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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CÉU EM CHAMAS / Janice Diniz
CÉU EM CHAMAS / Janice Diniz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

M A T A R A N A

Livro II / Primeira Parte

CÉU EM CHAMAS

 

        Thales Dolejal jamais fora um peão de fazenda ou um caubói de qualquer espécie. Nascera na década em que se pregavam a paz e o amor. Aos doze anos, o pai, oriundo de uma geração de agricultores, dissera-lhe:

       — Vá morar com seu avô no garimpo, fazer a vida. Aqui, a gente não tem vez, vamos capinar na terra dos outros até morrer numa maca no corredor de um hospital.

       Aos doze, a noção de vida e morte era a mesma que a de disco voador. Ele queria ficar no sítio com os pais e jogar futebol. Era bom na zaga, alto, forte e destemido. Marcava os atacantes adversários sem cometer faltas. Depois que vinha da escola, atirava a mochila sobre a cama, almoçava e saía para os treinos. Treinava na várzea, no melhor estilo, como os bons um dia treinaram. O estômago quase vazio e a cabeça cheia de sonhos. Levando a bola de lado, com o pé, protegendo-a com o corpo, ninguém o alcançava. A menos que o derrubassem. Havia sempre um desavisado que se arremessava contra ele, contra a sua torre de ossos e carne. Quando o acertavam e o solo recebia-o do golpe, injetava no sangue o combustível para a explosão. Pavio curto. Briguento. Atirava-se sobre o adversário e o enchia de socos e pontapés. Batia até ser arrancado de cima do incauto. Voltava para casa com a camiseta rasgada, a pele esfolada, o sangue seco no canto do nariz e da boca e o amargor debaixo da língua. Thales detestava interromper o que mais gostava de fazer na vida para ter de aplicar lições nos mais fracos. E, por ser forte antes mesmo de ser homem, decidiu-se que iria para o centro-oeste viver e trabalhar com o avô, pai de seu pai. A decisão não partiu de uma reunião familiar democrática entre ele e os seus progenitores. A ditadura começava dentro de sua casa e se estendia pelo país, que, naquele tempo, literalmente marchava.

       O solavanco na estrada despertou-o dos devaneios. O latifundiário evitava viagens nostálgicas, uma vez que nada que deixara para trás valera grande coisa. A tristeza que experimentava ao permitir-se recordar a juventude relacionava-se muito mais a si mesmo que aos outros. Algo misterioso acontecia-lhe ao olhar para trás, pois o sentimento que o consumia nada mais era que a falta que sentia de si, de quem um dia ele fora. Uma época em que ainda acreditava em dias ensolarados, na bola de futebol exprimida contra a rede e no paraíso depois da curva na estrada.

       Voltou-se irritado para o motorista da Silverado. Este, percebendo de esguelha o movimento do fazendeiro em sua direção, lançou-lhe um olhar envergonhado e apontou para a estrada:

       — Desculpe, patrão, mas não fui eu que abri essas crateras no asfalto. — disse o rapaz loiro, com um sorrisinho no canto dos lábios.

       Sustentou por alguns segundos o olhar zombeteiro do subordinado. Era estranho que ele ainda estivesse ali, ao seu lado, depois de tudo. No entanto, desde que o resgatara da mesma estrada em que trafegavam naquele momento, sabia que somente ele, Franco, iria se manter leal até o fim dos seus dias. Não era novidade que o rapaz era o melhor entre os seguranças da Arco Verde e, muito mais que isso, era o seu segurança particular e braço direito. Mas havia algo nele, bem no fundo dos olhos que sempre mudavam o tom do azul, algo que o intrigava e também o entristecia. Era como se Franco jamais estivesse completamente ao seu lado e a sua lealdade fosse simulada. Ironicamente, resgatara-o de seu destino também aos doze anos.

       — O que guarda aí, dentro da sua cabeça, Franco? — foi direto ao alvo, perscrutando-lhe a feição antes sardônica, agora, confusa.

       Por um instante o rapaz manteve-se em silêncio. Era provável que digeria a questão e escolhia as palavras mais apropriadas para responder. Ele não dava ponto sem nó. A impulsividade natural, às vezes, era enganada pelo raciocínio frio de alguém criado à beira da BR-163 e adotado por um bando de pistoleiros.

       — Além do excesso de caipirinha?, quase nada. — brincou, tentando aliviar a tensão.

       Thales apertou os lábios como se fazia quando a paciência em se explicar era curta. Abriu o porta-luvas e retirou o celular. Antes de digitar os números de um laboratório de Análises Clínicas de Cuiabá, ordenou:

       — Tenha mais cuidado ao dirigir a minha camionete. Deu para perceber que não é a sua sucata vermelha.

       Franco achou graça e balançou os cabelos loiros jovialmente:

       — Deu “mesmo” para perceber. — enfatizou para, em seguida, reduzir a velocidade e informar: — Ainda mais quando o Bronson não leva a sua camionete, patrão, para a revisão como o combinado.

       Voltando-se para o motorista enquanto esperava a ligação ser completada, Thales arqueou a sobrancelha, curioso:

       — Por que está parando?

       — Tem alguma coisa errada, a direção está pesada... Acho que temos um pneu furado ou um problema mecânico. Vou parar e dar uma olhada. — resolveu, jogando lentamente o veículo para o acostamento até estacioná-lo à beira do mato baixo e seco.

       Automaticamente, o fazendeiro relançou um olhar para o retrovisor e avistou a estrada nua. Início de tarde em Matarana, o branco espraiava-se soltando no ar a fumaça num tom quase cinzento. O tráfego naquela parte da rodovia federal era menos intenso. Mas o que o incomodou não foi a parada, e sim o motivo para pararem. Viu quando Franco pegou a chave da ignição e preparou-se para descer. Puxou-o pelo antebraço fazendo com que se virasse:

       — Que conversa é essa?, a camionete é nova. — afirmou, mal descolando os lábios.

       Franco apenas sorriu levemente e voltou os olhos para a mão como uma garra no seu antebraço.

       — Sabe o quanto é perigoso para mim esse tipo de situação. — insistiu o fazendeiro.

       — É por isso que tenho de resolver o quanto antes o problema. — retrucou com olhar duro e a mão enfiada no cós do jeans, pronta para pegar a automática. — Fique aqui, no ar-condicionado, patrão, que resolverei isso rapidamente.

       Talvez fosse o modo do garoto falar, sempre baixo, calmo e mordaz. Talvez fosse o olhar de outro mundo, de outras vidas, um olhar insistente e seguro de quem habitava o planeta havia milênios mas com o pé em outro lugar fora dele. Talvez a falta de comunicação com Cuiabá, já que não conseguira completar a ligação, fizessem os pensamentos de Thales rodarem em direções obscuras em relação à sua versão vinte anos mais jovem. Ele temia a verdade.

       — Certo, mas não demore, estamos em menor número, caso os homens do coronel decidam resolver negócios pendentes.

       Cinco minutos depois, o rapaz voltou e falou que eles tinham um pneu furado. Parecia irritado por ter de trocá-lo. Bufando, começou o serviço. Aproveitando a distração do outro com a troca do pneu, Thales tentou mais uma vez falar com Cuiabá. Percebendo, então, que era impossível, juntou-se a Franco, mantendo-se de pé ao seu lado, sem esboçar qualquer movimento para auxiliá-lo.

       — Você furou o pneu quando passou por aquele buraco. — acusou-o, descansando os olhos na paisagem à sua frente, a planície de troncos retorcidos e queimados.

       Um motoqueiro com capacete e roupa escura passou em alta velocidade. Thales bocejou e fez um movimento em direção à camionete. Tentaria cochilar até chegarem de volta à fazenda. Retornava de Barretos, de um estúpido e infrutífero leilão de cavalos. Ansiava por um banho e uma cama. No entanto, não seria nesse momento que descansaria no conforto da cabine da camionete. Voltou-se para Franco ao vê-lo, ainda agachado diante da roda traseira do veículo, fitando a lataria como se estivesse hipnotizado. Era uma imagem estranha. Nada em sua postura se movia além dos cabelos com o vento morno. Pensou em chamá-lo para tirá-lo do que lhe parecia uma espécie de transe, mas não foi necessário. O garoto ergueu-se devagar e falou tão baixo que Thales teve de pedir para que repetisse:

       — Cortaram o pneu. É uma emboscada.

       Ao acabar de proferir a sentença, os dois ouviram novamente o motor de uma motocicleta roncar. Na linha do horizonte, o motoqueiro dera meia-volta para seguir pela pista contrária ao encontro deles. Acelerava, agora, ao ponto de em questão de segundos alcançá-los. Uma de suas mãos foi retirada debaixo da jaqueta jeans escura, a ponta da pistola espiou o alvo e disparou. O estampido seco reverberou pelo prado despojado de veículos.

       Tudo aconteceu tão rapidamente que Thales não esboçou reação. Ouviu o barulho do celular espatifar-se no asfalto e levou a mão ao peito. Baixou a cabeça para ver o sangue manchando a camisa italiana. Não encontrando a nódoa nem a dor, observou a moto distanciar-se e respirou aliviado. Somente depois de certificar-se de que estava fora de perigo, ele viu o rapaz caído aos seus pés. A mancha de sangue estava era na camisa de Franco, na linha do coração. Abaixou-se e tomou-lhe o pulso. 

       — Vou levá-lo para o hospital. Aguenta firme! — ordenou.

       — Não sei se poderei obedecer ao senhor dessa vez... — replicou, com um sorriso frágil.

       O rosto pálido e os olhos toldados por nuvens. Era como se ele estivesse se preparando para partir. O fazendeiro jamais permitia uma transgressão às suas ordens. Pegou-o nos braços e o pôs no banco detrás. Em seguida, pisou fundo no acelerador, a borracha do pneu riscando o asfalto.

       — A 163 matou a minha mãe e me matou. — ele dizia, olhando para o teto, sem conseguir se mexer.

       — Por que não atirou antes de ele atirar, Franco? Por acaso acha que é imortal? — perguntou com rispidez, contraindo os lábios e de olho no retrovisor, vendo-o imóvel.

       — Nasci para salvá-lo. — afirmou numa voz quase sumida.

       Thales sentiu uma contração dolorida na boca do estômago. Não precisou se virar para saber o que havia acontecido.

         

                      Final de Setembro, 2011

        O relógio despertou no mesmo horário de todas as manhãs, inclusive aos sábados, domingos e feriados. Eram sete horas quando Thales Dolejal, proprietário de fazendas no Mato Grosso e Pará, levantou-se da cama com a testa porejada de suor.

       Nas últimas semanas a angústia assolava-o se transmutando em repetidos pesadelos misturados às recordações reais do seu passado. Acordava com o coração acelerado, após reviver nos sonhos o dia em que Franco levara um tiro para lhe salvar a vida. E ele ainda nem sabia que salvava o próprio pai.

       Agora, separados, esbarravam-se em poucas ocasiões. Na maior parte das vezes, quando Thales ia à prefeitura ou ao seu escritório no centro e observava de longe a picape vermelha estacionada diante da delegacia. Outras vezes, encontrava-o fazendo a proteção armada do coronel Rodrigues quando o último resolvia passar a semana na sua fazenda em Matarana.

       Abandonou-se debaixo da ducha, o jato forte da água morna açoitava a pele de suas costas e aliviava a pressão na nuca. Era um homem que nunca relaxava. A contração de seus músculos revelava-se no raro sorriso, quase sempre forçado, na postura da coluna vertebral ereta e na maneira contida de expor suas emoções. Ao fechar o registro do chuveiro e secar o corpo na toalha e pô-la ao redor da cintura, já havia decidido o que fazer quanto ao filho único. Vestiu-se e desceu para o escritório.

       Abriu os janelões que separavam o ambiente interno da sacada. E, como fazia quando tinha de alinhavar os pensamentos, se pôs diante de suas terras. Empertigou a coluna e ergueu ligeiramente o queixo, aspirando no ar o odor característico das plantações de soja, da terra úmida e da atmosfera morna. Pegou-se retesando os maxilares e passeou os olhos em revista ao prado, encharcado pelos irrigadores eletrônicos, até firmá-los na figueira, a copa alta e densa e galhos como artérias tortuosas.  Quase podia ver os pés de Onório Dolejal balançando no ar. O marco do início de seu reinado, em Matarana, começava ali, naquela árvore que fornecia uma das melhores sombras diante da casa-sede.

       Abandonou a paisagem verdejante e sentou-se na poltrona de espaldar alto. Recostou-se, tranquilamente, uma vez que sabia o que fazer e como fazer. Telefonou para um de seus advogados e determinou que entrasse em contato com o coronel Rodrigues.

       — Peça para que Rodrigues demita Franco. — mandou, sem acréscimo de justificativa.

 

       Para Karen o gosto do fracasso era tão conhecido que despejava da glândula salivar como parte de seu organismo. Todos os dias se sentia a pior de todas. A pior mulher, a pior namorada, a pior mãe. Não tinha uma carreira profissional nem diploma algum. O único patrimônio fora vendido para um coronel sem farda. Um futuro incerto e a certeza de que por mais que lutasse jamais alcançaria o primeiro lugar no pódio. Nem o segundo. Porque ela não era uma mulher de sorte. Era tão-somente uma gladiadora na arena farpada. Uma pessoa que se reconhecia sem disfarces ou hipocrisia. Karen Lisboa sabia muito bem quem era. Ela era a vaca louca que corria desvairada pelo prado. Ela era aquela que trincava os dentes a cada surra da vida. E, ainda assim, conseguia respirar o ar mais puro da cidade.

       Uma nesga de sol se espalhou pela mesa do bar. Estavam em Santa Fé, e as nuvens se juntavam para despejarem água sobre a região. Desde pela manhã, o cinza chumbo era a cor predominante sobre a brancura regular. Avançando pouco a pouco e rompendo o colchão de fumaça, nuvens densas ameaçavam pôr um fim à estação do estio. Em algumas horas, uma tempestade transformaria a paisagem e o clima. Mas Karen somente pensava em sorver a sua cerveja e acertar os detalhes da primeira corrida do semestre.

       Everaldo desaparecido, ela precisava agendar as suas próprias corridas. Vitorino, braço direito do coronel Marau, organizava a competição.

       O circuito se estendia de Matarana a Santa Fé, em lugares vigiados por um grupo de pistoleiros das fazendas locais. Um novo fôlego para a competição. Apenas dois cavalos correndo a distância de cem metros já não rendiam boas apostas. Era preciso incrementar as disputas. O fato de uma mulher deixar os caubóis para trás comendo poeira, não era mais uma novidade capaz de arrancar a grana da audiência para apostas de alto nível. Ela entendia o ponto de vista de Vitorino. Boa parte dos apostadores trabalhava nas fazendas. Uma vida dura e desgraçada. Duas vezes por semana, eles se reuniam para beber cerveja ao redor das picapes e dos cavalos e fazer suas apostinhas. Valia pelo dinheiro extra. Quase nada, ninguém enriquecia. No entanto, valia também pela adrenalina, os gritos, os xingamentos, o coração na boca. Bêbados e calejados, vibrar à beira da estradinha de chão batido era melhor que pescar no Rio Verde ou jogar bocha na praça.

       — Vale tudo para chegar até o fim. — começou Vitorino, citando as novas regras: — Emparelhar animal com animal, se jogar para cima do adversário e lutar no chão. O primeiro a voltar a montar e cruzar a linha de chegada é o vencedor.

       — Que merda é essa? Não vou machucar o Prefontaine. — disse resoluta.

       — Ninguém quer que os bichos se machuquem. Acha que é fácil manter um cavalo? — falou impaciente. — Não entendeu. Vale tudo é para os humanos. Meter a mão na cara, soco na barriga, a porrada pode comer geral desde que, — nesse momento ele fez uma pausa de suspense e continuou em um tom significativo: — volte pra cima do cavalo e ultrapasse a linha de chegada.

       — Não sei, não, é muito violento. — ponderou, franzindo o cenho.

       — Olha só, ninguém usará armas, terá revista. Além disso, o coronel bancará as apostas. Todas começarão a partir de dois mil reais. O que acha?

       As corridas eram ilegais. As apostas eram ilegais. E as regras da competição absurdas e violentas. Ela vivia com um policial que seguia as regras da legalidade. Dividia a cama com um homem que acreditava que o certo era fazer as coisas certas. Karen fazia as coisas erradas. Que, às vezes, davam certo.

       — Não bato em irmã. — afirmou convicta.

       Vitorino engasgou-se com o gole de cerveja. Apertou os olhos e exclamou entre surpreso e ligeiramente irritado:

       — Por Deus, que tipo de pessoa pensa que sou? Nada de freiras competindo! Que é isso, porra?!

       Karen suspirou impaciente e tirou o outro da ignorância:

       — Quis dizer que não bato em mulher. Se outra doida resolver correr será apenas em cima do cavalo, não cairei no chão com ela. Agora, quanto aos caras, sem problemas, meto a mão até tirar sangue.

       — Ô dona Karen, acha mesmo que tem outra doida como você competindo?

       — Sempre aparece uma. — deu de ombros e refrescou a sua memória: — Lembra aquela lésbica de Belo Quinto?

       — Ah, claro, a do moicano, mas ela tinha brigado com a namorada e precisava descarregar a raiva praticando esportes. — falou ele, com um sorrisinho ao lembrar-se da cena. Os homens enlouquecidos enquanto duas mulheres loucas de fúria pegavam fogo sobre os cavalos. — Que corrida! Teve cara que nem usou Viagra naquele dia, sabia?

       Karen torceu o lábio para baixo, emborcou o resto da cerveja e se ergueu para sair.

       — Se o delegado de Matarana souber alguma coisa sobre essas corridas, homem nenhum precisará mais de Viagra porque não terá o que levantar. Entendeu, Vitorino? — prometeu com uma carranca dos diabos.

       O outro riu pela boca e pelo nariz, fazendo um som estranho.

       — Acha que sou louco? Quem quer o caubói da lei nos seus calcanhares? — resmungou.

       O braço direito do coronel meteu os olhos azuis no traseiro da mulher que atravessava o bar sem olhar para ninguém, as passadas largas, o caminho aberto pelos olhos e a fúria contida. Era uma fêmea de ossos grandes e carnes revestindo músculos sempre tensos. Se Matarana entrasse em guerra, os generais recrutariam aquele soldado. Até ele, Vitorino, homem criado à base da força e aspereza, tremia ao vê-la estreitar os olhos escuros antes de engatilhar e fulminá-lo com palavras. Tinha guerra no sangue, aquele vulcão chamado Karen Lisboa. Era possível que nocauteasse seus próximos adversários.

       Porém, o dia em que ela caísse e fosse enfim destruída, ele encheria os seus bolsos de dinheiro.

       Seria, então, um dia bom.

         

       O manga-larga galopava pelo prado seco e batido, a terra à mostra, agredida, exposta como uma doença no couro cabeludo. Os cascos do animal socavam forte, as pernas estiravam-se, os músculos pressionavam o couro. Ele levava em sua montaria o homem que preferia reconhecer os seus domínios no interior da camionete de luxo com ar-condicionado a fazê-lo como naquela tarde, quando decidira cavalgar até cansar o corpo. O vento morno balançava o chapéu Stetson e ameaçava arrancá-lo de sua cabeça. Avistou um emaranhado de árvores de copas altas e frondosas e decidiu apear para que Nero descansasse. Thales puxou ligeiramente as rédeas até se ver debaixo dos eucaliptos que os protegiam do sol escondido por entre as nuvens de fumaça.

       Ainda não estava cansado o suficiente para voltar para casa. Acendeu um cigarro com a mão em concha e tornou a guardar o isqueiro no bolso traseiro do jeans. Os olhos azuis varreram a amplidão do terreno à sua frente. Se fosse um tipinho emocional em vez de cavalgar até distender um músculo estaria enchendo a cara com o puro malte escocês. Mas não fora criado para ser um fraco. As surras do velho Onório serviram para alguma coisa, afinal.

       Recriminou-se por ter esquecido os óculos escuros sobre a mesa do escritório, toldou os olhos com a mão e não avistou vivalma por aquelas bandas. Livrou-se da camisa, o suor escorria-lhe pelo tórax largo. Possuía a constituição física grande apesar de não passar dos um metro e oitenta. O abdômen enxuto e as coxas que forçavam o tecido do jeans não foram forjados com equipamentos. Se a musculatura do seu corpo de 42 anos era como a de um jovem de menos de 30, devia-se ao trabalho duro no garimpo, quebrando pedras, carregando outras, como um infeliz apanhando da vida. O que o transformara em um bruto. Um sofisticado empresário do agronegócio. Mas um bruto.

       Naquela tarde, ao voltar de uma reunião na sede do partido político de um dos seus advogados, que disputaria a eleição à prefeitura de Matarana — ele decidiu queimar energia para controlar a vontade de procurar Karen. O noivado com a texana recrudescera a vontade, sempre refreada, de tê-la sob seu jugo outra vez. Além de não ser um fraco também odiava perder. Mesmo que a tivesse dispensado, aberto a porteira para ela ir embora. Esperava que voltasse. Rastejando, ganindo, implorando. Mas voltara armada e disposta a matá-lo. Ah, Karen, você conseguiu. Atingido por um raio que o partira em dois. Duas metades de si que se enfrentavam em uma luta constante e sem vencedores. Ora desejava-a de tal forma que tinha de cavalgar pelo prado para aquietar cada milímetro do corpo, ora desprezava-a ao ponto de enojar-se por tê-la como amante por dez anos. Uma vaca egoísta. Uma meretriz. Como a mãe de seu único filho. Somente vadias, todas, como a noiva texana paga a dólar; uma negociata entre ele e o pai da loira bulímica. No entanto, o que realmente incomodava Thales Dolejal era a mudança no comportamento da ex-amante. À época em que estavam juntos, ela transara com pelo menos quinze infelizes. Uma infidelidade bastante leal. Mas desde que se amontoara na casa do delegado jamais soubera que pulara a cerca. Talvez Karen Lisboa tivesse realmente medo da polícia, pensou com ironia, sabendo de antemão que Rodrigo Malverde mantinha silenciosa e eficiente campana ao redor de sua suposta mulher. Até quando Karen se deixaria ser vigiada era outra questão. Thales sabia tudo sobre ela, tivera-a debaixo de si muito mais vezes que o seu atual amante e qualquer outro homem que ela possuíra na vida. Mais dia menos dia, ela pularia a cerca e fugiria outra vez. Uma mulher selvagem não merecia o cabresto. 

       Um corte abrupto separou-lhe dos seus devaneios. Ao celular, Bronson.

       — Patrão, a Lúcia quer mais dinheiro. A menina está cada vez mais esganada. — o segurança sempre ia direto ao ponto.

       Lúcia...

       — Quem? — indagou impaciente.

       — A ex-mulher do Everaldo. Está ameaçando abrir a boca, falar com o delegado. Diz que a mesada é minguada demais, quer parar de trabalhar e...

       — Viver de chantagens? — interrompeu-o, perguntando num tom de deboche, alçando a sobrancelha diante da ousadia da outra.

       — Bem, ela acha que merece mais, pôs na cabeça que a mentira inventada para o delegado rende mais do que mil reais por mês.

       — É mesmo? — ironizou, acrescentando um tom de rispidez ao prosseguir: — Então, ela quer contar ao Rodrigo que o Everaldo foi contratado para matar o Mendes? Humm, é certo que o delegado fará dessa investigação a missão de sua vida. — concluiu, permitindo-se pensar alto.

       — Pois é, patrão. O problema é que não sabemos o quanto o Everaldo sabe. — o pistoleiro coçou o cabelo grisalho e oleoso e continuou: — É melhor não arriscar.

       — Que merda, Bronson, não consegue resolver isso?

       — Tentei, cheguei ao ponto de pedir para que deixasse isso quieto. Poderia recomeçar a vida e até viver comigo inclusive. Sabe, a Lúcia é bonitinha, novinha e só quer alguém pra proteger ela.

       — Mas é uma vagabunda. — interrompeu Thales com secura. — Diga para me ver hoje à noite. Vou mostrar, Bronson, como se trata esse tipo de gente.

       O fazendeiro tornou a montar no manga-larga. Puxou as rédeas indicando ao cavalo o caminho a seguir.

 

       Não era para ele estar naquele lugar. Definitivamente, não. Dispensara um churrasco com a família em função do trabalho. E, ainda por cima, não fazia ideia de onde estava sua namorada.

       Quando Rodrigo Malverde entrou no Colono Tranquilo a confusão já estava instalada. Ele ajeitou o chapéu, erguendo ligeiramente a aba e tornando a baixá-la, para ter uma visão melhor da cena que se desenrolava no pior bar da cidade. Pôs as mãos nos quadris e descansou o corpo nessa posição. Avaliava a situação. E a situação era a seguinte: um garoto esquálido, cabelo loiro, seco e sujo, rosto avermelhado e olhos injetados do tamanho de ovos fritos, apontava a faca para quem ousasse aproximar-se dele. Vestia jeans duro de poeira e uma camiseta que um dia fora da seleção brasileira de futebol, um modelo amarelo-morreu, roubada do varal de algum incauto. A faca ainda não fora usada, como o delegado bem observou ao mascar pela terceira vez o chiclete que, logo depois, foi cuspido na lixeira ao seu lado. Sim, ele sempre estava perto do lixo. A faca ainda não fora usada porque estava limpa e o inox refletia as sombras distorcidas dos rostos dos policiais e de mais três camaradas que haviam decidido se embebedar na hora errada.

       Observou com atenção, sem mover um músculo da face, o dono do bar atrás do balcão com uma espingarda apontada para a cabeça do garoto surtado. Ao fundo, entre a jukebox e uma vassoura piaçava, um quarentão segurava uma garrafa quebrada e a posição de seu corpo sugeria que estava prestes a atacar. O problema era que ele estava torto de bêbado e balançava como se dançasse a chula em câmera lenta ao redor da outra vassoura que jazia aos seus pés. A nata da sociedade mataranense reunida no bar com iluminação precária e furos de projéteis nas paredes de madeira. A nata mesmo — conjecturava Rodrigo, desviando o olhar do homem da chula para o guri da fissura — uma vez que a parte do leite que se grudava na língua para ser logo cuspida era de fato a nata. Enganchou dois dedos no cós do jeans e apontou o indicador discretamente para o dono do bar. Falou numa voz suave e determinada:

       — Larga essa merda e cai fora. — não era uma sugestão.

       Como o outro bancou o surdo, ainda empunhando a arma como a cruz diante de satã, o delegado teve de raspar a garganta e, mantendo os olhos no guri com a faca, se impôs:

       — Ô amigo, quer que eu chame a Bonnie para pegar a sua arma ou prefere essa policial bonitona para algemá-lo à caçamba da minha picape?

       O dono do bar tivera problemas com a própria mãe lá pelos seus seis anos de idade. E, desde então, era resistente a autoridades femininas. Entretanto, ele conhecia muito bem o caubói da lei, o cara que mantinha a ordem e os trilhos retos em Matarana. Conhecia também Adele, que lhe apontava a Glock com a mãozinha gorducha cheia de anéis. Manuel, proprietário do Colono Tranquilo, sabia também sobre a fama de louca-na-TPM da cadela dobermann do delegado. Então por que simplesmente não deitar a espingarda sobre o balcão, devagar, erguer as mãos e procurar uma saída para manter a dignidade intacta e o ego bem calibrado. Era melhor obedecer à lei do que ser preso por porte de arma, por exemplo.

       — Esse guri está chapado! Entrou aqui fugindo de não sei quem. Já estava armado, se enfiou debaixo das cadeiras e depois começou a ameaçar a gente. Já disse!, chapadão, o desgraçado.

       — Muito bem, fez o seu relato, agora, retire-se do recinto. — ordenou Rodrigo, olhando para Manuel, a sua visão periférica captando movimentos aqui e ali. E, antes que o viciado avançasse na direção do dono do bar, falou com aspereza: — Fique onde está, João Alfredo Marau!

       Adele fez um gesto irritado com a mão chamando Manuel e indicando a porta de saída. Baixou a arma e tornou a travá-la. Os outros dois policiais eram militares, da singela corporação da cidade. Meia dúzia de PMs para ficar de olho em 13 mil habitantes. Em uma terra de pistoleiros, a segurança pública cedia espaço e função à privada. Os endinheirados caprichavam na ração dos seus seguranças, forneciam habitação de primeira nas fazendas ou em quartos de hotéis da região. Compravam-lhes a lealdade e a discrição. Os pobres, por sua vez, se defendiam como dava. Ora esperando pela boa vontade da polícia militar, ora se associando aos traficantes de drogas da região, um grupinho ainda modesto que plantava maconha no quintal de casa. A escrivã relançou um olhar para o garoto com a faca e, depois, para o delegado e concluiu:

       — É óxi, chefe. — fitou o relógio no pulso — Mais uns minutinhos, e ele voltará ao normal, quero dizer, acaba a maluquice.

       Rodrigo assentiu lentamente, apesar de não estar com paciência para esperar o efeito da droga passar. Pela aparência do neto do coronel Marau, esquelético, cheio de manchas na face, as narinas dilatadas de medo e os ossos dos maxilares projetados contra a pele áspera, a conclusão de Adele parecia perfeitamente razoável. A paranoia característica do uso do óxi, assim como a do crack, alterava o comportamento do viciado. A maconha dava-lhes um ar de idiotas inofensivos. Mas a rapadura do diabo, como era apelidado o óxi, tornava-os loucos e agressivos. E como não enlouquecer se eles fumavam-no em latas e cachimbos com a pasta base das folhas da cocaína acrescidas com querosene, gasolina, fluído de bateria e cal virgem?

       Ergueu as mãos e procurou manter contato visual com João que, arfando e olhando para tudo e todos nervosamente, tremia a mão que ameaçava esfaquear alguém.

       — Escute aqui, cara, vou me sentar e esperá-lo ficar calminho. — ele falou devagar.

       Fez o que disse, puxou a cadeira sem desviar do semblante transtornado do jovem. Ele emitia um ruído alto e rouco, mas não falava. O seu olhar falava por si. Havia muito de medo e desconfiança.

       — Vamos nos acalmar? — insistiu o delegado, fazendo sua pergunta retórica enquanto punha as duas mãos sobre a mesa — Não usarei minhas armas, e você larga essa faca no chão. Combinado?

       — Falar com drogados é falar com as portas. — debochou Adele, sentindo o olhar fixo do chefe sobre si: — Oh, desculpa minha falta de humanidade! Pouco me importa se esse piá tem 14 anos ou 32. Ele tinha tudo na vida e largou para ficar agachado no meio do mato fumando o cachimbo da guerra. — resmungou.

       — Ok, Gandhi às avessas, quer levar todo mundo para fora e me deixar aqui com meu novo amigo? — alçou a sobrancelha à espera que a escrivã se retirasse e levasse consigo os policiais militares que aguardavam qualquer vacilo do garoto para encherem-no de porrada.

       Ele não precisou pedir uma segunda vez. A escrivã fez um sinal para os PMs seguirem-na. Relançou um olhar para o guri, ainda com ar de tresloucado e com a faca espetada no ar, sem mexer um centímetro do lugar onde estava. Em seguida, deu um tapinha amistoso no ombro do chefe e sussurrou:

       — O Marau pouco se importa com o garoto, viu? E a mãe não quer vê-lo nem pintado de ouro. Parece que roubou até as calcinhas dela. — piscou o olho e saiu, seguida pelos homens de uniforme e coturno.

       Rodrigo inspirou pesadamente enquanto se ajeitava na cadeira, espichando as pernas e cruzando-as debaixo da mesa. A ideia era diminuir a tensão no ambiente. Por isso chispara os colegas de ofício. Riscou o fósforo e acendeu um cigarro. Por trás da fumaça, com as pálpebras semicerradas, percebeu um filete de urina escorrendo por entre as pernas magras de João, e o fato de ele estar urinando significava o quanto sentia pavor, tomado que estava pelo efeito da droga. Seu pensamento, então, voou para Johnny e, essa rápida e profunda viagem, custou-lhe uma contração de angústia no peito. Não era justo uma criança sofrer tanto, ele pensou.

       — Quem está atrás de você? — indagou num tom brando para transmitir segurança, mergulhando no delírio a fim de acessar a sua mente.

       Quando João falou não abaixou a faca nem relaxou na postura de quem espera por um ataque para atacar. Descolou os lábios secos, dilatou as abas do nariz e soltou palavras impregnadas de veneno:

       — Eles estão escondidos e vieram pra me levar. Eu sei o que digo! — insistiu, elevando a voz, o olhar desvairado. — Não tenho como escapar. — e, dizendo isso, fez o inesperado, virou a ponta da faca para si à altura do abdômen.

       Rodrigo deu um salto da cadeira, sacou sua automática e, fechando a cara numa expressão de raiva contida, perguntou sem gritar mas com bastante ênfase:

       — Onde eles estão, João? Quer ser salvo? Me diz onde eles estão? — franziu a testa, alçando as sobrancelhas salientando a interrogação.

       A cabeça do menino tremia como se ele tivesse Mal de Parkinson. Não tinha medo da arma apontada em sua direção, de nenhuma delas. Quando se voltou devagar para o fundo do bar, o braço estendido, o dedo indicador mirado para a fileira de zumbis cuspindo sangue à espera de lhe estraçalharem o corpo, respondeu balbuciando:

       — Ali... todos... Eles estão ali.

       Foi tudo o que Rodrigo ouviu. Descarregou a pistola e decorou com mais buraquinhos a parede do Colono Tranquilo. Os policiais entraram afoitos, revólveres em punho e pararam antes de alcançarem a metade do bar, debaixo do lustre de pingentes de plástico, comprido e empoeirado. Adele surgiu por trás dos militares, a feição constrita que logo se fez em um sorriso de satisfação. Tudo bem com o seu chefe, não matara ninguém à toa.

       Rodrigo ergueu a arma, sinalizando aos policiais que estava tudo certo. Depois tornou a enfiar a Glock no cós dianteiro do jeans e recebeu, para o seu espanto, um abraço trêmulo e apertado. João, viciado e infeliz, chorava contra o corpo do delegado. Constrangido, não sabia o que fazer com os braços e com aquele corpo frágil escorando-se no seu como uma boia de salvação. Não o abraçou, mas se deixou ser abraçado. Voltou-se para a parede onde antes havia uma vassoura piaçava, agora, baleada.

       Ele não permitiu que algemassem o menino agarrado à sua cintura. Fez um sinal com a mão para se afastarem. Fitando Manuel perguntou com a cara de poucos amigos, induzindo-o à resposta pretendida:

       — Vai registrar queixa?

       Manuel deu de ombros, subitamente, envergonhado.

       — Bem, ele não machucou ninguém, só afugentou uns bêbados... Além disso, caindo aos pedaços ou não, ainda é um Marau, melhor deixar quieto, doutor.

       Rodrigo sorriu com escárnio e voltou-se para João. Afastou-o de si o suficiente para encará-lo e dizer:

       — Vamos ter uma conversinha com sua mãe. Conheço um lugar em Santa Fé que cuidam de humanos com problemas. Lá, é impossível que os mortos-vivos o alcancem, entendeu?

       Recebeu um olhar molhado e pesado de dúvida e insegurança. Foi aquele olhar que detonou o início de uma caçada. Já bastavam os latifundiários gananciosos, os pistoleiros sem escrúpulos, a Vila Zumbi apodrecendo à beira da estrada, as emboscadas, o dinheiro sujo e a especulação imobiliária. Não, o tráfico de drogas jamais dominaria Matarana.

       O delegado ajeitou o chapéu de caubói e levou a mão maquinalmente ao peito, como se tocasse na estrela do xerife.

         

       Ele tinha os olhos de Thales. E a postura de um Dolejal. Agora sabendo de sua origem, Nova se sentia ainda mais fascinada com a aparência do pai de seu filho. O loiro à sua frente, sentado sobre uma das caixas de papelão com livros ou panelas – ela, emocionada ao revelar a Franco sobre a gravidez já não mais conseguia ler a etiqueta – tinha um dedo sobre o lábio num gesto que denunciava a sua preocupação. Acabava de saber que aos vinte e dois anos seria pai. Digeria a novidade em silêncio. Vagueava por uma estrada que somente ele conhecia e tinha permissão. O cabelo cor do trigo e sempre despenteado caía-lhe sobre a face bonita e circunspecta. Havia poucos minutos enfiara-se no banheiro e se trancara à chave. O barulho da água jorrando na pia. Um som abafado e rouco. Ele chorava. E, ao ouvi-lo chorar, os olhos de Nova encheram-se de lágrimas.

       Tudo o que ela mais quisera na vida fora encontrar o amor para, enfim, pari-lo nove meses depois. Ele estava dentro do seu ventre crescendo, respirando, vivo. O homem que realizara o seu sonho era um pistoleiro, segurança de fazendeiro criado pelo abandono e pela rejeição. Os piores pais. Mas o filho de Dolejal superara a própria origem e destino. Completamente desapegado da fortuna que o esperava do outro lado de uma porteira tantas vezes arrancada do solo. O herdeiro de um imponente feudo desfizera-se do conforto e luxo em nome do amor. E também da falta do amor.

       Quando saiu do banheiro, a ponta do nariz avermelhada, ela examinou a expressão do seu rosto.

       — Me diz que está feliz, por favor.

       — Isso é importante? — ele rebateu sem olhá-la, sentando-se numa das caixas, procurando os cigarros apalpando os bolsos da camisa e do jeans.

       A pergunta pegou-a de surpresa. Ficou observando-o acender o cigarro e o tragando fundo enquanto balançava a cabeça e jogava ligeiramente as mechas loiras para trás. Havia uma nota arrogante naquele gesto, um resquício de pose de superioridade que costumava usar quando na defensiva. Por causa de tal atitude ela anunciou a sua devida posição no mundo, mesmo o amando como Yoko amou John:

       — Se não está feliz em ser pai, a gente fica por aqui. De minha parte, já me sinto realizada, o meu sonho sempre foi ser mãe. — falou com calma, permitindo-se um sorriso autoconfiante.

       — Não sabe o que está falando. — disse sério, as sobrancelhas quase juntas.

       — Sei exatamente o que quero, Franco. Cabe a você decidir o que fazer.

       — Nossa, que mulher desalmada! — debochou com um sorriso torto e emendou: — Deve estar bem feliz do feito, não? Engravidou de um merda como eu, sem eira nem beira e com a genética ruim. Sabe o que teremos? Um mutante; metade humano, metade Dolejal. — acrescentou com escárnio.

       Nova tentou permanecer séria, mas Franco estava tão carrancudo ao dizer tamanha asneira, que ela acabou rindo. Pôs a mão sobre a boca para disfarçar. Ele percebeu e contraiu os ombros, fingindo indiferença.

       — A metade Dolejal vai estar na cor dos seus olhos, meu anjo loiro. Nunca vi um azul tão lindo como esse. — falou, aproximando-se dele o suficiente para vê-lo todo, o sulco no meio da testa, o esgar de amargura no canto esquerdo da boca, a pupila escura centrando o universo que explodia em fachos de azul, cambiando para o prata, o azul claríssimo, o branco, milhares de raios atraindo-a para dentro de si, hipnotizando-a e a pondo sob seu domínio. Viu-se ajoelhada ao seu lado, as mãos apertando-lhe os pulsos para tê-lo concentrado no que ela dizia: — Você é tudo para mim, não se diminua porque assim eu também ficarei pequena. Vamos criar esse moleque juntos.

       — Nunca pensei o contrário, dona. — resmungou, sorrindo de leve, e acrescentou: — Acontece que sei de onde vim e, de lá, nada é bom.

       —Você é bom. — enfatizou.

       Ele riu de um jeito estranho e, esmagando o resto do cigarro no cinzeiro, falou:

       — Devia ter se casado com o Rodrigo. Os dois veem bondade em quem não presta.

       — É, eu até tentei seduzi-lo, mas ele já estava apaixonado pela Karen.

       Franco fechou a cara.

       — Claro que sim.

       — Que tal a gente comer os nossos sanduíches e terminarmos de arrumar as coisas, hã? Logo o caminhão da transportadora chegará para começar a mudança. — disse, erguendo-se e olhando ao redor. Era prudente que mudasse de assunto.

       — A gente vai casar. — determinou, empinando o nariz em desafio.

       Nova riu com vontade.

       — Por quê? Pensa que meu pai virá de Minas para apontar uma espingarda contra a sua cabeça? – brincou.

       O pistoleiro estreitou os olhos avaliando-a. Era visível que não gostara do tom de brincadeira e deboche que ela usara. Sem elevar a voz, disse:

       — Não, quando ele me conhecer, é provável que aponte para a sua. — enfatizou para, em seguida, se pôr de pé e completar: — A questão é que você é minha mulher e quero ter um papel com isso escrito e registrado. Letras bem grandes, entendeu?

       — Que besteira, Franco.

       — Caramba, Nova, nem pense em não querer casar comigo! — ele falou com rispidez. — Não é um pedido, minha filha, é uma ordem!

       — Ridículo! Vai casar comigo porque estou grávida... ridículo...caipira idiota!, — pôs as mãos na cintura e começou a zanzar por entre as caixas espalhadas na cozinha: — tosco, retrógrado...  banana conservador!

       — O que está falando? — indagou intrigado: — Metade do que disse não entendi, mas sei que não é coisa boa. — reclamou.

       — Olha só, Franco Dolejal, não me casarei porque estou grávida. Isso não existe mais, pelo amor de Deus!

       Ele arou o cabelo com as mãos, nervoso.

       — Ai, ai, ai, Nova, acha que quero casar só porque está prenha?

       — Grávida, grávida, use a palavra certa! — corrigiu, zangada.

       — Amo você, ô esquentadinha! — puxou-a para um abraço e, apertando-lhe o rosto entre as mãos, asseverou convicto: — E quero ser o marido da mulher mais linda do mundo.

       Ela sentiu o calor dos lábios que entreabriram os seus. Um afago leve, um veludo de carne levemente úmida. Bocas que se roçaram com ternura. E ele tornou a se afastar e olhá-la nos olhos. Sério, intenso e completo. Um olhar completo que a revirava por dentro e bagunçava a organização de seus pensamentos, os mais sensatos e decentes. Ele vasculhava a alma incendiando-lhe o corpo. Sem tocá-la. Os braços soltos ao longo do corpo. Os pontos da barba. O cheiro dele. Nova era viciada no cheiro dele. Era viciada nele.

       Franco baixou a cabeça e aproximou novamente seus lábios dos dela. Não a beijou. Fechou os olhos aspirando o ar que saía dos pulmões de Nova. Sem nenhuma pressa, afagou-lhe o rosto com o dorso da mão.

       Havia tamanha doçura nos gestos dele que ela ficou sem ar, impotente diante da beleza do momento. Queria-o dentro de si, amá-lo e fazê-lo feliz. E foi assim que o carinho se transformou em necessidade física. Tomou-lhe o lábio inferior chupando-o com vontade enquanto suas mãos se enfiavam por debaixo da camiseta dele, ganhando a pele morna e fresca. Colou-se ao seu corpo alto e forte, os pés subiram sobre as suas botas e os braços rodearam-lhe o pescoço, trazendo-o ainda mais para si. As pernas moles como gelatina. Não havia mais chão nem gravidade. Dois corpos ocupavam o mesmo espaço. Ela esfregava os seios nele, sentindo contra o corpo a dureza de sua virilidade. Desceu a mão e deslizou-a pressionando a parte frontal do jeans. Gemeu dentro da boca que a beijava com desespero, um gemido arfante, o prazer de uma bela constatação.

       Num átimo, Franco afastou-se e puxou a camiseta pela cabeça, jogando-a em qualquer parte da cozinha. Parou, encarando-a profundamente, dando-lhe tempo para degustar a imagem de seus músculos definidos, a plenitude e frescor de seus vinte e poucos anos. Então ele sorriu e era um sorriso que convidava ao prazer.

       Ela retribuiu o sorriso e despiu-se devagar. Livrava-se de cada peça de roupa sem deixar de encará-lo. Ao tocar no cós da lingerie, ele fez um sinal de contenção com a mão e falou numa voz arrastada de desejo:

       — Eu tiro a sua calcinha.

       A palavra “calcinha”, no timbre rouco e masculino, pareceu-lhe extremamente sensual.

       — Sim, Franco, tira a minha calcinha... — concordou num tom de pedido, de súplica, de quem tem o rosto inchado de sangue e debaixo da pele o calor inflamado. Sim, Franco, pulo da ponte. Sim, Franco, te seguirei de olhos vendados. Sim, sim, sim...

       Abandonou-se a ele como escrava de sentimentos e sensações que a consumiam sem enfraquecer. Viu-o abaixar-se, ajoelhar à sua frente, e descer com delicadeza, lentamente, a roupa íntima. Segurava-a pelas tiras laterais, pressionando ligeiramente a pele de suas coxas, joelhos, panturrilhas, tornozelos... Depois voltou pelo mesmo trajeto, sem a lingerie. Somente a carícia erótica de sua boca. E ela precisou se apoiar na ponta da mesa para não desabar.

 

       Após morar uma semana em um apartamento alugado no centro, Cristiano Bittencourt decidiu se mudar. Gastou semanas inteiras rodando pelas ruas principais até se dar conta de que continuando a morar perto do trabalho seria ainda mais consumido por ele. Mesmo que toda a sua vida se resumisse a tratar e cuidar de crianças, Cris temia que seus plantões de setenta e duas horas não fossem suficientes para acalmar o diretor do hospital. Todavia, desde que Nova se fora, virar noites sem dormir parecia mais saudável que fechar os olhos e sonhar com ela. E o diabo.

       Em um dos jantares na Arco Verde, Dolejal sugerira que fosse morar no Solar dos Sulistas, um de seus prédios na cidade. Na cobertura a oito andares do chão e cinco quadras do hospital. Um apartamento por andar. Três dormitórios, gabinete, suíte com hidromassagem e piscina no terraço. Paredes envidraçadas. Mezanino no segundo andar, mármore, inox e elevador panorâmico. Um luxo para poucos.

       Entre um gole de vinho branco e outro, o fazendeiro dissera-lhe:

       — Fique por lá, desde que construí o prédio não consegui comprador para a cobertura. Parece que dinheiro e sofisticação não andam de mãos dadas por aqui. — sorveu a bebida e completou em um tom de enfado: — Tem um advogadozinho que está me rondando para adquiri-la, quer assentar a sua puta enquanto a mulher e os cinco filhos comem poeira em Belo Quinto. Mas sabe como valorizo a família e os bons costumes. — disse com ironia.

       Cris sorriu, assentindo.

       — É aquele assessor da prefeita? — deduziu sagazmente.

       Thales balançou a cabeça em afirmativo. A prefeita de Matarana era apoiada pela família Marau. Havia duas eleições consecutivas que se mantinha no poder. Ainda que não fossem aliados, ele e a prefeita não eram inimigos. Thales admirava a mulher que criava sozinha uma adolescente que, vez ou outra, publicava histórias sobrenaturais em seu jornal. Para o próximo pleito, o latifundiário paulista já preparava o seu concorrente. Apostava em outro advogado, um dos seus, que trabalhava no departamento jurídico de seu grupo empresarial.

       Entretanto, os pensamentos do médico rodavam em outra direção. À mesa do jantar, diante de um de seus melhores amigos e pai do seu único inimigo, Cris conjecturava fazer algo por Nova, algo que lhe garantisse um futuro seguro e digno. Não precisava de uma bola de cristal para prever a brevidade daquele relacionamento.

       Agora, sentado no único móvel na sala para dois ambientes, as venezianas fechadas, a escuridão envolvendo-o e combinando com os vinte graus do ar-condicionado, ele ouvia Chopin e sentia mais do que nunca a falta dela, de sua companheira de vida e empreitada no centro-oeste. Por ele, Nova se enfiara na terra de ninguém e se envolvera com um bandido. Para ela, Cris comprara a cobertura, registrando-a em seu nome. Pedira a Dolejal que mantivesse segredo, porque um dia Nova voltaria. Quando o encanto e a projeção acabassem, ela voltaria para ele. E cada móvel e acessório do apartamento que ainda não tinha história para contar seria decorado por ela. Era somente uma questão de tempo.

         

       Adele parou à entrada e analisou o que via. Cruzou os braços e procurou não chamar atenção. Era mais fácil investigar em silêncio e nem sempre se encontrava em uma posição privilegiada como aquela. Admirou o traseiro do chefe estufado no jeans, pequeno e durinho, encimado pela cintura estreita e os ombros largos cujas rótulas salientes faziam um desenho sexy debaixo da roupa. Uma parte das fraldas da camisa xadrez estava para fora da calça e as mangas dobradas despojadamente até os cotovelos. Diante do fogãozinho de duas bocas, Rodrigo Malverde queimava a pedra encontrada no bolso do neto do coronel, apreendida ao ser revistado.

       O delegado sentiu uma presença e voltou-se. Sorriu de leve ao perceber Adele novamente de olho na sua retaguarda. Às vezes, ele tinha a impressão de que ela o via como um bolinho de um metro e noventa. Quando estava mal-humorado, esse tipo de olhar malicioso e, mais do que isso, guloso, irritava-o. Tinha vontade de dizer-lhe que não era um objeto sexual, que era um homem com sentimentos e, além disso, porra!, o seu maldito chefe! No entanto, na maior parte das vezes, divertia-se ao ser comido com os olhos.

       Apontou para a fumaça escura que se dissipava lentamente pelo recinto e afirmou:

       — Como pensávamos, é óxi.

       Um dos testes para identificar o tipo de pedra era queimá-la em uma panela. Se a fumaça fosse branca, a pedra era de crack. A cor da fumaça revelou o destino da cidade como numa bola de cristal. O tráfico de óxi atravessara a fronteira com a Bolívia e começava a fincar seu domínio na parte norte do centro-oeste.

       — Eu sabia. — disse Adele, forçando-se desviar os olhos das veias grossas que despontavam debaixo da pele morena dos braços dele. Continuou, chamando-se à razão: — Vou arrancar do piá o nome do traficante que vendeu para ele as pedras.

       Rodrigo assentiu levemente e determinou:

       — Sim, faça isso. Depois, vou cruzar a fronteira, quer dizer, a 163, e fazer uma visitinha à Vila Zumbi.

       A última batida na vila com os policiais militares rendeu um tiroteio. Além de uma prisão, a de um ladrão pé de chinelo. Os traficantes foram avisados sobre a chegada da polícia. Ao longe, os camaradas galopando pela planície e se misturando à vegetação. Adiante deles, camionetes importadas levando consigo os clientes dos traficantes.

 

       Era a primeira vez que Lúcia Moela, ex-senhora Everaldo Viegas, adentrava a casa de um ricaço. O choque foi tremendo, e ela cuidou para não esbarrar em nada caro. Mas tudo era caro. Colou-se a Bronson ao atravessar a sala de três ambientes e subir a escadaria até o escritório do fazendeiro que podia lhe render uma boa vida.

       Logo que entrou, percebeu que aquela parte de Matarana era menos mormacenta e empoeirada. O céu não estava azul, já que ameaçava despencar uma tempestade. Entretanto, o ar era menos selvagem e árido. Havia brisa, um cheiro de eucalipto e frescor. Talvez os ricos também comprassem a atmosfera. E percebeu também que o dono daquele lugar e de muitos outros metia medo. Ele tinha uma beleza impressionante, como pudera perceber quando o via descer e subir na Silverado preta que atravessava a cidade ou nas raras vezes que ela ia ao centro sacar dinheiro no caixa eletrônico, no andar térreo do prédio em que se localizava o escritório dele. Obviamente, o fazendeiro jamais a percebera. Caminhando com o queixo erguido, passadas largas e uma leve contração de desdém na comissura dos lábios, Thales Dolejal pertencia a outro plano da existência, inacessível a pessoas comuns como Lúcia. Apesar disso, observando o cabelo castanho claro, cortado como os militares da Força Aérea, os olhos grandes e azuis e o corpo atlético vestido nas roupas sociais, ela se sentia atraída por ele do mesmo modo como ao se postar à beira de um precipício. Lúcia era acrofóbica.

       Bronson deteve-se à soleira da porta e cedeu-lhe passagem. O cinquentão marcado por bolsas embaixo dos olhos possuía expressão imperscrutável.  Durante o caminho inteiro entre a casa da stripper, do outro lado da cidade, até a Arco Verde, mantivera-se calado ao volante. E agora a conduzia discretamente para diante do patrão.

       — Entra, Lúcia. — falou baixo, o timbre rouco de quem fumava muito.

       Ela assentiu com a cabeça, intimidada pelo ambiente nada acolhedor.

       Foi-lhe difícil vislumbrar o fazendeiro sentado na cadeira de espaldar alto, detrás da escrivaninha de vidro e aço, o notebook ladeando o telefone sem fio. A luz claríssima avançava pelos janelões envidraçados e tornava a figura do homem à sua frente um vulto com contornos bem definidos. Mas era apenas uma moldura.

       Quando ele se ergueu sem pressa, a luz ao seu redor o acompanhou. E parecia que era dele que se irradiavam os raios solares que, por dois ou três segundos, cegaram-na. A stripper toldou os olhos com a mão e viu muito mais do queria. Atrás de Thales Dolejal, cerca de dez homens com seus chapéus, armas na cintura, jeans surrados e camisas empoeiradas. Era a segurança armada da fazenda.

       Instintivamente, ela se voltou para o outro segurança. Bronson ignorou-a, ocupado em obedecer ao patrão a qualquer momento. Descobriu, então, que estava outra vez sozinha. Os elogios, as conversas assistindo à tevê, as promessas de algo mais no futuro, bem, isso Lúcia já não via nos olhos servis do pistoleiro. Mas via que debaixo dos seus pés e sobre o sofá, atrás de si, havia uma forração plástica estendida. A garganta secou ao descobrir que caíra em uma armadilha.

       — Como vai, Lúcia?

       Ela se assustou com o tom suave daquela voz, um veludo quente, quase um sussurro. Imaginava-o rugindo ou rosnando ao invés de falar. Porém, Lúcia ainda pensava no plástico debaixo de suas sandálias e na sua serventia. De repente a minissaia e o top de lycra denunciavam-lhe a nudez. Porque, além de sozinha e nascida mulher, ela viera para Matarana sem a benção do destino como uma espécie de amuleto para ganhar da vida. Visto que da morte era impossível qualquer vitória.

       — Bem, senhor Dolejal. — respondeu sem encará-lo.

       Contraiu-se como uma folha seca. O fazendeiro circundou a própria mesa, parou e sentou-se na beirada. Tal gesto obrigou-a a olhá-lo. E foi o que Lúcia fez. Viu um homem bonito, bem vestido e extraordinariamente limpo.

       — O que pretende com isso? — a voz saiu num tom normal, apesar das felpas de aço.

       Por certo, referia-se a sua intenção de pedir um aumento na mesada que estava diretamente ligado à chantagem. Engoliu em seco. Antes, negociando somente com Bronson, o plano pareceu perfeito.

       — Não tenho como impedir a volta do Everaldo. — tentou ganhar tempo e prosseguiu: — Falei pro Bronson que não quero prejudicar o senhor, não quero mesmo. — enfatizou.

