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CHOQUE MORTAL / Clive Cussler
CHOQUE MORTAL / Clive Cussler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Dos quatro clíperes construídos em Aberdeen, na Escócia, em 1854, um se destacou dos demais. Foi o enorme Gladiator, com suas mil, duzentas e cinqüenta e seis toneladas, seus cento e noventa e oito pés de comprimento e trinta e seis de boca, com três altíssimos mastros que se erguiam no céu com toda a elegância. Embora fosse um dos barcos mais velozes que já haviam singrado os mares, não deixava de oferecer perigo em águas agitadas, por causa de suas linhas demasiado finas. Com capacidade de navegar à mais leve brisa, foi aclamado como "fantasma". De fato, o Gladiator jamais se deixou paralisar por uma calmaria.

Desgraçada e imprevisivelmente, estava destinado ao esquecimento.

Seus proprietários adaptaram-no ao comércio australiano e aos ne­gócios da emigração, e ele era um dos poucos clíperes projetados igual­mente para o transporte de passageiros e de carga. Entretanto, como em breve se constatou, não eram muitos os colonos em condições de pagar o elevado preço da passagem, de modo que a primeira e a segunda classes costumavam ficar vazias. Acabou se tornando muito mais lu­crativo obter contratos do governo para o traslado de presidiários ao continente australiano, o qual, naquela época, servia como o maior pre­sídio do mundo.

O Gladiator ficou sob o comando de um dos mais tarimbados capitães de clíperes, Charles "Durão" Scaggs, que fazia jus ao apelido. Embora não costumasse açoitar os tripulantes preguiçosos ou indisciplinados, era impiedoso na condução de seus homens e do barco nas rapidíssimas viagens entre a Inglaterra e a Austrália. Seus métodos agressivos deram resultado. Em sua terceira viagem, o Gladiator estabeleceu um recorde de sessenta e três dias, até hoje não superado por outro veleiro.

 

 

 

 

Scaggs competiu com os mais lendários capitães e barcos de seu tempo, como John Kendricks, do veloz Hercules, e Wilson Asher, do famoso Júpiter. Nunca perdeu. Invariavelmente, os comandantes rivais, que zarpavam de Londres horas antes do Gladiator, encontravam-no já comodamente ancorado ao chegar ao porto de Sídnei.

As viagens rápidas eram encaradas como uma bênção pelos presi­diários, para os quais as terríveis travessias, que nos navios mercantes mais lentos chegavam a durar três meses e meio, representavam um verdadeiro tormento.

Trancafiados nos porões, os condenados eram tratados como gado. Alguns não passavam de criminosos inveterados; outros, dissidentes políticos; a maioria, uns pobres-diabos presos pelo roubo de uma peça de roupa ou de algumas migalhas com que matar a fome. Os homens eram mandados à colônia penal por todo tipo de delito, do homicídio ao mero furto de carteira. As mulheres, separadas deles por uma grossa antepara, eram, em sua maior parte, condenadas por pequenos furtos em lojas. Não havia conforto algum. Estreitíssimos beliches, precárias con­dições de higiene e alimento pobre em nutrientes lhes eram oferecidos nos meses de viagem. O único luxo eram as rações de açúcar, vinagre e suco de lima, para evitar o escorbuto, e meia dose de vinho do porto, para levantar o moral à noite. Faziam a travessia sob a vigilância de um pequeno destacamento de dez homens do Regimento de Infantaria de Nova Gales do Sul, sob o comando do tenente Silas Sheppard.

A ventilação era praticamente inexistente; o único ar vinha das escotilhas com grossas grades, que se mantinham bem fechadas e tran­cadas. Quando se encontravam nos trópicos, a atmosfera se tornava sufocante com o férvido calor. Sofriam ainda mais nos dias chuvosos, à mercê do frio e da umidade, jogados de um lado a outro pelas vagas que arremetiam contra o casco, vivendo praticamente na escuridão.

Os médicos eram convocados a prestar serviço nos navios de pre­sidiários, e o Glndiator não constituía exceção. O cirurgião-superintendente Otis Gorman fora encarregado do estado geral de saúde dos presos e, quando o tempo permitia, providenciava para que fossem levados à coberta em pequenos grupos, para respirar ar fresco e fazer ginástica. Era motivo de orgulho dos médicos jactar-se, ao chegar ao porto de Sídnei, de não haver perdido um só prisioneiro. Gorman, um homem compassivo, cuidava de seus tutelados, aplicando-lhes sangria quando necessário, lancetando abscessos, fazendo curativos em cortes e bolhas, e inclusive supervisionando a desinfecção das latrinas, da roupa lavada e dos baldes de urina com cloreto de cálcio. Quase sempre recebia uma carta de agradecimento dos condenados ao desembarcar.

Durão Scaggs não costumava fazer caso dos infelizes trancafiados nos porões. A única coisa que o preocupava era a navegação rápida. Sua disciplina férrea e sua agressividade rendiam bons lucros aos felizes armadores, ao mesmo tempo em que os tornaram imortais, a ele e à embarcação, nas lendas dos clíperes.

Nessa viagem, ele estava farejando um novo recorde e não dava atenção a mais nada. Havia cinqüenta e dois dias saíra de Londres, no rumo de Sídnei, com uma carga de mercadorias e cento e noventa e dois presidiários, entre os quais vinte e quatro mulheres; levou o Gla­diator a seus limites extremos, raramente recolhendo velas durante as fortes ventanias. Sua perseverança foi recompensada: em vinte e quatro horas percorreu incríveis quatrocentas e trinta e nove milhas.

E então, a boa sorte o abandonou. O desastre assomou no horizonte, à popa.

Um dia após a segura passagem do Gladiator pelo estreito de Bass, entre a Tasmânia e o extremo sul da Austrália, o céu do entardecer cobriu-se de ominosas nuvens negras, as estrelas sumiram e o mar se encapelou. Scaggs ignorava que um tufão, vindo do sudoeste, além do mar da Tasmânia, estava a ponto de se abater sobre o navio. Por ágeis e resistentes que fossem, os clíperes nada podiam contra a fúria do Pacífico.

A tempestade revelou-se o mais violento e devastador tufão na me­mória dos ilhéus dos mares do Sul. O vento adquiria velocidade a cada instante. O oceano transformou-se numa sucessão de convulsionadas montanhas que, vindas da escuridão, arremetiam contra o flanco do Gladiator. Scaggs demorou demais a ordenar que se rizassem as velas. Uma lufada feroz atingiu a lona exposta, espedaçando-a, mas antes partiu os mastros como se fossem palitos de fósforo, e arremessou na coberta os ovéns e as vergas. A seguir, como que numa tentativa de limpar aquela desordem, as ondas impetuosas despejaram no mar o que restava dos mastros. Uma vaga de nove metros explodiu na popa e rolou por cima da embarcação, esmagando o camarote do capitão e destruindo o timão. Varridos foram os botes, o leme, o camarim de governo e a plataforma. As escotilhas se romperam, e a água passou a entrar livremente nos porões.

Essa onda gigantesca e mortal converteu subitamente o outrora gra­cioso clíper numa impotente e mutilada nau sem rumo. Jogado de um a outro lado, como um pedaço de pau, ele se tornou ingovernável no mar encolerizado. Não restou à desgraçada tripulação e à carga de prisioneiros incapazes de combater a tormenta senão encarar a morte enquanto esperavam, aterrorizados, que a embarcação desse o seu der­radeiro mergulho nas inquietas profundezas.

Passados quinze dias sem que o Gladiator chegasse ao porto, envia­ram-se navios para retraçar as conhecidas passagens do clíper pelo estreito de Bass e o mar da Tasmânia, porém não encontraram vestígio de sobreviventes, cadáveres nem destroços flutuantes. Seus proprietá­rios o deram por perdido, o seguro foi cobrado, os parentes dos tripu­lantes e dos presidiários choraram sua morte e a lembrança da embar­cação começou a se apagar.

Alguns navios tinham reputação de esquifes flutuantes ou naus do inferno, porém os capitães rivais, que conheciam Scaggs e o Gladiator, limitaram-se a sacudir a cabeça e considerar o gracioso clíper desapa­recido vítima de seus delicados atributos e do modo agressivo como Scaggs o tratava. Dois homens que nele tinham navegado sugeriram que o Gladiator devia ter sido bruscamente atingido por uma rajada de vento e, ao mesmo tempo, por uma onda que rebentou na proa, sendo que as duas forças combinadas o empurraram abaixo da superfície, enviando-o como chumbo ao fundo do mar.

Na sede do Lloyd's de Londres, a famosa companhia de seguros marítimos, a perda do Gladiator ficou registrada, no livro de derrota, entre o naufrágio de um vapor rebocador americano e o de um pesqueiro norueguês.

Passar-se-iam quase três anos até que o misterioso desaparecimento fosse esclarecido.

Inacreditavelmente, sem que o mundo marítimo tomasse conheci­mento, o Gladiator continuou flutuando após a passagem do terrível tufão. Apesar de tudo, o castigado clíper sobrevivera. Todavia, o mar estava entrando pelos rombos do casco a uma velocidade alarmante. No começo da tarde seguinte, havia quase dois metros de água nos porões, e as bombas travavam uma batalha perdida.

A obstinada paciência do capitão Durão Scaggs não cedeu. Os tri­pulantes juravam que ele havia impedido o naufrágio por pura teimosia. Dava ordens séria e calmamente, recrutando os presidiários que não haviam sofrido ferimentos graves, jogados de um lado para outro pela violência do mar, para manejar as bombas enquanto a tripulação se concentrava no reparo do casco.

O resto do dia e a noite foram dedicados à tentativa de aliviar o peso da embarcação, jogando-se ao mar toda a carga, todos os utensílios e ferramentas que não fossem indispensáveis. Não adiantou. Perdeu-se muito tempo, e o esforço de pouco serviu. Na manhã seguinte, a água subira mais meio metro.

A tarde, o exausto Scaggs reconheceu a derrota. Nada do que ele ou quem quer que fosse pudesse fazer salvaria o Gladiator. E, sem botes salva-vidas, tratava-se apenas de procurar desesperadamente salvar as criaturas a bordo. Ele ordenou ao tenente Sheppard que soltasse os prisioneiros e os agrupasse na coberta, ante os olhos vigilantes do des­tacamento armado de soldados. Somente os que estavam ocupados com as bombas e os membros da tripulação que tentavam febrilmente vedar as aberturas do casco continuaram trabalhando.

Durão Scaggs não precisava do látego nem de pistola para manter O controle absoluto do navio. Aos trinta e nove anos, era um gigante com físico de pedreiro. Com um metro e oitenta e cinco de altura, tinha olhos verdes, cabelo negro, áspero, e uma vistosa barba lhe emoldurava o rosto curtido pelo mar e pelo sol, a qual entrançava em ocasiões especiais. Sua voz grave e vibrante lhe reforçava a autoridade.

Olhando para os prisioneiros, ficou admirado com o número de fe­ridos, com as contusões, as fraturas e as cabeças envoltas em ataduras manchadas de sangue. O medo e a preocupação se estampavam em cada rosto. Um horroroso grupo de homens e mulheres nos quais ele nunca pusera os olhos. Eram quase sem exceção baixos, magros e pá­lidos, certamente devido a toda uma existência de carência alimentar. Cínicos, impermeáveis à palavra de Deus, constituíam a escória da so­ciedade britânica, sem esperança de tornar a ver a terra natal, sem esperança de uma vida fecunda.

Ao deparar com os danos terríveis na coberta, os tocos dos mastros, a amurada espedaçada, os botes perdidos, aquela gente miserável se deixou dominar pelo desespero. As mulheres se puseram a gritar, apa­voradas — todas, exceto uma, notou Scaggs, que se mantinha apartada do resto.

Ele deteve brevemente o olhar na presidiária, mais alta do que a maioria dos homens. As pernas, que apareciam abaixo da saia, eram longas e macias; a cintura fina era toldada por um busto caprichosa­mente modelado, que se projetava sob a blusa. Vestia-se com asseio, e, em contraste com suas desgrenhadas companheiras, o cabelo loiro, que lhe chegava até a cintura, brilhava com se tivesse sido escovado. Mantendo-se firme e altiva, mascarou o medo com um ar de desafio ao pousar em Scaggs os olhos azuis como os lagos alpinos.

Era a primeira vez que o capitão a notava, e ele se perguntou va­gamente por que não tinha sido mais atento. Mas, voltando a concentrar o pensamento na emergência, dirigiu-se aos criminosos:

Nossa situação não é promissora. Com toda franqueza, tenho de comunicar que o navio está condenado, e, com a destruição dos botes salva-vidas, não podemos abandoná-lo.

Suas palavras foram recebidas com diferentes reações. Os infantes do tenente Sheppard permaneceram imóveis e em silêncio, ao passo que muitos presidiários puseram-se a gemer e a lamentar-se tristemente. Na expectativa de ver o navio despedaçar-se em poucos segundos, di­versos prisioneiros caíram de joelhos e imploraram salvação aos céus.

Fazendo-se surdo aos gritos aflitos, Scaggs prosseguiu:

Com a ajuda de Deus misericordioso, vou tentar salvar todos os que se encontram no navio. Pretendo construir uma jangada grande o bastante para transportar todos até sermos salvos por alguma embar­cação ou chegarmos ao continente australiano. Carregaremos amplas provisões de água e alimento, o suficiente para vinte dias.

Se me perdoa a dúvida, capitão, em quando tempo acredita que seremos resgatados?

A pergunta foi feita por um homem corpulento, de expressão desdenhosa, cujos ombros e a cabeça ficavam acima dos demais. A diferença deles, estava bem-vestido e sem um fio de cabelo fora do lugar.

Antes de responder, Scaggs se voltou para o tenente Sheppard.

Quem é esse dândi?'

Chama-se Jess Dorsett.

Scaggs ergueu as sobrancelhas.

Jess Dorsett, o salteador?

O tenente fez que sim.

Exatamente. Acumulou uma fortuna antes de ser preso pelos ho­mens da rainha. É o único de sua quadrilha que sabe ler e escrever.

Scaggs compreendeu imediatamente que o salteador podia ser útil se a situação na jangada se tornasse ameaçadora. A possibilidade de um motim era muito concreta.

Só lhes posso oferecer uma chance de sobrevivência, senhor Dor­sett. Fora isso, nada posso prometer.

Neste caso, que espera de mim e de meus degenerados amigos?

Espero que todos os homens fisicamente capazes ajudem na construção da jangada. Quem se recusar ou fizer corpo mole será abando­nado no navio.

Ouviram, rapazes? — gritou Dorsett aos prisioneiros. — É tra­balhar ou morrer. — Voltou-se para Scaggs novamente. — Nenhum de nós é marinheiro. O senhor tem de nos ensinar o trabalho.

Scaggs fez um gesto na direção do imediato.

Encarreguei o senhor Ramsey de desenhar a planta da jangada. Uma equipe de trabalho constituída pelos membros da tripulação que não estão ocupados em nos manter na superfície vai dirigir a construção.

Com um metro e noventa, Jess Dorsett parecia um gigante perto dos outros prisioneiros. Seus ombros cobertos por um caro paletó de veludo eram largos e fortes. O longo cabelo cor de cobre caía-lhe desleixadamente na gola do paletó. Tinha nariz grande, pômulos e queixo salientes. Apesar dos dois meses de sofrimento nos porões do navio, dava a impressão de estar saindo de um clube londrino.

Antes de se afastar, Dorsett e Scaggs entreolharam-se rapidamente. O imediato Ramsey notou a expressão intensa de ambos. O tigre e o leão, pensou. E perguntou-se qual deles sobreviveria à provação.

Felizmente, o mar se acalmara; a jangada teria de ser construída na água, onde começaram por jogar o material. A estrutura básica foi mon­tada com os restos dos mastros, unidos por uma corda resistente. Os barris de vinho e os toneis de farinha que se destinavam às tavernas e mercearias de Sídnei foram esvaziados e atados no interior do estrado, para aumentar a flutuabilidade. Construiu-se, então, uma coberta com grossas tábuas pregadas por cima dessa base, e cercaram-na com uma a murada que chegava à altura da cintura. Na proa e na popa ergueram-se dois mastaréus de reserva providos de velas e esteios. Quando concluída, a jangada tinha vinte e quatro metros de comprimento por doze de largura e, embora parecesse muito grande, quando se carre­garam as provisões, sobrou pouco espaço para cento e noventa e dois presidiários, onze soldados e a tripulação, que era de vinte e oito marujos, inclusive Durão Scaggs, num total de duzentas e trinta e uma pessoas. No que se considerava a popa, prenderam um leme rudimentar a uma cana improvisada.

Levaram a bordo barriletes de madeira contendo água, suco de lima, carne de vaca e de porco salgadas, assim como queijo e várias panelas de arroz e ervilha preparadas na cozinha do navio; tudo foi colocado entre os mastros e amarrado sob uma enorme peça de lona, esticada sobre dois terços da embarcação como um toldo contra os raios ardentes do sol.

A partida foi abençoada por um céu límpido e um mar sereno. Os soldados, com seus mosquetes e sabres, foram os primeiros a embarcar. Depois, vieram os condenados, que se mostravam felizes por não com­partilhar o destino do navio, agora com a proa perigosamente afundada. A escada do navio não os sustentava a todos, de modo que a maioria desceu por cordas que pendiam do costado. Muitos saltaram ou caíram na água e foram recolhidos pelos soldados. Os feridos foram baixados por lingas. Surpreendentemente, o êxodo ocorreu sem incidentes. Em duas horas, as duzentas e três pessoas estavam a salvo na jangada, nos lugares designados por Scaggs.

A seguir, veio a tripulação. O capitão foi o último a abandonar a embarcação, já muito inclinada. Jogou nos braços do imediato uma caixa contendo duas pistolas, o diário de bordo, um cronômetro, uma bússola e um sextante. Tinha calculado sua posição antes de descer, e não contara a ninguém, nem mesmo a Ramsey, que a tormenta havia desviado o Gladiator para bem longe das rotas normais de navegação. Estavam à deriva numa região morta do mar da Tasmânia, a mais de quinhentos e cinqüenta quilômetros da praia australiana mais próxima, e, o que era pior, a corrente os arrastava para mais longe, para os mares vazios onde ninguém navegava. Consultou os mapas e constatou que a única esperança era aproveitar a corrente adversa e os ventos, e aproar para a Nova Zelândia.

Pouco depois de embarcar, cada um em seu lugar na lotadíssima coberta, os passageiros da jangada descobriram, com desânimo, que não havia espaço para que mais de quarenta pessoas se deitassem ao mesmo tempo. Era óbvio para os marinheiros que sua vida estava em grande perigo; a coberta da jangada ficava apenas dez centímetros acima da água. Face a um mar bravio, a embarcação e seus desafortunados passageiros submergiriam.

Scaggs pendurou a bússola no mastro diante da cana do leme.

Fazer-se à vela, senhor Ramsey. Rumar a um grau e quinze a leste-sudeste.

Ai, capitão, quer dizer então que não vamos tentar chegar à Aus­trália?

Nossas melhores esperanças estão na costa ocidental da Nova Zelândia.

A que distância o senhor calcula?

Pouco mais de mil quilômetros — respondeu Scaggs, como se estivesse vendo uma linda praia no horizonte.

Franzindo a testa, Ramsey olhou ao redor. Deteve-se num grupo de presidiários que conversava animadamente. Depois falou, num tom car­regado e sombrio:

Duvido que nós, tementes a Deus, sejamos salvos enquanto es­tivermos em companhia dessa escória.

O mar permaneceu calmo nos cinco dias seguintes. Os passageiros entraram numa rotina de disciplinado racionamento. O sol implacável transformava a embarcação num inferno. As pessoas desejavam desesperadamente saltar à água e refrescar o corpo, mas os tubarões já se aglomeravam, antecipando um fácil manjar. Os marujos jogavam baldes de água do mar no toldo de lona, coisa que não fazia senão aumentar a umidade sob ele.

O clima, na balsa, já começava a passar da melancolia à revolta. Aqueles homens, que tinham suportado dois meses de confinamento no escuro porão do Gladiator, foram se tornando indóceis sem a segu­rança do casco do navio, cercados pelo nada. E começaram a resmungar o a endereçar olhares ferozes a marinheiros e soldados, coisa que não passou despercebida a Scaggs. Ele ordenou ao tenente Sheppard que mantivesse os mosquetes carregados e permanentemente preparados.

Jess Dorsett estudou a mulher alta de cabelo dourado. Estava sentada junto ao mastro dianteiro, sozinha. Havia nela uma aura de valente passividade, um modo de desdenhar o sofrimento sem expectativas. Alheia às demais presidiárias, raramente conversava e preferia ficar apartada e em silêncio. Era, concluiu Dorsett, uma mulher de coragem.

Ele foi se aproximando furtivamente, entre os corpos aglomerados à bordo da jangada, até ser detido pelo olhar duro de um soldado que, com o mosquete, lhe fez sinal para que recuasse. O salteador, paciente, esperou a troca da guarda. A nova sentinela se pôs logo a contemplar com volúpia as presidiárias, que não tardaram a insultá-lo e dele es­carnecer. Dorsett se aproveitou da distração para avançar até a linha imaginária que separava os homens das mulheres. A loira não o notou; seus olhos azuis estavam, fitos em alguma coisa que só ela podia ver na distância.

Procurando pela Inglaterra? — perguntou ele com um sorriso.

Ela se voltou e o encarou durante algum tempo, como que a decidir se devia ou não agraciá-lo com uma resposta.

Por uma aldeiazinha na Cornualha.

Você foi presa lá?

Não, em Falmouth.

Por tentar assassinar a rainha Vitória?

Ela riu, e seus olhos brilharam.

Pelo roubo de um cobertor.

Você devia estar com frio.

A moça ficou séria.

Era para meu pai. Estava morrendo da doença do pulmão.

Lamento.

Você é o salteador.

Era. Meu cavalo teve a perna quebrada e os homens da rainha me pegaram.

E seu nome é Jess Dorsett.

Satisfeito por ver que a mulher sabia quem ele era, Dorsett indagou-se se ela não havia feito perguntas a seu respeito.

E você é...

Betsy Fletcher.

Betsy — disse Dorsett com voz doce —, considere-me seu protetor.

Não preciso de nenhum salteador de meia-tigela — retrucou ela rudemente. — Sei me defender sozinha.

Ele fez um gesto na direção da horda que se acotovelava na jangada.

Você pode precisar de um braço forte antes que tornemos a ver terra firme.

Por que eu haveria de confiar num homem que nunca suou a camisa?

Dorsett a fitou nos olhos.

Eu posso ter assaltado algumas carruagens, mas, além do bom capitão Scaggs, sou o único aqui que não se aproveitaria de uma mulher.

Betsy Fletcher se voltou e apontou para as nuvens sombrias que se acercavam rapidamente, acompanhadas de uma brisa fresca.

Diga-me, senhor Dorsett, como vai me proteger daquilo?

Não temos saída, capitão — disse Ramsey. — Acho melhor arriar velas.

Com uma careta, Scaggs fez que sim.

Corte pedaços curtos da corda de reserva e distribua-as. Mande esses pobres-diabos amarrar-se à jangada para resistir à turbulência.

O mar começou a se agitar. A jangada passou a jogar e a girar quando as ondas se puseram a arremeter contra a massa de corpos aglomerados. Cada passageiro agarrava-se a seu pedaço de corda para preservar a vida; os mais espertos amarraram-se nas tábuas.

A tempestade foi muito mais amena do que o tufão que destruiu o Gladiator, mas, mesmo assim, em breve tornou-se impossível saber onde começava a jangada e onde terminava o mar. As vagas eram cada vez mais altas, a branca espuma a ferver na crista. Alguns tentavam se levantar, para manter a cabeça fora da água, mas a embarcação conti­nuava a girar.

Dorsett usou tanto as mãos quanto a corda de Betsy para firmá-la ao mastaréu. Depois, envolveu-se no cordame da vela e, com o corpo, tratou de escudá-la contra o ímpeto das ondas. Como se não bastasse, a chuva os açoitava com a força de pedras atiradas por demônios. O mar destemperado investia em todas as direções.

O único som que se sobrepunha à fúria da tormenta era o das pragas veementes de Scaggs, que ordenava aos berros à tripulação que amar­rasse com mais cordas as provisões. Os marinheiros se puseram a lutar para prender os barriletes e engradados, porém uma onda gigantesca rugiu naquele momento e se precipitou na jangada, empurrando-a para o fundo. Durante quase um minuto, não houve ninguém naquela pa­tética embarcação que acreditasse que ia sair vivo dali.

Scaggs conteve a respiração, fechou os olhos e, sem abrir a boca, continuou xingando. O peso da água parecia querer espremer a vida dentro dele. Durante o que pareceu uma eternidade, a embarcação foi subindo lentamente na agitada massa de espuma, até reencontrar o vento. Os que não tinham sido jogados no mar respiraram profunda­mente e vomitaram a água salgada.

Olhando em volta, o capitão ficou aterrorizado. Todas as provisões haviam sido varridas; desapareceram como se nunca tivessem existido. O mais horrendo era que o volume de caixas e barris tinha aberto uma avenida na massa de condenados, mutilando-os e jogando-os para fora com a força de uma avalanche. Seus patéticos pedidos de socorro fi­caram sem resposta. O mar bravio tornava impossíveis as tentativas de salvamento, e os mais felizes não podiam senão lamentar o triste fim dos companheiros.

A jangada e seus desafortunados passageiros suportaram a tempes­tade a noite inteira, triturados pela agitação das ondas que se abatiam constantemente sobre eles. Na manhã seguinte o mar começou a serenar, e o vento se reduziu a uma leve brisa vinda do sul. Mas eles continuaram atentos às vagas ocasionais e traiçoeiras, que davam a impressão de desaparecer antes de rebentar na embarcação, tomando de surpresa os sobreviventes já quase afogados.

Ao ver-se finalmente em condições de ficar em pé e avaliar as di­mensões do estrago, Scaggs constatou, chocado, que nenhum barril de água potável, nenhum engradado de alimento, fora poupado pela vio­lência do mar. Outro desastre. As velas estavam reduzidas a alguns trapos de lona. Ele ordenou a Ramsey e a Sheppard que fizessem a contagem dos desaparecidos. O número se elevava a vinte e sete.

Sheppard sacudiu tristemente a cabeça ao olhar para os sobreviven­tes.

Pobres coitados, parecem ratos afogados.

Mande a tripulação esticar o que resta da lona e recolher o máximo de água possível antes que pare de chover — ordenou Scaggs a Ramsey.

Não temos onde armazená-la — disse ele solenemente. — E que vamos usar como velas?

Depois que todos tiverem bebido o que puderem, vamos tentar consertar a lona e continuar nossa rota leste-sudeste.

Quando a vida renasceu a bordo, Dorsett desatou-se e segurou os ombros de Betsy.

Está ferida?

Ela o mirou através das longas mechas coladas no rosto.

Molhada como estou, eu não iria a nenhum baile na corte. Nem acredito que estou viva!

Foi uma noite ruim — disse ele, com uma careta —, e acho que não foi a última.

Enquanto Dorsett a confortava, o sol retornou, como para vingar-se. Com o toldo destruído pela cólera da ventania e das ondas, não havia proteção contra o calor do dia. Não tardou a seguir-se o tormento da sede e da fome. Cada resto de comida encontrado entre as tábuas foi rapidamente devorado. A pouca água de chuva recolhida nos farrapos da lona acabou depressa.

Quando os precários restos das velas foram içados novamente, ti­veram efeito mínimo e mostraram-se quase inúteis para colocar a jan­gada em movimento. Com vento de popa, a embarcação se deixava governar, mas as tentativas de lhe alterar o rumo acabavam deixando-a numa posição incontrolável, atravessada, com o lado para o vento. A impossibilidade de dar direção à jangada aumentou a frustração de Scaggs. Tendo salvado seus preciosos instrumentos de navegação, apertando-os ao peito durante a pior parte do dilúvio, tratou de determinar a posição em que se encontravam.

Um pouco mais perto da terra, capitão? — perguntou Ramsey.

Acho que não — disse Scaggs com ar grave. — A tormenta nos empurrou para o norte e para o oeste. Estamos mais longe da Nova Zelândia do que há dois dias.

Não vamos durar muito no Hemisfério Sul, em pleno verão, sem água potável.

Scaggs apontou para as barbatanas que cortavam a água a uns quinze metros da balsa.

Se não avistarmos um barco em quatro dias, senhor Ramsey, os tubarões terão um banquete suntuoso.

Os tubarões não precisaram esperar muito. No segundo dia, os corpos dos que sucumbiram aos ferimentos recebidos durante a tempestade foram jogados ao mar e desapareceram rapidamente numa agitação sangrenta. Um monstro parecia particularmente faminto. Scaggs o iden­tificou como um grande tubarão-branco, temido como a mais voraz máquina mortífera dos mares. Calculou-lhe o comprimento entre seis e sete metros.

O terror eslava apenas começando. Dorsett foi o primeiro a prever as atrocidades que aguardavam os infelizes a bordo.

Eles vão fazer alguma coisa — disse a Betsy. — Não gosto do jeito como estão olhando para as mulheres.

De quem você está falando? — perguntou ela, os lábios ressecados. Tinha coberto o rosto com um lenço rasgado, mas seus braços nus e a perna abaixo da saia já estavam queimados, cobertos de bolhas.

Esse bando vil de delinqüentes na popa, liderados por Jake Huggins, o galés sanguinário. Ele é capaz de cortar a sua garganta com a mesma facilidade com que lhe diria que horas são. Aposto que estão planejando um motim.

Betsy olhou vagamente para os corpos estendidos na jangada.

Por que quereriam tomar o comando disto?

Vou descobrir.

Dorsett se afastou, passando por cima dos prisioneiros que se espa­lhavam na úmida coberta, esquecidos de tudo quanto os rodeava, en­tregues ao tormento da sede. Ele caminhou com dificuldade, aborrecido com as articulações endurecidas pela falta de outro exercício que não agarrar-se às cordas. Um dos poucos a ousar aproximar-se dos conspiradores, foi ter com a quadrilha de Huggins. Sem fazer caso dele, os bandidos continuaram murmurando entre si, deitando olhares ferozes em Sheppard e nos soldados.

Que veio bisbilhotar aqui, Dorsett? — resmungou Huggins.

O marginal era baixo e gordo feito uma barrica, tinha longos cabelos cinzentos e cerdosos, nariz achatado e uma boca enorme; os poucos dentes podres que lhe restavam davam-lhe um aspecto medonho.

Acho que você pode precisar de um bom homem para ajudá-lo a dominar a jangada.

Está querendo participar da pilhagem e viver um pouco mais, não?

Não vejo butim capaz de prolongar o nosso sofrimento — disse Dorsett com indiferença.

Huggins gargalhou, exibindo os dentes pretos.

As mulheres, seu idiota.

Mesmo morrendo de sede neste sol maldito, vocês conseguem pensar em sexo?

Para um salteador famoso, você não passa de um bocó — retrucou Huggins, irritado. — Ninguém está querendo trepar. A idéia é cortar essas bonecas em pedaços e comer sua carne macia. Podemos guardar Durão Scaggs, os marinheiros e os soldados para quando ficarmos com fome de verdade.

A primeira coisa que ocorreu ao salteador foi que se tratava de uma piada de mau gosto, mas a inspirada maldade que brilhava nos olhos de Huggins, assim como seu sorriso horrendo, demonstrava claramente que ele não estava brincando. A idéia o encheu de repugnância. No entanto, consumado ator que era, Dorsett se limitou a dar de ombros.

Para que tanta pressa? Pode ser que nos salvem amanhã.

Tão cedo não vai aparecer nenhum navio, nenhuma ilha no ho­rizonte. — Huggins fez uma pausa; depois contorceu o feio rosto numa expressão depravada. — Você está do nosso lado, salteador?

Não tenho nada a perder se me juntar a vocês, Jake — respondeu Dorsett com um sorriso tenso. — Mas a loira alta é minha. Com as outras, podem fazer o que quiserem.

Já vi que você gostou dela, mas meus rapazes e eu também gos­tamos. Vou deixá-lo ser o primeiro. Depois disso, ela será de todos.

Fechado. Quando vamos começar?

Uma hora depois do anoitecer. A um sinal meu, atacamos os soldados e pegamos os mosquetes. Uma vez armados, não teremos o menor problema com Scaggs e a tripulação.

Como já estou instalado junto ao mastro da proa, eu me encarrego do soldado que está vigiando as mulheres.

Está querendo ser o primeiro na fila do jantar, não?

Só de ouvi-lo falar nisso, fico com fome.

Dorsett retornou para junto de Betsy, porém nada disse sobre o terror que estava prestes a ser desencadeado pelos presidiários. Sabia que Huggins e seus comparsas lhe estavam observando cada movimento, temerosos de que fosse alertar furtivamente a tripulação e os soldados. Sua única chance viria com a noite. Tinha de agir antes que Huggins desse o sinal para o início da revolta. Deitou-se tão perto de Betsy quanto consentia a sentinela e, arrastando-se até o lugar onde se en­contrava o imediato, chamou-o com um abafado sussurro.

Ramsey, não se mova, não mostre que está me ouvindo.

O que é? — cochichou o outro, com mau humor. — Que você quer?

Escute. Dentro de uma hora, os presos liderados por Huggins vão atacar os soldados. Se conseguirem matá-los, vão usar suas armas contra você e a tripulação.

Por que hei de acreditar num criminoso como você?

Se não o fizer, vão morrer todos.

Vou falar com o capitão — resmungou Ramsey com desprezo.

Não se esqueça de dizer que fui eu quem avisou.

Dorsett voltou para junto de Betsy. Tirando a bota esquerda, torceu a sola e o salto, e dela extraiu uma faca com uma lâmina de dez cen­tímetros. Depois sentou-se e ficou esperando.

Um quarto crescente começava a subir no horizonte, dando aparência fantasmagórica aos miseráveis passageiros da balsa; alguns deles se levantaram de súbito e avançaram para a área proibida no centro.

Matem os porcos! — gritou Huggins, saltando à frente e assu­mindo a liderança do ataque aos soldados.

Meio enlouquecidos de sede e dando rédeas soltas a seu ódio pela autoridade, os prisioneiros, vindos de todos os lados, avançaram para o centro da embarcação.

Uma descarga de mosquetes abriu rombos em suas fileiras; a ines­perada reação os atordoou momentaneamente.

Ramsey tinha transmitido o aviso de Dorsett a Scaggs e Sheppard. Com os mosquetes carregados e as baionetas caladas, os soldados fi­caram aguardando, ao lado do capitão e da tripulação, que se armaram com os sabres dos militares, além de martelos, machadinhas e todas as coisas à mão.

Não lhes dêem tempo para recarregar, rapazes! — rugiu Huggins. — Ataquem!

A massa amotinada investiu novamente, e dessa vez foi recebida a golpes de baionetas e sabres. Mas nada era capaz de conter sua cólera. Precipitavam-se sobre o frio metal, muitos chegavam a agarrar com as mãos nuas as afiadas lâminas. Desesperados, todos se entregaram à carnificina no negrume do oceano e à sinistra luz do luar.

Os soldados e os marinheiros lutaram furiosamente. Cada centímetro da jangada foi tomado por homens ocupados em matar. Os cadáveres iam se empilhando, enroscando-se nos pés dos combatentes. O sangue banhou as tábuas da coberta, tornando difícil a todos manter-se em pé e quase impossível levantar-se após uma queda. Na escuridão, agora esquecidos da fome e da sede, eles pelejavam e se aniquilavam às cegas. Só se ouviam os gritos dos feridos e os gemidos dos moribundos.

Os tubarões, como que antecipando o festim, passaram a circular cada vez mais próximos da embarcação. A pontiaguda barbatana do Carrasco, o nome que os marinheiros tinham dado ao enorme tubarão-branco, sulcava a água a menos de cinco metros da jangada. Ne­nhum dos infelizes que caíam no mar tornava a subir a bordo.

Com cinco profundas feridas de sabre, Huggins se aproximou cam­baleando de Dorsett. Tinha um pedaço de tábua lascada na mão erguida.

Traidor filho da puta! — rosnou.

Dorsett se curvou para a frente, estendendo o braço que empunhava a faca.

Mais um passo e você está morto — disse com calma.

Enfurecido, Huggins retrucou:

É você quem vai servir de jantar aos tubarões, salteador!

E, baixando a cabeça, arremeteu, brandindo feito uma foice o pedaço de pau.

No instante em que foi atacado, o salteador se jogou de quatro no chão. Incapaz de se deter, o enraivecido gales nele tropeçou e foi cair pesadamente mais adiante. Sem lhe dar tempo para se levantar, Dorsett saltou sobre suas costas gordas e, num movimento ágil, cortou-lhe a garganta.

Você não vai comer mulher nenhuma esta noite — disse ao sentir o corpo de Huggins contrair-se antes de amolecer e tombar sem vida.

Dorsett matou outros três homens naquela noite fatal. Durante a batalha, foi atacado por um pequeno grupo de comparsas de Huggins, que estavam agredindo as mulheres. Liquidou-os um a um.

Betsy combateu a seu lado, gritando sem parar e cravando as unhas nos inimigos, como uma pantera. O único ferimento de Dorsett foi infligido por um homem que, com um grito de guerra, mordeu-lhe ferozmente o ombro.

A sangrenta batalha prosseguiu por mais duas horas. Scaggs e seus marujos, Sheppard e seus soldados lutaram desesperadamente, repe­lindo cada assalto e contra-atacando. Muitas e muitas vezes, a massa ensandecida foi empurrada pelas fileiras cada vez mais escassas dos defensores, que a qualquer preço procuravam manter-se no centro da jangada. Sheppard tombou, apunhalado por dois criminosos. Ramsey sofreu graves ferimentos, e Scaggs teve duas costelas quebradas. Infe­lizmente, durante o conflito, os amotinados conseguiram matar e jogar no mar duas mulheres. Por fim, abatidos pelas terríveis baixas, um a um, ou aos pares, começaram a recuar para o perímetro da embarcação.

Ao amanhecer, viam-se mortos espalhados por toda parte. Estava pronto o cenário para o segundo ato daquele drama macabro. Ante os olhos incrédulos dos soldados e dos marinheiros, os presidiários co­meçaram a cortar e devorar os antigos companheiros. Foi uma cena de pesadelo.

Fazendo uma grosseira contagem dos sobreviventes, Ramsey cons­tatou com assombro que somente setenta e oito dos duzentos e trinta e um continuavam vivos. Num combate absurdo, pereceram cento e nove condenados. Cinco dos soldados de Sheppard tinham sumido no mar, e Ramsey contou doze mortos ou desaparecidos na tripulação do Gladiator. Era incrível que tão poucos tivessem vencido a tantos, mas os presos não estavam preparados para o combate como os soldados de Sheppard, nem eram tão endurecidos pelo pesado trabalho no mar como a tripulação de Scaggs.

A jangada passou a navegar bem mais levemente agora que a lista de passageiros tinha se reduzido a qualquer coisa em torno de cento e vinte e seis. Os restos dos cadáveres não devorados pela turba faminta foram jogados aos tubarões. Impotente para impedi-los, Scaggs reprimiu a náusea e tratou de olhar para outro lado quando a própria tripulação, igualmente alucinada pela agonia da fome, se pôs a cortar a carne de três dos mortos.

Dorsett, Betsy e a maior parte das mulheres, embora debilitados pelo tormento do estômago vazio, não foram capazes de se alimentar dos outros. Um aguaceiro que caiu na tarde lhes aplacou a sede; a fome, porém, não lhes dava trégua.

Ramsey se acercou de Dorsett.

O capitão quer falar com você.

O salteador acompanhou o imediato ao lugar onde Scaggs estava deitado, com as costas apoiadas ao mastro da popa. O cirurgião-superintendente Gorman lhe bandava a caixa torácica com uma camisa ras­gada. Antes que os cadáveres fossem jogados ao mar, o médico os despira e agora utilizava as roupas como ataduras. Com o rosto tenso de dor, Scaggs olhou para o salteador.

Quero agradecer-lhe, senhor Dorsett, por nos haver alertado a tempo. Reconheço que as pessoas honestas que continuam vivas nesta embarcação infernal devem a vida ao senhor.

Eu levo uma vida ruim, capitão, mas não me misturo com essa gentalha podre.

Quando chegarmos a Nova Gales do Sul, farei o possível para convencer o governador a comutar sua pena.

Fico agradecido, capitão. Estou a suas ordens.

Scaggs olhou para a faca na cinta de Dorsett.

Essa é a sua única arma?

Sim, senhor. Funcionou admiravelmente ontem.

Dê a ele um sabre — ordenou a Ramsey. — Ainda não estamos livres desses cães.

Concordo — disse o salteador. — Eles não terão a mesma fúria sem a liderança de Jake Huggins, mas estão muito transtornados pela sede para desistir. Tentarão novamente quando escurecer.

Suas palavras foram proféticas. Por motivos conhecidos apenas pelos homens perturbados pela falta de alimento e água, os presidiários ata­caram duas horas depois do pôr-do-sol. O assalto não foi impetuoso como o da noite anterior. Aqueles vultos espectrais se engalfinharam, esbordoando-se e talhando-se; os corpos dos criminosos, dos marinhei­ros e dos soldados misturavam-se à medida que iam caindo.

A determinação dos condenados tinha sido abalada por mais um dia sem comer nem beber. Sua resistência diminuiu e rompeu-se re­pentinamente quando os defensores contra-atacaram. Debilitados, eles recuaram tropegamente. Scaggs e seus leais marujos os golpeavam no centro, enquanto Dorsett e o que restava dos soldados de Sheppard arremetiam pelo flanco. Em vinte minutos tudo estava acabado.

Cinqüenta e dois pereceram. Ao amanhecer, restavam apenas vinte e cinco homens e três mulheres dos setenta e oito da noite anterior: dezesseis presidiários, inclusive Jess Dorsett, Betsy Fletcher e duas ou­tras moças; dois soldados e dez tripulantes do Gladiator, inclusive o capitão Scaggs. O imediato Ramsey estava entre os mortos. O cirurgião-superintendente Gorman foi mortalmente ferido e faleceu naquela tarde. Dorsett recebeu uma profunda cutilada na coxa direita, e Scaggs leve de acrescentar às costelas quebradas uma fratura na clavícula. Cu­riosamente, Betsy se saiu apenas com pequenas contusões e cortes.

Os condenados estavam totalmente vencidos; nenhum escapara sem um ferimento grave. A louca batalha pelo controle da jangada estava encerrada.

No décimo dia daquele horrível transe, outros seis tinham morrido. Dois rapazinhos: um taifeiro com menos de doze anos e um soldado de dezesseis preferiram buscar a morte, arrojando-se no mar. Os outros quatro eram presos que sucumbiram aos ferimentos. Foi como se o número cada vez mais reduzido de sobreviventes estivesse diante de um delírio terrível. O abrasivo tormento do sol retornou como uma lebre ardente, acompanhada de delírios.

No décimo segundo dia, restavam apenas dezoito. Os que ainda conseguiam andar estavam andrajosos, com o corpo coberto de feridas, o rosto desfigurado pelas queimaduras, a pele coberta de escoriações provocadas pelas tábuas soltas e as imersões em água salgada. Encontravam-se muito além da desesperança, e seus olhos fundos começaram a ter visões. Dois marinheiros, jurando estar vendo o Gladiator, atiraram-se ao mar e nadaram na direção do navio imaginário até afogar-se ou ser capturados pelo indefectível Carrasco e seus companheiros.

As alucinações conjuravam imagens de mesas de banquete repletas de comida e bebida e de populosas cidades ou residências que ninguém visitava desde a infância. Scaggs imaginou-se sentado diante de uma lareira, com a esposa e os filhos, num chalé com vista para Aberdeen.

Pousando em Dorsett um olhar súbito e estranho, disse:

Nada pirecisamos temer. Mandei uma mensagem para o almirantado. Vão nos enviar socorro.

Tão atordoada quanto o capitão, Betsy lhe perguntou:

Que pombo o senhor usou para mandar a mensagem, o preto ou o cinzento?

Os lábios ressecados e gretados de Dorsett se torceram num doloroso sorriso. Surpreendentemente, havia conservado o juízo e ajudara os poucos marinheiros que ainda conseguiam trabalhar a reparar os danos na jangada. Tendo encontrado alguns farrapos de lona, ergueu um pe­queno toldo sobre Scaggs. Betsy passou a tratar das feridas do capitão, devotando-lhe o mais delicado zelo. O capitão, o salteador de estradas e a ladra se tornaram amigos no lento decorrer das horas.

Como havia perdido os instrumentos de navegação durante a luta, Scaggs não tinha idéia de onde se encontrava. Mandou os homens pescar com barbante e improvisar anzóis com agulhas. A isca era carne hu­mana. Os peixes menores não fizeram caso da oferta de comida. Cu­riosamente, nem mesmo os tubarões se interessaram por ela.

Dorsett amarrou uma corda no punho de um sabre e o arremessou no dorso de um tubarão-negro que estava perto da embarcação. Sem forças para lutar com o monstro das profundezas, amarrou no mastro a outra extremidade da corda. E esperou que o animal morresse para, então, tentar içá-lo a bordo. Não obteve por recompensa senão uma lâmina vazia, dobrada num ângulo de noventa graus. Dois marinheiros ataram as baionetas a pedaços de pau, improvisando arpões. Atingiram vários tubarões que, no entanto, sequer se mostravam incomodados pelas feridas.

Haviam desistido de conseguir alimento quando, no final daquela tarde, um enorme cardume de tainhas passou por baixo da jangada. Tendo entre trinta centímetros e um metro, podiam ser arpoadas e puxadas a bordo bem mais facilmente do que os tubarões. Quando o cardume se foi, sete corpos em forma de charuto e com a cauda bifurcada debatiam-se nas tábuas encharcadas da balsa.

Deus não nos desamparou — murmurou Scaggs, olhando para os peixes prateados. — As tainhas geralmente habitam as águas rasas. Nunca as vi em alto-mar.

É como se Ele as tivesse mandado diretamente para nós — disse Betsy, com os olhos arregalados diante de sua primeira refeição em quase duas semanas.

A fome era tal, e tão poucos os peixes, que tiveram de adicionar ao repasto a carne de uma mulher horas antes falecida. Era a primeira vez que Scaggs, Dorsett e Betsy provavam carne humana. Por estranho que fosse, o canibalismo parecia de certo modo justificado quando mis­turado com o consumo de peixe. E, como estava parcialmente dissi­mulado, o sabor resultou menos repulsivo.

Outra bênção foi um novo aguaceiro, que durou uma hora, e os abasteceu com cerca de oito litros de água.

Embora tivessem recuperado temporariamente as forças, o desespero ainda se estampava em seus rostos. As feridas e as contusões, irritadas pela água salgada, causavam uma agonia sem fim. E o sol continuava a atormentá-los. O ar era abafado e o calor, intolerável. A noite trazia certo alívio com as temperaturas mais baixas. Alguns passageiros, po­rém, não suportaram mais um dia de miséria. Cinco deles, quatro con­denados e o último soldado, lançaram-se silenciosamente ao mar e mor­reram depressa.

No décimo quinto dia, só Scaggs, Dorsett, Betsy Fletcher, três ma­rinheiros e quatro presidiários, entre eles uma mulher, continuavam vivos. Já não se preocupavam. A morte parecia inevitável. A chama da autopreservação se apagara. As tainhas haviam se acabado fazia tempo e, embora os mortos tivessem sustentado os vivos, a falta de água e o tórrido calor tornavam impossível sobreviver outras quarenta e oito horas.

Então, algo se passou que lhes desviou a atenção dos indizíveis hor­rores dos últimos quinze dias. Um enorme pássaro marrom-esverdeado surgiu repentinamente no céu, voou três vezes ao redor da jangada e, depois, ficou a planar a cerca de meio metro do mastro da proa. Com os olhos amarelos, de negras pupilas, examinou os patéticos seres hu­manos na embarcação, vestindo trapos, com os membros e o rosto co­bertos das cicatrizes dos combates e dos impiedosos raios do sol. A idéia de capturar e devorar a ave ocorreu instantaneamente a todos.

Que pássaro estranho é aquele? — perguntou Betsy. Tinha a língua tão inchada que sua voz não era mais do que um sussurro.

Um papagaio — murmurou Scaggs. — Um de meus antigos ofi­ciais tinha um parecido.

Eles voam em alto-mar como as gaivotas? — quis saber Dorsett.

Não. Esses papagaios vivem na Nova Zelândia e nas ilhas pró­ximas. Nunca ouvi dizer que chegassem tão longe, a menos que... — Scaggs fez uma pausa. — A menos que se trate de outra mensagem do Todo-Poderoso. — E, levantando-se com dificuldade, escrutou o horizonte. — Terra! — exclamou com alegria. — Terra! A oeste!

Em sua letárgica apatia, os náufragos não se haviam dado conta de que a jangada estava sendo arrastada pelas ondas na direção de um par de colinas que se erguiam no mar a cerca de vinte quilômetros. Todos voltaram os olhos para oeste e viram uma ilha grande, com dois morros baixos, um em cada extremidade, e uma floresta verdejante entre eles. Ficaram um bom tempo emudecidos, entregues à expectativa e ao temor de que as correntes os arrastassem ao largo da salvação. Quase todos os esquálidos sobreviventes se colocaram de joelhos, rogando que fossem levados à praia.

Uma hora mais tarde, Scaggs constatou que a ilha estava se tornando maior.

Esta corrente está nos empurrando para lá — anunciou com ale­gria. — E um milagre. Nenhum mapa registra uma ilha nesta parte do oceano.

Deve ser desabitada — arriscou Dorsett.

Que linda! — murmurou Betsy, olhando para a exuberante floresta que separava os dois montes. — Espero encontrar lagos com muita água fresca.

A inesperada promessa de sobrevivência reavivou as forças que lhes restavam, inspirando-os a agir. O desejo de capturar o papagaio desapareceu rapidamente. A ave mensageira foi considerada de bom agouro. Scaggs e seus poucos marinheiros improvisaram uma vela com o esfarrapado toldo, enquanto Dorsett e os presidiários restantes tratavam de arrancar as tábuas da coberta e com elas remavam fe­brilmente. Então, como que a guiá-los, o papagaio bateu asas e tomou o rumo da ilha.

A massa de terra se elevava e se espalhava no horizonte ocidental, atraindo-os como um ímã. Eles continuavam remando com energia, decididos a pôr fim ao sofrimento. Uma brisa soprou a suas costas, empurrando-os mais depressa ao santuário, aumentando-lhes o delírio da esperança. Já não teriam de aguardar, resignados, a morte. A salvação se encontrava a menos de seis quilômetros.

Com suas últimas forças, um dos marujos trepou no mastro e, tol­dando a vista, olhou para o mar.

Que está vendo? — perguntou Scaggs.

Parece que estamos indo para um recife de coral ao redor de uma lagoa.

O capitão se voltou para Dorsett e Fletcher.

Se não conseguirmos entrar por um canal, as ondas nos arrojarão no recife.

Trinta minutos mais tarde, o marinheiro gritou do mastro:

Estou vendo uma passagem no recife a duzentos metros a estibordo!

Remem! — ordenou Scaggs ao que restava da tripulação. — De­pressa!

Um medo terrível os possuiu face o rebentar das ondas na parte mais externa do recife. O mar se precipitava numa explosão de espuma. O ruído da água em colisão com os corais lembrava os tiros de um canhão. As vagas se elevaram a grandes alturas quando eles se apro­ximaram. O pavor substituiu o desânimo quando os ocupantes da jan­gada compreenderam a destruição que ocorreria se, jogados pela força esmagadora das ondas, se chocassem com o recife.

Scaggs prendeu debaixo do braço a improvisada cana do leme e dirigiu rumo ao canal, enquanto os marinheiros trabalhavam na esfar­rapada vela. Com aparência de velhos espantalhos, os condenados re­mavam inutilmente. Seus débeis esforços de pouco serviam para im­pulsionar a embarcação. Somente quando todos passaram a remar ao mesmo tempo e do mesmo lado, como ordenou o capitão, prestaram ajuda efetiva.

A jangada foi capturada por uma muralha de agitada espuma que a arrastou numa velocidade terrível. Durante um brevíssimo momento, foi erguida na crista, para a seguir precipitar-se no abismo. Dois pre­sidiários foram tragados pela turbulência verde-azulada e não tornaram a ser vistos. A castigada embarcação estava se desfazendo. Desgastadas pelos incessantes movimentos do mar, as cordas começaram a se es­garçar e partir-se. O estrado de mastros que sustentava as tábuas da coberta rachou. A jangada gemeu, inundada pela vaga seguinte. Para Dorsett, o imóvel recife de coral parecia ao alcance da mão.

E então foram arrastados pelo canal entre as bordas denteadas do recife. A onda os carregou, a jangada a girar, seus pedaços a brilhar ao sol. Quando o estrado principal finalmente se desintegrou, os so­breviventes foram jogados na água.

Uma vez ultrapassada a barreira do recife, o mar azul se fez tão sereno quanto um lago montanhês, ganhando um tom profundo de turquesa. Dorsett subiu à superfície em busca de ar. Segurava firme­mente a cintura de Betsy.

Você sabe nadar?

Ela sacudiu violentamente a cabeça, vomitando a água que tinha engolido.

Não sou capaz de dar uma braçada.

Nadando na direção de um dos mastros da jangada, que flutuava a menos de três metros, ele a arrastou consigo. Assim que o alcançou, ajudou-a a segurar-se na superfície curva. Colocou-se a seu lado, ten­tando recuperar o fôlego e acalmar o coração disparado. Estava muito debilitado pelos últimos esforços. Um ou dois minutos depois, olhou a sua volta para avaliar os escombros.

Ainda vivos, Scaggs e dois marinheiros se encontravam a pouca distância, subindo numa pequena parte da coberta ainda milagrosa­mente intacta. Não tardaram a arrancar as tábuas para usá-las como remos. Dos condenados, dois homens e a mulher flutuavam, agarrados ao que restava da jangada do Gladiator.

Dorsett se voltou e olhou para a ilha. Uma bela praia de areia branca se abria a menos de quinhentos metros.

Agüente-se aí com Betsy! — gritava-lhe Scaggs. — Vamos reco­lhê-los, e aos outros. Depois remaremos à praia.

O salteador respondeu com um aceno e beijou Betsy na testa.

Trate de não me abandonar agora, garota. Daqui a meia hora estaremos pisando terra firme e seca...

Interrompeu-se com súbito pavor. A alegria durara pouco. A alta barbatana de um tubarão-branco circulava ao redor dos escombros, em busca de uma presa. O Carrasco os havia seguido.

Não era justo, pensou Dorsett. Haver padecido tanto, para ser apa­nhado pela morte quando faltava tão pouco para alcançar a salvação. Pouca gente era tão desgraçada. Apertando Betsy fortemente nos braços, viu com mórbido terror quando o tubarão, cessando de nadar em cír­culos, veio em sua direção e, lentamente, imergiu. Com o sangue con­gelado nas veias, esperou impotente que os afiados dentes se cravassem em seu corpo.

Então, repentinamente, deu-se um novo milagre.

As águas calmas transformaram-se num caldeirão fervente. Um jato subiu no ar, seguido do tubarão-branco. A fera assassina debatia-se furiosamente, tentando abocanhar, como um cachorro, uma gigantesca serpente do mar que nele estava enrolada.

Agarrados aos destroços, os náufragos assistiram abismados à luta mortal dos dois monstros das profundezas.

De seu lugar nos restos da jangada, Scaggs podia observar como­damente a batalha. Segundo seus cálculos, o enorme corpo da criatura em forma de enguia media de dezoito a vinte metros e tinha o diâmetro de um grande barril de farinha. Sua boca se abria e se fechava espasmodicamente, exibindo fileiras de presas curtas e agudas. A pele apa­rentemente lisa era marrom-escura no dorso, quase preta, ao passo que o ventre apresentava a cor do marfim. Scaggs ouvira muitos casos de navios que tinham avistado serpentes marinhas, porém jamais os con­siderara mais do que visões provocadas pelo excesso de rum. Tomado de pavor, mal podia acreditar que estava vendo o temível Carrasco debater-se violentamente no inútil esforço de se livrar do feroz atacante.

O corpo compacto e cartilaginoso do tubarão o impedia de virar suficientemente a cabeça para trás, a fim de morder a serpente. Apesar de sua força tremenda e de suas frenéticas convulsões, não conseguia escapar. Descrevendo velozes círculos no azul do mar, o peixe e a ser­pente desapareceram sob a superfície, para logo ressurgir numa explo­são que voltou a converter a água em espuma.

A serpente começou então a morder a abertura da guelra do tubarão, poucos minutos depois, o titânico combate perdeu o ímpeto, a luta agônica do tubarão cessou, e os dois monstros desceram lentamente às profundezas. O caçador se tornara caça de outro caçador.

Após a épica batalha, Scaggs não tardou a içar os presidiários ao pequeno pedaço da jangada que ainda flutuava. Assombrados com o que acabavam de presenciar, os pobres sobreviventes finalmente che­garam à praia e desceram cambaleantes na branca areia, deixando aquele mundo de pesadelo para entrar num Éden ainda desconhecido dos navegantes europeus.

Logo acharam um curso de água cristalina que descia do monte vulcânico da extremidade sul da ilha. Na região da floresta, nasciam cinco variedades de frutas tropicais, e a lagoa estava repleta de peixes. Passado o perigo, somente oito dos duzentos e trinta e um que buscaram refúgio na jangada do Gladiator viveram para contar os horrores dos quinze dias à deriva nas abrasivas solidões do mar.

 

Seis meses depois da trágica perda do Gladiator, a lembrança foi efemeramente reavivada quando um pescador, chegando à praia para reparar um rombo em seu bote, avistou, emergindo na areia, uma mão que empunhava uma espada. Ao desenterrar o objeto, ficou surpreso: tratava-se da imagem de um antigo guerreiro em tamanho natural. Levou a escultura de madeira a Auckland, a cinqüenta quilômetros dali, na Nova Zelândia, onde a identificaram como a figura de proa do clíper perdido.

