, chocando-se contra o solo e abrindo-se. E numerosos ofídios apareceram em cena, dividindo-se na área. Os primei­ros a reagir foram os cavalos. Encabritaram-se e fugiram rapidamente, arrastando a reda e derrubando os gauleses que estavam no alto.

Um dos soldados que estava em pé foi atingido pelo carro e projetado à distância. O outro, o "tatuado", permaneceu imóvel, e prestando máxima atenção às serpentes. O garoto sabia que, se ele se movesse, alguma delas o pegaria. Tinha que esperar e orar, se é que ele sabia fazer isso...

Nakebos, pálido, não soube o que fazer. E indicou calma.

Em poucos segundos, quase todas as víboras haviam desaparecido entre as rochas e na areia daquela paragem. Todas menos uma...

Era uma cobra de pescoço preto, de uns dois metros de comprimento.

Ela se encontrava a uma pequena distância do gaulês, e em posição de ataque.

Era negra, amarronzada, com uma larga faixa escura no pescoço. O ventre brilhava em vermelho. Não demorou em dilatar o pescoço e em colocar-se em posição ereta, emitindo um forte sibilo.

Estávamos diante de uma cobra cuspideira, possivelmente de origem egípcia, bem conhecida por sua habilidade de jogar veneno à distância, especialmente nos olhos de suas vítimas.

Se aquele sujeito fizesse um só movimento, a cobra lançaria o veneno (não o cuspia) e o soldado ficaria total ou parcialmente cego. Aquele tipo de Naja nigricollis não era mortal, mas quase...[78]

E foi nesse instante, em frações de segundos, enquanto a naja estava olhando fixamente para os olhos do gaulês, que tive a idéia (ou, melhor dizendo, que eu recebi a idéia)...

Deslizei os dedos em direção ao topo da "vara de Moisés" e acariciei o botão de laser de alta energia. Aquele dispositivo de defesa foi projetado contra animais, nunca contra pessoas. A potência oscilava entre frações de um watt e várias centenas de quilowatts. O fluxo do jorro de fogo, exibido em IR e, portanto, invisível ao olho humano, poderia furar o titânio a uma taxa de dez centímetros por segundo, com uma potência de 20 mil watts.

À merda com as normas do Cavalo de Tróia!

Ele havia me perdoado uma vez e eu desejava corresponder.

Lancei uma descarga, mas falhei. Não dispunha das "crótalos" e isso fazia o tiro ser mais difícil.

O segundo clarão acertou e o capuz da cobra se desintegrou. O ani­mal retorceu-se durante alguns segundos e acabou morto. Um leve e breve fiozinho de fumaça se elevou naquele lugar.

E o gaulês e Nakebos olharam para o céu.

Por que todo mundo, nesses momentos, age da mesma forma? Por que as pessoas levantam os olhos para o céu?

Não tive dúvida.

Aproveitei-me da situação e me aproximei do soldado.

Ele ainda estava pálido. Olhou para a cobra e depois olhou de volta para o céu azul.

Fui até ele e sussurrei em seu ouvido:

- Tua sorte... Agora não matam...tu!

Ele me reconheceu.

Sorriu de maneira fugaz, eu dei uma piscada, e voltei para junto do não menos atônito alcaide da prisão do Cobre.

Nakebos acabou reagindo e ordenou ao gaulês que cuidasse do companheiro ferido. Não foram necessários muitos socorros ou atenções. O sol­dado se recuperou, e ambos saíram à caça para capturar a reda e as mulas.

Nakebos me fez ver que o lugar não era seguro. Eu lhe dei razão. Muitas (demais) serpentes por metro quadrado...

E retomamos a estrada para Maqueronte.

Fiquei surpreso. O silêncio de Nakebos nos sete quilômetros e meio que restavam até o topo do cone branco não era normal. Não devia esque­cer. Nakebos era um árabe inteligente, e homem de confiança de Antipas. Além de alcaide do Cobre, era o capitão da guarda do Tetrarca.

Quase esqueci. Desde aquela época, o gaulês tatuado recebeu o ape­lido de Ti. Esta não seria a última vez que voltaria a vê-lo. Santo Deus, e sob que circunstâncias!

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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