       — De que modo acredita que possa me prejudicar?

       Ela levantou os olhos, aturdida. Havia tamanha serenidade no timbre de sua voz, que, por um momento, confundiu-se na cena.

       — Abrindo a boca. — balbuciou.

       Ele assentiu com a cabeça, levemente, e fitou as próprias mãos cruzadas sobre as coxas de forma displicente.

       — E quanto vale o silêncio de uma dançarina de boate viciada em crack? — indagou com a mesma serenidade, retocando cada palavra com pinceladas de ironia. — Não sei se é um valor tabelado. Talvez possamos chegar a um consenso. — fez uma breve pausa e emendou agora contundente: — Por outro lado, o fato de mencionar o xerife põe abaixo qualquer perspectiva de entendimento entre nós. — ele ameaçou um sorriso e finalizou: — Então, sinta-se à vontade para correr até a delegacia e contar que você mesma inventou uma historinha de dívida para encobrir o assassinato cometido pelo seu marido.

       — Não contarei nada, senhor Dolejal. — o lábio inferior tremia.

       — Mulheres do seu tipo são confiáveis? — ele alçou a sobrancelha como se realmente se interessasse pela resposta. Voltou-se para Bronson e perguntou: — Posso deixá-la sair e acreditar que não debandará para os lados do delegado?

       — Eu cuido dela, patrão. — disse o mais velho, resoluto.

       Até poucos minutos atrás, Lúcia teria ficado aliviada ao ouvir tal afirmação. Mas já não sabia mais se Bronson cuidaria dela para protegê-la ou fazê-la desaparecer.

       Thales levantou-se e pôs as mãos nos bolsos laterais da calça social. Tomou a postura de quem pronunciaria uma sentença. Ele não costumava inocentar os réus. Punia-os, ela bem o sabia. Tantos camaradas expulsos da cidade... tantos desaparecidos...A verdade era que ela nunca enfrentava um homem, pois sempre que o fizera, a punição era a perda de uma parte de si. Dente, mecha de cabelo, lasca de pele, sanidade. Acatou o veredicto, cabisbaixa, percebendo que os pistoleiros aproximavam-se.

       Um metro e sessenta, talvez menos. Magra e trêmula. Era incrível como a valentia das mulheres da vida sumia quando enfrentavam cara a cara um oponente que as conhecia muito bem, pensou Thales. Fez sinal para um dos seus homens e perguntou:

       — Que tipo de música toca no inferninho da Lúcia?

       O camarada riu debaixo de suas sardas e chacoalhou a cabeça como se a alusão a tal lugar o levasse de fato para lá.

       — Ah, sei lá, patrão. — deu de ombros, rindo-se, e completou: — A gente enche a cara e fica surdo.

       Diante da inutilidade do funcionário, ele se voltou para o outro com mais tempo de serviço, experiência e lealdade:

       — Ponha uma música para a moça se apresentar para nós. — e, virando-se para ela, que o fitava com os olhos arregalados, comunicou com bastante calma: — Você vai dançar, Lúcia.

       — Por quê?

       — Entenda como um ritual, uma espécie de dança da sorte. — debochou.

       Bronson então cometeu um erro. Pôs para tocar a música proibida. Lapso ou uma leve provocação, o pistoleiro deixou Fagner começar “Deslizes” impunemente. O fazendeiro crispou os lábios ao ponto de forçar os ossos dos maxilares contra a pele. Era o hino dos cornos ressoando pelo ambiente e era também a mensagem do chefe da segurança ao patrão: eu também sei o seu ponto fraco.

       — Desliga essa merda. Ela vai dançar sem música. — determinou com rispidez.

       Mais uma vez obedeceu-lhe. A lealdade a Dolejal era desmedida, mas, por outro lado, Bronson era um cara calejado, que vivera na pobreza até comprar uma loja de pneus em Palmas, depois falira e se atolara em dívidas. Em vez de pagá-las, adquiriu uma Kombi e se bandeou para Santa Fé, em seguida, Matarana. Fora contratado por Onório Dolejal e presenciara as surras que o então moleque e depois adolescente Thales levava do avô. Microempresário falido, ex-matador de aluguel, capanga de fazenda e chefe da segurança da Arco Verde, ele impunha respeito sem forçar a barra, apenas nos detalhes. Forjado pela brutalidade da vida daqueles que comem poeira sem se engasgar, não era um cara estúpido nem sofrera lavagem cerebral. Às vezes, era preciso dar um leve corretivo no ainda moleque Thales.

       Às gargalhadas, os pistoleiros se chegaram e esperaram de pé, atrás do dono de tudo, começar o show.

       Ele acendeu um cigarro. Voltara a postar-se sentado na beirada da escrivaninha. Enquanto a fumaça enchia-lhe os pulmões, observava a mulher miúda e magra balançando o corpo com lentidão, sem jeito, mal afastando os pés do chão, os joelhos juntos, o cabelo loiro caindo pra frente do rosto, já que não tinha coragem de erguer a cabeça. Mais de dez homens fitavam-na. Um e outro gemiam alto, debochando. Thales deixava a coisa rolar. Não interferiu quando um deles agarrou a stripper e a abraçou dançando junto com ela. Relanceou o olhar para Bronson. Não havia nada para olhar, o velho apenas observava as intenções do subordinado. Um momento interessante aquele — Thales pensou, quase sorrindo, uma stripper constrangida ao dançar para o seu público.

       Ela tremia o queixo e as pernas finas. Feia e acabada. A beleza que Bronson vira estava mais nos olhos dele do que naquela mulher.  As mãos com unhas roídas até o talo empurravam o rapaz que, até havia pouco tempo, seguia Franco pela fazenda como o espectro o médium. Era alto, forte, ruivo e pretensioso — como boa parte dos ruivos o era, palavras do antigo chefe da segurança. Talvez fosse a pretensão do ruivo que o incentivara a se exibir diante de todos. Thales não se importava com gente fora dos eixos. Continuou impassível observando a moça tentando se afastar do inconveniente. Ao perceber que o seu homem forte tencionava separar o casal e proteger a sua vagabunda particular, Thales o conteve com apenas um gesto, a mão erguida e um leve sorriso. Foi o suficiente para detê-lo.

       No empenho em se livrar do brutamonte, Lúcia escorregou e caiu de joelhos. O camarada riu e tentou erguê-la. Antes disso, virou-se para o patrão a fim de se orientar quanto à direção dos ventos. Parado com as pernas abertas, arfando e um sorriso endemoniado na face, Paulo, aos 18 anos, sabia que fazia a coisa certa. Esperava se tornar o braço direito do patrão, ocupar a posição deixada por Franco. Agora, pelo menos, aguardava apenas que humilhar a chantagista contasse pontos ao seu favor. Mas o maior problema do sujeito pretencioso era a cegueira. Paulo era tão cego que não prestou atenção nos detalhes, como Bronson sempre o fazia. E foi o último que reparou na palidez no rosto do patrão, o olhar fixo nas cicatrizes marcadas nas costas de Lúcia, riscos sinuosos e rosados, bonitos até, de uma beleza que doía em quem os vissem.

       Thales via a si mesmo naquelas feridas cicatrizadas. O espancamento da stripper era o espelho do seu próprio espancamento. Vítimas se encontravam, e uma delas ainda queria ferir.

       — Quem fez isso com você? — o tom era duro e enérgico.

       Ela voltou-se com os olhos rasos de lágrimas e uma vontade muito doida de correr pelo cerrado até enlouquecer a sua última gota de lucidez.

       — Aquele que não me bateu com palavras.

       — Responda! — elevou a voz.

       O primeiro relâmpago riscou o céu escuro e anunciou o fim do estio e a tempestade que separava uma estação da outra. Imediatamente, um vendaval soprou forte venezianas, portas e vidraças da casa.

       Assustada com a rispidez do homem à sua frente, Lúcia resolveu dispensar o ressentimento e entregar o seu algoz.

       — O Júlio, dono da boate onde trabalho.

       — É somente ele que a espanca ou são todos? — sondou-a, o semblante carregado.

       Ela fungou e respondeu:

       — Ele acha que passo a perna nele... Só o Júlio me bate, mas não adianta fazer nada. Pensei em dar queixa... — deu de ombros e prosseguiu, vencida: — Mas pra quê?, se ele vai me moer de pancada assim que eu voltar da delegacia...

       Thales sorriu com desdém e falou:

       — Esse tipo de problema a gente mesmo resolve. — em seguida, virou-se para Bronson e ordenou: — Fale com alguém do comércio e consiga uma colocação para ela. Incentive os caipiras a empregá-la com um salário justo e enfatize que é minha protegida. — voltando-se novamente para a mulher que não sabia se olhava para Bronson ou para o maldito plástico aos seus pés, perguntou: — Onde posso encontrar esse cafetão de merda?

       Mais tarde, Lúcia perguntou a Bronson sobre a mudança repentina no comportamento do fazendeiro. Porém, ele respondeu que era melhor aceitar o seu destino e calar a boca. Então a stripper insistiu, querendo saber sobre a forração plástica.

       — O patrão mandou pintar as paredes do escritório, por quê? Cada um forra o chão com o que quer, ora! Isso não é problema seu, menina.

       Até o fim de seus dias, Lúcia seria leal a Thales Dolejal. Além de não matá-la, arranjou-lhe emprego e deu um jeito de Júlio, o cafetão espancador, nunca mais caminhar.

         

       Móveis, quadros, cortinas, tapetes e acessórios decorativos. À beira do Rio Verde, a casa de alvenaria e tijolo à vista, ampla, avarandada, cercada pelos canteiros de rosas e margaridas parecia congelada no tempo, sedimentada como um fóssil. Até mesmo o cheiro no interior de cada ambiente permanecera do jeito que Cris abandonara antes de partir, levando apenas suas roupas e artigos pessoais. Ele não partira, de fato, pois deixara para trás uma parte da história de ambos. No abajur de pé, Nova via o jantar após a compra da luminária, a excentricidade do amigo na escolha do vinho e a corrida até o carro enquanto a chuva despencava torrencialmente. Ao lado, a estante com os livros, órfã dos de Medicina e alguns de Robin Cook, Kundera e Graciliano Ramos. Mais adiante, os porta-retratos exibindo fotografias de um casal abraçado e sorrindo para a câmera, um casal romântico que nunca vingou. Vingança maior era a do pediatra ao manter a casa mobiliada para que o novo amor da amiga se sentisse deslocado. Contudo, quem se constrangeu foi Nova, parada à soleira da porta, em dúvida sobre qual decisão tomar, enquanto o céu escurecia-se e torturava as nuvens com descargas elétricas raiadas de prata.

       Manteve a porta afastada sem abri-la de todo. O motorista do caminhão de mudança e seus ajudantes desciam caixas e móveis com agilidade, certos de que a qualquer momento um dilúvio acabaria com a civilização. Três homens revezavam-se empilhando tudo o que ela juntara nas poucas semanas vividas no bangalô do condomínio de Karen e depositando sobre a calçada em frente à sua nova velha casa. Voltou-se para eles, mordendo o lábio inferior, num gesto que revelava incerteza e ansiedade. Seu olhar foi interceptado por um míssil preparado ferozmente para sondar os seus mais profundos pensamentos. Franco, soltando as cordas que prendiam o sofá da sala sobre a caçamba da sua picape, largou o que fazia e se aproximou dela. A face séria e a vontade de escavar a sua alma até encontrar o que sabia que deveria encontrar.

       — O que ele fez? — indagou, franzindo o cenho.

       Nova suspirou profundamente contendo um palavrão. Ela estava cansada de arrumar os utensílios domésticos, desmontar móveis e separar objetos para a mudança. Não contava que abriria a porta de casa e descobriria que os seus próprios móveis, comprados com o dinheiro e a liberdade de escolha de uma pessoa disposta a recomeçar, não caberiam ali. E, ainda por cima, um vento forte começava a dar sinais de vida. Fez um gesto com mão, sinalizando à frente, a sala mobiliada.

       — Foi o que ele não fez. — resmungou.

       Era de se esperar que Franco rejeitasse os vestígios de Cristiano. Esperado e aceito, Nova pensava, vendo-o observar atentamente cada peça sobre o assoalho de madeira, caminhando com bastante precaução no terreno que, poucos dias atrás, pertencia a outro homem. Parou junto ao batente da porta que fazia a divisa entre a sala e a cozinha, pôs as mãos nos quadris e indagou:

       — Isso incomoda você, princesa?

       Balançou a cabeça em afirmativo e completou ao gesto:

       — Esse agora é o lar da nossa família, Franco. Não quero nada que não seja nosso.

       Ele sorriu, ajeitou o chapéu puxando a aba para frente, quase escondendo os olhos. Pegou o celular e digitou para alguém que o atendeu prontamente.

       — Tenho umas coisinhas para doar. — em seguida, foi até a mulher, tocou-lhe a face com o dorso da mão e completou para o seu interlocutor — O pessoal gostará de ganhar uns móveis estilosos, não é, Bronson? — piscou o olho para Nova. — Veja qual família precisa, só tem coisa boa, e manda alguém buscar aqui antes do temporal. — dito isso, encerrou a ligação e assegurou-lhe que seus ex-colegas de trabalho da Arco Verde limpariam qualquer resto deixado pelo antigo morador.

       — Obrigada. — agradeceu com um sorriso cúmplice.

       A dupla estava funcionando, ela conjecturou, aceitando dois braços fortes ao redor de sua cintura puxando-a para si.

       Ele se afastou e perscrutou-lhe a feição. Encontrou a devoção de sempre.

       — A dona ficará sentadinha, aqui, descansando. Não quero ver você carregando peso.

       Podia objetar afirmando que não era uma inútil. Até considerou rebelar-se ou fingir-se de ofendida, afinal, era a única mulher entre tanta gente do sexo oposto. Mas preferiu o caminho mais fácil, sorriu, concordando.

       — Tudo bem, meu amor, mas não pense que passarei a gravidez inteira descansando, viu? Amanhã mesmo volto para o Gringo. — advertiu-o com brandura.

       — Claro, eu sei. — assegurou, conduzindo-a pela mão até o sofá de Cris e puxando-a para si, bruscamente, falou: — Mas saiba que sua escolta já está reservada. Não haverá uma noite sequer que andará pela cidade sozinha. Sou o seu anjo protetor, a sua sombra e... — baixou o tom da voz até quase um sussurro ao seu ouvido: — o seu dono.

       Ao erguer o rosto para encará-lo compreendeu a seriedade da afirmação. Franco olhava-a com intensidade e era possível que esperasse novamente por uma objeção ou algo feminista e bem urbano. No gesto de alçar as sobrancelhas levemente — característica peculiar dos Dolejal, captou Nova, um desafio silencioso lançado à tarde do dia que escurecia e se arrastava em um turbilhão de terra vermelha.

       — Sim, — balbuciou seduzida pelo sentimento de pertinência: — você é o meu dono, Franco. — reafirmou, a sensação de leveza parecia arrancá-la do chão.

       Deitada, espichou-se até soltar a musculatura tensa. Acordaram cedo para terminarem de empacotar e embrulhar os apetrechos da cozinha. Apesar do oferecimento de ajuda por parte de Val, Nova não queria sobrecarregá-la, já que o funcionamento da casa dos Lisboa e Malverde dependia do gerenciamento da amiga. Vó Ninita continuava batendo perna na rua, Johnny na escola, Sabrina entre o curso de enfermagem e o namoro com Eduardo e Karen agendando corridas, sobrava para a futura dona de confeitaria administrar a casa que passava por reformas. Era verdade que Rodrigo e Franco revezaram-se na arrumação para a mudança. E ela supervisionara de perto o trabalho dos dois que, a cada dia, se tornavam próximos. Rodrigo possuía um tipo de carisma à prova de balas e à prova de pistoleiro durão, como Franco.

       Assustou-se ao ouvir os motores das camionetes da Arco Verde. Levantou-se do sofá que seria enviado diretamente para a casa de um dos funcionários de Dolejal. Foi até a cozinha desviando o olhar do que poderia atraía-la para algum pensamento inconveniente. Evitava pensar em Cris. O tempo em que o amara era carregado de drama, incerteza e dependência emocional. E ela não vivia mais esse tempo.

       Sentou-se no primeiro degrau da escadinha que levava à área coberta no pátio onde eles costumavam estacionar seus automóveis. Apertou-se aos joelhos flexionados, ouvindo a algazarra dos homens mexendo na mobília e carregando-a para fora da casa. Naquele momento solene em que tudo recomeçava no mesmo lugar, ela impediu-se de se autoanalisar. Manteve a atenção nos galhos mais altos de uma palmeira. Balançavam com ferocidade, o tronco mantendo a árvore segura no solo. Acariciou o abdômen, agora, a parte mais importante de seu corpo. Ao longe, ouviu a voz que enchia suas veias de paixão:

       — O doutor é um idiota, mas tem bom gosto.

       Ela riu e voltou-se para ele, concordando.

       — Cris é um homem sofisticado.

       — Fresco, você quer dizer. — debochou, afastando-se com um quadro adquirido em uma galeria de Belo Horizonte. Em seguida, ele avisou: — Tem um celular berrando, aqui, na sala!

       Ao atendê-lo, a voz feminina e hesitante preferiu confirmar alguns dados.

       — É a dona Nova Monteiro do Jornal do Cerrado?

       Nova considerou esclarecer que não trabalhava mais como jornalista. Pelo visto, a notícia ainda não se espalhara pela cidade. A bem da verdade, até mesmo o fato de ela estar namorando o pistoleiro do coronel Rodrigues ainda não tinha ganhado as orelhas dos fuxiqueiros de Matarana. Por outro lado, o fragmento de hesitação ou ponderação dissipou-se ao descobrir que a jornalista dentro de si não se demitira de sua vida.

       — Sim, quem está falando?

       — Meu nome é Bety e li o que a senhora escreveu sobre os colonizadores da cidade, esses ricaços cretinos esbanjadores de uma figa! E quero que saiba que a senhora é a porta-voz dos mais fracos. Ninguém nunca falou a verdade sobre a fundação desse paraíso para poucos. Quero ajudar a derrubar essa cambada! — grunhiu a outra.

       — Não entendi. — resolveu pisar no freio.

       — Sou vizinha do Teobaldo. Sabe o Teobaldo, né?

       — Sei, sim... — concordou, expectante.

       — A gente tem que se ver, dona Nova.

       — E por quê?

       — É sobre o assassinato do Teobaldo Vilela.

       — Como?

       — Isso que eu disse.

       Nova sentiu a mão de Franco sobre o seu ombro, voltou-se para ele e tentou sorrir. Foi retribuída por um sorriso jovial enquanto um filete de suor escorria-lhe pela têmpora, demonstrando o seu cansaço. Do outro lado da linha, Bety completou:

       — Vamos conversar, dona Nova. Moro na casa nos fundos da imobiliária Vilela. Acho que a senhora se interessará sobre o que tenho para dizer.

       Nova queria perguntar por que não relatava o que vira ao delegado.

       — Falou com alguém?

       — Sou mãe de família, passo pra senhora a informação e deixo que decida o que fazer com ela, sem me envolver.

       Franco beijou-lhe o topo da cabeça, encheu um copo com água e voltou ao trabalho.

       — É sobre quem o matou?

       — Amanhã, à tarde, dona Nova.

       E desligou.

         

       Acendeu os faróis do Fusca 75 enquanto trafegava pela avenida principal. O céu imerso no violeta profundo era ricocheteado por breves explosões de eletricidade. A noite chegara mais cedo naquela tarde de domingo. E o Volks engasgava na troca da marcha.

       Karen praguejou alto, o cigarro no canto da boca, o chapéu de vaqueira deitado no banco ao lado. Pisou no acelerador e passou em frente à construção moderna que lembrava uma galeria comercial, mas era apenas o templo católico. O jardim verdejante, mesmo durante a estação da seca, irrigado vinte quatro horas por esguichos eletrônicos plantados no solo, ao lado das hortênsias e rosas de diversas cores. Um paisagista de Brasília fora contratado para planejar o jardim que antecedia o arco de ferro ladeado por palmeiras-imperiais. As missas eram realizadas por um padre que tinha por costume (ou obrigação profissional) visitar o seu rebanho, quinzenalmente, ao volante de uma Hilux com cabine refrigerada e CD player com MP 3. O dízimo pago pelas ovelhas seguia a cotação média do dólar comercial.

       O vento forte levantava do chão sacos plásticos e sacolas e carregava para o alto folhas, papéis e uma faixa grossa de poeira. O estrondo dos trovões e os relâmpagos faziam as pessoas correrem como formiguinhas desesperadas atrás de proteção. E assim que o redemoinho de terra se formou à sua frente, Karen ergueu o vidro lateral e manteve o do passageiro abaixado. Não queria sufocar dentro da lata de sardinhas barulhenta, com motor batido e a correia ganindo como um porco a caminho do matadouro.

       Ao parar diante da sinaleira, deitou a cabeça para trás e suspirou resignada. Ela não era mulher para um Fusca, definitivamente, não; merecia algo melhor, uma espécie de Prefontaine de quatro rodas, pensou, fitando o volante original que se assemelhava a um bambolê com aro de metal e botão de buzina.

       Passou em frente à delegacia e reduziu a velocidade. Não lhe custava nada investigar por onde andava o delegado. Digitou os números do celular dele. Antes que o segundo sinal se completasse, bateu os olhos na Silverado que vinha na sua direção contrária. Imediatamente, reconheceu o motorista. Tentou desviar o olhar e ignorá-lo. Mas o que fez a amedrontou muito mais que a mudança nas regras das corridas que disputaria em breve. Desligou o celular antes de Rodrigo atender. E, enquanto a chuva caía pesadamente em gotas grossas arrastadas pelo ciclone, ela esperava que o tornado provocado pela visão de Thales lhe escapasse pelas orelhas, nariz e boca. Garganta seca e o sangue engrossando quente nas principais artérias. Raiva e frustração, algo maior, inominado, à semelhança de um paroxismo vulcânico a fez pular para calçada e quase quebrar o vidro ao bater a porta do carro.

       Parada, açoitada pelo vento e a torrente de água gelada, Karen desafiou o antigo amante para um duelo. Já fazia algum tempo que ela desejava encontrá-lo. Na última vez levara um .38 para presenteá-lo com um ou dois projéteis nos genitais. Agora apenas queria chamá-lo para briga. Porque ainda tinham certas coisinhas para acertarem. Dez anos não se apagavam assoprando-se velinhas. No início de tudo, ela o amara e acreditara que o seu futuro era ficar com ele até o fim. O resto de ilusão e inocência entregues àquele que decidira que ela serviria para o sexo casual, com dia e hora marcados na agenda. Pois bem, já chegara a hora de sacarem as armas no meio da avenida enquanto os raios explodiam acima de suas cabeças. Nada como esperar o momento certo, quando a dor era tão suave que se sedimentava entre as costelas forçando a medula. Ela sabia que a redução na velocidade da camionete era proposital.

       A água molhava-lhe o cabelo longo e preto, e escorria pelo rosto o que poderiam ser lágrimas. Mas não o eram. Karen raramente chorava; ela batia, gritava e punha para correr.

       Esperava que um relâmpago levasse a Silverado para o inferno. A tempestade não cedia, e Thales Dolejal, o homem que lhe fora quase a segunda pele por uma década, desceu da camionete. Havia tanta palavra não dita nos olhos fixos nos dela que Karen empinou o nariz para se impor àquela força brutal. Debaixo da chuva, parados à espera do primeiro movimento, ambos se mediam testando a resistência do tempo separado ou do tempo vivido, juntos, consumido por brigas, quedas de braço, paixão e infidelidade.

       O ressentimento empurrou-a para frente, avançando no primeiro passo, e ela viu o esboço de um sorriso no rosto que poucas vezes sorria. Entendeu que, para ele, a vitória era certa. Ela se jogaria aos seus pés como quando era mais jovem e menos lúcida, nos primeiros anos de paixão desenfreada e cega. Fazia tantos anos, e Karen crescera, abrira os olhos e aprendera com Thales mesmo que precisava armazenar oxigênio para não morrer de rejeição. Retribuiu o sorriso com a segurança de quem provou o veneno e sobreviveu. Quase agradeceu ao algoz, mas lembrou que o havia amado e fora reduzida à sua amante eventual. Se fosse sensata, dava-lhe as costas e o arrancava de sua vida como um siso inflamado. Mas o que era a sensatez para quem tinha coragem? Um soco no estômago, de dentro para fora, o peso de uma mão e a fúria. Cerrou os punhos e, com passadas largas, avançou contra o vento e a chuva que lhe tornavam pesados pálpebras e cílios. Tiraria sangue da nobreza feudal. Ninguém a impediria de se vingar.

       Os olhos azuis brilhavam de prazer admirando o fogo dentro do jeans e da camiseta. Não era à toa que aquela mulher deixava-o fora de si. Por ela, cometera atos que possivelmente o trancafiariam numa cela. Um crime a mais ou a menos, ele pouco se importava. Desde que Karen ainda o colocasse como prioridade em sua vida, arriscando-se a ser pega em flagrante pelo amante delegado, tentando atacar o que corria em suas veias como uma droga. Manteve-se à espera de sua aproximação, cruzou os braços, essa era a melhor parte.

       Ela mergulhou a sola das botas na poça d’água sem se abalar, sem desviar os olhos dos dele, sem olhar para trás. Não havia nada atrás. Apenas ele e ela.

       Até que a polícia chegou.

       — Karen! — a voz do delegado alteou-se acima dos trovões.

       Como uma corda firmemente esticada e enrolada à sua cintura, viu-se paralisar entre os dois homens. A percepção de Rodrigo atrás de si a imobilizou por alguns segundos. Era como se voltasse a pensar, a raciocinar. Tudo o que tinha a fazer era ignorar o seu lado viciado e primitivo e correr para os braços do seu amor.

       Ela encarava o ex-amante sem conseguir se mexer. O estranho era que jamais o havia visto tão bonito, a expressão facial melancólica misturada ao desdém, as roupas encharcadas. E, mais do que todo o conjunto, a violência da atração.

       — Não lute contra o inevitável, Karen. — ele disse com arrogância. — Até quando enganará o mocinho da história se passando por boa-moça? — emendou com um sorrisinho que a irritava sobremaneira.

       — Karen! — novamente o chamado da lei.

       — Maldito, temos algumas pendências para resolver. — ela afirmou, entredentes.

       Rodrigo aproximou-se, a cara de poucos amigos expressando o que sentia no meio de tudo. Cumprimentou Dolejal com um aceno de cabeça e voltou-se para a mulher, incisivo:

       — O que houve com seu celular?

       Karen virou-se para ele e respondeu com naturalidade:

       — Tempo ruim, sabe como é. — em seguida, tornou a encarar o fazendeiro e provocou-o: — Era tão bonita a amizade de vocês, e ainda dizem que as mulheres são desunidas.

       — Algum problema, Thales? — Rodrigo atacou primeiro, desafiando o outro por debaixo do chapéu pingando água, e era somente por estar molhado que não voava de sua cabeça.

       — Nenhum. — afirmou impassível.

       — A conversa entre vocês terminou ou pretendem lavar a roupa suja em público? — perguntou com dureza, olhando para um e outro à espera da resposta.

       Karen notou os maxilares forçando-lhe a pele e as veias das têmporas salientes. Ele jamais perdia o controle. Voltou-se e sorriu, procurando amenizar a situação. Ao vê-lo, perdera um pouco o pique para a briga. O lado claro e arejado de sua vida abria sol por entre nuvens de chumbo.

       — A chuva acabou lavando a sujeira, amor. — disse com estudada meiguice que cambiou para o deboche logo após. — Cuidado apenas, Dolejal querido, para não desaparecer em um desses bueiros, sabe? — enganchou o braço por debaixo do de Rodrigo. — Os ratos merecem companhia melhor.

       — Vamos voltar para casa, Karen. — determinou Rodrigo, apertando-a contra si e lançando um olhar significativo ao fazendeiro que se mantinha imperturbável e parado como que soldado ao asfalto.

       — Ei, Rodrigo, — chamou-o e aguardou que o outro lhe desse atenção. Então sentenciou calmamente: — aproveite bem o tempo que terá com o que é meu. 

       Karen pulou para atacá-lo, a raiva era tamanha que lançou um rosnado baixo ao se projetar para frente. Rodrigo foi ágil o suficiente para agarrá-la pela cintura e contê-la. Puxou-a contra si e abraçou-a tentando acalmá-la.

       — Não perca a cabeça, meu anjo. — beijou-lhe a testa, sentindo o corpo da namorada estremecer em contrações violentas; e, encarando o fazendeiro, completou: — Sejamos adultos, ok? Acho que um dia desses vocês têm de ir a um lugar público e conversar. Precisam resolver essas tais pendências para poderem continuar a viver na mesma cidade.

       — Vou é meter uma faca nele, isso, sim. — grunhiu ela, com o rosto contra o peito de Rodrigo.

       Thales deu-lhes as costas, circundou a camionete e antes de entrar, fez-se ouvir:

       — Não tente, delegado. — o tom era baixo e beligerante quando continuou: — Simplesmente, não tente. A sua ponderação fede à covardia. Não esqueça que a lei aqui é feita por mim, e você não passa de uma casca de pipoca entre os dentes. Sem a minha proteção não é ninguém, vale menos que o seu chapéu.

       — Está me ameaçando? — estreitou os olhos, avaliando-o.

       — Entenda como lhe for conveniente. Às vezes, Rodrigo, o destino tem de interferir em certas questões, ora com uma transferência, ora com uma emboscada. Ninguém está livre do seu destino, ninguém, meu amigo.

       Desestabilizar. Quando as ondas do mar tomavam sua forma, a única ação destrutiva do tornado era soprar contra elas, desestabilizando a naturalidade do movimento. Thales era a ação contrária, o vento negro derrubando telhas e arrancando árvores da raiz. Ao passo que a Rodrigo restava a missão de pôr tudo em ordem.  A Silverado avançou na avenida amassando os restos do que ficava para trás. Coube ao delegado observar o estrago da tempestade. E era somente o início da estação.

       — Por que sempre tenta salvar o mundo, Poliana? Isso é verdadeiramente irritante. — ironizou Karen, desvencilhando-se dos braços de Rodrigo e se encaminhando de volta ao Fusca. Enquanto se afastava, falava alto, por cima do barulho da chuva e dos trovões: — Sei me virar sozinha, acha mesmo que preciso de sua intervenção de homem centrado? Me poupa, Rodrigo, conheço esse desgraçado e sei muito bem como pô-lo na linha!

       — Pô-lo na linha? — ele já estava novamente de posse de seu braço, pressionando-lhe o cotovelo com a mão fechada em garra. Não lhe deu tempo para responder e a puxou ao seu encontro: — Está armada, Karen? — perscrutou-lhe a expressão.

       — É claro que não! — elevou a voz, mantendo os olhos firmes nos dele.

       Ele arrastou-a sem cerimônia em direção à delegacia.

       — O que é agora?

       —Vamos sair debaixo dessa chuva e conversar. — determinou praticamente arrastando-a bem firme e sem sentir resistência alguma por parte dela.

       — Ah, nem vem, nada de discutir a relação, tenho o estômago fraco pra isso. — zombou, percebendo que mal precisava caminhar quase flutuando acima do chão, presa e conduzida pelo braço forte e musculoso do seu namorado.

       Ao entrarem na recepção, cortada pelo balcão que separava o corredor da sala da escrivã e do investigador, Karen deu de cara com Adele. Tentou sorrir e ser espirituosa:

       — Como vai, querida?, ainda incentivando o tráfico de muffins?

       Adele fitou o chefe, que lhe enviou um olhar sério, e respondeu:

       — Não culpe a intermediária, Karen. — tentou brincar. Queria mesmo era mandar longe aquela mulher descabeçada que não valorizava o homem que tinha, pensou a policial.

       — Vou quebrar a Rita vadia, me aguarde! — prometeu Karen, sorrindo com deboche enquanto varria com os olhos o balcão cheio de cestas decoradas com laços e guarnecidas com os doces de Rita. — Ela não sabe que estamos de coisa, Rodrigo? Você precisa dar um basta nesses doces libidinosos!

       Ele a ignorou até o momento de arrastá-la para dentro de sua sala. Empurrou a porta com o pé sem deixar de fitá-la ostensivamente, o rosto sério e concentrado no que viria a seguir. Deu dois passos, arrancou o chapéu e o jogou sobre a escrivaninha, irritado. A voz saiu baixa e obstinada ao ordenar:

       — Me dê a sua arma!

       — Está de brincadeira? — pôs as mãos nos quadris e emendou exasperada: — Você apreendeu o meu .38 quando fui tirar satisfações do desgraçado na Arco Verde. Não falei nada, mas sei muito bem que passou a mão no meu revólver! — empinou o nariz.

       — Revólver sem registro, por sinal. Eu podia tê-la posto atrás das grades como já fiz com muita gente por aí. — aproximou-se como um puma espreitando a presa.

       — E por que não me prendeu, senhor certinho? — desafiou-o com ar superior.

       — Acha que está acima da lei?

       — Não, delegado, só quero que um dia a lei fique do lado do mais fraco. — ironizou.

       — É mesmo? Talvez eu tenha que proteger o Dolejal então. — retrucou no mesmo tom.

       Ela sorriu sem jeito, mas não perdeu o rebolado:

       — Aproveita e dorme com ele também.

       — É o que você tem vontade de voltar a fazer, Karen? — perguntou, sondando-a com atenção.

       — Pode ser que essa minha raiva seja um sintoma de abstinência, não é, mesmo? Ele é a droga que meu corpo sente falta. Quem sabe? — respondeu irônica, debaixo da língua, o gosto da raiva contida. — Não tente medir forças comigo. O último que fez isso larguei como um chiclete mastigado. — falou com amargura.

       Sentia prazer em machucar Thales. Pelo menos em tentar atingi-lo. Entretanto, ferir Rodrigo era uma experiência dolorosa para ela.

       Ele estava colado contra o seu corpo e o semblante de quem mantinha o demônio na coleira revelava o quanto se controlava. Mais uma vez. Dois dedos em gancho tocaram-lhe o queixo erguendo o seu rosto. Um sentimento forte e profundo escureceu os seus olhos castanhos. Tal constatação a fez estremecer e lembrar que estavam no começo, no período de adaptação.

       — Sei que me abandonará, não sou burro nem nasci ontem. Só não quero que seja tão cedo. — ele disse de forma tão natural, que era como se aceitasse a convivência com um câncer. Antecipando-se a sua reação determinou sereno: — Mas antes que isso aconteça, não quero que faça nenhuma bobagem maior que me deixar. Agora, vire-se que vou revistá-la.

       Atordoada pelo o que acabara de ouvir, apenas lhe obedeceu, afastando as pernas e os braços. As palavras haviam-lhe sumido. Deixou-se ser tocada pelas mãos grandes que tatearam a sua perna esquerda até o início da coxa e depois desceram em sentido contrário pela perna direita. Quando se dirigiram para a linha da cintura, virou-a para si e manteve os olhos pregados nos dela. Era um desafio mudo, um jogo de poder e, ao mesmo tempo, uma demonstração de força. Estava diante de um homem passional e sensível, de um cara que arriscaria a própria vida para salvá-la — Karen tinha certeza absoluta disso —, entretanto, livre de qualquer vestígio de fraqueza e submissão. Exalava masculinidade pelos poros, o cavanhaque ralo circundando os lábios cheios e duros que, normalmente, curvavam-se em um esgar de escárnio, suavizavam-se num sorriso encantador e se moldavam à devassidão de beijos e carícias que a perturbavam tanto quanto àquela sua demonstração de autoridade.

       Dedos longos e macios subiram-lhe pelo abdômen por baixo da camiseta, deslizando como se procurassem um caminho seguro num campo minado. Ao alcançarem a parte frontal do sutiã, ela segurou o ar nos pulmões e forçou-se a manter os olhos abertos e firmes nos dele.

       — Foi o senhor quem fechou o meu sutiã pela manhã. Sabe que não tem nada perigoso aí. — alçou a sobrancelha e sorriu ao vê-lo esboçar um sorriso.

       — Você toda é um perigo, Karen. — brincou e emendou baixinho: — Seu corpo é uma arma e, Deus tenha piedade de mim, mas prefiro enfrentar uma AR-15 a ter de resisti-lo. Isso é impossível.

       Ele baixou a cabeça e mordiscou-lhe o lábio inferior, prendendo-o entre os seus. Depois, parou e a encarou. Ela continuava à espera, expectante e alerta. O beijo veio devagar. Beijou-a nos cantos dos lábios, chupando-lhe as dobras deles e enfiando a ponta da língua por entre as comissuras. E, não encontrando na peça de lycra e renda nada que a incriminasse, afastou-se. Somente o necessário para dizer sem falar que o que procurava encontraria. Mas não tinha pressa. Voltou a buscá-la, pegando-a pela nuca e puxando-lhe a cabeça ao encontro de sua boca. Para não se desequilibrar, ela se grudou nele e enlaçou-lhe o pescoço.  Foi a sua vez de lhe tomar os lábios e penetrar a língua para chupar a dele com vontade. Sentindo duas mãos explorando e pressionando o seu corpo por sobre a roupa, investigando cada parte daquele território febril, alcançando o traseiro, apertando-o, puxando o quadril dela contra si.  A revista acabava no abraço apertado e possessivo. Ela tinha os seios esmagados contra o tórax dele, a boca comprimida contra outra que a devorava como a um pêssego polpudo. O cheiro da colônia almiscarada acentuava ainda mais a fragrância natural de macho. Rodrigo colou-a contra a parede, enfiando uma perna entre as suas. Com a mão livre, baixou-lhe o zíper do jeans e desceu até o cós da calcinha. Karen gemeu por entre os lábios dele. Perdia as forças e era arrastada por um turbilhão de sensações avassaladoras. Entregou-se ao deleite e praticamente parou de pensar.

       Quando Rodrigo se afastou, ela ainda permaneceu por alguns segundos imersa naquele mundo particular das sensações onde o ar era rarefeito. A sorte era que estava encostada contra a parede. Pois, mesmo de pé, a qualquer momento temia cair de joelhos. Abriu os olhos, aos poucos, acostumando-se à claridade relampejante que explodia em flash prateados através do vidro da sala. A boca inchada e entreaberta, as pálpebras semicerradas, o coração bombeando forte o sangue. Sabia que se olhasse para si veria o jeans abaixado expondo a parte da frente da roupa íntima e a camiseta erguida até metade da barriga. Ela preferiu olhar para ele. Só conseguiu balbuciar:

       — É sempre assim que revista os seus suspeitos?

       Ligeiramente ofegante, ele procurou voltar ao controle da situação. Arou o cabelo com os dedos e bagunçou-o ainda mais. Urgia acalmar-se. Mesmo por que uma bela ereção despontava em seu jeans. Sorriu de leve e buscou a carteira de cigarros. Precisava fumar antes de desarmá-la. Havia um objeto debaixo do jeans, possivelmente, uma faca presa no elástico da calcinha.

       — Quer que eu chame a Adele ou prefere a Bonnie? — sim, ele a tratava como uma suspeita.

       — As duas que mais me odeiam? Obrigada, dispenso.

       — Karen, — ele esperou que ela o encarasse e perguntou: — o que tem escondido aí? — apontou para a calça dela na linha da cintura. — Sei que está armada.

       Ela sorriu de forma inocente.

       — Por que não tirou o senhor mesmo quando me apalpou?

       — Estou lhe dando o benefício da dúvida.

       — Certo. — concordou ela, puxando da calcinha o estilete com cabo amarelo e exibindo-o como se fosse a primeira vez que via um daqueles, continuou sem se abalar: — Está se referindo a este objeto aqui? — antes que ele respondesse, emendou com tranquilidade: — Pois é, comprei para o Johnny. Aí, vi perdido pelo quarto dele e pensei em usá-lo para me proteger. Afinal, uma mocinha como eu deve andar acompanhada de algo que perfure.

       O delegado controlou-se para não rir. Karen era cara de pau demais, pensou, mantendo o semblante sério.

       — Isso é uma arma, e não preciso pedir para que me entregue, não é mesmo? — arqueou uma sobrancelha, a fim de enfatizar a questão.

       — Por quê? Vai me prender, me fichar, me tornar uma bandidona? — provocou-o, enquanto subia o zíper da calça sem se importar em resgatar o estilete e entregá-lo à autoridade. — Sabe de uma coisa, meu caro? Não tem como afirmar que vou deixá-lo. Pra quê falar isso, hein?! Odeio quando banca o superior, odeio!

       Ele franziu o cenho, estranhando o rumo da conversa.

       — Não sou superior a você, nunca fui. — afirmou, balançando a cabeça em negativo. — Só quero que não se machuque. E se não me entregar essa maldita arma, terei de algemá-la e arrancar as suas roupas.

       Falando sério, com uma ruga marcando-lhe o meio da testa, Rodrigo parecia-se mesmo com um oficial da lei, Karen considerou. A vida era feita de momentos, o de avançar e o de recuar. Havia também o de parar e fingir-se de morta. Se forçasse a situação teria de ir até o fim. Preferia perder um round por pontos a ser nocauteada no ringue. Recuou e entregou o estilete pelo cabo.

       — O dia em que encontrar meu corpo desfigurado no mato, lembrará que eu estava desarmada. — sentenciou de forma dramática.

       O estilete foi trancafiado em uma das gavetas da mesa do delegado. Ele a contornou e puxou a mulher para um abraço apertado.

       — O Mendes está morto, e ninguém mais encostará um dedo sequer em você. Entendeu?

       Ela o abraçou e aconchegou-se nele. Os trovões reverberavam na tarde que se transformou em noite. O barulho do vento batendo contras as janelas e o seu assobio ecoando pelas ruas eram assustadores. Mas Karen se sentia em paz. Mesmo que soubesse a farsa de sua confissão. Jamais pensara em se proteger. Porque a melhor proteção era o ataque. E a única pessoa que poderia, um dia, ter o rosto rasgado por seu estilete — que acabava de ser apreendido pela polícia, era a mesma pessoa que a instigava a participar das violentas corridas e a beber como homem. Thales era o seu demônio particular.

       — Meu expediente acaba por aqui. Hoje é plantão da Adele. E se não fosse o surto do neto do Marau, eu estaria em casa. — comentou, desvencilhando-se dela e juntando seus pertences sobre a mesa para sair. — Temos de comprar sorvete e fazer o pessoal de casa feliz. Os poucos domingos de folga que tenho quero passar com a minha família. — afirmou, sorrindo, e pegando-lhe a mão.

       — O Johnny está na casa de um amigo, a vó com a Veridiana aprontando alguma, a Sabrina passou o dia com o Eduardo e a Val deve estar esparramada na cama roncando. — ela enumerou, divertindo-se. — Bem, ainda tem o jantar, e todo mundo sempre volta para jantar à mesa.

       Ao volante da camionete, Rodrigo deu uma espiada no Fusca pelo retrovisor e viu-o afastar-se. Suspirou, cansado. Do outro lado da rua, um aceno de mão desviou-lhe a atenção de si mesmo. Era Rita. Devolveu-lhe o aceno sem sorrir.

         

       Naquela hora da manhã o calor era intenso. Faltava pouco para o meio-dia. O sol tentava em vão aparecer e, descontente em ser privado de se exibir, enviava raios de fogo para fustigar os terráqueos. Entretanto, mesmo que chovesse ou caísse neve no pátio da casa conjugada ao mercadinho, ainda assim Nova estaria com a garganta seca. Aceitou a água mineral com várias pedras de gelo oferecida pela dona da casa. A bebida refrescou-lhe um pouco, mas não a livrou do nervosismo. O que a mulher, proprietária do estabelecimento e esposa de um alcoólatra em reabilitação, funcionário do cartório no centro, acabara de lhe dizer era capaz de secar também o sangue nas suas veias.

       Tudo começou com uma ligação. Antes disso, tudo começou com a publicação de um artigo para o Jornal do Cerrado. À época, Nova trabalhava como jornalista e acreditava que um artigo apontando os colonizadores de Matarana como assassinos e desapropriadores de terras alheias, podia lhe render destaque junto à imprensa nacional. O que lhe rendera mesmo fora a venda de seus princípios por um punhado de dinheiro. O seu serviço de ghost  writer e o silêncio comprados a peso de ouro por Thales Dolejal.

       A história entre Nova e o ex-chefe e, agora, avô de seu filho, teria acabado por aí caso algumas pessoas não tivessem o hábito de guardar jornais velhos. Como Bety, a loira magra, fumante e com aparência de gruppie de banda de rock dos anos 70. Ela cuidava da casa, do mercado e de três garotos supersônicos. Talvez fosse por isso que fumasse e roesse as unhas em movimentos intercalados. Nova até pensou em pedir-lhe para apagar o cigarro em respeito à sua gravidez. Mas estava na casa daquela mulher que jamais vira na vida, sentada à mesa no meio da cozinha, cercada por brinquedos e panelas sujas, esperando que a tal revelação prometida ao telefone fosse valer a pena aspirar por alguns minutos o ar poluído.

       Bety lhe telefonara quando, ao forrar o piso da cozinha com jornal para descongelar a geladeira, lera o artigo escrito pela jornalista que cantava no bar do Gringo. A loira perdera as ilusões quanto a ter uma vida em que não tivesse de trabalhar muito e ainda ter de ser uma boa mulher e uma amante eficiente. Ela guardava para si um segredo que sabia ser valioso. Pensara em vendê-lo para o coronel Rodrigues. Mas havia o receio de estar fazendo a coisa errada. Pediu a Deus um sinal — como disse a Nova, um sinal. Quando desistiu do sinal, resolveu pôr um fim na crosta grossa de gelo no congelador. Pegou os jornais guardados na garagem. Tudo mudou, outra perspectiva. O segredo deveria ser revelado. Bety, então, quis falar. Telefonou para a dona do artigo e pediu que viesse à sua casa na rua detrás da Imobiliária Vilela.

       — Vem aqui, dona Nova. — chamou-a Bety, à porta da cozinha que dava para o seu pátio. — Está vendo aquela porta, ali, depois das pilhas de telhas? — espichou o braço e apontou para os fundos da construção de alvenaria que dividia o mesmo terreno com a sua casa.

       Acompanhou a indicação com os olhos enquanto se posicionava ao lado da vizinha de Vilela, falecido corretor de imóveis.

       — Sim, é a imobiliária onde o corretor foi assassinado. — comentou Nova, franzindo o cenho e tentando assimilar antecipadamente a razão de estar fuxicando a respeito do local de um crime.

       Bety foi precisa ao dizer:

       — Vi quem matou o Teobaldo.

       — É? — perguntou à mulher, desconfiada. Se mostrasse ansiedade, o passarinho alçaria voo. E era bem provável que, tendo uma vizinha grudada à sua casa como únicas diversões criar filhos e vender Coca-Cola gelada, o corretor fosse motivo de espiadelas vez por outra.

       Com um movimento de cabeça como se quisesse se esquivar de um inseto em sua orelha, a loira falou, voltando-se para Nova:

       — Eu estava tentando pôr as crias na cama, e isso é uma tarefa de fazer qualquer uma suar. As pragas fogem e se escondem só de sacanagem. — ela bufou e, em seguida, tornou a concentrar-se no que de fato deveria se concentrar: — Bom, uma das pestes escapou, a peste do meio, e eu vim buscar aqui no pátio.

       Nessa parte da narrativa, a peste-mãe encaminhou-se até a metade do pátio contornado pela cerca-viva mais morta que Nova havia visto. Os arbustos amarelados e secos, apesar de abundantes, não eram tão altos ao ponto de encobrirem totalmente a visão do quintal de cimento e, adiante, a entrada dos fundos da imobiliária. De onde estavam entre o tanque de concreto azulejado colado à parede e as plantas crescidas por sobre a amurada de madeira, via-se o perímetro que compreendia a porta dos fundos. E era para lá que as duas mulheres olhavam quando Bety reafirmou:

       — Vi o camarada que matou o velho. Não ia dizer nada, manter as coisas nos eixos, seguir minha vida sem me envolver com merda nenhuma dessa cidade. Mas quando li o que a senhora escreveu, dona Nova, me subiu o sangue pra cabeça e eu pensei, merda!, até quando os endinheirados se safarão? — refletiu por dez segundos e prosseguiu: — Vou contar o que vi, mas não pense que irei testemunhar na polícia, na justiça ou no confessionário. Não meterei a minha mão em vespeiro, eu só mostrarei onde a vespa atacou. Se aceitar as minhas condições... — deu de ombros à espera.

       O que faria com um segredo que não poderia revelar?

       — Quem matou Teobaldo Vilela?

       Saber sobre ele já lhe bastava.

       Bety sorriu, satisfeita.

       — Darei três pistas e, se a senhora for esperta, e eu sei que é, deduzirá quem é o assassino do corretor. — ela fez uma pausa de suspense e meteu os dois olhos em Nova, dizendo: — Ele é dono de quase toda a cidade e...

       A mulher de Franco fez um gesto de contenção para a outra e falou:

       — Não precisa ir adiante. — tentou sorrir, a charada mais fácil da paróquia, ela pensou e perguntou diretamente: — O que realmente viu? — precisava de certezas.

       — Isso que acabei de dizer, o dono de tudo saiu pela porta dos fundos da imobiliária do velho na noite em que ele foi assassinado. Depois não vi mais o velho. Por isso telefonei para a polícia, de forma anônima, claro.

       Nova estreitou os olhos, pôs as mãos nos quadris e foi direto ao ponto:

       — Viu o coronel Marau saindo da imobiliária na noite em que Teobaldo Vilela foi morto?

       Foi a vez de Bety estreitar os olhos, sondando a ex-jornalista de forma avaliativa. Por que ela não deixou dar as outras duas pistas?

       — Não.

       — Não? Não o quê?

       — Não vi o coronel.

 

       Franco não estava acostumado a esperar por ninguém. Naquele dia, zanzava de um lado para o outro no corredor do prédio comercial, enquanto a portas fechadas homens poderosos jogavam cartas com vidas humanas. Era certo que boa coisa não faziam, considerava o segurança do coronel Rodrigues. Isso, particularmente, não o incomodava. Se tramavam traficar madeira ou subornar agentes do Ibama, para Franco, pouco importava. Irritava-o era a espera e o lado errado da porta. Deveria estar lá dentro, a postos, à esquerda do patrão. Como no tempo em que trabalhava para outro fazendeiro. Sempre ao lado, quase como um ectoplasma, uma sombra ou uma terceira visão. Não apenas a presença física, mais como uma antena mística captando fluídos negativos e pestilentos ao redor do chefe e protegido. Quando ainda era segurança de Thales Dolejal, jamais houvera entre eles porta ou parede. Para aonde fosse o fazendeiro levava-o e o mantinha à sua cola, interceptando olhares, analisando atitudes, observando o pulsar de uma veia na têmpora do interlocutor. Porque o homem que o resgatara da estrada e lhe apontara com ferro e fogo o destino sabia que Franco decifrava códigos antigos e esquecidos pelo resto da humanidade. Ainda mais depois de voltar da terra dos mortos. Porém, o coronel de Goiás, seu atual patrão, preferia excluí-lo dos seus negócios no centro da cidade. Precisava do serviço de proteção quando estava a céu aberto, saindo ou entrando da camionete importada, administrando sua fazenda distante poucos quilômetros da Arco Verde ou, à noite, quando desfilava por Matarana com a esposa de vinte anos.

       Como proteger um corpo sem lhe conhecer a alma? Era o que ele se perguntava, enfiando a mão no bolso traseiro do jeans e puxando a carteira de cigarros. Ignorou o aviso que o proibia fumar. Riscou o fósforo e pôs fogo na ponta do cigarro. Tragou-o com legítimo prazer. A fumaça o separou do seu colega de ofício sentado displicentemente em um banco de madeira duro disposto junto à parede. Era um quarentão com a fisionomia de um jovem envelhecido mais pela dor do que pelo tempo. O tempo marcava com um arado a face, linhas profundas e secas; a dor, por sua vez, tingia órbitas oculares de nebulosidade, inchava a pele debaixo dos olhos e nas pálpebras e tatuava olheiras. Franco via isso nos outros, as faces envelhecidas pelo tempo ou pela dor. Era o caso de Alberto que, além de ter enterrado pai e mãe e controlar-se para não voltar a encher a cara, era religioso. Boa parte do seu salário pagava a sua crença mensalmente. Uma das crenças de Alberto era a obediência. O segurança obedecia ao patrão, a Deus, ao pastor e às placas de sinalização. Ao vê-lo fumar, franziu o cenho, contrariado, e o provocou:

       — Não leu a placa, guri?

       Franco era um sujeito normalmente indiferente aos outros. Poucas pessoas interessavam-no. Ao longo da vida, aqueles que deveriam amá-lo também se desinteressaram dele. Se não fosse a eficiência de uma placenta, ele não existiria. E se não fosse o desvio de um projétil a centímetros do seu coração, ele não estaria caminhando com impaciência no corredor acarpetado e fumando sob o olhar acusador de um ser temente a Deus e adorador do malte e da cevada. Descoberto filho de um dos homens mais ricos da região ao mesmo tempo em que escapava de um matador de aluguel contratado pelo próprio pai, Franco considerava um sobrevivente das trevas, disposto a fazer da melhor maneira possível o seu trabalho. Abrira mão de administrar a fazenda onde crescera e que, possivelmente, herdaria. Jogara no acostamento da estrada federal a chance de seguir a cartilha de Thales Dolejal e prosperar. Esnobara a negociata e resistira a vender sua alma ao diabo. E por que o fizera? Porque odiava o fato de sentir-se incompleto sem ele, sem o desgraçado que inoculara sua mãe com seu esperma.

       Parou no meio do corredor e armou o sorriso debochado que oferecia aos que o tomavam por idiota:

       — Às vezes, colega, sinto uma vontade enorme de torcer o seu pescoço.

       Alberto empertigou-se no banco e, com tal gesto, a bainha do jeans se ergueu exibindo as botas velhas e furadas.

       — Por que não tenta? — já não mais sorria quando o desafiou. — Quer perder o seu único amigo?

       O segurança tragou o cigarro e, em seguida, jogou a bagana sobre o carpete e pisou com a bota sobre ela, esmagando-a. Imaginava o princípio de um incêndio, as labaredas, a destruição do prédio e o patrão gorducho com seu chapéu gigantesco torrando como um porco na grelha. Deu as costas ao suposto amigo e observou a avenida principal através da parede envidraçada.

       — Sempre quis matar um amigo para testar a temperatura da minha alma, sabe? — falou com desinteresse, como se conversasse consigo mesmo. — A cidade inteira acredita que eu seja um maluco, um psicopata. No entanto, trabalho, vivo com uma mulher linda e inteligente e vou ser pai. Mas ninguém vê isso. E sabe por que, Alberto? — ele se virou para o segurança e acrescentou com sorriso mau: — Porque ninguém foge do que é, da sua origem, da sua árvore genealógica e eu sou o fruto do mal. Então, meu caro amigo, quando digo que tenho vontade de matar você é melhor não testar os meus limites, uma vez que nem mesmo eu sei até onde sou capaz de resistir à minha natureza destruidora.