Depois de restaurado, o guerreiro foi levado a um pequeno museu marítimo, onde os visitantes o examinavam cheios de curiosidade pelo mistério do desaparecimento do navio.

O enigma do clíper Gladiator foi finalmente esclarecido, em julho de 1858, por um artigo publicado no Sydney Morning Herald.

 

RETORNO DA MORTE

Os mares da Austrália já testemunharam muitas visões insólitas, porém nenhuma comparável ao súbito retorno do capitão Charles "Durão" Scaggs, dado como desaparecido quando seu clíper Gladiator, de pro­priedade de Carlisle & Dunhill, de Inverness, desapareceu no mar da Tasmânia durante o terrível tufão de janeiro de 1856, a apenas quinhentos quilômetros ao sul de Sídnei.

O capitão Scaggs assombrou a todos ao entrar no porto de Sídnei num minúsculo barco que ele e os poucos sobreviventes da tripulação cons­truíram durante sua estada numa ilha que não consta nos mapas. A figura de proa do navio, encontrada na costa ocidental da Nova Ze­lândia havia um ano e meio, confirmou a perda do navio. Até o mira­culoso retorno do capitão Scaggs, não se sabia como a embarcação se havia perdido nem que destino tiveram os cento e noventa e dois pre­sidiários que estavam sendo levados à colônia penal, assim como os onze soldados e os vinte e oito tripulantes.

Segundo o capitão, somente ele e outros dois chegaram à ilha desabitada, onde sofreram muito durante dois anos, até conseguir construir um pe­queno veleiro com as ferramentas e o material retirados dos escombros de outro navio naufragado, que foi jogado na praia um ano depois, com a morte de toda a tripulação. Construíram o casco da embarcação com a madeira das árvores que na ilha encontraram.

O capitão Scaggs e seu tripulante Thomas Cochran, o carpinteiro do navio, mostraram-se em ótimas condições apesar do que passaram, e se declararam ansiosos para embarcar no próximo navio com destino à Inglaterra. Expressaram profundo pesar pela trágica morte dos passa­geiros do Gladiator e de seus companheiros, os quais pereceram quando o clíper afundou durante o tufão. Inacreditavelmente, Scaggs e Cochran conseguiram agarrar-se a um pedaço de madeira e flutuaram vários dias, até que uma corrente os arrastou, mais mortos do que vivos, ao litoral da ilha deserta.

O pequeno pedaço de terra onde os dois homens sobreviveram durante mais de dois anos não pôde ser localizado, pois Scaggs perdeu no nau­frágio todos os instrumentos de navegação. Seus cálculos situam a ilha a aproximadamente seiscentos e cinqüenta quilômetros a leste-sudeste de Sídnei, numa região que outros navegadores afirmam ser totalmente desprovida de terra.

O tenente Silas Sheppard, cujos pais residem em Hornsby, e seu desta­camento de dez homens do Regimento de Infantaria de Nova Gales do Sul, que estavam custodiando os prisioneiros, foram também dados como mortos.

 

A HERANÇA

17 de setembro de 1876 - Aberdeen, Escócia

Depois de retornar à Inglaterra, onde passou um curto período com a esposa e os filhos, Scaggs foi convidado pela Carlisle & Dunhill a comandar o mais novo e sofisticado clíper da companhia, o Culloden. Depois de outras seis exaustivas viagens comerciais à China, nas quais estabeleceu dois recordes, Durão Scaggs, esgotado na idade precoce de quarenta e sete anos, aposentou-se e fixou-se definitivamente em Aber­deen.

Os capitães de clíperes envelheciam antes do tempo. O comando dos navios mais velozes do mundo exigia muito do corpo e do espírito. A maioria morria ainda jovem. Boa parte deles ia para o fundo do mar com seus veleiros. Formavam a elite dos célebres homens de aço, que governavam barcos de madeira a velocidades espantosas, na época mais romântica da navegação. Desciam ao túmulo, debaixo da terra ou sob as ondas, sabendo que tinham dirigido os maiores veleiros construídos pelo homem.

Duro como as vigas das embarcações, Scaggs estava partindo em sua derradeira viagem aos cinqüenta e nove anos. Tendo ganhado muito dinheiro, investindo em ações da companhia em suas últimas quatro viagens, deixaria aos filhos uma considerável fortuna.

Sozinho após a morte de sua querida esposa Lucy, os filhos adultos e com suas próprias famílias, ele conservou o amor pelo mar, navegando entre as ilhotas da Escócia num pequeno veleiro que construiu com as próprias mãos. Foi depois de uma breve viagem no frio intenso, para visitar o filho e os netos em Peterhead, que adoeceu.

Poucos dias antes de morrer, mandou chamar seu velho amigo e antigo empregador, Abner Carlisle. Respeitável armador, que acumu­lara uma enorme fortuna com o sócio, Alexander Dunhill, Carlisle era um dos mais notáveis habitantes de Aberdeen. Além da companhia de navegação, possuía empresas mercantis e um banco. Caridoso, dedicava muita atenção à biblioteca local e a um hospital. Era magro, seco e completamente calvo. Tinha olhos doces e coxeava bastante, devido a uma queda do cavalo quando jovem.

Foi recebido pela filha do capitão, Jenny, a quem conhecia desde o berço. Ela o abraçou, depois lhe segurou a mão.

Que bom que veio, Abner. Ele pergunta por você a cada meia hora.

Como vai o velho lobo-do-mar?

Acho que não vai durar muito — respondeu a moça com tristeza.

Carlisle olhou a sua volta. A casa confortável estava repleta de mo­bília náutica; nas paredes, havia cartas de navegação assinaladas com as jornadas diárias das viagens recordes de Scaggs.

Vou ter saudade desta casa.

Meus irmãos acham melhor vendê-la.

Jenny o levou ao andar superior; entraram num quarto com uma ampla janela com vista para o porto de Aberdeen.

Papai, Abner Carlisle chegou.

Já era tempo — resmungou Scaggs, mal-humorado.

Ela endereçou a Carlisle uma piscadela.

Vou preparar um chá para você.

Um velho assolado por três décadas de vida dura no mar jazia imóvel na cama. Por pior que fosse o estado de Scaggs, Carlisle ficou mara­vilhado com a chama que ainda ardia em seus olhos verdes.

Estou com um barco novo para você, Durão.

Com mil diabos! — disse o capitão, com voz rouca. — De que cordame?

Nenhum. É um vapor.

Scaggs ficou vermelho e ergueu a cabeça.

Maldição! Deviam proibir essas porcarias que só servem para sujar o mar!

Foi a resposta que Carlisle esperava. Durão Scaggs podia estar com o pé na cova, porém morreria com a firmeza com que vivera.

Os tempos mudaram, meu velho. O Cutty Sark e o Thermopylae são os únicos clíperes que continuam trabalhando no mar.

Não tenho tempo para conversa fiada. Pedi-lhe que viesse para que ouvisse minha confissão de moribundo e me fizesse um favor.

Olhando para o velho marujo, Carlisle disse com sarcasmo:

Você espancou um mendigo ou andou dormindo com uma chinesinha num bordel de Xangai?

Estou me referindo ao Gladiator — murmurou Scaggs. — Eu menti.

Ele naufragou num tufão. Que mentira você poderia ter contado?

Naufragou num tufão, é verdade, mas os passageiros e a tripulação não foram para o fundo com ele.

Carlisle ficou vários minutos em silêncio. Depois, falou com cautela:

Charles Durão Scaggs, você é o homem mais sincero que conheço. Iim meio século, nunca o vi faltar à verdade. Tem certeza de que não é a doença que o está fazendo dizer tolices?

Acredite em mim quando digo que vivi uma mentira durante vinte anos. Para pagar uma dívida.

Carlisle o encarou, intrigado.

Que está querendo me contar?

Uma história que não contei a ninguém. — Scaggs reclinou a cabeça no travesseiro e olhou para o vazio, para alguma coisa que só ele conseguia ver na distância. — A história da jangada do Gladiator.

Jenny voltou meia hora depois com o chá. Como estivesse escure­cendo, acendeu os lampiões.

Papai, você precisa comer um pouco. Preparei sua sopa de peixe predileta.

Estou sem apetite, filha.

Abner deve estar morrendo de fome. Passou a tarde inteira com você. Aposto como aceita jantar.

Espere mais uma hora — ordenou o capitão. — Depois comeremos o que você quiser.

Assim que a filha saiu, ele continuou a saga da jangada.

Quando finalmente chegamos à praia, éramos oito. Da tripulação do Gladiator, só sobrevivemos eu, Thomas Cochran, o carpinteiro do navio, e Alfred Reed, um guarda-marinha. Entre os presos estavam Jess Dorsett, Betsy Fletcher, Marion Adams, George Pryor e John Winkleman. Oito das duzentas e trinta e uma almas que embarcaram na Inglaterra.

Vai me perdoar, meu bom amigo — disse Carlisle —, mas não consigo acreditar. Homens a se matar numa jangada perdida no oceano, sobreviventes alimentando-se de carne humana e, depois, escapando de ser devorados por um tubarão graças à intervenção miraculosa de uma serpente marinha, que o mata. E uma história no mínimo incrível.

Você não está ouvindo o delírio de um moribundo — assegurou Scaggs debilmente. — O relato é verdadeiro, palavra por palavra.

Não querendo contrariá-lo inutilmente, o rico armador deu umas palmadinhas no braço do capitão que muito tinha contribuído para a construção do império Carlisle & Dunhill.

Vá em frente. Estou ansioso por saber o fim da história. Que aconteceu depois que os oito desembarcaram na ilha?

Durante os trinta minutos seguintes, Scaggs lhe contou que, num regato, beberam à saciedade a deliciosa água doce que vinha de um dos pequenos montes vulcânicos; descreveu as enormes tartarugas que foram capturadas na lagoa, viradas de ponta-cabeça e mortas com a faca de Dorsett, único utensílio de que dispunham; depois, com a ajuda de uma pedra encontrada à margem da lagoa e utilizando a faca como pederneira, fizeram fogo e cozinharam a carne da tartaruga. Na floresta, foram colhidos cinco tipos diferentes de frutas que Scaggs nunca tinha visto. A vegetação era bem diferente da que estava acostumado a ver na Austrália. Contou que os sobreviventes passaram os dias subse­qüentes comendo até recuperar as forças.

Uma vez restabelecidos, começamos a explorar a ilha — prosse­guiu. — Tinha a forma de um gancho, com oito quilômetros de com­primento e um e meio de largura. Duas maciças montanhas vulcânicas, com cerca de trinta ou quarenta metros de altura, erguiam-se nas ex­tremidades. A lagoa tinha pouco mais de um quilômetro de compri­mento e, do lado do mar, era protegida por um enorme banco de areia. O resto da ilha era cheio de colinas altas.

E estava deserta?

Não vimos vivalma, sequer animais. Só aves. Encontramos ves­tígios de aborígines que a tinham habitado muito tempo antes.

Destroços de navios?

Não quando chegamos.

Depois da calamidade na jangada, aquilo devia ser um paraíso — disse Carlisle.

A ilha mais linda que vi em todos os meus anos de marujo. Uma esmeralda magnífica num mar de safira. — Scaggs hesitou, como que a ver a jóia emergindo do Pacífico. — Em breve estávamos levando uma vida idílica. Encarreguei os sobreviventes de alguns serviços e determinei horários para a pesca, a construção e o reparo dos abrigos, a coleta de frutas e outros alimentos, a constante manutenção de uma fogueira para cozinhar e para chamar a atenção dos navios que por­ventura passassem. Desse modo, vivemos muitos meses em paz.

Aposto que os problemas surgiram entre as mulheres — arriscou Carlisle.

Scaggs sacudiu lentamente a cabeça.

Entre os homens: por causa das mulheres.

Quer dizer que você se viu nas mesmas circunstâncias que os amotinados do Bounty na ilha Pitcairn.

Exatamente. Eu sabia que haveria problemas e estabeleci um pro­grama para que as mulheres fossem igualmente divididas entre os ho­mens. A idéia não agradou a todos, é claro, muito menos às mulheres. Mas não havia outro meio de evitar derramamento de sangue.

Naquela situação, eu teria de concordar com você.

Tudo o que consegui foi acelerar o inevitável. O presidiário John Winkleman assassinou o marinheiro Reed por causa de Marion Adams, e Jess Dorsett se recusou a dividir Betsy Fletcher com os demais. Quando George Pryor tentou estuprá-la, Dorsett lhe partiu a cabeça com uma pedra.

E vocês passaram a ser seis.

Scaggs confirmou com um gesto.

A tranqüilidade finalmente reinou na ilha quando John Winkle­man se casou com Marion Adams e Jess com Betsy.

Casaram-se? — rosnou Carlisle com indignação. — Como assim?

Esqueceu, Abner? Como capitão, eu estava investido de autori­dade para celebrar a cerimônia.

Mas já não se encontravam a bordo. Acho que você forçou um pouco a coisa.

Não me arrependo. Vivemos em harmonia até minha partida com Thomas Cochran.

Você e Cochran não desejavam as mulheres?

O riso de Scaggs se transformou numa tosse. Carlisle lhe deu um copo de água. Recuperando-se, ele respondeu:

Sempre que me vinham essas idéias, eu pensava em minha doce Lucy. Tinha jurado que retornaria da viagem tão casto quanto na partida.

E o carpinteiro?

Por fatalidade, Cochran preferia a companhia dos homens.

Dessa vez foi Carlisle quem riu.

Que gente esquisita você arranjou para acompanhá-lo em suas aventuras!

Não tardou para que construíssemos confortáveis abrigos de pe­dras e vencêssemos o tédio mediante engenhosos artifícios, que torna­vam a existência mais agradável. A habilidade de carpinteiro de Coch­ran foi muito útil quando encontramos as ferramentas apropriadas.

Como foi isso?

Pouco mais de um ano depois, um forte temporal jogou um veleiro francês nos rochedos da extremidade sul da ilha. Apesar de nossos esforços para salvá-los, toda a tripulação pereceu quando a fúria das ondas destruiu o navio. Dois dias depois, o mar se acalmou; recolhemos catorze cadáveres e os enterramos ao lado de George Pryor e Alfred Reed. Depois, Dorsett e eu, que éramos os melhores nadadores, inicia­mos uma operação de mergulho, a fim de recuperar nos destroços tudo o que nos pudesse ser útil. Em três semanas, havíamos resgatado uma pequena montanha de bens, material e ferramentas. Cochran e eu conseguimos todo o necessário para construir um barco robusto que nos levasse à Austrália.

E as mulheres? Que aconteceu com Betsy e Marion? — indagou Carlisle.

Scaggs se entristeceu.

Pobre Marion, era boa e sincera, uma modesta empregada presa por ter roubado comida da despensa do patrão. Morreu ao dar à luz uma filha. John Winkleman ficou desesperado. Enlouqueceu e tentou matar o bebê. Tivemos de deixá-lo quatro dias amarrado a uma árvore, até que finalmente recuperasse o juízo. Mas nunca voltou a ser o mesmo. Desde então e até o momento em que deixei a ilha, raramente pronun­ciava uma palavra.

E Betsy?

Essa era de outra cepa. Forte como um mineiro. Capaz de virar a cabeça de qualquer homem. Teve dois filhos e adotou a filha de Marion. Dorsett e Betsy se adoravam.

Por que não vieram com você?

Acharam melhor ficar na ilha. Eu estava disposto a solicitar ao governador que os indultasse, mas eles não quiseram arriscar. Fizeram bem. Assim que tivessem desembarcado na Austrália, a administração penal lhes tomaria as crianças e as declararia órfãs. O destino de Betsy seria provavelmente tornar-se fiandeira na imunda fábrica de mulheres de Parramatta, ao passo que Jess seria mandado ao quartel de prisio­neiros de Sídnei. Dificilmente voltariam a encontrar-se ou a ver os filhos.

- Prometi-lhes que, enquanto eu vivesse, eles permaneceriam esquecidos, do mesmo modo que as almas perdidas do Gladiator.

E Winkleman?

Ele se mudou para uma gruta na montanha do extremo norte da ilha e passou a morar sozinho.

Carlisle ficou calado, refletindo sobre a história que acabava de ouvir.

E você nunca revelou nada?

Descobri mais tarde que, se tivesse quebrado a minha promessa, o bastardo do governador de Nova Gales do Sul mandaria um navio buscá-los. Ele era capaz de ir ao inferno para recapturar um presidiário foragido. — Scaggs moveu levemente a cabeça e olhou, pela janela, os navios no porto. — Depois que voltei para cá, não vi motivos para contar a história da jangada do Gladiator.

Não tornou a vê-los?

Scaggs sacudiu a cabeça.

Foi uma despedida triste, Betsy e Jess na praia, com os meninos e a filha de Marion, olhando para o mar como pai e mãe felizes. Con­seguiram uma vida que não teria sido possível no mundo... "civilizado".

E Cochran? Como foi possível impedi-lo de falar?

Os olhos de Scaggs brilharam ligeiramente.

Como eu disse, ele também tinha um segredo que não queria que fosse revelado, mesmo porque pretendia voltar ao mar. Naufragou com o Zanzibar no mar da China em 1867.

Você nunca quis saber o que foi feito deles?

Eu sei o que aconteceu — replicou o moribundo.

Carlisle ergueu as sobrancelhas.

Como assim?

Quatro anos após a minha partida, um baleeiro americano avistou a ilha e mandou alguns homens para lá a fim de encher os barris de água. Jess e Betsy entraram em contato com a tripulação, trocaram frutas e peixe fresco por panelas e roupa. Apresentaram-se ao capitão como missionários que haviam conseguido chegar à ilha após um naufrágio. Não muito tempo depois, outros baleeiros começaram a se abastecer de água e alimento na ilha. Um dos navios ofereceu sementes em troca dos chapéus que Betsy fazia com folhas de palmeira, e ela e Jess pas­saram a cultivar vários hectares de legumes e verduras.

Como sabe disso tudo?

Eles começaram a mandar cartas pelos baleeiros.

Ainda estão vivos? — perguntou Carlisle com interesse.

Os olhos de Scaggs se entristeceram.

Jess morreu há seis anos, quando estava pescando. Uma súbita rajada de vento virou seu bote. Betsy disse que deve ter batido a cabeça e se afogado. A última correspondência, acompanhada de um pacote, chegou há apenas dois dias. Está na gaveta de minha escrivaninha. Ela escreveu que estava morrendo de uma doença do estômago.

Carlisle se levantou, atravessou o quarto e se aproximou da velha escrivaninha que Scaggs tinha usado em todas as suas viagens depois do naufrágio do Gladiator. Tirou da gaveta um pequeno embrulho de oleado e o abriu. Lá dentro, encontrou uma bolsa de couro e uma carta dobrada. Voltando à cadeira, colocou os óculos de leitura e passou os olhos pelas palavras.

Para uma moça condenada por roubo, ela escreve muito bem.

As primeiras cartas continham muitos erros, mas Jess era um homem educado, e, sob sua tutela, a gramática de Betsy fez muitos progressos.

Carlisle começou a ler em voz alta.

 

Meu caro capitão Scaggs,

Espero que esta o encontre bem de saúde. É a minha última carta, já que estou sofrendo de uma grave moléstia do estômago, como diz o médico do Ainie & Casou. Em breve vou me reunir ao meu Jess.

Tenho um último pedido a lhe fazer. Na primeira semana de abril deste ano, meus dois filhos e Mary, a filha de Marion, deixaram a ilha a bordo de um baleeiro, cujo capitão estava rumando para Auckland, a fim de reparar os estragos que uma colisão com um recife provocou no casco. Lá, os meninos devem embarcar para a Inglaterra e, aí che­gando, vão procurá-lo em Aberdeen.

Escrevo-lhe, querido amigo, para lhe pedir que os acolha e faça com que sejam educados nas melhores escolas da Inglaterra. Ficarei eterna­mente grata e tenho certeza de que Jess também.

Segue com esta a minha herança, com a qual desejo retribuir os seus préstimos e custear todas as despesas da educação dos meninos. São muito inteligentes e hão de se dedicar aos estudos.

Com profundo respeito, deixo aqui o meu adeus.

Betsy Dorsett

Uma última coisa: a serpente manda lembranças.

 

Carlisle o olhou por cima dos óculos.

"A serpente manda lembranças." Que absurdo é este?

A serpente marinha que nos salvou do tubarão-branco — res­pondeu Scaggs. — Resultou que vivia na lagoa. Durante minha per­manência na ilha, eu a vi com meus próprios olhos em pelo menos quatro ocasiões.

O armador encarou o velho amigo como a um bêbado, e preferiu mudar de assunto.

Ela está mandando essas crianças sozinhas numa longa viagem da Nova Zelândia à Inglaterra?

Não são tão crianças — explicou Scaggs. — O mais velho já deve estar com dezenove anos.

Se partiram no começo de abril, podem aparecer a sua porta a qualquer momento.

Isso se não esperaram muito em Auckland para encontrar um bom navio.

Santo Deus, que situação!

O que você está querendo dizer é: como pode um homem à beira da morte realizar o último desejo de uma velha amiga?

Você não está à beira da morte — disse Carlisle, fitando-o nos olhos.

Estou sim. Você é um homem prático e objetivo, Abner. Ninguém sabe disso melhor do que eu. Foi por isso que mandei chamá-lo antes de partir em minha última viagem.

Quer que eu me encarregue dos filhos de Betsy?

Eles podem ficar morando em minha casa até matricular-se nos melhores estabelecimentos de ensino que o dinheiro pode pagar.

As pobres economias que Betsy há de ter feito, vendendo chapéus o comida aos baleeiros que passavam por lá, não cobrirão as despesas de vários anos numa escola cara. E eles vão precisar de roupa adequada c de preceptores que os orientem nos estudos. Espero que você não esteja pedindo que eu sustente essa gente, que me é totalmente estranha.

Scaggs apontou para a bolsa de couro. Carlisle a apanhou.

Foi isto que Betsy lhe mandou para a educação dos filhos?

O capitão fez que sim.

Abra-a.

O amigo soltou o cordão e tomou na mão o conteúdo da bolsa. Hrgueu os olhos para Scaggs com incredulidade.

Você está brincando? São pedras comuns!

Acredite em mim, Abner. Não são comuns.

Carlisle levou à altura dos olhos uma delas, do tamanho de uma ameixa seca, e a examinou. A superfície era lisa e a forma, octaédrica.

Não passa de um tipo de cristal. Não tem valor.

Leve-as a Levi Strouser.

O joalheiro judeu?

Mostre-lhe as pedras.

Preciosas elas não são — disse Carlisle com firmeza.

Por favor... — pediu Scaggs já sem fôlego; a longa conversa o havia cansado.

Como quiser, meu velho. — O armador consultou seu relógio de bolso. — A primeira coisa que vou fazer amanhã cedo é visitar Strouser. Depois virei aqui com a avaliação.

Obrigado — murmurou o enfermo. — O resto simplesmente acon­tecerá.

Carlisle foi caminhando na garoa da manhã rumo ao antigo bairro comercial de Castlegate. Certificou-se do endereço, subiu a escada de uma das muitas discretas casas cinzentas, construídas com granito local, que davam à cidade de Aberdeen aparência sólida, ainda que insípida. Uma placa de latão, com letras miúdas, dizia simplesmente: "Strouser & Filhos". Tocou a campainha; um funcionário o conduziu a um escri­tório de mobília espartana. Ofereceu-lhe uma cadeira e uma xícara de chá.

Passaram-se poucos e lentos minutos. Um homenzinho com um ca­saco comprido e barba grisalha até o peito entrou por uma porta lateral. Sorrindo gentilmente, estendeu-lhe a mão.

Sou Levi Strouser. Em que posso servi-lo?

Meu nome é Abner Carlisle. Quem me mandou aqui foi um amigo, o capitão Charles Scaggs.

O capitão Scaggs enviou um mensageiro anunciando a sua vinda. E uma honra receber o mais célebre comerciante de Aberdeen em meu humilde escritório.

Já nos conhecemos?

Não freqüentamos exatamente o mesmo círculo social, e o senhor não costuma comprar jóias.

Minha esposa morreu jovem e não voltei a me casar. Portanto, não tenho motivos para comprar bugigangas caras.

Eu também perdi cedo a minha esposa, mas tive a sorte de en­contrar uma mulher adorável, que me deu quatro filhos e duas filhas.

Carlisle fizera muitos negócios com mercadores judeus, mas nunca lidara com gemas. Estava pisando em terreno desconhecido e não se sentia à vontade diante de Strouser. Colocou a bolsa de couro na es­crivaninha.

O capitão Scaggs solicita que o senhor avalie essas pedras.

Strouser estendeu uma folha de papel branco no tampo da mesa e nela espalhou o conteúdo da bolsa. Contou as pedras. Eram dezoito. Sem pressa, examinou cuidadosamente cada uma com a ajuda de uma lupa. Por fim, tomou nas mãos a maior e a menor delas.

Senhor Carlisle, se tiver um pouco de paciência, eu gostaria de submeter estas duas pedras a alguns testes. Vou pedir a meu filho que lhe sirva outra xícara de chá.

Sim, obrigado. Eu posso esperar.

Passou-se quase uma hora até que Strouser voltasse com as pedras. Carlisle era um homem extremamente observador, coisa que o ajudara a fazer milhares de bons negócios desde que adquirira seu primeiro barco, aos vinte e dois anos. Notou que Levi Strouser estava nervoso. Não havia sinais evidentes, suas mãos não estavam trêmulas, ele não apresentava pequenos tiques na boca nem gotas de suor. Eram seus olhos. O joalheiro parecia ter acabado de ver Deus.

Posso saber de onde vêm estas pedras? — indagou.

Não sei a origem exata — respondeu o armador com franqueza.

As minas da índia estão esgotadas, e do Brasil nunca chegou nada assim. Seriam das novas escavações da África do Sul?

Eu não sei. Por quê? Essas pedras têm algum valor?

Não sabe o que é isto? — perguntou Strouser com espanto.

Não sou especialista em minérios. Meu negócio é a navegação.

Como um antigo feiticeiro, Strouser ergueu as mãos sobre as pedras.

Senhor Carlisle, são diamantes! As mais belas pedras não lapi­dadas que já vi.

O velho escocês procurou dissimular o assombro.

Não duvido de sua idoneidade, senhor Strouser, mas não consigo acreditar que esteja falando sério.

Minha família lida com pedras preciosas há cinco gerações, senhor Carlisle. Acredite, há uma fortuna nesta mesa. Elas não só parecem ter transparência e clareza perfeitas, como também possuem uma magnífica e extraordinária coloração rosada, quase violácea. Devido à beleza e à raridade, são muito mais valiosas do que as mais perfeitas pedras incolores.

Carlisle tratou de abreviar a conversa.

Quanto valem?

É quase impossível determinar o valor de pedras brutas, pois suas verdadeiras qualidades só aparecem depois de facetadas e polidas, para realçar o máximo efeito óptico. A menor delas tem sessenta quilates em bruto. — Calou-se e apanhou a maior. — Esta deve ter uns nove­centos e oitenta, o que a torna o maior diamante não lapidado conhecido no mundo.

Imagino que seja um bom investimento mandar lapidá-las antes de vendê-las.

Ou, se o senhor preferir, posso lhe oferecer um bom preço em bruto.

Carlisle começou a guardar as pedras na bolsa.

Não, obrigado. Eu represento os interesses de um amigo que está à morte. Tenho o dever de obter o maior lucro possível.

Strouser percebeu logo que o astuto escocês não se deixaria convencer a negociar as gemas brutas. A oportunidade de comprar os diamantes, lapidá-los e depois vendê-los com um lucro fabuloso, no mercado lon­drino, não estava à mão. Melhor fazer um bom negócio do que nenhum, decidiu ele com sensatez.

Não precisa sair daqui, senhor Carlisle. Tenho dois filhos que aprenderam nas melhores lapidarias de Antuérpia. São tão bons quanto os lapidários de Londres, se não melhores. Quando as pedras estiverem facetadas e polidas, posso ser seu agente, caso o senhor queira vendê-las.

Por que não posso vendê-las eu mesmo?

Pela mesma razão pela qual eu o procuraria para enviar merca­dorias à Austrália em vez de comprar um navio e me encarregar do transporte. Sou membro do London Diamond Exchange, o senhor não. Posso exigir e obter o dobro do preço que o senhor conseguiria.

Carlisle era perspicaz o bastante para avaliar uma possibilidade de bom negócio. Levantando-se, apertou a mão do joalheiro.

Deixo as pedras em suas mãos, senhor Strouser. Creio que será bom para o senhor e para as pessoas que represento.

Pode apostar nisso, senhor Carlisle.

Quando ia sair do escritório, o magnata da navegação se voltou novamente para o judeu.

Quando seus filhos tiverem terminado, quanto acredita que va­lerão as gemas?

Strouser olhou para as pedras aparentemente comuns.

Se essas pedras forem de um veio ilimitado e que possa ser ex­plorado com facilidade, os proprietários hão de estabelecer um império de extraordinária riqueza.

Perdoe-me, mas o senhor não está exagerando? Strouser o encarou e sorriu.

Pode crer que, quando estiverem lapidadas e polidas, estas pedras poderão ser vendidas por algo em torno de um milhão de libras.

Santo Deus! — exclamou Carlisle. — Tudo isso?

Strouser segurou entre os dedos e ergueu à luz a enorme gema de novecentos e oitenta quilates. Falou com profunda reverência.

Talvez mais, muito mais.

 

A MORTE VINDA DE LUGAR NENHUM

14 de janeiro de 2000 - Ilha Seymour, Península Antártica

Pairava uma maldição na ilha. Uma maldição confirmada pelos tú­mulos dos homens que haviam posto os pés naquelas praias proibidas para nunca mais voltar. Não havia beleza ali, decerto nada parecido com os majestosos picos cobertos de gelo, os glaciares quase tão altos quanto as Colinas Brancas, de Dover, ou os icebergs a flutuar serena­mente, feito castelos de cristal, que se esperava ver ao redor da grande massa de terra da Antártida e de suas ilhas.

A ilha Seymour compreendia a maior superfície sem gelo do conti­nente ou das proximidades. A poeira vulcânica lá depositada ao longo dos milênios apressava o derretimento da neve, deixando vales secos e montanhas sem vestígio de cor, praticamente nuas. Era um lugar singularmente feio, habitado apenas por umas poucas variedades de líquen e uma colônia de pingüins, que lá encontrava uma fonte abun­dante de pedrinhas com que construíam os ninhos.

Em sua maior parte, os mortos sepultados nas covas rasas que se elevavam nas rochas eram de uma expedição norueguesa, cujo navio fora esmagado pelo gelo em 1859. Sobreviveram dois invernos, até que a reserva de alimento se esgotasse; depois, morreram de fome um a um. Perdidos durante mais de uma década, foram encontrados ainda conservados, em 1870, pelos ingleses que estavam construindo uma estação de pesca de baleias.

Outros pereceram e foram sepultados sob as rochas da ilha Seymour. Alguns sucumbiram a doenças; outros, a acidentes ocorridos durante a temporada de pesca de baleias. Alguns perderam a vida quando se afastaram da estação, surpreendidos por uma tempestade ou congelados pela ventania. Curiosamente, seus túmulos estavam bem demarcados.

As tripulações dos baleeiros, aprisionadas no gelo, passavam o inverno, até que a primavera trouxesse o degelo, gravando inscrições em enormes pedras que, depois, assentavam nas sepulturas. Quando os ingleses fecharam a estação, em 1933, jaziam sessenta corpos naquela horrível paisagem.

As almas penadas de exploradores e marinheiros que vagavam na­queles ermos nunca imaginaram que um dia seus jazigos estariam fer­vilhando de contadores, advogados, encanadores, donas de casa e ido­sos cidadãos aposentados, que chegavam em luxuosos navios turísticos, a fim de examinar, apalermados, as inscrições nas pedras e sorrir com ternura para os engraçados pingüins que habitavam as praias. Talvez a ilha lançasse a sua maldição também sobre aqueles intrusos. Talvez.

Os impacientes passageiros a bordo do cruzeiro nada viram de ominoso na ilha Seymour. A salvo no conforto de seu palácio flutuante, avistaram apenas uma terra distante, inexplorada e misteriosa, que se erguia no mar azul qual uma iridescente pena de pavão. Sentiam-se simplesmente entusiasmados com a nova experiência, sobretudo porque faziam parte da primeira leva de turistas que pisava na ilha. Aquela era a terceira das cinco paradas programadas nas ilhas da península, decerto não a mais atraente, porém uma das mais interessantes, segundo a literatura turística.

Muitos tinham percorrido a Europa e o Pacífico, admirado os habi­tuais lugares exóticos a que afluíam os viajantes. Agora queriam algo mais, algo diferente; uma visita a um recanto que poucos tinham visto, um sítio remoto do qual depois poderiam vangloriar-se perante amigos e vizinhos.

Estavam aglomerados no convés, perto da prancha de embarque, antecipando alegremente a excursão em terra firme, ajustando as teleobjetivas nos pingüins. Maeve Fletcher caminhava entre eles, exami­nando os impermeáveis alaranjados que a tripulação distribuíra junta­mente com os coletes salva-vidas para a curta viagem entre o navio e a praia.

Enérgica e em constante movimento, levava de um lado para outro a concentrada vivacidade de seu corpo ágil. Era mais alta do que as outras mulheres e a maioria dos homens. Seu cabelo, preso em duas franças, era claro como o ouro. Tinha olhos azuis e um rosto expressivo, com altos pômulos. Seus lábios pareciam sempre entreabertos num cálido sorriso, a exibir uma separação ligeiramente maior entre os dentes centrais superiores. A pele bronzeada lhe dava uma aparência exuberante e saudável.

Maeve tinha vinte e sete anos e um diploma em zoologia. Depois de formar-se, tirou três anos de licença para adquirir experiência, es­tudando a vida animal das regiões polares. Tendo retornado a seu país, a Austrália, estava em meio à dissertação de doutorado, na Universidade de Melbourne, quando lhe ofereceram um emprego temporário, como naturalista e guia de turistas, na Ruppert & Saunders, uma linha de cruzeiros especializada em viagens de aventura, com sede em Adelaide. Face à oportunidade de ganhar dinheiro para concluir a dissertação, ela não hesitou em largar tudo e embarcar no Polar Queen rumo ao grande continente branco.

Nessa viagem, havia noventa e um turistas a bordo. Maeve era uma das quatro naturalistas que dirigiriam as excursões em terra. Por causa da colônia de pingüins, dos edifícios ainda remanescentes das operações de pesca à baleia, do cemitério e do acampamento onde perderam a vida os exploradores noruegueses, a ilha Seymour era considerada um local histórico, de meio ambiente vulnerável. Para reduzir o impacto da afluência de turistas, estes eram levados à praia em grupos separados e a intervalos de duas horas.

Também precisavam seguir um código de comportamento. Não de­viam pisar no líquen nem no musgo nem se aproximar a menos de cinco metros de qualquer forma de vida animal. Tampouco podiam colher suvenires, sequer as pedrinhas que lá abundavam. Eram quase todos australianos, com exceção de alguns neozelandeses.

Maeve fora escalada para acompanhar o primeiro grupo de vinte e dois visitantes. Conferiu a lista de nomes quando os excitados turistas começaram a embarcar no Zodiac, a versátil balsa de borracha projetada por Jacques Cousteau. Ela ia seguir o último passageiro, mas Trevor Haynes, o imediato, a deteve junto à prancha de embarque. Tranqüilo e muito bonito aos olhos da moça, ele não se sentia bem entre os viajantes e raramente aparecia no convés.

Avise a sua turma que não se assuste se o barco se afastar — disse.

Ela o encarou.

Aonde vocês vão?

Está se formando uma tempestade a cerca de duzentos quilômetros daqui. O capitão não quer arriscar expor os passageiros a águas tur­bulentas. Também não quer decepcioná-los, cancelando as excursões

na praia. Pretende avançar vinte quilômetros pela costa e deixar outro grupo na colônia de focas. Depois voltará aqui, para recolhê-los, e re­petirá o processo lá.

Vocês vão colocar o dobro de pessoas em terra na metade do tempo.

É a idéia. Assim, podemos zarpar e estar nas águas relativamente calmas do estreito de Branfield antes que a tempestade chegue.

Eu estava me perguntando por que vocês não tinham lançado âncora. — Maeve gostava de Haynes. Era o único oficial do navio que não tentava continuamente atraí-la a seu camarote após os drinques da noite. — Espero-os em duas horas — disse com um aceno.

Se tiver algum problema, comunique-se pelo rádio portátil.

Ela colocou a mão no pequeno aparelho que levava ao cinto.

Você será o primeiro a saber.

Lembranças aos pingüins.

Pode deixar.

Quando o Zodiac flutuou na água clara e lisa como um espelho, Maeve contou ao pequeno grupo de intrépidos turistas a história do lugar.

A ilha Seymour foi vista pela primeira vez por James Clark Ross, em 1842. Quarenta exploradores noruegueses, perdidos quando o navio foi esmagado pelo gelo, pereceram aqui em 1859. Vamos visitar o lugar onde moraram e, depois, fazer uma pequena caminhada ao terreno onde estão enterrados.

Era naqueles prédios que eles moravam? — perguntou uma se­nhora não muito distante dos oitenta anos, apontando para várias es­truturas numa pequena baía.

Não — respondeu Maeve. — O que a senhora está vendo são os restos de uma estação inglesa de pesca de baleia. Está abandonada. Vamos visitá-la depois de dar um passeio naquele ponto rochoso que estamos vendo ao sul, onde fica a colônia de pingüins.

Mora alguém aqui? — quis saber a mesma mulher.

Os argentinos têm uma estação de pesquisa na extremidade norte da ilha.

Fica longe?

Maeve sorriu com condescendência.

A uns trinta quilômetros.

Em todo grupo há alguém com a curiosidade de uma criança de quatro anos, pensou.

Agora, podiam ver claramente o fundo de rocha nua, sem nenhum tipo de vegetação. Sua sombra os acompanhou cerca de duas braças mais abaixo, quando atravessaram a baía. Não havia ondas quebrando na orla; o mar se estendia, liso, até o litoral, a lamber a rocha exposta com a mansidão das pequenas lagoas. O piloto desligou o motor de popa quando a proa do Zodiac se acercou da praia. A única coisa viva ora um branquíssimo petrel, que planava no céu qual um enorme floco de neve.

Só depois de haver ajudado todos os turistas a desembarcar e, com as altas botas de borracha fornecidas pelo navio, vadear até a praia de seixos, foi que Maeve se voltou e olhou para a embarcação, que se afastava para o norte.

O Polar Queen era pequeno para os padrões dos navios de passa­geiros. Contava apenas setenta e dois metros de comprimento, com tonelagem bruta de duzentos e cinqüenta. Fora construído em Bergen, na Noruega, especialmente para cruzeiros em águas polares. Tinha a robustez de um quebra-gelo, função que era capaz de enfrentar, se necessário. Sua superestrutura e a larga faixa horizontal abaixo da co­berta inferior tinham sido pintadas de um branco glacial. O resto do casco era amarelo-claro. Graças à forma da proa e da popa, conseguia driblar as banquisas e os icebergs com a agilidade de uma lebre. As confortáveis cabinas eram mobiliadas no estilo dos chalés de esqui, com janelas panorâmicas para o mar. Outras amenidades incluíam um salão e um restaurante luxuosos, comandado por um chef capaz de formidáveis proezas culinárias; uma academia de ginástica; uma bi­blioteca repleta de livros e informações sobre as regiões polares. A tri­pulação era bem treinada e superava em vinte o número de passageiros.

Inexplicavelmente, Maeve sentiu uma ponta de tristeza quando o Polar Queen diminuiu na distância. Durante um breve momento, expe­rimentou a apreensão que os exploradores noruegueses deviam ter pro­vado ao ver desaparecer seu único meio de sobrevivência. Tratou logo de afastar o mal-estar e se pôs a conduzir o grupo na cinzenta paisagem lunar do cemitério.

Concedeu-lhes vinte minutos para vagar entre as tumbas, tirando rolos inteiros de fotografias das inscrições. Depois, levou-os a uma gi­gantesca pilha de ossos de baleia, perto da antiga estação, ao mesmo tempo em que explicava o método com que os pescadores processavam os cetáceos.

— Passados o perigo e a excitação da caçada e do abate — contou —, vinha o detestável serviço de esfolar as baleias e transformar a gor­dura em óleo. "Cortar e arrancar", como diziam os antigos.

A seguir, vieram as antigas cabanas e o prédio onde se derretia a gordura. A estação, mantida e monitorada anualmente pelos ingleses, era considerada um museu. A mobília, os utensílios de cozinha, do mesmo modo que antigos livros e revistas usadas, permaneciam no lugar onde os pescadores os deixaram ao partir.

Por favor, não mexam em nada — pediu Maeve. De acordo com uma lei internacional, nada pode ser retirado daqui. Agora, vou levá-los às cavernas cavadas pelos pescadores. Lá, o óleo era armaze­nado em gigantescos barris, que depois seguiam para a Inglaterra.

Retirou lanternas de uma caixa deixada no local pelos guias das expedições anteriores e as distribuiu entre os turistas.

Alguém sofre de claustrofobia?

Uma mulher que aparentava mais de setenta anos ergueu a mão.

Acho que não quero entrar aí.

Mais alguém?

A senhora que fazia perguntas se adiantou.

Não suporto lugares frios e escuros.

Muito bem — disse Maeve. — Vocês duas esperem aqui. Vou levar os outros ao setor de armazenamento de óleo de baleia. É logo ali. Não demoraremos mais de quinze minutos.

Conduziu o ruidoso grupo por um longo túnel curvo, aberto pelos pescadores de baleia, que dava numa grande caverna cheia de barris enormes, abandonados. Deteve-se e apontou para uma rocha maciça à entrada.

Esta pedra foi recortada no interior da caverna. Funcionava como barreira contra o frio e impedia que os baleeiros rivais roubassem o óleo excedente quando a estação fechava, durante o inverno. Embora tenha o peso de um tanque blindado, qualquer criança é capaz de des­locá-la se conhecer seu segredo. — Aproximando-se, colocou a mão num determinado lugar da parte superior da rocha e, com toda a fa­cilidade, empurrou-a, fechando a entrada. — Um truque sutil da en­genharia. A pedra fica delicadamente equilibrada numa haste que passa por seu centro. Se a empurrarmos no lugar errado, não se move.

Todos fizeram piadas sobre a escuridão quando Maeve se aproximou de um enorme barril de madeira. Estava ainda quase cheio. Colocando um frasco sob a torneira, ela recolheu uma pequena quantidade de óleo. Passou o vidro entre os turistas, que esfregaram algumas gotas entre os dedos.

O frio impediu que o óleo estragasse nesses quase cento e trinta anos. Continua fresco como no dia em que saiu do caldeirão e foi co­locado no barril.

Parece ser um lubrificante extraordinário — disse um senhor gri­salho, com nariz vermelho de beberrão.

Não conte isso às empresas de petróleo — sorriu Maeve —, do contrário as baleias estarão extintas antes do Natal.

Uma mulher pegou o frasco e o cheirou.

Pode ser usado como óleo de cozinha?

Pode, sim — respondeu Maeve. — Os japoneses apreciam muito o óleo de baleia. Aliás, os antigos pescadores costumavam molhar bo­lachas em salmoura e depois fritá-las nessa gordura. Experimentei uma vez e achei que tinha um gosto interessante, se bem que levemente...

Foi interrompida pelo grito de uma senhora idosa, que segurava a própria cabeça. Seis outras pessoas a imitaram, as mulheres a gritar, os homens a gemer. Maeve dirigiu-se a eles, impressionada com a ex­pressão de dor intensa.

Que aconteceu? Estão precisando de alguma coisa?

Mas logo chegou a sua vez. Ela sentiu uma dor aguda na cabeça, e seu coração começou a bater alucinado. Instintivamente, levou as mãos às têmporas. Olhou estonteada para os membros da excursão. Em meio no efeito hipnótico da agonia e do pavor, todos os olhos pareciam querer saltar das órbitas. Depois, ela sentiu uma onda de tontura rapidamente seguida por uma terrível náusea. Sobreveio-lhe uma necessidade ur­gente de vomitar antes de perder o equilíbrio e cair.

Ninguém conseguia entender o que estava acontecendo. O ar se tor­nou pesado e difícil de respirar. A luz das lanternas assumiu um so­brenatural brilho azulado. Não havia vibrações, nenhum abalo sísmico, mas, mesmo assim, a poeira começou a remoinhar no interior da ca­verna. Só se ouviam os gritos atormentados dos turistas.

Todos começaram a vacilar e cair. Com horrorizada incredulidade, Maeve se sentiu desorientada, tomada por um enlouquecido pesadelo em que seu corpo parecia estar virando-se ao avesso.

Num momento, todos se viram diante da morte, vinda de um lugar desconhecido. Um instante depois, inexplicavelmente, a insuportável agonia e a vertigem começaram a desaparecer. Tão rapidamente como começaram, amenizaram-se e desapareceram.

Maeve sentiu uma grande exaustão. Fechando os olhos, encostou no barril de óleo de baleia, aliviada por já não estar sentindo dor.

Ninguém conseguiu falar durante uns dois minutos. Por fim, um homem, que estava com a estonteada esposa nos braços, olhou para Maeve.

Pelo amor de Deus, o que é isso?

Ela sacudiu a cabeça lentamente.

Não sei...

Com muito esforço, fez a contagem dos presentes e ficou contente ao constatar que todos estavam vivos e em plena recuperação. Por sorte, nenhum dos mais idosos sofrerá danos permanentes nem ataques car­díacos.

Por favor, esperem aqui e descansem enquanto vou ver como estão as duas senhoras à entrada e me comunico com o navio.

Era um bom grupo, pensou. Ninguém a culpara pelo acontecimento inexplicável. Passaram a se ocupar imediatamente uns dos outros, os mais jovens a ajudar e confortar os velhos. Viram-na empurrar a pesada porta e afastar-se, até que a luz de sua lanterna desaparecesse numa curva do túnel.

Assim que chegou à luz do dia, Maeve se perguntou se não tinha sido uma alucinação. O mar continuava calmo e azul. O sol estava um pouco mais alto no céu sem nuvens. E as duas senhoras que tinham preferido ficar ao ar livre se achavam estendidas, de bruços, agarradas às rochas como que para não ser arrancadas por uma força invisível.

Agachando-se, ela tentou acordá-las. Mas parou, horrorizada, ao ver-lhes os olhos vidrados e as bocas abertas. Ambas tinham vomitado. Estavam mortas. A pele já começava a adquirir um tom arroxeado.

Maeve correu ao Zodiac, que continuava no mesmo lugar, com a proa na praia. O piloto que os havia levado a terra também estava sem vida, a mesma expressão aterrorizada no rosto, a mesma coloração na pele. Atordoada pelo choque, ela pegou o rádio portátil e começou a transmitir.

Polar Queen, é a excursão número um. É uma emergência. Por favor, responda imediatamente. Câmbio.

Não houve resposta.

Tentou várias outras vezes entrar em contato com o navio. Só obteve silêncio. Era como se o Polar Queen, sua tripulação e seus passageiros nunca tivessem existido.

 

Janeiro era época de pleno verão na Antártida. Os longos dias tinham apenas uma ou duas horas de penumbra. As temperaturas, que na península podiam se elevar a quinze graus, caíra a zero após o desem­barque do grupo de turistas. No horário programado para o retorno do Polar Queen, não se viu sinal dele.

Até as onze da noite, Maeve seguiu com as vãs tentativas de entrar em contato a cada meia hora. Quando o sol polar começou a se pôr, cessou de chamar o canal do navio. Preferiu conservar as baterias do transmissor. O alcance dos rádios portáteis limitava-se a dez quilôme­tros, e, num raio de quinhentos, não havia embarcação ou aeronave que pudesse captar seus pedidos de socorro. E, a menos que condições atmosféricas anormais estendessem o alcance de seus sinais, tampouco os receberia a estação de pesquisa argentina na outra extremidade da ilha. Frustrada, ela desistiu. Pretendia voltar a tentar mais tarde.

Onde estariam o navio e a tripulação?, perguntava-se constantemen­te. Teriam sido atingidos pelo mesmo fenômeno mortal? Haveriam so­frido danos? Não queria se deixar levar pelo pessimismo. Por enquanto, ela e o grupo estavam em segurança. Contudo, sem comida nem abrigo contra o frio, não teriam como agüentar muito tempo. Alguns dias, no máximo. A idade média dos turistas era avançada. O casal mais jovem devia ter quase setenta anos, ao passo que os outros já se aproximavam dos oitenta, sem contar a mais velha de todos, uma senhora de oitenta e três, que queria provar um pouco de aventura antes de se recolher à um asilo.

Com uma sensação de desamparo, Maeve olhou para as nuvens negras que começavam a se acumular a oeste, certamente a frente da tempestade de que Trevor Haynes tinha falado. Ela conhecia muito o clima do Pólo Sul para saber que as tempestades litorâneas vinham acompanhadas de fortes ventanias e terríveis precipitações de granizo. Pouca ou nenhuma neve cairia. O perigo principal residia na friagem trazida pelo vento.

Abandonando finalmente a esperança de avistar tão cedo o navio, tratou de se preparar para o pior e tomar providências para que os membros da excursão pudessem se abrigar nas dez horas seguintes.

As cabanas ainda existentes, assim como os barracões onde se derretia a gordura, estavam demasiado expostos aos caprichos da natureza. Os telhados tinham desabado havia muito tempo, e as ventanias haviam destruído portas e janelas. Maeve concluiu que o grupo dispunha de melhores chances de sobreviver ao frio intenso e ao vento ameaçador se permanecesse na caverna. Uma fogueira, com a antiga madeira da estação de pesca, era uma possibilidade, mas teria de ser acesa perto da entrada. Do contrário, a fumaça poderia causar asfixia.

Quatro dos homens mais moços ajudaram-na a colocar num barracão os corpos das duas mulheres e do piloto. Também puxaram o Zodiac à praia e o amarraram, para evitar que fosse levado pelo vento cada vez mais forte. No dia seguinte vedaram o túnel com rochas, deixando apenas uma pequena abertura, a fim de minimizar as gélidas lufadas. Ela preferiu deixar aberta a porta de pedra, pois não queria que ficassem completamente isolados do exterior. Depois, reuniu todos a seu redor e ordenou que permanecessem muito juntos para se aquecer.

Nada mais havia a fazer. As horas à espera de resgate pareciam uma eternidade. Eles tentaram dormir, mas foi impossível. O frio en­torpecente começou a lhes penetrar a roupa, e, lá fora, o vento uivava enlouquecido pela abertura que haviam deixado na barreira de pedras à entrada do túnel.

Só um ou dois se queixaram. A maioria suportou estoicamente a provação. Alguns estavam entusiasmados com a aventura. Dois aus­tralianos, grandalhões, que fizeram fortuna como sócios numa cons­trutora, provocavam suas esposas e faziam piadas sarcásticas para ani­mar os demais. Mostravam-se despreocupados, como se estivessem à espera de um avião no aeroporto. Eram boas pessoas no crepúsculo da vida, pensou Maeve. Seria, mais do que um crime, uma vergonha permitir que morressem naquele inferno de gelo.

Dando asas à fantasia, ela os imaginou enterrados sob as rochas, com os exploradores noruegueses e os pescadores britânicos. Que tolice, censurou-se depois. Apesar da violenta hostilidade de seu pai e de seus irmãos, ela não podia acreditar que lhe negassem um sepultamento decente no túmulo da família, onde repousavam seus antepassados. Contudo, sabia quanto era real a possibilidade de que já não a consi­derassem filha e irmã após o nascimento de seus gêmeos.

Ali deitada, contemplando a névoa que a respiração concentrada ia formando na caverna, tentou imaginar os filhos de apenas seis anos na casa de amigos, enquanto ela, naquele cruzeiro, tratava de ganhar o dinheiro de que tanto precisava. Que seria deles se morresse ali? Rogava que seu pai jamais pusesse as mãos nos meninos. A compaixão nunca entrava em suas considerações. A vida alheia pouco importava para ele. Tampouco era o dinheiro que lhe interessava. Este não passava de um instrumento. Sua paixão era o poder de manipular. As duas irmãs de Maeve compartilhavam com o pai a indiferença pelos demais. Felizmente, ela saíra à mãe, uma mulher delicada, que fora conduzida ao suicídio pelo frio e brutal marido quando Maeve tinha doze anos.

Depois da tragédia, ela não voltara a se considerar parte da família. Nenhum deles a perdoava por ter abandonado o núcleo apenas com a roupa do corpo e passado a viver por conta própria, sob nova iden­tidade. Decisão da qual ela nunca se arrependera.

Despertou com um barulho, ou melhor, com a ausência dele. O vento já não estava uivando lá fora. A tempestade continuava, porém a glacial ventania tinha cessado. Ela voltou e acordou os dois construtores.

Preciso que me acompanhem até a colônia de pingüins — disse. — E fácil capturá-los. Estou violando a lei, mas, se quisermos sobreviver até o retorno do navio, temos de nos alimentar.

Que acha, compadre? — perguntou um deles.

Nunca recusei uma passarinhada — respondeu o outro.

O pingüim não chega a ser um manjar — sorriu Maeve. — Sua carne é muito oleosa, mas alimenta.

Antes de sair, incitou os outros a se levantar e ir roubar madeira da estação de pesca de baleia.

Presa por um tostão, presa por um milhão. Se me puserem na cadeia pela morte dos pingüins e por destruir edificações históricas, prefiro fazer o serviço completo.

Tomaram o caminho da colônia, que ficava a uns dois quilômetros, além do ponto que contornava a parte norte da baía. Embora o vento tivesse cessado, o granizo era um tormento. Mal conseguiam ver três metros à frente. Era como se estivessem olhando através de uma lâmina de água. A visão se tornava ainda mais difícil sem óculos de proteção.

Estavam apenas com os escuros, e o granizo penetrava pelas bordas das lentes, endurecendo-lhes as pestanas. Tiveram de avançar junto à orla para não perder o senso de direção. Desse modo, acrescentaram vinte minutos à caminhada, mas os desvios evitaram que se perdessem.

O vento começou a soprar novamente, açoitando-lhes o rosto exposto. Maeve chegou a pensar em fazer a penosa viagem ã estação de pesquisa argentina. Porém logo abandonou a idéia. Poucos sobreviveriam à jor­nada de trinta quilômetros na tempestade. Mais da metade dos idosos pereceria no caminho. Era preciso avaliar todas as perspectivas, as pos­síveis e as impraticáveis. Jovem e forte, ela conseguiria chegar. Todavia, não tinha coragem de abandonar aquela gente. Enviar os dois austra­lianos grandalhões que marchavam a seu lado não deixava de ser uma possibilidade. O problema era: que encontrariam ao chegar?

E se os cientistas argentinos tivessem morrido nas mesmas miste­riosas circunstâncias dos membros do grupo? Se tivesse acontecido o pior, a única vantagem de chegar à estação de pesquisa seria utilizar seu poderoso equipamento de comunicação. A decisão era uma tortura. Devia arriscar a vida dos dois australianos na perigosa viagem ou man­tê-los por perto, a fim de auxiliá-la no cuidado dos velhos e fracos? Decidiu não mandar ninguém à estação de pesquisa. Não fora contra­tada para pôr em perigo a vida dos passageiros da Ruppert & Saunders. Era inconcebível que tivessem sido abandonados. Não havia alternativa senão aguardar socorro, viesse de onde viesse, e tratar de sobreviver na medida do possível.

A chuva de granizo amainara, e a visibilidade aumentara para quase cinqüenta metros. O sol apareceu feito uma laranja turva, com um halo de cores variadas, um verdadeiro prisma arredondado. Contornaram a rochosa saliência que cingia a baía e trataram de voltar à orla onde ficava a colônia. Maeve não aceitava a idéia de sacrificar os pingüins mesmo que para conservar a própria vida. Eram criaturinhas mansas e meigas.

Os pingüins Pygoscelis adeliae representavam uma das dezessete es­pécies existentes. Com o dorso e a cabeça cobertos de penas negras e o peito muito branco, tinham olhinhos espertos, que pareciam as contas de um rosário. Como sugeriam os fósseis encontrados na ilha Seymour, seus ancestrais, havia mais de quarenta milhões de anos, tinham a altura de um homem. Atraída por seus padrões de comportamento social quase humanos, Maeve tinha passado todo um verão a observar e es­tudar uma colônia, e se apaixonara por aqueles simpáticos pássaros.

Em contraste com os grandes pingüins-imperadores, os Pygoscelis adeliae chegavam a se deslocar a cinco quilômetros por hora e até mais, des­lizando de peito no gelo. Bastava um chapéu-coco e uma bengala, pen­sava ela com freqüência, para que se transformassem em perfeitas imi­tações de Charlie Chaplin.

Acho que a maldita chuva de granizo está passando — disse um dos homens. Vestia um blusão de couro e fumava um cigarro.

Ainda bem — murmurou o outro, que estava com o cachecol enrolado na cabeça, como um turbante. — Estou ensopado.

Conseguiam ver claramente uns quinhentos metros de mar. A su­perfície, antes lisa como uma vidraça, era, agora, um tumulto de ondas encapeladas pelo vento. Maeve voltou a atenção para a colônia. Devia haver mais de cinco mil pingüins. Ao se acercar com os australianos, estranhou não ver nenhum dos animaizinhos de pé, as pequenas asas abertas como que para não perder o equilíbrio. Estavam todos espa­lhados, estendidos de costas, como se houvessem tombado.

Esquisito — disse —, nenhum deles está em pé.

Não são bobos — respondeu o homem de turbante. — Ficar em pé com esse granizo...

Maeve se adiantou, correndo, e olhou para os animais mais próximos. Ficou assombrada com a ausência de ruídos. Nenhum deles se movia nem mostrava interesse por sua chegada. Ajoelhando-se, examinou um. Estava estendido no chão, os olhos parados e cegos. Com expressão de horror, ela olhou para os milhares de pássaros, que não davam sinal de vida. Viu duas focas-leopardo, os predadores naturais dos pingüins, cujos corpos balançavam ao sabor das ondas que chegavam à pequena praia rochosa.

Estão mortos! — murmurou, chocada.

Com os diabos! — gemeu o homem de blusão de couro. — Ela tem razão. Nenhum deles está respirando.

Não pode ser verdade, pensou Maeve com desespero. Levantou-se calada. Não conseguia compreender o que causara aquela morte em massa, mas pressentia-o. Entrou-lhe de súbito a idéia maluca de que a vida, no mundo, fora extinta por uma misteriosa enfermidade. Será possível que somos os únicos sobreviventes num planeta morto?, perguntou-se apavorada.

O homem com o cachecol apanhou um pingüim.

Pelo menos não teremos de matá-los.

Largue isso! — gritou Maeve.

Como assim? Precisamos comer, não?

Não sabemos de que morreram. Pode ter sido uma epidemia.

O homem do blusão de couro fez que sim.

A moça sabe o que está dizendo. A doença que matou os pingüins pode nos matar também. Não quero ser o responsável pela morte de minha esposa.

Mas não foi uma doença — argumentou o outro. — O que matou as duas velhas e o marinheiro deve ter sido uma espécie de fenômeno natural.

Maeve se manteve firme.

Eu me recuso a pôr em risco vidas humanas. O Polar Queen vai voltar. Eles não nos esqueceram.

Se o que o capitão estava querendo era nos assustar, já conseguiu.

Deve ter tido uma boa razão para não retornar.

Seja qual for ela, é bom que a empresa tenha um excelente seguro, porque nós não vamos lhe dar sossego quando voltarmos à civilização.

Maeve não estava com vontade de discutir. Dando meia-volta, pôs-se a caminhar rumo à caverna. Os dois homens a seguiram, os olhos a escrutar o oceano ameaçador, em busca de algo que não se encontrava lá.

 

Acordar depois de haver passado três dias numa caverna, numa ilha estéril, em meio a uma tormenta polar e sabendo-se responsável por três mortes e pela vida de nove homens e onze mulheres não foi uma experiência agradável. Sem sinal da esperada chegada do Polar Queen, a alegre excursão ao extraordinário isolamento da Antártida ti­nha se convertido num pesadelo de abandono e aflição. E, para au­mentar o desespero de Maeve, as baterias do rádio portátil estavam finalmente descarregadas.

Ela sabia que, a partir de agora, podia esperar que os membros mais idosos do grupo sucumbissem a qualquer momento à dura situação no interior da caverna. Tinham passado a vida nas quentes regiões tropicais e não estavam acostumados àqueles rigores glaciais. Organis­mos mais jovens e resistentes poderiam talvez agüentar até que chegasse socorro, porém aquela gente carecia do vigor dos vinte ou trinta anos. Sua saúde era geralmente débil e vulnerável.

No começo, gracejavam e contavam anedotas, enfrentando aquela provação como uma simples aventura adicional. Cantavam Waltzing Matilda e se ocupavam com jogos de palavras. Mas não tardou para que a letargia se instalasse e eles fossem se tornando calados e tristes. Em todo caso, suportavam o sofrimento com estoicismo e sem protestar.

Agora, a fome era mais forte do que o medo do alimento contami­nado. A fim de evitar um motim, Maeve acabou cedendo e mandando os homens buscarem os pingüins mortos. Não havia problema de de­composição, posto que as aves haviam congelado logo depois de morrer. Um dos turistas era caçador. Com seu canivete suíço, limpou e cortou habilmente os animais. Com o estômago cheio de proteínas e gordura, todos teriam combustível para manter o calor do corpo.

Maeve encontrou numa das cabanas de pescador um pouco de chá de mais de setenta anos. Apossou-se também de uma velha panela e uma frigideira. A seguir, conseguiu extrair cerca de um litro de óleo de baleia dos barris, colocou-o na frigideira e o acendeu. Quando a chama azul surgiu, todos aplaudiram a habilidade com que improvisara o fogareiro.

Depois de lavar a antiga panela, ela a encheu de neve e preparou o chá. Os espíritos se animaram, embora por pouco tempo. A depressão logo tornou a lançar sua pesada rede sobre a caverna. A vontade de sobreviver era solapada pela frígida temperatura. Todos começaram a acreditar que o fim era inevitável. O navio não voltaria mais, e as es­peranças de serem salvos por outra embarcação não passava de fantasia.

Pouco importava que expirassem devido à enfermidade desconhe­cida que exterminara os pingüins. Ninguém estava agasalhado para resistir durante muito tempo a temperaturas abaixo de zero. O perigo da asfixia os impedia de fazer uma fogueira maior com o óleo de baleia. A pequena quantidade na frigideira produzia um calor escasso, insu­ficiente para prolongar a vida. Não demoraria muito e os tentáculos fatais do frio os cercariam.

Lá fora, a tempestade piorou e começou a nevar, fenômeno raro na península durante o verão. A esperança de ser encontrados por acaso foi desaparecendo à proporção que a tempestade se intensificava. Qua­tro dos mais velhos estavam praticamente agonizando, e Maeve se viu tomada de desânimo ao compreender que o controle lhe escapava entre os dedos congelados. Culpando-se pela morte das três primeiras vítimas, sentia-se terrivelmente afetada.

Os vivos a encaravam como a única esperança. Até mesmo os homens respeitavam sua autoridade e executavam suas ordens sem questionar.

— Deus os proteja — sussurrava ela, sozinha. — Eles não podem saber que chegamos ao fim da linha.

Estremeceu com uma opressiva sensação de desamparo. Uma estra­nha letargia a invadiu. Sabia que estava fadada a acompanhar aquele sofrimento até seu desfecho, mas não se acreditava capaz de continuar carregando nos ombros vinte existências. Exausta, já não queria lutar. Em meio à apatia, ouviu um ruído estranho, quase apagado, diferente do sibilar do vento. Lembrava uma coisa a vibrar no ar. Logo desapa­receu. Devia ser imaginação, pensou. Apenas o vento mudando de di­reção e fazendo um barulho diferente pelo respiradouro na entrada do túnel.

Depois, tornou a ouvir o ruído que, no entanto, desapareceu. Levantando-se com dificuldade, entrou tropegamente pelo túnel. A neve mg acumulara junto à barreira contra o vento, quase tapando a pequena abertura. Foi preciso remover várias pedras para ampliar a passagem c sair àquele mundo gelado, agitado pela nevasca. O vento se mantinha a constantes vinte nós, erguendo espirais de neve que lembravam um tornado. Repentinamente, Maeve ficou tensa e se pôs a escrutar a branca turbulência.

Algo parecia estar se movendo a distância, uma vaga forma sem substância e, contudo, mais escura do que o véu opaco que caía do céu.

Dando um passo à frente, ela tropeçou e caiu de bruços. Teve vontade de ficar ali mesmo e adormecer. A disposição a desistir era poderosa demais. Todavia, a fagulha da vida recusava-se a diminuir e apagar-se. Colocando-se de joelhos, tentou enxergar através da luz oscilante. Notou que algo avançava em sua direção. Logo, porém, uma rajada o encobriu. Reapareceu momentos depois, e estava mais próximo. Foi quando seu coração disparou.

Era o vulto de um homem coberto de gelo e neve. Acenando, excitada, ela o chamou. O homem parou como que a escutar, depois se voltou o começou a se afastar.

Dessa vez ela berrou, um grito estridente de que só as mulheres são capazes. O vulto se virou e olhou em sua direção em meio à neve incessante. Maeve agitou freneticamente os braços. Ele também acenou e correu em sua direção.

— Oh, tomara que não seja uma miragem ou uma ilusão — rogou ela aos céus.

E então o estranho se ajoelhou na neve a seu lado, envolvendo-lhe os ombros nuns braços que pareciam os mais fortes do mundo.

Graças a Deus! Eu não tinha perdido a esperança de que você chegasse.

Era um homem alto, com um blusão turquesa, máscara de esqui e óculos de proteção. No lado esquerdo do peito, trazia a inscrição ANPS. Tirando os óculos, ele a mirou com uns olhos incrivelmente verdes, que denotavam um misto de surpresa e curiosidade. Seu rosto muito bronzeado parecia estranhamente fora de lugar na Antártida.

Que diabos você está fazendo aqui? — perguntou com voz rouca o preocupada.

Estou com outras vinte pessoas ali na caverna. Participávamos de uma excursão. Nosso barco se afastou e não voltou mais.

Ele a encarou com incredulidade.

Foram abandonados?

Maeve fez que sim e olhou temerosa para a tempestade.

Houve alguma catástrofe mundial?

O homem se mostrou intrigado.

Que eu saiba, não. Por que está perguntando?

Três membros de meu grupo morreram em circunstâncias mis­teriosas. E, ao norte da baía, toda uma colônia de pingüins foi exter­minada.

O desconhecido não manifestou surpresa face à trágica notícia. Ajudou-a a levantar-se.

Acho melhor sair deste temporal.

Você é americano — disse ela, tremendo de frio.

E você é australiana.

É tão evidente?

Sua pronúncia é típica.

Maeve estendeu a mão enluvada.

Não imagina o meu prazer em conhecê-lo, senhor...?

Dirk Pitt.

Maeve Fletcher.

Alheio a suas objeções, ele a tomou nos braços e, carregando-a, seguiu as pegadas ainda impressas na neve até a entrada do túnel.

Proponho que continuemos nossa conversa lá dentro. Você disse que há outros vinte?

Ainda vivos.

No túnel, Pitt a colocou no chão e tirou a máscara de esqui. Seu cabelo era farto e muito preto. Um par de grossas sobrancelhas lhe toldava os olhos verdes. O rosto curtido pelo sol era de uma beleza áspera, e um sorriso constante brincava em seus lábios. Era o tipo do homem que fazia qualquer mulher se sentir segura, pensou Maeve.

Um minuto depois, Pitt estava sendo recebido pelos turistas como um famoso craque de futebol que acabasse de levar o time local a uma grande vitória. Ver um estranho surgir de súbito teve o impacto de um prêmio milionário na loteria. Ele ficou admirado por encontrá-los relativamente em forma, apesar do terrível ordálio por que estavam passando. As mulheres fizeram questão de abraçá-lo e beijá-lo como a um filho, ao passo que os homens exprimiram sua alegria com tantas palmadas que as costas do estranho chegaram a doer. Todos falavam e gritavam perguntas ao mesmo tempo. Maeve o apresentou e lhes contou como se haviam encontrado em meio à tempestade.

De onde você veio, amigo? — todos queriam saber.

De um barco de pesquisa da Agência Nacional de Pesquisas Su­baquáticas. Estamos numa expedição, tentando descobrir por que as focas e os golfinhos vêm desaparecendo nestas águas a uma velocidade assombrosa. Estávamos sobrevoando a ilha Seymour, de helicóptero, quando a neve nos pegou. Achamos melhor aterrissar até que passe.

Está acompanhado?

Do piloto e de um biólogo que ficaram a bordo. Avistei o que parecia ser parte de um Zodiac meio enterrado na neve. Sem saber o que podia estar fazendo esse tipo de embarcação numa região desabi­tada, vim dar uma olhadela. Foi quando ouvi a senhorita Fletcher me chamar.

Que bom que você resolveu sair — disse a Maeve a senhora de oitenta e três anos.

Tive a impressão de estar ouvindo um barulho esquisito lá fora. Agora sei que era o helicóptero aterrissando.

Foi muita sorte termos nos encontrado em meio a esse granizo - sorriu Pitt. — Não acreditei que estivesse ouvindo um grito de mu­lher. Pensei que fosse o vento. Depois eu a vi acenar.

Onde está o seu navio? — quis saber Maeve.

A uns quarenta quilômetros a nordeste daqui.

Acaso passaram pelo nosso barco, o Polar Queen?

Pitt sacudiu a cabeça.

Há mais de uma semana não vemos outra embarcação.

Nenhum contato por rádio? Um SOS, quem sabe?

Comunicamo-nos com uma embarcação que estava levando apoio logístico ao posto britânico de Halley Bay, mas nada soubemos de um navio de passageiros. Desvendaremos o mistério assim que tivermos transportado todos vocês ao nosso barco de pesquisa. Não é luxuoso como o Polar Queen, mas temos camarotes confortáveis, um bom médico e um cozinheiro que toma conta de uma adega com ótimos vinhos.

Prefiro ir para o inferno a passar mais um minuto nesta geladeira - disse um neozelandês magro.

No helicóptero, só poderei levar cinco ou seis de cada vez, de modo que teremos de fazer várias viagens — explicou Pitt. — Como estamos a uns trezentos metros daqui, vou voltar e trazer o aparelho para perto da entrada da caverna. Assim vocês não terão o desconforto de marchar na neve.

Nada melhor do que um serviço de entrega em domicílio — gracejou Maeve, sentindo-se como se tivesse nascido novamente. — Posso ir com você?

Acha que consegue?

Ela fez que sim.

Tenho certeza de que todos ficarão contentes se passarem algum tempo livres de mim e de minhas ordens.

Al Giordino estava fazendo palavras cruzadas no banco do piloto do helicóptero azul-turquesa da ANPS. Embora fosse baixo, tinha o corpo sólido e atarracado. De vez em quando, olhava pelo pára-brisa do cockpit e, como não visse sinal de Pitt, voltava a se concentrar na charada. De cabelo crespo e olhos muito pretos, tinha rosto redondo e uma perpétua expressão de sarcasmo, que sugeria ceticismo em relação ao mundo e a tudo o que nele existia. O nariz reto denunciava-lhe a origem romana.

Amigos de infância, ele e Pitt tornaram-se inseparáveis quando pres­taram o serviço militar na Força Aérea; depois, apresentaram-se como voluntários para lançar a Agência Nacional de Pesquisas Subaquáticas, um compromisso "temporário" que já durava quase catorze anos.

Diga uma palavra de oito letras, que significa mamífero desdentado da família dos bradipodídeos, arborícola, de pelagem muito densa e longa, na qual vivem carrapatos e microlepidópteros ou traças — pediu ao homem que se encontrava sentado atrás dele, no compartimento de carga do aparelho equipado com um laboratório.

O biólogo da ANPS desviou a vista de um espécime colhido pouco antes e ergueu as sobrancelhas com desconfiança.

— Isso não existe.

Tem certeza? Está escrito aqui.

Roy Van Fleet sabia quando Giordino estava brincando. Depois de três meses juntos no mar, já não caía nas peças que o italiano gostava de pregar.

Pensando bem, é um animal dos trópicos. Veja se "preguiça" serve.

Terminando as palavras cruzadas, Giordino voltou a olhar para a neve que continuava caindo.

Dirk já devia ter voltado.

Quanto tempo faz que saiu? — perguntou Van Fleet.

Uns quarenta e cinco minutos.

Giordino inclinou-se para a frente ao ver dois vultos tomando forma na distância.

Acho que está voltando agora... Vocês devem ter colocado alguma coisa no meu sanduíche de queijo — acrescentou. — Sou capaz de jurar que vem acompanhado de outra pessoa.

Impossível. Não há ninguém num raio de trinta quilômetros.

Venha ver.

Quando Van Fleet terminou de fechar o frasco com o espécime e guardá-lo numa caixa de madeira, Pitt acabava de abrir a porta e estava ajudando Maeve Fletcher a entrar.

Ela tirou o capuz do blusão alaranjado, sacudiu os cabelos dourados e sorriu alegremente.

Olá, cavalheiros. Não imaginam como estou contente por vê-los.

Van Fleet parecia ver um fantasma. Seu rosto demonstrava total incompreensão.

Giordino, por sua vez, limitou-se a suspirar, resignado.

Só mesmo Dirk Pitt — disse ele sem se dirigir a ninguém em particular — é capaz de ir passear numa ilha deserta na Antártida, debaixo de uma tempestade de neve, e voltar com uma linda garota!

 

Menos de uma hora depois de Pitt ter alertado o Ice Hunter, o navio de pesquisa da ANPS, o capitão Paul Dempsey, enfrentando uma brisa gelada, ficou observando Giordino pousar no heliponto da embarcação. Com exceção do cozinheiro, ocupado no preparo de uma refeição quen­te, e do engenheiro-chefe, que ficou lá embaixo, toda a tripulação, in­clusive os técnicos de laboratório e os cientistas, tinha saído para cum­primentar o primeiro grupo de turistas famintos e congelados trazidos da ilha Seymour.

O capitão fora criado num rancho das montanhas Beartooth, na divisa entre Wyoming e Montana. Fugiu para o mar ao concluir o segundo grau e trabalhou em pesqueiros de Kodiak, no Alasca. Apaixonado pelos mares do Círculo Polar Ártico, finalmente submeteu-se ao exame e foi aprovado como capitão de um quebra-gelos rebocador de salva­mento. Por mais bravios que fossem os mares e fortes os ventos, Demp­sey jamais vacilou em lançar-se nas piores tormentas do golfo do Alasca quando recebia o chamado de um navio em perigo. Em quinze anos, suas ousadas operações de salvamento de inúmeros pesqueiros, seis cargueiros de cabotagem, dois petroleiros e um destróier da marinha de guerra criaram uma lenda, que resultou numa estátua de bronze junto às docas, em Seward, fonte de grande constrangimento para ele. Obrigado a aposentar-se quando a empresa de salvamento faliu, aceitou o convite do almirante James Sandecker, diretor-geral da ANPS, para que assumisse o comando do navio de pesquisa polar Ice Hunter.

O cachimbo de roseira, sua marca registrada, lhe pendia do canto da boca fina e bem-humorada. Era um marujo típico, de ombros largos e ventre volumoso, que costumava postar-se com as pernas abertas; mesmo assim tinha uma bela aparência. Grisalho e sem barba, não lhe faltavam boas histórias do mar para contar. Dempsey podia ser tomado por um alegre capitão de navio de passageiros.

Deu um passo à frente quando as rodas do helicóptero tocaram a coberta. A seu lado, encontrava-se o dr. Mose Greenberg, médico de bordo. Alto e magro, levava o cabelo castanho preso num rabo-de-cavalo. Seus olhos azuis brilhavam, e ele tinha um ar que inspirava con­fiança, coisa que acontece com todos os médicos conscienciosos e de­dicados do mundo.

Acompanhado de quatro tripulantes que levavam maças para os passageiros que achassem difícil caminhar, o dr. Greenberg inclinou o corpo sob as pás da hélice ainda em movimento e abriu a porta traseira do compartimento de carga. Aproximando-se do cockpit, Dempsey fez um sinal para que Giordino abrisse a janela lateral. O atarracado italiano obedeceu.

Pitt está com você? — perguntou o capitão em voz alta.

Giordino sacudiu a cabeça.

Ficou lá com Van Fleet para examinar os pingüins mortos.

Quantos passageiros do navio conseguiram trazer?

Seis das mulheres mais velhas e que mais sofreram. Temos de fazer mais quatro viagens. Três para transportar os turistas e uma para trazer Pitt, Van Fleet, a guia e os três cadáveres que eles deixaram num antigo barracão dos pescadores de baleias.

Dempsey apontou para a miserável mistura de neve e granizo.

Não vai se perder nessa sopa?

Pretendo ficar em contato com o transmissor portátil de Pitt.

Em que estado se encontra essa gente?

Melhor do que se podia esperar de um grupo de idosos que passou três dias e três noites numa caverna gelada. Pitt pediu que avisasse o dr. Greenberg que fique atento à pneumonia. O frio intenso acabou com a energia desses velhos e, debilitados como se encontram, estão com a resistência muito baixa.

Eles não têm idéia do que aconteceu com o navio? — indagou Dempsey.

Antes que desembarcassem, o imediato disse à guia de turistas que o navio subiria vinte quilômetros pela costa, para deixar outro grupo. É o que ela sabe. Não tornaram a entrar em contato depois que partiram.

Dempsey estendeu a mão e deu uma palmada no braço de Giordino.

Volte logo e cuidado para não molhar os pés.

A seguir, aproximou-se da porta do compartimento de carga e se apresentou aos esgotados passageiros do Polar Queen, que começavam a descer do aparelho.

Cobriu com uma manta a mulher de oitenta e três anos, que era levada numa maca.

Bem-vinda a bordo — sorriu. — Há sopa quente, café e uma cama macia a sua espera nos camarotes dos oficiais.

Se não se importa — disse ela —, eu prefiro chá.

Seu desejo é uma ordem para mim, cara senhora — respondeu Dempsey com delicadeza. — Que venha o chá.

Deus o abençoe, capitão — agradeceu ela, acariciando-lhe a mão.

Assim que o último passageiro deixou o heliponto, Dempsey fez um sinal a Giordino, que imediatamente levantou vôo. O capitão ficou observando até que o aparelho azul desaparecesse na branca cortina de granizo. Voltou a acender o indefectível cachimbo e se demorou ali até bem depois que os demais tinham se refugiado da friagem no con­forto da superestrutura do navio. Não esperava de modo algum uma missão de salvamento daquele tipo. Podia entender um navio em perigo nas águas revoltas do mar. Porém não conseguia imaginar um capitão que abandonasse seus passageiros numa ilha deserta, nas piores con­dições possíveis.

O Polar Queen se afastara mais de vinte e cinco quilômetros do lugar da antiga estação de pesca de baleias. Ele tinha certeza. O radar do Ice Hunter alcançava mais de cento e vinte quilômetros, e não localizara nada sequer remotamente parecido com um navio de passageiros.

A ventania tinha diminuído consideravelmente quando Pitt, em com­panhia de Maeve Fletcher e Van Fleet, chegou à colônia de pingüins. A zoóloga australiana e o biólogo americano se tornaram amigos quase de imediato. Pitt os seguia em silêncio, ouvindo-os comparar univer­sidades e mencionar colegas. Maeve crivou Van Fleet de perguntas de interesse para sua dissertação, ao passo que ele fazia indagações sobre a rápida observação do extermínio em massa dos pássaros mais queridos do mundo.

A tormenta tinha arrastado ao mar as carcaças dos que estavam mais perto da orla. Contudo, pelos cálculos de Pitt, quase quarenta mil aves mortas continuavam espalhadas entre as pedras menores e as ro­chas. Com o cessar da ventania e do granizo, a visibilidade chegava a quase um quilômetro.

Os petréis gigantes, verdadeiros abutres do mar, começaram a chegar e a devorar os pingüins mortos. Embora majestosos quando planavam graciosamente no ar, eram implacáveis comedores de carniça. Ante os olhares enojados de Pitt e dos outros, as enormes aves estripavam ra­pidamente as presas sem vida, mergulhando os bicos nas carcaças dos pingüins até ficarem com a cabeça e o pescoço vermelhos das vísceras.

Não é um espetáculo de que quero me lembrar — disse Pitt.

Assombrado, Van Fleet se voltou para Maeve.

Agora que estou vendo a tragédia com meus próprios olhos, acho difícil admitir que tantas pobres criaturas tenham morrido, ao mesmo tempo, num espaço tão concentrado.

Seja qual for o fenômeno — respondeu Maeve —, tenho certeza de que também causou a morte de meus dois passageiros e do mari­nheiro que nos trouxe.

Van Fleet ajoelhou-se para examinar um dos pingüins.

Nenhum ferimento, nenhum sinal visível de doença ou envene­namento. Estava gordo e sadio.

Maeve se inclinou.

A única anormalidade que encontrei foi a leve protuberância dos olhos.

Sim, compreendo o que está dizendo. Os globos oculares estão muito dilatados.

Pitt a fitou, pensativo.

Quando eu a estava levando à caverna, você me disse que as três pessoas morreram em circunstâncias misteriosas.

Ela fez que sim.

Uma força estranha nos atacou os sentidos. Era invisível e não parecia física. Não tenho idéia do que foi. Mas posso dizer que, durante pelo menos cinco minutos, era como se nossos cérebros fossem explodir. Uma dor insuportável.

Pela coloração azulada dos cadáveres que você me mostrou no barracão — interveio Van Fleet —, a causa das mortes parece ter sido parada cardíaca.

Pitt olhou para o cenário de devastação.

Não é possível que três seres humanos, milhares de pingüins e quarenta ou mais focas tenham morrido juntos de ataque cardíaco.

Deve existir uma causa comum — ponderou Maeve.

Algum vínculo com o enorme cardume de golfinhos que encon­tramos no mar de Weddell ou com as focas jogadas do outro lado do canal, na ilha Vega, todos mortos como madeira petrificada? — per­guntou Pitt a Van Fleet.

O biólogo deu de ombros.

É cedo para dizer. E preciso pesquisar mais. Em todo caso, parece existir um vínculo.

Você os examinou no laboratório do navio? — quis saber Maeve.

Dissequei duas focas e três golfinhos e nada encontrei que autorize uma teoria respeitável. A evidência primária é de hemorragia interna.

Golfinhos, focas, pássaros e seres humanos — disse Pitt em voz baixa. — Todos vulneráveis a esse flagelo.

Van Fleet concordou solenemente.

Para não falar no grande número de lulas e tartarugas marinhas que foram jogadas na praia ao longo do Pacífico e nos milhões de peixes mortos que apareceram flutuando na costa do Peru e do Equador nos últimos dois meses.

Se isso continuar, não há como prever quantas formas de vida se extinguirão no ar e no mar. — Pitt ergueu os olhos ao céu ao ouvir o ruído distante do helicóptero. — E que sabemos a não ser que essa praga misteriosa está matando indiscriminadamente tudo quanto vive na água ou no ar?

Em questão de minutos — acrescentou Maeve.

Van Fleet se levantou. Parecia abalado.

Se não descobrirmos logo a causa, seja ela um distúrbio natural ou alguma intervenção humana, em breve estaremos olhando para ocea­nos desprovidos de vida.

Não só oceanos. Você está esquecendo que essa coisa também mata em terra — observou Maeve.

Nem quero pensar nesse horror.

Passou um bom tempo sem que ninguém dissesse uma palavra. Cada um deles tentava compreender a catástrofe potencial que residia em alguma parte além do mar. Por fim, Pitt quebrou o silêncio.

Parece — disse com olhar pensativo — que esse é um trabalho sob medida para nós.

 

Pitt estava estudando um monitor enorme, que exibia uma imagem de satélite, ampliada pelo computador, mostrando a península da An­tártida e as ilhas adjacentes. Inclinou-se para trás, descansou a vista um momento e, então, olhou pelo vidro da ponte de navegação do Ice Hunter, tingido pelo sol que varava as nuvens.

Os passageiros do Polar Queen tinha sido alimentados e alojados nos confortáveis camarotes prontamente oferecidos pela tripulação e os cien­tistas. O dr. Greenberg examinou um a um e não encontrou danos permanentes ou traumatismos. Ficou também aliviado por verificar ape­nas alguns casos de resfriado, mas nenhum de pneumonia. No labo­ratório do navio, dois andares acima do hospital, Van Fleet, assistido por Maeve Fletcher, realizava a necropsia dos pingüins e focas que tinham sido trazidos de helicóptero da ilha Seymour. Os corpos dos três mortos foram conservados em gelo até ser entregues a um patologista.

Pitt passou os olhos pela gigantesca proa dupla do Ice Hunter. Era um navio de pesquisa muito especial, a primeira embarcação científica totalmente projetada por computadores pelos engenheiros da marinha, com programas e dados fornecidos por oceanógrafos. Navegava em cascos paralelos, que continham seus gigantescos motores e a maqui­naria auxiliar. Sua superestrutura redonda lembrava a era espacial; abundava em sofisticações técnicas e inovações futuristas. As cabines da tripulação e dos cientistas rivalizavam com os camarotes dos mais luxuosos navios de passageiros. Muito esguio, tinha uma aparência quase frágil que enganava. Era robusto e seguro, construído para singrar tranqüilamente as águas encapeladas dos mares mais perigosos. Seus cascos radicalmente triangulares eram capazes de atravessar e esmagar um glaciar de quatro metros de espessura.

O almirante James Sandecker, o enérgico diretor da Agência Nacional de Pesquisas Subaquáticas, acompanhou a construção, do primeiro design computadorizado até a viagem inaugural ao redor da Groenlândia. Orgulhava-se muito de cada centímetro da superestrutura branca e dos cascos azul-turquesas. Sandecker era mestre em obter verbas do novo e tacanho Congresso, e não se havia economizado na construção do Ice Hunter nem em seu fantástico equipamento. Ele era, sem dúvida, o melhor navio de pesquisa polar já construído.

Pitt voltou novamente a atenção para a imagem transmitida pelo satélite.

Quase não se sentia cansado. O dia tinha sido árduo, mas pleno de emoções, alegrias e satisfação por haver salvado a vida de mais de vinte pessoas. A parte triste ficava por conta das numerosas criaturas mortas, espalhadas até onde a vista podia alcançar. Tratava-se de uma catástrofe incompreensível. Alguma coisa sinistra e ameaçadora os es­preitava. Uma furtiva presença a desafiar a lógica.

Seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de Giordino e do capitão Dempsey, que acabavam de sair do elevador que descia da ala de observação, acima da ponte de navegação, até as entranhas da casa das máquinas, quinze andares mais abaixo.

Algum sinal do Polar Queen pelas câmeras do satélite? — indagou Dempsey.

Nada que eu tenha podido identificar positivamente — respondeu Pitt. — A neve está embaçando todas as imagens.

Contato por rádio?

Pitt sacudiu a cabeça.

É como se o navio tivesse sido levado por seres de outro planeta. A sala de comunicação não consegue obter nenhuma resposta. Aliás, o rádio da estação argentina também está mudo.

Seja qual for o desastre que atingiu o navio e o estação — disse Dempsey —, deve ter acontecido tão depressa que os coitados não ti­veram tempo de pedir socorro.

Van Fleet e Fletcher descobriram alguma coisa sobre as mortes? — quis saber Pitt.

Os exames preliminares mostraram rupturas nas artérias da base do crânio dos animais, com hemorragia. Fora isso, nada posso dizer.

Parece que estamos seguindo um fio que leva de um mistério a um enigma a um dilema e a um quebra-cabeça sem solução à vista — filosofou Pitt.

Se o Polar Queen não estiver flutuando aqui perto nem no fundo do mar de Weddell — disse Giordino —, podemos estar às voltas com um seqüestro.

Pitt sorriu e trocou um olhar com o velho amigo.

Como o Lady Flamborough?

A idéia me passou pela cabeça.

Dempsey olhou para a coberta, lembrando-se do incidente.

O navio de passageiros que foi capturado por terroristas no porto de Punta dei Este anos atrás?

Giordino fez que sim.

Estava transportando chefes de Estado para uma conferência eco­nômica. Os terroristas atravessaram com ele o estreito de Magalhães e entraram num fiorde chileno, onde atracaram sob uma geleira. Foi Dirk quem os localizou.

Considerando que a velocidade de um cruzeiro pode chegar a dezoito nós — calculou Dempsey —, os terroristas já poderiam estar a meio caminho de Buenos Aires.

Não faz sentido — disse Pitt, sem alterar a voz. — Por que motivo um grupo de terroristas seqüestraria um navio de passageiros na An­tártida?

Então, que acha?

Acredito que esteja à deriva ou navegando em círculos a uns duzentos quilômetros daqui — afirmou Pitt com tanta convicção que não deixou margem para dúvidas.

Dempsey o fitou.

Você conta com algum prognóstico que não seja do nosso conhe­cimento?

Aposto que o mesmo fenômeno que atingiu os turistas e o ma­rinheiro, na ilha, matou todos os que estavam a bordo desse navio.

É triste — disse Giordino —, mas explicaria por que ele não voltou para buscar os turistas.

E não nos esqueçamos do segundo grupo, que devia desembarcar a vinte quilômetros dali — lembrou Dempsey.

Essa coisa está ficando cada vez mais atrapalhada — resmungou Giordino.

Al e eu vamos procurar o segundo grupo por ar — anunciou Pitt, contemplando a imagem no monitor. — Se não virmos sinal deles, seguiremos em frente e verificaremos o que aconteceu com a equipe da estação de pesquisa argentina. Também podem estar mortos.

Mas que diabo provocou tal calamidade? — perguntou Dempsey.

Pitt fez um gesto vago.

As causas conhecidas de extinção da vida no mar e em suas imediações não resolvem esta charada. Aqui não se aplicam os proble­mas naturais geralmente responsáveis por enormes mortandades de peixes no mundo, como as variações de temperatura da superfície da água ou a florescência das algas, como as marés vermelhas. Não estão ocorrendo.

Resta a poluição.

Uma possibilidade que também parece remota — argumentou Pitt. — Não há fontes de poluição industrial a milhares de quilômetros daqui. E nenhum lixo radioativo ou químico podia ter matado tantos pingüins em tão pouco tempo, muito menos os que estavam em terra, claramente fora da água. Meu temor é que estejamos diante de uma ameaça desconhecida.

Giordino tirou um maciço charuto do bolso do blusão. Era do estoque particular do almirante Sandecker, fabricado especialmente para o seu deleite. E também para o de Giordino, pois nunca se soube como ele havia conseguido ter acesso ao estoque particular do almirante, durante mais de dez anos, sem nunca haver sido pilhado. Ele acendeu o grosso rolo de folhas de tabaco e soltou uma baforada azul do aromático fumo.

Certo — disse, saboreando-o. — Que vamos fazer?

Dempsey torceu o nariz ante o cheiro forte.

Entrei em contato com a Ruppert & Saunders, a linha proprietária do Polar Queen, e os inteirei da situação. Eles já iniciaram uma grande busca aérea. Pediram que levemos os sobreviventes à ilha Rei George, onde a estação científica britânica tem um campo de pouso. De lá, vão providenciar para levá-los de volta à Austrália.

Antes ou depois de procurarmos o Polar Queen? — perguntou Giordino.

Primeiro os vivos — respondeu Dempsey com ar sério. Como capitão do navio, a decisão era dele. — Vocês dois explorem a linha da costa com o helicóptero enquanto eu aprôo o Hunter no rumo da ilha Rei George. Depois que os passageiros tiverem desembarcado em segurança, vamos iniciar as buscas do Queen.

Giordino fez uma careta.

Até lá, o mar de Weddell estará formigando de navios de salva­mento.

Não é problema nosso — retrucou Dempsey. — A ANPS não se ocupa do resgate de navios.

Pitt tinha se afastado para uma mesa onde estava estendida um enorme carta náutica do mar de Weddell. Preferia trabalhar racional­mente, com o cérebro, não com o coração. Tentou imaginar-se a bordo do Polar Queen no momento em que foi atingido pelo flagelo mortal. Giordino e Dempsey silenciaram e o observaram, cheios de expectativa.

Passado um minuto, ele os fitou e sorriu.

Se programarmos os dados relevantes, o computador pode for­necer uma localização bastante precisa, com uma boa chance de sucesso.

E que vai enfiar na telinha pensante? — perguntou Dempsey, empregando a expressão com que sempre designava as peças relacio­nadas ao sistema de computadores.

— Cada fragmento de dados sobre os ventos e as correntes dos últimos três dias e meio, e seus efeitos sobre um volume do tamanho do Polar Queen. Uma vez que tenhamos calculado o padrão de deriva, podemos equacionar o problema de ele ter continuado a se deslocar com a tripulação morta a bordo, e em que direção.

Suponha que, em vez de navegar em círculos, como você sugeriu, ele esteja com o leme bloqueado, num curso em linha reta.

Neste caso, pode estar a mil e quinhentos quilômetros daqui, em algum lugar do Atlântico Sul e fora do alcance do satélite.

Giordino olhou para Pitt.

Mas você não acredita nisso.

Não — respondeu Pitt calmamente. — A julgar pelo gelo e a neve que cobriram este navio depois da tormenta, o Polar Queen deve estar com a superestrutura tão encoberta que é praticamente invisível para o satélite.

Estaria camuflado como um iceberg? — perguntou Dempsey.

Digamos que como um monte coberto de neve.

O capitão se mostrou inseguro.

Você me confundiu.

Aposto minha aposentadoria — disse Pitt com férrea convicção — como vamos achar o Polar Queen encalhado na orla da península ou numa das ilhas mais distantes.

 

Pitt e Giordino partiram às quatro horas da manhã, quando a maior parte da tripulação do Ice Hunter ainda dormia. O tempo tinha melho­rado; as temperaturas eram amenas, o mar estava calmo, o céu, de um azul cristalino; um vento leve, de cinco nós, soprava do sudoeste. Com Pitt no controle, voaram rumo à antiga estação de pesca de baleia antes de desviar para o norte, em busca do segundo grupo de excursionistas do Polar Queen.

Pitt não pôde evitar uma profunda tristeza quando sobrevoaram o terreno onde ocorrera o extermínio da colônia. Até o horizonte, a praia estava atapetada de corpos sem vida. Aqueles pingüins eram bastante territoriais, e os das outras colônias não costumavam migrar para aquela zona. Os poucos sobreviventes que acaso tivessem escapado à catástrofe precisariam de vinte anos ou mais para recompor a antes numerosa população da ilha Seymour. Felizmente, a enorme perda não chegava a ameaçar a espécie.

Quando a última das aves mortas desapareceu sob o helicóptero, Pitt buscou uma altitude de cinqüenta metros e passou a sobrevoar a orla, procurando vestígios do lugar de desembarque dos turistas. Olhan­do pela janela lateral, Giordino examinava os blocos de gelo, na espe­rança de avistar o Polar Queen; ocasionalmente, rabiscava a carta de navegação que levava dobrada no colo.

— Se eu ganhasse dez centavos por iceberg do mar de Weddell, teria dinheiro para comprar a General Motors.

Pitt olhou na mesma direção, a estibordo, para um grande labirinto de massas geladas desprendidas da geleira de Larsen e levadas para noroeste pelo vento e a corrente. Atingindo águas mais quentes, racha­vam-se e fragmentavam-se em milhares de icebergs menores. Três delas eram do tamanho de um país pequeno. Algumas alcançavam trezentos metros de espessura e se erguiam, na superfície, à altura de um prédio de três andares. Todas eram deslumbrantemente brancas, com matizes azuis ou esverdeados. O gelo dessas montanhas itinerantes se havia formado a partir da neve compactada no mais remoto passado; depois de se desprender, foi abrindo caminho no mar, durante séculos, em seu lento mas inevitável derretimento.

Acho que dava para ficar também com a Ford e a Chrysler.

Se tiver colidido com um desses milhares de montanhas de gelo, o Polar Queen deve ter ido para o fundo num piscar de olhos.

Nem quero pensar nisso.

Alguma coisa do seu lado? — perguntou Giordino.

Só rochas cinzentas no meio da neve. Não há como descrever essa monotonia estéril.

Giordino fez outra marca na carta e verificou a velocidade do ar.

Estamos a vinte quilômetros da estação de pesca, e nenhum sinal dos passageiros do navio.

Pitt concordou com um gesto.

Nada que pareça humano.

Maeve Fletcher disse que eles pretendiam desembarcar o segundo grupo de turistas na colônia de focas.

As focas estão lá — disse Pitt, apontando para baixo. — Devem ser mais de oitocentas, todas mortas.

Giordino se levantou no banco e olhou pela janela de bombordo, enquanto Pitt inclinava o helicóptero numa suave curva descendente, a fim de lhe oferecer melhor visão. Os corpos marrom-amarelados dos enormes elefantes-marinhos cobriam cerca de um quilômetro da orla. A cinqüenta metros de distância, davam a impressão de estar dormindo. Um olhar mais atento, porém, revelava que nenhum deles se movia.

Tudo indica que o segundo grupo nem chegou a desembarcar — observou Giordino.

Não se via senão mar, de modo que Pitt tomou o caminho de volta, sobrevoando a linha da rebentação.

Vamos dar uma olhadela no posto argentino.

Ficará visível a qualquer momento.

Nem quero imaginar o que vamos encontrar.

Seja otimista — sorriu Giordino, sem dissimular a tensão. — Vai ver que mandaram tudo para o inferno, arrumaram as malas e voltaram para casa.

Você está sonhando. O posto é importantíssimo por causa do trabalho em ciências atmosféricas. É uma das cinco estações de vigilância permanentemente ocupadas, que medem o comportamento e as flutua­ções do buraco na camada de ozônio da Antártida.

Por falar nisso, como vai a camada de ozônio?

Cada vez pior, tanto no hemisfério norte quanto no sul. Desde que se dilatou, a enorme cavidade do Pólo Sul gira em sentido horário devido aos ventos. Passou pelo Chile, pela Argentina e chegou ao pa­ralelo quarenta e cinco. Passou também pela ilha do sul, na Nova Ze­lândia, e chegou a Christchurch. As plantas e os animais dessa região receberam a mais prejudicial dose de raios ultravioleta já registrada.

O que significa que teremos de nadar com filtro solar — ironizou Giordino.

Isso é o de menos. A radiação ultravioleta prejudica todos os produtos agrícolas, das batatas aos pêssegos. Se os índices de ozônio caírem mais alguns pontos percentuais, haverá perdas desastrosas nas colheitas do mundo inteiro.

Que quadro horrível você está pintando!

E só o pano de fundo — prosseguiu Pitt. — Combine isso com o aumento da temperatura do planeta e a crescente atividade vulcânica, e a humanidade se verá diante de uma elevação do nível do mar de trinta a noventa metros nos próximos duzentos anos. O problema é que alteramos a Terra de um modo terrível, que ainda não conseguimos entender...

Lá! — atalhou Giordino abruptamente, apontando para baixo. Estavam passando por uma saliência rochosa inclinada para o mar. — Mais parece uma cidadezinha fronteiriça do que um posto científico.

A estação argentina de pesquisa e vigilância era um complexo de dez edifícios construídos com sólidas estruturas metálicas, que susten­tavam telhados abobadados. As paredes ocas foram densamente preen­chidas com material isolante contra o frio glacial. O arranjo de antenas que captavam os dados científicos na atmosfera grinaldavam as cúpulas como os ramos nus das árvores no inverno.

Silencioso como a campainha da casa de um eremita — observou Giordino ao tirar o fone do ouvido.

Nenhum comitê de boas-vindas.

Sem mais dizer, Pitt pousou o helicóptero bem perto do maior dos prédios; as pás da hélice açoitavam a neve, transformando-a numa chu­va de cristais de gelo. Alguns veículos e um trator estavam abandonados e semicobertos de neve. Não se via uma só pegada, nenhuma fumaça nos respiradouros. A ausência de fumaça ou de vapor branco significava a inexistência de habitantes, ao menos de habitantes vivos. O lugar parecia misteriosamente ermo. O lençol de neve lhe dava um aspecto fantasmagórico, pensou Pitt.

— Acho melhor pegar as pás — disse. — Pelo jeito, teremos de cavar para entrar.

Não era preciso muita imaginação para temer o pior. Desceram do helicóptero e, com a neve a lhes chegar às coxas, dirigiram-se com dificuldade à entrada do prédio principal. Tardaram vinte minutos para remover a neve ali acumulada e poder empurrar a porta.

Com um gesto cavalheiresco, Giordino se inclinou e sorriu:

Você primeiro.

Pitt não duvidava da coragem do amigo, que sempre se mostrara destemido. Aquela situação era rotineira para eles. Entrou à frente, en­quanto o italiano lhe dava cobertura contra qualquer movimento sus­peito nos flancos ou na retaguarda. Avançaram por um pequeno túnel até a segunda porta, que funcionava como barreira adicional contra o frio. Passando por ela, continuaram por um longo corredor, que dava numa sala ao mesmo tempo de jantar e de recreação. Giordino se apro­ximou de um termômetro pendurado na parede.

Está abaixo de zero aqui — murmurou.

Ninguém está cuidando da temperatura — concluiu Pitt.

Não demoraram a descobrir o primeiro habitante. O curioso era que não parecia morto. Ajoelhado no chão e agarrado a uma mesa, parecia olhar fixamente para Pitt e Giordino, sem piscar, como se estivesse à espera deles. Havia alguma coisa não natural e agourenta em sua imo­bilidade. Era um homem alto, calvo e, como quase todos os cientistas que passavam meses e às vezes anos em postos distantes e isolados, abandonara o ritual diário de barbear-se, como evidenciava a barba elegantemente escovada que lhe descia ao peito. Infelizmente, estava suja de vômito.

O assustador, o que provocou um arrepio na nuca de Pitt, era a expressão de pavor e agonia estampada no rosto, que o frio congelara numa máscara de branco mármore. Era indescritivelmente medonho. Os olhos lhe saltavam das órbitas; a boca estava torcida e aberta como que num derradeiro grito. Era óbvio que tivera uma morte extrema­mente dolorosa e cheia de terror. As unhas, cravadas no tampo da mesa, estavam quebradas e rachadas. Três delas haviam deixado pequenas gotas de sangue cristalizado em gelo. Pitt não era médico e nunca sonhara com essa carreira, mas mesmo assim pôde constatar que não era o rigor mortis que petrificara aquele homem; ele estava congelado.

Contornando um aparador, Giordino entrou na cozinha. Trinta se­gundos depois estava de volta.

Há outros dois aqui.

Nossos piores temores estão confirmados — disse Pitt sombria­mente.

Houvesse um único sobrevivente, ele teria conservado em funcio­namento os motores auxiliares que fazem funcionar os geradores de eletricidade e a calefação.

Giordino olhou para os corredores que davam nos outros edifícios.

Não estou com ânimo para continuar aqui dentro. Acho melhor dar o fora desse túmulo gelado e entrar em contato com o Ice Hunter do helicóptero.

Pitt o encarou.

O que você está propondo é que larguemos a batata quente nas mãos do capitão Dempsey. Ele que se encarregue do "agradável" tra­balho de notificar as autoridades argentinas de que toda a elite de cientistas de sua principal estação de pesquisa polar partiu misteriosa­mente desta para melhor.

Giordino deu de ombros com ar inocente.

Parece o mais sensato.

Você não suportaria conviver com sua própria consciência se desse o fora daqui sem ter certeza absoluta de que não resta um só sobrevi­vente.

Eu tenho culpa se me sinto melhor entre pessoas que respiram?

Procure a sala do gerador, abasteça os motores auxiliares, colo­que-os em funcionamento e ligue a eletricidade. Depois, vá ao centro de comunicações e entre em contato com Dempsey, enquanto verifico o resto da estação.

Pitt encontrou os demais no lugar onde tinham morrido, a mesma expressão de extremo tormento gravada nos rostos. Muitos haviam tom­bado no centro laboratorial e instrumental, três se achavam agrupados ao redor de um espectrofotômetro utilizado para medir o ozônio. Pitt contou dezesseis cadáveres espalhados nos diferentes compartimentos da estação. Quatro eram de mulheres. Todos se encontravam com os olhos saltados e a boca aberta, todos tinham vomitado. Morreram com medo e muita dor, congelaram durante a agonia. Lembravam os mortos de Pompéia.

Os corpos estavam como que petrificados em posições estranhas e nada naturais. Nenhum deles estendia-se no chão, como se simples­mente tivesse tombado. Quase todos pareciam ter perdido subitamente o equilíbrio e haver-se agarrado desesperadamente a alguma coisa para não cair. Alguns haviam abraçado o tapete; um ou dois estavam segu­rando fortemente a cabeça.

Intrigado com as posturas esquisitas, Pitt tentou afastar as mãos agarradas aos crânios, em busca de algum sinal de ferida ou doença. Porém percebeu que estavam rígidas como se tivessem sido soldadas à pele das têmporas e das orelhas.

O vômito parecia indicar óbitos com origem numa terrível intoxica­ção alimentar. Contudo, não se conhecia nenhum envenenamento desse tipo capaz de matar em tão poucos minutos. Dirigindo-se pensativo à sala de comunicações, começou a elaborar mentalmente uma teoria. O pensamento foi interrompido quando, ao entrar, deparou com um ca­dáver trepado numa escrivaninha, como uma estátua de cerâmica.

De que modo ele veio parar aqui? — perguntou calmamente.

Eu o coloquei aí — respondeu Giordino, sem tirar os olhos do rádio. O cara estava sentado na única cadeira da sala, e achei que precisava mais dela do que ele.

Com este, são dezessete.

Por enquanto.

Conseguiu comunicar-se com Dempsey?

Estou em contato. Quer falar com ele?

Pitt se aproximou do telefone via satélite, capaz de colocá-lo em contato com quase todos os lugares do mundo.

Aqui é Pitt. Está me ouvindo, capitão?

Vá em frente, Dirk. Estou ouvindo.

Al já lhe contou o que achamos aqui?

Já. Assim que você me confirmar que não há sobreviventes, vou avisar as autoridades argentinas.

Está confirmado. A menos que haja alguém dentro de algum armário ou debaixo da cama. Contei dezessete mortos.

Dezessete — repetiu Dempsey. — Compreendido. Conseguiu de­terminar a causa da morte?

Negativo. Os sintomas visíveis não constam dos manuais de me­dicina. Precisamos esperar o laudo de um patologista.

Talvez lhe interesse saber que a senhorita Fletcher e Van Fleet eliminaram qualquer possibilidade de virose ou contaminação química no caso dos pingüins e focas.

Todos aqui vomitaram antes de morrer. Peça-lhes que expliquem isso.

Vou anotar. Algum vestígio do segundo grupo de turistas?

Nada. Devem ter ficado a bordo do navio.

Muito esquisito.

E agora?

Agora, estamos diante de um grande quebra-cabeça. E faltam muitas peças.

No caminho, passamos por uma grande colônia de focas, comple­tamente exterminada. Conseguiu determinar a extensão da catástrofe?

A base britânica, duzentos quilômetros ao sul de onde vocês se encontram, na península de Jason, e um cruzeiro norte-americano an­corado na baía de Hope não registram nada anormal nem sinal de destruição em massa da vida animal. Incluindo a região do mar de Weddell, onde encontramos o cardume de golfinhos mortos, calculo que o círculo da morte tem um diâmetro de noventa quilômetros, sendo a ilha Seymour o seu centro.

Vamos partir agora — notificou Pitt — em busca do Polar Queen.

Veja se tem reserva de gasolina para retornar ao navio.

Não se preocupe. Não estou com vontade de nadar em água gelada.

Giordino desligou os aparelhos de comunicação da estação de pes­quisa, e, sem demora, quase correndo, ambos foram para a entrada. Nem um nem outro queria passar mais um minuto naquele lugar. Quan­do levantavam vôo, o italiano examinou a carta da península Antártica.

Para onde?

O mais correto é procurar na região selecionada pelo computador do Ice Hunter.

Giordino o encarou, desconfiado.

Você notou que o processador de dados da nossa embarcação discorda de sua tese de que o navio de passageiros tenha afundado na península ou perto da ilha?

Notei, e sei muito bem que a caixinha pensante de Dempsey coloca o Polar Queen navegando em círculos bem longe do mar de Weddell.

Estou vendo sinais de conflito?

Digamos que o computador só é capaz de oferecer uma opinião eletrônica a partir dos dados programados.

Aonde vamos, então?

— Vamos dar uma olhadela nas ilhas ao norte daqui, até Moody Point, na extremidade da península. Depois, faremos uma curva para o leste e rumaremos para o mar até convergir com o Ice Hunter.

Giordino sabia muito bem que estava diante de uma isca oferecida pelo maior vigarista do mares polares. Mesmo assim, mordeu-a.

Acho que você não está seguindo os conselhos do computador.

Não muito.

O italiano se sentiu fisgado.

Pode me dar uma dica do que está se passando em sua mente diabólica?

Não achamos nenhum corpo humano na colônia de focas. Logo, sabemos que o navio não se aproximou dela. Está entendendo?

Por enquanto.

Imagine o barco navegando para o norte da estação de pesca. O flagelo, a praga ou o que for, ocorreu antes que a tripulação tenha podido levar os passageiros à terra. Nestas águas, com banquisas e icebergs flutuando em toda parte como cubos de gelo numa poncheira, o capitão não confiaria o navio ao controle automático. O risco de colisão é muito grande. Ele teria pegado o timão pessoalmente, e trataria de governá-lo de um dos painéis eletrônicos da ponte de estibordo.

— Até aqui tudo bem — concordou Giordino. — E daí?

O navio estava navegando ao longo da costa da ilha Seymour quando a tripulação foi atingida — explicou Pitt. — Agora, pegue a carta e trace uma linha de duzentos quilômetros levemente a nordeste e cruze-a com um arco de trinta quilômetros. Depois, diga-me onde você está e que ilhas se interpõem nessa rota.

Antes de terminar, Giordino olhou fixamente para Pitt.

Por que o computador não chegou à mesma conclusão?

Porque, como capitão de navio, Dempsey estava mais preocupado com os ventos e as correntes. Também partiu do princípio, correto para um mestre da navegação, de que o último ato de um capitão agonizante seria tentar salvar o navio. O que significava afastar o Polar Queen do perigo de encalhar numa praia rochosa e tratar de aproá-lo no rumo das águas relativamente mais seguras do mar aberto, mesmo sob o risco de se chocar com um iceberg.

Mas você não acredita que isso tenha acontecido.

Não. Depois de ver os cadáveres na estação de pesquisa, não. Os coitados mal tiveram tempo de reagir, muito menos de tomar e executar uma decisão. O capitão do Polar Queen morreu em seu próprio vômito quando o navio estava em curso paralelo à praia. Com o resto da tri­pulação atingida, a embarcação continuou navegando. Se não encalhou numa ilha nem se chocou com um iceberg e afundou, deve ter seguido pelo Atlântico Sul até que os motores parassem por falta de combustível e o barco ficasse à deriva, longe das rotas marítimas conhecidas.

Sem ter como reagir às suposições de Pitt, Giordino limitou-se a perguntar:

Você nunca pensou em ganhar a vida como quiromante?

Estou pensando.

Deixando escapar um suspiro, o italiano traçou na carta o rumo que Pitt pedira. A seguir, colocou-o no painel de instrumentos, para que ele o pudesse ver.

Se a sua intuição mística estiver correta, a única possibilidade de o Polar Queen ter encalhado, daqui até o Atlântico Sul, é numa dessas três ilhotas que são pouco mais do que picos de rocha nua.

Como se chamam?

Ilhas Perigo.

O nome lembra um romance de piratas para adolescentes.

Giordino folheou um manual de referências litorâneas.

Aconselham os navios a desviar-se delas — disse. — Altas pali- çadas de basalto assomando nas águas agitadas. Depois, vem a lista dos navios que afundaram ali. — Ergueu os olhos para Pitt. — Não é bem um lugar para adolescentes.

 

Da ilha Seymour até o continente, o oceano era liso e transparente como um espelho. As montanhas rochosas erguiam-se, majestosas. A oeste das ilhas, o mar era acalmado por uma vasta legião de icebergs desgarrados, que se alçavam no azul-escuro da água como antigos ve­leiros congelados. Nenhum barco era visível, nenhuma obra humana perturbava a incrível beleza da paisagem marinha.

Contornaram a ilha Dundee, não muito distante do extremo da pe­nínsula. Mais ã frente, o Moody Point se retorcia na direção das ilhas Perigo como se fosse o dedo nodoso da caveira, com a foice a apontar a próxima vítima. As águas calmas terminavam ali. Como que saindo do conforto de uma sala aquecida para a tempestade lá fora, eles deram com um mar subitamente transformado numa massa ininterrupta de ondas encrespadas, que vinham do estreito de Drake. A violência do vento fez o helicóptero oscilar como um brinquedo.

Surgiram os picos das três ilhas Perigo. As escarpas rochosas subiam do mar que se agitava em sua base. Eram de tal modo alcantiladas que nem mesmo as aves marinhas encontravam onde pousar naquelas pa­redes perpendiculares. Elas se elevavam impetuosamente, desprezando as ondas que, em rápidas explosões de jorro e espuma, arremetiam contra as pedras. Tão sólida era a formação de basalto que um milhão de anos de violentos ataques do mar enlouquecido pouco desgaste pro­duzira. As paredes polidas alteavam em picos verticais, sem oferecer espaços planos maiores do que uma mesinha de centro.

Nenhum barco duraria muito nessa confusão.

Não há raso ao redor desses pináculos — observou Giordino. — A água parece aprofundar-se centenas de braças a poucos metros das escarpas.

Segundo as cartas de navegação, chega a mais de mil metros em menos de três quilômetros.

Contornaram a primeira ilha, uma árida e feia massa rochosa em meio à feroz turbulência. Não viram sinal de destroços no mar ator­mentado. Examinando a agitação das vagas, atravessaram o canal que a separava da ilha seguinte. Nenhum capitão seria maluco a ponto de passar a uma distância menor do que a de um tiro de canhão daquele lugar.

Está vendo alguma coisa? — perguntou Pitt, enquanto lutava para manter o helicóptero estável ante os ventos imprevisíveis que pa­reciam querer arremessá-lo de encontro às altíssimas colinas.

Só uma massa de água fervente, nada mais.

Pitt completou a circunferência e rumou para a terceira e última ilha. Esta tinha aspecto sombrio e maligno; não era preciso muita ima­ginação para ver que a forma do cume lembrava a de uma cabeça virada. Mais precisamente, a da cabeça do diabo, com os olhinhos pu­xados, duas saliências no lugar dos chifres e uma barbicha pontuda sob os lábios sarcásticos.

Caramba, como isso é feio! — disse Pitt. — Que nome terá?

Não há nenhum nome individual na carta náutica — respondeu Giordino.

Um momento depois, Pitt tomou um curso paralelo às paliçadas açoitadas pelas ondas e começou a rodear a ilha. De repente, Giordino ficou tenso e olhou com muita concentração pelo pára-brisa.

Está vendo?

Desviando a vista da espetacular colisão da água com a pedra, Pitt olhou para a frente.

Não estou vendo nenhum fragmento de naufrágio.

Esqueça isso. Olhe por cima desse cume aí adiante.

Pitt estudou a estranha formação rochosa que se destacava da massa principal, estendendo-se até a água feito um quebra-mar construído pelo homem.

A mancha de neve além da colina?

Não é nenhuma mancha de neve — disse Giordino com firmeza.

Pitt se deu conta repentinamente do que se tratava.

Agora eu entendi! — exclamou com crescente entusiasmo. Era liso, branco e tinha a forma de um triângulo, com um dos ângulos cortado. A borda superior era negra e ostentava uma espécie de em­blema pintado a um lado. — Uma chaminé de navio! E lá está o mastro do radar, uns quarenta metros mais à frente. Você acertou, rapaz!

Se for o Polar Queen, deve ter colidido com as rochas do outro lado dessa ponta.