       No templo Jesus é Divino, o pastor pregava sobre a tolerância aos que não eram cristãos. Jesus não havia morrido na cruz por nada. E ele não morrera por causa dos que acreditavam nele. O sangue de Cristo fora derramado devido à existência de tipinhos como Franco. A humanidade era infestada deles, como praga na lavoura do Senhor. Matando-se um, nasciam mais três. Levar-lhe a Palavra uma missão impossível. Quando não se tinha Deus no coração, a seta do destino apontava na direção do inferno. Foi isso que Alberto disse a Franco.

       — Não enche, Alberto!, sou apenas um homem e não o trânsito de São Paulo. Sabe muito bem onde enfiar a sua seta. — falou de um jeito jocoso.

       — É por isso que sempre tem de olhar por cima do ombro. Se a sua natureza torna você forte também pode tornar você um defunto. Sabe muito bem que o coronel te contratou, porque o senhor Dolejal interferiu.

       — O “senhor” Dolejal não tem nada a ver com a minha contratação. Para falar a verdade, ele bem iria preferir que eu estivesse desempregado e me humilhando para voltar a trabalhar para ele. — afirmou, o queixo erguido em tom de desafio. — Ele jamais me ajudaria, a não ser se fosse para me empurrar de um penhasco.

       — Bom, é só falar com o coronel. Todo mundo sabe que o senhor Dolejal telefonou para o coronel pedindo que te desse uma chance. Acho que estava com medo que morresse de fome ou que não conseguisse sustentar a tua mulher...

       Por um momento, ele sorveu o que acabava de ouvir até o veneno deitar no fundo do seu estômago e queimar. Respirou fundo e ajeitou o chapéu.

       — Se o meu antigo patrão me deu boas referências é porque eu mereci elas. — ele fez um sinal com a cabeça para a porta do escritório e completou: — Pelo menos o Dolejal não esconde nada dos seus funcionários, o que faz deles os seus guerreiros leais.

       — Ou cúmplices. — instigou Alberto.

       — Sim, cúmplices do crime de devoção. — afirmou Franco, escarnecendo.

       —Ééé, se o meu pai fosse dono de Matarana, eu também adoraria ele. Para falar a verdade, até construiria um altar em seu louvor. — o homem encurvou o corpo para frente como se fosse contar um segredo, mas apenas brincou com o fogo: — Me diz uma coisa, rapaz, a estratégia é esnobar o que mais quer? Fazer birra pro papai para ver se ele corre para te buscar de volta? Ou acha mesmo que o coronel Rodrigues vai com os teus cornos?

       O pistoleiro estreitou os olhos sentindo a claridade do dia pressionar-lhe as pálpebras. Cogitou ignorar o colega de profissão, ainda mais que ele falava a verdade. No fundo do seu amargo coração, queria muito que o pai precisasse dele. Nem precisava amá-lo como filho. Ninguém podia viver de sonhos. Desejava que Dolejal descobrisse que os anos passados juntos os tornaram predestinados um ao outro. Reféns de uma cumplicidade tão antiga quanto maléfica. O relato do assassinato do primeiro Dolejal em solo mataranense vinculara-os ao mesmo destino.

       Se Franco conseguisse conter a sua impulsividade e a necessidade de aceitação paterna, talvez pudesse postar-se novamente à esquerda do seu legítimo patrão. Porque decididamente o coronel Rodrigues era um bosta.

         

       Nova dirigia o jipe com as duas mãos no volante, vez ou outra endereçava um rápido olhar para o retrovisor e percebia um automóvel na estrada que a levava de volta para casa, à beira do Rio Verde. Entrou pela alameda de cascalhos, após ultrapassar os portões de madeira, abertos.

       A picape vermelha estacionada indicava que Franco chegara para almoçar. Felicitando-se por ter feito a comida na noite anterior, ela desligou o motor do jipe e pegou no banco ao lado o seu velho bolsão. Encaminhou-se até a porta dos fundos de casa imaginando-se como o assassino de Teobaldo fazendo o mesmo. A pistola enfiada no cós da calça pronta para ser sacada e disparada à queima-roupa. Um tiro certeiro no rosto. Fora assim que o homem sem passado morrera.

       Todas as suas inquietações se dissiparam ao entrar na cozinha. O cheiro da comida quente tornava aquela parte da casa o coração acolhedor. Mas não era apenas isso. Era muito mais que isso. Era o homem, ali, no jeans surrado, na camiseta de algodão puída, nas botas de vaqueiro. O chapéu sobre a mesa e o cabelo loiro, despenteado, por sobre a nuca, roçando-lhe os ombros em mechas irregulares, queimado, um amarelo vivo sobre a cor do trigo. Toda a vez que ela o via, em todos e cada segundo que dividia o ar com ele e a própria vida, sentia fundo a sensação de perda, de que alguém o arrancaria de si. Amava-o então em cada fração do tempo que ainda possuíam, aproveitando-o, sorvendo-o, fazendo um estoque dele dentro de si para a eternidade.

       Vê-lo de costas mexendo o suco de laranja com uma colher, concentrado na tarefa de preparar o almoço para os dois, encheu seu coração de ternura e decidiu que jamais lhe contaria que seu pai matara mais um.

       Ele se virou com um sorriso nos lábios. Sem falar, o dedo em gancho chamando-a para junto de si, para se aconchegar entre seus braços. Abraçou-o com força como se não o visse há anos. Franco entendia esse tipo de carinho, chamava-se abraço de saudade.

       — Onde as duas estavam, hein? — perguntou baixinho, a voz morna e macia.

       Ela aspirou o cheiro da sua camiseta, roçou o nariz contra o tórax firme que se tornara seu porto seguro.

       — Continua insistindo que teremos uma filha. — provocou-o com um sorriso, afastando a cabeça para olhá-lo nos olhos.

       — É uma menina, eu sei. — teimou, franzindo o nariz como as coelhinhas da playboy o faziam. — Não precisamos de máquina nenhuma para dizer isso.

       Franco punha na cabeça que qualquer máquina usada para investigar o interior do ser humano liberava substância tóxica ao organismo. Portanto, ele era contrário à ecografia. Na primeira consulta batera boca com a obstetra, reafirmando sua posição de pai zeloso e tosco, como Nova lhe dissera em casa ao chegarem:

       — Franco, querido, a doutora só disse que mais para frente é bom fazermos uma ecografia para ver se está tudo bem com o bebê.

       — Eu sei que está tudo bem. Nada de máquinas perto da nossa filha.

       — Ai, meu Santo Cristo, não seja tosco, caubói. Estamos no século XXI, vai me dizer, por acaso, que nunca usou um computador?

       Ele lhe endereçou um sorriso daqueles nem um pouco envergonhado, e soltou a pérola:

       — Não, dona, nunca mexi num bicho desses, nem sei pra quê serve.

       — Mas usa celular, ora! — debochou, rindo-se.

       — O Dolejal me obrigou. — replicou a contragosto.

       Ele era assim mesmo, aquilo que dizia e acreditava. Natural, selvagem e completamente passional. Não havia um pingo de pragmatismo. Franco era explosão e combustão humana. Possuía ideias conservadoras e, por vezes, sem pé nem cabeça, como a rejeição a máquinas, por exemplo, ou a teoria quase obsessiva de que Cris a qualquer momento se atravessaria no caminho deles.

       Ele era direto e preciso, falava o que pensava na lata, na cara da pessoa. Engatilhava as palavras e testava a resistência alheia até o limite. Peitava Rodrigo, mesmo considerando-o amigo e aliado. Lutava no ringue verbal com Karen, não baixava nunca a guarda, atacava de frente sem desviar os olhos. Jamais tornara a chamá-la de vadia. Ele aprendia, aos poucos, a respeitar quem merecia respeito. Evitava encontrar Dolejal pela cidade, falava mal do coronel Rodrigues, seu patrão, para quem quisesse ouvir. Mal educado, cuspia no chão, falava palavrão e estava sempre pronto para uma briga. Mas com Nova tudo era diferente. Para Nova, Franco Dolejal era simplesmente um príncipe. Um nobre com os olhos azuis claríssimos que a paquerava à mesa do jantar e depois a erguia nos braços para pô-la sobre o capô da picape. Durante toda a estação das chuvas, o céu minado de estrelas, iluminava a cidade dos apaixonados, dos que se sentavam sobre o capô de uma camionete e, abraçados, ficavam por ali, vivendo a densidade do momento até a sua raiz, tudo.

       Para Nova, Franco era uma benção, uma dádiva, a prova concreta da existência de Deus. Não raras vezes acordava durante a madrugada para vê-lo ao seu lado, adormecido, o seu caubói irreverente, o seu menino abandonado, o seu homem protetor. Afagava o seu cabelo e puxava-o para si, abraçando-o como se o tivesse posto no mundo, como se lhe tivesse dado o primeiro banho e o ensinado a caminhar. Ela queria preencher a lacuna deixada pela mãe, a ferida ainda aberta, a brutalidade enraizada no gene. Mas então ele acordava, a cabeça deitada sobre seios dela, despertava aos poucos, aturdido, descabelado, lindo. E, desperto, os papéis se invertiam. De olhos abertos, Franco era o homem da casa, o protetor, o líder, o cara no comando. Cuidava da mulher, nutria-a de comida, bebida e paixão. Não a mimava ou adulava, uma vez que a treinava para ser forte, indestrutível como ele. Ensinara-a a atirar e não deixava que ela saísse sem uma automática dentro da bolsa. Determinava. Ordenava. Exigia. Oferecia-se todo e completo para ser amado e amava na mesma medida de sua entrega.

       Se alguém procurava um amor perfeito, um homem perfeito, não deveria andar com Franco. Caso quisesse um amor de verdade, aquele tipo mais comum, do cotidiano, forjado pela vontade de se estar junto até o fim, custasse o que custasse, viagem ao centro da Terra, descida aos infernos, bem, era assim com Franco. Sem meias medidas ou disfarces.

       Vendo-a quieta, com o nariz enterrado em sua camiseta de banda, ele insistiu:

       — Por onde andava, princesa? — como não era diplomático, o tom da voz demonstrava uma curiosidade tendendo à desconfiança.

       — Lembra que falei sobre aquela mulher que telefonou, depois de ler o meu artigo sobre a colonização de Matarana? — começou, ainda abraçada, e continuou: — Bem, fui até a sua casa antes de ela acabar vindo aqui.

       Ele se afastou e pegou-lhe o queixo com dois dedos, erguendo-lhe o rosto. Oh, sim, começava a inspeção de sua alma. Precisava encarar o abismo e não sucumbir. Estava decidida a protegê-lo. Ainda não sabia o que levava Thales Dolejal a matar um corretor de imóveis. Porém, pressentia que Franco tinha a resposta. Ele não queira mais o pai e ex-patrão em sua vida, e não seria Nova a trazê-lo. Além do mais, somente Rodrigo poderia ajudá-la.

       — O que ela queira com você?

       — Emprego para o marido, pelo o que entendi. — mentiu, olhando-o nos olhos e completou a farsa: — O cara trabalha no cartório e quer mudar de vida. Ela achou que eu era uma espécie de porta-voz dos oprimidos. — deu de ombros, fingindo naturalidade.

       Ele ainda a fitava com bastante atenção.

       — Sabe que não gosto que saia sozinha.

       — É, eu sei, mas era aqui pertinho.

       — A louca não sabe que você não trabalha mais no Jornal? — perguntou num tom ríspido. Ele sabia. Nova engoliu em seco, ele sabia que ela estava mentindo.

       — Acho que não. — balbuciou.

       — Devia ter me avisado que tinha decido fazer uma visitinha a Bety. — afirmou, desafiador.

       — Como sabe o nome dela?

       — Você me disse. — falou simplesmente e acrescentou com estudada naturalidade: — Vamos almoçar antes que a comida esfrie. Sabe que não gosto de usar o micro-ondas.

       Ela se desvencilhou dele e foi até o banheiro se lavar. Aproveitou para refrescar-se e molhou o rosto com as mãos em concha. Ao erguer a cabeça, viu-o através do espelho, atrás de si. Sorriu nervosa. Era a segunda vez que mentia para ele. A primeira fora quando declarara que não haveria nada sério entre eles, que a noite no hotel à beira da estrada, a primeira noite deles, fora apenas um romance passageiro, um namorico. E agora mentia novamente.

       Sentou-se à mesa ainda sentindo aquele olhar bisbilhoteiro sobre si. Ao servir-se de arroz, metade dos grãos caiu sobre a toalha. Era difícil ignorá-lo.

       — Por que está me olhando assim?

       O gato analisava com um meio sorriso o ratinho encurralado contra a parede. O felino sorria esperando para dar o bote. Mas preferiu servir-se de comida após a mulher. Em seguida, enchendo a colher com ervilhas e cenouras cruas, raladas, concentrou-se em mastigar, fingindo admirar a combinação do quadriculado de listras azuis e brancas do tecido da toalha.

       Tal atitude irritou-a. Preferia o embate verbal à perigosa indiferença. Ainda mais com Franco, que não deixava nada em suspenso.

       — Nunca disse o nome da mulher para você. — afirmou, fitando-o atentamente.

       Ele triturou o alimento com movimentos preguiçosos enquanto desviava os olhos da toalha e a encarava com escárnio. E apenas isso.

       — Como sabe que fui falar com ela? — ela insistiu.

       — Você disse, princesa, só que não lembra. — respondeu com a calma de um monge.

       Nova torceu o canto dos lábios num gesto de irritação.

       — Estou grávida, não caduca! — exclamou e, vendo que ele arqueava as sobrancelhas surpreso por sua reação, fulminou: — Não acredito que me seguiu.

       Por um momento, ele pareceu sem jeito, incomodado até, mexeu-se desconfortável na cadeira. Para ganhar tempo emborcou todo o suco do copo. Depois, espreguiçou-se, erguendo os braços para o alto e, por fim, observando o semblante amarrado de Nova, defendeu-se sem vestígio de preocupação:

       — Não preciso segui-la. Todo mundo sabe sobre todo mundo. É assim que funcionam as coisas no interior. Alguém viu você estacionar diante da casa da maluca e me telefonou.

       — Essa gente não tem o que fazer, não, é? — bufou, irritada.

       Ele riu.

       — Tem, sim, manter todo mundo bem informado.

       — Que saco! — reclamou, empurrando o prato para o lado e cravando os olhos no segurança do coronel Rodrigues: — E daí que fui conversar com a Bety? Ela estava com vergonha de pedir ajuda para o marido...

       — Mas você não sente nenhuma por inventar merda para o seu futuro marido, não é? — a pergunta foi feita com calma, em um tom baixo e suave, medindo a rispidez para não estressá-la. Mas, ainda assim, ele jogou o desafio na mesa.

       — Concordo que continue bancando o meu segurança, sei que se preocupa com o bebê e com a minha saúde, mas isso não lhe dá o direito de...

       Foi interrompida por uma voz um tom mais áspero que o normal; pelo menos, para quando ele falava com ela.

       — De quê?, de saber por onde anda a minha mulher? É, Nova? Um camarada me liga e diz que você está de fuxico com uma louca de carteirinha, uma ex-paciente de hospício cujo marido faz de tudo para entrar em coma alcoólico e escapar do casamento, e quer que eu mantenha os meus olhos no traseiro gordo do coronel? — fez uma pausa para se ajeitar na cadeira, os cotovelos agora cravados na mesa, e continuou: —Você sabia, senhorita Monteiro, que a tal Bety saiu do hospício municipal, porque ele fechou por falta de verbas? Se não acredita, posso levar a senhorita até a prefeitura para ler os registros do antigo sanatório público de Matarana. Tenho um conhecido que trabalha lá e consegue esses arquivos fácil, fácil. Dez anos atrás, quando nem você nem o seu amiguinho haviam chegado à cidade, nós, mataranenses, tínhamos o nosso hospício querido e amado. Quando ele fechou, os doidos foram mandados para suas famílias. E a dona Bety conheceu o seu pinguço e se encheram de filhos. Não sei o que ela disse pra você, mas, seja o que for, faz parte do seu delírio. Ninguém leva essa mulher a sério. Por isso acho melhor deixar o marido dela trabalhando no cartório. Afinal, ele faz isso há uns quinze anos, eu acho. — deu de ombros com estudada indiferença.

       Uma cidade envenenada pela ambição tinha de ter o seu lugar para o repouso. Isso justificava a existência de um hospital psiquiátrico, ponderava Nova. Era evidente que Bety não batia bem da cabeça, os trejeitos nervosos, fumando e roendo as unhas, o modo como falava dos filhos, a aparência excêntrica. Mas até ser considerada uma louca de pedra era outra história. A jornalista dentro de si implorava para ver os registros do hospital e ler o nome da loira esquisitona. Por outro lado, a futura esposa de Franco acreditava nas suas palavras, seu coração acreditava nele e não via motivos para que mentisse...

       Até que ele falou:

       — Fique desse lado da margem, princesa, é claro e límpido. Não molhe o seu corpo em água suja.

       — Está me ameaçando, pistoleiro? — fitou-o com firmeza, contraindo os maxilares e não se deixando enganar pelas suas emoções.

       Franco estreitou os olhos e era o diabo loiro voltando ao seu corpo. Um ou dois segundos, o suficiente para Nova descobrir que uma vez pistoleiro, sempre pistoleiro, e que uma vez cego devoto de Thales Dolejal, apesar de tudo, ainda devoto do assassino de Teobaldo e mandante do assassinato de Mendes. Ela era a margem límpida, como lhe afirmou, o lado claro de sua vida e personalidade. Contudo, seria também o mais forte e dominante?

       Quando o caubói caiu de joelhos ao seu lado na cadeira e deitou a cabeça sobre suas pernas, abraçando-as como uma boia solta no oceano, pensou ter ouvido:

       — Me perdoa.

       Mas não foi isso que ele disse.

         

       Maria Helena trabalhava para Cristiano Bittencourt havia duas semanas. Desde que ele se mudara para o apartamento no prédio mais luxuoso do centro da cidade. À época houvera rumores que sua mudança da casinha à beira do Rio Verde para um dos imóveis de Thales Dolejal — um edifício envidraçado de cinco andares, o quinto como sendo a cobertura do médico, relacionava-se à união de sua amiga de infância com o pistoleiro que todos chamavam de diabo loiro. O que acontecera fora rapidamente absorvido pelos mataranenses: o doutor se transformara. Atendia ainda no hospital municipal, uma vez que a cidade somente podia contar com dois pediatras como funcionários públicos, mas também, agora, possuía consultório em uma clínica onde dividia as salas luxuosas e bem equipadas com duas médicas, ambas obstetras.  A clínica sofisticada — pensava Maria, torcendo o lábio num esgar de desgosto e entrando na sala de estar ampla cujo janelão exibia um céu nublado — era o atrativo da classe abastada da região. Se o pediatra não atendesse a população mais pobre, entre uma consulta e outra com as crianças herdeiras de fazendas e empresas, Maria, com certeza, não esfregaria tão bem o chão do médico. O fato de ele ser considerado o melhor partido da cidade nada significava para ela.

       Encontrou-o no terraço, sentado à mesa, diante da caneca de café com leite, ladeada pelo suco de laranja, torradas e um mamão pela metade. Lia o jornal, um de seus hábitos matutinos — como ela bem observara. Sentado com displicência na cadeira estofada, as pernas esticadas e cruzadas, descalço e vestido na calça de sarja bege e camiseta branca, de mangas curtas e gola V, tinha as sobrancelhas franzidas, o que lhe acentuava a sobriedade do semblante de 37 anos, o rosto de quem carregava um fardo sobre os ombros e, que, sem saber, eram os próprios ombros.

       Quando apontou às portas duplas envidraçadas do terraço, o médico voltou-se e, reconhecendo-a, sorriu. Fez um sinal para entrar e indicou-lhe com a cabeça a cadeira à sua frente.

       — Bom dia, Helena. Como está?

       A diarista sorriu encabulada. O doutor Bittencourt era a única pessoa que a chamava pelo segundo nome. Ficava bonito nos lábios dele, o “Helena”. A voz sempre serena e baixa de homem controlado e maduro parecia que lhe acarinhava as letras do nome. E ele falava de um jeito tão simpático e natural que a convidava a aceitar um novo batismo, um novo registro em cartório. No fundo, ela sabia que estava mais para Helena do que para Maria. Oh, sim.

       Puxou a cadeira, discretamente, temendo fazer alguma trapalhada. Toda a vez que ele a convidava para tomarem café da manhã se sentia uma adolescente desajeitada. Sentou-se e antes que fizesse qualquer movimento, o patrão despejava café preto e fumegante sobre uma segunda xícara. Como era quinta-feira, ele deixara uma xícara a mais sobre a mesa. Era um gesto de atenção de sua parte. Definitivamente, o doutor era-lhe o patrão preferido.

       — Desculpa a bagunça. Não acontecerá mais, acho que a coisa fugiu do meu controle. — comentou atento ao leite derramando-se sobre o café e fazendo a mistura dos sabores e cores.

       — Não se preocupe com isso, doutor. — falou ligeiramente ruborizada e emendou rapidinho: — E bom dia para o senhor também. Acho que teremos uma trégua com o calor. Nessa época sempre chove às duas da tarde.

       O café estava delicioso, forte e cremoso. Viu quando ele torceu o lábio num trejeito de amargura enquanto deslizava o talher com geleia sobre uma fatia de torrada, entregando-a em seguida sobre o pratinho de pão.

       — Infelizmente mesmo com a chuva, o mormaço é intenso. O calor que sobe da terra é mais agressivo após os temporais.

       — Obrigada. — ela agradeceu ao receber o prato diante de si. Mordeu a ponta da torrada e comentou com naturalidade: — O clima de Matarana não poupa seus habitantes.

       Ele emborcou mais um gole do café e perguntou bem-humorado:

       — E suas crianças, como estão? Precisam dar uma parada na oficina para revisão?

       Maria riu sem jeito. O doutor havia cuidado de seus dois filhos em momentos distintos. O mais velho caíra e cortara a testa na escola, durante o recreio, correndo no pátio. Recebera alguns pontos e um pirulito de morango. O mais novo tratava a bronquite. A cada três meses, ela levava-o ao consultório do pediatra. Ele nada cobrava e ainda lhe fornecia os remédios. Se não fosse tão carnalmente bonito seria um santo.

       — O pequeno está bem melhor, praticamente, curado. Muito obrigada. O senhor é o melhor médico que conheci.

       O pediatra baixou a cabeça, envergonhado. Ele corava sempre que o elogiavam ou quando tinha seu trabalho reconhecido. Depois se espreguiçou e disse:

       — Então, estamos no caminho certo. Nada de simpatias, viu? — brincou.

       — Sim, senhor. — prometeu, sorrindo, e terminando de sorver o café.

       Voltando a atenção para o jornal aberto à sua frente, ele suspirou profundamente o tipo de suspiro preguiçoso e entediado e constatou:

       — O pior jornal da pior cidade.

       Maria levantou-se e agradeceu mais uma vez o café e a companhia. Recebeu um sorriso simpático e uma piscada de olho. Que charme!, pensou, sorrindo por dentro. Antes de sair do terraço, voltou-se, sentindo-se na obrigação de informá-lo:

       — A dona Karen me indicou à sua amiga. O senhor se importa que eu limpe a casa para a dona Nova? — mordeu o lábio inferior, incerta. — Nada afetará os seus horários, mas se não quiser que eu trabalhe na casa do dia...

       Ele fez um aceno com a mão como se com o gesto quisesse calá-la a tempo de pronunciar o apelido do outro. É, ela havia entrado em um terreno pantanoso, um lugar onde a feição gentil do médico fechava-se numa carranca que o envelhecia anos. Era provável que nem pudesse ouvir qualquer referência ao namorado de sua amiga. Corria o boato que Franco ameaçara capar o médico caso se aproximasse da sua mulher, que, antes, vivia com o doutor. Outro boato, que completava esse, era o de que o pediatra mantinha-se distante, acatando a determinação do pistoleiro, por acreditar que o último fosse de fato um desequilibrado. Ou, pelo menos, um namorado vigilante e obstinado. Naquela cidade o que não faltavam eram chifrudos. O herdeiro de Thales Dolejal não tinha cara de alguém que aceitasse envergar guampas, apesar de ser filho de quem era, concluiu Maria, contendo uma risada, haja vista que a face de seu patrão anunciava tempestade.

       — Não, não me importo. — falou, bruscamente, dobrando o jornal e jogando-o sobre a mesa, irritado.

       Incerta se prosseguia em direção à suíte principal para começar a arrumá-la ou ficava e dizia-lhe algo confortador, ela quase deu de nariz em uma das portas de vidro. Voltou-se ao ouvi-lo falar, de costas para ela, de pé, com as mãos nos bolsos, admirando a rua cinco andares abaixo:

       — Me perdoa a indelicadeza, mas é que esse assunto me incomoda muito.

       — Tudo bem, doutor.

       Antes de afastar-se, ouviu um pedido:

       — Preciso de um favor seu.

       — Qualquer um. — declarou com convicção.

       — Por favor, observe bem a Nova e me avise se ela tem hematomas ou algum tipo de machucado cicatrizado, marcas, arranhões, inclusive veja se ela está magra ou pálida, — virando-se para ela, afirmou, os olhos cheios de dor: — Veja, por mim, se a minha vida está sendo maltratada.

       O pedido não era tão estranho, visto que ele se referia ao seu substituto mal-afamado. Apesar de Maria ser uma das poucas pessoas a não gostar de se intrometer na vida dos outros, a vontade de atender a um pedido do médico a fez reavaliar as suas preferências. A mensagem era clara: veja se existe alguma brecha para eu usar a fim de ter de volta a mulher que ainda amo. Isso não foi dito. Pelo menos, não com essas palavras.

       — Acho que o rapaz não é tão maluco quanto dizem. — arriscou levantar a bandeira branca em prol de um inimigo declarado e emendou suavizando ainda mais o tom da voz: — Afinal, nada passa em branco em Matarana. Se ele alguma vez tivesse machucado a dona Nova, com certeza já teria caído na boca do povo. Ainda mais ele com a péssima fama que tem.

       — A maior parte das vítimas de violência doméstica sofre em silêncio, Helena. Os maus-tratos, normalmente, começam com as agressões verbais e psicológicas. E esse garoto tem a personalidade agressiva, explosiva e com toda a composição de um espancador em potencial. Aliás, o Rodrigo mesmo me disse que é possível que o... que o rapaz tenha matado um camarada anos atrás, e como não encontraram o corpo o caso acabou arquivado. – assegurou, os braços cruzados em frente ao peito, o semblante tenso.

       Cris testou a temperatura de suas acusações, fitando a diarista bem no fundo dos olhos.

       Maria, então, declarou:

       — A dona Nova, sua amiga, não é também amiga do delegado? — sondava-o, por certo.

       Antecipou-se à conclusão da mulher.

       — Sim, são muito chegados, por sinal. De fato, ela poderia pedir auxílio ao Rodrigo. Não nego que isso me passou pela cabeça. — deu de ombros e cravou palavra por palavra ao dizer: — Mas acontece que existe um tipo de mulher que acredita em milagres e mudanças e que sofre calada justamente porque tem medo de perder o marido ou namorado, enfim, perder o seu homem. Elas ficam dando uma chance após a outra, tendo como crença o dia da mudança, no qual a verdadeira personalidade do agressor assumirá o controle e essa suposta verdadeira personalidade é boa, afável e amorosa. — ele riu baixinho com desdém. — Quando acreditamos mais no outro do que em nós mesmos, acabamos por depositar os nossos sonhos nas mãos erradas. E é o mesmo que entregar um buquê de flores a um assassino em série. Se a Nova quer acreditar em dias melhores ou em príncipe encantado, o que posso fazer? Cruzar os braços e assisti-la, outra vez, se meter em encrenca?

       — É uma situação complicada. — balbuciou, fitando as próprias mãos.

       — Sim, é muito complicado, — assentiu, baixando a cabeça e suspirando cansado emocionalmente: — ainda mais quando ela está tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe. Posso entrar no meu carro e, em dez ou quinze minutos, parar diante do portão da sua casa. — encolheu os ombros, desolado. — E, aí? O que muda? Se ela escolheu se vingar de mim, não tenho como lutar contra isso. Ela não acredita em mim. Acabou. Mas não deixarei que aquele... que aquela pessoa a maltrate.

       — Mas será que ele maltrata ela, doutor? — considerou, respaldando-se na dúvida.

       — Quem é esse camarada? — perguntou, retoricamente. — Um cara armado até os dentes que confunde virilidade com crueldade e se impõe a todos por meio de ameaças físicas e psicológicas. O que falam sobre ele em Matarana, hein? Ninguém o encara nos olhos e até mesmo o apelidaram de “diabo” e “psicopata”. E sabe por quê? Porque esse garoto é emocionalmente desequilibrado. Ele se impõe como homem por meio da violência e é somente assim que consegue ser respeitado. Como, me diz, Helena, agindo dessa forma na rua, ele não o faz entre quatro paredes com a Nova?

       — Doutor Bittencourt, vou ficar de olho na sua amiga, e se ela tiver uma manchinha sequer, eu mesma ligarei para aquele tal disque-denúncia da polícia. — afirmou com a convicção de alguém que acabava de aderir a uma seita.

       O médico sorriu com os olhos.

         

       O mato baixo estava molhado depois da chuva. O odor que se desprendia da terra era morno e úmido. Não havia nada mais íntimo e natural à Karen que o cheiro da natureza selvagem. Arbustos, folhas, galhos, árvores inteiras, rios e bichos — a composição mística que se acoplava de forma indelével ao seu DNA humano. Karen era a natureza viva e pulsante, aterradora e primitiva, a beleza do incontrolável.

       Deu um tapinha de incentivo no pescoço do seu amigo de quatro patas e acariciou a crina sedosa, olhando ao longe, por cima das cabeças dos peões que se agitavam ao longo da estradinha de chão batido, na divisa entre Matarana e Santa Fé. Era sempre a mesma sensação antes da largada, uma inexplicável paz interior e o mais completo alheamento da realidade. Um lugar todo seu, onde a mãe de Johnny, a neta de Ninita, a namorada de Rodrigo não viviam. Era ela e o seu corredor cujo nome recebera em homenagem a Steve Prefontaine — que dizia não correr para ser o mais rápido; ele corria para ver quem tinha mais coragem. Assim também funcionavam as coisas para Karen.

       Naquela tarde em especial, o ar parecia mais perfeito, de uma pureza quase hostil. Típica atmosfera que antecedia os grandes eventos. A quietude antes do tsunami, o silêncio antes do tornado ou a plenitude da existência, o seu cume mais agudo, um segundo antes da morte. Ela aspirou fundo e reteve o ar nos pulmões. E com tal gesto punha fim à concentração, expirando-o em seguida.

       Voltou-se para seu adversário montado sobre o cavalo crioulo baio que, possivelmente, era do haras do coronel Marau. Ela sabia que o animal valia, por baixo, uns vinte mil. O corredor mais amarelo que uma espiga de milho, com o chapéu de caubói enterrado até os olhos, não detinha poder de compra para aquela aquisição de porte. O caso de Prefontaine era diferente. Apesar de ele também ser caríssimo. Mas Prefontaine fora roubado.

       — Não devia estar lavando as cuecas do delegado? — alfinetou, o sabugo de milho chamado Prestes, trinta anos na telha e nenhum juízo.

       Karen sorriu com o canto dos lábios, ajeitando-se sobre a montaria, sem deixar de calcular o tempo exato entre o disparo inicial e o momento de se atirar sobre o caubói e arrancar os dentes daquele sorriso arrogante.

       — Me disseram que nunca perdeu uma corrida. Por que será? É a força que vem do tanque ou da pia cheia de louça?

       — Não, imbecil, é a força que vem da cueca do delegado. — debochou, metendo dois olhos na expressão congelada do outro. Depois, apontou o dedo indicador para frente e perguntou: — Está vendo aquele barrigudo fumando a latinha de cerveja? — antes de ele responder completou convicta: — Vai ser ali, naquele ponto, que você perderá os dois dentes da frente.

       O peão manteve o sorriso na cara. Ele não era o tipo que acreditava que existiam mulheres fisicamente mais fortes que homens. A piada sobre o tanque resumia toda a sua cultura acerca do sexo oposto.

       Karen percebeu que a munição do seu concorrente acabava ali. Virou-se para trás, a fim de resgatar com os olhos a figura do organizador da corrida. Vitorino surgiu de uma bruma cinza. A temporada das queimadas já se esgotara havia algumas semanas. A fumaça que o cercava era a que provinha dos cigarros e cachimbos de entorpecentes. A peonada abastecia o cérebro com porcaria, depois de ficarem horas trabalhando em terras alheias. A boa e velha cachaça já não mais segurava o tranco.

       Karen torceu o lábio num esgar de repulsa. Desprezava gente fraca. Mesmo que ela também entorpecesse a cabeça com álcool. Mas era forte o suficiente para de vez em quando enfraquecer. Fato diferente dos coitados que saíam do trabalho esgotados, mais pobres do que nunca e se divertiam gargalhando, gritando e se empurrando num descampado distante da civilização. Eram iscas fáceis para os traficantes locais. E para os espertinhos como Vitorino. Apenas uma pessoa lucraria muito com aquela corrida. Fora-se o tempo em que Everaldo lhe garantia cinquenta por cento.

       — Em dez segundos! — gritou Vitorino e começou a contagem regressiva: — Dez, nove...

       O manga-larga empinou as orelhas e dilatou as narinas. Arrancou pedaços de grama ao disparar ferozmente pela planície. Entre as pernas de Karen a musculatura do animal estirava-se e do interior de seu corpo, entre ossos e carnes, expulsava a força que o impulsionava para frente feito uma locomotiva dos infernos. A cabeça agitava-se como se quisesse desvencilhar-se das rédeas e ganhar o mundo, mas ele era tão tinhoso, aquele Prefontaine do cerrado, que nem era preciso o relho no lombo para lhe fazer fulminar a terra, levantar nacos de barro, abanando a cauda longa e preta na cara do adversário. A poucos metros da linha de chegada, Karen segurou as rédeas, o manga-larga ainda se rebelou por alguns segundos e aceitou o comando reduzindo drasticamente a velocidade. Foi então que Karen pulou para o chão.

       E depois venceu a corrida.

       Frederico coçou a cabeça quando viu aquele povo todo entrar no estabelecimento do seu pai, o Gringo. Deitou o copo que secava sobre o balcão e meteu na cara o seu pior sorriso forçado. Ele não gostava quando o pessoal das corridas se juntava para beber. Falavam alto, excediam-se no álcool e demoravam em se dispersarem. Parecia que nenhum deles tinha vontade de voltar para casa. Os peões ficavam pelo caminho, no Colono Tranquilo, onde a bebida era metade do preço do que no Bar do Gringo. Os corredores, organizadores e os mais endinheirados, como os filhos dos madeireiros e donos de agropecuárias, sentavam-se ao redor de várias mesas e mandavam ornamentá-las com dezenas de cervejas. Alguns vinham com suas mulheres; outros arranjavam por ali mesmo. Em Matarana, o que não faltavam eram mulheres sem ter o que fazer. Caçavam à noite pelos bares, vestidas nos seus jeans colados e nos tops de lycra. Atiravam-se no colo do primeiro caubói que lhes pagassem uma bebida gelada. E era esse tipo de companhia que cercava um dos grupos da corrida, na mesa ao fundo do bar, longe do palco onde Nova não cantava naquela noite.

       Eram oito horas quando Karen decidiu que daria uma passadinha no bar antes de voltar para casa. Era bom manter a camaradagem em alta com os companheiros de corrida. Mostrar-lhes que, apesar de ser uma campeã invicta, ainda era plebeia e comedora de poeira como eles. Atravessou rapidamente o salão e entrou no banheiro das garotinhas. Diante do espelho, ajeitou o cabelo longo e liso para trás. Expos o rosto machucado. Uma pálpebra avermelhada que, com certeza, na manhã seguinte estaria roxa. A boca inchada e cortada no lábio inferior. A camiseta cinza suja e o jeans puído marcado pela lama seca nos joelhos. Descabelada e dolorida. Balançou a cabeça, vigorosamente, para os lados e saltitou no lugar. Encaixou, assim, todos os pinos. Voltou para o salão e parou diante do balcão. Limpou a garganta e fez o seu pedido a Frederico:

       –– Me vê a menos pura.

       O filho do dono do bar lançou um rápido olhar ao pai, que deu de ombros, cumprimentando a freguesa com um aceno de cabeça.

       –– Quem vem buscar você hoje, Karen? O Dolejal ou o Malverde? –– Frederico, mais uma vez, buscou com o olhar a cumplicidade paterna. Mas o pai, com bandagem no meio da cara, pensava apenas em como ficaria seu nariz depois da plástica em Cuiabá.

       Karen sorriu, jovialmente, e despistou.

       –– Quer ver uma coisa?

       O outro estranhou o tom amistoso de confidência na indagação acompanhada pelo sorriso. Aproximou-se acreditando que era uma noite especial. Ouviu o barulho de dados sendo rolados pelo balcão de madeira. Olhou para baixo e precisou de meio minuto para compreender as peças do jogo.

       Voltou-se para a mulher que ainda sorria e perguntou:

       –– Meu Deus, foi espancada?

       Ela gargalhou antes de emborcar o copo com a bebida. Em seguida, respondeu como uma menina travessa.

       –– Não são meus.

       No fundo, ele sabia que não. Entretanto, às vezes, fortalezas desabavam. Manteve a boca aberta vendo-a admirar os dois dentes alheios, bastante satisfeita consigo mesma.

 

       –– O que conseguiu, Adele?

       Foi o que o delegado perguntou, assim que a policial entrou em sua sala. Acabara de interrogar informalmente o neto de Marau.

       –– Um nome e um lugar. –– respondeu, sentando-se pesadamente na cadeira em frente à mesa de Rodrigo.

       –– E...? –– ahhh, ele adorava receber informação em partes, com breves pausas de suspense, realmente, ele adorava.

       –– Parece que tem um cara fabricando óxi, aqui, em Matarana city. –– ironizou. –– Joaquim Santiago. Fucei nos arquivos e não encontrei patavina sobre ele.

       Rodrigo escorou os cotovelos sobre a mesa e franziu o cenho gravemente. Digeria a novidade.

       –– O guri comprou na Vila Zumbi?

       –– Sim, direto de fábrica, sem intermediário.

       Ele alçou a sobrancelha num gesto que revelava o rumo de seus pensamentos.

       –– Vou atravessar a rodovia federal e visitar o povo daquelas bandas.

       Antes que pudesse perguntar por Lucas, que não dava notícias havia dois dias, ouviram o bater de uma mão espalmada sobre o balcão da recepção. Entreolharam-se sorrindo numa cumplicidade que a profissão em comum lhes confiavam.

       –– Com advogado ou sem advogado? –– Adele perguntou, levantando-se da cadeira e se dirigindo à porta.

       –– Sem advogado e com uns três pistoleiros à cola. –– apostou o delegado, divertindo-se com a brincadeira.

       Acendeu um cigarro com a mão em concha. Manteve a chama acesa na ponta do fósforo, um fragmento de segundo, o tempo da escrivã voltar, o semblante de quem acabava de ser contrariada.

       –– O coronel Marau não fala com soldados, palavras dele. –– afirmou, fazendo careta.

       –– Chame-o aqui, então. –– solicitou, suspirando resignado.

       –– Certo, chefe. Aproveito e busco o Marauzinho da cela.

       O que acabara de saber o perturbou. O tráfico de óxi entrara no país, sem fazer alarde, invadindo a região norte e abocanhando, primeiramente, o Acre. O centro-oeste parecia ileso até o momento. Seria Matarana –– o pingo de óleo no meio do oceano, a produzir a droga e distribuí-la para o país?, pensou, enquanto ouvia os resmungos do coronel desde a recepção, passando pelo corredor e entrando em sua sala. Passadas largas para alguém tão gordo, ponderou o delegado, erguendo-se da cadeira e estendendo a mão para ele, sem sorrir.

       –– Na delegacia o garoto tira o chapéu. –– constatou irônico, o coronel sem insígnia.

       Rodrigo sorriu e indicou-lhe a cadeira à frente, mas o latifundiário estava lá para complicar:

       –– Não quero passar nem cinco minutos neste lugar. Busca o piá que tenho compromisso na cidade. –– ordenou, tragando forte o charuto enquanto metia dois olhinhos argutos no delegado.

       –– É melhor que o senhor arranje um pouco de educação para falar comigo, coronel. Aqui, eu também permito que mantenha o seu chapéu, a única regra é a civilidade. –– enfatizou, encarando o outro com a determinação de pô-lo em seu devido lugar. Apesar de não haver um chiqueiro por perto.

       O coronel manteve o charuto entre os dedos numa postura de quem considerava o que acabava de ouvir. Para ele, que era atendido em suas mínimas vontades, o que o delegado lhe falara era um afronta. Já havia algum tempo que cogitava a possibilidade de uma boa emboscada para acabar com o policial indisciplinado. Ainda não o fizera por preguiça, pura preguiça. Sabia que Rodrigo era protegido de Thales Dolejal, e se tocasse nele, a Arco Verde cairia sobre si. A matança se estenderia a todo e qualquer Marau. E não seria por causa de um delegadozinho de merda que o coronel arrumaria encrenca com Dolejal. Mesmo que na fazenda Coração de Ouro, o outro fundador da cidade fosse chamado em tom de deboche de “bicha cosmopolita”.

       O velhote afastou as pernas enfiadas nas bombachas e riu por entre a fumaça:

       — Sabe quantos delegados passaram por Matarana, garoto?

       — Doutor Malverde, coronel. — afirmou com obstinação. Até para os seus ouvidos o “doutor Malverde” soou-lhe estranho.

       — O doutorzinho vai soltar o meu piá ou vou ter que chamar os outros doutores, os da capital, para esfregar a papelada na sua cara?

       — Não precisa chamar ninguém. O seu neto não foi preso, só estava aguardando um responsável para vir buscá-lo. É menor de idade e não foi feito nenhum registro de queixa contra ele. Só espero que o levem a uma clínica de recuperação de viciados, o estado de...

       Foi interrompido abruptamente:

       — Onde está o moleque, porra?

       Adele afastou a porta para que João timidamente entrasse. A figura do avô intimidava-o. O coronel fez sinal para os seus três pistoleiros, indicando-os que levassem o neto para fora da delegacia. Voltou-se para Rodrigo.

       — Sabe por que o meu piá se viciou nessas merdas? — perguntou, debaixo do bigode vasto e grisalho, uma novidade em seu visual. Antes que Rodrigo pensasse em uma resposta, emendou com secura: — Os vagabundos da Vila Zumbi não costumam ser vigiados pela polícia local, já que o delegado prefere ficar de olho nos homens de bem. Outro dia foi me incomodar por causa de uma bostinha metida à jornalista que acabou se amontoando com o pistoleiro mais maluco da cidade. Sabe o que eu acho, ô garoto?, é que você escolheu meia dúzia de idiotas em Matarana para trabalhar para eles e qualquer um que ameace essa gentinha aí você resolve, sim, trabalhar como policial. Se prendesse os vagabundos da vila, o meu neto não teria sido tentado com essas porcarias. Eu fundei essa cidade, ela é minha! E, desde a sua fundação, passaram por esse escritório mofado um bocado de doutorzinhos e todos, sem exceção, ouviram a voz da razão e fizeram o seu serviço discretamente. Não quero ir ao seu funeral, Rodrigo Malverde.

       Enfrentaram-se num embate silencioso. Até que o delegado sorriu e indagou com ironia:

       — Está ameaçando um delegado de polícia, senhor fazendeiro?

       O outro riu com vontade.

       — Não preciso ameaçar ninguém. É o que eu disse, é só ouvir a voz da razão. Bate um vento Minuano e te leva embora, filho. — acentuou o sotaque sem embaçar o sorriso de dentes acinzentados.

       Ele foi até a porta e parou. Virando-se devagar em sua silhueta redonda dentro da roupa de gaudério, sentenciou:

       — Olha, um aviso de quem te conhece há mais de dez anos, a bicha cosmopolita protege quem convém aos seus interesses. A hora que não servir para mais nada, sugiro que crie olhos na nuca.

       — Obrigado pelo aviso, coronel. Quando uma cascavel avisa sobre uma jararaca, é porque o ratinho está em sérios apuros. — debochou, enganchando os dedos no cós do jeans e encaminhando-se ao lado do fazendeiro até a saída da delegacia.

       — Você é um piadista! — riu-se o outro e completou espirituoso: — Soube que roubou a mulher do seu protetor. Não é engraçado isso? Sério, filho, quando quiser recebo você e sua família de braços abertos. Tenho de convir que o doutor faz jus ao que carrega entre as pernas. Apesar de que esse troço não salva a vida de ninguém, não é mesmo? — deu-lhe um tapinha amistoso no ombro e subiu na camionete com cabine dupla. Atrás, João, a cabeça escorada contra o vidro, o rosto pálido.

       — Que vento é esse, o Minuano? — perguntou Adele, chegando-se ao seu lado, intrigada.

       — É um vento gelado que racha a cara da gauchada. — respondeu Rodrigo, contemplando a traseira da camionete do coronel.

       Ainda pensava no guri que era perseguido por zumbis. Um guri que comprara óxi na Vila Zumbi de um camarada chamado Joaquim. Em outro lugar, esse mesmo nome seria o de um dono de padaria. Mas em Matarana, não. Claro que não, pensou o delegado com desgosto, tinha de ser de um traficante.

       — Então, chefe, o Minuano que o levará embora, por acaso, seria a faca de um de seus conterrâneos? — cogitou, como se tentasse encaixar peças redondas em espaços quadrados.

       Rodrigo voltou-se para ela e sorriu de leve.

       — Talvez. — deu de ombros e completou com deboche: — Na Coração de Ouro o que não falta é gaúcho, não é mesmo?, inclusive o coronel.

       Adele não gostou do comentário.

       — Quando ele descobrir que agora o Dolejal também é o seu inimigo, o senhor terá de solicitar escolta e...

       Não conseguiu completar a ideia, uma vez que o delegado interrompeu-a:

       — Adele, uma coisa de cada vez, certo? — ele se virou para voltar à sala e buscar o chapéu, acrescentando no caminho: — Quero saber por onde anda o Lucas. Vou até a casa dele e já volto.

       A escrivã acompanhou-o até o pátio frontal, onde as camionetes do delegado e da polícia civil de Matarana — uma Mitsubishi L 200, ano 1995, dirigida por Lucas e Adele — ficavam estacionadas. Ela queria acreditar que a coragem de um homem o defendia contra qualquer arma de fogo. Mas o fato era que tanto Malverde quanto boa parte dos caubóis daquela cidade acreditavam-se indestrutíveis. Homens corajosos ou insanos — ela ainda não o sabia.

       Ao chegar à casa de alvenaria afastada do centro, em um bairro habitado praticamente por bancários e professores, Rodrigo ligou mais uma vez para o celular de Lucas. Observou os arredores, o lugar assemelhava-se aos subúrbios das metrópoles norte-americanas, gramado frontal sem cercas ou portões nas construções geminadas. Todas as casinhas da mesma cor, azul-celeste.

       Não obtendo resposta, avançou em direção à porta e apertou o botão da campainha. Na segunda tentativa, o seu celular vibrou.

       — Pode abrir, Lucas?

       Do outro lado da linha, uma voz sonolenta respondeu:

       — Posso, mas tem uma enfermeira que faz isso por mim.

       Rodrigo grudou o rosto contra o vidro da janela ao lado da porta. Primeiro, viu o próprio reflexo. Depois, toldou os olhos e examinou a sala bagunçada de uma residência aparentemente vazia.

       — Onde você está? — seria possível o policial ter se envolvido, mais uma vez, com uma sadomasoquista? Cogitou o delegado torcendo o lábio num ricto de desagrado. Lucas era viciado em mulheres chaves de cadeia. Algemas nem sempre conduziam à prisão.

       — No hospital. — ele disse e completou meio que envergonhado: — Fui alvejado por um mosquito. Estou com malária.

         

       Valéria convidara Cris para jantar. À noite, iluminou o gramado diante da casa com dezenas de pequenas lâmpadas coloridas que se acenderam nos galhos das mangueiras iluminando a mesa longa e retangular, revestida pela toalha branca, os pratos, copos e talheres dispostos para uma ceia ao ar livre, no frescor agradável debaixo das estrelas, agora, de todas as cores.

       — Olha só! — apontou Val para a cadela com as orelhas mexendo como antenas parabólicas, o corpo estirado e duro, as pernas preparadas para correr.

       — O Rodrigo está chegando. — adivinhou Cris, sorrindo e admirando a postura elegante de Bonnie à espera do seu Clyde.

       Minutos depois os faróis da camionete iluminaram os quatro que o aguardavam. O sexto sentido de Bonnie jamais falhava, constatou Cris, agachando-se para acariciá-la na cabeça.

       Assim que Rodrigo abriu a porta da picape, a cadela disparou para cima dele. Ele se abaixou e fez um carinho na cabeça dela, que se agitou ainda mais balançando o toco de rabo.

       Os amigos se cumprimentaram com um abraço forte e tapinhas nas costas. Era uma camaradagem antiga e sincera. Faltava apenas o terceiro cara do grupo. Mas o ausente decidira pôr Rodrigo na lista dos ex-amigos. O médico esperava que fosse essa lista, e não a dos inimigos.

       — Vem, Cris, vamos enxugar umas latinhas enquanto o homem da lei toma banho e tira a poeira do corpo. — disse Val, enganchando seu antebraço no dele e levando-o até a mesa.

       Rodrigo acenou com a cabeça se afastando e falou antes de entrar em casa:

       — Ué, não trouxe a garota da vez?

       O outro sorriu sem jeito.

       — Trazer alguém para jantar com os amigos é formalizar algo que não deve ser formalizado.

       — Ai, seu insuportável!, está virando um mulherengo idiota! — ralhou Val, dando-lhe um tapinha de brincadeira no ombro.

       Cris riu e fez uma careta como se tivesse sido machucado por ela. Em seguida, virou-se para Rodrigo curioso:

       — E a patroa?

       — Só Deus sabe. — respondeu, fazendo um trejeito com a boca em sinal de desagrado.

       — A Karen continua vivendo como se fosse solteira. — afirmou Val, depois que o irmão entrou. Não havia censura, era mais uma constatação. — Ela combina mais com o Prefontaine do que com qualquer homem. — brincou, rompendo o lacre de uma lata de cerveja e entregando-a ao amigo.

       Ele aceitou a bebida gelada e amarga.

       — Ela está sempre envolvida com as corridas ou com a reforma do açougue onde será a nossa confeitaria. — continuou, puxando a cadeira e sentando-se ao lado de Cris. — O meu irmão não está acostumado a deixar sua mulher tão solta. A Jasmine vivia colada nele, e ele adorava isso. Mas a Karen vive do jeito dela, sabe, não presta contas a ninguém, porque foi assim que o Dolejal a acostumou. Entendeu, agora, o drama?  O Rodrigo e a Karen se amam. Isso é fato. Mas uma hora a bomba explodirá debaixo daquele teto reformado.

       Cris assentiu sério.

       — Eles combinam.

       — É verdade. Opostos que se completam.

       Filosofou Valéria Malverde.

 

       Rodrigo retirava a torta de bolacha da geladeira quando o ronco do motor da picape de Franco chamou a sua atenção. Depositou o refratário sobre a mesa e escorou-se na soleira da porta arando com os dedos os cabelos curtos. Era outro trejeito seu, ao estar sem o chapéu, que revelava o seu estado de alerta e precaução. Imediatamente, resvalou o olhar para o médico. Este sorria encantado com algo que Sabrina lhe contava, suas histórias do curso de Enfermagem. Ao passo que Val abastecia o prato de Johnny com bastante salada verde. Vó Ninita buscara-o na escola ao volante do Fusquinha de Karen. Nenhum dos dois estranhou o fato de ela não estar para o jantar. Pelo visto, na casa dos Lisboa era comum cada um comer onde e quando quisesse, sem dar satisfações.

       No clã Malverde as regras eram outras. Antes de sair, fosse Rodrigo ou Sabrina, deixavam referência sobre onde poderiam ser localizados. E jamais faltavam às principais refeições.

       Ao ver a picape vermelha adentrar os portões sempre abertos de sua casa, Val endereçou um rápido olhar para Cris e outro, de apreensão, para o irmão, já a postos, descendo os degraus e encaminhando-se até os recém-chegados.

       Cris voltou-se ao perceber a movimentação à entrada da casa.

       –– É a Nova?

       Valéria tocou-lhe no ombro.

       –– Sim, e o rapaz. –– completou, transparecendo na voz o tom de aviso.

       Do outro lado da mesa, Ninita tragou fundo o cigarro e desferiu:

       –– Se fosse você, Cristiano, ficava bem encolhidinho no meu canto. Esse guri é meio biruta.

       O pediatra sorriu de leve, assentindo com a cabeça, e respondeu:

       –– Às vezes, dona Ninita, acho que mais biruta é a Nova. –– constatou.

       –– É papa-anjo, isso, sim. –– resmungou a avó de Karen.

       Johnny e Sabrina caíram na gargalhada. Valéria arregalou os olhos como faroletes.

       — Bom, ela sempre quis ser mãe, arranjou um garoto pra criar. — comentou o pediatra com amargura.

       — Já está na hora de superar, meu amigo. — aconselhou-o Val.

       Ao que Ninita novamente atacou na jugular:

       — Deve ter um fôlego esse moleque! Acho que é por isso que ela está mais magra; não notaram?

       Valéria fez um sinal com a mão em direção a Cris, ostensivamente.

       A avó de Karen já manifestara o seu lado, e ninguém entendia a opção por Franco. Rodrigo tinha uma teoria: Franco era tão malvisto na cidade quanto a sua neta Karen. Além disso, ele ria de todas as piadas sujas que vó Ninita contava.  A teoria de Valéria era outra: Ninita preferia a rudeza sincera do pistoleiro à pose de homem respeitável do médico. Era uma pena que ambas estivessem em lados opostos. Para Val, Nova escolhera a paixão no lugar do amor. E a culpa fora de Cris.

       Nova desceu da picape sem esperar por Franco. Deu uma corridinha até onde as luzes coloridas brilhavam. Tremia diante da possibilidade de contar aos amigos sobre sua gravidez. Ainda que tivesse 34 anos e fosse dona das suas rinites. Diminuiu o passo ao ver inesperadamente quem ela não contava bater de frente. Era por causa dele também que ela tremia. De repente via-se como ele a via, irresponsável, metida em encrencas e uma sonhadora romântica. 

       Instintivamente, virou-se em busca do apoio de Franco. Ele ficara para trás, conversando com Rodrigo. O certo seria acatar a estratégia do delegado, ao retê-lo antes de ver Cristiano, dar meia-volta e desistir da visita e do comunicado.