Ao sobrevoar o molhe natural que entrava pelo mar, tiveram a im­pressão de que o navio de passageiros flutuava, intacto, a uns quinhen­tos metros da ilha. Por incrível que fosse, não apresentava um arranhão.

Ainda está inteiro! — gritou Giordino.

Não por muito tempo — retrucou Pitt, compreendendo a situação terrível.

O Polar Queen descrevia amplos círculos, o leme de algum modo virado a estibordo. Eles tinham chegado menos de trinta minutos antes que o arco o levasse à colisão com a rocha íngreme, partindo-lhe o casco e mandando todos a bordo ao fundo do mar gelado.

Há corpos na coberta — disse Giordino com calma.

Viam-se alguns espalhados na coberta de bombordo. Vários estavam caídos no convés, perto da popa. Um Zodiac ainda preso ao passadiço arrastava-se nas ondas, e dois cadáveres jaziam dentro dele. Que esta­vam mortos era evidente, pela fina camada de neve e gelo que os cobria.

Duas voltas mais e ele vai bater nas pedras — calculou o italiano.

Temos de descer e dar um jeito de mudar seu curso.

Com este vento? — alarmou-se Giordino. — O único espaço aberto é o telhado das cabines da plataforma. Uma aterrissagem de acrobata que eu não gostaria de arriscar. No pouso, vamos ter menos controle do que uma folha seca. Uma lufada para baixo é suficiente para que a gente vá parar no meio daquela turbulência.

Pitt soltou o cinto de segurança.

Neste caso, você pilota e eu desço pelo guindaste.

O hospício está cheio de gente mais sensata do que você. Quer ser varrido feito um ioiô?

Existe outra maneira de descer a bordo?

Só uma. Mas não é aprovada pela Liga das Senhoras Católicas.

A abordagem do couraçado no caso Vixen — lembrou-se Pitt.

Você teve muita sorte daquela vez.

Pitt não tinha dúvida de que o navio ia se chocar com as rochas. E, uma vez fendido o casco, ele afundaria como um tijolo. Existia sempre a possibilidade de que um ou outro houvesse sobrevivido ao mal des­conhecido, como ocorrera a Maeve e aos turistas encerrados na caverna. A dura realidade impunha que os corpos fossem examinados, na es­perança de encontrar as causas da morte. Se houvesse uma chance de salvar o Polar Queen, por mínima que fosse, era preciso arriscar.

Pitt olhou para o amigo e sorriu.

Chegou a vez do trapezista.

Pitt já estava com roupa de baixo térmica, feita de pesada lã de náilon, que retinha o calor do corpo e o protegia das frígidas tempe­raturas. Sobre ela, levava um macacão impermeável de mergulhador, especialmente isolado para as águas polares. Esse macacão tinha dois objetivos. O primeiro era protegê-lo do vento, quando estivesse pen­durado no ar, com o helicóptero em movimento. O segundo, caso caísse ao mar, era mantê-lo vivo na água gelada a tempo de ser resgatado.

Instalando-se na rede do guindaste, ele ajustou no queixo a alça do capacete equipado com rádio. Olhou para o compartimento onde ficava o laboratório de Van Fleet, e depois para o cockpit.

Está me ouvindo bem? — perguntou a Giordino pelo minúsculo microfone que tinha diante dos lábios.

Está chiando um pouco, mas isso deve passar quando você estiver longe da interferência do motor. E você? Está me ouvindo?

Sua voz soa alta como o repicar de um sino.

Como a superestrutura está cheia de chaminés, mastros e uma série de equipamentos eletrônicos de navegação, não posso deixá-lo no centro do barco. Terei de colocá-lo na proa ou na popa.

Procure deixar-me no convés, perto da popa. A proa tem muita maquinaria.

Vou de estibordo a bombordo assim que o navio virar e o vento vier de través — informou o italiano. — Irei do mar e tentarei aproveitar as condições mais calmas do lado do penhasco que fica oposto ao vento.

Entendido.

Pronto?

Pitt arrumou a máscara do capacete e calçou as luvas. Pegou o con­trole remoto do guindaste e, com a outra mão, abriu a escotilha lateral. Não fossem as roupas especiais, a abrupta baforada de friagem polar o teria congelado em poucos segundos. Da porta, olhou para baixo. O Polar Queen continuava circulando, cada vez mais próximo do fim. Na­quela velocidade, estava a apenas cinqüenta metros da destruição. A muralha rochosa da mais distante das ilhas Perigo parecia acenar para ele. Era como uma descuidada mariposa a voar para os braços da caranguejeira, pensou Pitt. Não dispunha de muito tempo. A embarcação estava iniciando o derradeiro circuito que a levaria a colidir com a rocha. Isso devia ter acontecido mais cedo; porém, em seu recuo, as ondas que arremetiam contra as escarpas adiavam o desastre.

Reduzindo — disse Giordino, anunciando o início da aproxima­ção.

Descendo agora — informou o outro, e apertou o botão que de­senrolava o cabo. Assim que obteve linha suficiente para sair, lançou-se no espaço.

A violência do vento o atingiu em cheio, atirando-o contra a barriga do helicóptero. O rotor trepidava acima dele, o barulho da turbina lhe atravessava o capacete e os fones. Rodopiando no ar gelado, Pitt ex­perimentou a sensação de um bungee jumper após o primeiro recuo. Tratou de concentrar a atenção no navio, que parecia um barquinho de brinquedo a flutuar no azul, a pouca distância.

Sua superestrutura foi crescendo rapidamente, até ocupar a maior parte da visão de Pitt.

Estou chegado — anunciou o italiano pelo rádio. — Cuidado para não bater na amurada e virar picadinho.

Muito embora tivesse falado com a calma de quem está estacionando na garagem de casa, ele não escondia a tensão, traída na voz. Ia lutando para manter estável o aparelho, agora em baixa velocidade, em meio à fúria desencontrada dos ventos.

Cuidado para não entrar de fuça nas rochas — replicou Pitt.

Foram as últimas palavras que trocaram. Dali por diante, era questão de visão e instinto. Pitt desceu até ficar quase quinze metros abaixo e atrás do helicóptero. Estendendo os braços como as asas de um avião, tratava de combater o impulso e a velocidade que o faziam girar. Sentiu que estava caindo alguns metros quando o italiano reduziu a velocidade.

O Polar Queen parecia singrar displicentemente as águas tropicais, numa excursão recreativa. Giordano diminuiu a velocidade tanto quan­to possível. Um pouco mais, e os ventos assumiriam o controle de tudo. Estava pilotando com cada fragmento de experiência que acu­mulara em milhares de horas de vôo, se é que podia considerar um vôo ser jogado de um lado para outro pelas correntes de ar. Apesar da impetuosidade do vento, se conseguisse manter o curso poderia deixar Pitt no centro do convés. Mais tarde, ele juraria ter sido jogado aleatoriamente por lufadas vindas de seis diferentes direções. Em sua posição na extremidade do cabo do guindaste, Pitt estava admirado com a habilidade de Giordino em manter o aparelho em linha reta.

Ominosas e ameaçadoras, as negras colinas se alçavam além do na­vio. Aquele cenário capaz de acovardar o mais destemido capitão cer­tamente atemorizou o piloto. Não era difícil que acabasse mergulhando de cabeça na rocha nua; do mesmo modo, era bem possível que Pitt, num erro de cálculo, trombasse com o flanco do navio, partindo todos os ossos do corpo.

Voavam servindo-se da ilha como anteparo. Mesmo assim, a força do vento pouco diminuíra. Mas esse pouco era o bastante para que o italiano se sentisse uma vez mais no firme controle do helicóptero e de seu destino. Num momento, o navio estava a sua frente; no seguinte, a superestrutura branca e o casco amarelo desapareceram sob ele. Então, só pôde ver a rocha coberta de geada. Não lhe restava senão esperar que Pitt já estivesse a salvo quando lançou o aparelho numa abrupta ascensão vertical. Umedecidos pelo assédio das ondas, os penhascos pareciam atraí-lo como um ímã.

Acima dos cumes gelados, foi atingido por toda a força do vento, que atingiu a cauda do aparelho, empurrando as pás da hélice a uma posição perpendicular. Alheio a quaisquer sutilezas, Giordino fez girar o helicóptero, invertendo-lhe o curso, e tornou a sobrevoar o barco, ao mesmo tempo em que tentava enxergar o amigo lá embaixo. Não sabia que Pitt, soltando a rede, tinha executado um salto perfeito, de uma altura de apenas três metros, diretamente no centro da piscina do con­vés. Mesmo daquela altura, ela dava a impressão de não ser maior do que um cartão-postal. Mas era encantadora como um fofo monte de feno. Pitt flexionou os joelhos e abriu os braços a fim de diminuir a velocidade. A piscina tinha apenas dois metros em sua parte mais funda, e ele caiu com um tremendo ruído, espalhando muita água. Suas botas de mergulhador bateram fortemente no fundo.

Cada vez mais aflito, Giordino se pôs a rodear a superestrutura do navio, à procura do amigo. Sem conseguir avistá-lo, gritou ao microfone:

Você chegou bem? Entre em contato, meu velho.

Acenando, Pitt respondeu:

Aqui na piscina!

O italiano ficou assombrado.

Você caiu na piscina?

E estou com vontade de continuar aqui — disse o outro alegre­mente. — O aquecimento continua funcionando, e a água está quentinha.

Acho melhor ir logo para a plataforma de comando — advertiu Giordino. — O barco está se aproximando cada vez mais depressa. Não dou oito minutos para que ouça uma explosão.

Pitt não precisou de outro estímulo. Saindo rapidamente da piscina, pôs-se a correr na coberta, rumo à escada de tombadilho dianteira. A plataforma ficava um andar acima. Subiu os degraus de quatro em quatro, abriu a porta da casa do leme e entrou precipitadamente. Um oficial do navio jazia morto ali, os braços a cingir a base da mesa de cartas. Apressado, Pitt examinou o painel do sistema automático de navegação. Perdeu valiosos segundos procurando o monitor digital de rota. A lâmpada amarela indicava que o controle eletrônico estava na posição manual. Sem pestanejar, ele saiu à ala de estibordo da plata­forma. Estava vazia. Voltando-se, retornou pela casa do leme e foi para a ala de bombordo. Dois outros tripulantes estavam estendidos na co­berta, os corpos contraídos, brancos e frios. Um terceiro cadáver coberto de gelo se encontrava de joelhos sobre o painel de controle exterior. Estava com um blusão impermeável sem divisas, porém o quepe bor­dado de ouro denunciava-o com o capitão.

Não consegue lançar âncora? — perguntou Giordino.

Falar é fácil — retrucou Pitt com irritação. — Além disso, o fundo não é plano. Os flancos da ilha provavelmente descem num ângulo de quase noventa graus durante pelo menos mil braças. E a rocha é muito lisa para que a âncora se prenda.

Num piscar de olhos, Pitt compreendeu por que o navio mantivera um curso direto durante quase duzentos quilômetros antes de iniciar o movimento circular a bombordo. Uma medalha de ouro, pendurada numa corrente, caíra fora da gola do pesado blusão do capitão e tinha ficado suspensa sobre o painel de controle. As rajadas a empurravam de um a outro lado e, ao fim de cada oscilação pendular, ela batia numa das alavancas em forma de trambelho, que controlavam os mo­vimentos do navio, parte de um sistema eletrônico que quase todos os comandantes modernos usavam ao aportar. Por fim, a medalha em­purrara a alavanca direcional a uma posição de semi-bombordo, fazendo com que o Polar Queen navegasse, em espirais, cada vez mais próximas das ilhas Perigo.

Pitt pegou a medalha. Examinou a efígie e a inscrição gravadas numa das faces. Era São Francisco de Paula, o padroeiro dos marujos e na­vegadores, reverenciado pelo milagre de salvar de naufrágios os ma­rinheiros. Pena que não tivesse protegido o capitão, pensou Pitt. Mas ainda havia uma chance de lhe resgatar o navio.

O simplíssimo fato de uma peça de metal bater numa pequena ala­vanca evitara que uma embarcação de duzentas e cinqüenta toneladas


brutas, além dos passageiros e da tripulação, vivos ou mortos, se esmigalhasse numa rocha e afundasse num mar frio e indiferente.

— É melhor se apressar — disse a voz ansiosa de Giordino, nos fones.

Deixando escapar uma praga, Pitt olhou rapidamente para a sinistra muralha que parecia estender-se até as mais altas camadas da atmosfera. Achatada e lisa sob a ação das ondas, sua superfície dava a impressão de haver sido polida pelas mãos de um gigante. As vagas em torno às rochas nuas rugiam a apenas duzentos metros de distância. A medida que o Polar Queen se aproximava, a turbulência do mar parecia em­purrá-lo mais depressa para o desastre. Pitt estimou que a proa a estibordo colidiria dentro de quatro minutos.

Completamente livres, as ondas implacáveis vinham dos confins do oceano e se precipitavam nos penhascos como explosões de enormes bombas. O branco mar ebulia num gigantesco caldeirão de bruxa, re­pleto de água azul e espuma branca. Erguia-se rumo ao pico da denteada ilha rochosa, demorava-se um momento no alto e então tornava a cair, criando outras ondas em sentido contrário. Esse recuo impediu tem­porariamente o Polar Queen de ser arrastado contra as pedras ao passar por ali.

Pitt tentou afastar o corpo do capitão do painel de controle, mas ele não se movia. As mãos crispadas na base se recusavam a ceder. Agar­rando o cadáver pelas axilas, puxou-o com toda força. Ouviu-se um horrendo estalo, que Pitt identificou como o partir-se da pele congelada aderida ao metal. O capitão se soltou repentinamente. Pitt o jogou a um lado, achou a alavanca de cromo que controlava o leme e a empurrou rapidamente para a posição que dizia BOMBORDO, a fim de aumentar o ângulo de desvio da calamidade.

Durante uns trinta segundos foi como se nada tivesse acontecido; depois, com agônico vagar, a proa começou a se afastar da exaltada rebentação. A velocidade era quase insuficiente. Um navio não podia virar no mesmo raio de um grande trailer. Precisava de quase um qui­lômetro para parar totalmente. Jamais conseguiria executar um rápido giro.

Pitt chegou a pensar em reverter o movimento da hélice de bombordo para que a embarcação rodasse sobre seu próprio eixo, mas precisava de cada nó da velocidade para progredir no mar encapelado. E ainda havia o perigo de a popa girar demais a estibordo e acabar batendo no penhasco.

Não vai dar — avisou Giordino. — O barco está sendo levado pelas ondas. É melhor você saltar enquanto for possível.

Pitt não respondeu. Examinando o desconhecido painel de controle, viu as alavancas dos thrusters de popa e de proa. Havia também um pedal que ligava o painel de controle aos motores. Retendo a respiração, colocou as alavancas na posição de bombordo e pisou com força no pedal. A resposta foi quase instantânea. No fundo dos porões, como que impulsionada por mãos invisíveis, a rotação do motor aumentou. Uma sensação de alívio o invadiu quando ele sentiu o maquinário em funcionamento. Agora, só restava esperar que desse certo.

Acima do barco, Giordino a tudo assistia com o coração na mão. De seu ponto de observação, o navio não parecia estar virando. Ele não via possibilidade de salvação para o amigo, se fosse arrastado para a ilha. Mergulhar na agitação da água significava apenas um esforço inútil face ao incrível poder do mar colérico, uma situação absoluta­mente sem saída.

Vou buscá-lo — informou.

Calma — ordenou Pitt. — Você pode não sentir daí, mas, a esta distância do precipício, a turbulência do ar é fatal.

E suicídio esperar mais. Se você pular agora, posso recolhê-lo.

Com os diabos... — Pitt se interrompeu, apavorado, quando o Polar Queen foi colhido em cheio por uma vaga gigantesca, que se pre­cipitou sobre ele como uma avalanche.

Por intermináveis momentos, pareceu estar sendo puxado na direção do penhasco, para junto do frenético tumulto ao redor da rocha. Logo voltou a se deslocar para a frente, a proa de quebra-gelo a mergulhar nas ondas, cujas cristas se alçavam até a plataforma. O navio desceu ainda mais, como se pretendesse seguir viagem diretamente ao fundo do mar.

 

A torrente veio com um rumor de trovoada, lançando Pitt no tombadilho. Ele releve instintivamente a respiração quando a água gelada o encobriu. E se agarrou desesperadamente à base do painel de controle para não ser varrido por cima da amurada e cair no furioso remoinho. Era como se estivesse se precipitando do alto de uma cachoeira. Tudo o que conseguia ver através da máscara de proteção era uma enorme massa de bolhas e espuma. Apesar da roupa impermeável aos rigores polares, sentiu na pele um milhão de finas agulhas. Agarrado como estava, para não perder a vida, teve a impressão de que seus braços estavam sendo arrancados.

O Polar Queen voltou a subir com esforço, irrompendo no recuo da onda; sua proa avançou outros metros a bombordo. Lutando contra o mar, recusava-se a morrer. Quando a água escoou em rios da plataforma, Pitt conseguiu respirar novamente. Enchendo de ar os pulmões, tentou ver através da enxurrada que vinha das rochas negras. Caramba, es­tavam tão próximas que ele quase podia alcançá-las com as mãos! Tão próximas que a espuma lançada para o alto pela tremenda colisão da água com a pedra ricocheteava na embarcação. Em meio ao caos, o navio se apoiou no thruster da popa. O thruster da proa cortou as águas, avançando no dilúvio ao mesmo tempo em que os hélices da proa agitavam o mar em espuma, impelindo a embarcação num ângulo que a afastava da face vertical do penhasco. Imperceptivelmente, começou a aproar rumo ao alto-mar.

Está conseguindo! — gritou Giordino. — Ele está saindo!

Mas ainda não saiu.

Pela primeira vez depois da inundação, Pitt se dava ao luxo de responder. Olhou com preocupação para a nova série de ondas que se aproximava.

O oceano ainda não se dera por vencido. Pitt inclinou-se quando um gigantesco lençol de água se abateu sobre o tombadilho. A vaga seguinte o atingiu como um trem expresso antes de colidir com o recuo da que a precedera. Comprimida entre os dois impactos, a embarcação foi jogada para o alto, e o casco se tornou visível quase até a quilha. Os dois hélices gêmeos espalharam no ar jorros de água branca, que, reverberando o sol, pareciam fogos de artifício. O navio ficou suspenso durante um terrível momento, para então mergulhar numa profunda depressão e ser atingido pela vaga seguinte. A proa virou a estibordo, porém o thnister corrigiu-lhe a posição.

Muitas e muitas vezes o barco adernou com o impacto do marulho no costado. Já não havia como detê-lo. Tinha passado pelo pior e, agora, sacudia as infinitas ondas como um cachorro sacode a água do pêlo. O mar voraz que tratasse de engoli-lo em outra ocasião; o mais provável, no entanto, era que a embarcação se aposentasse dali a trinta anos ou mais.

Você conseguiu! Conseguiu tirá-lo de lá! — gritou Giordino, sem acreditar nos próprios olhos.

Encostando-se no parapeito, Pitt sentiu-se cansado. Foi então que tomou consciência da dor no quadril direito. Lembrou-se de se haver chocado com um poste de iluminação noturna ao ser encoberto pela vaga gigantesca. Embora não pudesse vê-la sob o macacão impermeável, sabia que sua pele estava formando um hematoma.

Só depois de haver colocado os controles de navegação num curso direto para o sul, rumo o mar de Weddell, ele se voltou e olhou para o rochedo que se alteava no mar qual negra coluna recortada. Havia nele algo feroz, como se estivesse enfurecido por haver deixado escapar uma vítima. A ilha estéril não tardou a se perder na distância, recuando na esteira do Polar Queen.

Pitt olhou para o helicóptero que pairava acima da casa do leme.

Como está de combustível? — perguntou ao italiano.

Dá e sobra para voltar ao Ice Hunter.

Então volte.

Você já parou para pensar que quem aborda e leva um navio abandonado até o porto mais próximo pode ganhar alguns milhões de dólares do seguro?

Pitt riu.

— E você acredita que o almirante Sandecker e o governo americano permitiriam, sem chiar, que um pobre mas honesto burocrata aboca­nhasse essa grana?

De jeito nenhum. Precisa de alguma coisa?

Dê minha posição a Dempsey e diga-lhe que vou encontrá-lo onde ele quiser.

Até mais tarde — despediu-se Giordino.

Teve vontade de fazer um comentário jocoso sobre o fato de Pitt ter um navio de passageiros inteirinho para si, mas a realidade da situação não o permitia. Não era engraçado ser o único vivo num barco da morte. Fazendo uma ampla curva, para colocar o aparelho no rumo do Ice Hunter, concluiu que não tinha a menor inveja do amigo.

Pitt tirou o capacete e ficou olhando para o helicóptero turquesa, que se afastava voando baixo sobre o mar azul e frio. Observou-o até que se tornasse uma mancha dourada no horizonte. Uma sensação de solidão o invadiu quando ele correu os olhos pela embarcação vazia. Nunca se lembraria de quanto tempo passou olhando para o convés sem vida. Ficou simplesmente ali, como que paralisado, sem pensar.

Esperava ouvir algo além do bater das ondas no casco e o ruído constante dos motores. Talvez esperasse um barulho que indicasse a presença de seres humanos, vozes ou risos. Talvez estivesse aguardando algum sinal de movimento de outra coisa que não as flâmulas agitadas pela brisa. Sobretudo dominava-o o pressentimento do que certamente encontraria. A cena da estação argentina de pesquisa se repetiria uma vez mais. Os passageiros e tripulantes mortos espalhados no convés superior eram apenas uma amostra do que o esperava lá embaixo, no interior do navio, nos camarotes.

Por fim, tomou coragem e entrou na casa do leme. Colocou os mo­tores em velocidade média e calculou uma rota aproximada rumo a um ponto de interseção com o Ice Hunter. Depois, programou as coor­denadas no computador de navegação e ligou o sistema de controle automático, conectando-o com o radar, para que o navio desviasse dos eventuais icebergs. Ciente de que a embarcação estava fora de perigo, saiu da casa do leme.

Vários dos cadáveres nos conveses eram de tripulantes colhidos pela morte no trabalho de manutenção do navio. Dois estavam pintando o costado, outros se ocupavam dos botes salva-vidas. Os corpos de oito passageiros sugeriam que estavam contemplando o litoral ao ser atin­gidos. Pitt desceu um passadiço e examinou o hospital do navio. Estava vazio. Desceu a escada carpetada até o deque onde ficavam as seis suítes. Estavam vazias, com exceção de uma. Nesta, uma senhora idosa parecia dormir. Ele encostou os dedos em seu pescoço. Estava fria como gelo. Pitt seguiu até o convés do salão.

Começou a sentir-se como o antigo marinheiro do navio-fantasma. Só lhe faltava o albatroz ao lado do pescoço. Os geradores ainda for­neciam eletricidade e calor, tudo estava em ordem, tudo no lugar. O aquecimento interior parecia ainda mais agradável após a inundação de água gelada no tombadilho. Com surpresa, ele notou que se tornara indiferente aos cadáveres. Já não o repugnava examiná-los detidamente em busca de um sinal de vida. Sabia da trágica verdade.

Ainda que mentalmente preparado, continuava achando difícil acre­ditar que ninguém estivesse vivo a bordo. A morte que varrera o navio feito uma lufada de vento era diferente de tudo quanto conhecia. E como era desagradável intrometer-se na vida de uma embarcação que decerto guardava melhores lembranças... Perguntou-se o que pensariam os futuros passageiros e tripulantes que nela viajassem. Acaso ninguém mais voltaria a subir a bordo daquele barco marcado pela má sorte? Ou quem sabe os mais excêntricos haveriam de se sentir particularmente atraídos pela idéia de um cruzeiro cheio de aventuras misturadas com morbidez?

De repente, Pitt se deteve e se pôs a escutar com mais atenção. Em algum lugar ouviam-se os acordes de um piano. Era o antigo jazz Sweet Lorraine. Logo, tão subitamente como começara, a música cessou.

Ele começou a suar no macacão de mergulhador. Parado durante alguns minutos, tratou de despi-lo. Os mortos não se incomodariam se andasse por ali só com a roupa de baixo, pensou com humor negro. E seguiu em frente.

Entrou na cozinha. A área ao redor dos fogões e dos balcões estava cheia de cadáveres: um amontoado de cozinheiros, ajudantes e garçons. Um frio horror pairava ali. Parecia um matadouro, embora não se visse sangue. Unicamente formas indefinidas e sem vida congeladas no der­radeiro ato de se agarrar a alguma coisa tangível, como se uma força invisível as quisesse arrastar. Enjoado, ele deu meia-volta e subiu de elevador ao salão de jantar.

As mesas estavam postas. Espalhados pelos bruscos movimentos do navio, os talheres de prata ainda se encontravam sobre as imaculadas toalhas de mesa. A morte chegara antes do almoço. Pitt apanhou o cardápio e estudou as entradas. Perca marinha, peixe antártico, posta gigante; vitela para os que não gostavam de peixe. Deixou o cardápio e já estava saindo quando notou algo fora do lugar. Passando por cima do corpo de um garçom, acercou-se de uma mesa junto a uma das janelas panorâmicas.

Alguém tinha comido ali. Pitt olhou para os pratos ainda com restos de comida. Havia uma sopeira quase vazia com o que parecia ser sopa de marisco, e torradas quebradas e amanteigadas, um copo de chá ge­lado. Era como se tivessem acabado de almoçar e ido dar uma volta no convés. Teriam aberto o salão mais cedo para um dos passageiros? cogitou, preferindo rejeitar a idéia de que algum sobrevivente tivesse se alimentado após o extermínio dos demais.

Tentou elaborar uma dúzia de soluções lógicas para a intrigante descoberta. Inconscientemente, porém, o medo o assaltou. Sem pensar, começou a olhar com freqüência para trás. Saindo do salão, passou pela loja de suvenires e seguiu para a sala de lazer. Viu um enorme piano Steinway junto a uma pequena pista de dança. As mesas e as cadeiras estavam dispostas em ferradura. Junto à garçonete que caíra quando levava uma bandeja de drinques, havia um grupo de oito homens e mulheres, todos septuagenários, que deviam estar sentados a uma mesa grande, mas agora se encontravam em grotescas posições no tapete. Ob­servando os maridos e esposas, alguns deles presos num último abraço, sentiu tristeza e angústia. Dominado por uma sensação de impotência, amaldiçoou a causa desconhecida daquela terrível tragédia.

Foi quando reparou em outro cadáver. Era uma mulher sentada no tapete, a um canto da sala. Estava com o queixo nos joelhos, a cabeça aninhada nos braços. Vestindo um elegante casaco de couro de mangas curtas e calça comprida de lã, não se encontrava numa posição contorcida nem parecia ter vomitado, como os outros.

Pitt sentiu um frio na espinha. Seu coração se acelerou. Controlando o choque inicial, atravessou lentamente a sala, aproximou-se e ficou olhando para ela. Tocou-lhe a face com a ponta do dedo. Uma onda de alívio o percorreu ao sentir-lhe o calor. Sacudiu-lhe delicadamente os ombros e viu-a abrir as pálpebras.

No primeiro momento, ela o encarou, atordoada e confusa; logo, arregalando os olhos, abraçou-o e deixou escapar um gemido.

Você está vivo!

E muito contente por ver que você também está — sorriu Pitt com doçura.

Ela se afastou bruscamente.

Não, não... Não pode ser. Vocês estão todos mortos.

Não precisa ter medo de mim.

Ela pousou nele os olhos castanhos e inchados de chorar. Um olhar triste e enigmático. Tinha rosto liso, pálido e um tanto magro. Seu cabelo era da cor do cobre. Os pômulos altos e os lábios grossos, bem desenhados, lembravam uma modelo. Entreolharam-se durante algum tempo; depois ele baixou ligeiramente a vista. Mesmo encolhida, a mu­lher dava a impressão de ter também corpo de modelo. Os braços nus eram um tanto musculosos. Só ao notar que ela estava olhando para o seu corpo foi que Pitt se sentiu constrangido por se achar apenas de camiseta e ceroula diante de uma dama.

— Por que você está sem roupa? — murmurou ela enfim.

Era uma pergunta inconseqüente, vinda do medo e do trauma, não da curiosidade. Pitt não se deu ao trabalho de responder.

Conte-me quem é você e por que está viva, se os outros morreram.

Ela pareceu a ponto de tombar; Pitt se abaixou, tomou-a pela cintura e a colocou numa cadeira de couro junto à mesa. Foi até o bar. Esperava encontrar o cadáver do barman atrás do balcão e não se decepcionou. Pegou uma garrafa de uísque e serviu uma dose.

Tome isto — disse, aproximando o copo dos lábios da moça.

Eu não bebo — protestou ela vagamente.

Faz de conta que é remédio. Só um gole.

Ela conseguiu engolir o conteúdo do copo sem tossir, mas seu rosto se contorceu numa expressão de azedume quando a bebida, suave como um beijo para o connoisseur, lhe irritou as narinas. Depois de respirar e tomar fôlego, ela o fitou e sentiu-lhe a compaixão.

Meu nome é Deirdre Dorsett.

Continue — pediu Pitt. — Já é um começo. Você é passageira?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não. Eu canto e toco piano no salão.

Era você que estava tocando Sweet Lorraine?

Digamos que foi uma reação ao choque. Choque de ver todo mundo morto, choque de pensar que eu seria a próxima. Não consigo acreditar que estou viva.

Onde estava quando ocorreu a tragédia?

Ela olhou com mórbido fascínio para os quatro casais que jaziam ali perto.

A senhora de vestido vermelho e o senhor grisalho estavam co­memorando as bodas de ouro com uns amigos que os acompanhavam na viagem. Na noite anterior à festa, a equipe da cozinha esculpiu um coração e um cupido em gelo, que ficaria no centro da poncheira. Quan­do Fred, o barman, abria a garrafa de champanhe, e Martha, a garçonete, vinha da cozinha com a poncheira de cristal, eu me ofereci para ir buscar a escultura de gelo no freezer.

Você estava no freezer?

Ela fez que sim.

Lembra-se de ter fechado a porta?

Ela se fecha automaticamente.

Ia trazer a escultura sozinha?

Não era muito grande. Do tamanho de um pequeno vaso.

Que fez então?

A mulher fechou os olhos, cobriu-os com as mãos e sussurrou:

Fiquei só alguns minutos lá dentro. Quando saí, descobri que todo mundo tinha morrido.

Quantos minutos exatamente? — perguntou Pitt em voz baixa.

Ela balançou a cabeça para a frente e para trás. Depois falou, com a boca encoberta pelas mãos:

Por que está fazendo tantas perguntas?

Não estou querendo parecer um promotor público, mas, por favor, é importante.

A moça baixou lentamente as mãos e pousou os olhos vidrados na superfície da mesa.

Sei lá! Como vou saber quanto tempo passei lá dentro? Só lembro que demorei um pouco para embrulhar a escultura de gelo numas toa­lhas, a fim de carregá-la sem congelar os dedos.

Você teve muita sorte. Foi o clássico estar no lugar certo na hora certa. Se tivesse saído do freezer dois minutos antes, poderia estar morta, como os demais. E também teve sorte porque eu cheguei na hora certa.

Você é da tripulação? Não me lembro de tê-lo visto.

Evidentemente, ela não sabia que o Polar Queen estivera a ponto de se chocar com as ilhas Perigo.

Desculpe, eu devia ter me apresentado. Meu nome é Dirk Pitt. Estou com uma expedição científica. Encontramos um grupo de turistas abandonado na ilha Seymour e saímos em busca do navio, já que não conseguíamos entrar em contato por rádio.

Deve ter sido o grupo de Maeve Fletcher — disse ela tranqüila­mente. — Devem ter morrido todos também.

Dois passageiros e o tripulante que os levou à praia, sim. A senhorita Fletcher e os outros estão vivos e passando bem.

Durante um brevíssimo instante, Deirdre assumiu uma série de ex­pressões das quais uma atriz da Broadway só poderia orgulhar-se. A de choque seguiu-se à de raiva, culminando com a de felicidade. Seus olhos brilharam e ela relaxou visivelmente.

Graças a Deus que Maeve está bem.

Entrando pela janela do salão, a luz do sol brilhou em seu cabelo solto, que lhe caía nos ombros. Pitt sentiu-lhe o perfume. Sentiu também uma estranha mudança nela. Era uma mulher confiante de trinta e poucos anos, com forte personalidade. Sentiu, além disso, um desconcertante desejo por ela, coisa que o irritou. Aquele não era o momento, pensou, nem aquelas as circunstâncias. Tratou de desviar o olhar.

Por quê...? — perguntou a moça com um gesto atordoado. — Por que morreram todos?

Pitt olhou para os oito amigos que estavam comemorando uma oca­sião especial quando a vida lhes foi cruelmente arrebatada.

Não tenho certeza — respondeu com a voz afetada pela raiva e a compaixão -, mas acho que tenho uma idéia.

 

Pitt estava combatendo a fadiga quando o Ice Hunter sumiu da tela do radar e apareceu a estibordo. Depois de revistar o Polar Queen em busca de mais sobreviventes, uma causa perdida, como constatou, ele só se permitira uma breve soneca, enquanto Deirdre Dorsett vigiava, pronta para despertá-lo caso o navio ameaçasse colidir com algum pobre pesqueiro em busca de bacalhau de água gelada. Havia os que se sen­tiam animados após um curto repouso. Não era o caso de Pitt. Vinte minutos no país dos sonhos não bastavam para lhe reconstituir a mente e o corpo depois de vinte horas de estresse. Ele se sentia pior do que quando fora se deitar. Estava ficando velho para saltar de helicópteros e enfrentar mares bravios, pensou. Aos vinte anos, era capaz de saltar por cima de altos edifícios; aos trinta, conseguia pular algumas casas de dois andares. Mas quando fora isso? A julgar por seus músculos e articulações doloridos, devia ter sido oitenta ou noventa anos atrás.

Fazia tempo que trabalhava para a Agência Nacional de Pesquisas Subaquáticas e para o almirante Sandecker. Estava na hora de mudar de profissão, alguma coisa menos rigorosa, com jornadas de trabalho mais curtas. Talvez fazer chapéus de palha em alguma praia do Taiti, ou quem sabe algo mais estimulante, como vender pílulas anticoncep­cionais de porta em porta. Sacudindo esses tolos pensamentos, provo­cados pela exaustão, ele colocou o controle automático em PARADA TOTAL.

Numa rápida transmissão de rádio ao Ice Hunter, informou a Demp­sey que estava desligando os motores e solicitou que uma equipe as­sumisse o controle do navio; depois, entrou em contato com o almirante Sandecker, via satélite, para inteirá-lo da situação.

No quartel-general da ANPS, a recepcionista o conectou diretamente com o telefone particular de Sandecker. Embora se encontrassem a meio mundo de distância, o fuso horário de Pitt, na Antártida, contava só uma hora a mais do que o de seu chefe em Washington.

Boa noite, almirante.

Já devia ter me telefonado.

Andei meio ocupado.

Fiquei sabendo por Dempsey que você e Giordino localizaram e salvaram o navio de passageiros.

Terei prazer em lhe fornecer os detalhes.

Já encontrou o Ice Hunter? — Sandecker não era de muitos rodeios.

Sim, senhor. O capitão Dempsey está a apenas algumas centenas de metros a estibordo. Vai mandar um barco para colocar uma equipe a bordo e cuidar da única sobrevivente.

Quantas baixas?

Após uma busca preliminar no navio — respondeu Pitt —, contei cinco da tripulação. Com a ajuda da lista de passageiros do comissário de bordo e do rol de tripulantes do imediato, ficamos com vinte pas­sageiros e dois tripulantes vivos, de um total de duzentos e dois.

Uns cento e oitenta mortos.

É o que calculo.

Como o navio é deles, o governo australiano está iniciando uma grande investigação. Há uma estação de pesquisa britânica a sudoeste, na baía Duse, não muito longe de sua posição. Eles têm um campo de pouso. Mandei o capitão Dempsey rumar para lá e desembarcar os sobreviventes. A Ruppert & Saunders, proprietária do navio, fretou um jato para levá-los a Sídnei.

E os cadáveres?

Serão acondicionados em gelo, na estação de pesquisa, e trans­portados à Austrália num avião militar. Assim que chegarem, os in­vestigadores farão um inquérito formal da tragédia e os patologistas se encarregarão das autópsias.

Quanto ao Polar Queen... — começou Pitt, e forneceu ao almirante os detalhes da descoberta da embarcação, bem como da iminência do desastre nas ondas furiosas junto às ilhas Perigo. — Que vamos fazer com ele?

A Ruppert & Saunders está mandando uma tripulação que o levará de volta a Adelaide. Uma equipe de investigadores do governo vai examiná-lo, das chaminés à quilha.

O senhor devia exigir um contrato aberto do seguro. A ANPS

pode receber uns vinte milhões por ter salvado o navio de um naufrágio certo.

Com ou sem direito, não vamos pedir um centavo pelo salva­mento. — Pitt notou o aveludado tom de satisfação na voz de Sandecker.

Vou receber o dobro disso em forma de apoio e cooperação do governo australiano em projetos de pesquisa em suas águas e nas ad­jacentes.

Não se podia acusar o almirante de senilidade.

Maquiavel teria aprendido muita coisa com o senhor — suspirou Pitt.

Talvez lhe interesse saber que diminuiu o número de mortes de animais em sua região. Os pescadores e os barcos de apoio logístico das estações de pesquisa não registraram mortes anormais de peixes nem mamíferos nas últimas quarenta e oito horas. O exterminador, seja lá o que for, parece ter mudado de lugar. Agora, estamos começando a ouvir falar em grandes quantidades de peixes e um número extraor­dinário de tartarugas sendo jogados nas praias das ilhas Fiji.

Esquisito. E como se a praga tivesse vida própria.

Não fica no mesmo lugar — disse Sandecker de mau humor. — A coisa é séria. Se os cientistas não conseguirem eliminar sistematica­mente as possíveis causas e localizar depressa o responsável, vamos presenciar uma perda de vida marinha que não será reposta no espaço de uma geração.

Pelo menos é um consolo saber que não se trata da repetição da explosiva reprodução da maré vermelha de poluição química do rio Niger.

Claro que não. Afinal, nós fechamos a fábrica perigosa de Máli - retrucou Sandecker. — Nossos monitores, ao longo do rio, não vol­taram a mostrar indícios do aminoácido sintético alterado nem do cobalto que estavam causando o problema.

Nossos gênios de laboratório têm alguma suspeita?

Não — respondeu o almirante. — Esperamos que os biólogos a bordo do Ice Hunter tenham descoberto alguma coisa.

Se descobriram, não me contaram.

Você tem algum palpite? — indagou Sandecker em tom cauteloso.

Alguma dica suculenta que eu possa jogar para as hordas de jor­nalistas postados em nosso saguão? Devem ser uns duzentos.

Um leve sorriso passou pelos lábios de Pitt. Havia entre eles um pacto tácito de jamais discutir assuntos importantes via satélite. As chamadas que atravessavam a atmosfera eram vulneráveis, podiam ser facilmente grampeadas. A mera menção da imprensa significava que Pitt devia esquivar-se da questão.

Estão babando por uma boa matéria, não?

A imprensa marrom já inventou um navio-fantasma a errar no triângulo da Antártida.

Está falando sério?

Se quiser, eu lhe mando por fax as reportagens.

Acho que eles vão ficar decepcionados com a minha hipótese.

Posso saber qual é?

Houve um silêncio.

Creio que pode ser um vírus desconhecido transportado pelas correntes de ar.

Um vírus — repetiu Sandecker automaticamente. — Não é muito original.

Sei que é meio ridículo — disse Pitt. — Tão lógico quanto ficar contando os buracos do teto acústico quando a gente está na cadeira do dentista.

Se ficou intrigado com as palavras absurdas de Pitt, o almirante não deixou transparecer. Limitou-se a suspirar, resignado, como de costume.

É melhor deixar as investigações para os cientistas. Acho que estão compreendendo a situação melhor do que você.

Desculpe, almirante, estou meio atordoado.

É, parece estar perdido na neblina. Assim que Dempsey mandar uma equipe a bordo, vá para o Ice Hunter e trate de dormir um pouco.

Obrigado por ser tão compreensivo.

E só uma questão de saber apreciar a situação. Conversaremos mais tarde.

O almirante Sandecker desligou.

Deirdre Dorsett saiu ao convés superior e acenou animadamente ao ver Maeve Fletcher debruçada na amurada do Ice Hunter. Subitamente livre do tormento de ser a única pessoa viva numa embarcação atulhada de cadáveres, começou a rir de pura alegria. Sua voz atravessou o pe­queno espaço entre os barcos:

Maeve!

Maeve percorreu com os olhos os conveses do navio de passageiros, em busca da voz de mulher que gritara seu nome. Finalmente avistou a figura que lhe acenava. Ficou uns trinta segundos fitando-a, confusa.

Então reconheceu Deirdre, e assumiu a expressão de uma pessoa que, encontrando-se num cemitério de madrugada, sente uma repentina pal­mada no ombro.

Deirdre? — gritou, incrédula.

É assim que se recebe uma pessoa próxima que retornou da morte?

Você... aqui... viva?

Oh, Maeve, não imagina como estou feliz por encontrá-la a salvo!

Também estou chocada — disse Maeve, recuperando lentamente o controle.

Você se machucou em terra? — perguntou Deirdre com preocu­pação.

Só um leve congelamento, nada mais. — Maeve apontou para os tripulantes do Ice Hunter, que desciam uma lancha. — Vou pegar uma carona e esperá-la na prancha de embarque.

Combinado.

Sorrindo, Deirdre voltou para a casa do leme, onde Pitt falava com Dempsey pelo rádio. Ele sorriu ao vê-la e desligou.

O capitão me contou que Maeve vem vindo para cá.

A moça fez que sim.

Ela ficou surpresa ao me ver.

Uma coincidência feliz — disse Pitt, notando pela primeira vez que Deirdre tinha quase a mesma altura que ele. — Duas amigas que são as únicas sobreviventes.

Deirdre deu de ombros.

Não somos o que você chama de amigas.

Ele fitou com curiosidade aqueles olhos castanhos que refletiam os raios do sol.

Vocês não se dão bem?

E uma questão de sangue ruim, senhor Pitt — disse ela calma­mente. — Sabe, apesar dos sobrenomes diferentes, Maeve Fletcher e eu somos irmãs.

 

O mar estava sereno quando o Ice Hunter, seguido do Polar Queen, se deixou engolfar pelos braços protetores da baía Duse e lançou âncora a pouca distância da estação britânica de pesquisa. Da ponte de co­mando, Dempsey instruiu a pequena tripulação do Queen para que o colocasse a uma distância conveniente, evitando assim que os dois bar­cos corressem perigo pelo efeito das marés.

Ainda acordado e mal se mantendo de pé, Pitt não obedecera à ordem que lhe dera Sandecker de dormir um bom período. Tinha muito que fazer depois de entregar o Polar Queen à equipe de Dempsey. Pri­meiro, colocou Deirdre na lancha com Maeve e as mandou ao Ice Hunter. Depois, passou boa parte da noite ensolarada revistando o navio em busca dos mortos que não vira em sua rápida vistoria anterior. Desligou o sistema de calefação, a fim de preservar os cadáveres para os exames posteriores, e, só quando o Polar Queen estava firmemente ancorado na calma baía, passou o comando e voltou para o barco de pesquisa da ANPS. Na casa do leme, Giordino e Dempsey esperavam para cumprimentá-lo e dar-lhe os parabéns. Notando quanto ele estava exausto, o italiano lhe serviu uma caneca de café. Pitt aceitou, agradecido, e, quando estava bebendo, notou uma pequena lancha motorizada que se acercava do navio.

Mal a âncora do Ice Hunter tocara o fundo, os representantes da Ruppert & Saunders embarcaram num Zodiac. Em poucos minutos estavam na ponte de comando onde Pitt, Dempsey e Giordino os aguar­davam. Um homem subiu de três em três os degraus e se colocou diante deles. Alto e corado, exibiu um largo sorriso.

— Capitão Dempsey? — perguntou.

Dempsey deu um passo à frente e lhe apertou a mão.

Sou eu.

Capitão lan Ryan, chefe de operações da Ruppert & Saunders.

Bem-vindo a bordo, capitão.

Ryan parecia apreensivo.

Meus oficiais e eu estamos aqui para assumir o comando do Polar Queen.

E todo seu, capitão — disse Dempsey tranqüilamente. — Se puder me fazer o favor, mande de volta a minha equipe em sua lancha quando estiver a bordo.

O alívio se estampou no rosto curtido de Ryan. Podia ter sido uma situação delicada. Legalmente, Dempsey adquirira direitos ao salvar a embarcação. O comando, que antes pertencia ao capitão morto e aos proprietários, transferira-se a ele.

Devo compreender que o senhor está renunciando o comando em favor da Ruppert & Saunders?

A ANPS não está no ramo de salvamento, capitão. Não temos nenhuma exigência em relação ao Polar Queen.

Os diretores da empresa me pediram que expressasse nosso pro­fundo agradecimento e lhe desse os parabéns pelo esforço de salvar nosso navio.

Dempsey se voltou para Pitt e Giordino, e os apresentou.

Foram estes senhores que encontraram os sobreviventes na ilha Seymour e evitaram que o barco colidisse com as ilhas Perigo.

Ryan lhes apertou vigorosamente a mão.

Um trabalho admirável, realmente admirável. Garanto-lhe que a Ruppert & Saunders saberá recompensá-los.

Pitt sacudiu a cabeça.

Recebemos instruções de nosso chefe, o almirante James Sandec­ker, para não aceitar recompensa ou remuneração.

Ryan ficou desconcertado.

Nada? Absolutamente nada?

Nem um centavo — respondeu Pitt, lutando para manter abertos os olhos cansados.

Muito decente de sua parte — murmurou Ryan. — Coisa inusitada nos anais do salvamento marinho. Tenho certeza de que os diretores da companhia de seguros brindarão a sua saúde todo ano, no aniversário da tragédia.

Dempsey apontou para o passadiço que levava a sua câmara.

Falando em brindar, capitão Ryan, posso lhe oferecer um drinque em minha cabine?

Ryan fez um gesto na direção de seus oficiais, agrupados atrás dele.

O convite se estende a meus tripulantes?

— Claro que sim — respondeu Dempsey com um sorriso receptivo.

O senhor salva o nosso navio, resgata nossos passageiros e ainda nos oferece um aperitivo! — disse Ryan com voz embargada. — Des­culpe dizê-lo, capitão, mas vocês ianques são mesmo esquisitos.

Nem tanto — interveio Pitt, com os olhos semicerrados de fadiga.

Somos apenas grandes oportunistas.

Foi com movimentos canhestros que Pitt tomou banho e fez a barba pela primeira vez desde que partira com Giordino em busca do Polar Queen. Faltou pouco para que caísse de joelhos e adormecesse sob a deliciosa água quente do chuveiro. Sem sequer enxugar o cabelo, en­rolou uma toalha na cintura e foi tropegamente para sua cama queen-size - nada de beliche estreito naquele navio —, deitou-se, puxou a coberta, repousou a cabeça no travesseiro e dormiu.

Não ouviu quando bateram à porta da cabine. Normalmente alerta ao mais leve ruído, não despertou quando bateram pela segunda vez. Tão longe estava do mundo exterior que sequer mudou o ritmo da respiração. E suas pálpebras continuaram imóveis quando Maeve abriu lentamente a porta, olhou hesitante para a pequena ante-sala e o chamou em voz baixa:

Senhor Pitt?

Ela teve vontade de desistir, mas a curiosidade foi mais forte. Com dois cálices de haste curta e uma garrafa de conhaque Rémy Martin XO cedida por Giordino, avançou cautelosamente. O pretexto daquela invasão era agradecer Pitt por lhe haver salvado a vida.

Sobressaltada, deparou com sua própria imagem no espelho da pa­rede, acima da escrivaninha. Estava corada como uma adolescente à espera do primeiro encontro com o primeiro namorado. Situação que raramente experimentara. Irritada consigo mesma, desviou a vista. Não podia acreditar que estivesse entrando nos aposentos de um homem sem ser convidada. Mal conhecia Pitt. Ele era pouco menos que um desconhecido. Maeve, porém, estava acostumada a tomar a iniciativa.

Seu pai, o rico proprietário de uma empresa internacional de mine­ração, as tinha criado, a ela e a suas irmãs, como se fossem garotos. Nada de bonecas, vestidos na moda ou bailes de debutantes. Sua falecida esposa lhe dera três filhas em vez de filhos que se encarregassem do império financeiro da família, de modo que ele simplesmente desprezou o destino e tratou de treiná-las como duronas. Quando estava com dezoito anos, Maeve era capaz de chutar uma bola de futebol como poucos rapazes de sua classe e, certa vez, fez uma viagem a pé pelo interior da Austrália, de Camberra a Perth, acompanhada unicamente de um cachorro, um dingo domesticado, proeza que seu pai recom­pensou tirando-a da faculdade e empregando-a nas minas da família, ao lado de rudes operários.

Ela se rebelou. Aquilo não era vida para uma mulher com outros desejos. Fugiu para Melbourne, matriculou-se na faculdade de zoologia. O pai não fez a menor tentativa de trazê-la de volta ao seio da família. Simplesmente deserdou-a e fingiu que ela nunca tinha existido ao saber que havia dado à luz um par de gêmeos, fruto de um romance de cerca de um ano e meio com um colega da universidade, filho de um criador de carneiros, de pele bronzeada, corpo sólido e sensíveis olhos claros. Riam, amavam-se e brigavam constantemente. Quando chegou a inevitável separação, ela não lhe contou que estava grávida.

Maeve colocou os copos e a garrafa na escrivaninha e ficou olhando para os objetos pessoais jogados ao acaso entre pilhas de papel e cartas náuticas. Vasculhou furtivamente uma carteira de couro cru recheada de cartões de crédito, de banco e de clube. Havia também dois cheques pessoais em branco e cento e vinte e três dólares em dinheiro. Esquisito, pensou ela, nenhuma fotografia. Recolocou a carteira na escrivaninha e examinou os outros objetos. Havia ainda um velho relógio Doxa de mergulho, com mostrador alaranjado e pulseira de aço inoxidável, e um molho com chaves de carro e de casa. Nada mais.

Pouco para lhe dar uma idéia de quem era Pitt, pensou. Outros homens tinham entrado e saído de sua vida, alguns a pedido dela, uns poucos por iniciativa própria. Mas todos lhe tinham deixado algo. Já Pitt parecia ser um solitário, que nada deixava ao partir.

Entrou no quarto. O espelho do banheiro contíguo ainda estava em­baçado pelo vapor, sinal de que seu ocupante se havia banhado pouco antes. Um leve cheiro de loção pós-barba lhe provocou um esquisito frio no estômago.

— Senhor Pitt — chamou novamente, ainda em voz baixa. — O senhor está aqui?

Foi quando viu o corpo estendido na cama, os braços ligeiramente cruzados sobre o peito, como que num caixão de defunto. Deixou es­capar um suspiro de alívio ao ver que as virilhas do marujo estavam cobertas com uma toalha de banho.

Desculpe — sussurrou. — Não queria incomodá-lo.

Pitt continuou dormindo.

Maeve o percorreu com os olhos da cabeça aos pés. Seu cabelo preto e encaracolado ainda estava molhado e desfeito. Tinha sobrancelhas grossas, que quase se encontravam acima do nariz reto. Ela imaginou que devia ter uns quarenta anos, embora as feições ásperas, a pele bronzeada e curtida e o contorno firme do queixo o fizessem aparentar mais. As pequenas rugas no canto dos olhos e a comissura dos lábios ligeiramente voltada para cima davam á impressão de que ele sorria perpetuamente. Era um rosto marcante, do tipo que atraía as mulheres. Parecia ser forte e decidido, um homem que conhecia o melhor e o pior da vida, mas nunca recuara ante o que quer que fosse.

O corpo era firme e macio, com exceção do tufo escuro de pêlos no peito. Tinha ombros largos, barriga plana e quadris estreitos. Os mús­culos dos braços e das pernas eram bem definidos. Magro e longilíneo, ele demonstrava uma certa tensão, que sugeria uma mola prestes a saltar. E havia também as cicatrizes. Maeve não conseguia imaginar onde as tinha obtido.

Pitt não parecia talhado na mesma madeira que os outros homens que ela conhecia. Na verdade, não tinha amado verdadeiramente ne­nhum, dormira com eles mais por curiosidade ou rebeldia do que por desejo apaixonado. Mesmo quando ficou grávida, recusou-se ao aborto a fim de provocar o pai, e teve os gêmeos.

Agora, olhando para o homem adormecido na cama, provava uma estranha sensação de prazer e poder por lhe estar observando de perto a nudez. Ergueu a borda da toalha, sorriu com malícia e a deixou cair novamente. Achava-o muito atraente e o desejava, febril e descarada­mente.

Gosta do que está vendo, maninha? — disse uma voz rouca e tranqüila a suas costas.

Vexada, Maeve deu meia-volta e deparou com Deirdre, que, encos­tada na soleira da porta, fumava despreocupadamente.

Que está fazendo aqui? — cochichou.

Tentando impedi-la de morder mais do que é capaz de mastigar.

Muito engraçado. — Num gesto maternal, Maeve cobriu o corpo de Pitt e prendeu o cobertor sob o colchão. Depois, voltando-se, em­purrou literalmente a irmã para a ante-sala e fechou a porta com cui­dado. — Por que está me seguindo? Por que não voltou à Austrália com os passageiros?

Gostaria de lhe fazer a mesma pergunta, maninha querida.

Os cientistas do navio me pediram que ficasse a bordo e fizesse um relatório sobre minha experiência com a praga.

E eu fiquei porque achei que podíamos trocar um beijo e fazer as pazes — disse Deirdre, dando uma tragada no cigarro.

Já se foi o tempo em que eu acreditava em você.

Reconheço que havia outras considerações.

Como conseguiu esconder-se de mim durante semanas, no mar?

Acredita se eu disser que estava em meu camarote, com enjôo?

Dificilmente — replicou Maeve. — Você tem a constituição de um cavalo. Nunca ficou doente.

Deirdre olhou a sua volta à procura de um cinzeiro. Como não en­contrasse nenhum, abriu a porta da cabine e jogou o cigarro no mar.

Não ficou admirada com o fato de eu ter sobrevivido milagro­samente?

Confusa e insegura, Maeve a fitou nos olhos.

Você disse a todos que estava no freezer.

Exatamente na hora certa, reparou?

Muita sorte a sua.

— Não foi sorte — contrapôs Deirdre. — E você? Já pensou na coincidência de estar na caverna de uma estação de pesca de baleia exatamente no momento em que aconteceu?

Que está querendo dizer?

Eu não compreendo, e você? — disse Deirdre, como que a censurar uma criança travessa. — Achou que papai ia perdoá-la e esquecer que, quando você partiu, bateu a porta do escritório e jurou nunca mais olhar para nenhum de nós? Ele quase enlouqueceu ao saber que você tinha mudado de nome legalmente, assumindo o de sua tetravó, Flet­cher. A partir daquele momento, ele a tem observado, desde que entrou na universidade até a ocasião em que passou a trabalhar para a Ruppert & Saunders.

Maeve a encarou com uma raiva e uma incredulidade que, no en­tanto, diminuíram quando alguma coisa começou a se sedimentar em sua mente.

Estava com medo que eu desse com a língua nos dentes sobre seus negócios sujos?

Quaisquer meios heterodoxos a que papai tenha recorrido para aumentar o império da família foi para o seu bem, do mesmo modo que para o de Boudicca e o meu.

Boudicca — disse Maeve com asco. — O diabo em pessoa.

Pense o que quiser de nossa irmã — retrucou Deirdre, impassível. — Ela sempre se preocupou com você.

Se acredita nisso, você é mais otária do que eu imaginava.

Foi Boudicca quem convenceu papai a lhe poupar a vida, insis­tindo para que eu participasse da viagem.

Poupar-me a vida? — Maeve ficou desorientada. — Que absurdo é esse?

Quem você acha que arranjou para que o capitão a mandasse à terra com a primeira excursão?

Você?

Eu.

Era a minha vez de ir à terra. Os guias se alternam.

Deirdre sacudiu a cabeça.

Se dependesse da programação, você seria encarregada do se­gundo grupo, que não desembarcou.

E daí?

Uma questão de timing — disse Deircire, tornando-se subitamente fria. — Os homens de papai calcularam que o fenômeno ocorreria quan­do o primeiro grupo de turistas se encontrasse em segurança no interior da caverna da estação de pesca.

Empalidecendo, Maeve sentiu faltar-lhe o chão.

Você não podia ter previsto um desastre tão terrível! — balbuciou.

Papai é muito inteligente — afirmou a outra calmamente, como se estivesse tagarelando com uma amiga ao telefone. — Se não fosse por seus planos antecipados, como acha que eu poderia saber quando devia esconder-me no freezer do navio?

Como ele pode ter sabido quando e onde a calamidade ocorreria?

Papai não é tolo — respondeu Deirdre com um sorriso maligno.

A raiva percorreu o corpo de Maeve.

Se ele suspeitasse de alguma coisa, teria avisado a tempo e evitado todas essas mortes.

Nosso pai tem coisas mais importantes a fazer do que se preocupar com um barco cheio de turistas inúteis.

Juro que farei o que puder para que vocês todos paguem pelo que fizeram.

Você trairia a família? — Deirdre deu de ombros com sarcasmo, e depois respondeu à própria pergunta. — Sim, acho que sim.

Pode apostar.

Mas não vai traí-la, a menos que não queira voltar a ver seus lindos filhinhos.

Papai jamais saberá onde estão Sean e Michael.

— Não foi muito inteligente esconder os gêmeos na casa daquele professor em Perth.

Você está jogando verde para colher maduro.

Sua irmã Boudicca não teve muito trabalho para convencer o professor e sua esposa, os Hollender, se não me engano, de que a dei­xassem levar os garotos a um piquenique.

Maeve estremeceu ante a terrível revelação.

Vocês estão com eles?

Com os meninos? Claro.

Se ela tiver tocado num fio de cabelo dos Hollender...

Que tolice.

Que fizeram com Sean e Michael?

Papai está cuidando bem deles em nossa ilha particular. Está até lhes ensinando o comércio de diamantes. Não se preocupe. A única coisa que pode acontecer é um acidente. Você bem sabe como é perigoso, para as crianças, correr e brincar perto das minas. Por outro lado, se ficar do lado da família, seus filhos um dia serão incrivelmente ricos e poderosos.

Como papai? — gritou Maeve, ofendida e apavorada. — Prefiro que morram!

Reprimindo o desejo de matar a irmã, ela se deixou cair pesadamente numa cadeira. Estava vencida.

Exultando face à impotência de Maeve, Deirdre prosseguiu:

Podia ser pior. Passe alguns dias com seus amigos da ANPS e trate de manter a boca fechada quanto ao que acabo de lhe contar. Depois, voltaremos para casa de avião. — Foi até a porta e se voltou. — Creio que vai achar papai mais generoso, desde que peça perdão e demonstre lealdade para com a família.

E, saindo ao convés, desapareceu.

 

DE ONDE VÊM OS SONHOS

O almirante Sandecker raramente usava a sala de reuniões. Reser­vava-a para visitas de parlamentares e cientistas famosos, americanos ou estrangeiros. Os assuntos internos da ANPS, preferia tratá-los num pequeno gabinete contíguo a seu escritório. Era um cômodo bastante confortável, exclusivamente dele, uma espécie de valhacouto onde cos­tumava ter reuniões confidenciais com o alto escalão da agência. Gos­tava também de usá-lo como sala de jantar. Ali, com seus diretores, relaxava nas macias cadeiras de couro ao redor de uma mesa de reuniões de três metros, construída com a madeira do casco de uma escuna retirada do fundo do lago Erie e solidamente assentada num grosso tapete azul-turquesa, diante de uma lareira com escarpa vitoriana.

A diferença do moderníssimo design dos outros escritórios do quar­tel-general da ANPS, todos com altas paredes de vidro fumê esverdeado, aquela sala parecia a de um antigo clube londrino. As quatro paredes e o teto eram revestidos de teca acetinada e ornamentados com pinturas de cenas navais americanas.

Havia belos e detalhados quadros representando a épica batalha entre John Paul Jones, no precariamente armado Bonhomme Richard, e o Serapis, a então moderna fragata britânica de cinqüenta canhões. A seu lado, a venerável fragata americana Constitution desmastreava a inglesa Java. Na parede oposta, o couraçado Monitor, da Guerra Civil, oferecia com­bate ao Virgínia, mais conhecido como Merrimac. O Comodoro Dewey destruindo a armada espanhola na baía de Manila, e uma esquadrilha de bombardeiros a decolar do porta-aviões Enterprise, para aniquilar a frota japonesa durante a Batalha de Midway, ficavam lado a lado. Só o quadro acima da lareira não representava uma batalha naval. Era um retrato de Sandecker fardado, pouco antes de ser promovido e jo­gado na praia. Mais abaixo, num estojo de vidro, via-se um modelo tio último navio que ele comandara, o cruzador de mísseis Tucson.

Quando o almirante passou para a reforma, um ex-presidente dos Estados Unidos designou-o para organizar e estabelecer uma recém-inaugurada agência governamental dedicada à pesquisa do mar. Tendo começado num armazém alugado, com uma equipe de menos de uma dúzia de pessoas, inclusive Pitt e Giordino, Sandecker transformou a ANPS numa gigantesca organização que, com dois mil funcionários e um vultoso orçamento raramente questionado e quase sempre aprovado pelo Congresso, provocava a inveja das instituições oceanográficas do mundo inteiro.

Sandecker combatia apaixonadamente a velhice. Agora, com pouco mais de sessenta anos, era um atleta amador que corria, levantava peso e se entregava a todo tipo de atividade que o fizesse suar ou lhe au­mentasse os batimentos cardíacos. Os resultados da árdua ginástica e da rigorosa dieta eram bem visíveis em sua robusta e bem-cuidada constituição física. Com pouco menos do que se considerava uma altura mediana, ele mantinha bem curto e repartido a navalha o ainda exu­berante cabelo ruivo. Em seu rosto tenso e alongado, destacavam-se penetrantes olhos castanhos e uma barba pontuda, exatamente da cor do cabelo. Seu único vício eram os charutos. Fumava dez por dia, dos grandes, especialmente selecionados e enrolados para o seu gosto pessoal.

Ele entrou na sala de reuniões em meio a uma nuvem de fumaça, como se fosse um mágico surgindo num palco coberto de neblina. Di­rigiu-se à cabeceira da mesa e endereçou um sorriso benevolente aos tlois homens sentados à esquerda e à direita.

— Lamento retê-los até agora, cavalheiros, mas eu não lhes pediria que fizessem horas extras se não fosse de suma importância.

Hiram Yaeger, o chefe da rede de computadores da ANPS e supe­rintendente do maior banco de dados de ciências marinhas do mundo, inclinou a cadeira para trás, apoiando-a em duas pernas, e dirigiu ao almirante um gesto afirmativo. Sempre que havia um problema a re­solver, Sandecker começava por ele. Imperturbável, com seu eterno avental e o rabo-de-cavalo, Yaeger morava com a esposa e as filhas num bairro elegante da capital e tinha um BMW fora de série.

Era uma questão de atender sua convocação ou levar minha mu­lher ao balé.

De qualquer modo você sairia perdendo — riu Rudi Gunn, o diretor executivo da ANPS e segundo no comando.

Se Dirk Pitt era o principal "apagador de incêndios" de Sandecker, Gunn passava por seu mago organizacional. Franzino, de ombros e quadris estreitos, brilhante e dono de um fantástico senso de humor, olhava, através das lentes grossas dos óculos de aro de chifre, com um par de olhos que lembravam os de uma coruja à espera de que um roedor passasse por baixo de sua árvore.

Sandecker se acomodou na cadeira de couro, deixou cair a cinza do charuto num cinzeiro de concha de molusco e estendeu na mesa uma carta náutica do mar de Weddell e da península Antártica. Bateu o dedo num círculo, em cujo interior via-se uma série de cruzes vermelhas numeradas.

Amigos, vocês estão a par da trágica situação do mar de Weddell, local de um dos últimos de uma série de extermínios. O número um corresponde ao lugar onde o Ice Hunter encontrou os golfinhos mortos. O dois situa as focas mortas na ilha Orkney do Sul. O três é a ilha Seymour, lugar da morte de homens, mulheres, pingüins e focas. E, número quatro, a posição aproximada do Polar Queen quando ocorreu a catástrofe.

Yaeger examinou o perímetro do círculo.

São uns noventa quilômetros de diâmetro.

Não está me cheirando bem — disse Gunn com uma ruga pro­funda a lhe vincar a testa. — E o dobro do tamanho da última região de extermínio, perto da ilha Chirikof e das Aleútas.

O saldo desse desastre: mais de três mil leões-marinhos e cinco pescadores — lamentou Sandecker.

Pegando um pequeno controle remoto, apontou-o para a parede oposta e apertou um botão. Uma enorme tela desceu lentamente do teto. Ele apertou outro botão, fazendo aparecer, em hologramas tridi­mensionais, um mapa do oceano Pacífico gerado por computador. Es­palhados em diferentes partes dele, surgiram vários globos que davam a impressão de ser de néon e de estar sendo projetados de fora da tela. Todos apresentavam animações de peixes e mamíferos. O globo sobre a ilha Seymour, em frente à península Antártica, assim como um outro, perto do Alasca, incluía figuras humanas.

Até há três dias — prosseguiu o almirante —, todas as regiões de extermínio de que tínhamos notícia ficavam no Pacífico. Agora, com o mar das imediações da ilha Seymour, contamos com mais uma no Atlântico Sul.

O que significa oito incidências da praga desconhecida em quatro meses — observou Gunn. — Parece que as ocorrências estão se inten­sificando.

Sandecker examinou o charuto.

E nenhuma delas permitiu-nos descobrir a origem da tragédia.

A frustração é toda minha — disse Yaeger com um gesto de impotência. — Experimentei cem diferentes projeções computadoriza­das. Nenhuma foi capaz de decifrar o enigma. Não se conhecem doenças ou contaminações químicas capazes de viajar milhares de quilômetros, irromper no azul do mar, matar tudo quanto vive numa determinada região e, então, desaparecer sem deixar vestígios.

Estou com trinta cientistas ocupados no problema — acrescentou Gunn —, e eles continuam tateando no escuro, sem achar a mais remota pista.

Que disseram os patologistas que examinaram os cinco pescadores encontrados mortos pela Guarda Costeira, na ilha Chirikof? — quis saber Sandecker.

Preliminarmente, a necropsia não detectou nenhum sinal de en­venenamento por inalação ou ingestão, nem de enfermidade conhecida pela medicina. Assim que tiver terminado seu relatório, o coronel Hunt, do Centro Médico Militar Walter Reed, vai telefonar para o senhor.

Porra! — explodiu Sandecker. — Alguma coisa os matou. O ca­pitão do navio morreu na casa do leme, agarrado ao timão, e a tripulação pereceu no convés quando estava puxando a rede. Ninguém cai morto sem causa, muito menos homens fortes de vinte ou trinta anos.

Yaeger concordou com um gesto de cabeça.

Talvez estejamos procurando no lugar errado. Só pode ser alguma coisa que ainda não levamos em consideração.

Sandecker ficou olhando distraidamente para o charuto, cuja fumaça subia ao teto em espirais. Raramente punha todas as cartas na mesa; preferia virá-las lentamente, uma a uma.

Conversei com Dirk há pouco.

Alguma novidade? — indagou Gunn.

Dos biólogos a bordo do Ice Hunter não, mas Dirk tem uma teoria, li um tanto inverossímil, ele mesmo reconhece, mas ninguém tinha pensado nisso.

- Gostaria muito de saber — disse Yaeger.

Ele está pensando numa espécie de poluição.

Gunn olhou com ceticismo para Sandecker.

Que tipo de poluição pode existir que não tenhamos cogitado?

Sandecker sorriu.

Barulho.

Barulho? — repetiu Gunn. — Como assim?

Ele acredita que podem existir ondas sonoras mortais, que viajam centenas, talvez milhares de quilômetros na água. Depois sobem à su­perfície e matam tudo quanto existe num determinado raio.

Sandecker ficou observando a reação de seus subordinados. Embora nada tivesse de cínico, Yaeger baixou a cabeça e riu.

Será que o velho Pitt não andou tomando uma tequila a mais?

Gunn, ao contrário, não mostrou a menor dúvida. Ficou alguns mo­mentos olhando fixamente para o mapa do oceano Pacífico antes de dizer:

Dirk pode estar na pista certa.

Yaeger ficou intrigado.

Você acha?

Acho — respondeu Gunn. — Pode ser que estejamos às voltas com ondas acústicas submarinas.

Alegra-me ouvir outra opinião — sorriu Sandecker. — Quando Dirk me veio com essa história, confesso que achei que ele estava de­lirando de cansaço. Depois, pensando melhor, passei a acreditar na possibilidade dessa teoria.

Que coisa! — exclamou Yaeger — Ele salvou o Polar Queen sozinho.

É verdade — concordou Gunn. — Al o "desovou" no navio, e ele conseguiu livrá-lo da destruição certa.

Voltemos aos pescadores mortos — interveio Sandecker, devol­vendo à reunião uma nota sombria. — Quando teremos de entregar os cadáveres às autoridades locais do Alasca?

— Assim que souberem que estão conosco — respondeu Gunn. — A tripulação da lancha da Guarda Costeira, que encontrou o barco à deriva no golfo do Alasca, decerto há de dar com a língua nos dentes quando desembarcar na base de Kodiak.

Mas o capitão não os mandou calar a boca?

Não estamos em guerra, almirante. A Guarda Costeira tem muito prestígio nas águas do norte. Não vão querer abafar a morte dos homens cuja vida eles têm a obrigação de proteger. Bastará uns aperitivos no Yukon Saloon para que comecem a espalhar a notícia a quem quiser ouvir.

Sandecker suspirou.

É, você tem razão. O comandante MacIntyre não gostou nada da idéia de fazer segredo. Foi preciso que recebesse ordem expressa do secretário da Defesa para que se calasse e entregasse os cadáveres aos cientistas da ANPS.

Yaeger endereçou a Sandecker um olhar significativo.

Quem será que conseguiu falar com o secretário da Defesa?

O almirante sorriu com malícia.

Quando eu lhe expliquei a gravidade da situação, ele demonstrou boa vontade.

Vai ser um deus-nos-acuda — profetizou Yaeger — quando o sindicato local e as famílias das vítimas descobrirem que os corpos foram encontrados e autopsiados uma semana antes de que eles fossem notificados.

E Gunn acrescentou:

Principalmente quando souberem que mandamos os cadáveres a Washington para a necropsia.

Fomos obrigados a nos adiantar à imprensa, para que não se espalhassem histórias malucas sobre a morte misteriosa de toda a tri­pulação de um pesqueiro, mais o papagaio. Nem era preciso que ocor­resse outro fenômeno letal e inexplicável para que soubéssemos que estávamos tateando no escuro.

Gunn deu de ombros.

Mas agora o bicho está solto. Não há como ocultar o desastre do Polar Queen. Amanhã será a principal reportagem dos jornais e dos noticiários da televisão. No mundo inteiro.

Sandecker fez que sim, voltando-se para Yaeger.

Hiram, quero que você vasculhe a biblioteca e extraia quantos ciados houver sobre a acústica submarina. Procure todas as experiências comerciais ou militares que envolvam ondas sonoras de alta potência na água, suas causas e seus efeitos nos seres humanos e nos mamíferos aquáticos.

Vou começar já.

Gunn e Yaeger se levantaram e saíram. Sandecker permaneceu afun­ilado na cadeira, a soltar baforadas. Seu olhar viajava de batalha naval a batalha naval, demorando-se em cada quadro antes de passar para o seguinte. Depois, ele fechou os olhos e apertou muito as pálpebras, tratando de organizar as idéias.

Era a incerteza do dilema que lhe nublava a mente. Depois de algum tempo, abriu os olhos e ficou olhando para a carta do oceano Pacífico.

Onde essa coisa atacará outra vez? — disse em voz alta. — Quem vai morrer agora?

O coronel Leigh Hunt estava em seu gabinete no subsolo — não gostava dos escritórios mais formais dos andares superiores do Walter Reed — contemplando uma garrafa de Cutty Sark. Lá fora, a escuridão já se espalhara no distrito de Colúmbia, a iluminação pública estava acesa e o tráfego do final da tarde começava a diminuir. A autópsia dos cinco pescadores retirados das frias águas do noroeste tinha ter­minado, e ele estava prestes a voltar paia casa e para seu gato. Restava decidir se tomaria um drinque ou daria um último telefonema antes de sair. Resolveu fazer as duas coisas.

Digitou os números ao mesmo tempo em que, com a outra mão, se servia de uísque numa xícara de café. O telefone tocou duas vezes, e uma voz gutural atendeu:

Coronel Hunt, tomara que seja você.

Sou eu — respondeu Hunt. — Como sabia?

Imaginava que fosse me telefonar agora.

E sempre um prazer conversar com a Marinha — disse o coronel com afabilidade.

Que tem para me contar?

Antes de mais nada, você tem certeza de que esses cadáveres foram encontrados num pesqueiro em alto-mar?

Foram.

E também os dois golfinhos e as quatro focas que mandou para cá?

De onde você queria que eu os tirasse?

Eu nunca tinha feito a necropsia de animais aquáticos.

Tanto os seres humanos quanto os golfinhos e as focas são ma­míferos.

Meu caro almirante, você está com um caso intrigante nas mãos.

De que morreram?

Hunt fez uma pausa para, de um trago, esvaziar meia xícara.

Clinicamente, a morte foi causada pela ruptura da cadeia ossicular do ouvido médio, constituída pelo martelo, a bigorna e o estribo, como você deve se lembrar das aulas de fisiologia no ginásio. A placa da base do músculo estapédio também se rompeu. Isso provoca vertigem e um terrível zumbido, um verdadeiro rugido no ouvido, que culmina numa ruptura da artéria cerebelar inferior anterior e em hemorragia; o sangue penetra nas fossas anterior e média da base do crânio.

Pode traduzir para a linguagem das pessoas normais?

Você conhece o termo "infartação"? — perguntou Hunt.

Para mim, é gíria.

- Trata-se de uma área de células necrosadas, em órgãos ou tecidos, resultante de uma oclusão como, por exemplo, a de uma bolha de ar que obstrui a circulação do sangue.

Onde ocorreu isso? — quis saber Sandecker.

Havia dilatação do cerebelo, com a conseqüente compressão da base do cérebro. Encontrei a mesma coisa no labirinto vestibular...

No quê?

No vestíbulo. E uma cavidade situada no labirinto ósseo de cada ouvido interno.

Sei.

O labirinto vestibular parece ter sido afetado por um violento deslocamento. Coisa semelhante ao que ocorre a grandes profundida­des. A compressão hidráulica do ar perfura o tímpano quando a água força o canal externo.

Como chegou a essa conclusão?

Usei imagens de ressonância magnética e tomografia computa­dorizada, uma técnica de diagnóstico que se serve de fotografias em raios X, as quais eliminam as sombras das estruturas à frente e atrás do setor a ser examinado. A avaliação incluiu também estudos hema- tológicos e serológicos, além de punctura lombar.

Quais foram os sintomas no começo do distúrbio?

Não posso falar dos golfinhos nem das focas — explicou Hunt. — Mas os padrões entre os seres humanos eram consistentes. Vertigem súbita e intensa, perda dramática do equilíbrio, vômito, extrema e paroxística dor craniana e uma repentina convulsão, que deve ter durado menos de cinco minutos. O resultado foi perda da consciência e morte. Algo comparável a um impacto de proporções monstruosas.

Você é capaz de me dizer o que causou esse trauma?

Hunt hesitou.

Não com um mínimo de precisão.

Sandecker não se deu por vencido.

Chute um palpite.

Já que você está me colocando na parede, eu arriscaria dizer que os pescadores, os golfinhos e as focas morreram devido a uma exposição extrema a som de altíssima intensidade.

 

22 de janeiro de 2000

Proximidades da ilha Howland, Pacífico Sul

Para a tripulação alinhada na amurada do Mentawai, um cargueiro indonésio que zarpara de Honolulu rumo ao porto de Jayapura, na Nova Guiné, foi surpreendente avistar em pleno oceano aquela estranha embarcação. No entanto, o junco chinês de estilo Ningpo singrava tran­qüilamente as vagas de mais de um metro de altura que vinham quebrar em sua proa. Tinha aspecto imponente; o sol dourado do amanhecer intensificava as cores vivas das velas infladas pela brisa de sudoeste e punha muito brilho em sua madeira envernizada. Na proa, estavam pintados os dois olhos enormes que, segundo a crença tradicional, po­diam ver através de nevoeiros e tormentas.

O Tz'u-hsi, batizado com o nome da última imperatriz viúva chinesa, era a segunda residência do ator Garret Converse, que, mesmo sem ter sido laureado com o Oscar, era um grande herói dos filmes de ação. O junco tinha vinte e quatro metros de comprimento, com boca de seis, e era inteiramente feito de cedro e teca. Converse havia instalado aco­modações confortáveis para a tripulação e sofisticadíssima tecnologia de navegação. Não poupara despesas. Poucos iates eram tão luxuosos. Mestre da aventura, nos moldes de Errol Flynn, partira de Newport Beach, numa viagem ao redor do mundo e, agora, estava percorrendo o trecho final do Pacífico, a cinqüenta quilômetros da ilha Howland, a caminho da qual Amélia Earhart desaparecera em 1937.

Quando os dois barcos cruzaram-se, em cursos opostos, o ator de Hollywood entrou em contado por rádio com o cargueiro.

Saudações do Tz'u-hsi. Quem são vocês?

O radioperador do navio respondeu:

O cargueiro Mentawai, de Honolulu. Qual é o seu destino?

A ilha do Natal e, depois, a Califórnia.

Boa viagem.

A vocês também — respondeu Converse.

Da popa, o capitão do Mentawai ficou observando o Tz'u-hsi afas­tar-se.

Nunca imaginei que fosse ver um junco em alto-mar no Pacífico — comentou.

O imediato, que era descendente de chineses, sacudiu a cabeça em sinal de desaprovação.

Eu fiz parte da tripulação de um junco quando jovem. Eles estão correndo um grave perigo nesta região de tufões. Esses barcos não são construídos para as águas agitadas do alto-mar. Navegam na superfície e tendem a virar. As ondas encapeladas podem lhe quebrar o leme com facilidade.

Ou são muito corajosos ou muito loucos para desafiar assim a fatalidade — disse o capitão, dando as costas para o junco, que sumia na distância. — Eu me sinto bem melhor num casco de aço e ouvindo o barulho dos motores no porão.

Dezoito minutos após o encontro do Mentawai com a exótica em­barcação, o cargueiro de contêineres americano Rio Grande, que levava tratores e equipamento agrícola a Sídnei, na Austrália, recebeu um pe­dido de socorro. A sala do rádio ficava em frente ao espaçoso convés de navegação; o operador só precisou se voltar para falar com o segundo oficial, que estava cobrindo o turno da manhã.

Senhor, acabo de receber um SOS do cargueiro indonésio Men­tawai.

O oficial pegou imediatamente o telefone, digitou um número e ficou aguardando que atendessem.

Capitão, acabamos de receber um pedido de socorro.

O capitão Jason Kelsey ia dar a primeira garfada em seus ovos com bacon.

Está bem, senhor Hudson. Já subo. Tente determinar a posição deles.

Devorou rapidamente a primeira refeição do dia, engoliu meia xícara de café e foi correndo para a sala do rádio.

O operador olhou para ele com ar intrigado.

Um sinal esquisito, capitão — disse, entregando-lhe um bloco de anotações.

Tem certeza de que foi isto que transmitiram?

Sim, senhor. A mensagem era clara.

Kelsey a leu em voz alta:

"A todos os navios, venham depressa. Cargueiro Mentawai qua­renta quilômetros sudoeste da ilha Howland. Depressa. Todos morren­do." — Ergueu os olhos. — Só isso? Nenhuma coordenada?

O operador sacudiu a cabeça.

Perdi o contato e não consegui restabelecê-lo.

Então não podemos usar o sistema de localização por rádio. — Kelsey se voltou para o segundo oficial. — Senhor Hudson, estabeleça o curso do Mentawai a partir da última posição registrada a sudoeste da ilha Howland. Não se pode fazer muita coisa sem as coordenadas exatas. Mas, se não conseguirmos contato visual, teremos de confiar no radar para localizá-los.

Podia tê-lo mandado procurar os dados no computador de navega­ção, mas preferia os métodos antigos.

O oficial se pôs a trabalhar à mesa de cartas, com as réguas paralelas e outros instrumentos; o capitão avisou ao engenheiro-chefe de que queria velocidade máxima.

O primeiro oficial, Hank Sherman, apareceu no convés. Vinha bo- cejando e abotoando a camisa.

Estamos atendendo a um pedido de socorro? — perguntou a Kelsey.

Com um sorriso, o capitão lhe mostrou o bloco de notas.

As notícias se espalham depressa neste barco.

Hudson anunciou:

Calculo a distância do Mentawai em aproximadamente sessenta e cinco quilômetros, a cento e trinta e dois graus.

Kelsey se aproximou do painel de navegação e digitou as coorde­nadas. Quase imediatamente, o Rio Grande iniciou uma lenta curva a estibordo, obedecendo ao sistema eletrônico computadorizado, que o colocou no novo curso.

Algum outro navio respondendo? — perguntou ao operador de rádio.

Não. Somos os únicos que tentaram responder, senhor.

Kelsey olhou para o convés.

Talvez consigamos alcançá-lo em menos de duas horas.

Sherman continuava lendo e relendo, assombrado, a mensagem.

Sc não for uma brincadeira, é bem possível que só encontremos cadáveres.

Deram com o Mentawai pouco depois das oito da manhã. Ao contrário do Polar Queen, que continuou com os motores ligados, o cargueiro indonésio parecia ir à deriva. Saía fumaça de suas finas chaminés, mas não se via ninguém no convés. Os insistentes chamados do Rio Grande, pelo megafone, não obtiveram resposta.

Parece um túmulo — disse Sherman com ar sombrio.

Santo Deus! — murmurou Kelsey. — Está cercado de um mar de peixes mortos!

Não estou gostando disso.

É melhor reunir uma equipe de abordagem e ir verificar — or­denou o capitão.

Sim, senhor. Agora mesmo.

O segundo oficial Hudson estava escrutando o horizonte com o bi­nóculo.

Há outro barco a uns dez quilômetros da proa, a bombordo.

Vem vindo? — quis saber Kelsey.

Não, senhor. Dá a impressão de estar se afastando.

Esquisito. Por que não faria caso de um navio em perigo? Pode descrevê-lo?

Parece um iate de luxo, grande, com linhas caprichosas. O design é Mônaco ou Hong Kong.

Kelsey foi até a porta da sala do rádio e disse:

Veja se consegue contatar aquele barco ao longe.

Dois minutos depois, o operador sacudiu a cabeça.

Nenhum sinal. Ou desligaram ou não querem responder.

O Rio Grande diminuiu a velocidade e, nas ondas mansas, foi se aproximando devagar do cargueiro. Chegaram bem perto. Da ponte de comando, o capitão Kelsey podia ver perfeitamente o convés. Dis­tinguiu duas formas imóveis e o que parecia ser um cachorrinho. Tentou falar com a casa do leme novamente, mas só o silêncio respondeu.

A lancha com a equipe de Sherman desceu à água e foi para lá. Poucos minutos depois de içar uma escada, o primeiro oficial estava a bordo, debruçado sobre os cadáveres. Logo entrou por uma escotilha e desapareceu.

Quatro marinheiros o acompanhavam; os dois que ficaram na lancha afastaram-se um pouco do casco, à espera de um sinal para ir buscá-los. Mesmo depois de se certificar de que os homens estendidos no convés estavam mortos, Sherman não perdeu a esperança de encontrar vivos alguns membros da tripulação. Ao entrar, seguiu por um corredor até a coberta e ficou assombrado. Todos tinham morrido, do capitão ao ajudante de cozinha. Os corpos espalhados estavam exatamente no lugar onde tombaram. O operador de rádio foi encontrado com os olhos sal­tados e as mãos crispadas no equipamento, como que com medo de cair.

Passaram vinte minutos antes de Sherman colocar o morto no chão e comunicar-se com o Rio Grande.

Capitão Kelsey!

Diga, senhor Sherman. O que encontrou?

-— Todos mortos, senhor, todos, inclusive dois periquitos na cabine do engenheiro-chefe e um cachorro, um beagle com os dentes à mostra.

Alguma idéia da causa?

O mais provável é que tenha sido intoxicação alimentar. Acho que todos vomitaram antes de morrer.

Tenha cuidado. Pode ser gás venenoso.

Vou ficar de narinas abertas.

Kelsey se calou um momento, avaliando a inesperada situação. De­pois disse:

Mande a lancha de volta. Vou designar mais cinco homens para ajudá-lo a pôr o barco em movimento. O porto mais próximo é o de Apia, nas ilhas Samoa. Entregaremos o navio às autoridades.

E os cadáveres? Não podemos deixá-los jogados onde estão, prin­cipalmente neste calor tropical.

O capitão respondeu sem hesitar:

Coloque-os no freezer. Precisamos conservá-los para que sejam examinados pelos...

Foi abruptamente interrompido por uma explosão nas entranhas do Mentawai, que lhe sacudiu o casco. As escolilhas superiores foram lan­çadas para o alto ao mesmo tempo em que subiam chamas e fumaça. O próprio cargueiro deu a impressão de saltar acima da superfície, para logo cair com estrondo e inclinar-se a estibordo. O telhado da casa do leme desabou. Uma nova trepidação em seu interior foi acom­panhada de um barulho estridente de metal partido.

Kelsey viu horrorizado o Mentawai tombar a estibordo.

Está naufragando! — gritou pelo rádio. — Saiam daí antes que afunde!

Sherman estava caído no convés, atordoado com o choque da ex­plosão. Olhou a sua volta quando o chão começou a se inclinar. Ar­rastando-se até o canto do compartimento do rádio, ficou ali sentado, zonzo, enquanto a água irrompia pela porta aberta da ponte. Era uma imagem irreal, que não tinha sentido em sua mente confusa. Respirou fundo — e foi a última vez — tentando debilmente colocar-se de pé, mas era tarde demais. Foi logo encoberto pela água verde e quente do mar.

Paralisados, Kelsey e a tripulação do Rio Grande viram o Mentawai virar, mostrando o casco fora da água como uma gigantesca e enfer­rujada tartaruga de metal. Com exceção dos dois homens na lancha, que foram esmagados pelo cargueiro, toda a equipe de abordagem es­tava lá dentro quando ocorreu a explosão. Nenhum deles teve tempo de saltar a amurada e mergulhar. Com um tremendo rugido de água a entrar e ar sendo expelido, o navio desapareceu, como que ansioso por se tornar mais um enigma indeslindável do mar.

Ninguém a bordo do Rio Grande era capaz de imaginar que o car­gueiro pudesse naufragar tão depressa. Olharam todos com pavor para os escombros misturados com tufos de fumaça a espiralar sobre a aquá­tica cripta, incapazes de acreditar que os colegas estavam aprisionados num féretro de aço, descendo à eterna escuridão do fundo do oceano.

Kelsey passou um minuto ali parado, a dor e a indignação estam­padas no rosto. Um pensamento lhe emergiu lentamente em meio ao choque. E desviando o olhar daquele remoinho da morte, pegou o bi­nóculo e, pelas janelas dianteiras, olhou para o iate que sumia na dis­tância, agora um mero ponto entre o azul do céu e o azul do mar, afastando-se em grande velocidade. E se deu conta de que a misteriosa embarcação não fechara simplesmente os olhos ao pedido de socorro. Estava fugindo intencionalmente do desastre.

— Malditos — rosnou, com ódio. — Sejam quem for, vocês são uns malditos!

Trinta e um dias depois, Ramini Tantoa, natural da ilha de Cooper, no atol de Palmira, despertou e, fiel a sua rotina matinal, foi nadar na lagoa Leste. Saindo de sua pequena cabana de solteiro, não tinha dado dois passos na areia quando viu com espanto um enorme junco chinês, que lograra passar pelo canal entre os recifes durante a noite e, agora, eslava encalhado na praia.

Tantoa gritou, mas ninguém apareceu no convés nem respondeu. A embarcação parecia deserta. Todas as velas estavam içadas e tremula­vam à leve brisa, e a bandeira na popa era a dos Estados Unidos. A teca envernizada do costado ainda brilhava; não devia ter passado muito tempo ao sol. Andando ao redor do casco semi-enterrado, Tantoa teve a impressão de que os olhos pintados na proa o seguiam. Por fim, reuniu coragem para subir pelo gigantesco leme e saltar ao tombadilho. O convés principal estava vazio de ponta a ponta. Tudo parecia em ordem, as cordas enroladas no lugar, o cordame bem preso e esticado.

Tantoa desceu pela escotilha e avançou com cautela no interior do junco, temendo achar cadáveres. Por sorte, não encontrou sinais de morte ou desordem. Não havia uma alma a bordo.

Nenhuma embarcação podia ter vindo da China sem tripulação, atra­vessando metade do oceano Pacífico, pensou o rapaz. Dando rédeas à imaginação, temeu fantasmas. Um barco tripulado por almas do outro mundo. Assustado, subiu a escada correndo e, chegando ao convés, saltou a amurada e foi cair na areia quente. Precisava comunicar a descoberta à administração da pequena aldeia da ilha de Cooper. Só quando se encontrava a uma boa distância, atreveu-se a olhar por cima do ombro para ver se algum espectro medonho o estava seguindo.

A praia permanecia deserta. Somente os grandes olhos, na proa, continuavam grudados nele, malévolos. Tantoa apertou o passo na di­reção do povoado e não tornou a olhar para trás.

 

A atmosfera da sala de jantar do Ice Hunter estava impregnada de uma alegria contida. Era a festa de despedida que a tripulação e os cientistas estavam oferecendo aos sobreviventes da tragédia do Polar Queen. Fazia três dias que Roy Van Fleet e Maeve vinham trabalhando noite e dia no exame dos restos dos pingüins, focas e golfinhos colhidos para o estudo, e enchendo cadernos e cadernos de observações. Embora gostasse muito dela, Van Fleet procurava evitar demonstrações de afeto; a lembrança de sua linda esposa e dos três filhos raramente o abando­nava. Era uma pena que já não pudessem continuar trabalhando juntos. Os outros cientistas os consideravam uma dupla formidável.

O chef do Ice Hunter caprichou num jantar incrível: filé de bacalhau de águas profundas com cogumelos au vin. O capitão Dempsey preferia olhar para o outro lado quando serviam vinho. Os oficiais encarregados das operações do navio tinham de passá-lo a seco, pelo menos até que terminasse o plantão e chegasse a sua vez de festejar.

Eternamente bem-humorado, o dr. Mose Greenberg perpetrou um longo discurso salpicado de trocadilhos banais sobre todos a bordo. E só não se estendeu por mais uma hora porque Dempsey fez um sinal para que o chef trouxesse o bolo especialmente preparado para a ocasião. Tinha a forma da Austrália, com uma cobertura que assinalava os pontos mais notáveis do continente, tais como Ayers Rock e o porto de Sídnei. Comovidas lágrimas umedeceram os olhos de Maeve. Deirdre, ao con­trário, mostrava-se enfadada com tudo.

Na qualidade de capitão, Dempsey sentou-se à cabeceira da mesa mais comprida, e as mulheres se acomodaram a ambos os lados. Como chefe do setor de projetos especiais da ANPS, Pitt teve o privilégio de ocupar a extremidade oposta. Distraindo-se da conversa animada ao redor, pôs-se a observar as duas irmãs. Eram tão diferentes, pensou, que não pareciam ter sido geradas no mesmo ventre. Maeve era uma criatura afetuosa e espontânea, uma chama a arder de vida. Ele a ima­ginava de short e camiseta, a lavar um carro, exibindo alegremente a cintura fina e as pernas esculturais. E quanto mudara desde o primeiro encontro que tiveram! Falava e gesticulava com vivacidade e despre­tensiosa exuberância. Contudo, havia nela alguma coisa de forçado, como se seu pensamento andasse viajando, como se estivesse misterio­samente estressada.

Seu vestido de noite, muito curto, dava a impressão de haver sido costurado no corpo. Pitt chegou a pensar que ela o tomara emprestado de uma das cientistas a bordo, de menor talhe, mas logo se lembrou de tê-la visto na companhia de Deirdre, voltando do Polar Queen na lancha do Ice Hunter, a bagagem empilhada na proa. Estava com brincos de coral amarelo, que combinavam com o colar. Houve um momento em que ela se voltou em meio à conversa, e seu olhar encontrou o de Pitt, mas só por um instante. Estava descrevendo o dingo de estimação que tinha na Austrália e logo tornou a olhar para os interlocutores, como se não o tivesse reconhecido.

Deirdre, por sua vez, exalava sensualidade e sofisticação, caracterís­ticas que não escapavam a nenhum dos homens presentes. Era fácil imaginá-la estendida numa cama forrada com lençóis de seda. A única incongruência eram seus modos autoritários. Mostrara-se amedrontada e vulnerável quando ele a encontrara no Polar Queen, mas também se havia transformado, numa mulher fria e distante, numa mulher dura. Trajando um vestido marrom que lhe chegava discretamente aos joelhos, tinha a postura emproada e soberba. O lenço no pescoço lhe realçava os olhos castanhos e os cabelos arruivados, presos num severo coque. Como que adivinhando que Pitt a observava, voltou-se lentamente e o fitou sem expressão; depois, seu olhar se tornou glacial e calculador.

Pitt se viu envolvido num jogo de vontades. Ela não piscava, embora continuasse conversando com Dempsey. Seus olhos pareciam trespas­sá-lo e, nada encontrando de interessante, seguir através dele até o quadro na parede. Eram uns olhos castanhos, de tons esverdeados, que não vacilavam. Aquela mulher, evidentemente, não se deixava abalar pelos homens, pensou Pitt. E devagar, muito devagar, começou a desviar a vista. O encanto se quebrou, Deirdre perdeu a concentração e, er­guendo o queixo num gesto de desdém, dispensou-o como a um pa­lhaço, voltando a atenção para a conversa à mesa.

Embora sentisse desejo por ela, Pitt se sentia atraído por Maeve. Talvez fosse seu sorriso franco, com os dentes ligeiramente separados, ou a opulência dos cabelos incrivelmente loiros, que lhe caíam em cas­cata sobre os ombros. Ele pensou em sua mudança de atitude depois daquele primeiro encontro sob o granizo da ilha Seymour. O sorriso constante e o riso fácil já não estavam presentes. Era como se estivesse sujeita ao sutil controle de Deirdre. Também era óbvio para ele, se não para os demais, que não havia sombra de afeto entre as duas irmãs.

Pitt refletiu sobre a ancestral escolha enfrentada pelos sexos. As mu­lheres ficavam freqüentemente divididas entre o bom moço, o rapaz certinho, que acabava se tornando o pai dos filhos dela, e o desmandado cafajeste, que representava o romance extravagante e a aventura. Os homens, por sua vez, eram ocasionalmente forçados a escolher entre a moça direita do bairro, que em geral acabava se tornando a mãe dos filhos dele, e a selvagem máquina sexual que não lhes dava sossego ao corpo.

Mas Pitt não teria de fazer a difícil escolha. Na noite seguinte, o navio fundearia no porto chileno de Punta Arenas, na Terra do Fogo, onde Maeve e Deirdre embarcariam de avião a Santiago. De lá, segui­riam diretamente para a Austrália. Era perda de tempo dar rédeas à imaginação. Tolice ter esperança de tocar em alguma delas.

Por baixo da mesa, apalpou o fax que levava dobrado no bolso da calça. Dominado pela curiosidade, tinha se comunicado com Julien Perlmutter, um amigo da família, cuja biblioteca acumulava o maior nú­mero de informações do mundo em matéria de naufrágios. Conhecido gourmand, famoso por suas grandes festas, Perlmutter tinha excelentes contatos nos círculos de Washington e sabia onde estavam escondidos quase todos os esqueletos. Pitt lhe telefonara pedindo a ficha corrida da família das moças. Menos de uma hora depois, Perlmutter lhe man­dou por fax um breve relatório, prometendo informações mais precisas dois dias depois. Não eram mulheres comuns. Se os solteiros e mesmo alguns casados soubessem que Arthur Dorsett, o pai de Maeve e Deirdre, era o sexto homem mais rico do mundo, dono de um império de dia­mantes unicamente superado pelo de De Beers, decerto teriam caído de joelhos para lhes pedir a mão.

A parte do relatório que lhe pareceu mais esquisita foi uma repro­dução do logotipo das empresas de Dorsett. Em vez do óbvio diamante sobre um fundo qualquer, havia uma serpente a ondular na água.

O oficial de plantão se aproximou e lhe disse em voz baixa:

O almirante Sandecker quer falar com o senhor ao telefone.

Obrigado, vou atender em meu camarote.

Pitt empurrou, discretamente a cadeira, levantou-se e saiu da sala sem ser notado por ninguém, com exceção de Giordino.

Respirando fundo, tirou os sapatos e se deixou cair em sua poltrona de couro.

Almirante, aqui é Dirk.

Que demora! Quase tive tempo para escrever o discurso que vou fazer perante a comissão de orçamento do Congresso.

Desculpe, senhor, é que eu estava numa festa.

Houve uma pausa.

Uma festa num navio da ANPS, que devia dedicar-se exclusiva­mente à pesquisa científica?

É a despedida das moças que resgatamos do Polar Queen.

Acho bom não abusarem. — Embora aberto e receptivo, Sandecker não admitia em sua frota nada que não se relacionasse à pesquisa cien­tífica.

Pitt adorava provocá-lo.

Está falando de abuso sexual, senhor?

O que for! Cuide para que a tripulação se mantenha na linha. Não quero saber de escândalos.

Posso saber o motivo deste telefonema, almirante?

Sandecker nunca usava o telefone simplesmente para bater papo.

Preciso de você e de Giordino aqui, em Washington, o mais de­pressa possível. Quando pode voar do Ice Hunter a Punta Arenas?

Estamos próximos agora — respondeu Pitt. — Podemos decolar dentro de uma hora.

Há um jato militar a sua espera no aeroporto.

Sandecker não dormia no ponto, pensou Pitt.

Então estaremos aí amanhã à tarde.

Temos muito a conversar.

Novidades?

Acharam um cargueiro indonésio perto da ilha Howland. A tri­pulação estava morta.

Os cadáveres apresentavam os mesmos sintomas que os do Polar Queen?

Nunca saberemos. O navio explodiu e afundou com a equipe de abordagem que estava investigando, matando-a também.

Esquisito.

E, para aumentar o mistério — prosseguiu o almirante —, um junco chinês transformado em iate de luxo, de propriedade do ator Garret Converse, desapareceu na mesma região.

Os fãs não vão gostar de saber que ele morreu devido a causas desconhecidas.

Sua morte terá mais cobertura na mídia do que todos os mortos do navio de passageiros.

Que efeito teve minha teoria das ondas sonoras?

Yaeger já está pesquisando nos computadores. Com um pouco de sorte, terá colhido um bocado de dados quando você e Al chegarem. Mas posso adiantar que ele e Rudi Gunn acham que você está na pista certa.

Até breve, almirante — disse Pitt, e desligou. Passou um bom tempo imóvel, olhando para o telefone, pedindo a Deus que estivessem mesmo na pista certa.

Os pratos tinham sido recolhidos, e a festa na sala de jantar tornara-se ruidosa com as gargalhadas. Todos competiam, tentando contar as mais engraçadas histórias sobre cachorros. Como no caso de Pitt, ninguém tinha notado que Giordino saíra. O capitão Dempsey se ajustou ao humor da noite, contando uma piada antiqüíssima sobre um rico fa­zendeiro que manda à universidade o filho vagabundo e o obriga a levar o cachorro da família. O rapaz usa o vira-lata para tomar dinheiro do pai, dizendo que precisa de mil dólares, pois seus professores ga­rantem que conseguem ensinar o animal a ler, escrever e falar. Quando ele chegou ao fim, todos riram — menos pela graça da anedota do que pelo alívio de que tivesse terminado.

O telefone tocou, e o primeiro oficial atendeu. Sem dizer uma palavra, fez um gesto para Dempsey. O capitão se aproximou e pegou o fone. Ouviu um momento, desligou e saiu pelo corredor que levava ao convés da popa.

Não se lembra de mais nenhuma piada? — gritou-lhe Van Fleet.

Preciso acompanhar a decolagem do helicóptero.

Qual é a missão?

Nenhuma. Pitt e Giordino receberam ordens urgentes de voltar a Washington. Do almirante. Vão para o continente, onde os espera um avião militar.

Ouvindo-os, Maeve agarrou o braço do capitão.

Quando vão partir?

Surpreso, ele se voltou.

Vão decolar agora.

Deirdre se aproximou da irmã.

Parece que o seu galã não faz questão de se despedir.

Maeve sentiu o coração partido. Tomada de angústia, saiu precipi­tadamente ao convés. O helicóptero de Pitt já estava a três metros de altura quando ela chegou correndo, a tempo de ver os dois homens pelas enormes janelas do aparelho. Giordino olhou para baixo, viu-a e acenou. Com ambas as mãos ocupadas, Pitt só pôde responder com um sorriso e um movimento da cabeça. Esperava vê-la sorrir e acenar também, mas sua expressão era de medo. Levando as mãos à boca, ela gritou alguma coisa, porém o ruído das turbinas e das hélices lhe en­cobriu as palavras. Ele só pôde responder com a cabeça e um dar de ombros. Maeve tornou a gritar, desta vez com as mãos caídas, como se quisesse que seu pensamento lhe penetrasse a mente. Tarde demais. O helicóptero subiu verticalmente e se afastou sobre o flanco do navio. Ela caiu de joelhos no convés, o rosto nas mãos, soluçando, enquanto o helicóptero azul-turquesa se afastava por cima do infinito movimento das ondas.

Giordino olhou para trás e chegou a vê-la encolhida; e a Dempsey, que se aproximou para acudi-la.

Essa eu não entendi — disse com curiosidade.

O quê?

Maeve... parecia uma viúva grega no enterro do marido.

Concentrado no controle do aparelho, Pitt não tinha visto a inespe­rada atitude da moça.

Talvez ela não goste de despedidas — arriscou, sentindo uma onda de remorso.

Estava tentando nos dizer alguma coisa — murmurou vagamente o italiano, tratando de esquecer a cena.

Pitt não olhou para trás. Estava arrependido por não se haver des­pedido. Tinha sido grosseiro ao negar a Maeve a cortesia de um abraço e algumas palavras. Sentira-se verdadeiramente atraído. Aquela moça despertara emoções que havia anos ele não provava, desde que perdera um ente muito querido no mar, ao norte do Havaí. Chamava-se Summer, e Pitt não tinha passado um único dia sem recordar seu lindo rosto e seu perfume.

Ele não tinha como saber se a atração era mútua. Havia uma infi­nidade de expressões nos olhos de Maeve, mas nenhuma indicava de­sejo. Tampouco suas palavras o conduziram a acreditar que fossem mais do que duas pessoas que se haviam conhecido rapidamente antes de seguir, cada uma, o seu caminho.

Tentou manter-se distante, convencer-se de que aquela relação não podia ter futuro. Viviam em lados opostos do mundo. Era melhor deixar que ela se apagasse numa agradável lembrança do que podia haver acontecido se a lua e as estrelas tivessem sido mais favoráveis.

Esquisito — disse Giordino, olhando para o mar inquieto e para as ilhas ao norte do cabo Horn, que cresciam lentamente no horizonte.

Esquisito?

O que Maeve gritou quando estávamos levantando vôo.

Como você pode ter ouvido com o barulho do helicóptero?

Eu não ouvi. Foi só o modo como ela formou as palavras na boca.

Pitt riu.

Desde quando você sabe ler os lábios?

Não estou brincando, meu chapa — disse o italiano com ar muito sério. — Sei qual a mensagem que ela estava tentando nos transmitir.

Após tantos anos de convivência e amizade, Pitt sabia que Giordino, quando se tornava profundo, estava pisando o perigoso terreno das essências. Não se podia entrar e sair impunemente de seu círculo. Pre­feriu ficar do lado de fora e observar.

Desembuche. Que disse ela?

Lentamente, Giordino se voltou e pôs no amigo uns olhos ao mesmo tempo pensativos e sombrios.

Sou capaz de jurar que ela estava pedindo socorro.

 

O Buccaneer bimotor a jato pousou suavemente e taxiou até chegar a um canto tranqüilo da Base Aérea Andrews, a sudeste de Washington. Equipado com todas as comodidades dignas dos oficiais de alta patente da Força Aérea, era quase tão rápido quanto os modernos aviões de combate.

Enquanto o comissário de bordo, com farda de sargento da Aero­náutica, levava a bagagem a um carro com motorista que os esperava, Pitt se admirou da influência do almirante Sandecker na capital nor­te-americana. Que general ele teria convencido a emprestar um avião à ANPS? A que meios de persuasão teria recorrido?

Durante a viagem, enquanto Giordino cochilava, Pitt ficou olhando os edifícios baixos da cidade. O tráfego do final da tarde era intenso, as ruas e pontes que levavam aos subúrbios estavam congestionadas. Por sorte, o automóvel ia no sentido contrário.

Ele praguejou contra a tolice que cometera de não retornar ao Ice Hunter pouco antes de partir. Se Giordino tinha interpretado correta­mente a mensagem, Maeve se achava em dificuldade. A idéia de havê-la abandonado quando precisava dele pesava-lhe na consciência.

O longo braço de Sandecker se estendeu até sua melancolia, cobrindo-lhe a preocupação com um manto de culpa. Em todos os anos de trabalho na ANPS, Pitt nunca havia colocado os problemas pessoais acima do trabalho da agência. Durante o vôo a Punta Arenas, Giordino dera o toque final:

— Tesão tem hora, meu chapa, e a hora não é esta. Estão morrendo pessoas e animais às pencas lá no mar. Quanto mais cedo detivermos essa praga, mais cidadãos serão poupados para pagar impostos. Deixe essa mulher de lado por enquanto. Uma vez resolvido o problema, você pode tirar um ano de férias e ir até o inferno atrás dela.

Giordino jamais seria contratado para dar aulas de retórica em Ox­ford, mas certamente era capaz de escrever um compêndio de bom senso. Pitt cedeu e, sem muito sucesso, procurou tirar Maeve da cabeça. A lembrança permaneceu como um retrato que se tornava mais encan­tador com o passar do tempo.

Seus pensamentos foram interrompidos quando o carro chegou ao edifício alto e envidraçado do quartel-general da ANPS. O estaciona­mento dos visitantes estava lotado de caminhões e peruas da televisão.

Vamos para a garagem subterrânea — anunciou o motorista. — Os abutres estão esperando a chegada de vocês.

Tem certeza de que não é um esquartejador que está rondando o prédio? — perguntou Giordino.

Não. A recepção é mesmo para vocês. Os jornalistas estão loucos por detalhes do massacre no navio de passageiros. Os australianos até que tentaram abafar a coisa, mas, ao chegar ao Chile, os sobreviventes puseram a boca no mundo. Contaram que vocês dois não só os salvaram como impediram que o barco se chocasse contra as rochas. E o fato de duas filhas do rei do diamante estarem entre os passageiros excitou ainda mais a imprensa.

— Quer dizer que agora estão chamando a coisa de massacre — suspirou Pitt.

Pelo menos desta vez, os índios não poderão se queixar. Não foi contra eles — disse Giordino.

O automóvel parou diante de um pequeno saguão muito vigiado, que levava a um elevador particular. Depois de assinar um formulário de entrada, eles subiram ao décimo andar. Quando as portas se abriram, entraram num amplo salão, o feudo eletrônico de onde Hiram Yaeger dirigia a vasta rede de sistemas de dados da ANPS.

Sentado a uma enorme escrivaninha em forma de ferradura, no centro da sala, Yaeger ergueu os olhos e sorriu. Em vez do indefectível guarda-pó, estava com um desbotadíssimo blusão jeans. Levantando-se, apertou calorosamente a mão de Pitt e a de Giordino.

Que bom que os dois vigaristas voltaram. Isto aqui ficou pior do que um parque de diversões abandonado depois que vocês foram para a Antártida.

É sempre uma delícia voltar a pisar num chão que não balança sob os nossos pés.

Yaeger riu para Giordino.

Você está mais horroroso do que quando partiu.

É que ainda estou meio congelado — replicou o italiano, em seu costumeiro tom burlesco.

Pitt olhou para a sala cheia de aparelhos eletrônicos e técnicos em atividade.

O almirante Rudi Gunn já chegou?

Está esperando na sala de reuniões particular — respondeu Yae­ger. — Achamos que vocês fossem primeiro para lá.

Queríamos falar com você antes.

Por quê?

Gostaríamos da dar uma olhadela em seus dados sobre serpentes marinhas.

Yaeger ergueu uma sobrancelha.

Serpentes marinhas?

Pitt fez que sim.

Elas me intrigam. Não sei dizer por quê.

Pois saiba que material sobre serpentes e monstros é o que não falta aqui.

Não estou me referindo aos monstros lendários dos lagos. O que me interessa são as variedades marinhas.

Yaeger deu de ombros.

Como a maior parte das ocorrências são justamente as dos lagos, a pesquisa fica reduzida em oitenta por cento. Mando-lhe tudo o que encontrar amanhã cedo, certo?

— Obrigado, Hiram. Fico muito agradecido.

Giordino consultou o relógio.

É melhor subir antes que o almirante mande nos enforcar.

Yaeger apontou para uma porta.

Vamos pela escada.

Quando Pitt e os outros entraram na sala de reuniões, Sandecker e Gunn estavam estudando, na carta holográfica, a região onde ocorrera o último caso de mortes inexplicáveis. Ambos foram cumprimentá-los. Passaram alguns minutos agrupados, discutindo os acontecimentos. An­sioso, Gunn pediu detalhes a Pitt e ao italiano, porém os dois estavam exaustos e trataram de condensar ao máximo a terrível série de inci­dentes. Sandecker sabia que era tolice pressioná-los. Podiam apresentar relatórios completos mais tarde. Apontou para as cadeiras vazias.

Sentem-se. Vamos trabalhar.

Gunn apontou para um dos globos azuis que pareciam flutuar numa extremidade da mesa.

A última zona de mortes — disse. — Um cargueiro indonésio chamado Mentawai, dezoito tripulantes.

Pitt se voltou para ele.

A embarcação que explodiu quando uma equipe de outro navio estava a bordo?

Exatamente. Como lhe contei, a tripulação de um petroleiro, que ficou ileso, viu o luxuoso junco do ator Garret Converse navegando na região. O junco e todos a bordo desapareceram.

Nada no satélite?

Há muitas nuvens, e as câmeras infravermelhas não são capazes de detectar uma embarcação tão pequena.

Mais uma coisa a considerar — disse Gunn. — O capitão do cargueiro americano que encontrou o Mentawai avistou um iate de luxo afastando-se rapidamente do local. Embora não possa jurá-lo diante de um tribunal, diz ter certeza de que o iate havia se aproximado do Men­tawai quando eles chegaram para socorrê-lo. E acredita que a tripulação do iate é pelo menos parcialmente responsável pelos explosivos que aniquilaram sua equipe de abordagem.

Esse capitão parece ter muita imaginação — observou Yaeger.

O capitão Jason Kelsey é um homem experiente, com uma sólida história. Um marujo íntegro e responsável.

Ele descreveu o iate?

Quando Kelsey concentrou a atenção nele, o iate estava muito longe para ser identificado. Contudo, seu segundo oficial o havia ob­servado antes, com o binóculo. Por sorte é um artista amador, gosta de desenhar navios.

E desenhou o barco?

O rapaz reconhece que se permitiu algumas licenças. O iate estava se afastando, e só deu para ver o quarto de popa. Mesmo assim, con­seguiu nos dar uma idéia bastante aproximada do design.

Sandecker acendeu um charuto e fitou Giordino.

Al, por que você não assume a chefia dessa investigação?

O italiano tirou do bolso um charuto exatamente igual e rolou-o devagar entre o polegar e o indicador enquanto aquecia uma das ex­tremidades com um fósforo de madeira.

- Assim que eu tiver tomado banho e trocado de roupa.

Como Giordino conseguia roubar-lhe o estoque particular de cha­rutos era um mistério que intrigava Sandecker. O jogo de gato e rato já durava anos; embora incapaz de desvendar o segredo, o almirante era orgulhoso demais para cobrar uma explicação do italiano. O sur­preendente era que, por mais que contasse e recontasse, ele nunca dava falta dos charutos.

Pitt, que estava tomando notas num bloco de papel, falou com Yaeger, sem erguer a vista:

Diga uma coisa, Hiram. Minha idéia das ondas sonoras assassinas vale alguma coisa?

Parece que sim, e muito. Os especialistas em acústica ainda estão elaborando uma teoria detalhada, mas tudo indica que estamos atrás de um assassino que viaja na água e consiste em diversos elementos. I lá muitos aspectos a examinar. O primeiro é uma fonte geradora de intensa energia. O segundo, a propagação, isto é, como a energia viaja pelo mar. Terceiro, o alvo ou a estrutura que recebe a energia acústica. E quarto, o efeito fisiológico nos tecidos humanos e animais.

Está falando em ondas acústicas de alta intensidade que matam?

Yaeger sacudiu os ombros.

Estamos pisando terreno movediço, mas é a melhor pista que temos até agora. O único problema é que ondas sonoras intensas o suficiente para matar não podem sair de uma fonte acústica normal. E mesmo uma fonte intensa não poderia matar a uma grande distância, a menos que o som fosse dirigido.

É difícil acreditar que, depois de percorrer enormes distâncias na água, uma combinação de sons de alta intensidade, com excessiva ener­gia de ressonância, possa emergir e matar todos os seres vivos num raio de trinta quilômetros ou mais.

Alguma idéia da origem desses raios sonoros? — quis saber San­decker.

Sim, uma idéia nós temos.

E uma fonte de sons pode realmente provocar tantas mortes?

Não, e esse é o X do problema. Para provocar mortes em tal magnitude, na terra e no mar, temos de procurar várias fontes diferentes em lados opostos do oceano. —Yaeger folheou seus papéis até encontrar o que queria; a seguir, pegou um controle remoto e digitou uma série de códigos. Quatro luzes verdes se acenderam em cantos opostos da carta holográfica. — Com o auxílio do sistema de monitorização global de hidrofones que a Marinha colocou nos oceanos, para localizar sub­marinos soviéticos durante a Guerra Fria, conseguimos seguir as fontes de ondas sonoras destrutivas em quatro pontos diferentes do oceano Pacífico. — Interrompeu-se para passar a cada um dos presentes cópias impressas da carta. — Número um, de longe a mais forte, parece emanar da ilha Gladiator, o cume exposto de uma profunda cadeia de monta­nhas vulcânicas oceânicas, que fica entre a Tasmânia e a ilha do Sul, na Nova Zelândia. Número dois, fica em linha quase reta na direção das ilhas Komandorskie, diante da península Kamchatka, no mar de Bering.

É bem mais ao norte — observou Sandecker.

Não consigo imaginar o que os russos têm a ganhar com isso — murmurou Gunn.

Depois, a leste, do outro lado do oceano, vem, em terceiro lugar, a ilha Kunghit, em frente à Colúmbia Britânica, no Canadá — prosseguiu Yaeger. — A última fonte rastreada pelos hidrofones fica na ilha de Páscoa.

Forma um trapézio — comentou Gunn.

Giordino endireitou o corpo.

Forma o quê?

Um trapézio, um quadrilátero sem lados paralelos.

Pitt se levantou e se aproximou da carta tridimensional do oceano.