       Cris interpelou-a antes de conseguir escapar:

       — Está pálida... — constatou o médico avançando em sua direção.

       Nova quase riu, estava era com manchas vermelhas no pescoço e na face por causa da barba por fazer de Franco. De forma alguma a palidez combinava com a coloração de sua pele.

       — Tudo bem, Cris?

       — Ele cuida bem de você? — indagou, sem perder tempo.

       — Nós cuidamos bem um do outro.

       Ele a estudou por um momento.

       — Por que ainda precisa de escolta pela cidade? Não consigo me aproximar de você. — reclamou.

       — O Everaldo ainda não foi preso, é por isso.

       — O que tem a ver com esse bandido?

       — O Franco só quer me proteger.

       — Não, Nova, ele quer isolá-la dos seus amigos. — advertiu.

       Nova abaixou a cabeça e respirou fundo. Precisava contar as novidades antes que ele soubesse através dos outros.

       — Podemos nos encontrar um dia para conversarmos?

       Ele sorriu levemente.

       — Claro, claro. — fez um sinal em direção à mesa conduzindo-a pelo antebraço. — Podemos conversar no meu apartamento. Sabe como chegar lá, não?

       Eles se aproximaram da mesa, e ela aproveitou para abraçar Valéria e, depois, vó Ninita. Acenou jovialmente para Sabrina e Johnny. Ambos pareciam estranhamente expectantes.

       — Sabrina, busque dois pratos. — pediu a mãe.

       — Não, nada disso, nós jantamos antes de vir. — deu uma olhada ao redor e perguntou curiosa: — E a Karen? Vim falar com ela.

       Foi a vez de Ninita interceder a favor da ausente:

       — Hoje começou o circuito das corridas, e ela só chegará mais tarde.

       — Ainda mais que é a campeã da temporada passada. — completou Johnny.

       Nova sorriu para o filho de sua melhor amiga.

       — Queria vê-la correr um dia.

       — Aquela nasceu para viver no meio do mato mesmo. — resmungou Ninita aquele tipo de resmungo que mais parecia uma declaração de orgulho da neta.

       — Senta, Nova, e nos conte as novidades. — disse Val, puxando uma cadeira.

       — Eu...hã...

       — O que está escondendo, hein, mocinha? — perguntou Valéria estreitando os olhos, desconfiada.

       — Pois é, estou sentindo falta da minha amiga.

       — E eu? Não sirvo pra nada, não, sua pilantra? — perguntou Val, com as mãos nos quadris, provocando-a.

       Nova riu e abraçou-a com força.

       — Somos as três mosqueteiras tresloucadas, não?

       Ao ouvido, Val sussurrou-lhe em tom de pesar:

       — Não sabia que viriam hoje, desculpa.

       — Tudo bem, não esquenta. — brincou.

       Ela sentia os olhos de Cris o tempo inteiro sobre si. Uma mistura de constrangimento e tristeza a sufocava. Queria ir embora, voltar para casa e dormir abraçada a Franco. Decidiu pôr fim a visita:

       — Bom, outra hora a gente se fala... temos de comprar água mineral.

       Viu quando ele terminou de rabiscar o endereço em um papel, dobrá-lo e o entregar de forma discreta, como se fossem espiões da CIA. Ou amantes. Ao aceitar o bilhete oficializava novamente a cumplicidade para com o seu amigo de infância. Ela sentiu que traía alguém. A dúvida era se traía o pai de seu filho ou a si mesma.

       — Preciso muito falar com você. — ele murmurou.

       — Desde que não falemos sobre o que passou.

       — Por que está dizendo isso?

       — Estou vivendo com outra pessoa. — enfatizou.

       — Ah, sei, então considera normal jogar no lixo uma amizade de trinta anos. — afirmou ressentido.

       — Não é por aí...

       Cris torceu o lábio num trejeito de desdém. Quem era aquela mulher sem vida própria? Que tipo de lavagem cerebral sofrera?

       — Contou a novidade, princesa? — era a voz de Franco ressoando alta e clara em um tom de desafio. Ele caminhava devagar, com certa displicência, ladeado por Rodrigo.

       — Que novidade? — Cris pegou no ar algo que não lhe parecia bom.

       Valéria tornou a se sentar e endereçou um rápido olhar para vó Ninita, esta amassou o cigarro no cinzeiro, com um sorrisinho malandro, e encheu o copo com cerveja.

       — Que novidade, Nova? — insistiu.

       — Espero que seja coisa boa. — resmungou a avó de Karen.

       — Ela vai ter um filho meu, vó.  — comunicou Franco com um sorriso da mais pura e cruel felicidade.

       Rodrigo assimilou rapidamente o que pairava no ar. Ficou surpreso com a notícia. Por um momento manteve sua atenção em Cris. Como policial sabia qual fio deveria cortar primeiro, caso tivesse de desarmar uma bomba de fabricação caseira.

       — É verdade?

       — É, Cris. — Nova assentiu, impassível.

       — Que vingança absurda.

       — Sabe que sempre quis ser mãe.

       A expressão de repulsa do pediatra foi tão autêntica que não lhe foi preciso falar mais nada. Ele manteve o olhar nela, sondando-a de modo avaliativo, tentando compreender por que descera tanto na vida ao ponto de engravidar de um capanga de fazenda. Ela, que nascera em uma família tradicional de Minas, estudara em bons colégios e sempre tivera o melhor.

       — Acho que não é o momento para discussões. Afinal, um bebê é sempre bem-vindo. — ponderou Rodrigo, com um sorriso jovial, e recebendo um olhar exasperado da irmã.

       O delegado ignorou a irmã e o amigo, abraçando Nova e a erguendo do chão. Ela enlaçou-o pelo pescoço e sorriu alegremente.

       — Tem que se alimentar melhor, e nada de cantar até tarde no Gringo. — advertiu, largando-a no chão.

       — Vou me cuidar, papai. — brincou.

       Ele se voltou ao ouvir Franco afirmar com estudada naturalidade, os olhos fixos e desafiadores em Cris:

       — A gente vai casar.

       A mente humana ainda era um mistério para o delegado. Mesmo se vivesse oitocentos anos não a compreenderia de todo. Cris assimilara a gravidez com uma aceitação quase mecânica, na mesma situação de quem se encontra acuado por cães ferozes contra uma cerca eletrificada. No entanto, a referência ao casamento foi como uma faísca de eletricidade em um ambiente com vazamento de gás. A única reação a tal ação ocorreu num movimento rápido e impulsivo. O médico avançou para cima da amiga e a pegou pelos ombros.

       — Seus pais sabem que você está comigo, que estamos juntos, que viemos para cá para vivermos juntos. O que acha que pensarão quando souberem que a filha está grávida de um merda que mal passou dos vinte anos? O que dirá a eles? Onde está a sua carreira profissional? Onde estão os seus sonhos? Onde está você?

       — Me deixa, Cris — pediu, tentando desvencilhar-se.

       Ele apertou-a ainda mais e a chacoalhou com força.

       — Volte a si, Nova. A vida não é um romance de ficção, e você não está vivendo um conto de fadas. O que será de sua vida se acabar pagando pelos crimes dele, hein?

       — Me deixa em paz. — ordenou com os maxilares trincados. — Isso não lhe diz respeito!

       — Você é uma egoísta imatura e mimada que encontrou um brinquedo, uma distração, para não precisar viver de verdade.

       Rodrigo avançou um passo em direção a eles. Porém, Franco segurou-o pelo antebraço, contendo-o.

       — Ela está aprendendo a se defender. Não estrague tudo. — afirmou, acendendo um cigarro calmamente.

       Acatou a decisão do outro e, ao ver a irmã sinalizar para que ele agisse, deu de ombros como se não tivesse um papel exato a executar.

       — Falarei com Raquel e Guilherme e contarei o que realmente está acontecendo por aqui. É capaz de eles enviarem uma equipe de psiquiatras para levá-la numa camisa de força.

       — Tudo isso por que não quero mais a sua falsa amizade?

       — Não, Nova, não é por isso. — ele retirou as mãos dos ombros dela e completou com tristeza: — E minha amizade nunca foi falsa. Está sendo injusta ao me chamar de mau caráter. Mas não levarei em consideração, já que deve estar passando por uma lavagem cerebral com esse aí.

       — Sim, doutor, duas vezes por dia, todos os dias. — debochou Franco.

       — É isso que tem a oferecer? Sexo? — indagou com desprezo.

       — Certo, pessoal, vamos nos acalmar. — intercedeu Rodrigo, erguendo as mãos tentando apagar o incêndio.

       — A torta de bolacha, Rodrigo. — pediu Val, sorrindo nervosa.

       — Claro, vamos sentar e comer a sobremesa. — afirmou o delegado se sentindo um pateta. O clima não era para tortas e doces.

       Franco tragou fundo o cigarro e estreitou os olhos, mirando o médico por entre a fumaça.

       — É, sexo, e muito. Não deixo faltar nada pra ela, nenhuma lacuna a ser preenchida por outro.

       — Típica mentalidade de adolescente. — escarneceu Cris com um sorrisinho. — O que vai fazer? Puxar um revólver e me ameaçar?

       — Não, de jeito nenhum, respeito os mais velhos. — zombou.

       — Rodrigo, você não vai pegar a maldita torta, porra!

       Ele estava parado no meio do jardim assistindo ao desenrolar da cena e a sua possível e imediata intervenção. Ao ser chamado atenção, sorriu sem graça e enfiou-se na cozinha. Imediatamente mudou de ideia ao ver Bonnie dormindo no sofá. Por um momento, ponderou sobre o mundo canino. Cris podia até latir como um rottweiler, mas Franco era um pit bull. Ignorou o refratário com a torta de bolacha e voltou para o quintal.

       Cris estava de costas para Franco, a cabeça baixa, as mãos na cintura, parecia que tentava recuperar o autocontrole. Ao passo que Franco continuava fumando e, vez por outra, fitava as estrelas, numa postura displicente. Em um segundo tudo mudou. E o punho do médico fez um giro de 180 graus e acertou o ar, já que Franco se esquivou antes de receber o golpe no rosto. Deu dois passos para trás, enquanto o médico tornava a tentar acertá-lo com o punho cerrado. Ouviu quando Val gritou chamando-o:

       — Pelo amor de Deus, Cris, não!

       O delegado encaminhou-se até a dupla com a intenção de separá-los, apesar de estarem separados. A situação do seu amigo era desconcertante. Ele tentava aplicar socos que, devido à agilidade do outro, golpeavam o vazio. Franco apenas se esquivava. Tal atitude fez com que Rodrigo mudasse de ideia. Eles podiam resolver o problema sozinhos. Voltou à cozinha mesmo ouvindo Valéria praguejar. Abriu a geladeira e rompeu o lacre de uma lata de cerveja. À porta, chegou a tempo de ver o instante em que Franco encheu-se da brincadeira. Estendendo o braço com precisão, ele golpeou o nariz do médico com um soco seco e rápido. Cris caiu para trás, inconsciente.

       Rodrigo continuou imóvel, bebendo sua cerveja, observando o pistoleiro encaminhar-se até a namorada e pegá-la pela mão, a feição fechada, havia feito algo que não estava em seus planos. Mas a namorada sorria. Cogitou que ela estivesse nervosa diante da briga. Não, Nova verdadeiramente sorria. Parecia que se sentia vingada por Franco. Franziu o cenho tentando entender a situação. Franco sério e abalado por ter agredido Cris. Nova quase exultante por Franco ter nocauteado Cris. Johnny, Sabrina e vó Ninita trocando cédulas de cinco pratas em uma presumível aposta. Val atirada ao lado do médico completamente histérica. O que ele tinha de fazer?

       — Gosto muito de você, Nova, mas não quero que volte com esse psicopata de novo! — gritou Val, segurando a cabeça de Cris pela nuca. — É inadmissível o que ele fez! Inadmissível!

       Nova teve uma crise de riso.

       — Desculpa, pensei que o Cris estava tendo um ataque epilético, não sabia que tentava lutar com o Franco.

       Valéria estava tremendo de raiva.

       — Sabrina, me ajude a levá-lo para a sala. — voltou-se para o irmão e berrou: — Dá para ajudar ou agressão física é algo banal para o senhor também? — por último sobrou para a amiga: — Você podia ter controlado o seu homem, mas não quis. Acha bonito dois caras brigarem por sua causa? A Karen não vai gostar nada de saber sobre sua gravidez, tampouco que o Franco meteu a mão no Cris. Acha isso bonito também? Vai continuar rindo quando enfrentar a Karen e dizer que engravidou de um pistoleiro, porque não era amada pelo Cristiano? Acha que a Karen vai aceitar numa boa a sua submissão ao filho do Dolejal? E, mais, ela é amiga do Cris, todos nós somos. E quanto ao Franco...bem, ele é aceito por nós por sua causa. Essa é a diferença entre os dois. E é isso que ouvirá da Karen, Nova Monteiro.

       Franco a puxou para si, pôs o braço por sobre seus ombros, levando-a consigo.

       — Vamos para casa, princesa.

       Da porta, terminando sua cervejinha, Rodrigo avisou:

       — Domingo tem pescaria, não esquece, hein, Franco!

       O outro sorriu e assentiu com a cabeça.

       — Por favor, Rodrigo, vamos levar o Cris para o sofá! — gritou Val.

       — Chega de cochilar, Bonnie. — disse ele, batendo na coxa para chamar a cachorra. — Um poodle acabou de ser atropelado. — falou baixinho, brincando.

         

       Entrou com as botas na mão. Pisava no assoalho da casa como uma ladra, na ponta dos pés, segurando a respiração. Ao alcançar a porta do quarto, ouviu um rosnado baixo e rouco. Maldita cadela dos infernos, grunhiu Karen. Preferiu enfiar-se primeiro no banheiro. Já sabia o que iria encontrar no espelho, uma mulher com a cara de quem brigara feio com alguém. Além disso, estava com o corpo dolorido e havia bebido um pouquinho a mais da conta. Sentou-se sobre a tampa da privada e averiguou os machucados da noite. Até que tivera sorte. O camarada fora pego de surpresa e derrubado do cavalo. Meter o punho fechado em sua boca e arrancar dois dentes foi mais fácil do que imaginara. Problema maior era encarar a polícia.

       Gemeu ao levantar-se e abrir o registro do chuveiro. Despiu-se e permitiu que a água morna quase fria a livrasse da poeira e do sangue, dela e do outro. Mais uma vez gemeu. Encostou a cabeça contra os azulejos do boxe.  Fechou os olhos e voltou o rosto para o jato d’água.

       Ao se virar para pegar a toalha e se enxugar, assustou-se. Riu sem jeito, o homem da lei observava os seus ferimentos ao longo do corpo. Ela não os havia percebido antes. Escoriações nas coxas e no quadril, nódoas roxas com halos esverdeados. Delicados hematomas como florzinhas pincelando a sua pele morena.

       Os olhos do delegado demoraram-se na inspeção e, à medida que conferiam os estragos, estreitavam-se de forma beligerante. Karen deveria temer tal olhar, mas, a bem da verdade, o homem era lindo demais para ser temido. Ainda mais vestido apenas no short do pijama de algodão azul escuro, exibindo o abdômen enxuto e a musculatura definida.

       Ele nunca fora discreto. Sempre simples, direto e preciso. Apontou o dedo indicador para o seu corpo sem tocá-lo. Um arquear de sobrancelha acompanhou a indagação:

       — O que significam essas marcas?

       — Ah, droga, acordei você. Boa noite, amor.

       Para o delegado, todos eram culpados até provarem a sua inocência. A mulher que esfregava a toalha com cautela no braço esquerdo e evitava encará-lo tinha culpa no cartório, sim.

       — Boa noite. Onde arranjou essas marcas? — insistiu.

       — Ossos do ofício. Às vezes, me deparo com um competidor mais, digamos, selvagem e acabo me machucando além do previsto. — brincou, controlando novo gemido.

       Não foi a voz rouca com ligeiro acento irônico que lhe chamou a atenção, tampouco a sutileza da aproximação felina, o que a fez encará-lo foi o que ele disse sem preâmbulos:

       — Ou fez sexo selvagem com alguém ou está participando do MMA e não me contou. — ele não fazia piada. Semblante sério, olhar interrogativo e a nuvem escura descendo sobre ambos.

       A feição era tão dura que Karen pensou que havia alcançado, enfim, o seu limite. Torrado a sua paciência. Tantas vezes fazendo as mesmas merdas, um dia, uma hora, um minuto depois de puxar o pino da granada... explodia.

       — Sabe que temos um pacto de fidelidade, e eu jamais o quebraria. — falou secamente, enrolando-se na toalha.

       Com os braços cruzados em frente ao peito, escorado contra a parede, displicentemente, ele apenas a analisava com o olhar desconfiado. Entretanto, era possível que por trás da desconfiança houvesse um fundo de amargura e tristeza.

       — Nunca está em casa, Karen. Só consigo encontrá-la antes de ir para a delegacia e, nas últimas semanas, vejo-a machucada e desviando os olhos dos meus. Não resolvemos viver juntos para nos tornarmos estranhos. Pelo menos, não foi essa a minha intenção. — sem lhe dar tempo para contra-argumentar, disparou: — Onde são as corridas?

       — Em Neverland. — respondeu, encarando-o em desafio.

       Ele suspirou, irritado.

       — Está se comportando como uma criminosa e, desse jeito, só me resta agir como policial. Terei de investigá-la, ou melhor, vigiá-la para descobrir onde corre.

       — Não me diga que vai virar um maluco possessivo como o seu protegido Franco. — debochou, um sorriso de zombaria na boca inchada e ferida.

       Sem nada falar, endereço-lhe um olhar duro e virou-se para sair.

       Karen seguiu-o até o quarto. Fechou a porta atrás de si e desvencilhou-se da toalha. Deitou na cama e estendeu o corpo como se, com o gesto, se livrasse do cansaço. Cruzou os braços debaixo da cabeça e, fitando a pintura clara do teto, fez uma recomendação ao delegado, que sentara aos seus pés, à beira da cama.

       — Acho que esqueceu o acordo que fizemos antes de juntarmos os trapos. Tenho que refrescar a sua memória uma vez por semana ou posso ir direto ao ponto e reafirmar a minha intenção de não criar uma identidade de casal? Preciso novamente explicar que não nasci para fazer parte de qualquer tipo de “duplinha” seja afetiva ou sertaneja que, por sinal, a merda é a mesma? Vivemos juntos mas somos dois; não dois em um, e sim um mais um. Entendeu o cálculo, Rodrigo, ou prefere complicar? — perguntou, secamente.

       Ele se voltou e fitou-a sério. Digeria as palavras ditas sem o calor de uma discussão. Karen jamais discutia; ela impunha e determinava. Cabia a ele aceitar ou pular fora, sem meio termo, nada de ponto de equilíbrio.

       Era verdade que fora uma dureza trazê-la para dentro de sua casa. Existiam regras, as regras de Karen. E uma delas era a sua independência, a manutenção irrestrita de sua individualidade. Resquícios de sua relação com Dolejal. Ou apenas proteção de quem fora traída e substituída por outra pelos homens com os quais mantivera um relacionamento sério. A questão era que a sua felicidade minguava-se às saídas dela. Karen mal parava em casa e, quando voltava, nem pensava em dar-lhe explicações. Vivia ainda como uma mulher solteira e disponível. 

       — Acho que sou eu quem deve fazer a sua memória funcionar, já que ela é um tanto seletiva quanto ao que realmente quer recordar. — começou sem pressa, pausando as palavras, mantendo os olhos nos dela: — Quando o Dolejal barrou a sua entrada na Arco Verde, trouxe-a para minha casa, cuidei dos seus ferimentos e quase morri quando o Mendes tentou matá-la. Sei que dispensa a minha proteção, mas, desculpe, não posso deixar de ser quem sou. Você quer liberdade e eu quero protegê-la. Aceitei suas condições. Por que não aceita as minhas?

       Antes de falar já sorria o seu sorriso amargo, aquele preparado com a náusea de quem vivera a mesma experiência mas com outros nomes.

       — Proteção e domínio são praticamente sinônimos, meu caro. Você todo se contradiz quando fala que se preocupa com a minha segurança e, ao mesmo tempo, me chama de criminosa. Assim como sua voz é macia e seus olhos revelam aspereza e rancor. — ela se apoiou nos antebraços. — Sabemos tudo sobre armadilhas, não é? Aqui, em Matarana, temos de aprender desde cedo a nos prevenirmos contra elas. E o que propõe, com esse jeitinho meigo de moço de família, é uma puta armadilha. Então repetirei... nada de dar satisfações e, principalmente, nada de se meter nas minhas corridas.

       Ele assentiu, levemente, contraindo os maxilares.

       Karen temeu perdê-lo, jamais o vira irritar-se ou elevar a voz. O pouco que pedia não era atendido. Conhecia-o suficiente para entendê-lo na sua exigência, era um camarada íntegro e dedicado ao amor, ao amor entre eles. Estendia tal amor a Johnny e a vó Ninita, além de abraçar o novato do grupo, Franco. Mesmo que ela própria ainda desconfiasse da sanidade e caráter do filho de Thales. O fato de mais uma vez ele fazer um sinal afirmativo com a cabeça, um suave sinal, a face entristecida de um perdedor, a fez prender a respiração. Ela não era a doce Jasmine, que com meiguice e voz infantil, também fazia o diabo com ele. Manipulava-o com dedos de fada. Karen jogava tudo na cara, sem manipulações ou rodeios.

       Deitando-se de lado e pondo as mãos debaixo do rosto, pôs fim à conversa. Fechou os olhos e fingiu adormecer. Um fingimento mal executado, uma vez que o homem que ainda a fitava com ar pesado e desconfiado, sabia muito bem que ela custava a dormir, ainda mais quando voltava da rua ferida.

       Rodrigo levantou-se e saiu.

       Ela mordeu o lábio inferior tentando conter um gemido. Gemeu por justamente ter mordido o lábio machucado. Na tentativa de agarrar com os dentes o braço do seu rival, mordera a si mesma. Dor maior era aquela dentro do peito. Principalmente, ao ver por entre as pálpebras semicerradas, o seu homem voltar e tornar a sentar-se à beira da cama. Trazia nas mãos algodão, iodo e pomada para os hematomas. Sem emitir palavra, borrifou o antisséptico nos ferimentos. Havia tamanha delicadeza no gesto que Karen se sentiu obrigada a abrir os olhos e voltar-se para ele, que manteve a atenção concentrada na tarefa.

       — Pensa em pular fora? — ela viu-se perguntando numa voz sumida.

       A expressão no rosto do delegado evidenciava a seriedade do assunto. Rugas profundas na testa, o cenho franzido, a comissura dos lábios ligeiramente curvada para baixo num ricto de amargura. Mesmo com um conjunto facial de provas que apontava para a direção do “bater em retirada”, o que Rodrigo falou serviu à sua dor como uma injeção de morfina:

       — Já disse, sou feito de outra substância.

       O que isso significava?

       Karen não questionou. Sabia apenas que por enquanto estava salva.

         

       Rodrigo abriu os olhos antes do galo da vizinha cantar. Era cedo demais. O quarto ainda na penumbra e o silêncio manso do cotidiano. Respirou profundamente aquele tipo de inspiração preguiçosa e lenta. O cheiro do amanhecer ultrapassava os frisos da veneziana.

       Ele se virou para o lado e encontrou um rosto e um sorriso. Retribuiu o gesto, sorrindo devagar, investigando com atenção a expressão facial de Karen. O sorriso sensual movia os lábios como que para hipnotizá-lo. Havia algum tempo que estava acordada, uma vez que o cabelo fora prendido no alto da cabeça e vestia um robe de seda estampado, tão fino que se podia ver as curvas de suas ancas e a força muscular de suas coxas. Rodrigo ficava doido quando a via dentro do robe. Foi então que tentou erguer-se para tocá-la e não conseguiu. Karen gargalhou, deitando a cabeça para trás.

       Ao que o delegado imediatamente compreendeu por que sentia os braços dormentes. Ele havia caído em uma emboscada.

       — E, aí, machão? Como se sente preso? — ela perguntou em tom de deboche, resvalando o olhar para o tórax nu e o cenho franzido do homem que sabia que puxar o braço das argolas de aço era uma atitude imbecil.

       Manteve-se imóvel, fitando-a. Ainda aturdido pelo sono e pela surpresa, custava-lhe organizar os pensamentos mais inteligentes.

       — É assim que se sente comigo? — arriscou.

       Ela manteve o sorriso irônico. Em seguida, abaixou-se até prender entre a língua e os dentes frontais um dos mamilos do delegado. Uma mão que conhecia todos os atalhos daquele corpo deslizou pelo tórax largo, mas logo o abandonou. Aquele homem com sua barriga tanquinho e sua pele morena era um verdadeiro parque de diversões.

       Voltou-se para ele sem deixar de descer a mão para o cós do short do pijama.

       — Mais ou menos... — murmurou.

       O mistério da resposta foi acrescido ao gesto de reconhecer o terreno tantas vezes explorado e protegido pela roupa íntima. Tirando-o para fora, ouviu um gemido baixo e rouco. Ele fechava os olhos e inspirava forte. Retinha o ar nos pulmões. Sabia que precisaria de todo o estoque possível. Ainda assim, lembrando a discussão que haviam tido, retesou os maxilares. Era uma luta danada aquela, a consciência exigindo um posicionamento a respeito do relacionamento dos dois e o corpo, bem, o corpo ardendo em chamas.

       — Me sinto presa... mas com prazer. — ela gemeu, lambendo-o na concha da orelha. O efeito da lambida pulsou na mão dela. — Como se sente à mercê de outra pessoa?

       — Hã...?

       Ela riu baixinho.

       — Quero fazer bem devagar, sabe como é, gosto de mastigar várias vezes antes de comer. E você é um banquete para mil pratos. — murmurou, as narinas dilatadas, o desejo coçando-lhe a pele numa ardência exasperante.

       Ele não sabia direito em que ponto da fala de Karen disparou um gatilho na sua cabeça. Algo não soou bem. Talvez tenha sido o modo de referir-se a ele como mero objeto de prazer. Era assim que Karen via seus amantes. Abatia-os na cama. Mais uma vez se sentia excluído da condição de seu amor. Era uma peça de carne. Mas não era o homem que a enlouquecia como Thales. Endureceu os lábios e, instintivamente, tentou escapar das algemas e da boca que se aproximava do seu quadril.

       — Não. — a voz soou mais seca do que devia.

       Ela parou e o encarou, divertida:

       — Está no seu período fértil?

       Ele fechou a cara. Não seria fácil argumentar duro de tesão.

       — Você apronta a semana inteira a depois quer fazer amor. — reclamou.

       — Bom, não tivemos tempo pra transar... — tentou argumentar sem muita convicção.

       — Porque não parou em casa. — emendou com rispidez.

       Ela fitou-o, detidamente, percorrendo cada parte do rosto bonito, magoado e ressentido. Por fim, apertou os lábios e comunicou:

       — Foda-se, eu preciso descarregar minha energia.

       Rodrigo tentou escapar das suas mãos. Mais de uma vez puxou os pulsos com algemas da guarda da cama. Marcas vermelhas tingiam-lhe a pele, a cama balançava e batia contra a parede. Barulho que acordaria todos na casa. Mesmo lutando e tentando se esquivar das investidas da mulher, viu-se ser despido.

       Com precisão, ela puxou-lhe o short e o jogou do outro lado do quarto.

       — Karen, as coisas não funcionam assim. A gente tem de se acertar, conversar sobre os rumos do nosso ... pelo amor de Deus... o que pretende? me estuprar? — exasperou-se.

       Ela fez um movimento para tirar o roupão. Mudou de ideia e apertou ainda mais o cinto ao redor da cintura.

       — Isso mesmo, depois faz um BO na delegacia... — comentou indiferente e emendou enquanto acariciava o pênis grande e o posicionava para penetrá-la: – mas depois de eu gozar. — dito isso, sentou-se devagar, aceitando a invasão que crescia e tomava-lhe toda como uma lança ígnea.

       Bem que ele tentou ser forte.

       — Isso não está certo... — gemeu enquanto era cavalgado com força.

       Ela pôs as duas mãos sobre os ombros dele e o montou para vencer. Cavalgava com vigor, atirando a cabeça para trás, aguentando firme os açoites de fogo que a queimavam. Sentia-o todo, no ventre, enterrado e dono dela. Ergueu-se centímetros para recebê-lo novamente. Entre as pálpebras semicerradas, viu-lhe a expressão tensa, de sofrimento contido, de quem está à beira de um ataque de vida quente e cremosa. Enterrou as unhas na carne de seu corpo e gritou ao alcançar o pico mais alto. Ele estremeceu ofegante, escabelado, úmido de suor, perfeito.

       Entre suas pernas, esse era o lugar de Rodrigo Malverde, Karen reconheceu.

       Rolou por sobre ele e deitou de costas. A respiração acelerada e o coração bombeando o sangue à beira de uma síncope. Virou-se e procurou pelo cigarro. Precisava fumar e controlar a tremedeira. O ar-condicionado não dava conta do calor.

       — Pode me soltar agora? — ele pediu, ofegante, fazendo uma careta de dor.

       Ficou entre a vontade de fumar e soltá-lo. Preferiu fazer a vontade dele. Dois filetes de suor deslizavam pelas têmporas de Rodrigo. Os ombros marcados por suas unhadas, a pele avermelhada e o cabelo desgrenhado. Controlou a vontade de debochar de seu aspecto “do avesso”.

       — Acho que terei de esconder minhas armas também. — resmungou, sentando-se à beira da cama, olhando ao redor como se procurasse por explicações para o ocorrido. Arou o cabelo com os dedos e balançou a cabeça devagar: — O que você quer, você pega.

       Tentada a concordar apenas sorriu. O sorriso permaneceu congelado ao encará-lo. Ele se virou para ela meio corpo, olhos sérios e investigativos, a boca numa expressão dura. O delegado estava com raiva. Haviam feito sexo, e ele estava com raiva. Karen não sentia mais vontade de debochar ou desafiá-lo. Havia naquele olhar de um castanho quase cor de mel um tipo de ácido corrosivo. Atingira os brios do caubói. Tantas vezes assistira a tempestades em olhares alheios, convulsões de sentimentos nos olhos masculinos, nas expressões de ódio, ironia e desprezo de machos usados e moídos entre suas pernas. Sabia que provocava coisas boas e ruins nos outros.

       E sabia também que Rodrigo não era à prova de fêmea alfa.

       — Acha mesmo que nesse terreno aqui, — começou, a ponta do indicador desenhando um círculo no ar pouco acima da cama — você também dita as regras? Em algum momento da nossa relação eu usei o sexo como um jogo de poder? Não, Karen, não. Porque fazer amor com você tem sido o único jeito de tê-la somente para mim, totalmente entregue. Fora da cama, você se arma até os dentes e se fecha nessa merda de individualidade. E, agora, na cama, brinca de me dominar, se diverte em debochar dos meus princípios. — ele fez uma pausa, avaliando-lhe a expressão: — Antes que faça alguma piadinha infame, volto a lembrá-la que, sim, sou um homem com valores, fora de moda, um idiota romântico e não aceito muito bem ser subjugado.

       — Ah, é mesmo, desculpa, sei que prefere o original papai-e-mamãe — ironizou, alçando a sobrancelha.

       Ele estreitou os olhos perigosamente e moveu o corpo como se preparando para sair da cama. Mas o braço direito se estendeu e a mão agarrou-a pelo tornozelo, puxando-a para baixo, deixando-a esticada sobre o colchão. Num segundo movimento já estava sobre ela sem tocá-la, os braços dando apoio ao seu corpo, as pernas entre as dela, afastando-as com brusquidão. Baixou o rosto até quase esbarrar em seus lábios, não havia intenção alguma de beijá-la. Dos olhos, faíscas de raiva em melífluas labaredas que nada tinham de doce e era tão-somente a cor do mel expulsando o fogo do corpo, tanto autocontrole desperdiçado por sobre o lençol. Por mais que ele fosse um homem equilibrado e mentalmente saudável, as veias em sua testa e têmporas pulsavam como as de alguém à beira de um colapso. Ardiam-lhe as órbitas injetadas porque a temperatura do seu corpo se elevava, um tipo de febre, uma quentura provocada pelo abalo emocional e o desejo sexual. Não havia dilema quanto ao que queria dela nem a menor intenção de não obter. Vendo-a arregalar os olhos assustada com o ataque não amenizou a vontade de atacá-la e, estranhamente, vencê-la. Prendeu-lhe a cabeça entre as suas mãos e cravou os olhos na boca que se abria.

       — O que está tentando provar? — ela perguntou.

       O tom era de um desdém revoltante, e ele não estava acostumado a ser desdenhado por quem amava.

       — Entendo porque tira o Dolejal do sério. — disparou no mesmo tom.

       Ele sabia que viria retaliação. E ela veio.

       Karen tentou erguer o joelho para acertá-lo e o efeito foi o contrário do que esperava. Rodrigo impulsionou o corpo para trás, trazendo-a consigo, o braço lhe envolvendo a nuca. Puxou-a com ímpeto, o suficiente para fazê-la bater contra o seu tórax e apertá-la dentro do arco de seus braços. Mas não era um carinho. Não, ele não sentia carinho por ela naquele momento. Doía-lhe demais não amá-la enquanto a preparava para fazer sexo, descendo um braço para firmá-la pelas costas ao encontro do seu corpo e o outro braço enfiando-se por baixo das coxas separadas para recebê-lo.

       Ela se debateu e o empurrou batendo em seu peito.

       — O que pensa que está fazendo?

       Ignorando-a, jogou seu corpo contra o dela que afundou no colchão. Karen sentia como se uma parede de concreto tivesse desabado por sobre seus seios, abdômen e pernas, imobilizando-a. Por outro lado, a impressão que tinha era a de que ambos digladiavam na cama tentando estabelecer o domínio alfa.

       Ela tentou se safar e foi contida pelas mãos que juntaram as suas e prenderam-lhe os braços no alto da sua cabeça.

       — É a minha obrigação satisfazê-la, não? — ironizou, baixando a boca e cravando os dentes em seu pescoço, os pelos ralos do cavanhaque arando-lhe a pele e provocando espasmos agudos por sua musculatura.

       Manteve a boca fechada para não gritar, ainda tentando se livrar do domínio dele, da força poderosa pressionando-lhe o corpo e da raiva de se sentir subjugada. Era uma luta pelo poder.

       A fragilidade de seus ossos e carne de mulher irritou-a ao ponto de lhe encher os olhos de lágrimas. Lutou o quanto pôde para sair da posição inferior debaixo dele. No entanto, tudo o que conseguiu foi induzi-lo a usar ainda mais a força muscular de macho preparado para qualquer embate.

       Ele desceu a boca pela sua pele morna e abocanhou um mamilo, intercalando pequenas mordidas com os dentes frontais e chupadas que lhe tomavam toda a auréola na boca. Um homem das cavernas se alimentando da caça, virando a caça de bruços, mantendo-a ainda prisioneira, gemendo e arfando, penetrando-a com força seguidas vezes, bombeando forte como se prendesse estacas no seu território e propriedade, até mesmo a placa de dono.

       — Aqui, Karen, quem manda sou eu. — determinou ofegante, apertado dentro dela e louco, louco ao ponto de perder o controle.

       Pegou-a pelos cabelos e a cavalgou com dureza, sentindo o corpo debaixo de si ceder e aceitá-lo, a umidade do suor brilhando e o barulho de carne contra carne atiçando-lhes ainda mais o desejo. O estrado rangia e a guarda superior batia forte contra a parede.

       — É assim que fodia com o Thales, não é? É assim que gostava? — falou baixinho, rouco, a respiração entrecortada. — Nada de romance, apenas uma boa foda.

       Karen gritou com a cara enterrada no travesseiro. Em seguida, ele afundou o nariz no cabelo dela, respirando colado à sua nuca. Os músculos pulsavam, a pele queimava o fogo que aos poucos cedia. 

       Pela primeira vez ele fora rude. E Karen tentava acreditar que não havia gostado, que deveria exigir-lhe explicação ou pelo menos deveria fingir-se ofendida. Mas não conseguiu esboçar nenhum movimento. Estava exaurida e plena. Transpirava e absorvia pequenas explosões, delicados estampidos inaudíveis na musculatura. Até que ele saiu de dentro dela, abandonando-a na cama, sozinha no seu desejo saciado.

       Quando conseguiu levantar-se, ainda atordoada, ajeitou-se no robe e girou a maçaneta da porta do banheiro. Bateu e pediu para ele abrir.

       — Já dei o que queria. Agora me deixa em paz.

       Mordendo o lábio inferior machucado, Karen considerou que ferira os sentimentos de Rodrigo. De repente ouviu a voz de Thales: “Ninguém aguenta a senhorita Lisboa por muito tempo”.  Será que o cretino tinha razão?, pegou-se pensando alto.

       Voltou para o quarto e se sentou na cama. O mundo não era infestado de “Rodrigos” como aquele, de homens íntegros, inteligentes e atraentes até tirar o fôlego. Por outro lado, a vida no mundo não se restringia a se ter ou não homens ao lado. Deitou de costas e fitou o teto.

       Por que era tão difícil ter um amor e se manter dona do próprio nariz? Por que isso só era difícil para as mulheres?

       Rodrigo não voltou para o quarto. Vestira-se no banheiro e saíra sem tomar café e se despedir.

         

       Alberto conduzia com cautela a camionete de luxo do patrão. Ao seu lado e debaixo do imenso chapéu branco, o coronel Rodrigues fumava o charuto cubano e contava como expulsara os “bugres” das terras em que começara a cultivar o algodão. Para ele, tal façanha era motivo de orgulho, expulsar os índios preguiçosos de terras doadas pelo governo. O fato de famílias inteiras viverem em malocas ao longo das estradas não importava. Afinal, o coronel dizia: de que adianta dar vara de pescar para quem não tem braço? E ria da própria piada. O segurança ao volante também ria, mesmo que também não tivesse um teto seu sobre a cabeça e que sua pele fosse da cor da cuia, como a dos índios roubados. No banco traseiro, Franco entediava-se cada vez mais. Ao ponto de bocejar seguidas vezes. Os vidros da picape estavam fechados, a fim de manter em seu interior a temperatura de vinte e dois graus. A fumaça do charuto fedia.

       Ao entraram na estrada que levava diretamente a Arco Verde, ele se retesou. Endireitou-se no banco e perguntou desconfiado:

       — Por que estamos indo à fazenda do Dolejal?

       Alberto piscou nervoso e nada disse. Ninguém perguntava o que fosse ao fazendeiro. No entanto, Franco questionava-o quando lhe dava na telha. Exalando outra baforada o coronel fez a sua parte:

       — Tenho negócios a tratar. — em seguida, virando-se para trás, mirou bem seus olhos nos do segurança mais jovem e o aconselhou: — Fica frio, rapaz, e não se meta no que não lhe diz respeito.

       Franco segurou uma resposta de arrancar cera dos ouvidos de tão cabeluda. Apertou os lábios e desviou os olhos do patrão de Goiás. Não podia se meter com ele e acabar na rua. Limpara suas economias pela manhã. Ainda tinha um pouco de dinheiro guardado, mas seria usado para o casamento. Ele, Nova e os seus convidados teriam tudo do bom e do melhor. Desde que coubessem em menos de dois mil reais, conjecturou desanimado.

       Dinheiro era uma merda que voava. Bastava trocar uma nota ou outra e já estava pelado de novo. A verdade era que não resistira às alianças de ouro com delicados brilhantes. Nada estaria à altura de Nova, o máximo que conseguira fora a aliança mais cara de Matarana. Jamais comprara algo para uma mulher. Sentira-se estranho na joalheria sofisticada frequentada apenas pelos fazendeiros, políticos e empresários da cidade. Cogitou até que não permitissem a sua entrada, enfiado no seu jeans puído e na camiseta dos Ramones. O segurança uniformizado e armado ressaltara antes de ele passar pela porta giratória:

       — Olha, Franco, o chapéu e as armas terão de ficar comigo. Tudo bem, né? —completara com um sorriso, o seu antigo camarada de bebedeiras e puteiros em Santa Fé.

       Alberto estacionou obliquamente à entrada da casa-sede, ao pé da escadaria de pedras que levava ao reino de um dos fundadores da cidade. Franco desceu da camionete farejando no ar qualquer mudança. Um mero detalhe desconhecido na atmosfera ou no cenário de sua infância e adolescência seria prontamente reconhecido. Ouviu o latido dos cães presos no canil. A cascata caindo no açude ao longe. As mangueiras e palmeiras balançando suavemente ao sabor do vento morno.  A figueira que balançara o corpo de seu bisavô. A aproximação dos pistoleiros sempre cuidadosos e desconfiados; nenhum deles gostava de Franco. Apenas o velho que caminhava sorrindo em sua direção. Estendeu-lhe a mão e retribuiu o sorriso:

       — Nada mudou, Bronson.

       — Como quer que mude, Franco, não faz nem dois meses que está fora. — brincou.

       — E o Dolejal? — perguntou o coronel Rodrigues com brusquidão. — Marquei hora com ele, me leve até o seu patrão.

       Bronson e Franco se entreolharam. O primeiro sabia da fama de imbecil do novo patrão de Franco, e o segundo enfiou as mãos nos bolsos traseiros do jeans, numa postura de forçada indiferença.

       Endereçou um olhar irônico e desafiador aos camaradas que o vigiavam sem discrição. Ergueu o queixo na postura que irritava os capangas da fazenda. Antes de entrar atrás dos outros, acenou-lhes com a mão e um sorrisinho debochado. Quase esbarrou na velhinha miúda que lhes abrira a porta. Abraçou-a meio que apertando e segurando-a no esbarrão. Rindo muito, trouxe-a para si, os braços da governanta enlaçaram-lhe a cintura e o seu corpo parecia tremer.

       — Que saudade! Por que não me visitou mais? — perguntou, secando as lágrimas com o dorso da mão.

       — Por que sou um idiota egoísta, Irene. —respondeu com simplicidade.

       — Estou velha, posso morrer a qualquer momento e ficará com a consciência pesada. — reclamou magoada.

       — Com certeza irei entes de você. — afirmou Franco sem sorrir, endereçando um rápido olhar para os homens sentados no sofá, enquanto Bronson subia a escada até o escritório de Dolejal.

       — Anjos são imortais, meu filho.

       Ele se voltou para ela, sorrindo.

       — Mas o diabo depende da boa vontade dos homens. — debochou.

       — Para com isso! Odeio esse apelido de diabo louco, odeio! — ralhou, dando-lhe um tapinha no peito.

       Franco gargalhou, corrigindo-a:

       — É diabo loiro, Irene, não piora ainda mais a situação. — em seguida, tirou do bolso frontal da calça a caixinha delicada e abriu-a: — Vou casar com a jornalista. — revelou sorrindo.

       — Meu Deus, filho...são lindas...meu menino vai casar. — começou a soluçar.

       Envergonhada, disparou para a cozinha.

       Franco fez um movimento para alcançá-la, mas foi contido pela percepção de uma presença que sempre o atraíra. Voltou-se e observou a figura imponente no mezanino fitando-o impassível. Apertou os punhos. Não sentia raiva ou vontade de bater. Continha-se para não correr e atirar-se aos seus pés.

       Thales precisava de uma desculpa para saber como Franco estava se virando. Havia um assunto que se arrastava havia alguns anos, a compra de um grande lote de terras entre a Arco Verde e a fazenda de Rodrigues, terras férteis com direito a um açude natural.

       — Bom dia, Rodrigues. — estendeu a mão ao fazendeiro que, prontamente, ergueu-se a fim de cumprimentá-lo.

       — Como está, Dolejal? Pelo visto, cada vez mais rico. — brincou.

       Camaradagem entre feras — observou Franco, postando-se à esquerda do coronel, com a mão sobre a Glock na cintura e o olhar direto no pai.

       Os fazendeiros não cumprimentavam os seguranças alheios. Era uma questão de se respeitar a casta à qual se pertencia. Por isso Thales ignorou-os e fez um sinal ao coronel indicando-lhe a escada de onde viera.

       Ele não esperava outra reação. Franco acostumara-se a não querer mais do que a vida podia ou queira dar. Acompanhou-os até o escritório e foi surpreendido pelo ruivo sardento sentado no sofá, a perna dobrada sobre o joelho, o chapéu enterrado até os olhos. Assim que Dolejal entrou, seguido por Rodrigues, o caubói se colocou, precisamente, à esquerda de Thales. Era Paulo.

       Franco endureceu os maxilares e endereçou um olhar de fúria contida ao ex-patrão. Thales mais uma vez desconsiderou a sua presença, sentando-se na cadeira atrás da escrivaninha. Antes que ele começasse a falar, o coronel sinalizou com a mão como se tocasse um cachorro:

       — Chispa pra fora, fica lá embaixo com o Alberto.

       Ele nem se mexeu, manteve os olhos cravados nos olhos de Dolejal, que o desafiava secretamente.

       — Meu lugar é aqui.

       — Já disse, pra fora! Era só o que me faltava a peonada participar de uma reunião de negócios! — debochou o fazendeiro, estalando a língua no palato.

       O outro latifundiário, por sua vez, concentrava-se na postura de guerra da sua criatura.

       — Se ele sair, eu saio. — Franco afirmou, acenando com a cabeça em direção a Paulo.

       Paulo riu, sentia-se importante e inatingível em seu posto de braço direito. Mesmo que o patrão o considerasse mera prótese até o verdadeiro membro superior voltar.

       O coronel pôs as mãos nos quadris, o charuto entre os dedos apontava para frente.

       — Ô seu merda, pago o teu salário, ponho comida na tua boca e na boca da tua mulher, então, quando eu mando, só tem uma coisa a fazer. E é pra já, cacete!

       Thales sorriu ligeiramente. Era aquele sorriso usado para intimidar o oponente, um sorriso arrogante e mau. O sorriso endereçado ao filho. Você é um Dolejal ou um merda? O sorriso perguntava.

       O coronel captou a intenção desafiadora no semblante do seu parceiro de negócios e voltou-se curioso para o seu segurança. Ele também aguardava a decisão. Apostava que o medo de ficar sem emprego e dinheiro tendo uma família para sustentar o fizesse curvar os ombros e encostar a cabeça no estômago para ouvir melhor os roncos da fome. Mas Rodrigues não vivia dentro da cabeça de Franco, era mero expectador de suas atitudes que nem sempre correspondiam à verdade de suas intenções.

       Franco ajeitou o chapéu e apertou os lábios numa linha dura e desgostosa. Tentou controlar a enxurrada de sentimentos que ameaçava verter em palavrões. O máximo que conseguiu foi afirmar entre os dentes, encarando o ex-patrão, já que Rodrigues definitivamente continuava sendo um bosta.

       — Não sou um merda nem um Dolejal. Vocês esqueceram? Sou o filho da puta. —provocou-os com a calma de um monge na primavera.

       Rodrigues riu com vontade, puxando a cadeira e sentando-se. Estava louco para começar a negociata de terras. Mas pai e filho ainda se enfrentavam em silêncio medindo forças.

       Thales não mais sorria. Quando o assunto era Franco, palavras poderiam se tornar dardos envenenados; porém, ele era íntimo de poções malignas.

       — Não se rebele ao seu destino, meu filho.

       Dito por outra pessoa e sem o teor de superioridade, Franco até acataria a determinação. Por mais que tentasse manter a cabeça no lugar, nas veias corria-lhe o combustível que, ao menor sinal de faísca, explodia. Não foi preciso mais que três passadas largas e uma mesa para detê-lo.

       — O que eu sou, pai, sendo um Dolejal? Espancador ou assassino? — elevou a voz.

       Um barulho de metal contra metal fez Thales desviar atenção do filho, da febre no azul brilhante de seus olhos e de toda a comoção de seu corpo trêmulo e contido a duras penas.

       Para Thales, Franco era o mais puro e perfeito Dolejal, só lhe faltava a circunstância. Como agora quando o pistoleiro ruivo destravava a automática, estendia o braço e apontava para a sua cabeça. Percebeu quando o coronel se encolheu na cadeira, surpreso pelo rumo da conversa. Entretanto, Franco continuava imóvel, encarando-o à espera que desse uma ordem ao seu novo segurança para atirar. Foi então que explodiu e se atirou para cima do pai, numa provocação explícita a Paulo. Bateu com o quadril na mesa e, mesmo com dor, jogou meio corpo para frente com os braços esticados. Tentou alcançar-lhe o pescoço, mas Thales foi mais rápido e lhe segurou as mãos, os dedos se entrelaçaram, as palmas se tocaram. Mesmo que Franco ainda tentasse atingi-lo para descarregar a dor de amar demais quem não prestava, Thales permaneceu impassível domando a fera que havia criado desde os 12 anos. Empurrou-o calmamente para trás, desvencilhando-se e se voltou para o pistoleiro ao lado, sentenciando com uma cáustica serenidade:

       —Nunca aponte uma arma para o meu filho.

       — Desculpe, patrão. — disse, travando novamente a automática.

       Thales interfonou à governanta, sem deixar de manter os olhos em Franco. Ordenou-a que chamasse Bronson. Depois, indicou a porta para Franco:

       — Acalme-se e vá conversar com a Irene.

       Atordoado não só com a calma de Dolejal, mas também com a determinação no tom da voz, resolveu acatar a sugestão. Relanceou-lhe um olhar que foi absorvido com placidez. Antes que saísse, Bronson entrou, tirou o chapéu e esperou a ordem:

       — Conduza Paulo ao seu alojamento e, depois, deixe-o na rodoviária.

       Bronson nem vacilou:

       — Vamos lá, rapaz.

       — O que? Me perdoa, patrão, eu...

       — Agora, está se borrando, né, ô valentão? — fez troça o coronel, rindo.

       — Não vou expulsá-lo da cidade, Paulo, apenas será transferido para a Lagosta do Brejo.

       O rapaz era filho caçula de uma família que vivia em uma das casas da Arco Verde. O irmão mais velho também era segurança da fazenda e o pai manuseava uma das colheitadeiras na plantação de soja. Por ter apontado uma arma em direção à cabeça do filho do latifundiário, Paulo seria afastado da sua família. Crescera por ali e sabia muito bem o que devia fazer. Baixar a cabeça e aceitar.

       — Obrigado, patrão. — balbuciou e saiu.

       No mesmo instante, Franco entendeu que Thales Dolejal queria o seu retorno.

         

       Nem sempre o sol batia forte contra a janela com a intenção de partir o vidro em mil pedaços. Às vezes, ele apenas deslizava como um lenço de seda tentadoramente em brasa. Era assim também o coração daquele caubói. Mesmo que ao redor fosse tudo verdejante e os tuiuiús se sentissem livres no céu do centro-oeste, o loiro, aceitando a fatia de pão caseiro com queijo de cabra derretido, queimava no peito uma dor antiga. Cavara fossos dentro da alma para se esconder de si mesmo e, de repente, era como se libertasse um monstro. E era um monstro fraco e pedinte que se rastejava em busca da aceitação paterna. Uma criatura estúpida que não aprendia com as quedas.

       Irene beijou o topo da cabeça de Franco e despejou mais café preto em sua caneca preferida. Depois, puxou a cadeira e sentou-se à mesa, um sorriso de satisfação iluminava a feição aperfeiçoada pelas rugas fundas, as trilhas pelas quais a vida passara.

       — Quando a jornalista chegou por aqui, para escrever o livro do patrão, ela bisbilhotava tudo. — riu-se e apertou-lhe o antebraço à recordação. — Eu tinha de ficar de olho, senão era capaz de vasculhar as gavetas das cuecas do seu pai.

       Franco soprou a fumaça do café e o bebericou.

       — Perfeito, perfeito. É o melhor café da cidade.

       — Ela não vivia com o doutor Bittencourt? — indagou, estreitando os olhos, desconfiada. — Você não desmanchou uma família, não é, moleque?

       — Eles eram só amigos, parece que o doutor é meio vacilão, sinceramente, não sei qual é a dele. — deu de ombros, indiferente, e afirmou: — Dormir debaixo do mesmo teto com uma mulher como a Nova e não tentar coisa, isso eu lhe digo, Irene, na minha terra não é normal.

       Ela riu, dando um tapinha carinhoso no ombro dele.

       — É, em Matarana, os caubóis caem matando, né, Franco?

       — Ué, não é assim que tem de ser? Aqui é terra de macho! — brincou. Em seguida, encarou-a com olhar travesso e confidenciou: — Fiz filho nela, Irene.

       A governanta arregalou os olhos surpresa.

       — Já?

       —Não sou o primeiro Dolejal a acertar de primeira. — disse com bom humor.

       — Mas é o primeiro a cair no golpe da barriga.

       Ambos viraram-se ao ouvir a voz do fazendeiro. Franco ergueu-se rapidamente da cadeira, pondo-se em alerta, como se o general chegasse e ele, soldado raso, tivesse de se manter em posição de sentido. Na realidade, a postura desafiadora questionava o comando daquele que endereçava um olhar duro.

       — Como pôde cair nessa?

       — Existem pessoas boas no mundo e algumas delas vêm para Matarana.

       — É mesmo?  — alçou a sobrancelha, irônico, e continuou impassível: — E, por acaso, uma fuxiqueira metida à jornalista e, — nessa parte ele sorriu com desdém: — cantora de bar, não?, pois bem, uma jornalista que vendeu os seus princípios por um punhado de dinheiro é uma boa pessoa? Inteligente, pelo menos, é. Tem noção que recebendo o meu sobrenome, Franco, não só é o alvo preferido dos pistoleiros, como também das pistoleiras?

       Franco sorriu devagar, absorvendo debaixo da língua as palavras que ainda descansavam na saliva. Depois, cuspiu-as:

       — Desculpe, mas não engravidei a sua Karen, patrão. O único que se envolve com pistoleiras é o senhor, até trouxe uma de fora.

       — Interessante mencionar a Karen. O que acharia se eu dormisse com a jornalistinha? Continuaria a implorar pela minha atenção?

       — Pendurava o senhor lá na figueira sagrada. — escarneceu, sem sorrir.

       Thales não tomou conhecimento da provocação. Conjecturava acertar-lhe pelos flancos:

       — Case-se com separação total de bens. Não darei de mão beijada o meu patrimônio para o filho de uma golpista barata.

       A governanta achou por bem interferir na conversa:

       — Patrão, o senhor aceita um café passado agorinha?

       — Por que julga as pessoas por si mesmo? — provocou Franco.

       O berro do coronel Rodrigues chegou até a cozinha. Mas o segurança manteve o olhar direto no antigo patrão. De repente Franco percebeu que ele não era tão alto nem possuía ombros tão largos ou poder que emanasse de seus ossos. O camarada à sua frente era apenas um homem com todas as fraquezas, deslizes e misérias que o fato de sê-lo carregava. Por isso ele voltou à sua posição de adorador mesmo odiando também ser um fraco em sua adoração. Tinha tanta coisa para dizer, tanta palavra sedimentada no céu da boca, tanta eletricidade para verter pelos poros. Mas nada fez. Pois queira fazer mais. E não podia. O chamado do sangue e os galhos da figueira. Respirou fundo, manteve o controle. Por fim, baixou a cabeça e saiu.