Estranho que todas as ondas sonoras tenham ilhas como pontos de partida. — Voltou-se para Yaeger. — Tem certeza desses dados? Não há erros? As informações do sistema de hidrofones foram proces­sadas corretamente pelos aparelhos eletrônicos?

Yaeger olhou para ele como se tivesse sido agredido.

Nossas análises estatísticas levam em conta as recepções da rede acústica e os cursos alternativos devidos às variações oceânicas.

Pitt fez uma reverência, como a pedir desculpas. Depois perguntou:

As ilhas são habitadas?

Yaeger lhe entregou uma pequena pasta.

Examinamos a enciclopédia normal de dados sobre as ilhas. Geo­logia, fauna, habitantes. A Gladiator é de propriedade particular. As outras três são concessões de governos estrangeiros para a exploração de minérios. Devem ser consideradas zonas proibidas.

Como o som pode se propagar a distâncias tão grandes sob a água? — indagou Giordino.

As ondas de alta freqüência são rapidamente absorvidas pelos sais da água do mar. Porém, as de baixa freqüência passam pela es­trutura molecular dos sais, e seus sinais já foram detectados a milhares de quilômetros de distância. A parte seguinte do cenário é bem mais nebulosa. De um modo que ainda não conseguimos compreender, os raios de alta intensidade e baixa freqüência, que irradiam de vários pontos, dirigem-se ao que é conhecido como "zona de convergência", li um fenômeno que os cientistas denominam "cáustica".

Como a soda cáustica? — perguntou Giordino.

Não, como um invólucro formado quando os raios acústicos se encontram e convergem.

Sandecker ergueu contra a luz os óculos de leitura, verificando se havia manchas nas lentes.

E se estivéssemos no convés de um navio que se encontrasse no centro de uma zona de convergência?

Se atingidos por uma única fonte sonora — explicou Yaeger —, ouviríamos um leve zumbido e talvez ficássemos com um pouco de dor de cabeça. Mas, se as quatro ondas convergissem na mesma região, ao mesmo tempo, com intensidade multiplicada, a estrutura do navio chegaria a vibrar, e a energia sonora causaria, em nossos órgãos internos, danos suficientemente graves para que morrêssemos em questão de minutos.

A julgar pelos lugares tão diferentes dos desastres — disse Gior­dino —, essa coisa pode andar a esmo e atingir qualquer parte do mar.

Ou do litoral — acrescentou Pitt.

Estamos tentando prever onde convergem as trajetórias dos raios - continuou Yaeger —, mas é difícil elaborar uma fórmula. Por en­quanto, o máximo que podemos fazer é mapear as marés, as correntes, as profundidades do mar e a temperatura da água. Tudo isso pode alterar significativamente a trajetória dos raios acústicos.

Já que temos uma vaga noção do objeto com que estamos lidando — concluiu Sandecker —, podemos estabelecer um plano de interven­ção.

Resta saber o que essas ilhas têm em comum além das empresas de mineração — disse Pitt.

Giordino examinou o charuto.

Testes clandestinos de armas nucleares ou convencionais?

Nada disso — respondeu Yaeger.

Então o quê? — perguntou Sandecker.

Diamantes.

O almirante olhou intrigado para ele.

Diamantes?

Sim, senhor. — Yaeger estudou suas fichas. — Nas quatro ilhas, as atividades são dirigidas pela Dorsett Consolidated Mining Limited, de Sídnei, Austrália, o maior produtor de diamantes do mundo, supe­rado apenas pela De Beers.

Pitt sentiu como que um soco no estômago.

Acontece que Arthur Dorsett— disse em voz baixa —, o presidente da Dorsett Consolidated Mining, é o pai das duas mulheres que Al e eu salvamos na Antártida.

Claro! — disse Gunn, dando-se conta disso subitamente. — Deir­dre Dorsett! Mas... E a outra moça, Maeve Fletcher?

É irmã de Deirdre. Resolveu adotar o nome de uma antepassada.

Só Giordino achou graça.

Eu gostaria muito de saber o que dirá um dos maiores negociantes de diamantes do mundo ao saber que suas escavações por pouco não matam suas queridas filhinhas.

Se as atividades de Dorsett forem as responsáveis pela praga acústica mortífera — disse Gunn —, Dirk e Al são as pessoas mais indicadas para procurá-lo e interrogá-lo. O homem tem todos os motivos para se comportar como um pai agradecido.

Pelo que sei, Arthur Dorsett vive mais recluso do que uma monja — informou Sandecker. — Como a De Beers, as propriedades de Dorsett são muito bem guardadas contra roubo e contrabando. Ele nunca foi visto em público e jamais concedeu uma entrevista. É praticamente inacessível. Duvido muito que o fato de haverem salvado suas filhas seja capaz de abrir uma brecha. O homem é inflexível.

Yaeger se aproximou dos globos azuis na carta holográfica.

Há muita gente morrendo. Decerto ele ouvirá a voz da razão se suas atividades forem de algum modo responsáveis.

Arthur Dorsett é um cidadão estrangeiro com enorme poder — Sandecker falou lentamente. — Somos obrigados a considerá-lo inocente de tudo até prova em contrário. Por enquanto, temos de considerar a calamidade mero produto da natureza. E precisamos agir pelos canais oficiais. Este é o meu território. Vou dar o chute inicial junto ao De­partamento de Estado e ao embaixador australiano. Eles podem iniciar um diálogo com Arthur Dorsett e solicitar sua colaboração com a in­vestigação.

Mas isso vai demorar semanas — contrapôs Yaeger.

Por que não ganhar tempo? — perguntou Giordino. — Podemos ir verificar se sua tecnologia de mineração tem algo a ver com as mortes em massa.

— Você poderia bater à porta da mina de diamante mais próxima e pedir para dar uma olhadela nas atividades de escavação — sugeriu Pitt com sarcasmo.

— Se Dorsett é esse paranóico que você acaba de descrever — disse o italiano a Sandecker —, é melhor não brincar com ele.

É verdade — concordou Yaeger. — Para deter as mortes o mais depressa possível, não podemos esperar os trâmites diplomáticos. Te­remos de atuar clandestinamente.

Não é fácil espionar minas de diamante. São extremamente vi­giadas contra ladrões e intrusos. Seu esquema de segurança é rigoro­síssimo. Vamos precisar de profissionais muito bem treinados para pas­sar pelos sofisticados sistemas eletrônicos.

Um comando das Forças Especiais? — propôs Yaeger.

Sandecker sacudiu a cabeça.

Só com autorização do presidente.

E o presidente? — quis saber Giordino.

É cedo para procurá-lo — respondeu o almirante. — Só quando pudermos apresentar provas indiscutíveis de uma genuína ameaça à segurança nacional.

Pitt falou pausadamente, contemplando a carta:

A mina da ilha Kunghit parece ser a mais conveniente das quatro, já que fica na Colúmbia Britânica, praticamente ali na esquina. Não vejo por que não fazer uma pequena exploração por conta própria.

Sandecker o encarou.

Você não espera que os nossos vizinhos do norte se disponham a fechar os olhos para uma invasão dessa, não é?

Por que não? Levando em conta que a ANPS localizou uma lu­crativa jazida de petróleo para eles há alguns anos, imagino que possam muito bem autorizar-nos a fazer uma viagem de canoa, nas proximi­dades de Kunghit, para fotografar a paisagem.

Você acha?

Pitt olhou para o almirante, cheio de expectativa.

Posso ter exagerado um pouco, mas é o que eu acho.

Pensativo, Sandecker deu uma baforada no charuto.

Está bem — suspirou enfim. — Pode ir. Mas lembre-se, se for capturado pela segurança de Dorsett, nem pense em ligar para cá. Nin­guém vai atender o telefone.

 

Um Rolls-Royce parou silenciosamente diante de um hangar que ficava num campo coberto de mato, no extremo perímetro do Aeroporto Internacional de Washington. Qual elegante velhota em visita de cari­dade no lugar errado, o majestoso e antigo automóvel parecia deslocado naquela estrada de terra deserta e à noite. A única luz, proporcionada pela fraca e amarelada lâmpada de um poste, mal refletia na pintura prateada e verde-metálica do carro, um modelo conhecido como Silver Dawn. O chassi saíra da fábrica em 1955, a carroceria era obra dos famosos fabricantes Hoopers & Company. Os pára-lamas dianteiros se estendiam até a traseira, desaparecendo graciosamente no corpo do veículo. O motor especial levava-o pelas estradas com o tranqüilo tiquetaquear de um relógio elétrico. A velocidade, no caso dos Rolls- Royce, jamais era mencionada. Quando indagada sobre a potência do motor, a fábrica se limitava a afirmar que era a adequada.

O motorista de Julien Perlmutter, um sujeito taciturno que atendia pelo nome de Hugo Mulholand, puxou o freio de mão, desligou o motor e se voltou para o patrão, que ocupava quase todo o banco traseiro.

— Não gosto de trazê-lo aqui — disse com sua voz grave e cavernosa, que combinava perfeitamente com seus olhos de cão fila. Olhou para o telhado ondulado, enferrujado, e para as paredes que havia quarenta anos não recebiam uma gota de tinta. —- Não entendo como alguém pode querer morar num pardieiro imundo como esse.

Perlmutter pesava compactos cento e oitenta e um quilos; estranha­mente, porém, seu corpo nada tinha de flácido. Era notavelmente sólido para um homem tão gordo. Ele ergueu a empunhadura de ouro da bengala oca, que também servia de garrafa de conhaque, e bateu na mesinha de nogueira que se articulava com o respaldo do banco dian­teiro

Acontece que esse pardieiro imundo, como você diz, abriga uma coleção de carros e aviões antigos que vale milhões de dólares. As chances de ser assaltado são remotas. Os ladrões não costumam perambular nos aeroportos na calada da noite, e o sistema de segurança rivaliza com o dos maiores bancos. — Apontou com a bengala para uma minúscula luz vermelha apenas visível. — Enquanto conversamos, estamos sendo monitorados por uma câmera de vídeo.

Mulholand suspirou, contornou o automóvel e foi abrir a porta para o patrão.

Devo esperar?

Não, vou jantar aqui. Faça o que quiser durante algumas horas. Venha me buscar às onze e meia.

Mulholand ajudou-o a descer e o acompanhou até a entrada do han­gar. Coberta de poeira, a desbotada porta era uma camuflagem perfeita: quem passasse casualmente por ali imaginaria que se tratava apenas de um prédio abandonado à espera da demolição. Perlmutter bateu com a bengala. Segundos depois, ouviu-se um clique, e, como que pu­xada pela mão de um fantasma, a porta se abriu.

Bom apetite — disse Mulholand, entregando ao patrão um em­brulho cilíndrico e uma pasta de documentos. E retornou ao Rolls-Royce.

Perlmutter penetrou num outro mundo, no qual não se achava o menor vestígio de pó, sujeira ou teias de aranha, um mundo bem ilu­minado, refinadamente decorado, com uma imaculada atmosfera de pintura e cromo. Ali havia quase quatro dúzias de automóveis clássicos, dois aviões e um vagão de trem da virada do século, tudo a luzir seu restaurado esplendor num piso de concreto polido. A porta se fechou silenciosamente quando ele se aproximou da incrível exposição de má­quinas exóticas.

Pitt se encontrava na varanda de um apartamento, a qual atravessava uma extremidade do hangar uns dez metros acima do chão de concreto. Apontando para o embrulho cilíndrico debaixo do braço de Perlmutter, disse com um sorriso:

Presente de grego, hein?

Com uma careta, o gordo olhou para cima.

Eu não sou grego, e isto aqui é uma garrafa de champanhe francês Dom Pérignon — resmungou, erguendo o embrulho —, safra de 1983, para comemorar sua volta à civilização. Duvido que haja coisa melhor em sua adega.

Pitt riu.

Está bem, vamos compará-lo com o meu vinho espumante Gruet seco, sem safra, de Albuquerque, Novo México.

Você só pode estar brincando. Albuquerque? Gruet?

Bateram os melhores vinhos espumantes da Califórnia num con­curso.

Esta conversa sobre vinhos já está fazendo o meu estômago roncar. Mande o elevador. — Pitt mandou para baixo um ascensor de carga de ferro batido. Perlmutter entrou imediatamente. — Será que esta coisa agüenta o meu peso?

Eu o instalei para trazer os móveis para cima. Mas vai ser um emocionante teste de capacidade.

Que idéia reconfortante!

O elevador o levou facilmente ao apartamento. Os dois se cumpri­mentaram como os velhos amigos que eram.

Estava com saudades de você, Julien.

Gosto muito de jantar com o meu décimo filho — disse o outro, num recorrente gracejo. Era um velho e inveterado solteirão, ao passo que Pitt era o filho único do senador George Pitt, da Califórnia.

Você tem outros nove como eu?

Perlmutter deu uma palmada no volumoso ventre.

Você não imagina quantas donzelas sucumbiram aos meus deli­cados encantos e à minha língua de mel antes que esta pança se inter­pusesse no caminho. — Calou-se e farejou o ar. — É de arenque o cheiro que estou sentido?

Pitt fez que sim.

Hoje você vai provar a cozinha típica alemã. Carne em conserva com arenque defumado e chucrute, precedidos de sopa de lentilha com molho de fígado de porco.

Eu devia ter trazido cerveja de Munique em vez de champanhe.

Ora, viva a transgressão. Para que observar as regras?

Tem toda razão — disse o gordo. — Deve estar ótimo. Você ainda vai fazer uma mulher feliz com esse talento culinário.

Duvido que a arte culinária seja capaz de compensar os meus defeitos.

Falando em mulher, tem notícias da deputada Smith?

Loren voltou ao Colorado, está em campanha eleitoral. Faz quase dois meses que não a vejo.

Chega de conversa fiada. Vamos abrir o champanhe e trabalhar.

Pitt providenciou um balde de gelo. Tomaram o Dom Pérignon antes da entrada principal e terminaram a refeição com o Gruet seco à so­bremesa. Perlmutter ficou impressionado com o vinho espumante do Novo México.

E bonzinho, bem seco e encorpado — disse com maliciosa ironia. — Onde posso comprar uma caixa?

Se é apenas "bonzinho", para que comprar uma caixa? — riu-se Pitt. — Você é um velho charlatão.

O outro deu de ombros.

A você eu nunca consegui enganar.

Assim que Pitt tirou a mesa, Perlmutter foi para a sala de estar, abriu a pasta, colocou um grosso maço de papéis na mesa de centro e ficou examinando as folhas, a conferir suas anotações.

Pitt se instalou num sofá de couro junto a uma estante com uma pequena frota de modelos de navios, réplicas das embarcações que ele linha descoberto em vários anos.

E então, que levantou sobre a famosa família Dorsett?

Fique sabendo que isto aqui não passa de um arranhão na su­perfície — disse Perlmutter, segurando um grosso volume de mais de mil páginas. — Pelo que pesquisei, a história dos Dorsett é como a de uma dinastia de romance épico.

E o atual chefe da família, Arthur Dorsett?

Extremamente fechado. Raramente aparece em público. Obstina­do, preconceituoso e sem escrúpulos. Universalmente detestado pelos que tiveram o mais remoto contato com ele.

Mas podre de rico.

Podre — respondeu Perlmutter com a expressão de quem acabava de engolir uma aranha. — A Dorsett Consolidated Mining Limited e a Casa Dorsett, de comércio a varejo, são de inteira propriedade da família. Os diretores, os acionistas, os sócios. Também controlam uma empresa irmã chamada Pacific Gladiator, que concentra a mineração de gemas coloridas.

Como ele começou?

A história remonta a cento e quarenta e quatro anos. — Perlmutter levantou o cálice, e Pitt o encheu. — Começa com uma aventura no mar, que foi registrada pelo capitão de um clíper e publicada postumamente por sua filha. Numa viagem, em janeiro de 1856, em que estava transportando presidiários, inclusive mulheres, à colônia penal australiana de Botany Bay, a pouca distância da atual cidade de Sídnei, seu barco foi colhido por um violento tufão no mar da Tasmânia. O navio se chamava Gladiator e era comandado por um dos mais famosos capitães de clíperes da época, Charles "Durão" Scaggs.

Homens de ferro e navios de madeira — murmurou Pitt.

Exatamente. Seja como for, Scaggs e a tripulação devem ter lutado como demônios para salvar o barco de uma das piores tormentas do século. Mas, quando a ventania cessou e o mar serenou, o Gladiator era pouco mais do que um destroço. Seus mastros tinham sido varridos, a superestrutura fora destruída e o casco estava fazendo água. Os botes salva-vidas tinham se perdido ou foram esmagados, e o capitão Scaggs compreendeu que seu navio não duraria mais do que algumas horas. De modo que deu ordens para que a tripulação e os presidiários com habilidade manual desmantelassem o que restava do navio e construís­sem uma jangada.

Provavelmente era a única opção.

Dois dos presos eram ancestrais de Arthur Dorsett — prosseguiu Perlmutter. — Seu trisavô, Jess Dorsett, um salteador condenado, e sua trisavô, Betsy Fletcher, sentenciada a vinte anos de reclusão pelo furto de um cobertor.

Pitt examinou as bolhas em seu cálice.

— Decididamente, o crime não compensava naquele tempo.

Poucos americanos sabem que, até a Guerra de Independência, as nossas colônias também foram depósito de criminosos ingleses. Mui­tas famílias ficariam surpresas ao descobrir que seus ancestrais vieram parar aqui como presidiários.

Os sobreviventes do navio se salvaram?

Perlmutter sacudiu a cabeça.

Os quinze dias seguintes foram uma saga de horror e morte. As tempestades, a sede, a fome e uma batalha maluca entre marinheiros, soldados e condenados dizimaram as pessoas refugiadas na balsa. Quando a embarcação finalmente derivou entre os recifes de uma ilha não mapeada, espedaçando-se, diz a lenda que os sobreviventes, que estavam tentando chegar à praia a nado, foram salvos de um enorme tubarão-branco por uma serpente marinha.

O que explica o logotipo de Dorsett. A alucinação daquela gente quase morta.

Eu não me surpreenderia. Só oito dos duzentos e trinta e um pobres-diabos que abandonaram o navio conseguiram chegar à ilha: seis homens e duas mulheres. Estavam mais mortos do que vivos.

Pitt o fitou.

São duzentos e vinte e três mortos. Um número assustador.

Dos oito, um marujo e um presidiário se mataram disputando as mulheres.

Uma reprise do motim do Bounty.

Quase. Dois anos depois, o capitão Scaggs e o único marinheiro que lhe restou, por sorte justamente o carpinteiro do Gladiator, cons­truíram um barco com os restos de um veleiro francês que se chocara contra as rochas, durante uma tormenta. Deixando os presidiários na ilha, os dois atravessaram o mar da Tasmânia e conseguiram chegar à Austrália.

Scaggs abandonou Dorsett e Fletcher?

Com razão. Eles preferiam os encantos de uma bela ilha aos hor­rores da colônia penal de Botany Bay. E como Scaggs achava que devia a vida a Dorsett, resolveu declarar às autoridades que todos os presos tinham perecido.

Então eles começaram vida nova e se multiplicaram.

Exatamente. O próprio Scaggs casou Jess e Betsy, que tiveram dois filhos. Os outros dois condenados tiveram uma filha. Com o tempo, eles construíram uma pequena comunidade familiar e passaram a co­merciar alimento com os baleeiros que, aos poucos, transformaram a ilha Gladiator, como veio a se chamar mais tarde, num entreposto re­gular em suas longas viagens.

E que foi feito de Scaggs?

Voltou ao mar, comandando o novo clíper de uma companhia de navegação chamada Carlisle & Dunhill. Depois de muitas viagens no Pacífico, aposentou-se. Morreu vinte anos mais tarde, em 1876.

E onde os diamantes entram na história?

Calma — disse Perlmutter, com ares de mestre-escola. — Vamos devagar para compreender melhor a história. Para começar, o diamante, que instigou mais crimes, corrupção e romance do que qualquer outro mineral, não passa de carbono cristalizado. Do ponto de vista químico, é parente do grafite e do carvão. Calcula-se que os diamantes se for­maram há uns três bilhões de anos, a qualquer coisa entre cento e vinte e duzentos quilômetros de profundidade no manto superior da Terra. Sob o efeito do calor e da pressão, o carbono puro, assim como os gases e a rocha líquida, subiram à superfície por canais vulcânicos comumente denominados chaminés. Quando essa mistura explodiu e su­biu, o carbono se resfriou e cristalizou, transformando-se em pedras transparentes e extremamente duras. O diamante é um dos poucos ele­mentos da crosta terrestre que vieram das mais remotas profundezas.

Pitt olhou para o chão, tentando imaginar o processo natural de formação do diamante.

Penso que um corte longitudinal do solo mostraria um rastro de diamantes subindo em espiral num canal circular que vai se alargando, na superfície, como um funil.

Ou como uma cenoura — disse Perlmutter. — Ao contrário da lava pura, que subiu muito, formando o pico dos vulcões ao chegar à superfície, a mistura de diamante e rocha líquida, conhecida como cha­minés de kimberlito, a partir do nome da cidade sul-africana de Kimberly, resfriou-se rapidamente e se solidificou, formando enormes pla­taformas. Algumas se desgastaram pela erosão natural, espalhando o diamante e dando origem ao que se conhece por depósitos aluvianos. Algumas chaminés erodidas chegaram a formar lagos. As maiores ocor­rências de pedras cristalizadas, no entanto, permaneceram nas chaminés ou nos canais subterrâneos.

Deixe-me adivinhar. Os Dorsett acharam, na ilha, uma dessas chaminés cheias de diamante.

Você continua se adiantando demais — resmungou Perlmutter com impaciência.

Desculpe.

Os presidiários náufragos acharam, sem o saber, não uma, mas duas chaminés espantosamente ricas nas montanhas vulcânicas do outro lado da ilha Gladiator. As pedras encontradas, que muitos séculos de chuva e vento haviam separado da rocha, eram simplesmente consi­deradas "coisinhas bonitas", como diz Betsy Fletcher numa carta a Scaggs. Na verdade, os diamantes brutos são pedras opacas, quase sem brilho. As vezes parecem pedaços de sabão, com formato estranho. Só em 1866, depois da Guerra Civil Americana, um barco da Marinha dos Estados Unidos, numa viagem de exploração em busca de possíveis portos de águas profundas ao longo do Pacífico, deteve-se na ilha para se abastecer de água. A bordo, ia um geólogo que por acaso viu os filhos dos Dorsett brincando com uma pedra na praia. Curioso, ele a examinou e ficou assombrado ao identificá-la como um diamante de pelo menos vinte quilates. Quando interrogado pelo geólogo sobre a origem da pedra, o esperto Jess Dorsett respondeu que a havia trazido da Inglaterra.

E este foi o começo da Dorsett Consolidated Mining.

Ainda não — disse Perlmutter. — Após a morte de Jess, Betsy mandou à Inglaterra seus dois filhos, Jess Júnior e Charles, sem dúvida assim batizado em homenagem a Scaggs, e também Mary Winkleman, a filha dos outros dois condenados. Queria que fossem educados lá. Escreveu a Scaggs, pedindo-lhe ajuda, e incluiu um punhado de dia­mantes brutos para pagar o sustento das crianças. O capitão entregou as pedras a seu amigo e antigo patrão, Abner Carlisle, que, trabalhando no interesse do moribundo Scaggs, mandou lapidar e polir os diamantes e, depois, vendeu-os em Londres por aproximadamente um milhão de libras, o que correspondia a uns sete milhões de dólares ao câmbio da época.

Muito dinheiro para aquele tempo — refletiu Pitt. — Os garotos devem ter levado uma vida de rei.

Perlmutter sacudiu a cabeça.

Aí é que você se engana. Viveram frugalmente em Cambrige. Mary freqüentou uma boa escola de moças, na periferia de Londres, e se casou com Charles logo depois de se formar. Juntos, retornaram à ilha, onde passaram a dirigir as operações de mineração nos vulcões extintos. Jess Júnior permaneceu na Inglaterra e abriu a Casa Dorsett em sociedade com um comerciante de diamantes, um judeu de Aber­deen chamado Levy Strouser. A loja de Londres, que se ocupava da lapidação e do comércio do diamante, tinha luxuosas salas de exposição para a venda a varejo, elegantes escritórios nos andares superiores para o comércio por atacado e grandes oficinas no subsolo, onde se lapida­vam as pedras da ilha Gladiator. A dinastia prosperou, mesmo porque os diamantes que vinham das chaminés da ilha eram de uma rara co­loração rosa-violácea e de altíssima qualidade.

As minas não se esgotaram?

Ainda não. Os Dorsett tiveram a astúcia de reter boa parte de sua produção, em cooperação com o cartel, a fim de manter os preços elevados.

E os descendentes?

Charles e Mary tiveram um filho, Anson. Jess Júnior não se casou.

— Anson era o avô de Arthur? — quis saber Pitt.

Era. Dirigiu a empresa durante mais de quarenta anos. Provavel­mente foi o mais decente e honesto da família. Contentou-se com dirigir e manter um pequeno e lucrativo império. Sem se deixar levar pela ambição, como seus descendentes, doou muito dinheiro a obras de ca­ridade. Fundou inúmeros hospitais e bibliotecas em toda a Austrália e na Nova Zelândia. Ao morrer, em 1910, deixou a empresa a um filho, Flenry, e a uma filha, Mildred, que morreu ainda jovem, num acidente de barco. Caiu no mar durante um passeio de iate e foi devorada pelos tubarões. Circularam boatos, segundo os quais teria sido assassinada por Henry, mas não houve investigações. O dinheiro de Henry comprou a polícia. Sob seu comando, a família inaugurou o reinado da ambição, da inveja, da crueldade e do poder voraz que prossegue até hoje.

Lembro-me de ter lido um artigo no Los Angeles Times — disse Pitt. — Comparavam Sir Henry Dorsett a Sir Oppenheimer, da De Beers.

Nenhum dos dois era santo. Oppenheimer superou toda sorte de obstáculos para construir um império que se estende a todos os con­tinentes e tem uma diversificada participação em fábricas de automó­veis, papel e explosivos, cervejarias, assim como na exploração do ouro, do urânio, da platina e do cobre. No entanto, a grande força da De Beers repousa sobre o diamante e o cartel que regula o mercado de Londres a Nova York e a Tóquio. A Dorsett Consolidated Mining, por outro lado, continuou exclusivamente concentrada no diamante. E, fora a participação em algumas minas de gemas coloridas, o rubi em Burma, a esmeralda na Colômbia, a safira no Ceilão, a família nunca diversificou de fato seus investimentos. Todos os lucros foram reinvestidos na em­presa.

De onde vem o nome De Beers?

De Beers era o fazendeiro sul-africano que, sem o saber, vendeu suas terras riquíssimas em diamantes, por uma bagatela, a Cecil Rhodes, que escavou uma fortuna e inaugurou o cartel.

E Henry Dorsett se uniu ao cartel de Oppenheimer e De Beers?

Embora tenha participado do controle de preços do mercado, Henry se tornou o único grande proprietário de minas a vender inde­pendentemente. Enquanto oitenta e cinco por cento da produção mun­dial passava pela Organização Central de Vendas, controlada pela De Beers, Dorsett contornava os grandes comerciantes de diamante de Lon­dres, Antuérpia, Telavive e Nova York, e vendia uma produção limitada de pedras finas diretamente ao público, por meio da Casa Dorsett, que atualmente tem mais de quinhentas filiais.

A De Beers não desencadeou nenhuma guerra contra ele?

Perlmutter sacudiu a cabeça.

Oppenheimer formou o cartel para garantir um mercado estável e altos preços. Sir Ernest não se sentiria ameaçado enquanto Dorsett não tentasse um dunping de seu fornecimento de pedras ao mercado.

Dorsett deve ter um verdadeiro exército para sustentar uma ope­ração desse porte.

Mais de mil empregados e três lapidações, com diferentes oficinas e departamentos. Têm ainda um prédio de trinta andares em Sídnei, com uma legião de artesãos que criam as inigualáveis jóias da Casa Dorsett. Enquanto a maioria dos comerciantes empregam judeus para lapidar as pedras, Dorsett contrata principalmente chineses.

Henry Dorsett morreu no fim dos anos 70, não?

Perlmutter sorriu.

— A história se repetiu. Aos sessenta e oito anos, caiu de seu iate, em Mônaco, e se afogou. Segundo os boatos, foi Arthur quem o embebedou e o empurrou.

E a história de Arthur?

Perlmutter examinou seus papéis, e depois olhou por cima dos óculos de leitura.

— Se o público que compra diamantes tiver uma vaga noção das operações sujas que Arthur Dorsett vem dirigindo nos últimos trinta e tantos anos, não voltará a adquirir uma só pedra enquanto ele estiver vivo.

Ele não chega a ser um franciscano, certo?

Alguns homens têm duas caras, certo? Pois Arthur deve ter umas cinco. Nascido na ilha Gladiator em 1941, filho único de Henry e Charlotte Dorsett, foi educado pela mãe e só passou a freqüentar uma escola aos dezoito anos, quando ingressou na Escola de Minas de Ouro, no Colorado. Embora fosse um grandalhão, muito mais alto do que os colegas, nunca se interessou por esporte. Preferia perambular nas minas fantasmas espalhadas nas montanhas Rochosas. Depois de graduado engenheiro de minas, trabalhou cinco anos nas escavações da De Beers, na África do Sul; só então voltou para a Austrália, onde se encarregou da superintendência das minas da família na ilha. Durante suas freqüentes viagens ao quartel-general da Dorsett, em Sídnei, conheceu e se casou com uma moça adorável, Irene Calvert, filha de um professor de biologia da Universidade de Melbourne. Ela lhe deu três filhas.

Maeve, Deirdre e...

Boudicca.

Duas deusas celtas e uma lendária rainha britânica.

Uma tríade feminina.

Maeve e Deirdre têm, respectivamente, vinte e sete e trinta e um anos. Boudicca está com trinta e oito.

Fale mais da mãe — pediu Pitt.

Não há muito que contar. Irene morreu há quinze anos, também em circunstâncias misteriosas, e foi sepultada na ilha Gladiator. Só um ano depois um repórter de um jornal de Sídnei descobriu sua morte. Publicou um obituário antes que Arthur tivesse tempo de subornar o diretor do jornal, para que abafasse a notícia. Do contrário, ninguém teria sabido que ela estava morta.

O almirante Sandecker conhece alguma coisa sobre Arthur Dorsett e diz que é impossível ter acesso a ele — comentou Pitt.

E verdade. Nunca foi visto em público, não tem vida social nem amigos. Dedica todo o seu tempo aos negócios. Tem até um túnel secreto por onde entra e sai, sem ser visto, do prédio do quartel-general, em Sídnei. Isolou completamente a ilha Gladiator do mundo exterior. Em sua opinião, quanto menos se souber das operações da Dorsett Mining, melhor.

E a empresa? Ele não pode ocultar para sempre as transações de um negócio tão vultoso.

Lamento discordar — disse Perlmutter. — Uma grande empresa particular pode se servir do homicídio. Mesmo o governo sob o qual ele atua tem enorme dificuldade para avaliar-lhe o patrimônio, com objetivos fiscais. Arthur Dorsett pode ser considerado a reencarnação de Ebenezer Scrooge, mas nunca poupou dinheiro para comprar a leal­dade. Se achar que vale a pena tornar milionário um funcionário do governo da noite para o dia, a fim de obter vantagens e poder, ele não hesitará em fazê-lo.

Suas filhas trabalham na empresa?

Duas delas sim. A outra...

Maeve? — arriscou Pitt.

Exatamente. Maeve abandonou a família, matriculou-se na uni­versidade e se tornou zoóloga marinha. Deve ter herdado alguma coisa da mãe de seu pai.

E quanto a Deirdre e Boudicca?

Os fofoqueiros juram que as duas são a encarnação do diabo, piores do que o velho. Deirdre é o Maquiavel da família, desonesta, malévola, calculista. Boudicca tem fama de implacável, fria e dura como o gelo do fundo de um glaciar. Parece que não se interessam por homens nem fazem questão de luxo.

Um olhar distante refletiu nos olhos de Pitt.

Que há de tão irresistível no diamante? Por que as pessoas se matam por ele? Por que tantos governos e nações ascenderam e decaí­ram por ele?

Além da beleza, depois de lapidados e polidos, os diamantes têm qualidades inigualáveis. São a substância mais dura que existe no mun­do. Basta esfregá-los na seda para que produzam uma carga eletrostática positiva. Exponha-os ao sol poente, e brilharão no escuro com uma fosforescência sobrenatural. Não, meu jovem amigo, o diamante é muito mais do que um mito. E o mais perfeito criador de ilusões. — Perlmutter se calou e tirou a garrafa de champanhe do balde de gelo. Com expressão quase triste, serviu-se das últimas gotas e ergueu o cálice. — Com os diabos, acho que não tenho mais o que beber.

 

Ao sair do prédio da ANPS, Giordino solicitou um dos carros azul- turquesas da agência e foi para o seu recém-comprado apartamento, em Alexandria, à beira do rio Potomac. Os cômodos eram o pesadelo de qualquer decorador. Nenhuma peça da mobília combinava com a outra, nada se conformava com as regras mais elementares do bom gosto ou do estilo. Cada uma das sucessivas namoradas que ali se instalou e partiu deixou a sua marca, e nenhuma redecorava o apar­tamento de acordo com os critérios da companheira seguinte. Feliz­mente, o italiano continuava amigo de todas, e elas gostavam de sua companhia, muito embora nenhuma tivesse a menor intenção de se casar com ele.

Giordino nada tinha de negligente e, ademais, era um grande cozi­nheiro, mas raramente ficava em casa. Quando não estava percorrendo o mundo com Pitt, metido em projetos submarinos, organizava expe­dições em busca de qualquer coisa perdida, fossem navios, aviões ou pessoas. Adorava procurar. Era incapaz de se sentar na sala para assistir ã televisão à noite ou de ler um livro. Sua mente viajava o tempo todo, e seus pensamentos raramente se prendiam à dama a seu lado, coisa que frustrava infinitamente o belo sexo.

Jogou a roupa suja na máquina de lavar e tomou um banho rápido. Depois de fazer a mala para uma noite, foi para o Dulles International, onde tomou o vôo noturno para Miami. Ao chegar, alugou um carro, dirigiu-se à zona portuária e se hospedou num hotel junto ao cais. A seguir, procurou a lista de arquitetos navais nas Páginas Amarelas, copiando os nomes, endereços e números de telefone dos especialistas em iates. E começou a telefonar.

Os quatro primeiros, que já tinham voltado para casa, deixaram acio­nadas as secretárias eletrônicas, mas o quinto atendeu pessoalmente. Giordino não se surpreendeu. Esperava que um deles ficasse até tarde no trabalho, criando os planos de construção da residência flutuante de algum ricaço.

Senhor Wes Wilbanks? — perguntou.

Sim, sou eu. Que deseja a esta hora da noite? — A voz tinha um suave sotaque sulista.

Eu me chamo Albert Giordino. Trabalho na Agência Nacional de Pesquisas Subaquáticas. Preciso de sua ajuda para identificar o fabri­cante de um barco.

Está atracado aqui em Miami?

Não, senhor. Pode estar em qualquer lugar do mundo.

Quanto mistério!

Mais do que o senhor imagina.

Estarei no escritório amanhã a partir das dez.

O assunto é urgente — disse Giordino com serena autoridade.

Certo, vou encerrar o expediente dentro de uma hora. Por que não passa por aqui? Tem o endereço?

Tenho. Mas eu não sou de Miami.

Wilbanks o orientou. O escritório do arquiteto ficava somente a al­gumas quadras do hotel, de modo que Giordino comeu um sanduíche numa lanchonete cubana e foi a pé, seguindo as instruções que recebera por telefone.

O homem que abriu a porta tinha pouco mais de trinta anos, era bem alto, estava de bermuda e com uma camisa florida. Como mal lhe chegasse aos ombros, Giordino tinha de olhar para cima. O belo rosto era emoldurado por uma abundante cabeleira negra, puxada para trás, que começava a encanecer nas têmporas. O homem tinha, definitiva­mente, a aparência de quem pertencia ao mundo do iatismo.

Senhor Giordino, Wes Wilbanks. Prazer em conhecê-lo.

Obrigado por me receber.

Entre. Quer um café? Foi feito de manhã, mas a chicória o mantém saboroso.

Por favor.

Wilbanks o levou a um escritório com piso de madeira de lei, uma estante que cobria toda a parede, repleta de livros sobre o design de iates e barcos de pequeno porte. A outra parede estava cheia de modelos que Giordino imaginou construídos a partir das plantas de Wilbanks. No centro da sala ficava uma grande e antiga mesa de desenho. Diante de uma janela panorâmica, que dava para o porto, havia uma bancada com um computador.

Giordino aceitou a xícara de café e colocou na mesa os esboços do segundo oficial do cargueiro Rio Grande.

Sei que não é muita coisa para começar, mas tenho esperança de que você possa me orientar quanto ao possível fabricante.

Wilbanks estudou os desenhos, inclinando a cabeça ora para um lado, ora para outro. Passado um bom minuto, coçou o queixo e olhou para Giordino.

A primeira vista, parece o design básico de uma centena de fa­bricantes. Mas creio que quem observou o barco e fez o desenho se atrapalhou com o ângulo do qual o estava vendo. Na verdade, acredito que haja dois cascos, não um, que lhe dá uma aparência futurística, da era espacial. Sempre desejei criar uma coisa assim, mas me falta um cliente que queira afastar-se do design convencional.

Você parece estar falando de uma nave para ir à Lua.

Quase. — Wilbanks se sentou diante do computador e o ligou.

Vou lhe mostrar, com os gráficos do computador, o que estou que­rendo dizer. — Tirou um disquete de uma gaveta e o inseriu na CPU.

Eis um conceito que criei unicamente para me divertir e pela frus­tração de saber que nunca me pagarão para construir isto.

A imagem de um barco esporte muito esguio, sem linhas agudas ou arestas, encheu o monitor. A tradicional proa angular desaparecera. Todo o casco e o casulo, que cobriam a cabine, eram suavemente ar­redondados. A embarcação nada tinha de conservadora. Parecia datar de cinqüenta anos no futuro. Giordino ficou impressionado. Com o auxílio da computação gráfica, Wilbanks lhe ofereceu uma visita ao interior do barco, concentrando-se no design pouco convencional e es­tranho do equipamento e dos móveis. Sem dúvida, tratava-se de uma obra da imaginação e da inovação.

Você visualiza tudo isso a partir de alguns esboços? — perguntou o assombrado italiano.

Espere e verá — respondeu Wilbanks.

Passou os desenhos pelo scanner eletrônico, que transferiu as imagens ao monitor. A seguir, sobrepôs as imagens a suas próprias plantas e as comparou. A não ser por uma ou outra diferença mínima no design e nas dimensões, eram muito semelhantes.

Veja só! — murmurou Giordino.

Estou morrendo de inveja do colega que chegou primeiro — disse Wilbanks. — Eu venderia meus filhos por um contrato para projetar esta gracinha.

Pode me dar uma idéia do tamanho e da potência?

Do meu ou do seu?

Do barco dos desenhos.

Eu diria que o comprimento é de uns trinta metros. A boca, de pouco menos de dez metros. Quanto aos motores, eu teria especificado um par de Blitzen Seastorm turbodiesel. Provavelmente dois BAD 98, que, combinados, poderiam produzir mais de dois mil e quinhentos HP. Estimativamente, com esses motores, um barco desse tamanho po­deria alcançar a velocidade de setenta nós ou mais em águas calmas. Talvez bem mais, dependendo da eficiência dos cascos gêmeos.

Quem tem a possibilidade de construir um barco desse?

Wilbanks se inclinou para trás e refletiu um momento.

Um barco desse tamanho e com essa configuração exige moldagem radical em fibra de vidro. A Glastec Boats, em San Diego, seria capaz de fazer o serviço, assim como a Heinklemann Specially Boat Builders, em Kiel, na Alemanha.

E os japoneses?

Eles não são muito versados na indústria de iates. Hong Kong tem alguns pequenos fabricantes, mas trabalham basicamente com ma­deira. A maior parte dos construtores de barcos de fibra de vidro se além a conceitos já provados e consagrados.

Então, na sua opinião, é a Glastec ou a Heinklemann — disse Giordino.

São os dois que eu chamaria para executar o meu projeto.

E o arquiteto?

Acho que posso citar, de memória, uns vinte especializados em design radical.

Giordino sorriu.

Tive sorte de tropeçar no vigésimo primeiro.

Onde você está hospedado?

No hotel Seaside.

Parece que a ANPS não é de esbanjar dinheiro, é?

Você precisa conhecer meu chefe, o almirante James Sandecker. É irmão gêmeo de Shylock.

Wilbanks riu.

Quer saber de uma coisa? Apareça aqui amanhã às dez. Vou ver se consigo uma coisa para você.

Agradeço muito a sua ajuda.

Giordino apertou a mão de Wilbanks, então fez um longo passeio à beira do mar antes de voltar para o quarto de hotel, onde leu um romance policial e finalmente pegou no sono.

Às dez horas em ponto, Giordino entrou no escritório de Wilbanks. O arquiteto estava examinando uma série de plantas. Ergueu-as e sorriu.

Depois que você foi embora, ontem — disse —, eu aperfeiçoei os desenhos que me entregou e os refiz em escala. A seguir, reduzi o tamanho, mandei um fax para San Diego e outro para a Alemanha. Devido ao fuso horário, Heinklemann respondeu antes que eu chegasse, esta manhã. A Glastec entrou em contato comigo há uns vinte minutos.

Eles conhecem o barco? — perguntou Giordino com impaciência.

Infelizmente não. Nem projetaram nem construíram o barco.

Então voltamos ao ponto de partida.

Calma. Acontece que um engenheiro da Heinklemann viu e exa­minou o seu barco quando estava ancorado em Mônaco, há uns nove meses. Mandou dizer que o fabricante é uma firma francesa nova no ramo, que eu não conhecia. Jusserand Marine, de Cherbourg.

Neste caso, podemos mandar-lhes nossas plantas por fax — disse Giordino com renovadas esperanças.

Não é preciso. Embora você não tenha dito nada, imagino que o verdadeiro motivo por que está procurando o fabricante da embarcação é identificar o proprietário.

Confesso que sim.

O engenheiro da Heinklemann, que viu o barco em Mônaco, teve a gentileza de também incluir o nome do proprietário no fax. Disse que só resolveu verificá-lo ao notar que os membros da tripulação mais pareciam pistoleiros da Máfia do que marinheiros de um iate de luxo.

Pistoleiros da Máfia?

Ele diz que todos estavam armados.

E o nome do proprietário?

Proprietária. Uma ricaça australiana. Sua família fez fortuna com a exploração de diamante. Chama-se Boudicca Dorsett.

 

Pitt estava a caminho de Ottawa, no Canadá, quando Giordino te­lefonou para seu avião e o informou sobre o misterioso iate.

Tem certeza?

Tenho — respondeu o italiano. — E quase absolutamente certo que o barco que estava se afastando do lugar das mortes pertencia à família Dorsett.

A coisa está se complicando.

Talvez também lhe interesse saber que o almirante solicitou à Marinha uma busca por satélite na região central e oriental do oceano Pacífico. O iate foi descoberto e seguido. Parou rapidamente no Havaí e seguiu na direção do seu objetivo.

A ilha Kunghit? Então eu posso matar duas cajadadas com um só coelho!

Você hoje está de morrer de rir.

Como é o iate?

Diferente de tudo o que você conhece. O típico design da era espacial.

Vou ficar de olho.

Sei que estou desperdiçando saliva dizendo isto, mas procure não se meter em encrenca.

Se precisar de dinheiro, eu telefono — riu Pitt ao desligar, agra­decido por contar com um amigo como Albert Cassius Giordino.

Depois de aterrissar e alugar um carro, atravessou a ponte sobre o rio Rideau, para entrar em Ottawa, a capital do Canadá. Fazia mais frio do que dentro de uma geladeira, e a paisagem de árvores desfolhadas era feia e estéril. O único oásis de cores, que saltava na espessa camada de neve a cobrir o solo, eram os aglomerados esparsos de verdes pinheiros. Ele olhou para o rio lá embaixo, que desaguava no rio Ottawa e depois no majestoso São Lourenço e que, agora, corria sob uma capa de gelo. O Canadá era um país incrivelmente belo, pensou, mas seu rigoroso inverno devia ser mandado para o norte e nunca mais voltar.

Ao atravessar a ponte do rio Ottawa e entrar na cidadezinha de Hull, ele consultou o mapa e tratou de guardar na memória as ruas que levavam a um grupo de três altos edifícios que abrigavam diversas repartições públicas. Estava à procura do Departamento do Meio Am­biente do Canadá.

Um segurança, ao portão, orientou-o e fez sinal para que passasse. Pitt deixou o carro numa vaga do estacionamento de visitantes e entrou no prédio. Em pouco tempo estava no elevador, subindo ao departa­mento canadense do Meio Ambiente.

Uma recepcionista em vésperas de aposentar-se olhou para ele e, com um sorriso forçado, perguntou:

Que deseja?

Meu nome é Pitt. Tenho uma entrevista com o senhor Edward Posey.

Um momento. — Ela discou um número, anunciou sua chegada e depois fez um gesto afirmativo. — Por favor, vá por aquele corredor. É a última porta.

Pitt agradeceu e fez o que ela disse. Uma bonita secretária ruiva o recebeu e conduziu ao escritório de Posey.

O homenzinho barbudo e de óculos se levantou e, debruçando-se na escrivaninha, apertou-lhe a mão estendida.

É um prazer revê-lo, Dirk. Há quanto tempo foi?

Há onze anos, na primavera de 1989.

— Pois é, o projeto Doodlebug. Nós nos conhecemos na reunião em que você apresentou o relatório de sua descoberta de uma jazida de petróleo perto da ilha Baffin.

Estou precisando de um favor, Ed.

Posey indicou uma cadeira.

Sente-se. De que se trata?

Queria autorização para investigar as atividades de mineração na ilha Kunghit.

Está falando nas operações da Dorsett Consolidated?

Pitt fez que sim.

Exatamente. A ANPS tem motivos para acreditar que sua tecno­logia de escavação tem efeitos devastadores na vida marinha de lugares distantes como a Antártida.

Posey pousou nele um olhar pensativo.

Tem alguma coisa a ver com a morte dos passageiros do navio australiano?

Toda e qualquer relação é puramente circunstancial no momento.

Mas vocês têm suspeitas?

Temos.

O mais indicado seria entrar em contato com o departamento de Recursos Naturais.

Duvido. Se o seu governo explora alguma coisa como minas, seria necessário um ato do Parlamento para autorizar uma investigação num lugar que é uma concessão legal a uma empresa de mineração. Mesmo assim, Arthur Dorsett é poderoso demais para deixar que isso aconteça.

Acho que você se meteu num beco sem saída.

Há uma saída — sorriu Pitt —, se você colaborar.

Posey não ocultou seu desconforto.

— Não posso autorizá-lo a espionar a mina de Dorsett, a menos que tenha provas concretas de agressão ilegal ao meio ambiente.

— Talvez, mas nada o impede de me contratar para observar os hábitos de desova dos salmões-couve-flor.

— A época da desova já está no fim. Por outro lado, nunca ouvi falar em salmões-couve-flor.

Nem eu.

Você não conseguirá passar pelo esquema de segurança da mina. Dorsett contrata os melhores do ramo, ex-comandos britânicos e vete­ranos da Forças Especiais americanas.

Não terei de pular a cerca da propriedade — explicou Pitt. — Posso detectar tudo o que preciso mediante instrumentos, enquanto estiver navegando nas passagens e nas baías da ilha Kunghit.

Num bote salva-vidas?

— Eu tinha pensado numa canoa, com as cores locais e tudo.

— Seria suicídio. As águas ao redor da Kunghit são traiçoeiras. As ondas que chegam do Pacífico arremetem contra as rochas como você não imagina.

Você está quase me convencendo de que é perigoso.

Se o mar não acabar com você — disse Posey gravemente —, os capangas de Dorsett acabam.

— Então, vou usar um barco maior e levar um arpão — disse Pitt com cinismo.

Por que você simplesmente não vai até lá com uma equipe de engenheiros ambientais canadenses e dá parte se encontrar alguma ati­vidade nociva?

Pitt sacudiu a cabeça.

Perda de tempo. O capataz de Dorsett paralisaria a mina até que fôssemos embora. É melhor investigar quando eles estiverem desprevenidos.

Posey ficou alguns instantes olhando pela janela. Depois deu de ombros.

Está bem, vou dar um jeito para que o Meio Ambiente o contrate para investigar a floresta de algas ao redor da ilha Kunghit. Você vai estudar os possíveis danos provocados pelos produtos químicos das atividades de mineração que vão para o mar. Que tal?

Obrigado — disse Pitt com sinceridade. — Quanto vou ganhar?

Posey compreendeu a piada.

Sinto muito, você não está no orçamento. Mas eu posso me deixar persuadir a lhe pagar um hambúrguer na lanchonete da esquina.

Combinado.

Mais uma coisa. Você vai sozinho?

Um chama menos a atenção do que dois.

Não neste caso — disse Posey, rindo. — Aconselho-o a levar um índio da região, um guia. Isso lhe dará uma aparência mais oficial. O Departamento do Meio Ambiente trabalha em estreita colaboração com as tribos na prevenção da poluição e na proteção das áreas de florestas. Um pesquisador e um pescador local, trabalhando num projeto do go­verno, afastariam todas as dúvidas da segurança de Dorsett.

Conhece alguém? — perguntou Pitt.

Mason Broadmoor. Um cara muito competente. Já o contratei em vários projetos ambientais.

Um índio com esse nome?

Ele é membro dos haidas, que vivem nas ilhas Rainha Charlotte, na Colúmbia Britânica. Quase todos adotaram nomes britânicos há mui­tas gerações. São excelentes pescadores e conhecem bem as águas ao redor da ilha Kunghit.

Esse Broadmoor é pescador?

Na verdade não. Mas é muito criativo.

Criativo em quê?

Posey hesitou um instante, alinhou alguns papéis na escrivaninha; depois olhou para Pitt com certo constrangimento e disse:

Mason Broadmoor esculpe totens.

 

Arthur Dorsett saiu do elevador particular e, como todas as manhãs, precisamente às sete horas, entrou em sua suíte de cobertura feito um touro a invadir uma arena de Sevilha, grandalhão, ameaçador, inven­cível. Era um homem gigantesco, e seus ombros fortes resvalaram nos batentes quando ele se curvou para passar pela porta. Tinha a consti­tuição musculosa e peluda de um profissional de luta-livre. O cabelo claro, áspero e duro lhe cobria a cabeça como um denso espinheiro. Seu rosto avermelhado era tão feroz quanto os olhos negros, toldados por sobrancelhas espessas e cerdosas. Caminhava com estranhos mo­vimentos pendulares e mecânicos. Sua pele grosseira era curtida por longos dias ao sol, a trabalhar nas minas abertas, a orientar os garim­peiros a aumentar a produção. Um bigode enorme e recurvado para baixo lhe emoldurava os lábios sempre entreabertos, que expunham os dentes amarelecidos pelo cachimbo. Irradiando desprezo e uma supre­ma arrogância, Arthur Dorsett era um império em si mesmo, que não observava senão as suas próprias leis. Evitava a todo custo as luzes da ribalta, uma proeza e tanto para o dono de uma incrível riqueza e do prédio de quatrocentos milhões de dólares que construíra em Sídnei. Paga sem empréstimos bancários, com o dinheiro de seus próprios co­fres, a majestosa torre ao estilo de Trump abrigava os escritórios dos corretores, comerciantes e mercadores de diamante, assim como os la­boratórios e as oficinas de lapidação e polimento. Conhecido como um dos grandes entre os produtores de diamante, Arthur Dorsett também desempenhava um papel altamente secreto nos bastidores do mercado de gemas coloridas.

Entrando na vasta ante-sala, passou por quatro secretárias sem tomar conhecimento de sua presença e foi para o escritório que ficava no centro do edifício, sem janelas que oferecessem vista panorâmica da moderna Sídnei e seu porto. Eram muitos os homens que, tendo feito transações com Dorsett, teriam grande prazer em contratar um sicário que o removesse do caminho. Ele entrou por uma porta de aço no escritório, que era simples, espartano até, com paredes de dois metros de espessura. Naquela verdadeira caixa-forte de dimensões gigantescas, Dorsett dirigia os arriscados investimentos de mineração da família, bem como colecionava, e agora exibia, as maiores e mais opulentas pedras extraídas de suas minas, lapidadas em suas oficinas. Eram cen­tenas de maravilhosas jóias expostas nas vitrines com base de veludo preto. Segundo se estimava, somente naquela sala havia diamantes no valor de um bilhão e duzentos milhões de dólares.

Dorsett não precisava de régua para medir uma pedra, nem de ba­lança para pesá-la ou de lupa para nela detectar defeitos ou escuras manchas de carvão. Não existiam olhos mais treinados no ramo. Entre todos os incríveis diamantes ali reunidos para sua satisfação pessoal, ele sempre se aproximava e se punha a contemplar a maior e talvez mais valiosa gema do mundo. Era de grau D, sem falhas, com um brilho tremendo, transparência perfeita, forte refração e uma ardente dispersão da luz. Uma lâmpada no teto excitava um brote de fogo radiante na encantadora disposição da cor rosa-violácea da pedra. Des­coberto por um trabalhador chinês em Gladiator, em 1908, era o maior diamante encontrado na ilha. Em estado bruto, pesara mil cento e trinta quilates. A lapidação o reduzira a seiscentos e vinte. Tinha um brilho esplendoroso. O Dorsett Rose, como Arthur denominou modestamente o diamante, incendiava a imaginação com idéias de romance e aventura. Seu valor era inestimável. Poucos tinham conhecimento de sua exis­tência. E Dorsett sabia perfeitamente que no mundo existiam uns cin­qüenta homens dispostos a assassiná-lo a qualquer preço para se tornar proprietários da pedra.

Afastando-se da jóia com relutância, ele foi sentar-se à escrivaninha, uma gigantesca monstruosidade feita de rocha de lava e com gavetas de mogno. Apertou um botão para alertar a chefe das secretárias quanto a sua presença no escritório. Ela se fez ouvir quase imediatamente ao interfone:

Suas filhas o estão esperando há quase uma hora.

Indiferente, Dorsett respondeu com uma voz dura como os diamantes que colecionava:

Mande as queridinhas entrar.

E, sempre divertido com as diferenças físicas e pessoais das filhas, reclinou-se na poltrona para assistir ao desfile.

Boudicca, uma giganta estatuária, entrou com passadas largas, exa­lando a segurança de uma tigresa a deambular num povoado despro­tegido. Vinha com um casaco de tricô de malha grossa, que combinava perfeitamente com a blusa, o fuseau listrado e as botas de montaria de fino cromo. Bem mais alta do que as irmãs, raramente encontrava um homem de seu tamanho. A visão de sua beleza de amazona quase sempre inspirava expressões de assombro. Apenas ligeiramente mais baixa do que o pai, herdara-lhe os olhos negros, se bem os dela fossem mais ominosos e dissimulados do que propriamente ferozes. Não se maquiava; com os abundantes cabelos ruivos soltos, que lhe chegavam à cintura, e a bem proporcionada corpulência, com o ar de desprezo e malignidade, dominava a todos, exceto, naturalmente, o pai.

Dorsett via nela o filho que perdera. Com os anos, acabou aceitando, ainda que com resistência, o secreto estilo de vida de Boudicca, pois o que realmente lhe importava era o fato de ela ser tão determinada e inflexível quanto ele próprio.

Deirdre deu a impressão de flutuar na sala, serena e indiferente, trajando um costume vinho com jaqueta transpassada na frente, simples mas elegante. Inegavelmente charmosa, nada tinha de artificial. Sabia exatamente o que era capaz de fazer. Não havia dissimulação em seus modos. Apesar do rosto delicado e do corpo flexível, contava definiti­vamente com subjacentes qualidades masculinas. Como Boudicca, sen­tou-se numa das três cadeiras diante da escrivaninha de Dorsett.

Maeve seguiu as irmãs, caminhando com a graça do junco ao sabor da brisa leve; vestia saia azul e um blusão de zíper, da mesma cor, por cima da blusa branca de gola rulê. Seus longos cabelos loiros eram sedosos e brilhantes, sua pele estava corada e seus olhos azuis fuzilavam de raiva. Colocando-se entre as outras duas, ergueu o queixo e fitou o pai diretamente nos olhos, que refletiam intriga e corrupção.

Quero os meus filhos! — disse. Não era um pedido, mas uma exigência.

Sente-se, menina — ordenou Dorsett, apanhando um cachimbo de raiz de roseira e apontando-o como se fosse uma arma.

Não! — gritou ela. — Você seqüestrou meus filhos, e eu os quero de volta. Do contrário eu os entregarei à polícia, a você e a estas cadelas coniventes, mas não sem antes expô-los aos noticiários e aos jornais!

Ele a encarou com firmeza, avaliando calmamente o desafio. Depois, comunicou-se com a secretária.

Ligue para Jack Ferguson. — Sorriu para Maeve. — Você se lembra de Jack, não?

Aquele gorila sádico que você denomina superintendente de mi­nas. Que tem ele?

Talvez lhe interesse saber. Ele está bancando a babá dos gêmeos.

O ódio que incendiava o rosto de Maeve foi substituído pelo susto.

Não, Ferguson não!

— Um pouco de disciplina sempre faz bem a garotos nessa idade.

Ela ia dizer alguma coisa, mas o interfone tocou e Dorsett ergueu a mão, pedindo silêncio. Falou pelo telefone viva-voz.

Jack?

Ouviu-se um ruído de equipamento pesado no fundo quando Fer­guson respondeu pelo celular.

Sou eu.

Os meninos estão por perto?

Sim, senhor. Estão recolhendo o esterco que caiu das carroças.

Quero que você providencie um acidente...

Não! — gritou Maeve. — Meu Deus, eles têm apenas seis anos! Você não pode matar seus próprios netos! — Estava horrorizada com a expressão de absoluta indiferença de Deirdre e a frieza glacial de Boudicca.