       — Quando irão se entender, patrão? — perguntou Irene entristecida.

       Thales observava o filho entrar na camionete e ajeitar-se no banco do passageiro, atrás do coronel. Esboçou um suave sorriso ao revelar um segredo à governanta:

       — Já está tudo acertado. Em breve, voltará a mimá-lo.

       O coronel prometera-lhe que antes de chegarem ao centro da cidade, Franco, o pistoleiro mais perigoso da região, estaria desempregado.

 

       Vestiu o jeans, a camiseta regata e as botas. Soltou o cabelo, lavou o rosto e decidiu enfrentar o dia. Ao entrar na cozinha, encontrou Val posicionada diante da pia terminando de lavar a louça do café da manhã. Os passos de Karen eram pesados, batiam forte os saltos das botas no assoalho de madeira. E, antes de se virar, a irmã do delegado já sabia quem abria a geladeira para se alimentar.

       — O que aconteceu?, foi jogada da janela de um trem? — perguntou num misto de curiosidade e divertimento. No fundo, ela sabia que a cunhada se atracara com alguém.

       Sem se virar, concentrada que estava em ponderar sobre o valor calórico do queijo prato em relação à ricota, Karen respondeu desinteressada:

       — É, o maquinista teve uma crise de sensibilidade e me expulsou do vagão.

       — Meu Deus, o Rodrigo? Nem vem com essa, o meu irmão jamais bateria numa mulher! — exclamou Val na defensiva.

       — Ah, você fala dos hematomas? — perguntou, voltando-se com um sorriso sem graça: — Bem, pensei que... nada, deixa pra lá — puxou a cadeira e armou um belo pedaço de pão caseiro com queijo, ricota, goiabada e uma grossa camada de manteiga com sal. — Já ouviu a expressão “acidente de trabalho”? — indagou com ar debochado.

       — Não, Karen, minha nave espacial pousou ontem no milharal, não sei o que isso significa — retrucou no mesmo tom.

       — Pois é, para vencer às vezes é preciso perder. — filosofou.

       — No seu caso, por exemplo, é perder a compostura e a beleza, né? Seu rosto está inchado e colorido, e o seu adversário provavelmente no hospital ou no necrotério.

       —No dentista. — respondeu, abrindo a boca e mordendo um bom pedaço de pão.

       Valéria Malverde observou-a se fartando daquilo que ela própria se aspirasse o cheiro engordaria cinco quilos. Mas Karen desistira de todas as dietas e comia plantações de algodão, soja e trigo e todas as vacas e bois do pasto e a gordura se acumulava nas coxas e no traseiro. Era como se a mulher tivesse uma tubulação interna estratégica enviando para os lugares certos os enchimentos necessários. Tinha de dar o braço a torcer, a filha da mãe era um mulherão. Até comendo de forma displicente, farelos no canto da boca, sem maquiagem, boca inchada e cara de sono. Era inegável que um demônio de luxúria animava aquele corpo. Pobre Rodrigo!

       — Precisa extravasar essa libido, Val. Não jogo no seu time. — brincou Karen.

       — Engraçadinha! — pôs as mãos nos quadris e falou criticamente: — O outro saiu com a cara amarrada e nem quis tomar café. Brigaram de novo, é?

       — Me diz uma coisa, Val, os Malverde não gostam de sexo?

       — Hã? — a pergunta à queima-roupa decorou no seu rosto uma imagem um tanto tola. Recuperando-se, arregalou os olhos e puxou a cadeira com a intenção de tricotar com a comadre, mesmo ainda estarrecida com a questão: — Por acaso, está querendo dizer que o meu irmão, um macho alfa puro sangue, não está dando conta do recado? Sabe que a linhagem Malverde vem dos guetos espanhóis, né?

       — Gueto espanhol? Não viaja.

       — O que está acontecendo entre vocês? Sério, Karen. Até poucas semanas estava tudo bem, de beijos e abraços pela casa, a cama quase quebrando a parede e agora...

       — Simples, o seu maninho quer namorar o porco-espinho, mas sem os espinhos.

       — Entendi.

       — Não parece que tenha entendido. — cravou os olhos nela e os dentes no pão e emendou meio mastigando meio falando: — Vou ser mais clara. Sabe por que o porco-espinho tem espinho?

       — Porque Deus quis.

       — É, talvez. Tudo bem, Deus quis. O Nosso Senhor quis dar proteção a sua criaturinha e o armou de espinhos. Só que o seu irmão quer tirar a minha proteção e oferecer a dele. E por que eu aceitaria a proteção de alguém mais fraco? — o tom da voz era calmo, a face serena, tudo muito natural.

       — Como assim, mais fraco? — sondou-a incrédula.

       — Quem estava hoje pela manhã com a cara amarrada, hein? Não precisa responder, eu digo, o mais fraco. — dizendo isso, levantou e depositou o prato de pão na pia, sem intenção alguma de lavá-lo.

       — Quem é forte pra você, então? Um camarada que tentou expulsá-la da cidade? O fato de o Rodrigo ser íntegro e generoso não o transforma num banana.

       — Não, claro que não. — disse ela, afastando a cortina e dando uma olhada no pátio. Voltou-se como quem não queria nada e largou: — Amiga, sabe como é a genética humana? É assim ó, um gene recessivo junto com um gene dominante. É desse jeito que funciona, e o Rodrigo ainda não aceitou o papel que lhe cabe na nossa relação. Mas tenho fé nele, se pus um cretino nos trilhos, posso pôr um bom-moço no seu lugar também. — afirmou convicta.

       Na maior parte das vezes, Valéria assimilava as ideias feministas radicais da amiga. Mas, às vezes, parecia que ela tinha um pino a menos na cabeça. Manteve-se a observando com atenção, talvez com a mesma postura de um médico diante do raio X de um alienígena. Até que Sabrina entrou sorridente, apesar das pálpebras inchadas, os olhos mal se abriam. E Karen farejou o caos.

       — Quem a fez chorar desse jeito?

       Sabrina desmanchou o sorriso e, mecanicamente, pôs uma mecha do cabelo para trás da orelha. Buscou com o olhar a cumplicidade da mãe.

       — Nada, é cansaço. — atalhou Val.

       — Ontem fiquei no computador até tarde. — emendou a filha com um sorriso forçado.

       — Certo. — Karen balançou a cabeça concordando e completou com escárnio: — E o seu anel de compromisso, cadê? Penhorou para comprar ducha vaginal?

       A garota enrubesceu e baixou a cabeça.

       — Olha só, Karen, — a mãe achou por bem se meter na conversa: — isso é coisa dela, certo? Foi uma briguinha de casal como a sua com o Rodrigo. — disse com suavidade.

       Karen endereçou um longo e especulativo olhar para a mãe e, depois, para a filha. Avaliava a extensão da mentira, a farsa da encenação. Havia alguns anos que colecionava na memória expressões faciais de todos os tipos. Mulheres tristes sorrindo, mulheres espancadas disfarçando, mulheres carentes amando. Com um arsenal desses, ela sabia que naquela cena havia duas atrizes canastronas. Preferiu alfinetar a mais velha:

       — Vai deixar barato sacanearem com a tua única filha?

       Valéria tentou sorrir. Afinal, precisava manter o improviso.

       — Ela já tem quase dezoito, sabe como se virar.

       — Deixa quieto, Karen, não é culpa do Eduardo não corresponder às minhas expectativas. — murmurou Sabrina, constrangida em revelar que era o gene recessivo da relação.

       A questão era que Karen simpatizava com os mais fracos.

       — Quem disse essa pérola? — debochou.

       — Conversei com o Cris e...

       — Ah, conversou com o filósofo de Matarana? Ééé, o Cris entende muito de homem e porra nenhuma de mulher!  — ela deu dois passos para frente e apontou o dedo indicador em direção à sobrinha de Rodrigo: — Aposto que o Eduardo meteu um pé na sua bundinha juvenil e, digo mais, ainda saiu por cima e cheio de razão.

       — A gente não tem como fazer alguém gostar de nós. — argumentou a garota.

       — Por que temos que dar satisfações a você, Lisboa? — perguntou Val franzindo o cenho.

       Karen estreitou os olhos, tentando compreender a jogada de quem não deveria ser sua adversária.

       — Vocês passam a mão na cabeça desses cretinos como se fossem meninos travessos, mas não enxergam que são homens crescidos, cruéis e egoístas. — afirmou com desdém. — Se fosse minha filha, por Deus, arrebentava a cabeça do camarada!

       — Nem tudo se resolve no braço! Onde estamos? Ontem o psicopata deu um soco na cara do Cris. Sabia disso?

       — Não me interessa quando dois homens se matam, faz parte do próprio clã, se merecem. Agora, Val, o que me tira do sério é ver uma menina bonita com o rosto desfigurado de tanto chorar. — ela arou o cabelo com os dedos, irritada, respirando fundo para tentar acalmar a enguia que se contorcia dentro de si. — A gente se gaba que somos melhores, que conseguimos fazer trinta coisas ao mesmo tempo, mas, merda!, sempre nos matamos um pouco permitindo que esses filhos da puta nos enganem e nos machuquem.

       — Karen... — Valéria começou a falar. Porém, descobriu que cutucara a colmeia.

       — Sabe o que aconteceu de verdade, Sabrina?

       — O que?

       — Nada, filha. Ajeita o cabelo, lava o rosto e vai para o seu estágio. — pediu Valéria, tentando apaziguar a situação.

       — Espera, não. — empurrou levemente o braço da mãe em seu cotovelo e fitou Karen: — O que fiz de errado? — insistiu quase como que implorando pela resposta.

       — Nada. Não importa o que faça, eles têm as próprias regras do jogo. Se quiser ser má, eles também o serão, mais ainda até. Se quiser ser boazinha, eles te grudaram no asfalto feito um tapete. O único jeito é ter certeza de que não precisa deles, porque essa é a segunda maior verdade do mundo; a primeira é a morte. E a terceira é que vou quebrar a cara desse cafajeste!

       Mãe e filha mantiveram a atenção voltada para o lugar onde, até poucos segundos, Karen riscava o assoalho com as botas. Ela chispara feito um raio por entre a porta aberta. Com passadas largas alcançou o pátio e abriu a porta do Fusca.

       — Meu Deus do céu... — sussurrou Val, ainda espantada, ao ponto de nem conseguir se mexer.

       — Pensei que não era para contar só pro tio. — balbuciou Sabrina.

       — Me esqueci da mulher-bomba.

         

       Vó Ninita acordou com os gritos vindos do pátio. Vestiu um roupão por cima da camisola de algodão e pôs a cabeça para fora da janela. O que viu a fez apertar os lábios num esgar de desgosto. Suspirou irritada, ajeitando os pés nos chinelos e arrastando-se para fora do quarto. Prometera a si mesma dormir até o final da tarde. Depois passaria a noite com Veridiana planejando o negócio que pretendiam abrir. Mas como poderia continuar dormindo com a gritaria daquela mulherada e o barulho de lataria e vidros sendo quebrados a golpes?

       Alcançou a porta dos fundos e avaliou a situação. Empurrou os óculos contra o rosto. Não era possível que a neta enlouquecera de vez.

       — Se for atrás do Eduardo, seja por qual motivo encasquetar, acabará arranhando a imagem da Sabrina. Ele não sabe que ela está sofrendo! — alertou Val, ao ver Karen pular fora do Fusca, fechando a porta com tanta força que quebrou o vidro da janela do motorista.

       Ignorando o feito, postou-se entre o automóvel e Valéria.

       — Mais um motivo para quebrar a cara do infeliz e fazê-lo sofrer ainda mais. — afirmou, batendo a extremidade do taco de beisebol contra a palma da mão. — Não é melhor assim, Sabrina? Saber que ele também está sofrendo? Eu particularmente me sentiria bem melhor.

       A garota ameaçou um sorriso. Queria concordar com Karen e até mesmo ajudá-la a soquear Eduardo. O problema era que a história se espalharia pela cidade feito rastilho de pólvora, e os Malverde não estavam acostumados a cair na boca do povo. Preferiu esconder-se atrás da ponderação da mãe:

       — Deixa quieto, Karen. Não adianta.

       Karen assimilou a resolução de Sabrina como uma traição ao movimento. Ela não sabia bem qual o movimento, mas parecia traição. Aos seus ouvidos, tal decisão revelava que nada havia progredido e a fogueira dos sutiãs não passara de uma piada entre comadres entediadas. Poucas horas atrás, havia lidado com um macho que tentava enquadrá-la em seus artigos jurídicos de homem com uma cartilha de como se viver. A manhã estava nublada. A sucata de quatro rodas sucumbira. Precisava urgentemente descarregar a munição. O taco que quase usara em Franco foi arremessado contra os faróis do automóvel. Ouviu-se um grito. As sinaleiras estraçalhadas. Erguendo no alto e impulsionando-o com força, bateu contra o capô até afundá-lo. Parou para recuperar o fôlego. A atenção totalmente voltada para a destruição de um inconveniente. Ao erguer o taco para pôr um fim no vidro frontal, sentiu nas costas o jato forte de água fria. Surpresa pelo evento, voltou-se a fim de encontrar a avó mirando a mangueira em sua direção.

       Val e Sabrina observavam estarrecidas a ousadia da velhinha de cabelos loiros e eterno cigarro no canto da boca. Segurava uma mangueira posicionada como se fosse uma espingarda. Um banho de água fria para acalmar a fera.

       — O que está fazendo? — gritou Karen, tentando proteger-se da água.

       — Como buscarei o Johnny na escola, hein, sua doida? É o único carro que temos! Não tenho idade para montar em cavalo! É melhor se acalmar, não me faça partir para a ignorância!

       — Para com isso, vó! Merda! — esbravejou a neta, jogando o taco no chão e protegendo o rosto. Deu as costas à avó e se refugiou no interior do automóvel: — Já vi que a sua demência senil se manifestou! E quanto as duas, — berrou através da janela sem vidro: — um fiasco! De que adianta nascer com útero e agir com as orelhas!

       Na terceira tentativa do segundo tempo, o motor roncou como um velhinho no leito de morte. Karen fez um sinal obsceno para as três mulheres que a fitavam dar ré. O dedo médio erguido e a ferocidade natural chispando-lhe dos olhos.

       Ao ganhar a estrada em direção à loja de carros usados, entre Matarana e Santa Fé, já havia decidido trocar de automóvel. Um camarada vendia preciosidades no seu galpão a céu aberto. Agora era uma questão de honra. Karen Lisboa rompera ligações com o Fusquinha.

       No alpendre da casa do delegado, a primeira que falou foi a mais velha.

       — O que é isso, agir com as orelhas?

       Sabrina deu de ombros. Valéria examinou a questão por um ou dois minutos. Por fim, suspirou, a equação era por demais complicada.

       — Ela inventou, vó. Só pode.

 

       O médico acendeu o cigarro e o tragou fundo. Havia amanhecido sem sol. Talvez chovesse antes do meio-dia. Ao ouvir o ronco da cafeteira, pegou uma caneca do armário e serviu-se da bebida. Sentia-se exausto e mal começara o dia. A exaustão era mais como a ponta de um iceberg que denunciava o verdadeiro estado de sua alma. Cris estava destroçado. Olheiras escuras ao redor dos olhos e uma sensação de coração na garganta. A angústia bloqueando a passagem do ar aos pulmões. Sem corpo para enterrar, velava a si mesmo. Ela estava grávida. Ela se casaria outra vez. Ela não o amava mais. Partir ou ficar?

       Voltou para o quarto com a caneca na mão, o cigarro entre os dedos, uma ruga funda envelhecendo os seus trinta e seis anos. Sentou-se à beira da cama e bebeu o líquido fumegante com a vontade ferrenha de se queimar. Precisava da dor física para combater a mais perigosa. Por que no exato momento em que ele engolia o amargor, ela poderia estar fazendo amor com outro. Sendo feliz com outro e decidindo passar a vida inteira com outro. Quem ele era então? Major Tom perdido no espaço.

       Dois braços envolveram-no pelos ombros e uma boca pousou sobre sua nuca. Cris fechou os olhos para que a moça que mal conhecia não visse as suas lágrimas. Puxou o ar do fundo, percebendo que as lágrimas que corriam nas veias não eram visíveis. Podia se debater ou gritar pelo prado. Deixou-se apenas ser embalado por ela. Ainda era jovem e não conhecia de perto a morte.

       Outros dois braços abraçaram-no na cintura. Mas ele não lembrava quem era essa. De que tronco partira os membros superiores que o puxavam para trás, para deitar na cama com elas. Ele obedeceu ao comando das estranhas que conhecera na rua ao parar no semáforo. Acendera um cigarro enquanto um filete de sangue escorria do seu nariz. Elas estavam lá, debaixo de um poste público, preparando-se para voltar. Não havia retorno. Nem todas as ruas apontavam para a saída. Arrependimentos e ressentimentos voando como sacolas no ar.

       — Você está pronto para nós?

       De olhos fechados, permitindo-se ser vasculhado, ouviu a voz num tom malicioso. Assentiu com a cabeça, devagar, em afirmativo. Então elas avançaram e tiraram dele tudo o que podiam. De um corpo cuja alma fugira. Tudo o que podiam. Nada. Nem as lágrimas que Cris engoliu enquanto as mulheres se revezavam na busca selvagem pelo prazer.

 

       — Onde está, minha princesa?

       A voz rouca e ligeiramente arrastada como alguém entediado até para falar ainda lhe arrepiavam os pelinhos da nuca. Ela sorriu enquanto manobrava o jipe em frente à delegacia.

       — Humm, que pergunta é essa? Pensei que eu estava no seu coração. — brincou.

       Do outro lado da linha, ele riu baixinho:

       — Você é o meu coração, quero saber apenas em que parte da cidade ele está. Me disseram que visitará o nosso amigo Rodrigo. A informação procede, meu amor?

       Imediatamente, ela olhou ao redor à procura de alguém com cara de detetive particular dos filmes dos anos 40. Naquela hora do dia, os automóveis trafegavam calmamente e as pessoas nas calçadas carregavam sacolas dos supermercados e lojas. Não havia ninguém com atitude suspeita. A não ser o barbeiro ao lado da futura confeitaria de Karen. Este, sim, olhava por detrás da vidraça na maior cara de pau. Eram os olhos de Franco espalhados por Matarana.

       — Descobri um de seus rastreadores humanos. — afirmou com rispidez.

       — Acena para ele, então. — Franco provocou-a rindo.

       — Vou é mandá-lo tomar naquele lugar!

       — Que boca suja, dona jornalista!. — debochou e emendou em tom de brincadeira: — O que quer com a sua antiga paquera?

       A incipiente irritação se dissipou assim como veio. A espirituosidade de Franco sempre a surpreendia e punha por terra suas tentativas de ser durona com ele.

       — Quem disse que é antiga? — alfinetou-o com bom humor: — Acha que depois que o conheci fiquei cega, é? O Rodrigo verdadeiramente é uma delícia!

       — Conte até cinco, dona Nova. — ordenou.

       Aturdida, ela franziu o cenho. Antes de ter chance de elucidar tanto a ordem quanto o tom de ordem, viu-o atrás do barbeiro, o celular colado à orelha, a feição séria. Ele abriu a porta de vidro da barbearia e atravessou a rua de mão única sem desgrudar os olhos dos dela. Parecia zangado.

       — Foi fazer a barba? — indagou, com um esboço de sorriso, uma vez que investigava os sentimentos que abasteciam aquele corpo saudável.

       — Estou com o coronel gorducho. — respondeu apenas. Enfiou a mão no bolso do jeans e tirou a caixinha com as alianças: — Quero que ponha isso no dedo antes de se meter numa sala com o delegado delícia. — falou sério.

       Ela riu com vontade.

       — Ciúme do Rodrigo?

       Ele não estava para brincadeiras.

       — Me dá sua mão. — pediu, pegando-lhe o pulso e ajustando a aliança no dedo médio. — Eu declaro a senhora minha noiva e isso significa que está blindada. — anunciou solene.

       Nova admirou o aro de ouro com pedrinhas de brilhantes. As lágrimas toldaram sua visão. Não era a primeira vez que alguém lhe punha uma aliança no dedo; era a primeira vez que ela acreditava no valor daquele gesto.

       — É linda, Franco. — balbuciou, emocionada.

       — Pode pôr a minha, não me importo que saibam que o pistoleiro delícia está fora de mercado. — provocou-a ainda sério.

       — É bom mesmo que assuma a aposentadoria, meu diabo loiro. — concordou com um sorriso malicioso enquanto deslizava a aliança em seu dedo. — A partir de hoje muitas garotas vestirão preto em Santa Fé. — brincou.

       A expressão facial do pistoleiro suavizou-se, a carranca obstinada cedeu espaço para um sorriso charmoso, entre tímido e constrangido. Ele não se vangloriava de suas façanhas sexuais. Fitou a própria mão com a aliança que brilhava contra o minguado sol.

       — Posso beijar a noiva?

       — Claro que sim, meu príncipe.

       O beijo de Franco era mais que uma carícia; era uma viagem. Ele apertou-a forte entre seus braços, trazendo-a para si de forma possessiva, como tudo entre eles o era. Ela ficou na ponta dos pés e pôs os braços ao redor do seu pescoço, sobre os fios loiros e irregulares, o cabelo cheiroso que dançava sobre a sua testa, enquanto mantinha os olhos fechados, mergulhada na docilidade erótica da boca do seu homem. Afastaram-se por alguns segundos, olhos nos olhos, absorvidos pelo magnetismo que o próprio amor criava entre criaturas únicas e completas. E não foi estranho sorrirem ao mesmo tempo e esfregarem a ponta do nariz um no outro num gesto que revelava a sincronia dos iguais, o movimento simultâneo dos predestinados.

       — Quando a gente quer dizer mais do que “eu te amo”, o que a gente diz? — ela perguntou numa voz embargada.

       — Para sempre. — ele respondeu confiante.

         

       Torceu o volante à direita e adentrou a revenda de automóveis. A loja era envidraçada. Os veículos estacionados exibiam-se sobre rampas no pátio externo e ao longo do saguão do comércio aberto 24 horas. O proprietário era de Santa Fé e vestia um terno barato e chapéu de caubói, como um texano vulgar. No interior da revenda o ar-condicionado mantinha a atmosfera primaveril, e as nódoas de suor seco debaixo das axilas de Vieira Lobo marcavam-lhe o terno.

       Ele teimava na tentativa de ser elegante custasse o que custasse. A aparência era tudo em seu ramo de negócios. Vieira tinha uma mulher bonita e dois filhos, um casal, como troféus. A propriedade à beira da estrada, numa secundária que levava aos endereços das maiores madeireiras da região, catalisava as atenções dos fazendeiros quando cismavam em trocar de camionete. Virava o ano, novo veículo. Cabia ao empresário proporcionar-lhes o melhor investimento. O cartão de apresentação por aquelas bandas era o tipo de montaria de metal utilizado.

       Karen não escolhera a revenda de Vieira em função do luxo na decoração interna combinando a ardósia com o vidro e a porcelana dos vasos sobre os aparadores, tampouco em razão da simpatia simulada e levemente pedante dos vendedores e do proprietário. Ao entrar com seu fusquinha 75, batido, sem vidro lateral e tossindo para subir o elevado até o estacionamento para clientes, ela sabia que já havia sido analisada e descartada como consumidora em potencial. Tal percepção não alterou a intenção de trocar de meio de transporte. A cidade inteira descartava-a como consumidora em potencial e, até mesmo, como cidadã. Ela não perdia o sono por isso.

       Ignorou o empurra-empurra entre os vendedores para atendê-la. Ninguém queria perder tempo com uma perdedora que saíra do interior de uma lata de sardinhas. Aproveitou para observar os produtos dispostos a céu aberto, reluzentes em suas latarias perfeitas em rodas de magnésio e corpos arrojados como pênis eretos. Era incrível como quanto mais dinheiro os caras tinham maior eram os veículos, como se de fato representassem o falo de seus proprietários. Ou a capacidade orgástica de suas proprietárias. Ela se voltou para o seu Fusca e riu baixinho. Que estupidez, pensou, balançando a cabeça devagar. Daí, lembrou que era proprietária de um cavalo. Conteve a risada alta.

       Vinte minutos examinando os últimos lançamentos, e ela temia aceitar a originalidade de um Fusca batido. Todos iguais, simétricos e luxuosos. Se fossem humanos, os automóveis daquela revenda, estariam nas passarelas da Europa. Bocejou e espreguiçou-se. E tal gesto a fez conhecer aquele que disputaria o seu amor lado a lado com Prefontaine. Ele se chamava Maverick.

       — Gosta disso?

       Ela se virou ao ouvir a voz tabagista perto do seu pescoço. O cheiro do suor e do pedantismo enojava-a. Meneou discretamente a cabeça.

       Vieira olhou-a de cima a baixo e pensou em objetos de prazer. Depois endereçou a atenção ao veículo que trouxera a morena cheia de curvas. Trabalhando com automóveis, ele aprendera a reconhecer as pessoas. Uma lata-velha refletia também o baixo valor da boazuda que paquerava ostensivamente o Ford.

       — Estamos diante de um sonho, de uma aparição dos anos 70... — ele começou de forma teatral.

       — É um legítimo GT 302 motor V8. — ela completou com um sorrisinho arrogante e, aproximando-se do automóvel, tocou com delicadeza o capô vermelho com duas faixas largas pretas no centro e completou: — É um top de linha, não? Com uma arrancada de zero a cem quilômetros por hora em pouco mais de dez segundos. Não é um simples automóvel, é a lenda das feras sobre rodas. — avançou pelas laterais do Maverick cupê com rodas gaúchas e pneus preparados para riscar o asfalto. As pontas dos dedos deslizando pela pintura e sentindo a maciez da pele de metal. — O Gran Turismo do motor de oito cilindros em V, 195 cavalos e quatro marchas. — ela se abaixou e toldou os olhos a fim de observar, através do vidro fechado, o interior: — Painel original com relógio e câmbio manual. Temos uma preciosidade em Matarana! — exclamou extasiada. Em seguida, voltou-se para o dono da revenda e declarou do jeito de quem sabia das coisas: — Sabe qual era o slogan para a venda do Maverick em 1977? — acrescentou antes de Vieira desfazer-se da ruga de interrogação no meio da testa: — “Para gostar dele, basta chegar perto” — riu-se, levando a mão à porta a fim de abri-la.

       — Vejo que é mais uma fã de carro obsoleto. Comprei essa coisa em Lucas do Rio Verde, o cara estava apertado e achei que fazia um favor pra ele. E fiz, não é mesmo? Chegando aqui não é que choveu gente atrás do Maveco. Faz dois dias que o trouxe e tem uma fila de gente disputando quase a tapas.

       Karen ignorou-o, sentando-se no banco largo e agarrando o volante pequeno com as duas mãos. Via-se na estrada correndo como uma louca, ultrapassando os próprios limites, fugindo dos demônios.

       — Quanto quer?

       — É melhor não perguntar, garota, você não tem bala na agulha. — debochou.

       — Dou quinze mil. — declarou em tom de desafio, concentrada em mexer nos botões do rádio e observando que tudo era original naquela relíquia.

       Ouviu o outro rir alto e bastante. Voltou-se com o cenho franzido:

       — Tenho dinheiro no banco, deixo agora um cheque pra você.

       — Sei, um voador. Além do mais, esse carro já foi comprado pelo Leonardo Marau.

       — Quanto ele pagou?

       — Cinquenta mil. — direto, mantendo os olhos argutos sobre a mulher que deitava a cabeça no encosto do banco. — O carro é dele, minha filha. É melhor aceitar a carroça que te trouxe.

       Quanto ainda tinha no banco?, pensou rapidamente. Pouco mais de vinte mil.

       — Ele já pagou?

       — Não, mas a palavra de um Marau tem o poder de uma maleta cheia de dinheiro.

       Verteu tanto pedantismo da voz do homem que Karen começou a se irritar. Era a velha mania de Matarana, considerar o sobrenome como uma assinatura atestando o valor e o caráter da pessoa.

       — Então o tal Maveco — ironizou antes de completar: — ainda está à venda.

       — Não, querida, não me entendeu. O Leonardo já é dono do carango.

       — Acho que você é quem não entendeu. O que ainda não foi assinado não vale. Tem uma placa de vende-se sobre o capô, eu sou uma consumidora e quero comprar esse produto. Portanto, não pode se negar a vendê-lo. — afirmou convicta, saindo do Maverick e encarando o camarada com altivez.

       Vieira detestava mulher metida à besta.

       — Certo, tudo bem, conheço o código de defesa do consumidor, minha filha — fez troça, erguendo as mãos como que se rendendo aos argumentos dela: — Quer comprar? Ele é todinho seu por... deixa eu ver... — fez pose levando a mão ao queixo como alguém preparado para fuzilar um prisioneiro de guerra: — Ahhh, quinhentos mil... Que tal? Isso é bom pra você? Te coloca no teu lugar certinho? — riu-se e concluiu: — Quinhentos mangos em dinheiro, cédula sobre cédula. Viu, só? Não estou me negando a fazer uma venda.

       — Seu filho da puta! — falou entre os dentes, estreitando os olhos, a vontade de voar a mão na bochecha flácida do texano falsificado.

       — É o seguinte, faltou com o respeito. — começou devagar, o dedo em riste, o desdém no canto da boca: — Cai fora daqui ou mando o meu pessoal te escorraçar a pontapés. Não sei de onde veio ou com que tipo de gente lida. Talvez seja uma dessas emancipadas ou só um sapatão no cio, a questão é que essa revenda não trabalha com gente do seu nível.

       Dizendo isso, o homem encerrou a negociação. Fez um sinal com dois dedos chamando seus cães armados. A segurança típica que se encontrava nas fazendas da região. Mudavam os corpos, mas não o estilo. Jeans, chapéu, armas e cara de mau.

       — Certo, entendi, compadre. — debochou, assentindo devagar com a cabeça e emendando com escárnio: — Quando faltam argumentos e caráter apela-se para as armas.

       Deu-lhe as costas e passou pelos seguranças encarando-os sem deixar de remexer os quadris. Era uma forma de chamá-los para briga. Venham, seus porcos, vamos movimentar as coisas, dizia o seu olhar que, ora ia para as pistolas à cintura, ora para os olhos dos rapazes que trabalhavam como policiais particulares.

       Percebeu que daria conta de dois. Apanharia, com certeza. Porém, os camaradas não eram tão fortes, era mais uma questão de pose. Qual o homem que não vira machão escondido atrás de uma pistola?, ela até sorriu, mesmo odiando deixar para trás o Ford fabricado para ser seu e de mais ninguém, como um amante. Ou bem mais que isso.

       Parou e testou a marcação da cena. Os caras permaneceram de olho nela. Avançou dois passos em direção a eles. Na cabeça toda a estratégia. Chute entre as pernas do mais baixo. Antes da recuperação das bolinhas, um gancho de direita no seu companheiro. Tudo esquematizado. Menos avistar a aproximação de mais três seguranças. Atiçados pela curiosidade, apontaram à entrada da revenda, longe do ar-condicionado e do mármore, torrando debaixo do sol, preparados para obedecer ao apito do adestrador. Mas não foi preciso. Karen tinha plena consciência de sua limitação física. Recuperava-se de uma briga feia, ainda sentia o corpo dolorido, uma pálpebra arroxeada e um corte na boca. Tinha de se poupar para a próxima corrida. Ergueu o queixo e entrou no Fusquinha.

       Girou a chave na ignição e torceu intimamente para o motor pegar de primeira. Ainda não se acostumara a ser expulsa dos lugares nem ser maltratada. Uma vez por mês algo desse tipo ocorria. Para suportar esse tratamento só mesmo uma autoestima de extraterrestre, de uma espécie infinitamente superior à raça humana — pensou Karen, ouvindo o ronco da batedeira soar alto e estridente .

       Deu ré e desceu a ladeira, alcançando a estrada vicinal e pondo-se a caminho de casa. A chuva da tarde ameaçava despencar a qualquer momento, tornando o céu carrancudo e cinzento. Pisou no acelerador e a lataria chacoalhou. Respirou fundo procurando se controlar. A viagem mental dentro do Maverick, voando sobre a BR-163, funcionara como um sonhado prêmio da loteria. Planos expressos, arquitetados em questão de minutos, revirando sentimentos adormecidos e desacreditados. Não era apenas um automóvel. Ela não era materialista. O que estava em jogo ainda era a sua liberdade. Aceitar o Volks era aceitar uma situação estabelecida, uma situação ruim. Aceitar o que a incomodava era o mesmo que aceitar uma condição de vida sedimentada que padecia ao relento na indigesta zona de conforto. Um casamento fracassado, um emprego medíocre, uma amizade falsa, uma fobia de qualquer espécie. Aceitação nem sempre era algo bom. Ter um Fusca desejando um Maverick, para Karen, resumia toda a questão.

       Quando a velocidade começou a reduzir por conta própria até o motor sucumbir, a motorista já sabia que a hora do óbito deveria ser registrada. Apenas apertou os lábios contendo um palavrão com poucas vogais. Deitou a cabeça contra o volante.  A vida era uma bosta seca debaixo do sol a pino.

       Maldito Volkswagen! Vingava-se de ter levado uma surra, deixando-a diante da Arco Verde.

 

       Nova sorriu ao ver Rodrigo Malverde erguendo-se da cadeira, circundando a própria mesa e indo abraçá-la.

       — Está muito ocupado para receber a visita de uma grávida literalmente enjoada?

       Ele se afastou ainda sorrindo.

       — Tenho todo o tempo do mundo para a minha parceira de dança. — fitou-a com atenção, percebendo a expressão de quem “comeu e não gostou” — Quer um antiácido? O que não falta na gaveta de um delegado de polícia é remédio para o estômago. — disse de um jeito espirituoso.

       — Aceito, sim, Rodrigo. Quando não é azia, é enjoo.

       — Sente-se aqui. — puxou a cadeira em frente à sua mesa.

       Ao abrir o frigobar e retirar a garrafa de água mineral gelada, voltou-se e deu uma boa olhada na futura mulher de Franco. Sim, ela estava feliz. Despejou o antiácido na água e entregou-lhe o copo.

       — Como vocês estão se virando?

       — Bem, o Gringo paga direitinho. Claro que não muito, nada perto do que eu ganhava no Jornal. Mas ainda temos o salário do Franco também, dá para ir levando — afirmou para, em seguida, emborcar o remédio em uma golada só.

       Rodrigo sentou à beira da escrivaninha e comentou pensativo:

       — Essa vida de segurança de fazendeiro é perigosa, você sabe, não? Deveria encorajá-lo a terminar os estudos e procurar um emprego normal. — afirmou com seriedade.

       Nova entregou-lhe o copo e respondeu meneando a cabeça em negativo, a fim de enfatizar o que dizia:

       — Não posso me meter na vida dele. Quando o conheci já era um pistoleiro. É o que o Franco gosta de fazer e é o que faz melhor. De minha parte, procuro empurrar alguns livros ou incentivá-lo a usar garfo em vez de colher — riu-se divertida e completou com espirituosidade: — Outro dia forcei que usasse xampu no lugar do sabão de coco. Tudo para o Franco é uma questão de macheza.

       Os dois riram. Quem conhecia esse lado do diabo loiro?, Rodrigo ponderou, esfregando o cavanhaque preguiçosamente.

       —Você sabe lidar com ele, Nova. Isso é muito bom. — considerou o delegado.

       — Não está acontecendo o mesmo entre você e a Karen?

       — É, por aí. Não sou tão flexível como você, vejo as coisas erradas e tento consertá-las. O problema é que acabo estragando ainda mais.

       — Temos de amá-los como eles são. Meu Deus, você conhece a Karen há mais de dez anos, nada no comportamento dela deveria surpreendê-lo. O fato de formarem agora um casal deve ser apenas ajustado. Sabe muito bem que ela nunca foi feliz com homem algum. Nem com o Dolejal.

       — Sim, é verdade. — admitiu com um leve sorriso e, depois, provocou-a: — O relacionamento mais sensato seria entre nós dois. Somos pacatos e românticos.

       — E sonhadores. — ela interrompeu-o num tom de brincadeira. — Não sou doida, delegado, naquela noite lá no salão country, quando me convidou para passar a noite com você, já estava apaixonado pela Karen. — constatou com um sorriso travesso.

       Ele fez uma careta engraçada.

       — Eu não devia ter falado aquilo, foi de mau gosto e quero que me perdoe.

       — Deixa de ser bobo! Fez muito bem para o meu ego. — ela bateu no joelho dele amistosamente: — Olha só, Don Juan com distintivo, preciso de umas informações.

       — Sabia que sua visita tinha segundas intenções.

       — Claro, o antiácido e as informações.

       — Certo, Nova Monteiro. Manda ver, o que quer saber?

       Ela podia recuar.

       — O que aconteceu ao hospício de Matarana?

       O delegado estreitou os olhos, sondando o propósito da pergunta. Era difícil extrair algo dele sem uma boa explicação.

       — Por que quer saber sobre isso?

       — Por que os policiais respondem uma pergunta com outra?

       — Força da profissão. — brincou.

       — Matarana teve o seu sanatório? — insistiu.

       Ele ergueu-se e tornou a se sentar detrás da mesa. Uma ruga sulcava a sua testa. O cérebro processava informação antiga.

       — Bem, quando cheguei à cidade o único hospital psiquiátrico da região havia sido desativado. Não me interessei a respeito. Acho que os poucos doentes mentais foram encaminhados para hospitais públicos tradicionais, como os de Matarana e Santa Fé.

       — Então, existiu um hospício aqui?

       Franco não mentira — ela pensou quase sorrindo.

       — Sim, claro. Onde há humanos, há manicômios. — filosofou ironicamente. — Mas por que quer saber?

       — Pesquisa. Pretendo escrever sobre a história da cidade, a verdadeira. — mentiu.

       — Mas já não a escreveu?

       — Refere-se à de Thales Dolejal? A Canaã erguida a partir de lonas e liderada pelo velho Onório, o suicida?

       — É, essa mesma. — respondeu com um sorrisinho.

       — Eu precisava de dinheiro, não sou hipócrita. O Dolejal pagou bem e teve o livro que queria.

       — E seja o que Deus quiser. — brincou o policial.

       — E o que o diabo desejar. — completou de forma ambígua a futura mulher do diabo.

         

       — Algum problema, dona Karen?

       Ela saiu do carro e encostou-se contra a porta fechada. Antes de endereçar sua atenção a Bronson, fitou o céu que escurecia anunciando o fim do mundo. Voltou-se para o segurança constatando que estava sozinho na cabine da camionete vinda do interior da fazenda. Acendeu um cigarro devagar para ganhar tempo e dominar a sensação de fúria incipiente. Estar diante da Arco Verde era quase como estar diante de Thales. A atmosfera, naquela parte de Matarana, tinha o cheiro dele, impregnada de seu domínio.

       — O motor foi para o espaço. — respondeu ao pistoleiro, apagando o fogo da ponta do fósforo com um sopro rápido.

       — Veio falar com o patrão? — perguntou desconfiado.

       Da última vez, ela chegara armada e bêbada. Eles não sabiam que doía muito e tinha de extravasar para não perder a lucidez. Tencionava feri-lo para ver se habitava sangue humano naquele corpo. O fazendeiro encontrava-se fora do seu reino e deixara de viver a maior emoção de sua vida, uma mulher como Karen nocauteada pela rejeição. Por isso enquanto via Bronson descer da picape e se aproximar com cautela, procurou demonstrar um pouco de sanidade.

       — Na verdade, estava indo para casa. Vim da revenda do Vieira, parece que ele não me quer como cliente. — deu de ombros e continuou tentado impor um tom natural à queixa: — Fui trocar essa lata velha por uma peça rara, mas não tenho pedigree.

       Bronson assentiu e fez um sinal para o automóvel.

       — Posso dar uma olhadinha?

       — Claro, é só puxar, quebrei tudo aí na frente e não tranca mais. — disse, meio sem graça. Olhou ao redor e arriscou: — O seu patrão não está, né?

       Com a cabeça enfiada entre o capô aberto e o motor do Fusca, o segurança respondeu sem interesse.

       — Não. — depois, sentenciou: — É, infelizmente, o motor bateu. Mas tem jeito, dona Karen.

       — Está vendo essas marcas aí? Foi o jeito que tentei dar. Não quero mais esse treco, Bronson. Agora só tenho de pensar em um jeito de voltar para casa.

       — Levo a senhora. — afirmou, solícito.

       Ela sorriu de leve e provocou:

       — Acho que o patrão irá chicoteá-lo caso faça isso.

       Ele devolveu o sorriso que mal entortou um canto da boca.

       — Não, dona Karen, é minha obrigação cuidar do pessoal do meu patrão.

       A mulher segurou uma frase cheia de ácido para jogar na cara do homem que ela jamais soubera o nome de batismo mas que era chamado de Bronson. O ronco suave de um veículo foi percebido a apenas poucos metros de si. 

       A Silverado deslizou pela estrada de chão batido com sutileza, a terra grudou nos pneus e bateu debaixo do assoalho. O motorista observava a obstrução à entrada de sua propriedade, os maxilares retesados diante da figura que se desencostava do próprio automóvel, jogava o cigarro no chão e esmagava-o com a sola da bota de vaqueira. Evidenciava com o gesto a intenção de fazer o mesmo com ele. Thales percebeu então que não era à toa que mais uma tempestade se formava.

       Karen preparou o corpo para o confronto. A polícia não a impediria de fazer o que deveria já havia muito ter sido feito. Os justos seriam recompensados, pensava ela, ao ver o fazendeiro descer da picape sendo ladeado por uma mulher. Aturdida por tal aparição, desconcentrou-se do antigo amante e analisou a vestimenta da morena alta e encorpada. Jeans, chapéu e uma Glock enterrada no cós frontal da calça. O cabelo longo e despojado, o rosto limpo de maquiagem e um par de seios que desafiavam a manutenção dos botões naquela camisa xadrez.

       — Vamos entrar, Karen. — Thales disse sem rodeios, os olhos estreitando-se quase imperceptivelmente ao ver os hematomas no rosto dela. Ele não comentou a respeito.  Sabia que aquela mulher jamais se rebaixaria ao papel de uma donzela em apuros. E isso o atraía demais.

       Ela pôs as mãos nos quadris e cumprimentou a segurança.

       — E, aí, comadre? Está disposta a levar chumbo por causa de homem? É burra ou bebeu xixi de camelo?

       A morena avançou um passo e parou, a cara amarrada. O patrão fez um sinal, contendo-a e confidenciou baixinho:

       — Essa é a pessoa que tem acesso irrestrito a mim e à fazenda, além do Franco. — virou-se para Karen e informou com naturalidade: — Ando revendo alguns conceitos e acredito que as mulheres têm um senso de proteção mais apurado. Espero que não se importe. — acrescentou irônico.

       Karen tentou sorrir. Não obteve sucesso.

       — Então, agora, andará pela cidade com uma pistoleira?

       Thales sorriu levemente. A pistoleira em questão manteve-se impassível. Bronson já lhe fizera decorar a cartilha de Dolejal.

       — Vamos entrar, Karen. — insistiu, voltando para a camionete.

       A intenção era que ela seguisse com ele na picape até o casarão.

       — Não vim falar com você. O motor fundiu no pior lugar possível, não tive culpa. Sou comprometida, entendeu?

       — Isso não a impede de almoçar comigo.

       — Estou de dieta.

       — Não seja teimosa. — falou com rispidez: — Precisamos conversar. Não foi o que o delegado sugeriu? Eis uma boa oportunidade. — voltando-se para a segurança, ordenou: — Virgínia, volte com o Bronson. Tenho certeza de que desta vez a senhorita Lisboa não atentará contra minha vida. — virando-se para ela acrescentou com um leve sorriso: — Ou estou errado?

       Virgínia olhou bem nos olhos de Karen. Um duelo de mulheres duronas. Reconhecia que durante anos Thales procurara outra fortaleza feita de estrogênio. Era atraído por mulheres intimidadoras. Não por elas o intimidarem. Isso não, ele não. Mas porque todo o Dolejal nutria dentro de si um bicho louco obcecado por desafios.

       — Fique onde está, sister. Ligarei pro meu namorado quase marido, e ele virá me buscar. — enfatizou, mantendo os olhos na segurança e a visão periférica captando movimentos ao redor.

       Bronson fez um sinal com a cabeça e Virgínia seguiu-o. Ao passo que Thales postou-se diante do volante e fez o motor funcionar. Deslizou o veículo até parar paralelo a Karen.

       — Eu a levo para casa ou para qualquer outro lugar aonde queira ir.

       — Já disse que não preciso de você.

       — Deixa de ser idiota, Karen. — o tom calmo e comedido que tanto a enervava.

       — Cuida da tua vida! — gritou.

       Thales apertou os lábios, irritado, e acelerou até adentrar os domínios da Arco Verde.  No alpendre, Bronson interpelou-o:

       — Olha, patrão, o motor está acabado, aquele carro não sai de lá nem com banda de música.

       — Ela veio me procurar?

       Bronson negou com a cabeça.

       — Desta vez foi azar mesmo.

       — Bom, então, o que posso fazer? Que ligue para o 190 e peça ajuda. — afirmou com desdém.

       Subiu a escadaria que levava aos aposentos do segundo andar. A consciência de que Karen Lisboa estava por perto e que não o procurara, incomodava-o de maneira irracional. Uma separação recente, e ela já vivia com outro homem. Vadia desgraçada!, murmurou, fitando no espelho do banheiro um par de olhos azuis brilhantes, as órbitas avermelhadas, a veia grossa pulsando no meio da testa. Torcia para que um raio a pulverizasse da face da Terra. Mas era capaz do raio, ao atingi-la, partir-se ao meio.

       Depois do banho, vestiu uma camiseta de algodão sem estampas, jeans e tênis. Ficaria em casa o resto do dia. Pelo menos até Karen ser levada pelo caubói da lei. Vê-la havia acabado com seu apetite e sua concentração no trabalho.  Tinha de gerenciar a transferência dos índios à beira da estrada federal para o lote de terras comprado do coronel Rodrigues. Mero prazer, o de provocar o outro latifundiário, promovendo a construção de casas para os índios despejados de suas terras, na divisa entre a Arco Verde e a fazenda de Rodrigues. Tencionava mostrar ao outro o seu lugar, ali, naquele pedaço de mundo que era Matarana.

       Deitou na cama, um braço dobrado sobre a testa, os olhos postos no teto. “Meu marido”, ela dissera com orgulho de si mesma, como se tivesse encontrado uma mina de ouro. Cretina!

       Uma batida na porta e uma voz:

       — Patrão, o senhor precisa ver isso.

       Desceu com Bronson até a sala onde dois seguranças monitoravam as diversas câmeras espalhadas por ângulos estratégicos da fazenda. Em um dos monitores, o enquadramento exato que compreendia o Fusca e a sua proprietária. Furiosamente, a mulher espancava até a morte aquele que a impedia de exercer o seu direito de ir e vir.

       Bronson balançava a cabeça lentamente. Inacreditável! Olhou para os outros dois camaradas que se mantiveram em silêncio, sabendo antecipadamente que comentar sobre a ex-amante do patrão era carregar explosivos na ponta de uma colher. Ao voltar-se para Thales, a fim de cogitar sua intervenção — afinal, ela parecia descontrolada — deteve-se ao perceber o sofrimento daquele olhar fixo na imagem. Ele nunca o vira transtornado ao ponto de desfigurar o rosto. A impressão era a de que ele se agarrava ao orgulho ferido para não desabar.

       — Por que não vai buscar ela, patrão?

       Somente Bronson podia se atrever a incitar qualquer comportamento a Dolejal. Os dois seguranças, sentados atrás da mesa de controle, arriscaram se entreolharem discretamente.

       Thales respirou fundo, descruzou os braços e disse numa voz quase inaudível:

       — É só ela pedir que eu a busco.

       A última tacada acertou o vidro frontal e um dos estilhaços grudou no seu braço. Karen gemeu e puxou de dentro da pele a minúscula lâmina. O sangue subiu à superfície e depois escorreu devagar. Cansada de lutar, preferiu a rendição. Telefonou para Valéria.

       — Meu carro quebrou, vem me pegar.

       Val riu com vontade.

       — Tudo bem, aceito suas desculpas. Só que o meu carro está com a vó. O que aconteceu com aquele seu Fusquinha novo em folha?

       — Foi pro brejo.

       — Ué, liga pro Rodrigo. — sugeriu num tom debochado.

       Foi o que ela fez. Mordeu o lábio inferior, incerta se deveria envolvê-lo em seus problemas. Clamava por liberdade; porém, encrencada chamava-o. Não parecia certo. Livrou-se do dilema de consciência ao notar que o celular do delegado estava fora de área.

       A chuva despencou torrencialmente. Ela soltou um belo palavrão e tentou refugiar-se no interior do automóvel. A porta não abriu. Depois dos inúmeros golpes com o taco de beisebol, a porta simplesmente emperrou. Coube a Karen baixar a cabeça e aceitar a água do céu.

         

       As crianças de Bety pareciam cachorrinhos felizes debaixo da chuva. Saltavam sobre as poças d’água e batiam os braços imitando passarinhos. Felizes, saudáveis e nutridas. Nova reparou que tal fato refletia a saúde mental da mãe. E também o seu amor. Instintivamente, acariciou o próprio ventre ainda magro. Apesar da beleza da cena, ela observava também para além dos anõezinhos loiros, os fundos da imobiliária de Teobaldo Vilela. A porta de acesso ao local do crime, fechada. Voltou-se para a vizinha do falecido e, tocando discretamente em seu antebraço, convidou-a a sentar-se à mesa da cozinha.

       — Espere um minutinho, dona Nova, vou chamar a menina que cuida dos piás pra ficar tomando conta do mercado. Se bobear, até os vizinhos passam a mão nas minhas latas de leite condensado. — afirmou agitada, endereçando um rápido olhar para a garrafa térmica sobre a mesa e voltando-se, em seguida, para a convidada antes de atravessar o corredor entre a casa e o mercadinho: — Se sirva de café que já volto.

       Ela retornou mais calma, um cigarro queimando no canto da boca e o sorriso satisfeito por ver a jornalista bebendo o seu café em um copo de vidro.

       — Dona Nova, andei pensando se não deveria falar com o delegado, sabe? Depois que a senhora saiu aquele dia daqui, conversei com meu marido, e a gente acha que não é certo encobrir o assassinato de um velho tão legal que não fazia mal pra ninguém. Poxa!, um senhor da terceira idade que trabalhava duro pra se sustentar. A senhora sabe muito bem como esse governo trata os idosos, né? Aí, vem um fazendeiro cheio da nota e dá um tiro na cara dele! Caramba! O que o velho fez pra ele? Será que devia dinheiro? Ou será que sabia de algum podre dele, hein? Qual é o seu palpite, dona Nova? — perguntou com evidente interesse pela resposta.

       Nova baixou os olhos e manteve-os na bebida preta e quente dentro do copo. Agora Bety queria acusar Thales Dolejal. Encarou-a com um sorriso tranquilo:

       — Por que não me disse antes que foi interna de um sanatório?

       Bety enrubesceu.

       — Faz muito tempo...

       — Está sob medicação?

       — Não preciso mais, desde que...

       — Casou?

       — Não, não, dona Nova, simplesmente, não preciso. — afirmou, envergonhada.

       — Deu alta a si mesma?

       — É, por aí. Depois que tive as crianças fiquei boa. É que eu só era distante, e os médicos acharam que era esquizofrenia. — falou sem jeito, ajeitando uma mecha do cabelo quase branco detrás da orelha.

       — Saiba que o seu testemunho não tem validade, já que passou um tempo vestindo uma camisa de força. — declarou sem poupá-la e acrescentou com firmeza: — Não pode acusar uma pessoa se não tem certeza sobre o que viu.  A situação é complicada, Bety. Com medicação ou não, o seu relato perde assim a credibilidade.

       Bety arregalou os olhos.

       — Mas eu vi! Sei quem eu vi!

       — Acalme-se. — instigou-a. — Sei quem você viu, só não estou certa de que seja a mesma pessoa que matou o Teobaldo. Veja bem, querida, existe uma grande probabilidade de sua memória tê-la enganado, como enganaria qualquer um.

       — É mesmo? — perguntou curiosa, os antebraços fincados na mesa; depois, balançou a cabeça e assegurou: — Comigo não, nunca aconteceu isso. Nunca fui enganada pela minha cabeça. Quer dizer, fui um pouquinho enganada. Mas sei que vi o senhor Dolejal, posso dizer até a cor da camisa que vestia, era uma azul...

       — À noite? — interrompeu-a. — O assassinato do Teobaldo ocorreu à noite, e você conseguiu ver a cor da roupa dele? — sondou-a desconfiada.

       — Quê? Sim, sim, o cara que entrou e matou o Teobaldo. O velho deixava a lâmpada dos fundos acesa a noite inteira. Devia pagar uma conta de luz quilométrica...

       — Bety, concentre-se! — chamou-a num tom ligeiramente severo. — Precisamos voltar ao dia do crime e refazer os seus passos e o que você de fato viu, entendeu? Caso pretenda acusar o homem mais poderoso da região precisará de provas.

       — Como voltaremos ao passado? Já aconteceu, o velho já morreu... Desculpe, a senhora está me deixando confusa. — choramingou numa voz fininha.

       Ela precisava de remédios. Ela, Nova, para continuar a conversação com a moça do mercadinho à beira da estrada e provável acusadora de seu futuro sogro. Respirou fundo e tornou a articular o raciocínio. Teria de descer alguns níveis a fim de ser compreendida. Espichou o braço por cima da mesa e pegou a mão da mulher.

       — Eu é que peço desculpas, querida, não devia ser tão dura. Tenho medo que se machuque ou que aconteça algo aos seus bebês. Por isso temos de ser precisas quanto ao que você viu. Entendeu, Bety?

       — Sou a favor da justiça, jamais acusaria um inocente. Vi o senhor Dolejal entrando pela porta dos fundos, sorrateiramente, usava chapéu e uma camisa azul do tipo que o pessoal que trabalha em escritório usa, estava pra dentro da calça até. Eu vi Thales Dolejal entrar pelos fundos da imobiliária poucos minutos antes do Teobaldo ser assassinato. É isso que direi ao delegado. — assegurou com a coragem revigorada.

       — Sabia que boa parte de nossas recordações são falsas? — deu um tempo para a outra digerir a questão e engatou a segunda marcha: — O cérebro se lembra de fragmentos da realidade e reconstrói a memória para poder se lembrar de tudo e, assim, compreender o fato. Mas, veja bem, Bety, como pode acreditar no que supostamente viu à noite? Como pode confiar em si mesma, vivendo estressada com as crianças, com a falta de clientes no mercadinho, com a solidão de ter um marido ausente e tentando se livrar do álcool? E assim, sem mais nem menos, vê alguém entrar na imobiliária, sabe lá em que noite, e acaba acreditando que testemunhou um assassinato. Na verdade, você não testemunhou crime algum, não viu o corretor ser morto e tampouco ouviu o estampido de um tiro. É normal que as mulheres se lembrem de detalhes como vestuário, isso não é prova alguma de que fosse o Dolejal a usar tal peça de roupa. Entenda que o nosso cérebro é tão poderoso quanto traidor e distorce o que acreditamos que seja verdadeiro. É provável que você tenha visto o Dolejal em uma outra noite e, por ter ficado impressionada com o meu artigo, uniu o homem, colonizador de Matarana, com a imagem do verdadeiro matador de Vilela. Foi o que aconteceu, o seu cérebro lhe plantou uma memória falsa. — encerrou com convicção.