Não considero esses bastardos meus netos — rosnou Dorsett.

Maeve foi dominada pelo medo. Tratava-se de uma batalha impos­sível de vencer. Seus filhos estavam em perigo mortal, e era evidente que sua única esperança de poupá-los consistia em sujeitar-se à vontade do pai. Tinha plena e dolorosa consciência de seu desamparo. Só lhe restava tentar ganhar tempo enquanto elaborava um plano para salvar os meninos. Nada mais importava. Se ao menos tivesse conseguido explicar sua situação aflitiva ao homem da ANPS, ele poderia ter ima­ginado um modo de ajudá-la. Mas agora encontrava-se a milhares de quilômetros de distância.

Ela se deixou cair na cadeira vazia, derrotada mas ainda desafiadora, uma tormenta de emoções a sacudi-la.

Que quer de mim?

O pai relaxou e apertou um botão, encerrando o telefonema. As rugas profundas no canto de seus olhos se alargaram.

Eu devia ter batido em você quando menina.

Você bateu, querido pai. Muitas vezes, aliás.

Agora chega de bobagem — grunhiu ele. — Quero que volte aos Estados Unidos e trabalhe na Agência Nacional de Pesquisas Subaquá­ticas. Vigie-os com cuidado. Observe seus métodos para tentar descobrir a causa das mortes inexplicáveis. Se começarem a se aproximar da resposta, faça o que puder para detê-los. Sabotagem ou assassinato, o que for preciso. Se fracassar, esses moleques sujos que você pariu no esgoto morrem. Trabalhe direito, e eles viverão bem.

Você é louco — balbuciou ela, assombrada com o que acabava de ouvir. — É capaz de matar o sangue do seu sangue como se nada significasse...

Aí é que você se engana, querida irmãzinha — atalhou Boudicca.

Vinte bilhões de dólares são muito mais do que nada.

Que trama maluca vocês estão urdindo?

Se não tivesse fugido, você saberia — respondeu Deirdre.

Papai vai derrubar o mercado mundial do diamante — revelou Boudicca com a calma de quem estivesse descrevendo um novo par de sapatos.

Maeve o mirou.

É impossível. A De Beers e o resto do cartel jamais permitirão uma queda drástica do preço do diamante.

Dorsett pareceu crescer ainda mais atrás da escrivaninha.

Apesar de sua costumeira manipulação da lei de oferta e procura, dentro de trinta dias o colapso será uma realidade. Uma onda de pedras vai invadir o mercado a preços que qualquer criança será capaz de pagar com a mesada.

Nem mesmo você é capaz de comandar o mercado do diamante.

Ledo engano, minha filha — disse Dorsett em tom conspirativo.

O preço excessivo do diamante sempre dependeu da escassez fabri­cada. Para explorar o mito da raridade do diamante, a De Beers manteve os preços elevados, comprando e armazenando a produção das novas minas do Canadá, da Austrália e da África. Quando a Rússia abriu suas jazidas da Sibéria e encheu um prédio de cinco andares com mi­lhares de pedras, a De Beers não tinha como impedi-la de inundar o mercado. Por isso eles entraram num acordo. A De Beers concedeu um empréstimo de bilhões de dólares ao novo Estado russo e foi paga em diamante, o que lhe permitiu manter os preços no interesse dos pro­dutores e dos comerciantes. São muitas as minas que o cartel comprou e em seguida fechou, a fim de manter a produção baixa. As jazidas americanas no Estado de Arkansas são um bom exemplo. Se exploradas, têm potencial para se tornar um dos maiores produtores de diamante do mundo. Mas a De Beers adquiriu a propriedade e a entregou ao Serviço de Parques americano, que só permite que os turistas arranhem a superfície em troca de uma pequena taxa.

Usaram o mesmo método com os proprietários de empresas de mineração, da Tanzânia ao Brasil — acrescentou Deirdre. — Você nos ensinou muita coisa, papai. Nós três sabemos bem como são as intrigas de bastidores do cartel do diamante.

Eu não — contestou Maeve. — Não sei e não quero saber. Nunca estive interessada no comércio do diamante.

Pena que tenha feito ouvidos moucos às lições de papai — disse Boudicca. — Teria sido melhor para você prestar mais atenção.

Mas, afinal, para que provocar um colapso no mercado? — per­guntou Maeve. — A queda de preços também prejudicaria a Dorsett Consolidated Mining. Que vão lucrar com esse desastre?

E melhor que você não saiba por enquanto — disse Dorsett, mor­dendo o cachimbo vazio. — Ao contrário de Boudicca e Deirdre, você não é confiável. Não guardaria segredo.

Trinta dias? E esse o seu cronograma?

Dorsett encostou-se no respaldo da cadeira, cruzou as mãos enormes no peito e fez um gesto afirmativo.

Estou há dez anos com as equipes trabalhando em três turnos, vinte e quatro horas por dia. Dentro de um mês, terei acumulado um estoque de mais de dois bilhões em pedras. Com a crise econômica mundial, as vendas de diamante ao consumidor estagnaram tempora­riamente. As somas fabulosas que o cartel gastou em publicidade de nada serviram. Se minha intuição for correta, o mercado chegará ao fundo do poço trinta dias antes de voltar a subir. Eu pretendo atacar quando estiver em baixa.

Que você anda fazendo nas minas que tem causado tanta morte nos oceanos? — quis saber Maeve.

Há mais ou menos um ano, meus engenheiros desenvolveram uma escavadeira revolucionária, usando o ultra-som de alta energia para escavar o barro azul, que contém os maiores depósitos de diamante. Aparentemente, as rochas subterrâneas, sob as ilhas que exploramos, criam ressonâncias que se propagam nas águas próximas. Num acon­tecimento raro, elas convergem ocasionalmente com as ressonâncias de nossas outras minas perto da Sibéria, no Chile e no Canadá. A energia se intensifica a um nível capaz de matar animais e seres humanos. Por lamentável que seja, eu não posso permitir que esses aberrantes efeitos colaterais venham a atrapalhar meu cronograma.

Mas você não entende? — perguntou Maeve em tom suplicante.

Não se importa com os animais marinhos e as centenas de pessoas que tanta ambição já matou? Quantos mais terão de morrer até que a sua loucura se dê por satisfeita?

Só vou parar depois de haver destruído o mercado do diamante - disse Dorsett friamente. Voltou-se para Boudicca. — Onde está o seu iate?

Mandei-o à ilha Kunghit depois de desembarcar em Honolulu e voltar para cá. Meu chefe de segurança, lá, informou que a Polícia Montada canadense está ficando desconfiada. Andaram sobrevoando a ilha, tirando fotografias e fazendo perguntas aos habitantes da região. Com sua autorização, eu gostaria de ir para lá. Os seus geofísicos estão prevendo uma nova convergência a aproximadamente quinhentos qui­lômetros a leste de Seattle. Preciso estar por perto a fim de remover os possíveis destroços e, assim, frustrar as investigações da Guarda Costeira norte-americana.

Pegue o jatinho da empresa e vá para lá o mais depressa possível.

Vocês sabem onde ocorrerão as próximas mortes? — perguntou Maeve, escandalizada. — Deviam alertar os navios, para que fiquem longe da região afetada!

Não é muito prática a idéia de deixar que o mundo descubra o nosso segredo — respondeu Boudicca. — Por outro lado, os cientistas de papai só podem fornecer estimativas grosseiras de onde e quando as ondas acústicas vão incidir.

Com os lábios levemente apertados, Maeve olhou para as irmãs.

Você tiveram uma excelente idéia ao colocar Deirdre no Polar Queen para me salvar a vida.

Boudicca deu uma gargalhada.

Você acredita nisso?

Foi o que ela me disse.

Eu menti para evitar que você informasse o pessoal da ANPS — disse Deirdre. — Desculpe, maninha, os engenheiros de papai come­teram um pequeno erro de cálculo quanto ao tempo. A praga acústica devia ter atingido o navio três horas antes.

Três horas antes... — murmurou Maeve ao compreender a terrível verdade. —- Eu estaria no navio!

E teria morrido com os outros — acrescentou Deirdre com ar decepcionado.

Vocês queriam que eu morresse! — gemeu Maeve com uma ex­pressão de desprezo e horror.

O pai a fitou como se estivesse examinando uma pedra retirada da mina.

Você deu as costas a suas irmãs e a mim. Para nós, já não existia. E continua não existindo.

 

Um hidroavião vermelho, com as palavras Transporte de Cargas Chinook pintadas em letras maiúsculas, balançava suavemente na água, junto a uma doca de reabastecimento, nas proximidades do aeroporto Shearwater, na Colúmbia Britânica. Um homem baixo, de cabelo cas­tanho e cara fechada, trajando um antiquado macacão de vôo de couro, segurava a mangueira de gasolina num dos tanques da asa. Olhando para baixo, examinou o homem que vinha caminhando calmamente no cais, uma mochila às costas e uma enorme mala preta na mão. Vestia jeans, blusão de esquiador e trazia na cabeça um chapéu de caubói. Quando o desconhecido parou junto ao avião e olhou para cima, o piloto fez um gesto na direção do chapéu de aba larga.

É um Stetson?

Não. Foi fabricado pela Manny Gammage, de Austin, Texas.

O estranho examinou o hidroavião e constatou que devia ter sido construído antes de 1970.

Um De Flavilland, não?

O piloto fez que sim.

De Havilland Beaver, um dos melhores aviões rurais já projetados.

Velho mas muito bom.

Fabricação canadense, 1967. Levanta mais de quatro toneladas em cem metros de água. Reverenciado como o burro de carga do norte. Há mais de cem ainda em atividade.

Já não se vêem grandes motores radiais.

Você é amigo de Ed Posey? — perguntou o piloto.

Sou — respondeu Pitt sem se apresentar.

Está ventando um pouco hoje.

A uns vinte nós, eu diria.

Você também pilota?

Tenho algumas horas de vôo.

Malcolm Stokes.

Dirk Pitt.

Quer dizer que está querendo ir para a baía de Black Water?

Pitt fez um gesto afirmativo.

Ed Posey me disse que lá eu encontraria um escultor de totens chamado Mason Broadmoor.

Eu o conheço. Sua aldeia fica na parte mais baixo da ilha Moresby, do outro lado do canal Houston Stewart para quem vem da ilha Kunghit.

Quanto tempo de vôo?

Uma hora e meia sobre o estreito de Hecade. Dá para chegar na hora do almoço.

Nada mau — sorriu Pitt.

Stokes apontou para a mala preta.

Que está levando aí, um trombone?

Um hidrofone. Serve para medir os sons debaixo da água.

Sem mais discussão, Stokes tapou o tanque de gasolina e voltou a enganchar a mangueira na bomba, enquanto Pitt levava seu equipa­mento a bordo. Depois de soltar as amarras e afastar o avião da doca, empurrando-o com o pé, Stokes entrou na cabina.

Importa-se de viajar na frente? — perguntou.

Pitt sorriu consigo mesmo. Não havia assentos para passageiros no compartimento de carga.

Não, tudo bem.

Pitt apertou o cinto de segurança no banco do co-piloto, enquanto Stokes ligava e aquecia o único e grande motor radial, ao mesmo tempo em que examinava os mostradores do painel. A maré vazante já tinha arrastado o aparelho a três metros da doca. Depois de verificar se não havia outros aviões ou barcos no canal, puxou o manche e decolou, inclinando o Beaver sobre a ilha Campbell e rumando para oeste. Ao subir, Pitt recordou o relatório que recebera de Hiram Yaeger ao partir de Washington.

As ilhas Rainha Charlotte eram compostas de cerca de cento e cin­qüenta ilhotas que se estendiam a cento e sessenta quilômetros, para o leste, paralelamente ao Canadá continental. A área total do arquipé­lago chegava a nove mil quinhentos e oitenta e quatro quilômetros quadrados. A população, de cinco mil, oitocentos e noventa habitantes, era constituída, em sua maior parte, de índios haidas, que invadiram as ilhas no século 18. Os haidas usavam os abundantes cedros-vermelhos para construir enormes canoas escavadas e habitações lacustres multi- familiares, sustentadas por maciças palafitas, e para esculpir maravi­lhosos totens, assim como máscaras, estojos e pratos. A economia se baseava na serraria, na pesca e na mineração do cobre, do carvão e do ferro. Em 1977, os pesquisadores a serviço da Dorsett Consolidated Mining Ltd. descobriram uma chaminé de kimberlito na ilha Kunghit, situada no extremo sul do arquipélago Rainha Charlotte. Ao perfurar uma escavação-teste, encontraram noventa e oito diamantes numa amostra de cinqüenta e dois quilos. Embora a ilha Kunghit fizesse parte do Parque da Reserva Nacional Moresby do Sul, o governo outorgou à Dorsett Consolidated uma concessão de exploração da ilha. Dorsett desencadeou, então, uma extensiva operação de escavação e fechou a ilha a todos os visitantes e turistas. Os corretores C. Dirgo & Co., de Nova York, estimaram que a mina podia produzir uns dois bilhões de dólares em diamante.

Os pensamentos de Pitt foram interrompidos por Stokes.

Agora que estamos longe de olhares curiosos, como posso saber se você é mesmo Dirk Pitt, da Agência Nacional de Pesquisas Suba­quáticas?

Você tem autoridade para perguntar?

Stokes tirou do bolso uma carteira de couro e a abriu. Pitti leu: "Real Polícia Montada do Canadá, Diretoria de Inteligência Criminal".

Quer dizer que estou falando com o inspetor Stokes?

Acertou.

Que quer que eu mostre, cartões de crédito, a licença de motorista, o crachá da ANPS ou meu cartão de doador de sangue?

Basta que responda a uma pergunta sobre um navio naufragado.

Que navio?

O Empress of Ireland.

Pitt afundou no banco e riu.

Era um transatlântico da Canadian & Pacific que afundou após uma colisão com um cargueiro de carvão, no rio São Lourenço, a alguns quilômetros do povoado de Rimouski, em 1914. Morreram mais de mil pessoas, muitas delas de um contingente do Exército da Salvação que estava a caminho da Inglaterra para uma convenção. O navio encon- tra-se a uns cinqüenta metros de profundidade. A ANPS o localizou em maio de 1989.

— Muito bem. Você deve ser quem diz que é.

A Polícia Montada? — quis saber Pitt. — Por quê? Posey não me falou em nenhuma investigação criminal.

A culpa não é dele. Sua solicitação para bisbilhotar a ilha Kunghit foi parar na minha mesa. Questão de rotina. Faço parte de uma equipe de cinco homens que há nove meses está de olho na mina de diamante Dorsett.

Algum motivo particular?

Imigração ilegal. Desconfiamos que a Dorsett leva chineses clan­destinamente à ilha para trabalhar na mina.

Por que chineses? Não podem contratar cidadãos canadenses?

Acreditamos que a Dorsett compra mão-de-obra dos sindicatos do crime e as emprega em regime de trabalho escravo. Imagine quanto não economiza em impostos, seguro, previdência e taxas sindicais.

Você é representante da lei canadense. Que o impede de entrar lá e examinar os documentos dos operários?

A Dorsett subornou um monte de burocratas e parlamentares para que protegessem suas atividades. Toda vez que tentamos inves­tigar, topamos com uma bateria de advogados caríssimos, que criam os maiores empecilhos legais. Sem provas documentais, a DIC está com as mãos amarradas.

De onde você tirou essa idéia maluca de me usar?

Sua chegada foi muito oportuna, senhor Pitt. Para a Polícia Mon­tada, ao menos.

Deixe-me adivinhar. Vocês querem que eu vá onde a Polícia Mon­tada não se atreve a ir, certo?

Bem, você é americano. Se for pego invadindo uma propriedade, o máximo que lhe pode acontecer é ser expulso do país. Conosco, seria um problema dos diabos. Minha equipe e eu temos de pensar em nossa aposentadoria, é claro.

Claro — disse Pitt com sarcasmo.

Terei muito prazer em satisfazê-lo se mudar de idéia e me mandar voltar ao aeroporto de Shearwater.

Por mais que eu prefira trocar meu destino por uma boa pesca num rio cheio de salmões, muita gente está morrendo no mar. Vim para cá a fim de descobrir até que ponto as atividades da Dorsett Con­solidated são responsáveis por isso.

Ouvi falar no navio atingido por uma praga acústica desconhecida — disse Stokes. — Parece que estamos atrás da mesma caça por dife­rentes motivos.

O importante é "cravar" Dorsett antes que morram mais inocentes.

Posso saber qual é o seu plano?

Nada complicado — respondeu Pitt. — Quero me infiltrar na mina, contratando Mason Broadmoor como guia. Se ele estiver de acordo.

Se eu o conheço bem, Mason não vai deixar escapar a oportuni­dade. O irmão dele estava pescando perto da ilha há um ano. Uma das lanchas da segurança da Dorsett Consolidated o mandou embora. Como a família pesca nessas águas há gerações, ele se recusou a obe­decer. Os caras o espancaram e incendiaram seu barco. Quando fomos investigar, a segurança da Dorsett alegou que o barco de Broadmoor explodira e eles o haviam salvado.

Era a palavra dele contra a de vinte.

Eram só oito, mas foi o que aconteceu.

Agora é a minha vez — disse Pitt com um sorriso. — Como vocês esperam que eu os ajude?

Stokes apontou pela janela para uma ilha coberta de florestas, com uma enorme cicatriz no centro.

A ilha Kunghit. Eles abriram uma pista de pouso para o transporte de homens e material. Vou fingir que estou com uma pane no motor, e nós aterrissamos. Enquanto eu conserto o aparelho, você distrai os vigilantes com suas histórias e aventuras submarinas.

Pitt olhou para Stokes com incredulidade.

Que acha que vai conseguir além de irritar os seguranças da Dorsett?

Tenho bons motivos para querer pousar lá. O primeiro é permitir que as câmeras embutidas nos flutuadores tirem fotografias de perto durante a aterrissagem e a decolagem.

Pois me parece que eles detestam visitantes inesperados. Que garantia você tem de que não vamos levar um tiro?

Segundo — disse Stokes —, meus superiores estão justamente esperando um acontecimento desses. Então, eles poderão entrar aqui e trancafiar aqueles bastardos.

Naturalmente.

Terceiro: temos um agente trabalhando na mina. Talvez ele consiga nos passar informações enquanto estivermos lá.

Você é cheio de planos diabólicos, não?

Na pior das hipóteses, se a coisa ficar mesmo preta, informarei o pessoal da segurança que sou da Polícia Montada antes que eles nos ofereçam um cigarro e ponham venda em nossos olhos. Não são idiotas a ponto de arriscar sofrer a invasão de um pequeno exército de tiras, que vai revistar tudo em busca do cadáver de um de seus melhores homens.

Por acaso você notificou seus superiores que vamos descer aqui?

Stokes se mostrou ofendido.

Qualquer desaparecimento sairá nos jornais vespertinos. Para que você não se preocupe, saiba que os executivos da Dorsett têm horror à publicidade negativa.

E quando é que vamos executar o maravilhoso plano da Polícia Montada?

Stokes apontou novamente para a ilha.

Vou começar a descer dentro de cinco minutos.

A Pitt não restava senão acomodar-se no banco e apreciar a paisagem. Lá embaixo, avistou o enorme cone vulcânico, com sua chaminé central de terra azul, que continha o diamante bruto. Uma espécie de gigantesca ponte de vigas de aço estendia-se sobre a abertura central, com uma infinidade de cabos que erguiam e faziam descer o entulho escavado. Ao chegar ao topo, os baldes se deslocavam horizontalmente, como teleféricos, por cima das galerias, até os prédios onde os diamantes eram extraídos da escória, a qual, então, era jogada em um monte enor­me, que cercava as escavações. Tal monte funcionava também como barreira artificial para dissuadir as pessoas de tentar entrar ou sair, uma realidade que a Pitt pareceu óbvia, a julgar pela total inexistência de entradas. Só havia uma, um túnel aberto para uma estrada que conduzia a um molhe numa pequena baía. Graças ao mapa, ele cons­tatou que a baía se chamava Porto Rose. Naquele momento, um rebo­cador, arrastando uma barcaça vazia, afastava-se do cais rumo ao con­tinente.

Uma série de edifícios pré-fabricados agrupados entre o monte e a galeria pareciam ser usados como escritórios e alojamento dos mineiros. O cercado, de uns dois quilômetros de diâmetro, acomodava também uma estreita pista de pouso com um hangar. Vista do ar, a mina parecia uma gigantesca cicatriz na paisagem.

É uma ferida enorme — comentou Pitt.

É nessa ferida, como você diz, que nascem os sonhos.

Stokes retirou a aceleração, privando o motor de combustível, até que o enorme Pratt & Whitney R-985, de quatrocentos e cinqüenta HP, começasse a falhar e a tossir. Não tardou para que se ouvisse uma voz, pelo rádio, instando-o a afastar-se da propriedade. Ele não lhe fez caso.

Estou com um bloqueio na injeção de combustível e preciso tomar emprestada a sua pista para um pouso de emergência. Desculpe o in­cômodo, mas não tenho outra saída. — E desligou o rádio.

Você não acha horrível aparecer sem ter sido convidado? — per­guntou Pitt.

Concentrado na aterrissagem, com o motor falhando, Stokes não respondeu. Baixou um par de pequenas rodas no eixo dianteiro dos dois grandes flutuadores e se alinhou com a pista. Um vento lateral colheu o avião, obrigando-o a corrigir a rota. Pitt ficou um pouco tenso ao notar que Stokes não tinha pleno controle do aparelho. O policial era razoavelmente competente, mas de modo algum um piloto habili­doso. O pouso foi brusco, cheio de solavancos.

Antes mesmo que parasse diante do hangar, o avião foi cercado por uns dez homens com fardas azuis de campanha e armados de fuzis de assalto M-16, modelo Bushmaster. Um sujeito alto e magro de trinta e poucos anos e com capacete de combate subiu num dos flutuadores e abriu a porta. Entrou no avião e foi diretamente para a cabine. Pitt notou que estava com a mão na pistola automática nove milímetros que levava no coldre.

Você estão invadindo propriedade privada — disse com voz ami­gável.

Desculpe — respondeu Stokes. — Mas o filtro de combustível entupiu. E a segunda vez este mês. E essa porcaria que andam vendendo como gasolina hoje em dia.

Quanto tempo vai demorar para consertar isso e dar o fora?

Vinte minutos no máximo.

Depressa, por favor — disse o segurança. — Vocês terão de per­manecer no avião.

Posso usar o banheiro? — perguntou Pitt educadamente.

O guarda o estudou um momento, depois fez que sim.

Fica ali no hangar. Um dos meus homens vai acompanhá-lo.

Não imagina quanto estou agradecido — disse Pitt com expressão de alívio.

Saltou do avião e, seguido de perto por um guarda, tomou o caminho do hangar. Uma vez no interior da estrutura de metal, voltou-se, como se estivesse esperando ansiosamente que o vigilante lhe mostrasse a porta do banheiro. Era um truque; ele já imaginava qual era a porta correta, mas aquilo lhe dava um breve instante para examinar o avião ali guardado. Um Gulfstream V, a mais moderna versão dos jatinhos comerciais, um aparelho imponente. Ao contrário do antigo e cobiçado Learjet, cujo interior mal tinha espaço para que as pessoas se virassem, o G V era espaçoso, oferecia aos passageiros cômodos movimentos e altura suficiente para um grandalhão ficar em pé. Capaz de uma ve­locidade de novecentos e vinte e quatro quilômetros por hora a uma altitude de pouco menos de onze mil metros, com autonomia de vôo de seis mil e trezentas milhas náuticas, a aeronave era impulsionada por um par de turbofans construído pela BMW e pela Rolls-Royce.

Dorsett não economizava em sua frota de transporte, pensou Pitt. Um avião daqueles custava mais de trinta e três milhões de dólares.

Estacionados em frente à porta principal do hangar, ameaçadores e sinistros com sua pintura azul e preta, encontravam-se dois helicópteros aparentemente robustos. Pitt os reconheceu como McDonnell Douglas 530 MD Defenders, um aparelho militar projetado para vôos silenciosos e alta estabilidade em manobras extraordinárias. Sob a fuselagem es­tavam instaladas duas metralhadoras 7.62 milímetros. Havia uma va­riedade de equipamentos de localização na parte de baixo da cabina, modelos blindados especialmente modificados para detectar contraban­distas de diamante ou quaisquer outros intrusos indesejáveis no terreno.

Ao sair do banheiro, foi levado a um escritório pelo guarda. O homem de terno, à escrivaninha, era baixo, magro, suave, frio e absolutamente satânico. Desviando a vista do monitor de um computador, examinou Pitt com impenetráveis olhos cinzentos. Este o achou antipático e re­pulsivo.

Sou John Merchant, chefe da segurança desta mina — disse com acentuado sotaque australiano. — Pode fazer o favor de me mostrar um documento?

Calado, Pitt lhe entregou a credencial da ANPS e ficou esperando.

Dirk Pitt — disse Merchant, mastigando as palavras. — Dirk Pitt... — repetiu. — Você não é o cara que encontrou o esconderijo de um imenso tesouro inca no deserto de Sonora há alguns anos?

Eu era um dos membros da equipe.

Por que veio a Kunghit?

É melhor perguntar ao piloto. Foi ele quem aterrissou em sua preciosa mina. Eu sou apenas o passageiro.

Malcolm Stokes é inspetor da Real Polícia Montada do Canadá. Também é membro da Diretoria de Investigação Criminal. — Merchant apontou para o computador. — A ficha dele eu já tenho. É você que me interessa.

Você está muito bem informado — disse Pitt. — Levando em conta os seus contatos tão íntimos com o governo canadense, prova­velmente já sabe que estou aqui para estudar os efeitos da poluição química na floresta de algas local e nas populações de peixes. Quer dar uma olhadela nos meus documentos?

Já tenho cópias.

Pitt se sentiu tentado a acreditar em Merchant, mas conhecia Posey o suficiente para confiar em sua discrição. Decidiu que o homenzinho antipático estava mentindo. Era um velho truque da Gestapo fazer a vítima pensar que o inquisidor sabia tudo quanto havia para saber.

Então para que se dá ao trabalho de me interrogar?

Para ver se você tem o hábito de fazer afirmações inexatas.

Sou suspeito de algum crime?

Meu trabalho consiste em detectar e prender os contrabandistas de diamantes antes que eles vendam as pedras na Europa ou no Oriente Médio. Como você apareceu aqui sem ser convidado, preciso avaliar os seus motivos.

Pitt observou o reflexo do guarda na vidraça de um armário de vidro. Estava atrás dele, à direita, a arma automática diante do peito.

Se você sabe quem sou e afirma ter uma documentação confiável sobre os motivos que me trouxeram às ilhas Rainha Charlotte, não é possível que me tome por um contrabandista de diamantes. — Pitt se levantou. — Gostei muito do bate-papo, mas não vejo por que continuar aqui.

Lamento, mas você ficará temporariamente detido — disse Mer­chant bruscamente.

Você não tem autoridade para me prender.

Como você invadiu propriedade particular sob falso pretexto, tenho o direito de cidadão de lhe dar voz de prisão.

Que droga, pensou Pitt. Se Merchant cavasse mais fundo e o vin­culasse às irmãs Dorsett e ao Polar Queen, mentira alguma, por criativa que fosse, seria capaz de explicar sua presença ali.

E Stokes? Já que você sabe que é da polícia, por que não me entrega a ele?

Prefiro entregá-lo aos superiores dele — disse Merchant com um sorriso quase alegre. — Mas só depois de ter investigado melhor o caso.

Pitt já tinha certeza de que dificilmente sairia vivo da mina.

Stokes tem liberdade para ir embora?

Assim que terminar o desnecessário conserto do avião. Eu me divirto observando suas tentativas primitivas de nos espionar.

Não preciso dizer que ele vai dar parte de minha prisão.

Uma conclusão óbvia — disse Merchant secamente.

Fora do hangar, ouviu-se o barulho de um motor de avião. Stokes estava sendo forçado a partir sem o passageiro. Pitt calculou que tinha menos de trinta segundos para agir. Vendo um cinzeiro na escrivaninha, com várias pontas de cigarro, concluiu que Merchant era fumante. E abriu os braços, num gesto de resignação.

Já que vou ficar detido contra a minha vontade, posso ao menos fumar um cigarrinho?

Claro que sim — disse Merchant, empurrando o cinzeiro. — Sou até capaz de acompanhá-lo.

Havia anos que Pitt deixara de fumar. Mesmo assim, fez um lento movimento, como que para tirar um maço de cigarros do bolso aberto da camisa. Cerrou o punho direito e o segurou com a mão esquerda. Então, com a rapidez de um raio, usando o impulso dos dois braços para aumentar a força do golpe, deu uma tremenda cotovelada no es­tômago do guarda. Ouviu-se um explosivo gemido de agonia, e o ho­mem se dobrou.

A reação de Merchant foi admiravelmente rápida. Sacou uma pe­quena pistola automática nove milímetros da cinta e, com um movi­mento bem treinado, empurrou a trava de segurança. Porém, antes que pudesse erguer e apontar a arma, deu com o cano do fuzil automático do guarda, agora nas mãos de Pitt, assestado para o seu nariz. Era como se estivesse olhando para um túnel sem luz no fim.

Devagar, colocou a pistola na mesa.

Isso só vai servir para piorar a sua situação — murmurou com ódio.

Pitt apanhou a pistola e a guardou no bolso do blusão.

Desculpe não ficar para o jantar. Não quero perder o avião.

E, saindo do escritório, atravessou correndo o hangar, jogou o fuzil numa lata de lixo, passou pela porta e, diminuindo a velocidade, passou trotando pelo grupo de guardas armados. Estes fitaram-no com des­confiança, mas imaginaram que o chefe o havia autorizado a sair. Nada fizeram para detê-lo quando Stokes apertou o acelerador, e o hidroavião começou a ganhar velocidade na pista. Pitt saltou sobre um flutuador, abriu a porta apesar da pressão do vento provocado pela hélice e se jogou no compartimento de carga.

Stokes ficou atônito ao vê-lo entrar na cabine c sentar-se no banco do co-piloto.

Santo Deus! De onde você saiu?

Pitt tomou fôlego.

O trânsito estava péssimo a caminho do aeroporto.

Eles me obrigaram a decolar sem você.

Que aconteceu a seu agente infiltrado?

Não apareceu. A vigilância ao redor do avião era muito rigorosa.

Você não vai gostar de saber que o chefe da segurança da Dorsett, um baixinho nojento chamado John Merchant, tem a sua ficha completa como policial e membro da DIC.

Lá se vai o meu disfarce de piloto — murmurou Stokes, recolo­cando o manche na posição normal.

Pitt empurrou a janela lateral, pôs a cabeça para fora e olhou para trás. Os guardas corriam de um lado para outro, como formigas en­louquecidas. Depois viu algo mais, que lhe provocou um nó no estô­mago.

Acho que eles ficaram zangados.

Você disse alguma coisa que não agradou?

Pitt fechou a janela.

Não. Bati num guarda e roubei a pistola do chefe da segurança.

Bem-feito!

É, mas eles vêm vindo atrás de nós com um daqueles helicópteros armados.

Eu os conheço — disse Stokes, alarmado. — São uns quarenta nós mais velozes do que esta lata velha. Vão nos alcançar muito antes que consigamos nos aproximar de Shearwater.

Não são loucos de nos abater diante de testemunhas — disse Pitt. — A que distância fica a comunidade habitada mais próxima na ilha Moresby?

É a aldeia de Mason Broadmoor. Fica na baía de Black Water, uns sessenta quilômetros ao norte daqui. Se conseguirmos chegar, posso pousar na água, no meio da frota de pesca do povoado.

Sentindo uma descarga de adrenalina, Pitt pousou em Stokes um olhar fuzilante.

Então vamos logo!

 

Pitt e Stokes não tardaram a compreender que, desde o começo, encontravam-se num beco sem saída. Não lhes restava senão decolar no rumo sul para, depois, descrevendo uma ampla curva de cento e oitenta graus, voltar para a ilha Moresby, no norte. O helicóptero McDonnell Douglas Defender, por sua vez, tripulado pelos seguranças da Dorsett, só precisou levantar vôo verticalmente diante do hangar e virar para o norte para já estar nos calcanhares do lento hidroavião. O velocímetro do Havilland Beaver estava marcando os cento e sessenta nós, porém Stokes sentiu-se a pilotar um planador quando cruzaram o estreito canal que separava as duas ilhas.

— Onde eles estão? — perguntou, sem tirar os olhos de uma série de colinas baixas, cobertas de cedros e pinheirais, bem à sua frente, e da água apenas cem metros abaixo.

A quinhentos metros de nossa cauda e aproximando-se rapida­mente — respondeu Pitt.

Só um?

Provavelmente acham tão fácil derrubar-nos que preferiram deixar o outro helicóptero lá mesmo.

É verdade. Com o peso extra dos flutuadores e a resistência do ar, não vamos muito longe.

Há alguma arma neste calhambeque? — quis saber Pitt.

É contra o regulamento.

Pena que não tenha trazido armas escondidas nos flutuadores.

Ao contrário dos seus emissários da paz americanos, que não vêem problema em levar um arsenal na bagagem, nós não costumamos brandir armas por aí, a menos que haja uma ameaça real.

Pitt olhou para ele com incredulidade.

E que nome você dá a esta situação?

Uma dificuldade imprevista — respondeu Stokes com estoicismo.

Neste caso, contra duas metralhadoras pesadas, só contamos com a pistola nove milímetros que eu roubei. Sabe que derrubei um heli­cóptero, há alguns anos, jogando uma balsa salva-vidas na hélice?

Stokes se voltou para mirá-lo, incapaz de acreditar em tanta calma.

Lamento, mas só temos coletes salva-vidas no compartimento de carga.

Eles estão se colocando a nosso estibordo para nos alvejar mais facilmente. Olhe, quando eu mandar, baixe completamente os flaps e desacelere.

Você está querendo que eu pare a esta altitude? Nunca mais vamos sair daqui!

Uma aterrissagem forçada nas copas das árvores é melhor do que um tiro na cabeça e o avião explodindo em chamas.

Eu não tinha pensado nisso.

Pitt observou atentamente quando o helicóptero azul e preto colo­cou-se paralelamente ao hidroavião e ali ficou, planando feito um gavião na caça de uma pombinha. Estava tão próximo que ele podia distinguir claramente a expressão do rosto do piloto e do co-piloto. Ambos sorriam. Pitt abriu a janela lateral, porém manteve a pistola escondida um pouco abaixo da borda inferior.

Nenhuma advertência pelo rádio? — perguntou Stokes. — Não vão exigir que retornemos à mina?

Esses caras jogam pesado. Não se atreveriam a matar um policial, a menos que tenham recebido ordens expressas de algum figurão da Dorsett Consolidated.

Será que eles acreditam que vão escapar impunemente?

Pois tenha certeza de que vão tentar — disse Pitt com calma, os olhos fitos no artilheiro. — Prepare-se.

Não estava otimista. Sua única vantagem, que não chegava a ser propriamente uma vantagem, era que o 530 MD Defender prestava-se mais a ataques em terra do que a combates aéreos.

Prendendo a coluna de controle entre os joelhos, Stokes segurou a alavanca dos flaps e, com a outra mão, a do acelerador. Chegou a se perguntar por que estava depositando tanta confiança naquele homem, que conhecia havia menos de duas horas. A resposta era simples. Em muitos anos de experiência na Polícia Montada, poucas vezes tinha visto alguém manter controle absoluto numa situação tão desesperadora.

Agora! — gritou Pitt, erguendo a pistola e começando a disparar.

O policial deslocou os flaps até a posição mais baixa e retirou toda a aceleração. Sem o impulso do motor e retido pela resistência do ar contra os enormes flutuadores, o velho Beaver diminuiu subitamente a velocidade, como se tivesse mergulhado numa nuvem de goma-ará- bica. Quase no mesmo instante, ouviram-se as rajadas de uma metra­lhadora e o impacto das balas numa das asas. Ouviram-se também os estampidos secos da pistola automática de Pitt. Não era um combate, pensou Stokes, tentando freneticamente manter no ar o avião quase parado, era um atacante colegial a enfrentar toda a linha de defesa do time de futebol Phoenix Cardinal. Então, de repente, por algum motivo inexplicável, o tiroteio cessou. Como o nariz do avião estivesse des­cendo, ele empurrou o acelerador novamente para a frente, a fim de obter um mínimo controle. Olhou de relance para os lados ao nivelar a aeronave e ganhar velocidade. O helicóptero tinha mudado de rumo. Seu co-piloto estava caído para o lado no assento, atrás de vários buracos de bala na bolha plástica da cabina. Stokes se surpreendeu ao descobrir que o Beaver continuava obedecendo os comandos. O que o surpreendeu ainda mais foi a expressão de Pitt. Era de pura decepção.

Droga! — resmungou. — Eu errei!

De que está falando? Você atingiu o co-piloto.

Com raiva de si mesmo, Pitt o encarou.

Eu tinha apontado para o rotor.

O seu timing foi perfeito! Como soube do instante exato para me dar o sinal e disparar?

Foi quando o piloto parou de sorrir.

Stokes preferiu calar-se. Não podiam se considerar a salvo. A aldeia de Broadmoor ainda estava a trinta quilômetros de distância.

Estão voltando — avisou Pitt.

É tolice tentar o mesmo truque.

Sem dúvida. O piloto já está contando com isso. Desta vez, você puxa a coluna de controle e eu trato de fazer o Immelmann.

Que é isso?

Pitt olhou para ele.

Não sabe? Pelo amor de Deus, há quanto tempo você pilota?

Tenho vinte e uma horas de vôo. É pegar ou largar.

Oh, que fantástico! — rosnou Pitt. — Pois trate de subir, como se fosse fazer meia acrobacia aérea, compreende? Meia cambalhota. Depois, quando estiver lá em cima, dê uma pirueta de modo a acabar no sentido oposto.

Não sei se vou conseguir.

Diga uma coisa, a Polícia Montada não tem pilotos profissionais qualificados?

Nenhum estava disponível para esta tarefa — respondeu Stokes com expressão tensa. — Acha que pode atingir alguma parte vital do helicóptero desta vez?

Só se a sorte me ajudar muito. Restam-me apenas três balas.

Não houve hesitação de parte do piloto do Defender, que se colocou em posição de ataque frontal, por cima e pelo flanco de sua desamparada presa. Uma arremetida bem planejada, que deixava a Stokes pouquís­sima margem de manobra.

Agora! — gritou Pitt. — Baixe o nariz para ganhar velocidade, depois suba e execute a acrobacia.

A inexperiência de Stokes o fez hesitar. Mal chegara ao ponto mais alto da cambalhota, para girar sobre seu próprio eixo, quando os pro­jéteis de 7.65 milímetros começaram a perfurar a fina pele de alumínio do hidroavião. O pára-brisa se esmigalhou em mil fragmentos quando as balas atingiram o painel de controle. O piloto do helicóptero alterou seu alvo, desviando o fogo da cabina para a fuselagem. Um erro que manteve o Beaver no ar. Ele devia ter-lhe destruído o motor.

Pitt disparou os três tiros que lhe restavam e, inclinando-se para a frente, tratou de agachar-se, na esperança de se tornar um alvo menor.

Ainda que tarde, Stokes conseguiu realizar a incrível proeza de com­pletar o Immelmann, afastando-se do helicóptero bem antes que o piloto conseguisse dar o giro de cento e oitenta graus. Pitt sacudiu a cabeça com assombro e se pôs a apalpar o corpo em busca de feridas. Fora os arranhões e os pequenos cortes provocados pelos cacos do pára-brisa, estava ileso. O hidroavião voava em linha reta, e o motor radial con­tinuava funcionando perfeitamente, em potência máxima. Era a única parte do aparelho que não fora atingida pelas balas. Ele olhou para o canadense.

Você está bem?

Stokes se voltou lentamente, pousando nele uns olhos vidrados.

Acho que os filhos da puta arruinaram a minha aposentadoria — murmurou. Começou a tossir, seus lábios se tingiram do sangue, que lhe escorreu pelo queixo e foi gotejar em seu peito. E ele tombou, inconsciente.

Pitt tomou imediatamente o manche do co-piloto e descreveu uma nova curva de cento e oitenta graus, retomando o curso do povoado de Mason Broadmoor. A manobra colheu de surpresa o piloto do he­licóptero, e uma chuva de balas se perdeu no ar, atrás da cauda do hidroavião. Pitt limpou o sangue que lhe escorria do supercílio e pro­curou avaliar os danos. A aeronave contava mais de cem perfurações, mas o sistema de controle permanecia intacto. O enorme motor 450 Wasp seguia funcionando plenamente.

Que fazer agora?

O primeiro plano que lhe ocorreu foi o de tentar arremeter contra o helicóptero. A velha tática de morrer mas levá-los junto, pensou. Contudo, não passaria de uma tentativa. O Defender era muito mais ágil no ar do que o trôpego Beaver e seus pesados flutuadores. Trata­va-se de uma reprodução da luta ancestral entre o mangusto e a naja, uma guerra que o mangusto nunca deixava de vencer contra a serpente mais lenta. Só a cascavel o derrotava.

A idéia maluca que lhe passou pela mente transformou-se numa inspiração divina quando avistou uma baixa cadeia de rochedos cerca de quinhentos metros à frente, um pouco à direita. Havia uma passagem entre as rochas, em meio a uma floresta de abetos-do-canadá. Roçando as asas na ponta dos galhos mais altos, ele mergulhou entre as árvores. Qualquer um veria naquilo um ato de loucura suicida. E, de fato, o gambito desorientou o piloto do Defender, que interrompeu o terceiro ataque, limitando-se a seguir o hidroavião de cima e por trás, aguar­dando para assistir ao que parecia ser um desastre inevitável.

Mantendo a aceleração máxima e segurando o manche com ambas as mãos, Pitt olhou fixamente para a muralha de rochas a sua frente. Com a forte corrente de ar entrando pelo pára-brisa quebrado, foi ob­rigado a virar o rosto de lado para enxergar. Felizmente, o vento secou o sangue que lhe escorria do supercílio e as lágrimas que embaciavam seus olhos semicerrados. Continuou passando entre as árvores. Não podia falhar agora, não podia cometer o menor erro de cálculo. Tinha de fazer a coisa certa no momento certo. Um décimo de segundo a mais ou a menos significaria a morte.

Como que empurradas por trás, as rochas avançavam rapidamente ao encontro do avião. Pitt as podia ver claramente agora, enormes, denteadas e cinzentas com estrias pretas. Não precisou olhar para a agulha do altímetro, que marcava o zero, nem para o tacômetro já no vermelho. A velha aeronave estava se precipitando rumo à destruição a toda velocidade.

Mais baixo! — gritou contra o vento que entrava com violência pela abertura do pára-brisa. — A dois metros!

Mal teve tempo de compensar no momento em que os penhascos iam esmagá-lo. Deu um calculado puxão no manche, apenas o suficiente para erguer o nariz do avião, só o bastante para que as pontas da hélice não roçassem o topo dos rochedos. Uma questão de centímetros. Ouviu o súbito ruído do metal rasgado quando os flutuadores de alumínio se chocaram contra as pedras, desprendendo-se da fuselagem. O Beaver riscou o ar com a graça de um falcão a planar livre das correntes que o prendiam. Aliviado do peso dos volumosos flutuadores, que ficaram esmagados nas rochas, e com a resistência do ar reduzida quase à metade, o antigo aparelho se tornou mais manobrável e rápido, com uns trinta nós suplementares de velocidade. E obedeceu instantaneamente os comandos de Pitt, sem dar sinais de avaria ao devorar o ar em busca de altitude.

Agora, pensou ele com um riso satânico nos lábios, eu vou lhes mostrar o que é um Immelmann. E, levando o avião a meia acrobacia, deu meia pirueta, investindo diretamente contra o helicóptero.

Qual é o seu último desejo, garotão? — gritou contra a ventania e o barulho do motor. — Lá vai o Barão Vermelho!

O piloto do Defender compreendeu tarde demais a intenção de Pitt. Não havia como esquivar-se, não tinha onde esconder-se. A última coisa que podia esperar era um ataque do maltratado hidroavião. Mas lá estava ele, em rota de colisão, a quase duzentos nós! Avançava, rugindo, a uma velocidade simplesmente inacreditável. Chegou a recorrer a uma série de violentas manobras, porém o piloto do velho Beaver antecipou-lhe os movimentos e continuou arremetendo. Ele voltou o nariz do helicóptero para o adversário, na furiosa tentativa de derrubá-lo a tiros antes do choque iminente.

Pitt viu o Defender colocar-se de frente, viu o brilho dos disparos, ouviu o impacto dos projéteis no gigantesco motor radial. O óleo co­meçou a jorrar subitamente do capô, escorrendo pelos exaustores e pro­vocando uma densa esteira de fumaça azul atrás do avião. Ergueu a mão para se escudar do óleo quente com que o vento lhe borrifava o rosto.

A imagem que reteve na memória um milésimo de segundo antes do impacto foi a do riso de resignação estampado na face do piloto do helicóptero.

A hélice e o motor do hidroavião chocaíam-se com a cauda do he­licóptero, bem atrás da cabina, numa explosão de metal e escombros que lhe destroçou o rotor traseiro. Privado de sua compensação de torque, o corpo do Defender foi violentamente jogado para o lado e se pôs a girar descontroladamente, para logo precipitar-se feito uma pedra nos quinhentos metros que o separavam do solo. A diferença dos efeitos especiais das quedas em filmes de ação, ele não se incendiou imedia­tamente ao se transformar numa irreconhecível massa de escombros fundidos. Passaram-se quase dois minutos até que as chamas o envolvessem e engolissem.

Os pedaços da hélice estilhaçada do Beaver se espalharam no ar como fogo de artifício. Arrojado do avião, o capô foi cair na floresta como um pássaro ferido. O motor parou, como se Pitt o tivesse desli­gado. Limpando o óleo dos olhos, tudo o que ele pôde ver por cima dos cabeçotes expostos foi o tapete das copas das árvores. Perdendo velocidade, o avião quase parou quando Pitt se encolheu, à espera do impacto. Como os controles ainda estivessem funcionando, tentou planar sobre os ramos mais altos. Quase conseguiu. Mas a extremidade da asa direita colidiu com um cedro-vermelho de setenta metros, im­pondo à aeronave uma abrupta guinada de noventa graus. Totalmente fora de controle, o hidroavião mergulhou na massa compacta de árvores. Sua asa esquerda enroscou em outro altíssimo cedro e se partiu. Os verdes pinheiros se fecharam sobre ele, ocultando-o totalmente de quem olhasse do ar. Surgiu a sua frente o tronco de um abeto de meio metro de largura. O eixo da hélice colidiu de frente com a árvore, atravessando-a. O motor do avião foi arrancado quando a metade superior do tronco tombou sobre o aparelho, destroçando-lhe parte da cauda. O que restava do aparelho mergulhou no húmus úmido do chão da floresta e finalmente parou.

Nos minutos seguintes, o silêncio foi completo. Pitt continuou sen­tado, atordoado demais para se mover. Depois, olhou estonteado pela abertura que outrora fora o pára-brisa. Notou que o motor desaparecera e se perguntou vagamente onde tinha ido parar. Por fim, voltando a si, estendeu a mão para examinar Stokes. Este estremeceu num acesso de tosse, depois sacudiu debilmente a cabeça e começou a recuperar a consciência. Olhou, estonteado, por cima do painel, para os galhos de pinheiro que entravam na cabine.

Como foi que descemos na floresta? — balbuciou.

Você dormiu durante a melhor parte — murmurou Pitt, massageando-lhe delicadamente as escoriações.

Não precisava ter estudado oito anos de medicina para saber que Stokes morreria se não fosse levado a um hospital. Abrindo rapidamente o zíper do velho macacão de vôo, rasgou a camisa do policial e procurou o ferimento. Achou-o à esquerda do esterno, abaixo do ombro. Havia pouco sangue e o orifício era tão pequeno que foi difícil localizá-lo. Não era uma perfuração de bala. Apalpando-a com cuidado, Pitt sentiu um pontiagudo pedaço de metal. Intrigado, olhou para a moldura que antes prendia o pára-brisa. Estava irreconhecivelmente retorcida. O im­pacto de um projétil lançara um estilhaço de alumínio no peito de Stokes, trespassando-lhe o pulmão esquerdo. Por um centímetro não lhe atingiu o coração.

Stokes voltou a tossir e cuspiu o sangue.

Engraçado — murmurou —, sempre imaginei que levaria um tiro numa estrada ou num beco escuro.

Não teve essa sorte.

É muito grave?

Você está com um fragmento de metal no pulmão. Dói muito?

Está latejando um pouco.

Pitt se levantou com dificuldade e se colocou atrás do canadense.

Agüente firme, vou tirá-lo daí.

Dez minutos depois, tinha arrombado a pontapés a amassada porta de entrada e arrastado cuidadosamente o peso morto de Stokes para fora, onde o deitou com delicadeza no solo macio. Custou-lhe muito esforço, e ele estava ofegante quando se sentou ao lado do policial para tomar fôlego. O rosto deste se contraiu várias vezes de dor, mas ele não se queixou; só deixava escapar um ou outro gemido. Já prestes a perder a consciência, fechou os olhos.

Pitt o sacudiu.

Não vá desmaiar, compadre. Você precisa mostrar-me o caminho da aldeia de Mason Broadmoor.

Stokes abriu lentamente os olhos e fitou Pitt com curiosidade, como se estivesse lembrando alguma coisa.

O helicóptero da Dorsett... — disse, tossindo. — Que aconteceu com os filhos da puta que estavam atirando em nós?

Pitt olhou para a fumaça que subia ao longe na floresta e sorriu.

Viraram carne assada.

 

Pitt tinha imaginado que fosse chapinhar na neve de janeiro na ilha Kunghit, mas encontrou poucas manchas brancas no chão. A da última precipitação já tinha derretido. Ia arrastando Stokes num travois, uma espécie de maca utilizada pelos índios americanos. Não podia deixá-lo onde estava; carregá-lo nas costas, por outro lado, arriscava provocar-lhe hemorragia interna. Servindo-se de dois galhos e das cordas que retirou dos escombros do avião, construiu uma plataforma no centro da qual amarrou o policial. Depois, atou algumas tiras de couro a uma extre­midade, prendeu-as nos ombros e começou a arrastá-lo pela floresta. As horas se passaram, o sol se pôs, a noite caiu, e ele continuou avan­çando na escuridão, orientando-se com a bússola que tirara do painel do avião, expediente de que havia lançado mão anos antes, numa tra­vessia do deserto do Saara.

De vez em quando perguntava a Stokes:

Ainda está acordado?

Mais ou menos — respondia o canadense com voz débil.

Estou vendo um córrego raso que vai para o oeste.

Deve ser o riacho Wolf. Atravesse-o e vá para noroeste.

— A aldeia está muito longe?

Stokes respondeu com um rouco murmúrio:

A dois, talvez três quilômetros.

Continue conversando comigo, ouviu?

— Você está parecendo a minha mulher.

É casado?

Sou, há dez anos, com uma moça maravilhosa, que me deu cinco filhos.

Pitt ajustou as tiras, que lhe estavam machucando os ombros, e, arrastando o policial, atravessou o riacho. Avançou mais um quilômetro na floresta e chegou a uma trilha que seguia na direção que ele escolhera. Embora se estreitasse em alguns pontos, oferecia-lhe passagem relati­vamente livre, o que era uma verdadeira bênção depois de tanto tempo a abrir caminho na floresta cheia de espinheiros.

Em duas ocasiões pensou que tinha se perdido. Porém, insistindo em marchar vários metros na mesma direção, constatou que estava no rumo certo. Malgrado a temperatura glacial, o esforço o fazia suar. Não se atreveu a parar e descansar. Se quisesse que Stokes tornasse a ver a mulher e os cinco filhos, precisava seguir adiante. Fez questão de manter uma conversa unilateral com o policial ferido, tentando desesperadamente impedi-lo de entrar em coma devido ao choque. Concen­trado na marcha, não se deu conta de nada estranho.

Stokes murmurou alguma coisa, mas Pitt não conseguiu entendê-lo. Voltando-se, aproximou o rosto e se deteve.

Está querendo que eu pare? — perguntou.

A voz de Stokes era apenas um sussurro:

Sente o cheiro...?

Que cheiro?

Fumaça.

Então Pitt notou também. Respirou fundo. De algum lugar pouco adiante vinha um cheiro bom de lenha queimada. Ele estava fatigado, incrivelmente fatigado, mas, inclinando o corpo para a frente e sentindo a pressão das tiras de couro, seguiu com passos trôpegos. Não tardou a ouvir o barulho de um pequeno motor a gasolina, uma serra a cortar a madeira. O cheiro se tornou mais forte, e ele avistou a fumaça a espiralar acima da copa das árvores à luz fugidia do amanhecer. Ainda que com o coração disparado devido ao alquebramento, não podia de­sistir agora, que estava tão perto de seu destino.

O sol surgiu, mas permaneceu encoberto pelas nuvens cinzentas. Estava garoando quando ele chegou a uma clareira à beira-mar, que se abria num pequeno porto. Ali havia um aglomerado de casas de madeira com teto de folha corrugada. A fumaça subia das chaminés de pedra. Em diferentes partes do povoado, viam-se altos totens que representavam uma sucessão de caras humanas e de animais, umas acima das outras. Uma pequena frota de barcos de pesca oscilava man­samente junto a um molhe flutuante, as tripulações a trabalhar nos motores ou a consertar as redes. Várias crianças agrupadas numa espécie de cabana sem paredes estavam observando um homem que, com uma motosserra, esculpia um imenso tronco. Duas mulheres conversavam, estendendo a roupa no varal. Uma delas o viu, apontou para ele e começou a gritar para os demais.

Vencido pela exaustão, Pitt caiu de joelhos, enquanto umas doze pessoas corriam a acudi-lo. Um homem de cabelo preto, comprido, muito liso, e rosto redondo ajoelhou-se a seu lado e pôs o braço em seus ombros.

Tudo bem agora — disse, preocupado. Fez um sinal a três outros, que se haviam aproximado de Stokes, e lhes deu uma ordem. — Levem-no à casa tribal.

Pitt olhou para o homem.

Por acaso você é Mason Broadmoor?

Eu mesmo.

Rapaz, não imagina como estou contente por vê-lo! — E deixou tombar o corpo exausto no chão macio.

O riso nervoso de uma menininha despertou Pitt. Fatigado como estava, dormira apenas algumas horas. Abrindo os olhos, ficou um momento olhando para ela, sorriu-lhe e os fechou novamente. A garota saiu correndo, gritando pela mãe.

Ele estava numa sala aconchegante e aquecida, estendido numa cama feita de pele de urso e de lobo. Sorriu ao se lembrar de Broadmoor, no meio de um povoado indígena isolado, com pouquíssimas conve­niências modernas, usando seu telefone via satélite para chamar uma ambulância que levasse Stokes a um hospital do continente.

Pitt usara o aparelho para falar com a Polícia Montada de Shearwater. Bastou-lhe mencionar o nome de Stokes para que o pusessem em contato com um tal inspetor Pendleton, que o interrogou sobre todos os detalhes do incidente iniciado na manhã anterior. Pitt terminou seu relatório, indicando ao inspetor o lugar onde perdera os flutuadores, para que a polícia tentasse recuperar as câmeras dentro deles, caso tivessem re­sistido ao impacto.

Um hidroavião chegou antes que ele houvesse terminado de tomar a tigela de sopa de peixe que a esposa de Broadmoor lhe ofereceu. Um médico acompanhado de dois enfermeiros examinou Stokes e garantiu que ele tinha boas chances de sobreviver. Só quando o aparelho decolou rumo ao hospital mais próximo, no continente, Pitt aceitou agradecido a cama da família Broadmoor e dormiu pesadamente.

A mulher veio da sala de estar. Calma e graciosa, corpulenta mas ágil, Irma Broadmoor tinha lindos olhos pretos e um doce sorriso nos lábios.

Como está se sentindo, senhor Pitt? Imaginei que só fosse acordar daqui a pelo menos três horas.

Antes de empurrar as cobertas e pôr os pés descalços no chão, Pitt apalpou o corpo, verificando se ainda estava vestido.

Desculpe ter roubado a sua cama.

Ela riu seu riso leve e musical.

É pouco mais de meio-dia, e você só se deitou às oito horas.

Agradeço muito a sua hospitalidade.

Você deve estar com fome. Aquela sopinha era muito pouco para um homem do seu tamanho. Que quer comer?

Uma lata de feijão seria ótimo.

Isso de que as pessoas, nas florestas do norte, comem feijão en­latado à roda da fogueira é pura invenção. Vou preparar um salmão grelhado. Gosta de salmão?

Gosto muito.

Enquanto espera, vá conversar com Mason. Está trabalhando lá fora.

Pitt calçou as meias e as botas, passou as mãos no cabelo e foi en­frentar o mundo. Encontrou Broadmoor na cabana sem paredes, cinzelando um tronco de cedro-vermelho de cinco metros de comprimento, que jazia sobre quatro pesados cavaletes. Trabalhava com um macete redondo de madeira, em forma de sino, e um cinzel côncavo chamado goiva de leque. A escultura estava no começo, e era difícil visualizar o produto acabado. As caras dos animais ainda se encontravam em estado bruto.

Broadmoor ergueu a vista quando Pitt se aproximou.

Descansou bem?

Eu não sabia que a pele de urso era tão macia.

O índio sorriu.

Não conte para ninguém. Do contrário, estarão extintos em menos de um ano.

Ed Posey me contou que você esculpe totens. Nunca vi ninguém fazendo esse trabalho.

Minha família o faz há gerações. Os totens surgiram porque os índios primitivos do noroeste não conheciam a escrita. As histórias das famílias e as lendas eram preservadas mediante símbolos, geralmente animais, esculpidos em cedro-vermelho.

Não têm um significado religioso?

Broadmoor sacudiu a cabeça.

Nunca foram adorados como ícones de deuses. Eram simples­mente respeitados como espíritos protetores.

Que símbolos são esses no tronco?