       A outra roia as unhas, pensativa. Na rua, a chuva desabava em fios grossos e barulhentos contra os vidros e as telhas da casa.

       Nova estava exausta e a sua paciência por um fio.

       — Será que fui enganada pela minha cabeça? — balbuciou: — Não pode ser. Bem, não conheço tão bem assim o senhor Dolejal. Nunca vi ele de perto, sabe? Dizem que é bem bonito, né? Pois é... O que o delegado vai dizer quando eu contar que vi o colonizador de Matarana na imobiliária do Teobaldo? Será que ele vai dizer que me confundi também?

       Estreitando os olhos diante da declaração num tom entre nervoso e qualquer outra percepção malévola, Nova pressentiu que falava com uma loba em pele de cordeiro.

       — Pensa em extorquir dinheiro do Dolejal? — foi direto ao ponto.

       Bety sorriu e havia no sorriso um ar de superioridade:

       — Não, penso em pedir para que a senhora peça para ele.

       Então o tempo inteiro era isso, concluiu a mulher de Franco.

       — Quem pensou isso por você? — avaliou-a, desconfiada.

       Era possível que o marido alcoólatra e fracassado tivesse posto pensamentos perigosos na cabeça porosa e dependente de psicotrópicos da esposa.

       — A gente vê tanta coisa errada. — começou com o olhar distante, captando no horizonte chuvoso o sentido da vida sem sentido: — Outro dia meu marido disse que tinha vindo a Matarana para encher os bolsos, e não o fígado. Ele tem sonhos, e eu tenho filhos.  Às vezes acho que a única justiça é tomar de quem tem demais da conta. — ela riu um riso áspero e rápido e concluiu: — Talvez a falta do lítio tenha me tornado uma pessoa melhor.

       — Mas antes não queria se meter com os figurões nem expor seus filhos, não entendo...

       — Não farei nada disso. Repito, a senhora pedirá o dinheiro ao seu sogro...

       Era possível que o sangue de Nova borbulhasse nas veias. Raiva, muita raiva.

       — Nesse caso, é melhor procurar o delegado e pedir proteção. — falou baixo num tom incisivo.

       — Vou contar tudo o que sei, e é capaz do diabo loiro levar a dele também! — afirmou, estranhamente corajosa.

       — Que ingenuidade! Está se metendo com os Dolejal? Tem ideia de que acaba de ameaçar a minha família? — perguntou, sem tentar controlar a exasperação crescente que cambiava para a ironia e o desdém. Se não fossem as crianças...

       — Uma família de assassinos. Não foi o que a senhora escreveu?

       Se não fossem as crianças, entregava Bety ao Dolejal pai e o seu marido ganancioso ao Dolejal filho.

       Levantou-se da cadeira e circundou a mesa. Parou perto da mulher ainda sentada, perplexa, imóvel. Não se abaixou. Não, ela logo se tornaria uma Dolejal. Ela não se curvaria.  Ergueu o nariz e afirmou com a fleuma de uma nobre:

       — Cretina gananciosa.

       — O que está falando?

       — O que entendeu.

       Nova decidiu que defenderia sua família de todos.

         

       Karen caminhava com a cabeça baixa e os braços abraçavam o próprio corpo. Apesar da temperatura amena, a água que despencava do céu era fria e os pingos grossos machucavam. Evitava olhar para cima e, tal gesto, parecia uma metáfora de sua própria existência, uma metáfora de mau gosto. Estava sempre fitando as próprias botas cuidando para não tropeçar ou tentando acertar o lugar certo onde pisar.

       Soltou o elástico do cabelo e a cascata de fios pretos caiu-lhe sobre os ombros, encharcada. Arriscou erguer a cabeça e olhar ao redor. O prado verdejante absorvia água com desespero. Irrompia da terra a campina vivificada, enquanto as árvores balançavam à força do vento como dançarinas entorpecidas pelo ópio. E ópio para a natureza eram a sua própria força e essência.

       A estação das chuvas transformava a terra de ninguém em um lugar radiante e poderoso. Karen parou e contemplou a impetuosidade que habitava dentro de si, mas, tornada tempestade, pairava diante de seus olhos. Ah, então era isso... — ela pensou, ao descobrir-se integrante daquela energia absurdamente natural. E reconhecendo sua consistência mais íntima, dois caminhos a escolher. Podia aceitar-se e se jogar debaixo da boca de um furacão. Lançar-se à tempestade de si mesma e viver o inferno e o paraíso de ser quem era para todo o sempre. Ou optar pela estrada reta e plana, adaptando-se a uma existência saudável e pacífica. Vestindo roupas leves e escondendo a armadura de aço debaixo da cama. Saber sobre sua própria natureza dava-lhe o poder de trilhar o caminho que fosse. Porque qualquer um deles receberia a força de seus pés e a decisão de sua vontade.

       Tudo parecia perfeito mesmo frio e molhado. Mas havia ele, sempre ele, e o seu poder e tudo de bom e ruim que vinha junto. Karen nem precisou voltar-se para perceber que era seguida. Poderia enfrentá-lo de igual para igual. Virou-se para encarar o seu destino, aquele que a forjara para sobreviver à dureza de amar do jeito que ela aprendera a amar. Levou a mão ao cós do jeans à procura da arma. Um bom momento para feri-lo, para testar a sua humanidade, um robô de carne e músculos parado poucos metros à frente da picape. Ele estava lá. Irrompera também da terra, da sua terra, para aprisioná-la? Karen não sabia a resposta. Diante de Thales, o tempo escurecia, o sangue queimava debaixo da pele e ardia, doíam feridas antigas e a angústia e o fracasso assolavam-na com seus punhos de aço, pondo-a na lona.

       — Temos de conversar. — foi o que ele disse.

       Ordenava, seguro de seus passos sobre o chão batido que se fazia lama. Os olhos demonstravam toda a emoção contida que endureciam os músculos de sua face. As sobrancelhas juntas numa expressão de severidade.

       — Não tente... — balbuciou.

       Ninguém detinha aquele homem. Ele mantinha um sorriso de antecipada vitória enquanto avançava até conseguir admirar-se nos olhos dela, do jeito distorcido que somente ela conseguia vê-lo, uma tarefa bastante fácil. E quanto mais ela esbravejasse e tentasse evitar o inevitável, mais ele estaria disposto a esperá-la voltar.

       — Não me importo com a chuva. — ele assegurou, encarando-a com outras intenções, que foram rapidamente esclarecidas: — Mas podemos voltar para a minha casa ou ir para um hotel.

       Ela sorriu. Ele não gostou. Era o sorriso de quando se punha seis balas no tambor.

       — Acabou, Thales. Ainda não percebeu? — não o permitiu que respondesse e esclareceu em um tom de escárnio: — Encontrei o homem da minha vida. Sou fiel a ele, ao amor que sinto por ele. Não irei para lugar algum com você nunca mais. Teremos de aprender a viver na mesma cidade sem que um incomode o outro.

       Viu-o contrair ligeiramente o canto dos lábios num gesto de desprezo.

       — Imagino que deva estar tornando a vida do delegado um inferno. Por que não escolheu alguém mais maleável para supostamente me substituir? Antes preferia os tipinhos de fácil manipulação. Acho que se cansou, não é? Os desafios existem para polirem o nosso ego. Entendo a sua escolha e sei que esse romancezinho não chegará até a próxima estação. — fez uma pausa, avaliando-lhe a expressão facial e exalou o ar dos pulmões: — Agora quem está entediado sou eu. Se não quer me acompanhar terei de levá-la à força. Tenho mais o que fazer, além de ficar dispensando atenção para uma desocupada.

       — Prefiro ser uma desocupada a uma assassina! — gritou com raiva.

       Thales franziu o cenho tentando entender o rumo da conversa.

       —É melhor calar a boca, Karen. — ameaçou-a, os olhos estreitando-se perigosamente.

       — Não vou entrar na sua camionete. Já tentou me matar uma vez... quem sabe se pessoalmente não consegue. — provocou-o.

       — O que está dizendo?

       Ela pôs as mãos nos quadris e ergueu o nariz.

       — Que foi você quem mandou o Mendes me matar. É isso que estou dizendo.

       Inesperadamente, ele sorriu e era um sorriso amplo, quase juvenil, as covinhas despontando ao redor dos lábios.

       — Meu Deus, Karen!, você é mais burra que a Mary Jessica. Vem, vamos sair dessa chuva. — estendeu mão.

       Olhando para a mão aberta e convidativa, forçou-se a direcionar seus olhos para os dele, divertidos.

       — Vou a pé, não me importo de chegar em casa no Natal. Não quero ser vista com você. Sou uma mulher comprometida; ouviu bem? Teu reinado sobre mim acabou! — ela falava sério, mas, mesmo aos seus ouvidos, soava como uma adolescente birrenta.

       — Certo, faça como quiser. — afirmou, dando de ombros.

       Num átimo, ele se aproximou e dobrou-a ao meio sobre os seus ombros, um braço ao redor de suas pernas, pressionava-as contra si. O movimento foi tão rápido e inesperado que coube a Karen apenas deixar-se ser carregada como um saco de batatas. Era a segunda vez que ele a tratava como uma mercadoria. Tentou soltar-se, empurrando-o com as mãos abertas contra os ombros dele. A reação contrária foi a de apertá-la ainda mais, ao ponto de ter suas coxas imobilizadas.

         — Cretino! Vou registrar queixa, isso é... é alguma coisa no código penal! — esbravejou, sendo atirada para dentro da cabine.

       Foi então que ela percebeu as mudanças no rosto dele. Tão perto. O cabelo curtíssimo, nas têmporas, fios prateados. Ao redor dos olhos azuis, rugas de expressão. Os pontos da barba tingiam-lhe os maxilares de um tom azulado. Era a expressão bela e amargurada da melancolia, se esse sentimento tivesse um rosto.

       — Hoje acertaremos nossas contas, Karen Lisboa. — assegurou, a expressão séria e determinada, mas, sempre, desde sempre, os olhos tristes.

       E era essa tristeza que a fazia calar-se.

       Quando Thales sentou-se diante do volante e não girou a chave na ignição, ela quase implorou:

       — Não podemos ser vistos na cidade.

       Ele assentiu com a cabeça lentamente.

       — Eu sei, — concordou e acrescentou com um leve sorriso: — apesar de todos ainda acreditarem que você está comigo.

       — Nunca estive com você. — afirmou com amargor.

       Arriscou endereçar um olhar direto a ele. Viu-o olhando para frente, o vidro frontal varrido pela chuva, o barulho da água e dos trovões e raios. O semblante cerrado. Ele falou sem se voltar:

       — Sempre soube quem você era e aceitei o seu modo de viver. O que queria de mim? — ele se voltou para ela e perguntou, arqueando uma sobrancelha com ironia: — Que a forçasse usar uma coleira?

       — Não se faça de bonzinho. Foi você quem me trocou por outra, me expulsou da sua vida e mandou me expulsar até da cidade! — tentou controlar-se.

       Ele suspirou pesadamente.

       — Fui fiel durante o tempo em que fiquei com você. Só que cansei de ser corno, Karen. Acho que já disse isso em outra ocasião.

       — E, agora? Está com saudade das guampas? — debochou.

       — Não. — foi tudo o que disse antes de girar a chave na ignição e preparar-se para partir.

       — Espera! — ela pediu.

       Foi atendida.

       — Vou deixá-la no posto de gasolina mais próximo do centro da cidade. Ninguém nos verá, e poderá telefonar para quem quiser que a busque.

       — Não é isso... — balançou a cabeça, procurando manter o tom firme na voz: — Preciso entender para tentar viver em paz com o Rodrigo.

       Ele sorriu com desdém.

       — O que quer saber?

       — O que eu tenho de errado que o fez me deixar? — era a sua voz com as palavras de Sabrina.

       — O que não fará o Rodrigo deixá-la. — ele respondeu prontamente: — É evidente que nenhum homem gosta de dividir o que é seu. Mantenha-se nos trilhos que será feliz para sempre. — acrescentou com ironia.

       — Se você tivesse me amado e me assumido como sua mulher, e não a sua transa semanal, hoje eu não estaria com ele. — começou, sentindo uma lágrima presa na garganta: — Nos primeiros três anos não tive ninguém além de você. Acho que até               que o amei, porque tinha momentos que eu não queria deixá-lo partir, preferia até que... — evitou continuar.

       — Que eu morresse? — completou, alçando a sobrancelha.

       — Para não ser de mais ninguém, talvez. — ela baixou a cabeça e permitiu-se não lutar contra, seguir a maré dos sentimentos: — Tinha outros momentos que sentia uma vontade louca de fugir. Eu dava tanto de mim, e você tão pouco. E, mesmo assim, não o abandonei. Foi você quem me abandonou, me tirou de sua vida, me trocou por outra. Jamais troquei você por homem algum.

       — Então, me diz, Karen, o que é isso que está vivendo com o Rodrigo?

       Ela puxou todo o ar, precisava se controlar, o peito aberto demais.

       — Troquei você, Thales, por mim. O Rodrigo não tem nada a ver com isso.

       — No final das contas, sou eu o vilão? — perguntou com um leve sorriso.

       — Nós dois. — concordou. — Mas não posso viver na mesma cidade que você sem odiá-lo, simplesmente não posso. É doentio, eu sei. Estou agora com um homem que é capaz de morrer por mim. E parece que uma mulher sacana como eu não merece encontrar alguém assim, não é?

       — De que adianta um homem morto? — debochou e emendou encarando-a diretamente: — É preferível um homem que mate por você.

       Era a confissão que ela tanto aguardara nos últimos meses.

       — Matou o Mendes? — indagou, mantendo o ar nos pulmões, expectante.

       — Acha mesmo que alguém machuca a minha mulher e sai impune? — era mais que uma pergunta.

       Ele falou tão baixo e com tamanha certeza sobre o que dizia que, por um ou dois minutos, ela manteve seus olhos nos lábios dele, de onde viera a constatação de que Thales Dolejal era perigoso.

       — Mataria o Rodrigo? — indagou num fiapo de voz.

       — Quer que eu mande matá-lo?

       — Não, por favor.

       Thales sorriu levemente.

       — Não se preocupe, apesar de ser um canalha oportunista, ele continua sob a minha proteção. E se mantenho meus homens vigilantes é por sua causa, não por ele. 

       — Obrigada. — murmurou.

       A risada que ressoou na cabine refrigerada da picape pareceu a Karen um tanto malévola.

       — É tão engraçada a noção de amor que as pessoas têm. — ironizou e acrescentou com velado desprezo: — Acho que já resolvemos nossas pendências. Vou deixá-la onde combinamos. Diferente de como você pensa, Karen, não preciso odiá-la para poder viver em Matarana. É uma pena que seja uma primitiva.

       — É, sou bem primitiva, Thales. — concordou, deitando a cabeça contra o encosto do banco. Sentia-se exausta emocionalmente.

       — O que sobrará de você depois que o delegado domesticá-la? — indagou, em seguida, tocando-lhe o joelho acrescentou num tom ácido: — Depois que o Rodrigo cercá-la de uma interessante ninhada de cauboizinhos? Nada melhor para alguém como ele encher uma mulher como você de crias inúteis.

       Karen observou a mão grande, de unhas curtíssimas, sobre a sua perna. Preferiu esconder-se no silêncio.

         

       Podia sentir os olhares grudados em sua nuca. Desde ao entrar na Vila Zumbi — do outro lado da rodovia 163, ainda nos limites de Matarana, Rodrigo era acompanhado pela obstinação de cortar o mal pela raiz, antecipando-se às dificuldades que surgiriam a partir da aparição da polícia no lugar considerado o refúgio daqueles que não conseguiam se manter na parte da cidade em que os que conseguiam determinavam o progresso.

       Se de um lado de Matarana havia butiques com etiquetas douradas em artigos importados, asfalto nas principais vias, hipermercado e um centro comercial com fôlego para abastecer os mais peculiares fetiches induzidos pelo capitalismo; cruzando a estrada federal, ocorria uma importante metamorfose. O chão era de terra debaixo de fios de luz que constituíam uma legítima teia de aranha eletrificada. O movimento nas ruas — onde trafegavam automóveis dos anos 80, assim como cavalos, carroças e um número interessante de bicicletas — era de um colorido de raças e tipos físicos. Ali estava o país dos brasileiros e a sua ineficiência em respeitar a si mesmo. Não sabendo como igualar a todos, empurrava para um canto os inadequados. Era o que o delegado pensava ao descer da camionete diante da casa de Joaquim, o suposto traficante de óxi que vendera a droga a João Marau. Se o entorpecente tivesse se restringido aos limites da vila, talvez nem mesmo a polícia saberia sobre sua existência. Entretanto, quando alcançava uma família tradicional como a do coronel, o rumo da prosa era outro. Não que Rodrigo fosse um homem contaminado pelo sistema e que se prestasse a defender a elite econômica de Matarana. Ele defendia o que era certo e justo. Vez ou outra esbarrava em um bandido rico; outras, em um bandido pobre. Às vezes até em bandidos fardados ou sentados em cadeiras de espaldar alto, ladeados pelas bandeiras de Matarana, do Mato Grosso e do Brasil.

       Diante da casa de alvenaria pintada de branco e janelas verdes, o quintal florido e molhado pela chuva de até alguns minutos atrás, ele deu uma boa olhada ao seu redor, sustentando os olhares daqueles que passavam devagar e se certificavam de que a sirene da picape não fora acionada e os policiais militares não acompanhavam a visita do delegado.

       Pendurada na janela ao lado da porta que ele batia com os nós dos dedos, a placa de madeira com a inscrição entalhada: “Leio mãos. Consulte a sua sorte. Irmã Iranilda”.

       Foi recebido por uma mulher pequena que aparentava mais idade do que devia ter. O cabelo grisalho puxado para trás em um coque baixo e a face lisa e morena. Ascendência indígena, por certo, analisou o delegado rapidamente. Levou a mão ao bolso a fim de sacar o distintivo. Não foi preciso.

       Ela disse com um leve sorriso:

       — Sei quem é o senhor. Todos nós sabemos.

       Rodrigo retribuiu o sorriso, a consciência de que era vigiado já não mais o intimidava. Nunca o intimidara. Nada o detinha diante de seu dever como defensor da lei. Nem mesmo o semblante gentil da senhora a sua frente.

       — O Joaquim... ? — não era preciso oferecer maiores explicações. Ele era um delegado de polícia.

       — O meu neto está no quarto estudando. Pode entrar, delegado. — cedeu-lhe passagem afastando-se da porta.

       Em respeito à mulher que talvez beirasse os sessenta anos, ele tirou o chapéu e entrou na casa arejada e com móveis simples, porém nada modestos. Averiguou ao redor, daquele jeito que os policiais faziam, olhando de soslaio, apreendendo várias informações e organizando velozmente um quadro mental que incluía os humanos que ali viviam. Eles não eram tão pobres. Do outro lado da  163 até poderiam ser considerados como. Mas, na Vila Zumbi, o status era de classe média. De onde vinha o dinheiro?

       Ele se voltou para a mulher que fechava a porta e se encaminhava em direção a um corredor atravancado de vasos com plantas artificiais.

       — A senhora é a...? — deixou que completasse a informação.

       — Iranilda, doutor Rodrigo. — informou-o sem esperar nada que fosse um leve assentimento por parte da autoridade.

       Ele seguiu-a observando cada objeto, cada quadro na parede, cada fotografia emoldurada que revelava fragmentos de uma existência. Um bebê dando os primeiros passos, um batismo, um dia na praia. Como em qualquer família, imagens congeladas de cenas comuns e cotidianas. Mesmo que fosse na casa de um suspeito de vender óxi.

       Afastou a porta, a velha arrumada no vestido de algodão florido, juvenil para a sua idade, largo demais para sua estrutura física mignon. Pela fresta aberta era possível ver os pôsteres de bandas de rock colados na parede e à frente deles, o neto.

       — Terá de parar de estudar um pouquinho, querido, o delegado se perdeu por essas bandas. — disse num resmungo amargo.

       Rodrigo entendia aquele tom, mas não era obrigado a aceitá-lo. Preferiu ignorar a cidadã e concentrar-se em avaliar o rapaz à sua frente. O jovem ergueu-se da cadeira detrás da escrivaninha e, desconcertado, estendeu a mão:

       — Não leva a mal, a vó não quis ser grossa. — falou, sem jeito, tentando sorrir um sorriso que não vingava nos lábios. — É que a minha mãe fugiu com um policial dois meses depois que eu nasci.

       Por essa o delegado não esperava. Sorriu ligeiramente sem deixar de dar uma varredura com o olhar treinado por sobre os móveis e objetos do quarto. Em cima da escrivaninha pelo menos quatro livros de Biologia, as páginas reviradas. A tabela periódica grudada na parede. Um cartaz feito de papel pardo exibia as principais fórmulas da Física e era ladeado pela estrutura básica da análise sintática da oração: Urge que mantenhamos o silêncio. Era o quarto de um estudante. Ou de alguém que fingia sê-lo. Era possível que tudo ali fosse falso — considerou Rodrigo. O garoto aparentava vinte anos, era alto, magro mas encorpado. O trabalho que fizera nos músculos tinha mais a ver com aparelhos de academia do que com a genética. Boa aparência e olhar tranquilo quase vago. Se fossem os seus primeiros anos na polícia teria deixado de perceber o que ocorria no fundo dos olhos escuros de Joaquim, já vira aquele fenômeno. O rapaz improvisava um personagem.

       Ele indicou uma cadeira para o homem que tornou a pôr na cabeça o seu chapéu.

       — Não, Joaquim, não pretendo bater papo. — começou Rodrigo, mirando o alvo para disparar sem rodeios: — Desde quando traz pasta de coca da Bolívia?

       O rapaz exalou um som esquisito pelas narinas, e era assim que as pessoas faziam ao ouvirem algo absurdo.

       — Delegado, perdão, mas não sei sobre o que o senhor está falando. Como vê, — fez um sinal amplo com a mão, que abarcava praticamente o quarto inteiro, e continuou: — sou apenas um merda tentando ser alguém na vida e poder cair fora desse buraco. Ainda não entendi o seu interesse por mim.

       — É a segunda vez que se desculpa. — constatou Rodrigo, observando um sorriso preguiçoso se armar no rosto do outro — Me parece que você sabe, sim, o que faço por essas bandas, como sua avó diz. E como não tenho todo o tempo do mundo, vou perguntar mais uma vez, e, aí, você decide se quer responder aqui ou na delegacia. Combinado, amigão?

       — Pode perguntar, não tenho nada a esconder. — afirmou, dando de ombros, postando-se de forma displicente meio corpo à beira da escrivaninha enquanto brincava de fazer malabarismos no ar com uma caneta esferográfica. — Sabe, ô delegado, trabalho duro na construção, ponho um tijolo em cima do outro debaixo do sol a pino. Se não fossem as minhas mãos, os ricaços de Matarana ainda estariam vivendo em lonas, porque nenhum deles ergueu nada do chão que não fossem as próprias botas. Eu trabalho para viver, não vendo drogas, não sou bandido. Tudo o que ganho trago para casa ou compro livros. Um dia serei um médico, mas não qualquer médico. Serei um anestesista. E sabe por quê?

       — Sei, para ficar mais perto da morfina. — ironizou Rodrigo. — Olha, moleque, o discurso comunista você guarda para quando encontrar outro colega de profissão lá em Santa Fé, mais especificamente, no presídio. O que sei é que daqui da Zumbi está saindo porcaria e uma porcaria muito nojenta. O melhor a fazer é soltar o verbo, o que deve ser fácil para você, já que está estudando para o vestibular. Tenho certeza de que a velhinha lá na sala põe muita fé no seu futuro. A minha sugestão, então, é que me leve até o seu laboratório.

       Joaquim estreitou os olhos avaliando o que acabava de ouvir. Ainda podia ganhar uns minutos antes da cortina descer. Era o seu momento, driblar o caubói da lei.

       — O pessoal da vila soube da encrenca que o Marauzinho se enfiou. A gente sabia que uma hora ou outra a polícia ia dar as caras por aqui. O senhor até que demorou. Só que não tem o que fazer aqui. O que sei é que ele tem dinheiro o suficiente para comprar a droga direto dos bolivianos. Aliás, tem um sujeito que trabalha pro coronel que traz o que quiser de fora. O Marauzinho jamais precisou atravessar a rodovia atrás de qualquer coisa. Ele tem tudo lá. Na parte clara e arejada, no Texas tupiniquim. É, delegado, é de onde o senhor vem que está todo o mal. Não aqui.

       — Sei... e você é apenas um militante de esquerda. — debochou, já perdendo a paciência: — Então é o seguinte, enfia o nariz naquele canto, afaste as pernas e os braços sem movimentos bruscos. Quero ver se o volume debaixo da sua camiseta é um dos discursos do Hugo Chaves ou uma arma ilegal.

         

       Ele dirigia devagar, uma mão no volante e a outra descansando sobre a própria perna vestida no jeans claro e gasto. Era uma visão diferente aquela — Karen contemplava-o de esguelha, a roupa despojada, a calma à direção e, principalmente, o fato de estar desacompanhado de seus seguranças.

       Thales era um homem marcado. Como Rodrigo e Franco também o eram. Alvos do coronel e de seus aliados. Todavia, os dois últimos andavam armados e eram treinados para a guerra. Franco então era o próprio diabo encarnado. Ao passo que Thales dispensava as armas. A contradição de um homem violento como ele era a de não portar arma; portava, sim, humanos determinados a matar por ele.

       Arriscou endereçar-lhe um olhar disfarçado. Era um rosto másculo e bonito. E quando ele sentia prazer, esse mesmo rosto mudava e traçava rictos que o tornava ainda mais atraente. Ela se lembrava do seu rosto ao fazer amor, tantas vezes e em tantos lugares. No fundo, captava muito bem a intenção da sua displicência ao volante, a velocidade na faixa dos 60 por hora, a simulada intenção de prolongar o encontro. Ao passarem diante da revenda de Vieira, Thales perguntou:

       — O que foi negado a você, Karen?

       Como ela se manteve quieta e procurando fixar o olhar à estrada a sua frente, ele insistiu. Foi obrigada a fitá-lo. Viu a eterna melancolia e viu mais.

       — Por quê? Quer me comprar para depois ter o que cobrar? — indagou com amargor e completou com um sorrisinho cínico: — A mão que dá é a mesma que tira.

       Ele sorriu de leve. Os olhos se mantiveram sérios.

       — Quando cobrei a dívida resgatei também a sua dignidade, mulher. — disse com serenidade.

       Um ponto de vista novo, Karen conjecturou, percebendo que a camionete adentrava os portões da revenda. Os cascalhos bateram contra o assoalho. Era somente o barulho, nada oscilou. Do alto, no interior da cabine de uma Silverado, a rampa de entrada da revenda de automóveis era uma suave inclinação. E, antes mesmo de parar a meio caminho entre o portão principal e o saguão envidraçado, três vendedores atravessavam o pátio a fim de receber o Homem.

       Mas ele estava com preguiça de sair e voltou-se para ela:

       — O que ganho se adivinhar o brinquedo que deseja?

       — O prazer de sabê-lo, seu cara de pau. — respondeu num resmungo.

       Foi a vez de ele sorrir e, como não tinha prática, o sorriso saiu meio torto. Baixou a cabeça, ponderou por poucos segundos e atacou:

       — É seu. O que lhe foi negado será dado por mim. — fitou-a nos olhos.

       — Não seja idiota, você não me conhece.

       — Não, você não, mas conheço os seus desejos e a temperatura deles. — arrastou as palavras e o calor que as cobria.

       — Grande coisa, é só sexo. — debochou, dando de ombros.

       Ele alçou uma sobrancelha numa expressão entre surpreso e divertido.

       — Quis dizer os seus desejos de consumo. — em seguida, o sorriso se abriu revelando um senso de humor jamais visto no fazendeiro: — Mas posso saciar tantos outros que possua e, em relação a isso, Karen, eu a conheço até do avesso. — piscou o olho e saiu.

       Fugia do contra-ataque, ela pensou, com raiva.

       Viu-o ser cercado pelos vendedores e se afastar, o nariz empinado, as costas retas, só faltava o tapete vermelho. Irritava-a a postura de rei, de imortal, de dono da cidade. Suspirou exasperada e voltou a atenção para o celular.  Tentou se comunicar outra vez com Rodrigo. Nada. Diabo de homem difícil de localizar!, murmurou, observando Vieira aproximar-se de Thales com o melhor de seus sorrisos, enquanto o latifundiário varria com o olhar o objeto de desejo daquela que um dia ele tivera e depois mandara embora. A cena era tão patética que lhe ardia o estômago. O dono da revenda limpando o suor da testa com um lenço de pano, os ombros encurvados, o dedinho apontando uma camionete luxuosa e outra, e o cliente ignorando-o, reservando-se o direito de desprezar quem não o interessava. Karen considerou a liberdade que Thales tinha de ser como queria ser. A liberdade oferecida pelo poder. Aproveitou para pular fora da Silverado e se aproximar com um sorriso vitorioso.

       — E, aí? Onde está o objeto de meu desejo, senhor Dolejal? — debochou.

       — Estou estudando o terreno. — respondeu de um jeito tranquilo e voltou à sua pesquisa de campo.

       Até que encontrou o Maverick.

       Ela deu-lhe as costas pisando forte no chão.

       Vieira reconheceu-a, mas não compreendeu a ligação. Ao que o fazendeiro explicou serenamente:

       — Aquela mulher que foi tratada com desrespeito por você é minha.

       — Senhor Dolejal, eu... bem... pensei que fosse boato...estou há pouco tempo na cidade...

       — Ela quer aquela coisa feia e velha ali, não é? — lançou um olhar para o Ford.

       — Sim, mas está reservado para o Leonardo... para o filho do coronel...Entenda a minha situação. — tentou sorrir. Sim, estava metido no óleo fervente, batendo os braços para não se afogar, sendo que a pele se desmanchava e nada podia fazer senão tentar nadar. Vieira estava fodido.

       — É mesmo? — o tom era da mais completa indiferença. — Vamos fazer o seguinte, não quero prejudicá-lo diante do coronel. Sabe que por uma questão de ego, ele e a prefeitinha podem caçar o seu alvará. — abriu a carteira e retirou um cartão pessoal timbrado, entregando-o ao microempresário: — Pegue e guarde com você. Essa é a sua garantia em Matarana. — virou-se para a Silverado e admirou a mulher que acompanhava de longe a conversa: — Ela é linda. E sabe o que posso fazer por ela? — voltando-se para Vieira indagou com arrogância: — O que acha que eu faria por ela?

       O tom era tão satânico que Vieira encolheu os ombros e esboçou um sorriso sem graça.

       — Não sei, senhor.

       — Claro que não sabe. — Thales aproximou-se como se fosse fazer uma confidência junto ao seu ouvido: — Por essa mulher, Vieira, que você negou o prazer de comprar uma porcaria de um carro velho, eu, o dono de sua alma e da alma dos seus filhos, ponho fogo no cerrado. Queimo tudo.  Então, ainda prefere ficar do lado do coronel? — ironizou.

       Vieira olhou para o cartão que o protegia dos Marau.

         

       No sofá velho e revestido pela colcha de chenile, o homem cansado sentou e puxou o filho para um abraço. O garoto aspirou o cheiro do banho recente e era o mesmo cheiro que ele próprio tinha naquela noite. Chovia como no inverno, aquele tipo de chuva que dava trégua após três dias ao menos. Na televisão, um faroeste espaguete enchendo a tela de aridez e dilemas.

       O garoto desviou os olhos de Clint Eastwood e olhou para o seu pai. Ele sorria totalmente envolvido pela história. Era o seu lazer e a sua fuga.

       — Quando crescer serei bombeiro igual ao senhor.  — afirmou com convicção.

       Sem tirar os olhos do filme, o pai retrucou:

       — Não seja bobo, quando crescer será igual a esse gringo aí, Rodrigo. — apontou para quem vingava os fracos e oprimidos.

       Ao seu lado, Joaquim batucava com os dedos sobre a própria coxa. Sem algemas, fora convidado para prestar esclarecimentos na delegacia. Nada muito formal. A placidez dos que não tinham culpa no cartório, vez por outra, cambiava para um olhar intrigado em direção ao motorista. Talvez estranhasse o chapéu gasto, com a aba puxada para frente, ou o jeitão bruto e seco do policial ao falar encarando diretamente os olhos do seu oponente à procura da verdade por detrás da aparência dela. Ou a trilha sonora de Ennio Morricone no CD player incomodava o roqueiro.

       — Então o Vitorino traz tudo da Bolívia. — começou de um jeito displicente, ajeitando o retrovisor e averiguando o movimento na estrada.

       — Não, delegado. — respondeu Joaquim, mantendo a atenção na secundária que os levaria direto à rodovia federal.

       — “Não, delegado?” — Rodrigo zombou, voltando-se para o rapaz com um sorriso irônico: — Certo, você quer valorizar a sua resposta. Entendo, a Adele também faz isso, fala pela metade. Me diz, Joaquim, de onde o Vitorino traz o óxi?

       — Eu não sei. — deu de ombros e fez um beicinho como se a questão não lhe dissesse respeito: — O Marauzinho e eu tínhamos uma banda. Ironicamente a gente se conheceu no salão country — virou-se com o semblante sorridente. — Lembra quando sabotaram a boate dos caipiras? Eu e o Marauzinho cortamos os fios elétricos e deixamos o lugar às escuras.

       — E aí o João Alfredo precisou abastecer o cérebro com ar fresco e o levou com ele até o Vitorino. — o delegado completou a fim de encurtar a história.

       — Mais ou menos. Ele disse que o segurança do avô conhecia uns bolivianos que vendiam drogas, mas só com indicação.

       — Onde eles estão?

       — Não sei. — balançou a cabeça negando e enfatizou num tom grave: — Nunca quis saber. Quem sabe muito também tem muito para revelar, não é mesmo?

       Rodrigo controlou uma resposta grosseira.

       — Não sei quem é você, Joaquim, nem o pessoal que está nos seguindo desde que saímos da Zumbi. — afirmou, endereçando um rápido olhar para o retrovisor e, apertando os lábios, contrariado, completou: — Será que não são os capangas da sua boca de fumo?

       O outro riu um riso seco e nervoso e a sua postura passou rapidamente à condição de súplica:

       — Juro pela minha vó, não tenho nada a ver com óxi. O máximo que fiz foi experimentar uma vez. Mas senti o tampão do meu crânio se descolar e nunca mais. Nem maconha fumo, delegado. Puta merda!, esses caras vão me apagar! Eles estão atrás de mim porque saí da vila com a polícia! — ele se virou para trás, avaliou a situação e se agitou: — Têm uns quatro desgraçados na camionete, e nós somos dois, e não tenho arma e mesmo que eu tivesse, porra!, não sei atirar! — voltou-se para o delegado com olhar esperançoso, a boca tremendo no canto esquerdo: — É claro que o senhor tem um plano!

       Rodrigo relançou um olhar para o retrovisor.

       — O plano é, — apontou para ao assoalho em frente ao banco do passageiro — encolha-se o quanto puder e proteja o tórax. Até da cabeça dá para se tirar um projétil, mas o coração é um besta fraco que não aguenta nem metade de um tiro.

       Joaquim arregalou os olhos.

       — Caralho!, vou morrer! É esse o seu plano? E a cavalaria?

       — A cavalaria deve estar atacando uns muffins. — em seguida, alçou a sobrancelha e enfatizou com serenidade: — Faça o que mandei, Joaquim. — a guinada na direção ajudou-o a empurrar o guri para o chão. No solavanco, ele aproveitou e se atirou com os braços protegendo a cabeça. Era intuitivo, o delegado o compreendia.

       Em vez de pisar no acelerador, fez o contrário e reduziu a velocidade, pisando forte na embreagem. Retesou os maxilares, controlando a picape enquanto ela girava na pista e se esparramava até alcançar o lado oposto da estrada. Assim que parou, o veículo dos perseguidores passou por eles a toda. Fora imprevisível a manobra do policial. Isso não significava que estavam livres. Na verdade, como Rodrigo observou enquanto puxava do cós do jeans a Glock e se ocupava em sair da picape — os rapazes tencionavam resolver o que tinham de resolver ali mesmo, no calor da manhã ao ar livre.

       O primeiro tiro explodiu seco e forte na planície. Rodrigo fez menção de abaixar-se. Mas apenas protegeu o corpo detrás da porta de sua picape. Lançou um rápido olhar para Joaquim, que parecia ter virado uma massa de pastel dobrada ao meio. Baixou a cabeça o suficiente para permitir que somente parte do chapéu entregasse a sua posição. Puxou da bota a outra pistola. Destravou-as e, antes de sair do precário esconderijo, piscou o olho para o guri.

       — Assim que eu começar a atirar, abre a porta e corre feito um doido pelas plantações.

       Joaquim assentiu sem falar palavra.

       A D10 não era nova, o para-choque estava batido e a placa amassada. E quando Rodrigo mandou bala pra cima dela, estourou um dos pneus carecas. Não havia ninguém na estrada além dele, os homens no Chevrolet e o garoto que corria feito um desvairado no meio do mato. Alguns pássaros faziam barulho secando suas asas depois da chuva. O veículo perdeu velocidade e chacoalhou. Parou no meio da pista. Era esse tipo de cena que nos filmes aparecia um corvo sobre uma cerca.

       Ele olhou ao redor, não queria ser surpreendido por mais um grupinho armado. As automáticas apontadas e prontas para o próximo disparo.

       — E aí, seus frouxos, desçam dessa porra!

       Gritou, e ele odiava gritar.

       Avançou devagar, observando que o motor da D10 não fora desligado. Era evidente que preparavam munição para assim que descessem abatê-lo numa saraivada de balas. Não vendo alternativa, o delegado atirou contra a cabine. Era o segundo aviso, o segundo grito.

       — Puta que pariu... — praguejou baixinho, encaminhando-se com cuidado em direção ao veículo. 

       A película escura que revestia o vidro traseiro atrapalhava-lhe a visão. Joaquim havia visto quatro ocupantes, confirmando o que ele próprio percebera desde que os enquadrara nos limites do seu retrovisor. Não eram da Vila Zumbi.

       O terceiro aviso foi desnecessário. Os pneus rodaram no mesmo lugar, revolvendo a terra molhada e disparando cascalhos e pedregulhos para todos os lados.

       O delegado descarregou a munição contra o vidro da cabine. Os tiros assustaram os pássaros que abandonaram os galhos mais baixos das árvores. Correu para tentar alcançar a camionete sem deixar de atirar. Alguns metros e findava a perseguição e o estoque de balas. Abaixou-se, escorando os braços nos próprios joelhos, arfava. O suor escorria-lhe da testa. O chapéu voara pela savana. Ao enterrá-lo novamente na cabeça, a obstinação estampada na cara e a fúria atravessada na garganta. Ele já sabia para aonde ir.

       Cortaria o vento Minuano antes de ele cortá-lo.

 

       Ao terminar de decorar a salada, Nova secou as mãos no pano de prato e foi até a diarista, que esfregava uma bola de jornal amassada no vidro da janela da sala. Uma prática antiga que, segundo os mais velhos, deixavam os vidros brilhando. A mulher voltou-se sorridente ao vê-la se aproximar.

       — Hoje você fica para almoçar. — intimou-a num tom brincalhão. — Daqui a pouco o Franco chega cheio de fome, como ele mesmo diz.

       Maria Helena ainda não tivera oportunidade de cruzar com o rival do doutor Cristiano. Era a segunda vez que limpava a casa da amiga do médico, e o fato de dividir a mesa com o diabo loiro não abria o seu apetite. Rapidamente pensou em uma desculpa para recusar o convite. Ainda não se sentia preparada para enfrentá-lo.

       — Obrigada, dona Nova, mas tenho outra faxina depois e... — deu de ombros, sem jeito: — bem, preciso de um banho para aguentar o resto do dia.

       Nova pôs os braços para trás e balançou suavemente o corpo. Parecia uma garotinha travessa que havia pegado uma mentira no ar.

       — É por causa do Franco?

       — Não, não...

       — Ele é um menino inofensivo, Maria, não se preocupe. — brincou e completou enquanto voltava à cozinha: — A não ser que não encontre a comida pronta.

       Maria juntou o balde do chão, disposta a despejar a água com desinfetante no tanque da lavanderia, trocar de roupa e se mandar. O doutor que investigasse por sua conta a vida afetiva da amiga. O que soubera através de suas comadres eram duas versões sobre a mesma pessoa, uma boa e outra ruim. A boa, no campo da beleza e sedução; a ruim, no comportamento instável e nos atos criminosos pregressos. Como ela não era uma adolescente deslumbrada, não se impressionou com as façanhas amorosas do rapaz.

       Ao ouvir o ronco do motor e as batidas secas dos pneus contra as pedrinhas no caminho que levava até os fundos da casa, viu-se encurralada com o balde na mão.

       Em poucos minutos, ele entraria pelo mesmo lugar que ela tinha de sair para livrar-se dos materiais de limpeza. Ao vê-lo entrar pelos fundos, esgueirou-se atrás da porta que dividia a cozinha da sala. Aproveitou para observá-lo sem que o percebesse. Não imaginou o que veria a seguir, posto que boa parte do que conhecia sobre as pessoas vinha por meio do julgamento de outras. Agora enfim olhava para o demônio de carne e osso com os seus próprios olhos.

       E ele era alto, bem mais alto que dona Nova. E ele era belo, muito mais belo que qualquer homem que Maria tivesse visto na televisão.

       O suco de laranja foi despejado no copo e na toalha. Toda a vez que Nova Monteiro ouvia o motor da picape velha, um tremor percorria-lhe a coluna e a expectativa de vê-lo, vê-lo vindo para ela, era a mesma que ter milhares de fadinhas voando dentro de sua barriga. Era só uma questão de segundos, e adentrava a cozinha o seu caubói. Antes mesmo de deixar o chapéu sobre a mesa, endereçava um sorriso de satisfação ao encontrá-la à sua espera, usando avental, cozinhando alimentos para ele, nutrindo-o de todas as formas. Cinco ou seis passadas largas e um braço puxava-a pela cintura e outro pelos ombros, bocas uniam-se, e Nova ficava na ponta dos pés para senti-lo todo, todo o corpo, cada vez mais perto, cada vez mais um.

       — Estou cheio de fome, dona Nova — disse, com um sorrisinho malicioso.

       — Depois do almoço mato a sua fome, amor, — fazendo um sinal em direção à porta, completou com naturalidade: — temos companhia.

       Era a deixa para Maria apresentar-se e sair detrás da moita. Fingindo ocupada em fechar com força a tampa do desinfetante floral, ela entrou na cozinha e parou ao encontrar os dois ainda abraçados.

       — Como vai, senhor Franco? — indagou a mulher num fiapo de voz. Os olhos azuis tão claros que pareciam olhos de um cego intimidaram-na, mesmo que sorrissem acompanhando o movimento dos lábios.

       — Ajudando a minha princesa? Gosto disso. Conhece a Irene? Ela é a chefona lá na Arco Verde. — disse de forma descontraída.

       — Sim, sim. A Irene tomava passes comigo, e o marido também. — respondeu solícita.

       Franco gargalhou atirando a cabeça para trás.

       — Não sabia que a Irene era passista!

       Maria e Nova se entreolharam. A última resolveu a questão.

       — Está confundindo centro espírita com escola de samba, amor. Que tal um banho antes do almoço para aliviar o cansaço? — sugeriu, pegando-o pela mão e levando-o em direção ao corredor.

       — Eu jurava que a Irene era católica. — ele alçou a sobrancelha, confuso.

       — Católica apostólica mataranense? — brincou ela.

       — Sabe que será severamente punida por estar zoando com a minha cara, né? — falou fingindo seriedade.

       Observando Maria afastar-se com o balde que parecida colado na sua mão, Nova engatou dois dedos no cós do jeans de Franco e falou baixinho:

       — Tem uma banheira com sais esperando por esse corpo gostoso. Vai tirando a roupa que em seguida entro para te dar um banhinho.

       Um segundo depois ele puxou a camiseta pela cabeça e teve de ser contido:

       — Não, Franco! Nossa, que facilidade que tem pra tirar a roupa! Fica pelado no banheiro! Que coisa, quer se exibir pra Maria, é? — perguntou com a cara amarrada.

       — Ué, ela não foi embora?

       — Vai almoçar com a gente.

       —Ah, merda, então o banho terá de ser rápido. — reclamou.

       Nova riu e deu-lhe um tapa no traseiro.

       — Nada que quinze ou vinte minutos não resolvam. Afinal, você já está praticamente pronto, não é, senhor Dolejal? — debochou, fixando os olhos na cintura dele.

       Franco empurrou-a contra a parede e roçou seu corpo no dela.

       — Preciso, é óbvio que não será a minha cultura que manterá você comigo. — ironizou.

       — Para de ficar pedindo elogios! — e, suspirando profundamente, declarou: — Nós temos um problema.

       Ele enfiou uma perna entre as dela, beijou-lhe o pescoço e disse junto ao seu ouvido:

       — Temos dois problemas.

       — O que foi?

       — Você vai rir. Eu pelo menos ri muito.

         

       O semblante carregado do homem que entrou na delegacia já era um aviso de que o tempo fechara e o melhor a fazer era se manter tranquila.

       Adele conhecia o delegado havia anos e testemunhara todas as fases de sua vida e todas as intempéries de seu espírito. A arte da convivência pacífica era saber se esconder atrás de uma moita quando necessário. Pelo menos era assim que se preservavam muitas amizades. Tentou ignorar o guri algemado, pálido, escabelado que era escoltado por Rodrigo. Voltou-se para o computador e alertou sua colega escrivã de Rondonópolis com um tweet de menos de 140 caracteres: @daley Chefe acabou de entrar, acho que pisaram nas suas botas.

       — Conduza o Joaquim à sala de interrogatório. — falou num tom áspero e completou, empurrando o garoto em sua direção: — Sem ventilador, água ou qualquer comodidade. Se pensa que vai tirar a polícia de Matarana pra trouxa, vou mostrar onde a porca torce o rabo!

       — Já disse tudo, delegado! Não sou traficante! — implorou.

       Adele sorriu de canto enquanto pegava-o pelo antebraço e o levava em direção ao corredor. A sala indicada para interrogar suspeitos — e, às vezes nem tão suspeitos assim, localizava-se no lado oposto da sala do delegado, lugar que recebia os raios flamejantes do sol do meio-dia. Era um forno com uma mesa quadrada de madeira e duas cadeiras. O ventilador portátil somente era utilizado na presença de um dos policiais. Muitas vezes deixar os indivíduos assarem por horas, transpirando e com a garganta seca, economizava a saliva da polícia.

       Uma fileira de balas deitou no carregador. A segunda pistola foi carregada em segundos, o slide puxado até o primeiro projétil ajustar-se no canhão da arma. Ajeitando uma delas no coldre na cintura, Rodrigo saiu da sala pisando firme.

       — Seja o que for fazer, chefe, não faça sozinho. — alertou-o a escrivã, colada aos seus calcanhares.

       — É mesmo? Então terá uma surpresa, Adele. — falou por cima do ombro, a ironia misturada à exasperação. — Esses fazendeiros de merda não sabem com quem estão lidando. — acrescentou mal descolando os lábios.

       Adele observou o chefe disparar na camionete como um raio de fogo riscando a terra.

       À entrada da Coração de Ouro, na guarita de alvenaria com vidros blindados, o delegado pisou no freio abruptamente. Pôs a cabeça para fora da janela e, apontando para o portão de ferro fechado, ordenou:

       — Quero trocar uma palavrinha com o seu patrão.

         O camarada com as bochechas coradas e olhos de cachaceiro aproximou-se do delegado com a mão descansando sobre o .38.

       — Tenho que anunciar o senhor, doutor Rodrigo. — visivelmente sem jeito, encaminhou-se de volta ao interior da guarita para fazer a sua ligação.

       Não demorou a voltar, as passadas lentas de quem ensaiava a fala antes de proferi-la:

       — Não pode entrar, doutor.

       — Por acaso, eu pedi para ser recebido? — Rodrigo indagou com brusquidão: — Não quero arranhar a pintura da minha camionete ao pôr o portão abaixo. Acho que é mais fácil abri-lo, não é mesmo, amigo?

       O amigo balançou a cabeça, desalentado.

       — Não posso, são ordens de cima.

       — Do oficial em comando? — debochou — Claro que não. Um coronel de verdade não viveria no meio do pasto a céu aberto. — em seguida, mantendo a voz baixa e controlada, acrescentou: — Pois bem, Ramon, fichado por desordem, atentado violento ao pudor e com um punhado de multas de trânsito vencidas... Bem, vai esculhambar ainda mais a sua vida e me impedir de entrar?

       — Desculpa, doutor. Se o senhor passar, serei um homem morto. — suplicou.

       Rodrigo sorriu com desdém:

       — Isso aí que você protege é considerada uma vida?

       — Qual é o problema, Ramon?

       Um homenzinho com roupas e atitudes de cidadão de cidade grande desceu do automóvel importado. Ele vinha da casa-sede.

       Rodrigo reconheceu um ex-colega de profissão. Cabelo curtíssimo, camisa social para dentro da calça de linho, roupa de grife. E o jeito de andar que ele já percebera também em outros tipinhos esnobes, a postura arrogante de quem caminha carregando entre os braços, nas costas, um cabo de vassoura atravessado para endireitar a coluna. Aproximando-se da picape, encurvou ligeiramente o corpo, ignorando o capanga do coronel e metendo dois olhinhos argutos sobre a autoridade:

       — O senhor tem um mandado?

       Rodrigo controlou-se para não apontar o mandado na testa do almofadinha.

       — Dois mandados, não é mesmo?, o de prisão e o de busca e apreensão, já que tenho certeza de que encontrarei a arma correspondente ao projétil deflagrado contra mim, além da picape que conduzia os quatro pilantras do coronel. — falou com calma.

       — Senhor delegado, o senhor Marau é uma pessoa civilizada e, mesmo que o senhor viva a fantasia de ser um xerifão do Velho Oeste imaginando emboscadas e conspirações, aqui, nesse pedaço de terra, vive uma família honesta que construiu a cidade que lhe dá o sustento. Além disso, o senhor Marau é um latifundiário, e não um mafioso. Obtenha, sim, os seus mandados e eu terei prazer em acompanhá-lo em um, digamos, tour pela Coração de Ouro. — enfatizou.

       — Como se chama, senhor advogado?

       O outro sorriu com arrogância e entregou um cartão com timbre dourado:

       — Alfredo Frozzen, do Miranda & Mirando Associados.

       Foi a vez de Rodrigo retribuir a arrogância:

       — Então não é nem um Miranda nem um Mirando? — antes que o outro respondesse algo entre espirituoso e mentiroso, emendou: — Diga ao seu patrão de bombachas que voltarei com o mandado e também com os fiscais da delegacia do trabalho. Já faz algum tempo que ouço rumores a respeito de uma possível escravidão nas fazendas do coronel. Sabe aquele ditado, né?, onde a fumaça há fogo. — concluiu, tocando ligeiramente na aba do chapéu e dando a conversa por encerrada.

       Ao alcançar a estrada federal, retornando ao centro da cidade, conseguiu enfim relaxar. A emboscada deixara-o mais irritado do que qualquer outro sentimento. Cogitara a princípio que fossem os comparsas de Joaquim, seguranças da boca de fumo do vestibulando de Medicina. Até podiam ser, se Joaquim não tivesse quase se mijado nas calças. Eram pistoleiros profissionais, que sabiam como fazer uma boa campana e surgir no meio do nada, dispostos a tirar proveito do elemento surpresa. Além disso, se quisessem, poderiam tê-lo apagado naquele fim de mundo. Acabado com ele sem deixar pistas, apenas um corpo esburacado como uma peneira. Era evidente que fora somente um aviso. “Fique quietinho no seu lugar, delegado. Ouça a voz da razão e faça o seu serviço discretamente” — dissera-lhe o coronel.

       Rodrigo era teimoso feito uma mula. Talvez tão teimoso feito a mula sem cabeça. E o sujeito que se metia com ele jamais saía impune.

       Não parou na delegacia. Precisava fazer as pazes com Karen. Por pouco não levara um tiro no meio da cara. No fundo, estava cansado de pessoas como o coronel e a sua corja de pistoleiros. As ameaças, o jogo duplo, o comportamento hostil. A polícia de Matarana não estava nas mãos de nenhum mandachuva do cerrado. Pelo menos, a polícia civil. Ele jamais faria conchavo com quem quer que fosse.

       A verdade era que se sentia cercado por todos os lados. Mais do que nunca, ele, o mocinho da história, era pressionado contra a parede para tomar uma atitude. Assistira a tantas imundícies diante de seus olhos e tantas delas foram empurradas para debaixo do tapete. Vista grossa para não começar uma guerra. Urgia pôr a casa em ordem e mostrar aos cidadãos de Matarana que a lei tinha um nome e um sobrenome: Rodrigo Malverde.

       Reduziu a velocidade ao entrar no caminho que levava à garagem. Girou o volante para a esquerda e estacionou, por fim, ao lado de um veículo desconhecido. Pelo visto, estavam com visitas. Entortou a boca com desgosto. Ele só queria um prato de comida quente e a sua mulher para abraçar.

       Até que encontrou Karen vestida de Jasmine.

 

       Franco parou no meio do banheiro, pôs as mãos nos quadris e fitou o que o esperava. Havia poeira em seu corpo e roupas, cansaço e suor também. Debaixo da pele, os músculos tensos como cordas eletrificadas. Um guri crescido em uma fazenda e solto como qualquer animal supostamente domesticado. A vida era dura com aquele camarada. Mas agora nem tanto. Pelo tipo de vida que tivera até encontrar o sentido, Franco, às vezes, pegava-se sorrindo como um tolo.

       — Sais perfumados para o meu caubói relaxar. — ouviu a voz de Nova atrás de si.

       Voltou-se, sorrindo, e puxou-a para um abraço apertado.

       — Por que cuida tão bem de mim, hein?

       — Alguém tem que cuidar de você. — brincou e, em seguida, completou simulando severidade: — Entre na banheira que vou lhe dar um banho.

       Enquanto Franco se despia — tarefa a qual ele era realmente hábil, ela pegou suas roupas e, dobrando-as com cuidado, retomou a informação dita às risadas pelo noivo:

       — Em que problema está metido?

       Ele recostou-se contra a louça da banheira, pegou uma pequena nuvem de espuma e assoprou-a, observando-a voar até desaparecer no ar. Comentou com naturalidade, aproveitando, antes, para mergulhar a cabeça para trás, encharcando o cabelo.

       — Fui demitido. Não é engraçado? Nunca fui demitido antes.

       Ele não parecia se importar com o fato. O que era compreensível, uma vez que tivera apenas um patrão. Ao passo que Nova, como jornalista, já havia sido demitida várias vezes. Ela tinha certa dificuldade em aceitar ordens incoerentes. Pelo menos, incoerentes para ela. Havia um limite para a atuação de um jornalista investigativo. Muitas vezes, seus patrões eram patrocinados pelos objetos de suas investigações.

       — Sabe o que isso significa? — ela perguntou, esfregando o sabonete na esponja e preparando-se para deslizá-la por sobre os ombros dele.

       — O coronel Rodrigues me disse o que isso significa com todas as letras. — interrompeu-se para pegar-lhe a esponja da mão e mergulhá-la na água, informando-a a seguir: — Não sou o seu bebê, Nova... — dizendo isso, numa voz morna e arrastada, esfregou o sabonete na palma da mão dela e indicou o próximo passo: — Quero sentir a sua mão no meu corpo. Lave o seu homem.

       Ele deitou-se para trás e fechou os olhos. A expressão facial descansada de quem se mantinha à espera de ser servido e obedecido. Deslizou a mão ensaboada pelo tórax do pistoleiro que um dia apontara o cano de uma arma contra sua cabeça. E ela o amava tanto que precisava arriscar-se mais uma vez.

       — Como faremos, agora? Você gastou uma fortuna com as alianças, eu estou grávida e o dinheiro do Gringo só dá para pagar o aluguel. — ponderou.

       Franco sorriu sem abrir os olhos.

       — Não se preocupe, princesa, nasci e cresci nessa cidade, trabalho não me faltará. — afirmou confiante e, ao mesmo tempo, desinteressado.

       — Acha mesmo?, com essa fama maravilhosa que tem? — perguntou, desconfiada.

       Para todos, Franco era o diabo loiro, um psicopata. Quem daria emprego a alguém com esse perfil?

       — O Bronson conhece alguns inferninhos de quinta onde eu posso trabalhar como segurança.

       — Não me parece uma boa ideia. — disse, incerta.

       Ele abriu um olho e sorriu:

       — Deixa isso comigo, princesa. Posso cuidar de você e te sustentar. — ajeitando-se na banheira, pegou a mão que esfregava o seu abdômen e indagou com interesse: — Me diz qual é o outro problema?

       Preferiu começar pela beiradas.

       — Sabe a Bety?

       — Sim, eu sei, a Bety louca. O que tem?

       Nova respirou fundo e fitou dois olhos azuis toldados por cílios longos e encharcados d’água.

       — Você, por acaso, machucaria uma mulher com filhos? — sondou-o.

       Franco manteve a expressão impassível ao responder com serenidade:

       — Nunca machuquei nem mulheres nem vadias, e tampouco filhos de mulheres e de vadias.

       — Sei que não, mas precisava ter certeza. O problema é que a Bety quer arrancar dinheiro do seu pai.

       — Azar dela, não é a primeira que tenta se dar bem com o patrão. — respondeu com naturalidade para, em seguida, perguntar o que de fato interessava-o: — Era isso que ela queria com você?

       — Mais ou menos. — retrucou sem jeito.

       — O que a doida tem contra o patrão?

       — Parece que ele visitou aquele corretor assassinado na noite do crime. — mordeu o lábio inferior, preocupada. Ainda não lhe era possível ler qualquer emoção no rosto dele.

       — Na noite da morte do Vilela, eu estava com o patrão. — começou com bastante calma, entrelaçando seus dedos nos dedos dela: — Lembra que a gente se encontrou, e depois voltei para a fazenda com ele. Nós brigamos, e eu fiquei pelado à beira da estrada. Foi isso o que aconteceu. Ela não viu o patrão, Nova. — assegurou com o semblante sério, os olhos fixos nos dela.

       — É, mas houve um período de tempo em que você estava comigo... e onde estava o Dolejal? — perguntou desconfiada.

       —No Jornal, o tempo inteiro. Ele tinha uma reunião com aqueles tipinhos intrometidos chamados jornalistas.

       Ela ergueu a cabeça sorrindo, esperando ver um sorriso brincalhão. Franco estava sério e concentrado.

       — Foi por isso que resolveu visitar o Rodrigo?

       — Fui convidá-lo para o nosso jantar de noivado. — baixou novamente a cabeça e emendou: — O engraçado é que me esqueci de convidá-lo.

       — Por que será que esqueceu, Nova? — ele perguntou, soltando a sua mão da dela e erguendo-se da banheira: — Se esqueceu de convidá-lo, o que fez naquela sala durante quarenta e três minutos?

       Nova viu-o secar-se com a toalha de banho, de costas para ela, mas sem deixar de fitá-la através do espelho. O cenho franzido e um sulco fundo entre as sobrancelhas. Agora, sim, ela conseguia fazer uma boa leitura de seus sentimentos. Franco estava irritado.

       — Se pretende mentir, prefiro que não abra a boca. — disse com rispidez.

       — Fui perguntar para o Rodrigo sobre o sanatório de Matarana.

       Ele se virou e olhou-a diretamente.

       — Foi fazer ao delegado a mesma pergunta que fez para mim. — afirmou em um tom de quem constatava uma traição. — Não sou uma fonte confiável, dona jornalista? — alçou a sobrancelha, irônico.

       — Sinceramente, não sei se está preparado para saber a verdade, Franco. — ela começou, sabendo antecipadamente que caminhava sobre um pântano ardiloso. Ergueu-se da beirada da banheira preparando-se para deixá-lo a sós com seus pensamentos. — Eu amo você, isso é fato. Entretanto, entre o que eu sinto e o que eu sei sobre você, existe um abismo considerável. Toda a vez que tento descobrir algo mais sobre o seu passado ou o do seu pai, você se fecha e diz para eu não sair da margem clara do rio. Mas você, Franco, mergulha em ambas as margens, na clara e na escura, e profundamente. Então o que posso esperar quando o assunto envolve o seu pai?, que seja leal a ele ou a mim? Sei que apesar das desavenças continua protegendo-o. Matarana inteira conhece a intensidade de sua devoção a Thales Dolejal. Por isso acredito que mentiria para a mim, a fim de livrar a cara dele de qualquer acusação da Bety. Eu precisava de respostas...

       Ele a pegou pelo antebraço contendo-a.

       — E aí consultou o mais novo inimigo do patrão.

       — Não, escolhi conversar com o meu amigo que vive há mais de dez anos em Matarana. — retrucou com firmeza.

       — Como pode dizer que me ama se não confia em mim?

       — O meu amor, Franco, é intenso e profundo, mas não é burro.

       Ele sorriu sem jeito, um sorriso leve, quase sem vontade de mexer os lábios.

       — Você é boa com as palavras, dona. Só que essa habilidade não pode salvar a sua vida nem a da nossa filha. Não volte a se meter em encrencas. Se voltar a bisbilhotar por aí, terei de fazer alguma coisa. — manteve os olhos fixos, imperscrutáveis. Por fim, mudou o rumo da conversa, era melhor assim: — Vamos almoçar, ok? Acho que seria muito bom se a Irene viesse ajudar com o nosso jantar de noivado. Aliás, deixa que eu mesmo convidarei os Malverde. — piscou o olho e sorriu de leve.

       Ela se desvencilhou dele dando um passo para trás e fitando-o como se não o reconhecesse. Franco esperou que a arma fosse engatilhada e endureceu a musculatura para aguentar o golpe.

       — Não entendeu nada, nada. Fui até a Betty para enganá-la, para que ela deixasse a nossa família em paz e isso inclui o seu pai. Sei o quanto o ama e também o quanto sofre por causa disso. Só não queria aquela mulher atrapalhando a nossa vida, mas também não queria machucá-la. Chega! É impossível ficar em uma margem e você em outra. Já ouviu falar em amor incondicional?

       Dois braços puxaram-na para o aconchego de seu corpo forte.

       — Meu Deus, você é uma criança, Nova. — ele murmurou com os lábios em seus cabelos, a voz abafada pela emoção de constatar que a mãe de sua filha passava pela metamorfose que tornava humanos inocentes em loucos passionais. — Acho que está se transformando em uma Dolejal. Talvez precise de uma transfusão de sangue. — brincou, afastando o rosto para admirá-la.

       — Só preciso de você. — ela afirmou num fiapo de voz.

         

       O último pedaço de bife no canto do prato. Nada como deixar o melhor para depois. Uma rápida olhada ao redor e Rodrigo observou que estavam sozinhos, não apenas à mesa. Final da tarde, e a casa silenciosa. Ao longe, revezavam-se o som grave e rouco dos motores de um automóvel ou outro, ou um caminhão carregado arrastando-se pelo asfalto. Essa morosidade das horas que separavam a manhã da noite emprestava uma atmosfera de nostalgia de dias como aquele, exatamente como aquele — Karen dentro de um vestido florido de alcinhas, dias jamais vividos antes. Ao deitar o garfo e a faca sobre o guardanapo dobrado, decidiu quebrar o silêncio, mesmo que o sorriso ao reconhecê-la meiga e alegre houvesse se antecipado ao pedido de desculpas, ao abraço e ao longo beijo. Como estavam sozinhos pairava uma interrogação no ar.

       — O Maverick lá fora é seu?

       Karen sorriu encolhendo os ombros com dissimulada indiferença.

       — Sim, comprei hoje quando o Fusca me deixou na mão. — disse apenas, rompendo o lacre da segunda lata de cerveja.

       Do outro lado da mesa, Rodrigo conjecturava se o momento era de especular sobre o motivo da compra de um automóvel bebedor de gasolina ou se concentrava a atenção em analisar o fato de ela ter voltado também a beber. O dilema o fez estender a mão e pegar a dela, entrelaçando os dedos.

       — Gosta desse vestido? — era mais seguro enveredar por um atalho.

       Ela olhou para si mesma com indiferença e falou:

       — Só tenho um vestido, aquele que usei quando fui com as meninas ao salão country. Aí, pensei, o delegado vai gostar de me ver vestida de mulher.

       — E sem maquiagem. — constatou, erguendo a sobrancelha, surpreso.

       — Sim, como você gosta. — piscou o olho e completou: — Tudo para agradá-lo.

       Ele riu como se não acreditasse no que ouvia.

       — O que aprontou?

       — Ué, não posso me enfeitar para o meu namorido?

       — Hã?

       — É o que somos. Decidi isso enquanto esquentava a comida que a Val deixou para nós. A gente não é só namorados, mas também, Jesus Cristo!, ainda nada de marido e mulher. Um meio termo, sabe? Algo mais apropriado à situação, se é que me entende.

       — Entendo. Outra invenção para não se assumir compromisso. — resmungou, catando pelos bolsos a carteira de cigarros. — Se não somos uma coisa nem outra; logo, não somos nada.

       — Não seja careta, Rodrigo. Esse negócio de casar já era, é brega.

       — Ah, é? Então avisa o Franco e a Nova.

       — Pois, é, que ridículo! A Val me contou que eles decidiram se enforcar. — balançou a cabeça devagar procurando encaixar as ideias; nunca conseguia o feito. — A Nova é uma safada, sabia? Ela disse que queria um filho e fez um filho. E como é uma mocinha de família, inventou esse casamento. Não tem peito pra bancar uma produção independente.

       — Já passou pela sua cabeça que aqueles dois querem constituir uma família? — indagou, estreitando os olhos na firme intenção de analisar o que viria a seguir.

       Karen se ergueu e procurou diminuir as luzes sobre a questão, juntando os dois pratos e levando-os à pia. De costas, despejando o detergente sobre a esponja enquanto a água jorrava da torneira, ela enfiou uma farpa de madeira debaixo da unha do policial:

       — Estive com o pai dele. Seguimos o seu conselho e conversamos sobre a nossa situação atual. — preferiu continuar a lavar a louça a virar-se para encará-lo.

       — E como foi a conversa?

       Obrigou-se a se voltar para vê-lo. Temia feri-lo ao ponto de ele juntar suas coisas e partir. Por outro lado, era impossível mentir, mesmo para poupá-lo da verdade de quem ela era. Encarou a expressão séria e perscrutadora camuflada pela fumaça do cigarro.

       — A gente reconheceu os erros cometidos, só isso. — respondeu procurando amenizar a circunstância: — O que eu podia fazer? Você tirou o meu .38 e depois o estilete...

       — O Maverick foi presente dele? — direto ao ponto.

       Ela controlou-se para não responder torto. Assim como a arrogância de Thales irritava-a, a pose de “certinho” de Rodrigo lhe tirava do sério. Era evidente que ele desconfiava de que havia dedo do dono da Arco Verde na aparição instantânea do Ford. E, por acaso, ele comentara a respeito? Não, ele guardara para si, a fim de usar o que sabia no melhor momento.

       — Nem sempre está certo. Paguei pelo carro, viu? Quer ver a nota fiscal ou não preciso apresentar provas para o senhor delegado? — ironizou.

       Ele fez um gesto de contenção com a mão, tragou o cigarro fundo e exalou a fumaça pelas narinas. Exausto, espichou as pernas debaixo da mesa.

       — Só me diz uma coisa, Karen.

       — Não dormi com ele. — antecipou-se irritada: — Já falei que estou mantendo o nosso pacto de fidelidade. Por que é tão difícil acreditar em mim? Acha que sou uma vadia que não posso ver um homem que caio matando? Pensa que não me magoa? Ofende a minha honra, sou uma mulher como as outras, sabia? Tenho sentimentos, hormônios, carências e paranoias. Saco!, só porque sou forte não significa que de vez em quando não preciso de um colo! Por que não casa logo com a Rita, que é certinha e loira? Inferno!

       Rodrigo ergueu-se, obstinado, circundou a mesa e pegou-a pelos ombros, fazendo-a olhar para si:

       — Há poucas horas fui avisado sem sutileza alguma que estão de olho em mim. Fiquei com tanta raiva que quase pedi exoneração. Só o que eu queria era voltar para casa e ficar com você. Todos os dias desde que a Jasmine me falou que você apoiava a decisão de ela voltar para o sul, todo o maldito santo dia lembro que estou ligado a você por esse amor de anos, esse sentimento de amigo, de amante, de fracassado no meio dos poderosos, todo o dia, Karen, agradeço por ainda estar comigo. Mas se sentir infeliz ou constrangida ao meu lado, não pense duas vezes, volte para o Thales.

       Antes que pudesse se conter, ela viu a marca no rosto dele, os olhos espantados e a sua mão voltando para junto do corpo. Doeu esbofeteá-lo.

       — Não banque o superior para cima de mim. Você e o Thales são dois homenzinhos egoístas que não valem um grãozinho de terra sequer debaixo das minhas botas. — afirmou com a tranquilidade de uma rainha destronada. — Volte ao seu insignificante lugar e fique lá.

       A princípio, ele não entendeu. Estreitou os olhos analisando-a. Já vira muitos suspeitos, durante os interrogatórios, atacar para se defender.

       — O meu lugar deve ser em um quarto de hotel, suponho. — constatou, girando nos calcanhares e dando-lhe as costas.

       Ela encontrou-o no quarto. As portas do guarda-roupa arreganhadas, cabides jogados no chão e três camisetas atiradas para dentro de uma mala aberta sobre a cama.

       — Você disse que era feito de outra substância. — acusou-o baixinho.

       — Acho que me enganei. — suspirou profundamente e acrescentou com pesar: — Ultimamente ando descobrindo coisas novas e ruins sobre mim. Talvez eu esteja fazendo tudo errado mesmo. Sou só um cara tosco tentando viver do jeito menos errado. — deu de ombros e concluiu com secura: — Acho que é esse o meu maior erro.

       — Por que insiste em seguir a cartilha do certo e errado? Há outras formas de viver e de pensar entre esses extremos. O que aconteceu na sua infância?

       — Meu pai foi comprar aspirina para a minha mãe e acabou descansando no meio-fio da calçada baleado no peito. Foi isso o que aconteceu, Karen. O mundo está dividido entre os bons e os maus, e eu sei quem tenho de proteger.

       — Sinto muito sobre seu pai.

       — Evito falar sobre isso, é duro pra Val. Ela era muito apegada a ele.

       — Não me deixa, Rodrigo. — pediu baixinho.

       — Karen, quero pelo menos mantê-la como amiga. Não sei se consigo ficar sem vê-la todos os dias, nem que seja para juntá-la do chão ou ouvir seus discursos feministas. — brincou sem humor.

       — Não me deixa. — murmurou, encostada contra o batente da porta.

       Ele fechou a mala e sentou-se à beira da cama. A mão esfregou a nuca tentando livrar-se do cansaço que já não era mais físico.

       — Ainda é apaixonada por ele. — afirmou impassível, voltando ao papel de amigo. — As corridas de cavalo, o carro veloz, a bebida... Sente falta dele. Fui um paliativo, não sou a cura para o seu mal. Arrisquei transpor a fronteira da amizade, precisava fazer isso... precisava amá-la como homem. Quebrei a cara, tudo bem, não importa. Quero que seja feliz, assim como queria a felicidade da Jasmine. Pelo amor de Deus, não nasci para fazer as mulheres infelizes. — considerou com amargura.

       — Se sair desse quarto, considere-se um homem morto — ameaçou.

       Ele riu sem vontade, um riso áspero.

       — Terá de pegar uma senha, Karen, e aguardar a vez.

       — Se me abandonar, não te deixarei em paz, seu desgraçado. — afirmou num fiapo de voz.

       Ele voltou-se para dizer que se lembrava de tê-la buscado na Arco Verde quando também fora infernizar Dolejal. Porém, ao ver as lágrimas descendo em abundância pela face dela, parou, ainda segurando a mala pela alça. Era uma visão inédita, e ele sentiu uma pontada aguda no peito, porque até chorando ela era a mulher mais linda do mundo.

       — Nunca a abandonarei, nunca. — ele pegou o seu queixo com o dedo em gancho, erguendo-lhe o rosto para si: — Sempre será a minha preferida entre os meus protegidos. — tentou brincar.

       — Eu te amo. Como pode deixar alguém que te ama?

       — Não, Karen, você ama o Thales. E enquanto não aceitar essa verdade, vai continuar se destruindo. — declarou convicto.

       Ela ergueu ao nariz com altivez.

       — Amo você.

       — Sim, obrigado. — debochou, fazendo menção para sair.

       — Amo você, seu fraco! — elevou a voz.

       — Alguém tem de fazer o papel de fraco nessa história, já que só temos valentões e valentonas.

       Na segunda tentativa de escapulir do quarto, da atmosfera pesada de despedida, ele foi contido por uma mão que se apertou ao redor do seu antebraço, puxando-o para si. Olharam-se por alguns minutos.

       Quando o silêncio pesou demais, ela enfim aceitou dizer:

       — Faço o que quiser, qualquer coisa, pra ficar com você.

       Por dentro, ele respirou aliviado.

       — O que, por exemplo, Karen?

       — Não sei, o que quiser. — respondeu insegura.

       — Vai parar com as corridas? Vai parar de beber? Vai deixar de gostar do Thales? O que, Karen? Vai estar em casa quando eu chegar do trabalho e se comportar como uma mulher normal? Que tal terapia? Que tal nos mudarmos para Cuiabá ou, sei lá, Santa Luzia? É tudo uma merda, não é, mesmo?

       — Não tenho resposta para todas as suas perguntas. — respondeu, baixando a cabeça, desanimada.

       — Eu já sabia.

       Saiu para o quintal. Jogou a mala sobre o banco traseiro da picape e abaixou-se para fazer um carinho em Bonnie.

       — Logo, logo arranjo um lugar para levá-la comigo. Comporte-se, viu? — puxou a cabeça da cadela para si, e ela enfiou o focinho gelado na dobra do pescoço dele. — Cuida dessa moça cabeça dura.

       — Em qual maldito hotel vai se enfiar? — ela gritou do alpendre.

       — Provavelmente o Scalpel. — retrucou, aproximando-se e completando num tom brando: — Assim que me ajeitar, telefono para você. Não tenho a mínima intenção de sair da sua vida, viu?

       — Mas está saindo.

       — Quando eu sair da sua vida você vai saber, — ele disse com seriedade; depois, acrescentou com um leve sorriso, aproximando-se dela: — terá de fazer um belo discurso ao lado do meu caixão.

       — Por favor... — implorou.

       Ele baixou a cabeça e encaixou seus lábios entre os dela, chupando-lhe a língua com força. Apertando-a em seus braços e quase a erguendo do chão. No momento de se afastarem foi impedido. Dois braços agarravam-no pelo pescoço como algemas. Tentou soltar-se se desvencilhando do abraço. Era impossível. Por fim tornou a abraçar o corpo que tremia e soluçava contra o seu.

       E foi embora.

       Valéria foi a primeira a perceber que algo mudara. Encontrou Karen sentada na cadeira de vime, na varanda frontal, no lugar onde Rodrigo ficava ao esperá-la chegar da rua. Uma boneca de cera com o rosto inchado pelo choro. Seu coração subiu à garganta. Imediatamente, telefonou para o irmão. Ele contou quase tudo. Dois que sofriam. Sim, o amor não resolvia tudo. Chamou, então, o resto da família e contou a novidade. Vó Ninita considerou que eles deveriam sair, procurar outro lugar para morar, e não o dono da casa. Mas Val afirmou que Rodrigo queria que continuassem todos juntos. Ele tencionava voltar quando Karen soubesse o que queria.

       — Como assim? — perguntou Johnny.

       — É por causa do Dolejal. — retrucou Ninita, exasperada.

       — É mais do que isso, vó. — considerou Val e emendou: — Como posso ajudá-la? Será que chamo o Cris para conversar com ela também?

       — Nem pensar. — respondeu Johnny com um sorrisinho engraçado: — A gente sempre fica de longe. Se ela quiser conversar, tudo bem. A mãe fica puta se percebe que estamos com pena dela.

       Valéria engoliu em seco e afirmou, balançando a cabeça em negativo:

       — O Rodrigo não devia ter feito isso com ela.

 

       — Amor, a Sabrina me ligou há pouco... Infelizmente, você estava certo sobre a Karen e o Rodrigo.

       — Mais um pulou fora. — constatou, achando engraçada a situação.

       — Franco, a Karen é minha amiga, por favor.  — soou ríspida a sua voz ao celular.

       — Sei disso, princesa. É que os tombos da Karen são sempre hilários.

       — Estou indo para a casa dos Malverde; tudo bem?

       — Pode ir, mas não demore muito por lá. — ressaltou.

       — Antes do jantar estou em casa. — em seguida, baixou o tom da voz ao falar: — Sobre aquele assunto, a Bety, bem, vou ignorá-la. Se ela quiser que vá até a Arco Verde chantagear o Dolejal pessoalmente. Isso se tiver coragem.

       — Boa menina. — brincou — Agora diga: Franco, eu sou louca por você.

       — Sou louca por você — repetiu, rindo.

       Ao desligar o celular, ele suspirou profundamente. Havia muito tempo que não sentia tamanha paz.  Todos os sentidos à flor da pele. Se fechasse os olhos veria através das pessoas. Ouvia suas vozes nas notas mais agudas de seus pensamentos e era como voar dentro da mente. Nem sempre estava na Terra, mesmo pés plantados dentro das botas. Quando ele queria, simplesmente, ia embora. Depois, voltava. Havia um lugar dentro de si onde se refugiava. Lá, protegia-se do exterior. Mas era melhor se esconder debaixo d’água. Fazia algum tempo que se expunha ao sol e aos outros. Desde que Nova acontecera jamais voltara a ocupar o porão escuro e os insetos acalmaram-se. Por isso a paz. Ainda que pressentisse o mal cada vez mais perto, o cheiro nauseante do fosso podre... Ah, era nojento, repugnante senti-lo. Fazia tanto tempo.

       Foi obrigado a deitar o .38 sobre a mesa da cozinha. Toalha plastificada. Na cozinha da Arco Verde a mesa também era revestida por toalhas de plástico. Ele riscava com a ponta da faca as suas iniciais, o que deixava Irene irritada. O revólver não era dele. Definitivamente, ele preferia as automáticas.

       Girou o tambor e deitou sobre a palma da mão os seis projéteis. Sorriu para a munição. Seria interessante se as balas se erguessem e dançassem em círculo e, depois, pulassem para dentro do tambor.

       — Quer ver as balas dançarem Macarena, Bety? — ele perguntou, sorrindo.

       Como ela não respondeu, desviou a atenção da própria mão para a palidez da doida. Parecia que havia visto o diabo, considerou o loiro com bom humor.

       — Hã? Não ouvi.

       Franco pôs uma bala no tambor e o girou. Após o estalo, sorriu para a mulher. Era um sorriso meigo e charmoso. Pegou o revólver pelo cano e entregou-o a ela:

       — Primeiro as damas. — como Bety manteve-se imóvel fitando a arma, completou curioso: — Sabe como é essa brincadeira, não sabe?

       — Você é louco. — ela murmurou, os olhos cheios d’água.

       — Não, não, louca é você. Pega a arma, Bety! — ordenou com a voz macia e baixa.

       — Foi ideia do meu marido. Brinca com ele.

       — Gosto de brincar com os mais fortes, gente fraca me entedia. Vamos lá, Bety, aperta contra a cabeça. Duvido que seus miolos estourem. Quer apostar? — perguntou com o seu melhor sorriso.

       Ela pegou o revólver de sua mão e deixou-o cair sobre a mesa. Assustou-se sem, no entanto, mexer um músculo sequer. A qualquer momento desmaiaria, previu ele, recostando-se confortavelmente contra o encosto da cadeira. Uma boa visão, era verdade. Humanos brincando de roleta russa no calor da tarde. No pátio, as crianças gritavam enquanto jogavam futebol. Sim, era uma tarde maravilhosa. Franco se sentia tão vivo que era capaz de subir na mesa e sapatear.

       — Um dia perguntei para o patrão como os gringos se xingam... E sabe como é, Bety?

       — Por favor, sou azarada. — soluçou.

       — Não, você tem muita sorte. Olha lá fora, três crianças saudáveis. Penso em ter três filhos também. — ele se voltou para ela e parou de sorrir: — Deixará que eu crie em paz os meus três filhos?

       — Nunca quis o seu mal, foi o meu marido, aquele filho da puta, ele quer dinheiro, sempre quer dinheiro, aquele corno manso. — o lábio inferior tremia.

       — Se abrir a boca sobre o meu pai todo poderoso, a gente voltará a brincar como bons amigos que somos, não é mesmo, Bety?  Vamos, responda. Somos amigos, não somos?

       Ela fitou o sorriso gentil e os olhos azuis que brilhavam divertidos.

       — Sim, amigos.

       — Muito bem, estamos conversados. Acredito que sua palavra tenha o mesmo valor que a sua vida.

       — Sim, senhor. — retrucou, balançando a cabeça e observando com atenção o rapaz levantar-se, pôr os demais projéteis no tambor do. 38 e enfiá-lo no cós frontal do jeans. — Jamais me meterei com os Dolejal, juro pelos meus filhos.

       — Certo, dona. — empurrou a aba do chapéu para trás e falou: — Quero que diga ao seu marido que quem dá as cartas é você. O cara é um pinguço inútil, já está na hora de chutar o traseiro dele. Se quiser, posso ajudar a se livrar desse encosto. Me telefona que eu largo o infeliz em Belo Quinto.

       Bety não conseguia ficar em pé, apenas tentou sorrir enquanto olhava para o pistoleiro que já lhe dava as costas.

       — O-obrigada, senhor Dolejal. — balbuciou.

       À porta, ele se voltou e esclareceu de forma quase didática:

       — Ah, Bety, fuck  you. É assim que os gringos se xingam. Fuck  you, Bety. — piscou o olho.

       Na picape, após acalmar-se das gargalhadas, telefonou para Nova:

       —Peguei emprestado o seu .38 com problemas de travamento.

       — Pra quê? — desconfiou.

       — Nada, princesa, só para brincar um pouquinho.

       — Sei... Bem, cuidado, então, o Bronson consertou o problema que fazia o tambor travar, está novinho agora.

       Franco parou de sorrir.

         

       Karen esticou o corpo até ouvir um estalo na coluna vertebral. Esticou-se ainda mais. Era interessante imaginar uma parte do corpo se separando da outra. Pelo menos naquele momento. Olhou para o relógio de pulso e chegou à conclusão de que perdera tempo. Um tempo jamais recuperado. O próximo passo era livrar-se da indumentária caipira.

       Entrou em casa e avistou rostos que esperavam por ela, por sua aparição arrasada e cambaleante. Porém, ela estava inteira e caminhava em linha reta, sabendo para onde ir. Foi para o quarto e rasgou o vestido de verão.

       Quando retornou à sala, encontrou Nova e sentiu vontade de chorar mais um pouco. Conteve-se, porque agora estava metida no jeans e nas botas. Vestida assim ela não chorava, a roupa não deixava, era como um gladiador chorar debaixo de seu elmo.

       — Veio me dar os pêsames? — perguntou com um sorriso torto.

       Nova corou, constrangida, deveria ter esperado as primeiras 24 horas, o efeito da ruptura amenizar.

       —Achei que fosse precisar de um ombro amigo.

       — Ah, certo, e eu sirvo pra quê? — indagou Val, magoada.

       — Já sofri trinta e quatro minutos pelo Rodrigo. Preciso é cuidar de mim, moçoilas. — virando-se para a sua vó, disse: — Vamos sair daqui. Assim que inaugurarmos a confeitaria, vou arranjar um lugar pra gente em Santa Fé. Matarana está ficando pequena demais.

       — Me desculpa, ô amalucada, mas eu vou ficar em Matarana — afirmou vó Ninita.

       — Eu também. — juntou-se a ela Johnny.

       — Pensa nisso mais tarde, Karen, quando esfriar a cabeça. — ponderou Nova, aceitando o copo de limonada oferecido por Val.

       — Olha só, estamos de bem, né? Não quero que ninguém estrague a nossa amizade.

       Nova riu.

       — Está tudo certinho entre nós, Val, mas sugiro que não fale nada contra o Franco, estou sensível demais por causa da gravidez.

       — É, sei como é, quando estava esperando a Sabrina, eu chorava até no banho quando o sabonete escorregava da minha mão.

       Karen pegou o chapéu de vaqueira que estava sobre a geladeira e o pôs na cabeça. Alcançou a porta de saída e disse antes de descer os degraus e postar-se diante do volante do Maverick:

       — Quem quer dar uma volta pela cidade?

       Ninguém queria. Ninita e Val trocaram olhares. Nova interferiu dando voz aos gestos silenciosos das outras:

       — Nós vamos, Karen. — ao vê-la sair, voltou-se e disse: — Se ela for sozinha, pode fazer alguma besteira. Lembra quando o Dolejal a deixou e ela voltou bêbada e armada a Arco Verde? Acho melhor irmos.

       — A Sabrina vai encontrar a casa vazia...

       — Eu fico, Val, e espero por ela. — considerou Johnny.

       Valéria sorriu com gratidão para o garoto que se parecia fisicamente com a mãe. Mais um caubói para ferver o sangue da mulherada de Matarana. Virou-se, então, para a bisavó dele e perguntou:

       — Vai encarar, vó?

       — Por acaso tenho cara de quem fica em casa assistindo à novela? Claro que vou. — declarou, o cigarro no canto da boca, os óculos de armação grossa escorregando para a ponta do nariz.

       Nova ajeitou-se no banco da frente e deu uma olhada de esguelha na motorista. No toca-fitas Joan Jett, I hate my self for loving you não prometia bons momentos. O motor roncou alto e grave, o rugido de um bicho que rasgava o asfalto da avenida principal. Ao seu lado, Karen apertava os lábios como se contivesse a duras penas um palavrão. Ela tinha riscado debaixo dos olhos o lápis preto e na boca o batom vermelho-fúria, uma índia pintada para a guerra. O cabelo escuríssimo era soprado pelo vento morno. Havia tanta determinação naquele olhar sério concentrado na estrada, que Nova considerou que a amiga tinha um plano em mente. E não era apenas dar uma volta pela cidade.

       Atravessaram a avenida principal e deixaram para trás o templo católico, as butiques sofisticadas, as pessoas nas calçadas. Todas tinham para aonde ir e o que fazer. Anoitecia, e ninguém tencionava vagar pelas ruas. Um hábito do interior que não se relacionava à criminalidade. Por mais incrível que parecesse, em Matarana não se cometiam assaltos ou roubos à mão armada. Havia tanto pistoleiro na cidade que tal fato intimidava qualquer ação por parte dos ladrões de menor porte. Era uma realidade diferente para Nova que, mesmo após cinco anos vivendo na terra dos caubóis, ainda lhe chamava a atenção. A lei era feita pela polícia; a ordem, mantida pelos pistoleiros. E todos aceitavam como normal.

       Ao passarem pela casa de alvenaria branca onde era a delegacia da polícia civil, ela endereçou um olhar de esguelha a Karen, que se mantinha determinada a seguir em frente, sem nem mesmo reduzir a velocidade. Até que pisou fundo no acelerador. Vó Ninita exclamou qualquer coisa no banco detrás. Valéria cutucou Nova na perna e apontou para a motorista.

       — Para onde estamos indo? — indagou Nova, com um olho na estrada e outro no velocímetro.

       — Vocês vão me ajudar a pegar aquele homem de volta. — afirmou séria, como se fosse natural o que acabava de dizer. Até era, na cabeça de Karen. Em seguida, prosseguiu quase como uma ameaça: — É para isso que as irmãs servem, para se ajudarem. Pronto, chegou o momento de bater com o taco de beisebol no Rodrigo.

       — Isso não, nada de agredir o meu irmão! Ele errou, foi um panaca, mas nada de bater com taco nenhum. — berrou Valéria, que de fato tinha de berrar em função do ruído cavernoso do automóvel na estrada esburacada.

       — É só um modo de dizer, Val. Quero que argumentem ao meu favor como uma boa tacada na cabeça, entenderam?

       — Vai pedir penico, Karen? Quem te viu e quem te vê. — debochou Ninita. A única que tinha coragem de debochar de Karen.

       Ela endereçou um olhar pelo retrovisor para a vó, acrescentando ao gesto o dedo médio levantado.

       — Que bonito!, faltando o respeito com uma idosa. — declarou Ninita de forma irônica.

       — Acontece, vovozinha, que não estou pedindo para ele voltar para mim. Levarei minhas amigas para orientá-lo que o melhor a fazer é de fato voltar para mim. Entendeu a sutileza? — perguntou entredentes.

       — Ele entenderá do mesmo jeito, minha querida. Dê tempo ao tempo, espere o Rodrigo se ajeitar, passar os dias, sentir a sua falta...

       — Ou ter a paz recuperada. — murmurou Valéria. Ao ver o olhar raivoso da amiga, completou: — É uma faca de dois gumes, Karen, tem de admitir. As separações servem para as pessoas ponderarem a respeito da relação. Às vezes chegamos à conclusão de que estamos melhor sozinhos.

       Nova tinha certeza absoluta de que o bom senso de Val escapava à compreensão de Karen. Reforçou o discurso da irmã do delegado:

       — Sabe que o que é nosso a gente não perde. Por mais que tente forçar uma situação, se o Rodrigo acreditar que vale a pena voltar e tentar novamente, ele voltará. Não conheço homem mais maduro e sensato como ele.

       — Conhece, sim, mas preferiu um surtado. — Val alfinetou bem rapidinho.

       Nova virou-se para responder com ferocidade. No entanto, a guinada brusca a fez bater contra a porta. Ignorou a inimiga declarada de Franco e se concentrou em Karen.

       — E se eu estivesse sem cinto, hein, Karen? — perguntou com rispidez.

       — Não estaria no carro comigo, já teria voado pela janela. — dizendo isso, estacionou em frente ao hotel Scalpel, um hotel três estrelas à beira da rodovia federal. Desligando o motor, virou-se para as três e começou a distribuir as tarefas: — Vocês entram no hotel, todas com cara de enterro. — apontando para Nova sentenciou: — Você, amigona do xerife, vai dizer que eu sou a mulher mais maravilhosa de Matarana e que se ele me perder, não encontrará outra igual e morrerá ao lado de uma chata entediante cujo ápice da sedução será lavar a calçada com sabão em pó. E você, Val — posicionando-se em direção à cunhada: — como irmã do infeliz, conhece os pontos fracos dele. Fale sobre solidão e... bem, o quanto ele me ama e o quanto foi difícil me convencer a viver com ele e, agora, põe tudo a perder, como um fraco que desiste de lutar. Olha que ótimo argumento você tem, hein! Trabalhe bem nele, mexa com as emoções do maninho... Quanto a você, vó, sinceramente, acho que deve ficar no carro comigo, é capaz de falar uma merda qualquer e me pôr na fogueira. O mais importante, gurias, é não deixá-lo pensar, não deixá-lo pesar as vantagens e desvantagens de voltar para casa. Tem de ser como o pessoal do telemarketing faz: ignorar objeções e falar sem parar, entorpecê-lo de argumentos. Então... preparadas para trazê-lo de volta? — perguntou o general, sorrindo.

       As três se entreolharam. Elas seriam loucas se obedecessem às ordens de Karen.

       Cinco minutos depois, as amigas voltavam para o carro com caras de enterro. Karen enfiou a cabeça para fora da janela e gritou:

       — Voltem lá agora e tragam o homem!

       — Ele está na delegacia. — informou Nova ladeada por Valéria.

 

       A sandália vermelha combinava com o batom e talvez com um ou outro pensamento. Ela caminhava sobre saltos finíssimos, a calçada morna recebia os golpes precisos da madeira. Tiras ao longo dos tornozelos, couro, e um pouco de atitude nas passadas. Vestido cor-de-rosa, a mesma cor das roupinhas de bebês, colado na cintura fina de quem jamais precisara fazer dieta. Um pouco acima, seios fartos arfavam através da gola V. Mangas curtas e, por cima delas, um cabelo cor do sol brilhante caindo feito cascata. Rita era uma mulher com uma missão. Acenou para Adele com charme.

       A escrivã indicou com a cabeça a sala do delegado e sorriu. Havia algo de mafioso no aceno, mas também de solidário. Adele presenciara a entrada de um homem vencido que, antes de fechar a porta de sua sala, abrira a gaveta da escrivaninha e retirara de dentro a garrafa de uísque. Havia poucas horas escapara de se tornar mais uma vítima do destino. Morrer era algo verdadeiramente ilegal. Ainda mais um homem como aquele, que dava duro para manter a cidade nos trilhos. Rodrigo Malverde voltara de sua casa destroçado A aparência de alguém que sofrera ao ponto de sair das próprias roupas e fazer-se areia. E diante do farrapo humano nada como a visão do paraíso. Por isso o aceno e Rita.

       O chapéu foi deitado sobre a mesa e o corpo na cadeira, as costas forçando o encosto estofado. A cabeça pendendo para trás, os olhos postos no teto, o cansaço. Vivera junto com Karen por menos de dois meses e já entregara os pontos. Ele podia aceitar as balizas de contenção ao redor de sua individualidade, as corridas ilícitas e o comportamento prepotente. Verdade fosse dita, ela nunca o enganara quanto quem era e como vivia. E como seu amigo próximo por mais de dez anos, sabia tudo, o melhor e o pior, sobre aquela mulher.

       O amargor da bebida desceu queimando a garganta, fez uma careta depositando o copo vazio de volta à mesa. O que fizera? Entregara de bandeja a mulher que amava a outro. Sim, ele era o tipo de cara que respeitava alguns princípios, como o de se preservar quando descobria a possibilidade de se tornar o segundo na lista. Todos os sintomas de paixão recolhida visíveis diante de seus olhos. Desde quando, seu tonto? — perguntou-se, baixinho, irritado. Desde o atentado de Mendes. A forma exagerada e cega de Karen insistir em insinuar o envolvimento de Dolejal no seu sequestro. Aliás, o ódio pelo ex-amante em turno integral transformando-a em uma xiita. Ela tentava lutar contra o mal, o que considerava um mal, uma maldição. Refugiara-se para dentro de sua casa como um viciado para o centro de reabilitação. E, no início, até tentara ser outra pessoa. Como tentara novamente poucas horas atrás, o vestido de Jasmine, a fala mansa e a firme intenção de agradá-lo. Por quê? Entortou o canto dos lábios ao engolir em seco a resposta. Porque voltara a encontrar com quem a tivera por dez anos — mesmo traído, mesmo enganado, mas sempre proprietário das terras de sua alma.

       Bateu o punho fechado contra a mesa, e a porta abriu-se devagar.

       — Posso ter um minutinho de sua atenção, delegado? — perguntou Rita, sorrindo de leve e fingindo não reparar na garrafa de uísque pela metade e o copo vazio.

       A frase “me deixe em paz” escorregou do topo de seu cérebro e parou entre a vontade de dizê-la e a educação ao evitá-la. Apenas meneou a cabeça em afirmativo, vendo a loira entrar sem deixar de fitá-lo, sombra azul nas pálpebras, cílios longos. Definitivamente, Rodrigo detestava maquiagem. Só não sabia o motivo. Indicou-lhe a cadeira à sua frente com um gesto vago de mão e esperou que ela sentasse para fazer o mesmo. Cruzou as mãos sobre a mesa e postou-se como uma autoridade deveria fazê-lo em serviço.

       — Está tudo bem? — os olhos dançaram entre a garrafa e os olhos de Rodrigo.

       — Nada como relaxar após uma diligência na Vila Zumbi. — contornou a intromissão, sem sorrir, alçando a sobrancelha enfatizando a questão.

       Rita sorriu, abriu a bolsa e puxou de dentro uma folha timbrada. Em seguida, adquiriu uma postura ligeiramente solene ao cruzar as pernas, aproximar o corpo da mesa e entregar-lhe o papel.

       — Um dia difícil, imagino.

       — E qual dia é fácil? — perguntou com desinteresse enquanto tornava a guardar a garrafa deitada na gaveta da escrivaninha.

       — Saiba que todos os sacrifícios que o senhor faz pela comunidade de Matarana valem a pena, pois os mataranenses tomam-no como o melhor de todos os delegados que a cidade já teve, um cidadão justo e correto, um exemplo de que as pessoas boas estão aqui. — ela parou e absorveu a atmosfera refrescante no ar; afinal, tinha a atenção completa de Rodrigo que lia a menção honrosa dos comerciantes locais. — Como presidente da associação dos empresários, sinto-me honrada e orgulhosa ao informá-lo de que o senhor é um dos destaques entre as personalidades que serão homenageadas na cerimônia de entrega do troféu Cidadão Mataranense. É uma forma singela de agradecermos pela sua dedicação à terra que acolheu todos os desbravadores brasileiros. O senhor está no coração do nosso povo, delegado.

       Rodrigo esfregou o cavanhaque ralo, decidido a raspá-lo de vez de seu rosto. Endereçou um olhar avaliativo à mulher, ponderando sobre as palavras adocicadas que acabava de ouvir.

       — Obrigado, Rita, apesar de acreditar que não mereço troféu algum. É o meu trabalho e só cumpro com a minha obrigação. Agradeço aos comerciantes a menção, mas não me sinto à vontade para...

       — Por favor, Rodrigo... — ela estendeu a mão e tocou-lhe no antebraço com delicadeza: — Acho que devo ir direto ao ponto. No início do ano, a prefeita homenageou um grupo de pessoas que colaboram para a destruição dos valores morais da nossa sociedade. Todos sabem o que fazem e fingem que nada acontece. E é esse grupo que hoje sustenta o poder político do nosso município. Só os ingênuos não percebem que a cidade está partida ao meio, duas forças ambicionando o controle total de Matarana, e não há como ignorarmos esse fato e nos escondermos na neutralidade. Os comerciantes estão se unindo aos sindicatos de várias categorias com a intenção velada de derrubar o estabelecido, o mal que vinga nessa terra há décadas. Nós escolhemos o nosso lado e queremos o senhor conosco nessa empreitada. — concluiu, incisiva, encarando-o sem desviar.

       — Em outras palavras... — ele não quis terminar a frase, degustava antecipadamente a acidez do que teria que engolir garganta adentro.

       Rita fez uma leve pressão em seu braço e respondeu:

       — Um dos três homenageados colocará na cadeira da prefeitura o seu representante nas próximas eleições.

       — Deixe-me ver se entendi, vocês estão me dando um troféu por que acreditam que eu trabalho para o Dolejal? — perguntou com sarcasmo.

       Ela nem se perturbou.

       — O senhor é incorruptível e correto, por isso o troféu.

       — Certo, certo. — ele sorriu, franzindo o queixo como quem finge que acredita numa inverdade: — Desculpe desapontá-la, mas, sim, prefiro me manter neutro nessa conspiração pelo poder. — debochou; depois, emendou sério: — Minha função é proteger, defender e manter a ordem em Matarana, e não fazer conchavos com grupo A ou B. No momento minha maior preocupação é com a entrada do óxi na cidade, além da possibilidade de haver trabalho escravo nas fazendas do coronel Marau.

       — Então é só o senhor que não vê que já escolheu o seu lado. As drogas, o trabalho escravo, o desaparecimento de pessoas e a apropriação indevida de terras do governo estão diretamente relacionados ao coronel. Por favor, delegado, analise com carinho a possibilidade de nos ajudar a acabarmos com a dinastia Marau.

       Rodrigo decidiu que já estava na hora de encará-la também sem desviar, fazer o seu jogo, rolar os dados para ver a combinação final dos números.

       — O Dolejal está por trás dessa suposta homenagem?

       — Primeiro, é uma homenagem real. — ela enfatizou, franzindo o cenho, como se sentisse ofendida com a desconfiança dele — Houve uma eleição na qual o senhor, o senhor Dolejal e o doutor Cristiano foram escolhidos como as personalidades mais importantes do município. Isso é fato, delegado. Assim, nem mesmo o senhor Dolejal sabe sobre essa homenagem, pois ainda não o falei a respeito. O senhor sabe o quanto ele é, digamos, avesso a aparições públicas... Na verdade, ainda tenho de informá-lo de que o evento será no clube campestre da nossa associação.

       Rita ensaiara um texto bastante solene e crível, pensou Rodrigo, notando o jeito manso e quase infantil do tom de sua voz. Era esse mesmo tom que Jasmine usava para persuadi-lo a fazer as suas vontades. E funcionava.  Entretanto, não naquele momento, não depois do atentado na estrada e da tragédia de separar-se de Karen.

       — Façamos o seguinte, Rita — começou e até conseguiu sorrir, mesmo que fosse um pálido sorriso: — Aceito a homenagem e usarei o meu melhor chapéu para a ocasião. Mas não quero que isso signifique que aderi à sua causa política. Thales Dolejal também está sob a mira da lei.

       Ela recostou-se contra a cadeira e com esse movimento mostrava o decote do vestido e a força do corpo firme contra o tecido. Nos lábios vermelhos a sombra de um sorriso charmoso. Rita gostava de pescar. Tinha paciência de pescador. Jogava a linha e apenas esperava o bichinho ser fisgado no anzol.

       — Negócio fechado, delegado. — afirmou sem deixar de olhá-lo sem desviar.

       Era um convite. Noutros tempos, ele aceitaria para acalmar a alma cheia de solidão e morte. Havia, sim, a solidão. Porém, o vazio que o abatia relacionava-se à vida. E a vontade de acovardar-se e voltar para casa. Por que, diabos, tivera de bater de frente com aquela danada?

         

       Nova endereçou um olhar preocupado a Valéria, que a retribuiu com um sorriso confiante e bateu à porta da sala do irmão.

       Uma mulher vestida para atacar, de pé, apertava a mão do delegado. À sua frente, o caubói sorria levemente, perto demais para ser um simples cumprimento. Era o charme do Clint Eastwood do cerrado, Nova considerou, não gostando nadinha do que via.

       No Maverick, uma fera mordendo o lábio inferior, nervosa, agitada, pronta para usar o tacape e trazer seu homem pelos cabelos de volta para casa. Ver Rita Cupcake em cena, na roupagem de uma predadora sofisticada — diferente de Karen, predadora rústica, provocou-lhe uma irritação instantânea. Nova tinha plena consciência da perturbação erótica que Rodrigo Malverde conscientemente causava nas mulheres. Quase mandara às favas sua idolatria assexuada por Cris quando lhe sentira a coxa entre as suas coxas, no bar do Gringo e, Deus seja louvado!, quase pulara na sua cama ao convite para uma noite de amor, na fatídica ocasião no salão country, antes de Karen ser atacada por Mendes. Naquela mesma época, ele amava Karen e, ainda assim, lançara na atmosfera sua sensualidade aveludada e quente. Era um homem que não precisava fazer muito esforço para bagunçar os pensamentos mais sensatos de uma mulher. Prova disso era que fisgara direitinho a mais durona da cidade.

       E foi por ela que Nova falou com aspereza:

       — Sua mulher está no carro.

       Rodrigo voltou-se para o lugar de onde a voz irrompera e manteve o sorriso charmoso ao ver a amiga ladeada por Val. Por um momento, estreitou os olhos, ao reconhecer que a irmã raramente aparecia na delegacia. Desencostou-se da beirada de sua mesa, mas não se afastou de Rita.

       A loira olhava de um para outro. A menção à palavra “mulher”, dita com tamanha assertividade, soou-lhe como um aviso. Porém, um aviso desnecessário, já que metade da cidade sabia que Karen namorava o delegado; a outra metade ainda acreditava que ela era amante de Dolejal. E os forasteiros nem sabiam que Karen Lisboa existia.

       — Olá, Nova, segundo encontro no mesmo dia? É o meu aniversário? — sorriu, charmoso. Antes que ela respondesse, voltou-se para a irmã: — Agora, quanto a você, não faço a mínima ideia do que a trouxe aqui.

       Valéria Malverde antecipou-se à amiga e respondeu com secura:

       — Um Maverick me trouxe até aqui. Isso revela muita coisa, não é, maninho? — enfatizou, erguendo as sobrancelhas. — Temos de conversar sobre o jantar de noivado da Nova. — mentiu.

       — Pois, é, Rodrigo, me esqueci de convidá-los. — acentuou a mentira, desconcertada.

       O delegado olhou de uma para outra de forma avaliativa. Era evidente que o Maverick era a palavra chave que determinava a presença de duas das Três Mosqueteiras Tresloucadas.

       Rita deu um passo à frente, pôs a mão no antebraço de Rodrigo de um jeito que as pessoas em início de relacionamento o faziam, uma intimidade sem naturalidade, e disse:

       — Bom, já cumpri minha missão e agradeço por ter-me recebido. A gente se vê então mais tarde. — sorriu, exibindo uma fileira de dentes brancos, retos, lixados por uma infância sem doces e com assistência odontológica particular.

       Antes de sair, a doceira e microempresária endereçou sorrisos amigáveis às mulheres que não viam com bons olhos a sua presença ali, em reduto alheio.

       — É a Karen que está ao volante do Maverick? — perguntou ele à irmã, uma expressão desconfiada vagueava pelos olhos castanhos quase cor de mel.

       — Ela só nos deu carona, a gente queria mesmo falar com você. É um absurdo essa separação!

       Nova aproveitou o ligeiro aturdimento que sombreou a face do delegado e entrou em cena no melhor estilo, direta e venenosa:

       — Vai entregá-la de bandeja ao Dolejal? O Franco me contou que ele despachou a noivinha texana de volta para casa, porque estava cansado de beber água mineral sem gás. — ela parou, sorriu sem jeito, e continuou: — Bem, foi assim que o Franco falou. Parece que o Dolejal quer voltar a beber uísque puro sem gelo. E isso revela o que todos nós já sabemos, o ex da Karen está em abstinência, digamos, etílica, desde que você e ela se juntaram, e fará de tudo para tê-la de volta. Ele precisa de uma mulher forte, é da natureza dele, Rodrigo. E você precisa se moldar à natureza forte da Karen, tem de parar de tentar mudá-la tentando transformá-la em uma... sei lá... em uma Rita, por exemplo. Deixe-a viver com liberdade, é assim que vivo com Franco. Ele é tão livre que está sempre comigo. — concluiu, sorrindo com doçura. Queria muito que a parceria Lisboa e Malverde desse certo.

       Ele tornou a se sentar na beirada da mesa, os ombros encurvados, a postura de um homem cansado. Esfregou as mãos no rosto e depois fitou Nova:

       — Preciso de um pouco de tranquilidade. — afirmou baixinho.

       — O que está acontecendo, além disso com a Karen? — perguntou a irmã, preocupada.

       Ele não contaria sobre o atentado na estrada.

       — Muito trabalho e pouco efetivo. Já estávamos defasados e, agora, com o Lucas doente... Daqui a algumas semanas, ele retornará ao trabalho, e eu poderei tirar a minha folga semanal. Por enquanto, preciso ficar quieto num canto. Vocês sabem que não sou um camarada irresponsável ou impulsivo. Sei que corro riscos, claro que sei, sou um delegado de polícia, porra. — tentou brincar, no entanto, o rosto tornou a desvanecer. — Há pouco eu também estava ingerindo o meu uísque sem gelo e o achei até doce demais. É o diabo ficar sem a Karen...

       — Conversa com ela um tantinho só. — sugeriu Nova.

       — Vou chamá-la. — anunciou Valéria, solícita, encaminhando-se para fora da sala.

       — Não, Val! Já falei tudo o que tinha para falar. Se querem ajudar, mantenham-na longe das corridas, porque vou acabar com elas e prenderei todos os envolvidos, inclusive a amiga de vocês. — determinou.

       — O pai sempre disse que você era um cabeça dura. — reclamou Val.

       — Ponderação e bom senso fazem bem à saúde, Val. O melhor que vocês têm a fazer é conversar de forma madura com aquela menina crescida que acredita que o mundo gira ao redor do seu umbigo. O que está acontecendo em Matarana é muito mais importante que um mero relacionamento afetivo. Sinto muito decepcioná-las, mas eu não sou o príncipe encantado. — declarou com dureza. — Fiz o que podia; quem faltou com a sua parte foi ela. E se eu quiser me envolver com a Rita ou qualquer outra da cidade o farei, já que não foram duas ou três vezes que tive meu pedido de casamento negado. Talvez ela esteja esperando o pedido de casamento do Thales.

       — Jamais encontrará uma mulher como ela. — declarou Valéria.

       — Nem tudo na Karen me agrada, Val. — assegurou, expressando cansado.

       — Ainda assim ela é melhor que a maioria. — reforçou Nova, acariciando a barriga.

       — Mas eu não sou. — rebateu com pesar.

 

       Vinte minutos. Dentro de um automóvel, fumando e esperando tudo voltar a ser como antes. Encaixado. Definido. Acordar, viver e dormir. Um pouco de estabilidade não matava ninguém. Até mesmo para manter uma rotina precisava-se de certo talento. Talvez fosse isso que lhe faltava — conjecturava Karen tamborilando os dedos no volante esportivo, talento para conviver com as pequenas e delicadas besteiras do cotidiano. Acomodar-se, enfim. Deixar de ser quem era, por exemplo. Sim, a arte de assumir outra personalidade. Tal atitude era tão comum entre as mulheres, quantas militares se tornavam gueixas... Ou doceiras, vagabundas. E foi uma vadia loira que chamou a sua atenção.

       Abriu o porta-luvas e pegou a carteira de cigarros. Não pôde deixar de achar graça do tamanho da bolsa de Nova, deitada sobre o banco do passageiro, parecia um bunker portátil. Acendeu o cigarro com o isqueiro e tragou fundo um dos seus vícios. A fumaça subiu e dissolveu-se, revelando a inimiga que se afastava lentamente de onde não deveria ter saído.

       — Nem pense! — ouviu a voz tabagista e áspera atrás de si. — Já se rebaixou demais mandando o Batman e o Robin chamar o Superman de volta. Chega de se humilhar, filha.

       Uma convulsão de sentimentos e sensações. A ladra atravessava a rua balançando o rabo debaixo do vestido de verão. Endereçou um rápido olhar para trás e viu a mãe de sua mãe, a mãe órfã de filha, o olhar sem brilho, a ruga entre as sobrancelhas que jamais se desmanchava. A mulher de quase 70 anos, enterrara tanto de si debaixo da terra que lhe era difícil encontrar algo mais triste que o desaparecimento para sempre. Mas Karen era adolescente quando a morte a pegara pelos ombros e a sacudira, tivera tempo para se recuperar e se refazer. E, para ela, a morte estava em cada parte da vida que lhe era roubada.

       — Por que eu sempre perco, vó? — perguntou com a voz embargada.

       — A vida é uma merda, só isso, não pense que é a preferida de Deus. — resmungou, estalando a língua contra o palato e tornando a tragar fundo o cigarro. — E deixa a Rita em paz. Ela é uma burrinha procurando um lugar ao sol cancerígeno de Matarana. — deu de ombros e declarou com indiferença: — Este é o problema quando as putas querem se passar por santas, ficam deslocadas.

       Ao voltar-se, Rita era uma mancha borrada ao longe. À sua frente, Nova e Valéria de mãos vazias e desacompanhadas. Nada havia para ser dito que não fossem olhares de cumplicidade. A mais baixa tentou esboçar um sorriso, algo parecido com um sorriso ou uma lágrima interrompida que se esculpira no canto dos lábios. Um trejeito estranho o de Nova, caminhando devagar, o olhar esgazeado.

       E, de repente, Karen entendeu tudo. Saiu do carro e entendeu tudo. Como um portal da inteligência suprema que revelava todas as merdas da existência. Como quando o pugilista sente o peso do dente sobre a língua antes da lona na cara. Como quando se aspirava o cheiro do paraíso antes do tiro entre os olhos. Como quando se descobria o amor antes de entender que ele era assim e pronto. Elas eram apenas mulheres, diabo!, não esfinges ou messias anunciando uma nova era.

       Valéria balançou a cabeça devagar, o gesto de quem anunciava que perdera um punhado de ações na Bolsa. Mas foi Nova quem falou, pois ela era boa com as palavras e estava acostumada a acalmar pessoas que caminhavam centímetros acima do solo:

       — Ele precisa de um tempo, sei que é clichê, mas é verdade. Karen, olha para mim. — pediu, aproximando-se com cuidado, temendo que a qualquer momento a amiga disparasse em direção à delegacia e atacasse o delegado. — Espera um pouquinho, querida, um pouquinho só. Tenho certeza de que ele sentirá tanta falta de você que...

       — Vai me procurar e pedir para voltar? — indagou Karen com um sorriso amargo.

       — Isso não importa. — interrompeu Valéria, percebendo que vó Ninita saía do carro e se posicionava atrás da neta, pronta para tentar segurá-la.

       De Karen eram sempre esperados fúria e tornados.

       O comércio começava a fechar as portas e a avenida principal do centro da cidade esvaziava-se de gente. O trânsito calmo fluía com naturalidade. Paz debaixo do céu estupidamente estrelado. Uma noite perfeita, arejada, amena.

       — Estou bem. — ela murmurou.

       Não foi na corrida de cavalos ou numa briga que Karen Lisboa caiu de joelhos. A fortaleza enfim desmoronou. Grossos grãos de terra penetraram pelo tecido gasto do jeans e machucaram-lhe os joelhos. Os ossos de suas rótulas se chocaram contra o solo que também pertencera aos seus antepassados. Uma terra dura e cruel que não cedeu ao receber o seu corpo, a sua dor de fracassada, de quem tentava se erguer o tempo inteiro e tornava a cair. Um movimento que estirava os músculos e também desgastava a textura da seda de sua alma.  E ela chorou como nunca havia chorado, cuspindo lágrima e saliva. Os ombros se sacudiam acompanhando os soluços e os ruídos escabrosos da dor.

       Valéria deu dois ou três passos para juntá-la do chão. Interrompeu-se ao perceber que Nova se encurvava a fim de catar uma pedra. Em frente a sua confeitaria, Rita aguardava o desenrolar da cena. Rapidamente a irmã do delegado captou a intenção da mulher que ajeitava a pedra na mão para atirar contra a microempresária. Girou nos calcanhares e agarrou Nova pela cintura, contendo-a a tempo de impedi-la de dar uma pedrada na outra.

       — Pelo amor de Deus, Nova!, não piora a situação!

       — Mato aquela vadia! — gritou ela, furiosa.

       Valéria, ainda segurando a mulher de Franco, endereçou um olhar desconfiado para a doceira. Podia até estar enganada, mas era possível que ela sorria. O motivo da ira de Nova justificava-se. Mas Val estava determinada a manter Nova Monteiro longe de confusão. Se algo acontecesse àquela mulher, das trevas um diabo se ergueria para acabar com a raça de quem fosse.  Suspirou aliviada quando vó Ninita confiscou-lhe a pedra.

       — Uma hora dessas a gente senta o laço nela, mas não agora. — afirmou, sabiamente, a idosa.

       — Ainda mais grávida, não vai aproveitar nadinha. — considerou Val com um sorriso nervoso

       — O problema não é a Rita. — afirmou Karen.

       Bastou apenas espanar a poeira do jeans e juntar o chapéu do chão. Engoliu as lágrimas, digeriu-as no estômago misturando com o suco gástrico. Era essa a verdadeira fórmula do sucesso. E quando regurgitou a nova substância — mesmo rejeição, frustração e perda, regurgitado o sofrimento, o choro se transformou em ação. Enquanto descia todos os degraus até chegar ao fosso, nessa viagem psicótica, descobriu que o problema nunca fora Rita.

       Era Thales.

 

       Adele bateu à porta da sala do delegado e entrou. 

       — Conseguiu o mandado? — perguntou ele, erguendo a cabeça da papelada à sua mesa.

       — O juiz de Santa Fé está preso.

       Rodrigo franziu o cenho intrigado:

       — Que merda!, o que ele fez?

       — Foi esquiar, e uma avalanche prendeu todo mundo no Chile. — respondeu a escrivã, sentando-se pesadamente na cadeira onde até poucos minutos atrás Rita sentara.

       — Custa-lhe muito falar tudo de uma vez, Adele? — indagou ligeiramente exasperado. — Preciso logo desse mandado antes que o Marau suma com a camionete.

       Ela se ajeitou na cadeira, não queria amarrotar a saia que usava pouco acima das botas de couro.

       — O senhor tem certeza de que era o pessoal do Marau? Digo isso em função do punhado de gente que quer comer o seu, com todo o respeito, fígado.

       — É por isso que preciso do mandado, para entrar na Coração de Ouro e ter certeza de que era o pessoal do Marau. — afirmou, impaciente, voltando-se aos papéis que exigiam a sua atenção e assinatura.

       — Chefe...

       — Não quero ser grosso, Adele...

       — Então, não o seja, chefe. Acontece que tem uma mulherada lá na rua gritando e se eu tiver de ir ver o que está acontecendo, talvez venha com a sua mulher ou a sua irmã detidas. E, aí, continuo ignorando o tumulto?

       Ele suspirou profundamente e perguntou com ar cansado:

       — O que está acontecendo?

       Valéria praticamente materializou-se no corredor, sendo seguida por Nova e vó Ninita. À medida que elas avançavam em direção à sua sala, Rodrigo erguia-se da cadeira. Adele pensou que ele se aprontava para correr e trancar a porta antes de elas entrarem. Contudo, era apenas um movimento automático, já que a expressão facial de cada uma revelava o mesmo sentimento, preocupação.

       — A Karen vai tentar matar de novo o Dolejal!

       A escrivã pulou da cadeira, esperando pela ordem do delegado. Já se via na viatura sendo seguida pelos policiais militares, avançando na estrada e adentrando a Arco Verde.

       — Chamarei reforços, chefe, deixa comigo!

       — Adele, por favor, volte ao trabalho... na sua mesa. — afirmou o delegado, indicando a porta de saída à policial.

       — Não, Adele, chama a Polícia Federal também. — pediu Valéria — Precisamos impedi-la de se tornar uma assassina! Rodrigo, faça alguma coisa, cacete!

       — A PF não tem nada a ver com isso. — corrigiu Adele, acrescentando uma risadinha maldosa à sentença: — Nesse caso, o reforço seria a ambulância do hospital psiquiátrico de Santa Fé. — ela se voltou para o delegado e falou: — Desculpe, mas uma boa internação acalmaria os ânimos da sua mulher.

       — Ela não é minha mulher. — afirmou secamente e, virando-se para Val, completou: — Estou trabalhando. Acho que ainda não percebeu que aqui é uma delegacia de polícia.

       — Pois é, você é um policial, deveria defender os cidadãos. — disse Nova, ressentida.

       — Sim, claro... — Rodrigo fez um sinal de contenção com a mão para Nova, pegou o fone, digitou uns números e, enquanto o fazia, perguntou: — Por que acham que ela vai tentar matar o Dolejal? — havia mais curiosidade do que interesse ou preocupação na pergunta.

       — Porque, para a Karen, ele é culpado de tudo, até de ela ter nascido com perereca. — respondeu a avó.

       Valéria endereçou-lhe um olhar zangado e voltou-se para o irmão.

       — Ela viu a Rita sair daqui e ficou puta, vai descontar tudo no Dolejal.

       Rodrigo lançou um olhar para Adele, que estava vermelha por segurar as gargalhadas, o lance da perereca abalara o seu profissionalismo e ela só queria rolar no chão de tanto rir. Não teve tempo de mandar a escrivã de volta para a sua mesa. Do outro lado da linha, Irene o atendeu:

       — Boa noite, Irene. Chama o Dolejal, por favor.

       — Sim, senhor Rodrigo. — assentiu com polidez a governanta.

       Nova tocou-lhe o antebraço e disse baixinho:

       — Ela está armada.

       — Não, não está. — tranquilizou-a Rodrigo — Eu já a desarmei, mesmo que fosse um mero estilete, mas nas mãos da Karen até algodão doce é perigoso. — vendo-a baixar a cabeça, constrangida, ele desconfiou: — O que foi? Você deu uma arma para ela, Nova?

       — Na verdade, sempre carrego comigo uma automática. É por causa do Everaldo, o Franco me ensinou a usá-la e não me deixa sair de casa sem ela.

       Valéria aproximou-se dos dois e se interpôs, curiosa e alarmada:

       — E onde está a porra dessa arma?

       — Na minha bolsa.

       — Que foi esquecida no carro, não é? — adiantou-se Rodrigo com a mão no bucal do fone.

       Nova assentiu balançando a cabeça em afirmativo. Ao que Val suspirou, alto, apavorada:

       — Agora fodeu de vez!

       — Em vez de telefonar, pega a picape e corre pra lá! — pediu Nova com os olhos arregalados.

       — Entre a guarita da Arco verde e o Dolejal há pelo menos vinte pistoleiros para desarmá-la — disse ele com bastante calma.

       — Meu Deus, está preocupado com o Dolejal? — perguntou a irmã, revoltada.

       Rodrigo apenas esboçou um sorriso sem graça.

       — Será que terei de pedir ao Franco? Quem vai protegê-la? — indagou Nova, com rispidez.

       O delegado contraiu o lábio num esgar de amargura e respondeu secamente:

       — O pai do Franco.

         

       — O que fez para irritá-la?  Hoje quando nos encontramos ela estava muito bem. Não sei o que ganha pondo-a contra mim.

       — O recado está dado. — afirmou o delegado com mau humor.

       — Entendi, está bancando o escoteiro e me avisando sobre mais uma invasão daquela que se diz sua... — ele parou por um momento sorvendo o prazer de acrescentar: — amiga íntima ou menos que isso.

       Rodrigo ignorou a acidez do comentário. Já devia ter se acostumado ao seu tom arrogante e superior. Ter se acostumado? Não, não devia.

       — Preste bem atenção no que vou dizer, — começou com rispidez, do jeito que falava com os meliantes: — mantenha seus homens longe da Karen. Se alguém tocar em um milímetro de pele dela, eu mando direto para uma cela e deixo apodrecer. Estamos entendidos?

       Era possível que tivesse escutado uma risada baixa e áspera.

       — O gado só está voltando para o seu rebanho. Não precisa ficar histérico. — afirmou com estudada ironia.

       E desligou.

       Bronson espalitava os dentes, escorado na amurada do alpendre, na casa-sede da Arco Verde. O rosto riscado de rugas demonstrava a satisfação de um estômago cheio. Ele retornava do refeitório da fazenda onde os funcionários foram presenteados com um belo pernil assado.

       — Receberemos visita.

       Voltou-se ao ouvir a voz do patrão. A expressão circunspecta não revelava pista alguma sobre os próximos eventos. Por outro lado, o pistoleiro conhecia muito bem aquele tipo de brilho em seu olhar, era o brilho do veneno. E a única pessoa que o envenenara possivelmente relacionava-se à visita.

       — Reforçarei a segurança. — afirmou, levando a mão ao radiocomunicador no cós do jeans.

       — Não, meu caro Bronson, quero que faça exatamente o contrário. — o dono de quase toda a região endireitou os ombros e postou-se com a altivez que lhe era peculiar: — A senhorita Lisboa não deve ser barrada nem revistada. — sem perder tempo voltou-se para Virgínia e recomendou: — E isso vale para você também.

       Deslocando com a língua o palito para outro canto da boca, Bronson interpelou-o de modo grave e quase solene:

       — Mas a dona Karen não está vindo para tentar matar o senhor outra vez?

       A morena mexeu-se na cadeira, no canto mais escuro do alpendre, onde podia ver tudo sem ser vista. Recurso estratégico muito usado por Deus.

       — Não permitirei que ela se aproxime do patrão. — determinou a segurança.

       Bronson olhou-a de esguelha e sorriu.

       Thales compreendeu o sorrisinho do seu chefe da segurança, era mágico, uma silenciosa conexão e tudo estava dito. Falou com frieza para a pistoleira:

       — Não seja idiota de se meter entre mim e a Karen.

       — Desculpe, patrão, mas se ela estiver armada? — a mulher insistiu.

       Ele ergueu uma sobrancelha, espantado com a pergunta, e retrucou:

       — Aí está a diversão, Virgínia.

 

       O V8 roncou forte e as rodas esmagaram a terra batida da estrada. O rock vibrava no toca-fitas estufando os alto-falantes enquanto a noite entrava pelas janelas abertas. Ao alcançar o caminho de acesso a casa-sede da Arco Verde, Karen reduziu a velocidade, preparando-se para negociar sua entrada com quem estivesse na guarita.

       Passou por baixo do arco de entrada, deslizando por entre a porteira escancarada, sem nenhuma vigilância. Esperou pela aparição dos pistoleiros. Dos arbustos, surgiram apenas dois cães molengas e sonolentos; bem perto, os latidos dos ferozes, provavelmente, presos no canil.

       Estacionou em frente à escadaria que alcançava a varanda coberta; em seguida, a porta dupla da construção de três andares. Da outra vez, o diabo loiro aportara com sua pose de roqueiro psicopata. Da outra vez, ela estava armada e bêbada e a derrubaram no chão. Rodrigo salvara-a, da outra vez.

       Subiu os degraus devagar, olhando ao redor, intrigada. Era como se a fazenda tivesse sido desocupada às pressas. Suspeitou, por uma fração de segundos, que os capangas de Thales dariam o bote a qualquer momento. Mas não aconteceu o esperado, e ela continuou a subir a escada, até parar diante da porta.

       A intenção de tocar a campainha foi tão ridícula quanto cômica, uma vez que precisava tirar a limpo o que trazia dentro do peito. Preferiu bater contra a madeira pintada de branco. Surpresa, a mão em suspenso, uma nesga de claridade vacilante desmanchou-se aos seus pés. Afastou a porta com cuidado, a respiração presa nos pulmões, a expectativa de adentrar o covil da fera. O lugar mais protegido da região, a fortaleza do homem que fazia as coisas acontecerem. E tudo assim, aberto, vazio, à sua mercê. Caso fosse uma armadilha, Karen não se preocupava em ser pega. Ela era cobra criada de Matarana e se safava de qualquer tipo de tentativa de captura.

       A sala ampla e decorada com móveis sofisticados imersa nas luzes pálidas dos diversos abajures de pé. As paredes envidraçadas, protegidas pelas cortinas drapeadas em seda, camuflavam uma figura humana aqui e ali, esgueirando-se, sem se aproximar. Eram os seguranças à espreita. Os cães que não latiam mas que comiam na mão do seu dono. E, para chegar até ele, teria de subir até alcançar o topo da escadaria e seguir pelo longo corredor até a suíte principal.

       Ela entrou devagar na suíte onde apenas uma vez, a última, eles dormiram juntos. Móveis modernos em aço e vidro. Quadros com pinturas abstratas e molduras modernas. Ao lado da janela do terraço, o closet.

       Karen sentiu uma compressão na boca do estômago ao se pôr diante da cama com dossel. O tecido fino caindo sobre a estrutura de madeira imitando uma tenda árabe acima da colcha clara e almofadas largadas despojadamente. Aproximou-se com cuidado, como uma criminosa retornando ao local do crime. Sentou-se na beirada do móvel e, por um momento, não sabia bem o que fazia ao se sentar ali. Deslizou a mão por sobre a textura macia da colcha, afagando uma lembrança, mesmo lutando para esquecê-la. Fora apenas uma noite, uma única noite, deitados debaixo de um céu de renda, nus, colados pele na pele, o som da respiração ofegante e das perguntas não feitas. Ocorrera um crime naquele lugar tão bonito. Thales, minutos antes, informara que ela havia sido trocada por outra, dispensada E os dez anos em quartos de hotéis substituídos por um noivado de conveniência.

       E agora era Rodrigo que a deixava.

       O barulho do chuveiro atraiu a sua atenção e ela abandonou a amargura e a profunda tristeza, tinha algo para fazer.

       Saiu do quarto onde se podia guardar três Mavericks e avançou em direção ao som da água. Entrou no banheiro e viu-o através do boxe de vidro. Um resto de espuma do xampu deslizava-lhe pela parte detrás da cabeça, pescoço, ombros e lhe roçava quadril, traseiro, coxas até sumir ralo adentro. Karen acompanhou a odisseia das delicadas bolhas escorregando e lambendo aquele que um dia lhe mostrara o raro azul do céu de Matarana e a empurrara direto para o inferno, onde ainda vivia.

       No canto do cômodo, três degraus levavam à banheira de hidromassagem ladeada por duas poltronas. Tudo era ostensivo naquele lugar, não apenas quem subira cada alicerce do casarão. Até mesmo a pistola automática deitada sobre a pia dupla. Dividindo espaço com os acessórios de higiene, a arma jazia bem próxima daquele que jamais andava armado.

       Sentiu uma quentura na nuca e se voltou. Thales observava-a, sério, enquanto a água teimava em lhe escorrer no rosto, pesando sobre os cílios espessos, avermelhando as órbitas oculares, encharcando o cabelo curto e todo o terreno feito de carne e músculos.

       Ela desviou os seus olhos dos dele e fitou a arma. O quebra-cabeça se montava em slow motion. Todas as entradas da fazenda escancaradas à sua espera, e ele, nu e desprotegido, oferecendo-lhe o meio para acabar com tudo. Evidentemente, Rodrigo avisara-o sobre a sua chegada. E, então, aí estava a tal da emboscada. O fazendeiro deixara o caminho livre para que ela cumprisse as ameaças de morte que tanto fizera. Desafiava-a a apertar o gatilho para pelo menos feri-lo, tirar um pouco do seu sangue e expô-lo à dor física, subjugá-lo ou humilhá-lo, pondo-o de joelhos. Thales estava propiciando-lhe a chance de ser superior a ele e ao ódio que sentia por precisar odiá-lo para viver. Prova que me odeia, Karen — o brilho de prazer dos seus olhos a incitava. Porém, ela fez o que o seu ex-amante jamais cogitaria que fizesse.

       —Trago uma excelente notícia para você. — falou baixinho, sem conseguir encará-lo, seus olhos fitavam a arma sobre o balcão.

       — Imagino sobre o que seja. — começou ele, sem mexer um músculo sequer, absorvido pela presença sempre impetuosa mas que, estranhamente, mostrava-se prostrada quase vencida. — A vida seguiu o seu curso natural, Karen. E também chegou a hora de cumprir as suas constantes ameaças. — afirmou, por fim, resoluto.

       Ela sorriu com tristeza, perdera boa parte da energia em frente à delegacia de polícia.  Diante de Thales, restava-lhe apenas se manter de pé. Os joelhos ainda ardiam e a poeira se grudara no jeans surrado.

       — Não vim machucá-lo. — disse, lançando um rápido olhar para a Glock.

       Thales imitou-lhe o gesto e se voltou sorrindo:

       — Deixei aqui caso tivesse esquecido o seu .38. Você precisava de uma arma, não?  Sinceramente esperava que não quisesse atirar em mim, porque sei que coragem não lhe falta.

       — Um homem normal se protegeria... — considerou, aturdida.

       — Quero que tenha a chance de enfrentar os seus demônios.

       — Mas é um só.

       Ele riu um riso rápido e áspero.

       — Pois é, Karen, talvez eu valha por muitos demônios. — em seguida, girou o registro do chuveiro e, pegando uma toalha de banho com suas iniciais bordadas, secou-se com lentidão, concentrado novamente nela: — Se não veio me matar, o que está fazendo aqui?

       — Vim me despedir, decidi ir embora de Matarana.

       A caminho da Arco Verde a ideia de recomeçar em outro lugar criara corpo. Se Matarana era pequena demais para ela e Thales, agora, sem Rodrigo, reduzira-se ainda mais. Cuidar para não esbarrar em dois homens tão importantes na cidade era uma tarefa complicada. Ela não sabia como lidar com duas perdas recentes, dois abandonos doloridos.

       — Eu não sou o Rodrigo, — declarou olhando-a nos olhos, a toalha ao redor da cintura, a expressão carrancuda: — não tente me manipular. Tivemos uma conversa franca hoje à tarde, pelo menos, eu fui sincero. E me  lembro de você falar algo como o delegado ser o seu quase marido ou qualquer merda parecida. Então não entendo por que veio até aqui, a essa hora da noite, para me dizer que partirá. É mais um dos seus joguinhos. — afirmou sem deixar de encará-la.

       — Tem razão, vim para esbofeteá-lo por ser um desgraçado e ferrar a minha vida. Como se não bastasse esses malditos anos sendo usada como válvula de escape para os seus traumas, ainda continua infernizando a minha cabeça e me afastando do melhor homem que tive em toda a minha merda de vida. — parou e engoliu as lágrimas. Por certo, ele debocharia de seu choro. Respirou fundo tentando se conter: — Sabe o que eu deveria fazer? Seguir a sua sugestão, pegar aquela porra de arma e meter uma bala entre os seus olhos. Seu maldito filho da puta! Não tenho culpa que os teus pais se foderam na estrada, que teu avô arrancou pedaços das tuas costas de tanta porrada ou se teve um filho com uma meretriz e que ele seja doente da cabeça. — destilou tudo mantendo a voz baixa e pausada: — Você não é superior a ninguém, é só um infeliz endinheirado, um cafajeste com o coração de pedra.

       — Faça o que está destinada a fazer. Se quiser me tirar de sua vida e de suas veias é só me matar, Karen. — insistiu, um sorriso no canto dos lábios.

       Com apenas dois passos, Thales pegou a Glock e a entregou.

       — Está tudo planejado, não se preocupe. — falou como um professor à aluna: — Na primeira gaveta do criado-mudo tem um papel com a combinação de um dos meus cofres, o que fica na parede do closet. Dentro, tem dinheiro o suficiente para recomeçar fora do país. Sim, terá de sair do país com a sua família. Mas também pensei nisso. — sorriu levemente. — O meu avião decolará da pista da fazenda, deixando-a direto na fazenda de um amigo meu na Bolívia. Percebeu, Karen, a sutileza do meu plano? Você se libertará totalmente de mim. A única coisa que tem a fazer é puxar o gatilho. — completou falando baixinho, o olhar cravado nela, revirando-a por dentro. — Chega de ameaças vazias. Porque se não atirar e deixar de concretizar enfim o desejo de me arrancar de sua vida, bem, me desculpe, minha querida, mas terei de acreditar que é completamente apaixonada por mim. — concluiu com um sorrisinho insolente.

       Ele fez tudo certinho, tudo o que ela mais detestava nele.

       Apontou a Glock firmando o pulso de modo a não errar o alvo. O braço estendido e a mão firme.

       — Se realmente não me ama, atira. — insistiu na provocação, o timbre de voz arrastado numa ironia tomada pelo enfado. — Por acaso sabe usar uma automática?

       O estampido seco ecoou pelo ambiente como resposta.

         

       Karen ainda segurava firme a automática, mesmo que não sorrisse mais ou que sentisse o prazer de antes, de quando apertara o gatilho. Agora o prazer era outro; talvez o de sempre, atingir Thales. Era sempre prazeroso vê-lo padecer um pouquinho que fosse só para calibrar o moral. Apesar de saber o quanto o homem que ela gostava de fazer sofrer, sofrera no passado. É, realmente, ninguém entendia as mulheres, pensou Karen com escárnio.

       A palidez instantânea destacou o azul dos seus olhos, normalmente, claríssimo, quase branco e o escureceu. Era visível que não esperava que ela fosse atirar. A expressão surpresa parecia congelada para sempre. Sem ação, sem palavra, Thales apenas mantinha um olhar incrédulo sobre Karen. Aos poucos, no entanto, todos os matizes das emoções mais densas surgiram-lhe com sombrias luzes. A decepção, a perplexidade e algo mais, bruto, fossilizado, irromperam e transformaram-lhe a face. As sobrancelhas juntaram-se, os maxilares se retesaram até forçarem a pele e a boca endureceu numa expressão não mais de desdém ou presunção; numa expressão de desolação.

       Ele não esperava que ela puxasse o gatilho.

       — Quem disse que amo você, pretensioso de merda?  Acho que tem um ego aí bloqueando os teus ouvidos. Já cansei de dizer que te odeio. — afirmou com petulância.

       Thales fitou a Glock que lhe era devolvida.

       — Fique com ela, combina com seus olhos. — murmurou.

       — Acha que não te conheço?

       O tom ríspido da pergunta o fez encará-la, desconfiado. Karen sorriu enquanto depositava a arma de volta sobre o balcão da pia.

       — Você está no grupo dos homicidas, que destrói, subjuga, mata; não dos suicidas, jamais se colocaria na linha de fogo. Eu sabia que não estava carregada.

       Ele esboçou um sorriso que esperava por uma resposta para aparecer de todo.

       — Você sabia. — constatou.

       Karen fez que sim com um gesto de cabeça.

       — Tem razão, eu não te odeio, essa fase já passou. Deixei de odiá-lo quando me apaixonei pelo Rodrigo. O que sinto agora é ressentimento, talvez até orgulho ferido. E foi isso que vim fazer aqui, pôr um fim na nossa história. O susto que levei hoje me fez abrir os olhos. Não desejo nada de mal nem de bom para você, só quero viver minha vida. Sempre foi isso que quis! — concluiu, torcendo o lábio com amargura.

       — Pouco me importa o que quer. — afirmou com desdém, adiantando-se a completar rapidamente o espaço entre os dois.

       Com um movimento ágil, ele enganchou o braço detrás do pescoço dela, puxando-a pela nuca. Sem chance de evitar a colisão, Karen teve os lábios cobertos por uma boca esfomeada e rude.  Tudo nele era feito de poder e violência, até o beijo que exigia a posse total de sua língua e lábios enquanto dois braços serviam-se como correntes ao redor do seu corpo, trazendo-a para si, contra a estrutura vigorosa coberta apenas pela toalha. Os pontos da barba por fazer arranharam-na e, ao mesmo tempo, talharam na sua pele as marcas impregnadas pela mistura de odores de sabonete e xampu. Tentou safar-se, mas o pouco espaço entre ambos a impedia de usar as mãos para afastá-lo.  Quase sem ar, cogitou que estivesse sendo violentada, pois aquele beijo não era uma carícia; era um estupro.

       Desesperada e no limite da resistência, percebeu que seus braços erguiam-se e se aproximavam para abraçá-lo. Não! — uma voz se elevou dentro de si. Não!, por favor, não! As palmas das mãos sentiram a maciez da pele morna e seca, marcada pela aspereza sinuosa das cicatrizes, diversas, grossas, finas, serpenteando-lhe o dorso. A voz continuou quase rouca insistindo enlouquecida: Não... Abraçou-o, enfim, apertou-o, juntou-se a ele e se permitiu senti-lo, possuí-lo, matar a saudade, extravasar o que havia tanto tempo se acumulara, sede, fome, falta. Manteve os olhos fechados para não ver que se rendia ao inimigo. Até que descobriu que a liberdade que julgara possuir era uma ilusão. Correspondeu ao beijo com paixão, buscando-o contra a boca, mordendo-lhe o lábio inferior para, insinuante, apropriar-se de sua língua. Inflamada de desejo, lambeu o queixo com o viciante gosto de sua pele na aspereza dos pontos da barba por fazer.

       Era tudo o que ele precisava para perder o controle e deixar para trás o orgulho. Incitou um movimento para pegá-la no colo e jogá-la na cama. A cabeça girando mil voltas, entorpecido, duro. Afastou-se o suficiente para apenas, com um gesto rápido e forte, rasgar a camiseta dela ao meio e enfiar a mão por dentro de um dos bojos do sutiã.

       — Me perdoa... — ouviu-a sussurrar. — Não posso, Thales. Que tipo de mulher faz amor com um homem pela manhã e com outro à noite? — indagou, consternada consigo mesma.

       A intenção não era a de atingi-lo, chamando Rodrigo para entre os dois e mencionando o fato do sexo recente. Ergueu a cabeça devagar, incerta sobre a reação deflagrada.

       — Você é livre, Karen. — falou, fitando-a intensamente: — Todos somos livres.

       — Se não há comprometimento com alguns princípios, poucos que sejam, não presta para nada a liberdade.

       Thales suspirou pesadamente

       — Certo, filósofa de botequim. Então sejamos realistas, — começou, inclinando a cabeça para o lado, olhando-a com um irônico desafio, um sorriso forçado no canto da boca: — se o sexo da manhã foi tão importante ao ponto de fazê-la se sentir culpada...

       — Por que estou com você? É isso? — ela o interrompeu, recuperando-se rapidamente: — Essa é moleza de responder, meu querido, o Rodrigo não me quer mais.

       O fazendeiro sorriu um sorriso sedutoramente mau.

       — Mas eu a quero, Karen, tudo, cada maldita qualidade, cada delicioso defeito, debaixo de mim, agora.

       Desviou o olhar, consciente da força que Thales exercia sobre si e da sua própria fraqueza. Encontrou sua camiseta no chão, rasgada. Voltou-se para ele com determinação:

       — Ainda é cedo. Quando eu estiver pronta, você será o primeiro a saber. Antes disso, mantenha-se no seu lugar. — repetiu o que fez Rodrigo arrumar as malas e partir. Observou o efeito sobre Thales.

       — Qual é o meu lugar? — perguntou sarcástico.

       — Bem inferior a mim. — ergueu o nariz em desafio.

       Ele pegou-lhe uma mecha do cabelo com delicadeza. Um frágil e enigmático sorriso acrescentou-se à sentença:

       — Quando tiver coragem de voltar, estarei aqui à sua espera... no meu lugar — enfatizou, em seguida, suspirou profundamente e comentou fingindo naturalidade: — Bem, se mais uma vez não vamos pra cama, tenho de tomar outro banho.

       Abraçando o próprio corpo, sem jeito, já que estava apenas de jeans e sutiã, ela perguntou:

       — Como voltarei para casa sem parte da roupa?

       Debaixo da ducha fria, de costas, apoiando o corpo encurvado contra a parede de azulejos e deixando o jato de água escorrer-lhe pela nuca e costas, ele respondeu sem se voltar:

       —Veja nas minhas roupas se tem algo para você. Pedirei ao Bronson para escoltá-la até sua casa.

       — Voltarei sozinha, obrigada. — declarou resoluta.

       — Pro inferno que voltará sozinha.

       Ela saiu do banheiro antes de se irritar. Entrou no closet e parou. Olhou ao redor, estupefata. O lugar era duas vezes o tamanho do seu quarto com Rodrigo. Armários embutidos em U, de madeira maciça. Um corredor levava até o espelho que tomava uma parede em frente ao jardim de inverno e duas poltronas. Era possível morar naquele closet. Abriu uma das gavetas e admirou as camisas sociais dobradas como nas lojas chiques. Saiu do cômodo para alfinetar o seu proprietário e encontrou-o sentado na beirada da cama, vestido no roupão preto de gola alta, ao celular:

       — Eu disse para que ela fosse até o escritório do centro. Aqui não é lugar para isso. — parecia irritado, como Karen constatou, escondida atrás da porta do armário.

       Do outro lado da linha, alguém ponderou sobre algo, e o fazendeiro continuou:

       — Caiu nessa?, que ela estava passando e resolveu parar? — ironizou. — Bronson, como alguém supostamente esbarra em uma fazenda a quilômetros da cidade? Inferno! Diga para entrar, já que está na guarita. — ele afastou o celular da orelha para desligar; porém, aproximou-o novamente: — Espera, qual é o nome da inconveniente? — Após pequena pausa, ele repetiu o nome devagar, compreendendo a informação como um todo apenas de posse da identidade da visita: — Certo, mande a Rita entrar e esperar por mim na sala.

       Karen sentiu as pernas formigarem e a barriga queimar por dentro. Voltou rapidinho para dentro do closet. Sentou-se em uma das poltronas para pensar sobre o que fazer. Rita atacara Rodrigo na delegacia e, agora, vinha dar o bote em Thales. A loira havia escolhido os alvos para sua ascensão social.

       Percebeu a presença do homem à sua frente, intrigado por encontrá-la sentada, ainda de sutiã, como se estivesse na antessala de um dentista à espera de ser atendida.

       — Não encontrará nada do seu tamanho. — comentou, verificando ao redor, sem muito interesse. Era evidente que ele preferia que ela ficasse sem blusa.

       — O que usou hoje antes do banho?

       Ele a fitou com interesse e uma desconfiança regada de malícia. Encaminhou-se até um balcão e abriu uma das várias portas, retirando uma camiseta cinza esportiva. Mostrou a roupa balançando-a devagar no ar.

       — É essa que quero usar. — ela disse com um sorriso.

       — Algumas coisas, realmente, não mudam. Continua a mesma cretina que me provoca e depois pula fora. — afirmou, aproximando-se como um predador da presa, se a presa não fosse outra predadora.

       — Só quero sentir seu cheiro. Sabe que adoro a fragrância amadeirada de alguns canalhas. — rebateu com um sorriso, vestindo a camiseta que lhe alcançava o início das coxas.

       Era difícil insultá-lo, já que a cada ataque ou ofensiva direta parecia mais diverti-lo e excitá-lo do que lhe provocar a ira. Era evidente, por outro lado, que ela evitava os ataques pesados. Os pontos de erupção vulcânica restringiam-se ao seu passado e por isso o melhor a fazer era apenas cutucá-lo, vez ou outra, mas apenas na superfície.

       Seguiu-o após receber seu quinhão de desprezo por meio de um olhar gélido. Possivelmente guardara um insulto ainda pior, talvez tão pior e baixo que resolvera mantê-lo para si. Menos mal, ponderou Karen, observando os quadros nas paredes do corredor. Ao alcançar o topo da escada, alguém tocou a campainha.

       — Preciso de uma bebida. — Karen disse, bruscamente.

       — É? Eu também. — concordou, descendo os degraus da escada à sua frente. Ao ouvir o segundo toque, contraiu os lábios, exasperado: — Esqueci que dei folga aos empregados.

       Ela pescou a intenção no ar e falou em tom de provocação:

       — Achou que ia se dar bem esta noite?

       Sem se voltar, ele retrucou com indiferença:

       — A noite ainda não acabou, você é que está indo embora.

 

       — Esse seu consultório é bem diferente do outro, doutor. — comentou Maria Helena, olhando ao redor, admirando a decoração sofisticada do consultório do pediatra na clínica particular.

       As paredes eram de um azul suave. Certa vez o próprio pediatra explicara sobre a escolha do azul como a cor adequada para o seu consultório. Segundo especialistas, era a ideal para o tratamento de algumas doenças infantis de pouca gravidade. Cris não usava a cromoterapia, mas interessava-se em criar um ambiente propício para os pequenos. Nas estantes aéreas, brinquedos de madeira, bichinhos de pelúcia e bonecas de pano. Havia bolas de diversos tamanhos, coloridas, espalhadas por sobre o assoalho de bambu brilhante, sem tapetes ou cortinas. Mesa ampla de vidro.

       O médico ergueu-se da cadeira, estendeu a mão e sorriu ao recebê-la, após o aviso de sua secretária.

       Havia poucas horas o doutor telefonara convidando-a para ir à sua clínica. Ela sabia o motivo. O nome desse motivo era dona Nova. Devia-lhe um relatório a respeito do casal e, principalmente, do comportamento de Franco. Maria enfrentava um dilema interessante.

       — Você está bem? — ele perguntou gentil.

       — Sim, obrigada, doutor.  — balançou a cabeça devagar.

       Adorável, educado...

       — E como está a Nova? — no alvo, sem rodeios.

       Adorável, educado. Franco era fascinante. Se ele fosse menor de idade e não tivesse pai, por Deus!, ela iria adotá-lo.

       — Não sei como falar, doutor, — começou, torcendo as mãos, nervosa: — Tem alguma coisa naquele menino que é simplesmente inexplicável.

       Cris franziu o cenho, intrigado.

       — Como assim, Helena? Ele a insultou?

       — Não, de forma alguma. — riu-se envergonhada. — É verdade que eu sentia muito medo dele, mas era por causa da fama, má fama, né?

       — Me perdoe por tê-la feito passar por isso. — afirmou, consternado.

       Ela sorriu e sentenciou a pena de morte para ele:

       — Os dois se amam de tal jeito que parece a comprovação de que existe a reencarnação e aquela coisa de almas gêmeas. O modo como se olham... Meu Deus, o modo como eles se olham, nunca vi igual, é como nos filmes, é um olhar de admiração e amor. Estranho... — ela parou, sem saber que palavra usar para definir os seus sentimentos.

       — O que é estranho? — a pergunta saiu numa voz angustiada.

       Maria Helena encarou o seu patrão e viu um homem devastado. Olheiras, rugas e um esgar de amargura desenhado na boca. Um dia ele fora bonito; agora, a beleza estava na profundidade de sua dor, verdadeira dor. Ele estava então perfeito.

       — Desculpa a sinceridade, doutor, mas eles são apaixonados, aquela paixão forte de gente nova, mas tem algo mais, não sei... como se estivessem juntos há anos...

       — Como amor de velhinhos? — ele balbuciou, inseguro, à recordação do que Nova dissera-lhe.

       Ela suspirou, grata pela resolução de um enigma:

       —É, é isso que me pareceu tão estranho. São jovens demais para um amor tão sólido, um amor de anos. Como isso é possível?

       Cristiano baixou a cabeça e leu na lembrança a frase detrás da fotografia: “Meu amor para sempre”. Fora para ele aquela frase. Ou Nova era volúvel ou era carente. Ali, naquela relação doentia entre ela e o seu bandido, havia tudo, carência, desejo sexual, projeção, tudo; menos amor.

       — Doutor, a dona Nova está feliz.

       — Sim, pelo visto, está. — tentou sorrir e acrescentou contemporizando: — Fico feliz por ela também.

       Quando Maria Helena deixou o consultório, Cris telefonou para Belo Horizonte e aguardou que o mordomo da família Monteiro transferisse a ligação para o pai de Nova. O que pensaria o filho e neto de juízes ao saber que a filha vivia debaixo do mesmo teto com um pistoleiro e, ainda por cima, grávida dele? Sim, seria um escândalo para a sociedade mineira. O que era natural em Matarana, a terra de ninguém, ganhava ares pungentes na civilização. Para os pais de Nova, ela ainda estava com o seu amigo de infância, com o homem cujas famílias conheciam-se e se visitavam com frequência. Visto que seus pais eram amigos desde à época da faculdade; um cursara Direito e o outro Medicina. Saíam juntos nas noitadas boêmias de Belo horizonte. E depois de casados mantiveram a amizade. Os filhos cresceram, a filha mais velha dos Monteiro se apaixonara pelo filho mais velho dos Bittencourt, ambos casaram, se separaram e Nova seguiu com Cristiano para o fim do mundo. Até que em uma encruzilhada ela vendera a alma ao diabo.

       Quanto tempo levaria para o amor de velhinhos enfartar?  Cris pagava para ver.

         

       Iranilda apareceu na delegacia para buscar o neto perto das dez horas da noite. Veio com um advogado malvestido e suado cujo hálito podia acender uma churrasqueira e assar uma bela picanha. Baixo, careca no topo da cabeça e vestimenta de quem estivera no Havaí e fora expulso de lá. Usava pochete e calça social de tecido ordinário. Largou sobre a mesa do delegado algumas citações do código penal, da Constituição de 1988, da Declaração dos Direitos Humanos e, por fim, com uma bolinha de saliva no canto da boca, espremeu com rigor versículos bíblicos. Saiu com Joaquim debaixo do braço, uma vez que Rodrigo não tinha motivos nem provas para mantê-lo atrás das grades. 

       O guri ainda estava assustado com o confronto na estrada e, na sua corrida para o matagal, vira a cara amarrada da morte e ela não havia se maquiado. Passar algumas horas em uma sala quente e abafada, sendo interrogado pela policial sarcástica, ao ver dona Iranilda, avó e cartomante, quase se jogou em seus braços. Com um olhar duro, ela evitou o contato físico. Por certo, o garoto fora criado com pulso firme.

       O que o delegado não viu foi a cena de volta à Vila Zumbi. Joaquim desceu do carro ainda abatido, avançou para dentro da casa até parar no meio da cozinha. Voltou-se para avó e falou:

       — Acho que o Marau tentou nos matar.

       Iranilda não previra nas cartas a emboscada, tampouco que quando trouxesse o neto para casa metesse a mão na sua cara.

       — Imbecil! Chega de lidar com essa gente! Amanhã mesmo quero que chame o Vitorino aqui, vamos pagar a última remessa de pasta e pular fora. De agora em diante negociaremos direto com os bolivianos. Chega de alimentar esses parasitas de Matarana!

       — Eles estavam atrás do delegado, vó, não tinha nada a ver com a gente. — reclamou, esfregando a bochecha vermelha.

       — Eu te disse que se o Vitorino fosse discreto e deixasse a polícia longe da vila, a gente podia manter o acordo. Mas depois de ter de abrir a porta para o delegado e deixar ele entrar na minha casa, pelo amor de Deus!, como vamos continuar preparando a pedra desse jeito? Acha mesmo que o caubói acreditou que você é um estudante aplicado?

       Ele riu baixinho.

       — Mas eu sou, pelo menos estudo para Medicina. Onde está a mentira nisso?

       — As cartas não mentem, Joaquim, e elas mostram claramente que teremos uma chacina em Matarana, um banho de sangue, e isso só pode ser por causa desse maldito delegado metendo o nariz nos nossos negócios.

       Joaquim deu de ombros. Raramente a avó acertava suas previsões. Saiu para o quintal em direção à garagem. Atrás da construção simples, de madeira, outra porta levava a um quartinho com apenas uma janela. Debaixo do piso falso, o material para a produção da droga e sua distribuição. Havia o suficiente para abastecer os municípios próximos.

       Se eles desfizessem o acordo com Vitorino e Marau, a distribuição cairia em metade do previsto para um lucro espetacular. Compreendia o ponto de vista da avó, o receio de tê-lo trancafiado em uma cela no presídio de Santa Fé e a sujeirada que seria o confronto entre o pessoal da Zumbi com a polícia.

       Digitou os números do celular de Marau e avisou-o que Rodrigo Malverde tencionava procurar Vitorino.

       — Ficarei satisfeito em recebê-lo. Obrigado pelo aviso, guri.

       Foi o que ouviu do homem que tinha um plano.

 

       Marau desligou o celular e coçou a cabeça. Era um trejeito todo seu, não ajeitava os pensamentos, mas dava tempo para as ideias se perfilarem. Puxou a aba do chapéu para baixo e pulou da amurada de madeira. Da terra arrancou um pedaço de capim e o pôs detrás da orelha, mirando ao longe a chegada de Vitorino, o braço direito do coronel. O camarada beirava os 50, arrastava-se dentro das botas não devido ao organismo enferrujado, muito mais pela preguiça de se mexer, uma preguiça acentuada pela insolência do tipinho que tinha bem certo para si a sua importância no exato lugar onde estava naquele momento.

       Enquanto o pistoleiro encaminhava-se para aquela parte da Coração de Ouro, afastada da casa-sede e próxima do açude verde e límpido, Leonardo Marau considerava a possibilidade de matar vários coelhos com apenas uma bala.

       Ao retornar à sua terra natal, após 10 anos, ele cogitava acreditar que a sabedoria de seu velho pai não era de todo inútil. “É o olho do dono que engorda o gado.” — afirmava o coronel entre uma sugada e outra na bomba do chimarrão.

       De longe, o filho de Marau não enxergava o seu gado e deixar aos cuidados de Vitorino a coisa parecia degringolar de vez.  Chegara a Matarana havia trinta dias. Pisara na terra seca e aspirara os grãos que grudaram dentro de suas narinas. No lombo de 24 anos, a força do sol da estação da chuva — menos intenso que no estio mas ainda sol de Matarana, não lhe punira a pele clara que combinava com os olhos claros e os cabelos curtos e escuros. Ele vendia a aparência de um acadêmico de Direito bem comportado que passava as férias na fazenda da família e, por isso, usava jeans e chapéu de caubói.

       — Olha só, foi muito arriscado o que fizeram hoje na estrada. — disse o velho apontando o dedo para o filho caçula do coronel: — Em plena luz do dia, puta merda! E ainda por cima com a porra do Joaquim como testemunha. — resmungou.

       — Isso pouco me interessa, Vitorino. — comentou, a voz baixa e macia quase feminina — O que tem esse delegado, hein? Por que o coroa já não deu um jeito nele?

       — Tem razão em estranhar, noutros tempos o camarada já estaria bem longe daqui. Mas esse aí tem as costas quentes, por isso o cuidado com qualquer movimento pra acabar com ele. Entendeu?

       Vitorino conhecera o rapaz quando chegara de um enterro clandestino. Vestia poeira e sangue por cima da roupa e trazia uma pá na caçamba da picape. Tivera de resolver um probleminha com um desavisado que resolvera pôr o coronel na Justiça do Trabalho. Entregara-lhe pessoalmente uma passagem para o inferno, sem baldeação, direto na nuca. Ao retornar à fazenda, Catarina chegava abraçada em um rocambole de manta recheado com um ratinho rosado e careca, era Leonardo. Até os 14 anos, ele estudara, aprontara e brincara pela fazenda e arredores. Depois pedira para morar em Cuiabá, sozinho. Tudo o que o caçulinha Marau queria era atendido prontamente. Até que o pai exigiu que voltasse depois de graduado em Direito. O coronel acreditava que o seu dinheiro e o bacharelado do filho — já que a filha estudara Nutrição e se casara com um contador, imporia ainda mais respeito e, melhor que isso, temor. Orgulhava-se do filho advogado e até mesmo mandara construir um prédio de cinco andares com elevador panorâmico para o escritório do doutor Marau.

       — É da turma da Arco Verde? — perguntou, desconfiado. A volta a Matarana trouxera-lhe lembranças que, vivendo em uma metrópole, havia esquecido. A rixa entre famílias e a disputa pelo poder político e econômico. A polícia esmagada no meio de tudo.

       — A amizade anda meio abalada, — começou Vitorino com um sorriso malicioso: — parece que andaram fazendo um rodízio com a mesma mulher. Mas o que ouço por aí é que tem homem do Dolejal disposto em vários pontos de Matarana para ficar de olho no delegado e pronto para meter bala caso ele seja ameaçado.

       Leonardo enfiou as mãos nos bolsos traseiros do jeans e deu uma risada, comentando, depois, num tom de deboche:

       — Onde estavam os homens da Arco Verde hoje à tarde?

       Vitorino olhou fundo nos olhos do outro e perguntou sério:

       — O delegado foi assassinado?

       Ele deu de ombros, indiferente, e fez um gesto negativo com a cabeça.

       — Então tinha homem do Dolejal por perto, sim. O Gregório percebeu uns camaradas a cavalo, longe da estrada, mas perto o suficiente para uma AK 47. Por mim, hoje mesmo usava o meu terno preto para o enterro do Malverde, só que precisamos ter paciência. Você não pode se precipitar e nos deixar cara a cara com o Dolejal. Uma coisa é dar cabo de um delegado fuxiqueiro, outra bem diferente é enfrentar o inimigo declarado do seu pai e o exército armado que ele controla. Além disso... — ele parou e virou meio corpo para trás, fingindo ter ouvido alguém chamá-lo. Entendia muito bem quando suas mulheres lhe diziam que era um jacaré de boca grande.

       — Fala! É sobre o bastardo? — alçou a sobrancelha com um sorrisinho irônico nos lábios.

       Leonardo e o diabo loiro jamais se bicaram. Uma das expulsões escolares do último, e do único colégio particular que Dolejal pagara para ele, fora em razão de uma briga com Leonardo. O que todos sabiam na cidade era que o filho do coronel salvara um garotinho com trejeitos efeminados dos punhos do maloqueiro da Arco Verde — como assim era conhecido Franco. Enquanto o garoto, abaixado ao lado de uma lixeira, tentava se proteger dos chutes e socos do adversário, Leonardo se interpusera entre ambos e, por ser dois anos mais velho e mais desenvolvido fisicamente que Franco, derrubara-o partindo para cima numa sucessão de golpes. O garotinho desapareceu do canto onde se escondera na parte dos fundos da escola. Os pais pediram a sua transferência para um colégio de freiras em Santa Fé, onde jamais abrira a boca para contar a verdade.

       — O bastardo cresceu e virou um maluco obcecado pelo Dolejal, já tomou até tiro por causa do patrão.

       — Que romântico! — debochou, enquanto esfregava o queixo com a cicatriz deixada nele por Franco.

       O pistoleiro estreitou os olhos argutamente e desferiu:

       — Por que esse sorrisinho, Leonardo? Está se lembrando daquela briga que teve na escola, né?, quando inventou que o diabo loiro quebrou a pau o gordinho. Sei que se gaba dessa história e que conseguiu convencer a cidade inteira de que salvou o garoto das garras do maligno filho da meretriz. Só que não esqueça, Leonardo, que você mesmo me contou que quem fez o gordinho comer lixo foi você e acabou levando uma coça do Franco. Não me diga que ainda quer se vingar dele.

       — Claro que não, — declarou sorridente e se preparando para entrar na picape: — nem lembrava mais dos meus tempos de colégio. — ele parou e antes de fechar a porta, perguntou interessado: — Que fim levou o idiota?

       — Está por aí, pedindo emprego de porta em porta.

       Leonardo riu com vontade, deitando a cabeça para trás, era como já se sentisse vingado pela interferência infeliz do bastardo em seus negócios.

       — Teve então o que mereceu.

       Vitorino ajeitou o chapéu e, fitando o horizonte, bem na direção para onde Leonardo tencionava dirigir-se, constatou secamente:

       — O guri é tão orgulhoso quanto o pai. — sorriu ao ver a expressão intrigada do outro. — Ah, esqueci que para você ele ainda é um bastardo. Ouvi dizer por aí que a mãe vadia do Franco transou com o Dolejal. Parece que ele já desconfiava de que a trepada tinha dado merda e mandou fazer uns exames na capital. Bem, Leonardo, não sei se é verdade, mas o que se fala é que o Franco já foi até reconhecido como filho do Dolejal e claro que então ele também é um Dolejal. Nesse ponto, rapaz, vocês dois estão em pé de igualdade. Se quiser retribuir a surra que ele lhe deu no passado, terá de pensar duas vezes antes, porque será uma briga de titãs. — concluiu, rasgando a garganta e cuspindo o catarro.

       O herdeiro de Marau baixou o vidro da janela, a mão no volante e outra acendendo o cigarro, e falou:

       — Resolve o pepino lá da Vila Zumbi, e deixa o delegado e o... como é que chamam ele agora?

       — Diabo loiro, psicopata, por aí.

       Tragou fundo o cigarro e exalou a fumaça pelas narinas. Ainda sorria apesar do nó no estômago, o peso indigesto da raiva antiga:

       — Vito, meu chapa, o que vim fazer aqui onde o Judas perdeu as botas? — indagou sarcástico.

       — Cuidar dos seus negócios, Leonardo. — respondeu obediente o pistoleiro.

       — Quando saí desse buraco, jurei que voltaria rico, mas rico e independente, sem precisar abaixar a cabeça para o coronel. Se tivesse seguido a cartilha do meu pai e me tornado advogado, hoje teria de me curvar a ele como todos o fazem nessa cidade. A rede de contatos que criei na Bolívia, quando vivia no Acre com o dinheiro para a faculdade, me permitiu organizar meticulosamente a entrada da droga que revolucionará o mercado. Em Brasileia me conectei com todos os polos de distribuição do centro-oeste e forneço para eles a pasta de coca, e eles só têm de produzir o óxi no fogão da cozinha de suas maloquinhas e depois vender a pedra por dois paus. — ele tragou o cigarro, manteve por um tempo a fumaça nos pulmões e exalou bem devagar, comentando a seguir: — Amanhã, quando o avião com os defensivos agrícolas pousar na pista da fazenda, receberemos a nossa mercadoria direta dos hermanos e iremos abastecer feito doidos não só Matarana, mas também Belo Quinto e Santa Fé, que ainda não foram agraciados com a chegada da nova era. É só isso que me importa.

 

“Estou na fase dos enjoos e tonturas. Ainda não tenho uma barriguinha para mostrar e os meus peitos doem pra caramba. Faço caretas para comidas que até pouco tempo eram as minhas prediletas. Não raras vezes, corro para o banheiro com uma ânsia de vômito terrível e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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