É um tronco mortuário, ou o que vocês poderiam chamar de obelisco. Um totem em homenagem a meu tio, que faleceu na semana passada. Quando eu terminar, a escultura ilustrará seus emblemas pes­soais, que eram a águia e o urso, e também um retrato tradicional haida do falecido. Depois, haverá uma festa, e o totem será erigido junto à casa da viúva.

Sendo um escultor famoso, você deve ser contratado com muitos meses de antecedência.

Broadmoor deu de ombros com modéstia.

Quase dois anos.

Sabe por que estou aqui? — perguntou Pitt, e a súbita interrogação colheu o índio com o macete erguido, pronto para bater na goiva.

Abandonando as ferramentas, ele fez um gesto para que o americano o acompanhasse até o porto, onde pararam ao lado de um alpendre para guardar barcos que se estendia até a água. Abriu as portas e entrou. Duas pequenas lanchas flutuavam num molhe em forma de U.

Caramba! Você pratica esqui-aquático?

Broadmoor se limitou a sorrir.

Pitt examinou os dois velozes Duo 300 Wetjets fabricados pela Mastereraft Boats. As moderníssimas lanchas, com lugares para duas pes­soas, estavam pintadas em cores vivas, com os símbolos animais haidas.

Parecem que até conseguem voar.

Na água voam. Eu envenenei os motores. Chegam a quase cin­qüenta nós. — Broadmoor mudou subitamente de assunto. — Ed Posey disse que você queria rondar a ilha Kunghit com um equipamento de medição acústica. Achei que estas lanchas seriam adequadas ao seu projeto.

Seriam mesmo. Infelizmente meu hidrofone ficou muito avariado quando o avião caiu. Agora só me resta dar uma olhadela na própria mina.

Que espera descobrir?

O método de escavação que estão empregando para procurar o diamante.

Broadmoor apanhou um seixo e o atirou longe, no verde-escuro da água.

A empresa tem uma pequena frota de barcos patrulhando os arredores da ilha — disse por fim. — Andam armados e costumam atacar os pescadores que se aproximam muito.

Parece que os funcionários do governo do Canadá não me con­taram tudo de que eu precisava saber — resmungou Pitt, com raiva de Posey.

Devem ter pensado que, como tinha licença para uma pesquisa de campo, você não seria molestado pelos seguranças da mina.

E seu irmão? Stokes me contou que o atacaram e lhe incendiaram o barco.

O índio apontou para o totem parcialmente esculpido.

Contou-lhe também que mataram meu tio?

Pitt sacudiu a cabeça lentamente.

Não. Eu lamento.

Encontrei o corpo boiando no mar, a oito quilômetros. Ele se amarrou a umas latas de gasolina. Mas a água estava muito fria, não resistiu. De seu barco, só achamos uma parte da casa do leme.

Tem certeza de que foi o pessoal da Dorsett que o matou?

Tenho — respondeu Broadmoor com ódio no olhar.

E a polícia?

O outro sacudiu a cabeça.

O inspetor Stokes representa uma força policial apenas simbólica. Depois de encontrar uma grande jazida de diamante em Kunghit, Arthur Dorsett usou seu poder e sua riqueza para tirar, literalmente, a ilha das mãos do governo. Pouco importa que, para os haidas, ela seja território tribal sagrado. Atualmente, o meu povo está proibido de pôr os pés lá sem autorização. Sequer podem pescar a menos de quatro quilômetros de suas praias. Arriscamo-nos a ser presos pela Polícia Montada, que é paga para nos proteger.

Agora entendo por que o chefe da segurança da mina faz tão pouco-caso da lei...

— Merchant, "John Delicadeza", como o apelidaram — disse Broad­moor com desprezo. — Você teve muita sorte de escapar. Podia ter simplesmente desaparecido. Muitos já tentaram procurar diamantes nas proximidades da ilha. Nenhum deles voltou a ser visto.

Os haidas se beneficiaram da riqueza do diamante? — perguntou Pitt.

Até agora nos deixaram de fora — respondeu Broadmoor. — Se vamos receber alguma renda, tornou-se um problema mais legal do que político. Passamos anos negociando, na tentativa de receber uma parte dos rendimentos, mas os advogados de Dorsett nos venceram na Justiça.

Não posso acreditar que o governo canadense receba ordens de Arthur Dorsett.

— A economia do país vai mal, e os políticos fecham os olhos para o suborno e a corrupção quando vêem a possibilidade de levar dinheiro ao Tesouro. — Calou-se e fitou Pitt nos olhos, como se estivesse tentando ler alguma coisa. — Qual é o seu interesse, senhor Pitt? Está querendo fechar a mina?

Pitt fez que sim.

Estou, desde que consiga provar que suas escavações estão pro­vocando uma praga acústica responsável pela morte em massa de seres humanos e animais marinhos.

O índio o encarou.

Eu vou levá-lo à mina.

Pitt avaliou rapidamente a oferta.

Você tem esposa e filhos. E absurdo arriscar duas vidas. Deixe-me na ilha, e eu arranjo um modo de entrar na mina sem ser visto.

Impossível. O sistema de segurança, lá, é muito sofisticado. Nem mesmo um esquilo consegue passar. Basta ver seus corpinhos espalha­dos no monte que rodeia a mina, assim como os de outros animais que habitavam a ilha antes que as atividades de Dorsett acabasse com o belo meio ambiente dali. E há também os cães policiais alsacianos, que conseguem farejar a centenas de metros um ladrão de diamantes.

Mas há o túnel.

Você não consegue atravessá-lo sozinho.

Pior seria se sua esposa também enviuvasse.

Você não entende — disse Broadmoor pacientemente; seus olhos fuzilavam de raiva. — A mina paga para que minha comunidade lhe forneça peixe fresco. Uma vez por semana, meus vizinhos e eu vamos a Kunghit entregar o produto de nossa pesca. No cais, carregamos o peixe em carroças e o levamos ao escritório do cozinheiro-chefe, pas­sando pelo túnel. Ele nos serve o café da manhã, paga-nos em dinheiro, muito menos do que realmente vale a pesca, e depois vamos embora. Você tem cabelo preto. Pode passar por um haida se puser roupa de pescador e mantiver a cabeça baixa. Os guardas estão mais preocupados com o diamante contrabandeado para fora da mina do que com o peixe levado para dentro. Como só entregamos e nada retiramos, não somos suspeitos.

Não oferecem trabalho bem pago ao seu povo na mina?

Broadmoor deu de ombros.

Esquecer como se caça e se pesca é esquecer a própria indepen­dência. O que ganhamos vendendo-lhes peixe é para construir uma nova escola para os nossos filhos.

Há um probleminha. John Delicadeza Merchant. Nós nos conhe­cemos, e um não foi com a cara do outro. Ele me viu bem.

Broadmoor fez um gesto de pouco-caso.

Que Merchant o reconheça não é problema. Ele jamais sujaria seus caríssimos sapatos italianos no túnel ou na cozinha. Com este tempo, raramente sai do escritório.

Não vou obter muita informação dos ajudantes de cozinha — disse Pitt. — Você conhece algum mineiro confiável que descreva os métodos de escavação?

Todos os empregados da mina são chineses trazidos ilegalmente pelos sindicatos do crime. Nenhum deles fala inglês. Sua melhor espe­rança é um velho engenheiro de minas, que odeia a Dorsett Consoli­dated.

Você consegue entrar em contato com ele?

Não sei sequer como se chama. Trabalha no turno noturno e geralmente toma o café da manhã à hora em que entregamos o peixe. Conversamos algumas vezes. Está contrariado com as condições de trabalho. Contou que, no ano passado, mais de vinte chineses morreram na mina.

Se eu ficar dez minutos a sós com ele, pode ser que seja de grande ajuda para solucionar o enigma acústico.

Não posso garantir que estará lá quando formos.

Vou arriscar — disse Pitt. — Quando vão entregar a próxima pesca?

— Os últimos barcos de nossa frota devem estar chegando daqui a algumas horas. Vamos congelar e encaixotar o peixe esta noite. Devemos estar prontos para ir à ilha Kunghit ao amanhecer.

Pitt se perguntou se estava em condições físicas e mentais de arriscar a vida novamente. Depois, lembrando-se das centenas de mortos que vira no navio, não teve a menor dúvida quanto ao que devia fazer.

 

Seis pequenos barcos de pesca, pintados com uma profusão de cores vivas, rumaram para o porto Rosa, os conveses carregados de caixotes cheios de peixes embalados em gelo. Os motores diesel soltaram estalidos abafados quando os hélices começaram a funcionar. Uma neblina baixa cobria a água, acinzentando-lhe o verde. O sol era um semicírculo no horizonte oriental, e o vento soprava a menos de cinco nós. As ondas não apresentavam cristas brancas; a espuma vinha do movimento dos hélices à popa das embarcações que avançavam no mar sereno.

Broadmoor se aproximou de Pitt, que estava sentado na proa, ob­servando o mergulhar e o planar das gaivotas sobre a esteira do barco em busca de alimento fácil.

— Está na hora de representar o seu papel.

Pitt concordou com um gesto e fingiu esculpir o nariz da máscara inacabada que o haida lhe havia emprestado. Usava uma calça imper­meável amarela, os suspensórios por cima do pesado suéter tricotado por Irma Broadmoor. Levava um gorro afundado até as grossas e negras sobrancelhas. Como os índios eram quase imberbes, tinha se escanhoado com cuidado. Sem erguer a vista, continuou raspando na máscara o lado sem corte da faca, ao mesmo tempo em que olhava de través para a longa doca que, longe de ser um pequeno molhe, era um verdadeiro cais para navios de grande calado, com pilares submersos, e que se tornou ainda maior quando os barcos entraram. A um lado, um alto guindaste sobre trilhos descarregava equipamento pesado de um navio. Ali estava ancorado também um iate enorme, com linhas excepcional­mente delicadas e uma superestrutura de forma globular, diferente das embarcações de luxo que Pitt conhecia. O moderníssimo casco duplo de fibra de vidro tinha sido projetado para alta velocidade e muito conforto. Tudo indicava que era capaz de singrar os mares a mais de oitenta nós. A julgar pela descrição de Giordino, devia ser o barco "da era espacial" visto afastando-se do cargueiro Mentawai. Pitt procurou o nome e o porto, normalmente pintados no costado, mas nenhuma marca estorvava a beleza do casco azul. A maioria dos proprietários se orgulhavam do nome de seu barco, pensou, assim como do porto de registro. Mas não era difícil imaginar por que Arthur Dorsett preferia não fazer publicidade daquele iate.

Com o interesse excitado, Pitt olhou diretamente para as janelas, com as cortinas fechadas. O convés parecia deserto. Não se viam tri­pulantes nem passageiros àquela hora da manhã. Ele estava a ponto de desviar a atenção do iate e concentrá-la nos seis ou sete guardas parados no cais quando uma porta se abriu e uma mulher saiu ao convés. Era impressionante, alta como uma amazona e belíssima. Sa­cudindo a cabeça, afastou do rosto os longos cabelos avermelhados. Usava um robe curto e parecia ter acabado de sair da cama. Seus seios firmes, totalmente cobertos pela roupa, pareciam algo desproporcionais. Pitt reparou em sua aparência feroz e indomável, temível como uma tigresa a vigiar os seus domínios. Depois de percorrer a pequena frota de pesca, o olhar felino deteve-se em Pitt, que a encarava abertamente. Normalmente, ele teria se levantado, tirado o gorro e inclinado o corpo numa saudação. Porém, obrigado a representar o papel de índio, limitou-se a olhar para ela, sem mudar de expressão, e balançar a cabeça num cumprimento respeitoso. A bela moça virou o rosto, dispensando-o como se não passasse de mais uma árvore na floresta; nesse instante, um comissário fardado se aproximou dela com uma xícara de café numa bandeja de prata. Estremecendo no frio do amanhecer, ela tratou de voltar ao salão principal.

Que mulher imponente, hein? — sorriu Broadmoor ao ver o olhar embasbacado de Pitt.

Tenho de reconhecer que é bem diferente de todas as que conheço.

Boudicca Dorsett, uma das filhas de Arthur. Aparece inespera­damente várias vezes por ano nesse iate chique.

Então era a terceira das irmãs, pensou Pitt. Perlmutter a descrevera fria, implacável e dura como o gelo do fundo de um glaciar. Agora, que tinha visto a terceira filha de Dorsett, ele achava difícil acreditar que Maeve saíra do mesmo ventre que gerara Deirdre e Boudicca.

Com certeza, para exigir que seus escravos produzam mais e para contar os diamantes.

Não — disse Broadmoor. — Boudicca é diretora do setor de se­gurança da empresa. Dizem que viaja de mina em mina, inspecionando os sistemas e o pessoal em busca de falhas.

John Delicadeza Merchant há de estar particularmente alerta se ela estiver procurando falhas nas medidas de segurança — ponderou Pitt. — Vai fazer o possível para que seus vigilantes se mostrem em alerta, para impressionar a patroa.

Temos de tomar o máximo cuidado — concordou o índio, apon­tando com o queixo para os guardas que esperavam no cais, prontos para inspecionar os barcos de pesca. — Veja só: seis homens. Nunca mandam mais de dois nas entregas de peixe. O que está com o medalhão no pescoço é o encarregado do porto. Chama-se Crutcher. É dos piores.

Pitt passou os olhos pelos seguranças, para ver se reconhecia algum dos que se haviam aglomerado ao redor do hidroavião durante sua invasão com Stokes. A maré baixa obrigou-o a olhar para cima. Estava particularmente apreensivo quanto ao guarda que derrubara no escri­tório de John Merchant. Por sorte, nenhum deles lhe pareceu familiar.

Traziam as armas penduradas no ombro, os canos apontados para a frente, mais ou menos na direção dos pescadores índios. Era um espetáculo de intimidação, compreendeu Pitt rapidamente. Não pre­tendiam balear ninguém diante dos marinheiros, que a tudo observavam perto do navio cargueiro. Crutcher, um jovem arrogante, de rosto frio, que não passava dos vinte e seis ou vinte e sete anos, aproximou-se da beira do cais quando Broadmoor jogou uma corda, que foi cair em suas botas.

Olá, amigo. Pode nos amarrar?

O rapaz antipático chutou a corda de volta para o barco.

Amarre você! — gritou.

Esse deve ter saído das Forças Especiais, pensou Pitt ao pegar a corda. E, subindo uma escada até o cais, esbarrou propositalmente em Crutcher ao enrolá-la num pequeno poste de amarração.

O rapaz não hesitou em chutá-lo. Depois, agarrando-o pelos suspensórios, sacudiu-o com violência.

Que maneiras são essas, seu cabeça-de-bagre fedorento?

Broadmoor teve um calafrio, imaginando que Pitt certamente ia sa­far-se das garras do segurança e desferir-lhe um soco. Seria fatal, pois os haidas eram um povo pacífico, que não se inclinava a irritar-se fa­cilmente. Mas Pitt não reagiu. Relaxando o corpo, esfregou o traseiro dolorido e pousou em Crutcher um olhar tranqüilo. A seguir, num gesto reverente, tirou o gorro de tricô, exibindo o cabelo preto, cujos cachos naturais tinham sido alisados com gordura. E, dando de ombros, disse:

Foi sem querer. Desculpe.

Eu não o conheço — disse o guarda friamente.

Já fiz esta viagem vinte vezes — respondeu Pitt com calma. — Já o vi muitas vezes. Você se chama Crutcher. Não faz muito tempo, deu-me um soco na barriga porque eu estava descarregando o peixe muito devagar.

O guarda o examinou um momento; depois riu um riso breve de chacal.

Se esbarrar em mim outra vez, eu lhe dou um pontapé que vai mandá-lo para o outro lado do canal.

Com um olhar resignado, Pitt saltou ao convés do pesqueiro. O resto da frota estava entrando nos espaços entre os navios. Onde não havia lugar, os barcos eram amarrados uns aos outros, proa com popa, sendo que a tripulação dos mais distantes transferiam a carga para o que estava atracado no cais. Pitt se juntou aos pescadores e começou a passar caixotes de salmão para a equipe de Broadmoor, que os empi­lhava em reboques presos a um trator de oito rodas. O trabalho pesado não tardou a lhe provocar dores nos bíceps e nas costas, mas ele tratou de cerrar os dentes. Sabia que despertaria suspeitas se não se mostrasse capaz de erguer os engradados com a facilidade dos haidas.

Duas horas depois, os carretos estavam carregados; quatro guardas e a tripulação dos pesqueiros embarcaram neles e o comboio partiu rumo ao refeitório. Detiveram-se à entrada do túnel e foram levados a uma pequena construção, onde os mandaram despir-se. Suas roupas foram revistadas e cada um foi submetido a um exame individual de raio X. Todos passaram pelo teste, com exceção de um haida que, distraidamente, levava um facão de pesca na bota. Pitt achou estranho que, em vez de simplesmente confiscá-lo, devolveram-no, mas manda­ram o índio de volta ao barco. Os demais receberam autorização para se vestir e tornaram a subir nos reboques para a viagem à área de escavações.

Pensei que eles nos revistassem na saída, em busca de diamantes roubados — disse Pitt —, não na entrada.

Revistam sim — explicou Broadmoor. — Vamos passar pelo mes­mo procedimento na saída da mina. O raio X é para que a gente não pense em roubar um punhado de diamantes, engolindo-os.

O túnel de concreto, que penetrava o monte de refugo da mina, tinha uns cinco metros de altura por dez de largura. Era amplo o su­ficiente para que grandes caminhões transportassem homens e equipa­mento entre a mina e o cais. Com quase quinhentos metros de com­primento, era iluminado por longas fileiras de lâmpadas fluorescentes. No meio do caminho, abriam-se túneis laterais com mais ou menos a metade das dimensões da artéria principal.

Aonde vão dar esses túneis? — Pitt perguntou a Broadmoor.

São parte do sistema de segurança. Cercam toda a mina e estão cheios de dispositivos eletrônicos.

Tantos guardas, tantas armas, um sistema de segurança tão so­fisticado. Não é exagero? Só para impedir que uns poucos diamantes sejam tirados da propriedade?

Não é só por isso. Não querem que os trabalhadores ilegais fujam ao continente. Faz parte do acordo com os funcionários canadenses corruptos.

Saíram do outro lado do túnel, em meio à febril atividade das ope­rações de mineração. O trator puxou os reboques por uma estrada pa­vimentada, que contornava o enorme buraco aberto da cratera vulcânica, e foi parar junto a uma plataforma diante de um prédio baixo de con­creto, em forma de hangar.

Um homem com uniforme branco de cozinheiro e um casaco com gola de pele abriu a porta do depósito, onde se armazenavam os pro­dutos alimentícios, e cumprimentou Broadmoor com um aceno.

Ainda bem que você chegou, Mason. Estávamos só com duas caixas de bacalhau.

Trouxemos tanto peixe que seus operários vão criar escamas — respondeu o índio e, voltando-se para Pitt, baixou a voz: — Dave An- derson, o cozinheiro-chefe da mina. E boa gente, mas bebe demais.

O frigorífico está aberto — avisou Anderson. — Mas guardem as caixas com cuidado. Da última vez, vocês misturaram salmão com linguado. Bagunçaram o meu cardápio.

Eu lhe trouxe um presente. Cinqüenta quilos de filé de alce.

Você é gente fina, Mason. E por isso que não compro peixe con­gelado no continente. Quando terminarem, venham ao refeitório. O café estará esperando. Farei um cheque assim que tiver inventariado a mercadoria.

Os caixotes de madeira foram empilhados no frigorífico, e os pes­cadores haidas, seguidos de Pitt, recolheram-se agradecidos no calor do refeitório. Em fila, receberam ovos, salsichas e panquecas. Quando estavam se servindo do café de uma gigantesca cafeteira, Pitt olhou para os homens às outras mesas. Os quatro guardas conversavam à porta, em meio a uma nuvem de fumaça de cigarros. Uns cem garim­peiros chineses do turno matinal enchiam a maior parte do salão. Dez homens, que Pitt adivinhou ser engenheiros e superintendentes, encon­travam-se a uma mesa redonda colocada numa sala particular menor.

Qual deles é o trabalhador descontente? — perguntou a Broad­moor.

O índio apontou para a porta da cozinha.

Está a sua espera lá fora, perto dos contêineres de lixo.

Pitt o encarou.

Como arranjou isso?

Broadmoor sorriu.

Os haidas não precisam de fibra ótica para se comunicar.

Pitt não o questionou. Tinha chegado a hora. Sem tirar os olhos dos guardas, entrou flisfarçadamente na cozinha. Nenhum dos cozinheiros ou lavadores de pratos ergueu a vista quando ele se esgueirou entre pias e fogões e desceu os degraus da porta dos fundos. Os enormes contêineres de lixo impregnavam o ar gelado de um cheiro ruim de legumes podres.

Parou ali, no frio, sem saber ao certo o que esperar.

Um homem alto saiu de trás de um contêiner e se acercou. Trajava um macacão amarelo, sujo de um barro de estranha coloração azulada, um capacete de mineiro e o rosto coberto pelo que Pitt tomou por uma máscara com filtro de ar. Trazia uma trouxa debaixo do braço.

Ouvi dizer que você está interessado em nossas operações de mineração — disse.

Sim. Eu me chamo...

Os nomes não importam. Não temos muito tempo, se é que você quer sair da ilha com a frota de pesqueiros. — Desfazendo a trouxa, entregou-lhe um macacão, uma máscara de gás e um capacete. — Vista isso e venha comigo.

Pitt o obedeceu calado. Não temia uma armadilha. Os guardas po­diam tê-lo prendido a qualquer momento, desde que pusera os pés no cais. Fechou cuidadosamente o zíper do macacão, prendeu sob o queixo a alça do capacete, ajustou no rosto a máscara e acompanhou o homem que, esperava, podia mostrar-lhe a origem de tantas mortes violentas.

 

Pitt seguiu o enigmático engenheiro de minas por uma estrada, até um moderno edifício pré-fabricado, onde uma série de elevadores trans­portava os empregados às escavações. Os dois maiores serviam os ope­rários chineses, mas o menor, a um canto, era exclusivo dos funcionários graduados. Da mais recente tecnologia Otis, o ascensor se deslocava suavemente, sem ruído, sem provocar a menor sensação de queda.

Quanto vamos descer? — perguntou Pitt, com a voz abafada pela máscara.

Quinhentos metros — respondeu o engenheiro.

Por que os respiradores?

Quando o vulcão onde estamos entrou em erupção, no passado, envolveu a ilha Kunghit em pedra-pomes. A vibração resultante do processo de escavação pode levantar uma poeira que acaba com os pulmões da gente.

É o único motivo?

Não — respondeu o outro com franqueza. — Não quero que você veja o meu rosto. Assim, se a segurança suspeitar de mim, posso enfrentar o detector de mentiras, que o nosso chefe de segurança usa com freqüência.

John Delicadeza Merchant — sorriu Pitt.

Você o conhece?

Tive o prazer.

O homem deu de ombros, aceitando sem comentários a resposta.

Quando chegaram ao fim da viagem, Pitt sentiu um estranho zum­bido no ouvido. Antes que tivesse tempo de perguntar o que era, o elevador parou e as portas se abriram. Ele foi conduzido por uma galeria que dava para uma plataforma de observação erguida uns cinqüenta

metros acima da vasta câmara de escavação. O equipamento no fundo da mina não era do tipo de maquinário que se esperava encontrar ali. Nada de vagões carregados de minério, puxados sobre trilhos por pe­quenos motores, nenhum "tatuzão", nenhum explosivo, nem sombra de grandes veículos a deslocar a terra. Tratava-se de uma caríssima operação, cuidadosamente projetada e organizada, controlada por com­putadores, na qual o trabalho humano tinha papel absolutamente se­cundário. A única mecanização óbvia era a gigantesca ponte, no alto, com os cabos e os baldes que erguiam à superfície o barro de rocha azul carregado de diamante e o transportavam aos prédios onde as pedras eram extraídas.

O engenheiro se voltou e, através da máscara, pousou nele os olhos verdes.

Mason não me contou quem você é nem quem representa. E eu não quero saber. Só disse que estava tentando localizar uma onda acús­tica que se desloca sob a água e mata.

É verdade. Milhares de animais marinhos e centenas de pessoas já morreram misteriosamente no mar e no litoral.

Acha que o som tem origem aqui?

Tenho motivos para acreditar que a mina da ilha Kunghit seja uma das quatro fontes.

O engenheiro fez que sim.

A Komadorskie, no mar de Bering, a ilha de Páscoa e a Gladiator, no mar da Tasmânia, são as outras três.

Você adivinhou?

já sabia. Todas usam o mesmo equipamento de escavação de ondas ultra-sônicas que temos aqui. — Fez um gesto, abrangendo a mina. — Costumávamos cavar as chaminés, na tentativa de alcançar as maiores concentrações de diamante, como garimpeiros que seguem um veio de ouro. Mas depois que os cientistas e engenheiros da Dorsett aperfeiçoaram um novo método de escavação, que produz quatro vezes mais em um terço do tempo, os antigos foram rapidamente abando­nados.

Pitt se debruçou no parapeito e ficou observando as atividades no fundo da galeria. Enormes veículos robôs pareciam estar abrindo longos túneis na argila azul. Depois, veio uma estranha vibração que percorreu as pernas e o corpo de Pitt. Ele olhou, intrigado, para o engenheiro.

A rocha e a argila que contêm o diamante são rompidas por ultra-som de alta energia. — O engenheiro se calou e apontou para uma ampla estrutura de concreto sem janelas visíveis. — Está vendo aquela construção na extremidade sul da mina? — Pitt fez que sim. — É uma usina nuclear. Emprega uma enorme quantidade de eletricidade para produzir energia suficiente para dez a vinte impactos por segundo, que penetram e rompem o barro duro como rocha.

O problema está equacionado.

Como assim? — quis saber o engenheiro.

O som gerado por seu equipamento se irradia no mar. Ao con­vergir com as vibrações das outras minas da Dorsett, espalhadas no Pacífico, sua intensidade cresce a ponto de matar os animais numa vasta região.

O conceito é interessante, mas está faltando uma peça.

Não lhe parece plausível?

O engenheiro sacudiu a cabeça.

Por si só, a energia sonora produzida lá embaixo não mataria nem uma sardinha a três quilômetros daqui. O equipamento de per­furação a ultra-som emprega vibrações sonoras com freqüência acústica de sessenta mil a oitenta mil hertz ou ciclos por segundo. Tal freqüência é facilmente absorvida pelos sais do mar.

Pitt fitou os olhos do engenheiro, tentando adivinhar de onde ele era, mas, além daqueles olhos verdes e dos fios de cabelo grisalho que apareciam por baixo do capacete, só pôde constatar que o homem linha a sua altura e uns dez quilos a mais.

Como vou saber se você não está tentando despistar?

Pitt não podia vê-lo por trás da máscara, mas teve certeza de que o desconhecido estava sorrindo.

Venha. Vou lhe mostrar a resposta ao seu dilema. — Retornou ao elevador; porém, antes de apertar o botão, entregou a Pitt um ca­pacete de espuma acústica. — Troque de capacete. Aperte-o bem, do contrário vai ficar com tontura. Tem um transmissor e um receptor, de modo que podemos conversar sem gritar.

Aonde estamos indo?

A um túnel de exploração aberto sob a mina principal. E o que permite localizar os maiores depósitos de pedras.

As portas se abriram, e eles saíram a uma galeria aberta na rocha vulcânica, sustentada por pesadas vigas. Involuntariamente, Pitt levan­tou as mãos e apertou os lados da cabeça. Embora os sons estivessem abafados, sentia uma estranha vibração nos tímpanos.

Está me ouvindo bem? — perguntou o engenheiro.

Estou — respondeu Pitt pelo pequeno microfone. — Mas há um zumbido.

Você vai se acostumar.

Que é isso?

Vamos caminhar mais uns cem metros, e eu lhe mostro a peça que está faltando em seu quebra-cabeça.

Pitt seguiu o engenheiro até um túnel lateral que, à diferença do outro, não tinha traves de sustentação. A rocha vulcânica que o formava era lisa como se a tivessem polido com uma imensa perfuradora.

Um tubo de lava de Thurston — disse. — Já vi isto na maior ilha do Havaí.

Certas lavas como estas, de composição basáltica, formam finos fluxos, que correm lateralmente, com superfícies lisas — esclareceu o engenheiro. — Quando a lava esfria, mais perto da superfície, a erupção profunda e quente continua subindo até fluir nas câmaras abertas e vivas ou tubos, como as chamamos. São esses bolsões de ar que vibram com as ondas de ultra-som da mina lá em cima.

E se eu tirar o capacete?

O engenheiro sacudiu os ombros.

Não vai gostar do resultado.

Pitt afastou dos ouvidos o capacete de espuma acústica. Em meio minuto, sentiu-se desorientado e teve de se apoiar na parede do tubo para não perder o equilíbrio. A seguir, entrou-lhe uma crescente sen­sação de náusea. O engenheiro se aproximou, recolocou o capacete em sua cabeça e o tomou pela cintura para que não caísse.

Satisfeito?

A tontura e o enjôo passaram rapidamente. Pitt respirou fundo.

Eu precisava provar esta agonia. Agora tenho uma vaga idéia do que aquela pobre gente sofreu antes de morrer.

O engenheiro o levou de volta ao ascensor.

Uma experiência nada agradável. Quanto mais profunda é a es­cavação, pior. Uma vez entrei aqui sem proteção e fiquei com dor de cabeça durante uma semana.

Quando o elevador subiu, Pitt se recuperou totalmente, a não ser pelo zumbido no ouvido. Agora sabia de tudo. Conhecia a origem da praga acústica. Compreendia o seu funcionamento. Sobretudo, sabia como detê-la. E estava animadíssimo.

Agora entendo. As câmaras de ar na lava ressoam e irradiam as vibrações sonoras de alta intensidade através da rocha até o mar, pro­duzindo um surto incrível de energia.

Eis a resposta. — O engenheiro tirou o capacete e passou a mão no cabelo grisalho. — A ressonância, somada à intensidade do som, cria uma energia incrível, mais do que suficiente para matar.

Por que você arriscou o seu emprego e talvez a própria vida mostrando-me isto?

Os olhos do engenheiro brilharam, e ele enfiou as mãos no fundo dos bolsos do macacão.

Não gosto de trabalhar para pessoas nas quais não posso confiar. Gente como Arthur Dorsett só cria problemas e tragédias. Se tiver opor­tunidade de conhecê-lo, vai farejar isso. Esta atividade fede, assim como fede tudo quanto ele faz. Os pobres operários chineses são explorados até não poder mais. Embora bem alimentados, não recebem um tostão e são obrigados a trabalhar como escravos dezoito horas por dia. Mor­reram vinte nos últimos doze meses, sofreram acidentes porque estavam cansados demais para reagir e sair da frente do equipamento. Por que a necessidade de escavar diamantes vinte e quatro horas por dia se há no mundo um excesso dessas malditas pedras? A De Beers pode exercer um monopólio repugnante, mas é preciso lhe dar crédito. Ela retém a produção para manter os preços. Não, Dorsett deve estar com um plano diabólico para prejudicar o mercado. Eu daria um ano de salário para saber o que ele tem em mente. Você, que compreende o horror que estamos causando aqui, pode fazer alguma coisa para detê-lo antes que acabe matando mais cem inocentes.

Que o impede de pôr a boca no mundo? — quis saber Pitt.

Falar é bem mais fácil do que fazer. Todos os cientistas e enge­nheiros diretamente envolvidos com as escavações estão presos a con­tratos com cláusulas leoninas. Se não houver desempenho, não há pa­gamento. Os advogados de Dorsett levantariam uma cortina de fumaça que não conseguiremos cortar nem mesmo com raio laser, se formos processados. A mesma coisa acontecerá se a Polícia Montada descobrir a carnificina entre os operários chineses e o modo de encobri-la. Dorsett juraria não saber de nada e, com toda certeza, nos processaria a todos por conspiração. Pelo cronograma, devemos deixar a ilha dentro de um mês. Temos ordens de fechar a mina uma semana antes. Só então seremos pagos e poderemos seguir cada um o seu caminho.

Por que não entra num barco e foge agora mesmo?

Andei pensando na possibilidade até o superintendente-chefe ten­tar fazer exatamente isso — disse lentamente o engenheiro. — De acordo com as cartas que sua esposa me mandou, não chegou em casa e nunca mais foi visto.

Dorsett joga pesado.

Tão pesado quanto o narcotráfico da América Central.

Por que ele vai fechar a mina se ainda está produzindo?

Não tenho a menor idéia. Dorsett estabeleceu as datas. Eviden­temente tem um plano e não pretende compartilhá-lo com seus em­pregados.

Como ele sabe que nenhum de vocês vai dar com a língua nos dentes quando estiver no continente?

Não é segredo que, se um de nós falar, todos irão parar na cadeia.

E os operários chineses?

Sem mudar de expressão, ele olhou para Pitt por cima do respirador preso a seu rosto.

Desconfio que serão deixados na mina.

Enterrados?

Dorsett não hesitaria em dar a ordem a seus cães fila.

Você o conhece? — perguntou Pitt.

Estive com ele uma vez e bastou. Sua filha, a Capadora, é tão ruim quanto o pai.

Boudicca — murmurou Pitt com um leve sorriso. — O apelido dela é Capadora?

É forte como um touro — disse o engenheiro. — Eu a vi erguer um homem de bom tamanho com um só braço.

Antes que Pitt pudesse fazer outra pergunta, o ascensor chegou à superfície e parou. O engenheiro saiu do prédio e ficou olhando para um furgão que passava. Pitt o seguiu até os fundos do refeitório e se pôs atrás dos contêineres de lixo. O engenheiro apontou para o macacão.

O equipamento que você está usando pertence a um geólogo que está acamado, com gripe. Preciso devolvê-lo antes que dê pela falta dele.

Ótimo — murmurou Pitt. — Provavelmente contraí a gripe pela máscara.

Seus amigos índios já voltaram aos barcos. — O engenheiro apon­tou para a plataforma diante do armazém. O trator e os reboques tinham partido. — O furgão que acaba de passar pelo prédio do elevador é de transporte de pessoal. Vai voltar daqui a pouco. Chame o motorista e peça-lhe que o leve pelo túnel.

Pitt olhou para o velho engenheiro.

Nao acha que ele vai perguntar por que eu não saí com os outros haidas?

O homem tirou do bolso um caderno de anotações e um lápis, ra­biscou algumas palavras, arrancou a página, dobrou-a e a entregou a Pitt.

Dê-lhe isto. Garantirá a sua passagem em segurança. Tenho de voltar ao trabalho antes que os meninos de John Delicadeza comecem a lazer perguntas.

Pitt lhe apertou a mão.

Estou muito agradecido. Você se arriscou revelando os segredos da Dorsett Consolidated a um desconhecido.

Se for para evitar a morte de inocentes, qualquer risco terá valido a pena.

Boa sorte — disse Pitt.

Para você também. — O engenheiro começou a se afastar, mas lembrou-se de algo e se voltou. — Mais uma coisa, só por curiosidade. Ontem eu vi um helicóptero da Dorsett sair em perseguição de um hidroavião. Não voltou mais.

Eu sei. Caiu e pegou fogo.

Como sabe?

Eu estava no hidroavião.

O engenheiro olhou para ele, intrigado.

É Malcolm Stokes?

Pitt logo compreendeu que aquele era o agente infiltrado de que Stokes tinha falado.

Um estilhaço de metal no pulmão. Mas vai viver para curtir a aposentadoria.

Ainda bem. Malcolm é um bom sujeito. Tem uma família adorável.

— Mulher e cinco filhos — disse Pitt. — Ele me contou depois que caímos.

E você resolveu pular no fogo outra vez?

- Não foi muito inteligente de minha parte, não acha?

O engenheiro sorriu.

Não, acho que não.

E, voltando-se novamente, afastou-se e desapareceu no prédio do elevador.

Cinco minutos depois, chegou o furgão, e Pitt lhe fez sinal para que parasse. O motorista, com farda de segurança, olhou para ele, descon­fiado.

De onde você saiu? — perguntou.

Pitt lhe entregou o papel dobrado e deu de ombros, sem dizer uma palavra.

O motorista leu o recado, amassou-o, jogou-o no chão e fez que sim.

Entre. Vou levá-lo até o prédio da segurança, no outro lado do túnel.

Quando o motorista fechou a porta e arrancou, Pitt se sentou atrás dele. Furtivamente, abaixou-se e pegou o papel amassado no chão.

Dizia:

Este pescador haida estava no trono quando seus amigos foram embora. Por favor, faça com que chegue ao cais antes que a frota parta.

O motorista parou o furgão em frente ao prédio da segurança, onde Pitt, pela segunda vez naquela manhã, foi explorado dos pés à cabeça pelo raio X. O médico responsável pela revista anatômica balançou a cabeça ao terminar.

Nenhum diamante em você, garotão —- disse, reprimindo um bocejo.

Quem precisa de diamante? — resmungou Pitt com indiferença. — A gente não pode comê-los. Eles são uma maldição dos brancos. Os índios não se matam por causa dos diamantes.

Você está atrasado, não? Faz vinte minutos que os caras da sua tribo passaram por aqui.

Eu dormi — respondeu Pitt, vestindo-se apressadamente.

Saiu correndo rumo ao cais. Quando faltavam cinqüenta metros para chegar, deteve-se. Preocupado e apreensivo, viu que a frota pesqueira haida se encontrava a quase cinco quilômetros de distância no canal. Ele estava sozinho e não tinha aonde ir.

Um grande cargueiro ancorado em frente ao iate de Dorsett acabava de descarregar. Esgueirando-se entre os contêineres retirados dos porões do navio e colocados em plataformas de madeira, Pitt tratou de se misturar aos doqueiros em atividade, na tentativa de subir a bordo. Só conseguiu colocar o pé no primeiro degrau.

Parado aí, pescador — disse uma voz bem atrás dele. — Perdeu o barco, não?

Sentindo um calafrio, ele se voltou lentamente. Apoiado num caixote com uma enorme bomba hidráulica, o sádico Crutcher dava baforadas numa ponta de charuto. A seu lado encontrava-se um guarda com o fuzil de assalto M-l apontado para o corpo de Pitt. Era o que ele agredira no escritório de Merchant. E Pitt sentiu o coração disparar quando John Delicadeza Merchant em pessoa saiu de trás do guarda e olhou para ele com a fria autoridade de quem tinha pleno poder sobre a vida das pessoas.

É, meu caro senhor Pitt, você é mesmo teimoso.

Eu vi que era o cara que me bateu no momento em que ele subiu no furgão. — O guarda abriu um sorriso maligno e, num movimento inesperado, golpeou-lhe a barriga com o cano da arma. — Isto é pela cotovelada que você me deu quando eu estava desprevenido.

Pitt se curvou de dor quando o metal o feriu. Depois, olhando para o sorridente segurança, disse entre os dentes:

Quem manda ser incompetente?

O guarda ergueu a arma para bater nele outra vez, porém Merchant o conteve.

Chega, Elmo. Você pode brincar com ele à vontade depois que nos tiver explicado sua persistente intromissão. — Olhou para Pitt. — Tenha a bondade de desculpar Elmo. Ele tem uma tendência instintiva a machucar as pessoas em que não confia.

Pitt estava tentando desesperadamente pensar num meio de escapar. Mas, a não ser que pulasse na água gelada, para morrer de hipotermia, ou — e esta era a opção mais viável — fosse transformado em comida de peixe pelo fuzil automático de Elmo, não via saída.

Você precisa ter muita imaginação para me considerar uma amea­ça — murmurou para Merchant, tentando ganhar tempo.

Despreocupado, este tirou um cigarro de uma cigarreira de ouro e o acendeu com um isqueiro que com ela fazia jogo.

Depois do nosso último encontro, eu o investiguei profundamente, meu caro senhor Pitt. Dizer que é uma ameaça é pouco. Você não invadiu a propriedade da Dorsett para estudar peixes e algas. Está aqui com outros e bem mais insidiosos objetivos. E é melhor que explique a sua presença em todos os detalhes, sem nenhuma resistência teatral.

É uma pena decepcioná-lo — disse Pitt, respirando fundo. — Acho que você não vai ter tempo para mais um de seus sórdidos in­terrogatórios.

Merchant não se deixava enganar facilmente, mas sabia que não estava diante de um mero ladrão de diamantes. Um alarme soou em sua mente ao notar que não havia o menor vestígio de medo nos olhos do americano. Isso lhe despertou a curiosidade, embora com uma vaga sensação de desconforto.

Confesso que esperava que você fosse capaz de oferecer coisa melhor do que um reles blefe.

Pitt olhou para o alto, escrutando o céu.

Uma esquadrilha de caças do porta-aviões Nimitz, entupidos de mísseis ar-terra, vai passar por cima da sua cabeça a qualquer momento.

Acaso um burocrata de merda, de uma obscura agência do go­verno, tem poder de mandar um ataque em território canadense? Difícil acreditar.

Quanto a mim, até que você tem razão. Mas meu chefe, o almirante James Sandecker, tem autoridade para ordenar um ataque aéreo.

Por um brevíssimo instante, um piscar de olhos, Pitt chegou a acre­ditar que Merchant ia engolir aquela. A hesitação passou pelo rosto do chefe de segurança. Depois, ele sorriu, deu uma passo à frente e, com o dorso da mão enluvada, desferiu uma traiçoeira bofetada na boca de Pitt. Este recuou aos tropeções, sentindo o sangue nos lábios.

Vou correr o risco — disse Merchant secamente. E, com expressão de nojo, limpou a mancha de sangue em sua luva de couro. — Chega de conversa fiada. Agora você só vai falar quando eu lhe perguntar alguma coisa. E quero respostas! — Voltou-se para Crutcher e Elmo. — Levem-no ao meu escritório. Vamos continuar a discussão lá.

Crutcher colocou a palma da mão no rosto de Pitt e o empurrou com violência.

Acho melhor ir a pé ao escritório, senhor. Um pouco de exercício pode amaciar o nosso amiguinho xereta...

Esperem aí! — ordenou uma voz incisava no convés do iate. Debruçada na amurada, Boudicca Dorsett assistira ao drama no cais. Estava com uma blusa de gola rulê, um casaco de lã, uma saia plissada muito curta, meias de náilon brancas e um par de botas de montaria. Empurrando os longos cabelos atrás dos ombros, fez um gesto para a plataforma de embarque. — Tragam a bordo o intruso.

Depois de trocar olhares indulgentes, Merchant e Crutcher levaram Pitt aos safanões para o iate. Elmo o atingiu uma vez mais com o cano do fuzil, desta vez nas costas, obrigando-o a entrar pela porta de teca que dava para o salão.

Boudicca estava sentada na beira de uma escrivaninha de madeira entalhada, com tampo de mármore de Carrara. A saia lhe subira à metade das coxas. Era uma mulher robusta, quase masculina nos mo­vimentos. Mesmo assim, exalava muita sensualidade e uma inconfun­dível aura de opulência e requinte. Acostumada a intimidar os homens, enrugou a testa ao notar que Pitt a avaliava cinicamente.

Uma representação de primeira, observou ele. Qualquer homem fi­caria admirado e acanhado. Merchant, Crutcher e Elmo não conseguiam tirar os olhos dela. Mas Pitt se recusou a entrar no jogo. Alheio ao inegável charme de Boudicca, preferiu percorrer com os olhos a luxuosa mobília e a decoração do salão do iate.

Bonito, isto aqui — disse, imperturbável.

Cale a boca diante da senhorita Dorsett — rosnou Elmo, erguendo o fuzil para agredi-lo novamente.

Pitt girou sobre os calcanhares e, empurrando o fuzil, desfechou um violento soco com a outra mão, que atingiu Elmo no baixo ventre, pouco acima da virilha. O guarda deixou escapar um gemido de dor e raiva; levando ambas as mãos ao lugar atingido, dobrou o corpo e deixou cair a arma.

Antes que os outros tivessem tempo de reagir, Pitt pegou-a do chão acarpetado e a entregou ao espantado Merchant.

Estou cansado de levar porrada desse cretino. Faça o favor de controlá-lo. — Voltou-se para Boudicca. — Sei que ainda é cedo, mas eu aceitaria um drinque. Você tem tequila a bordo desta mansão flu­tuante?

Boudicca permaneceu calma e reservada, olhando para Pitt com re­novada curiosidade. Virou-se para Merchant.

De onde ele veio? Quem é este homem?

Passou pela segurança disfarçado de pescador. Na verdade, é agente americano.

Por que se meteu na mina?

Eu o estava levando ao meu escritório para interrogá-lo quando a senhora me chamou a bordo — respondeu Merchant.

Ela se levantou. Era mais alta do que a maioria dos homens presentes. Sua voz se tornou incrivelmente grave e sensual, e seus olhos frios se fixaram em Pitt.

Seu nome, por favor, e que está fazendo aqui.

Merchant começou a responder.

Ele se chama...

Eu perguntei a ele — atalhou a giganta.

Quer dizer que você é Boudicca Dorsett? — disse Pitt, sem fazer caso da pergunta e fitando-a nos olhos. — Agora posso dizer que co­nheço as três.

Ela o examinou um momento.

As três?

As adoráveis filhas de Arthur Dorsett.

Com os olhos a fuzilar de irritação face a tanta insolência, ela estendeu as mãos, agarrou os antebraços de Pitt e, inclinando-se para a frente, empurrou-o contra a parede, comprimindo-o. Era inescrutável a ex­pressão de seus olhos negros quando, quase encostando o rosto no dele, encarou-o sem piscar. Não disse nada; permaneceu ali, aumen­tando a pressão e empurrando-o para cima até que seus pés mal to­cassem o fofo carpete.

Pitt resistiu, contraindo os músculos do corpo e relaxando os bíceps, que pareciam estar sendo apertados por dois torninhos. Não conseguia acreditar que um homem, muito menos uma mulher, pudesse ser tão forte. Seus músculos doíam como se tivessem sido macerados. Rilhou os dentes e os lábios feridos para suportar a dor crescente. A circulação bloqueada já lhe entorpecia os braços, tornando brancas as suas mãos, quando Boudicca finalmente o soltou e retrocedeu.

Muito bem. Agora, antes que eu resolva lhe apertar a garganta, diga quem você é e por que está espionando a mina de minha família.

Pitt permaneceu um momento imóvel, esperando que a dor dimi­nuísse e a sensibilidade retornasse a seus braços e mãos. Estava assom­brado com a força brutal daquela mulher. Por fim, ainda ofegante, falou.

Esses são modos de tratar o homem que salvou suas irmãs da morte certa?

Ela ficou tensa e arregalou os olhos.

De que está falando? Como conhece minhas irmãs?

Eu me chamo Dirk Pitt — disse ele pausadamente. — Meus amigos e eu livramos Maeve de morrer congelada e Deirdre de se afogar no Antártico.

Você? — As palavras pareciam ferver nos lábios dela. — Você é o sujeito da Agência Nacional de Pesquisas Subaquáticas?

Em pessoa.

Pitt foi até o bar com superfície de cobre, farto de bebida, e apanhou um guardanapo de coquetel para enxugar o sangue que lhe escorria do lábio cortado. Merchant e Crutcher entreolharam-se, atônitos, como se o cavalo em que tivessem apostado todas as suas economias acabasse de chegar em último lugar.

Merchant olhou para Boudicca.

Deve ser mentira.

Quer que eu as descreva? — perguntou Pitt sem se perturbar. — Maeve é alta, loira e tem lindos olhos azuis. O tipo de moça que adora a praia e o ar livre. — Apontou para o retrato de uma jovem loira, com um vestido antigo e um diamante do tamanho de um ovo pendendo de uma corrente no pescoço. — Esta é ela.

Errou — disse Boudicca com um sorriso de desprezo. — Este retrato, para o seu governo, é de minha tetravó.

Não diga — disse Pitt, fingindo indiferença e sem poder tirar os olhos da incrível semelhança da mulher no retrato com Maeve. — Deirdre, por sua vez, tem olhos castanhos, é ruiva e anda como se estivesse desfilando numa passarela.

Após uma longa pausa, Boudicca murmurou:

Ele deve ser quem diz que é.

Isso não explica a sua presença aqui — insistiu Merchant.

Eu já lhe disse em nosso último encontro: estou aqui para inves­tigar os efeitos da poluição química no mar.

Merchant sorriu.

Uma história bem inventada, mas longe da verdade.

Pitt conseguiu relaxar um pouco. Estava em companhia de gente perigosa, esperta e má. Sabia que em questão de minutos Boudicca desvendaria o seu jogo; contava com peças suficientes para preencher as bordas do quebra-cabeça. Por isso ponderou que controlaria melhor a situação se dissesse a verdade.

Já que quer saber, vai saber. Estou aqui porque as vibrações de ultra-som que você usam para escavar o diamante causa uma intensa ressonância, que percorre grandes distâncias no mar. Quando as con­dições submarinas o permitem, essas vibrações convergem com as de suas outras minas do Pacífico, matando os organismos vivos da região. Mas é claro que não estou lhe contando nenhuma novidade.

Conseguiu fazer com que Boudicca vacilasse. Ela o encarou como se estivesse vendo um extraterrestre descer do disco voador.

Você até que sabe criar ficção muito bem — disse com insegurança. — Devia trabalhar no cinema.

Já pensei nisso — respondeu Pitt. — Mas não tenho o talento de James Woods nem a aparência de Mel Gibson.

Descobrindo atrás do bar, numa prateleira de vidro com fundo de espelho tingido de dourado, uma garrafa de tequila Herradura, prata, serviu-se de uma dose. Boudicca e os outros ficaram a observá-lo quando ele umedeceu com a língua a pele entre o polegar e o indicador antes de nela colocar o sal. A seguir, tomou a tequila, lambeu o sal e chupou uma fatia de limão.

Pronto, agora estou em condições de enfrentar o dia. Como eu ia dizendo, você sabe muito mais que eu dos horrores da chamada praga acústica, senhorita Dorsett. A mesma que quase matou suas irmãs. De modo que seria tolice de minha parte pretender ensinar o padre-nosso ao vigário.

Não tenho a menor idéia do que você está falando. — Ela se voltou para Merchant e Crutcher. — Este homem é perigoso. Uma amea­ça para a Dorsett Consolidated Mining. Tirem-no de meu barco e façam com ele o que acharem melhor para assegurar que não volte a inco­modar-nos.

Pitt tentou uma última cartada.

Garret Converse, o ator, e seu junco chinês, o Tz'n-hsi. David Coperfield se orgulharia da maneira como vocês fizeram Converse, toda a tripulação e o barco desaparecer.

Não faltou a reação esperada. A força e a arrogância evaporaram; Boudicca mostrou-se subitamente perdida. Então, Pitt lançou mão de um último argumento:

Claro que não podemos nos esquecer do Mentawai. Foi um trabalhinho porco. Você não soube calcular o tempo da explosão e acabou mandando pelos ares a equipe de abordagem do Rio Grande, que estava investigando o que lhe tinha parecido um navio abandonado. Infeliz­mente para você, viram seu iate fugindo do local e, mais tarde, ele foi identificado.

Mais uma ficção delirante. — Havia sarcasmo na voz de Boudicca, porém acompanhado de uma expressão de mau agouro, que se estam­pava em seu rosto. — Quase fascinante, pode-se dizer. Terminou, senhor Pitt, ou vai me contar o fim da história?

O fim? — Pitt suspirou. — Ainda não foi escrito. Mas acho que posso dizer com toda a segurança que muito em breve a Dorsett Con­solidated Mining Limited será apenas uma recordação.

Tinha ido longe demais. Boudicca começou a perder o controle. Sua raiva aumentou, e, com o rosto tenso e frio, aproximou-se de Pitt.

Ninguém pode deter meu pai. Nenhuma autoridade legal, ne­nhum governo. Muito menos nos próximos vinte e sete dias. Então, nós mesmos nos encarregaremos de fechar as minas.

Por que não o fazem agora e poupam só Deus sabe quantas vidas?

Nem um minuto antes do tempo.

Tempo para quê?

Pena que você não possa perguntar a Maeve.

Por que a Maeve?

Deirdre me contou que ela ficou muito afetuosa com o homem que a salvou.

Ela está na Austrália — disse Pitt.

Boudicca sacudiu a cabeça e mostrou os dentes.

Maeve está em Washington, trabalhando como agente de meu pai, fornecendo-lhe todas as informações que a ANPS colheu sobre as ondas sonoras mortais. Nada melhor do que ter um parente no campo do inimigo. Evita problemas.

Eu a julguei mal — disse Pitt bruscamente. — Cheguei a acreditar que a proteção da vida marinha fosse a grande preocupação de sua vida.

Toda a sua indignação moral se evaporou quando ela soube que meu pai tinha tomado seus filhos gêmeos como garantia.

Está querendo dizer... como reféns?

A neblina começou a se dissipar. Pitt compreendeu que as maqui­nações de Arthur Dorsett iam muito além da mera ambição. O homem era um monstro sanguinário, um predador que não vacilava em ameaçar a própria família.

Alheia à observação de Pitt, Boudicca fez um sinal para John Mer­chant.

Ele está a seu completo dispor. Faça o que quiser.

Antes de o enterrarmos com os outros — ofereceu Crutcher com evidente ansiedade —, vamos persuadi-lo a fornecer todos os detalhes que deve ter omitido propositalmente.

Quer dizer que vou ser torturado e depois executado? — disse Pitt com tranqüilidade, servindo-se de outra dose de tequila enquanto sua mente urdia e abandonava desesperadamente dezenas de inúteis planos de fuga.

Você assinou sua própria sentença ao vir para cá — declarou Boudicca. — Se, como diz, os funcionários da ANPS suspeitassem que nossas operações de escavação eram responsáveis pelas ondas sonoras mortais no oceano, você não teria necessidade de vir espionar clandes­tinamente a nossa propriedade. A verdade é que descobriu tudo há apenas algumas horas e ainda não teve tempo de informar seus supe­riores em Washington. Parabéns, senhor Pitt. Ludibriar a nossa segu­rança e entrar na mina foi um trabalho de mestre. Não pode ter feito

isso sozinho. As explicações virão quando o senhor Merchant o tiver estimulado a nos contar os seus segredinhos.

Ela me pegou, pensou Pitt, derrotado.

Dê lembranças a Maeve e a Deirdre.

Bobagem. Conhecendo minhas irmãs como eu conheço, as duas provavelmente já o esqueceram.

Deirdre talvez, Maeve não. Agora que as conheço, é evidente que ela é a mais virtuosa das três.

Pitt se surpreendeu com o brilho de ódio nos olhos de Boudicca.

Maeve é a escória. Nunca esteve próxima da família.

Pitt sorriu com malícia, desafiador.

Não é muito difícil adivinhar por quê.

Enfurecida com o riso que brincava nos olhos verdes de Pitt, Boudicca se levantou. Parecia ainda mais alta devido aos saltos das botas.

Quando fecharmos a mina, Maeve e seus bastardinhos já terão sumido. — Girando sobre os calcanhares, olhou para Merchant. — Tire esse lixo de meu iate. Não quero mais vê-lo.

Não vai ver, senhorita Dorsett — respondeu o segurança, fazendo um gesto para que Crutcher o levasse para fora. — Prometo que esta é a última vez em que olha para ele.

Entre os dois e com Elmo a suas costas, Pitt foi levado para o cais, rumo a um furgão que os esperava. Quando estavam passando pelos enormes contêineres de víveres e equipamento que acabavam de ser descarregados do navio, o ruidoso tubo de escape do motor diesel de um dos guindastes em funcionamento emitiu um estampido. Quando Crutcher se contraiu de súbito, logo tombando nas tábuas do cais, Pitt girou o corpo e se agachou, em atitude defensiva; só teve tempo de ver Merchant revirar os olhos antes de cair feito um saco de areia. A alguns metros, avistou Elmo estendido no chão como morto. E, aliás, morto estava.

Toda a ação, desde o golpe mortal na nuca de Elmo até a pancada no crânio de Merchant, não durou dez segundos.

Ainda empunhando uma maciça chave inglesa de aço, Mason Broad­moor segurou o braço de Pitt com a mão esquerda.

Pule, depressa!

Confuso, Pitt hesitou.

Pular onde?

— Na água, idiota!

Não foi preciso repetir. Bastaram cinco corridos passos para que ambos cortassem o ar e fossem cair no mar, poucos metros à frente da proa do cargueiro. A água gelada chocou todas as terminações nervosas do corpo de Pitt; logo, porém, uma descarga de adrenalina o estimulou a nadar ombro a ombro com o índio.

E agora? — perguntou, ofegante, soltando o ar pela boca e pelas narinas enquanto sacudia a água do rosto e do cabelo.

As lanchas — respondeu Broadmoor, assoando o nariz. — Nós as tiramos às escondidas do pesqueiro e as ocultamos debaixo do molhe.

Elas estavam no barco? Eu não as vi...

Um compartimento secreto que eu mesmo construí — disse o índio com um sorriso. — A gente nunca sabe quando vai precisar fugir da cidade com o xerife nos calcanhares. — Chegou a um dos Duo 300 Wetjets que estavam flutuando junto a um pilar de concreto e subiu a bordo. — Sabe pilotar lancha?

Como se tivesse nascido numa — respondeu Pitt, subindo a bordo da outra e instalando-se rapidamente no banco.

Se mantivermos o cargueiro entre nós e o cais, podemos ficar fora da linha de fogo dos guardas por mais de meio quilômetro.

Ligaram os motores envenenados, que rugiram como feras, e, com Broadmoor menos de um metro à frente, saíram de baixo do cais como que disparados por um canhão. Descrevendo uma curva fechada, con­tornaram a proa do cargueiro, usando o casco como escudo. Os motores ganharam aceleração instantaneamente. Pitt não olhou para trás. Curvando-se sobre as alavancas, apertou até o fim o gatilho do acelerador: esperava que a qualquer momento uma chuva de balas viesse salpicar a água ao seu redor. Mas a escapada foi perfeita. Já estavam longe e fora de alcance quando a equipe de segurança de John Merchant foi alertada.

Pela segunda vez em praticamente dois dias, Pitt estava empreen­dendo uma rocambolesca fuga da mina de Dorsett, rumo à ilha de Moresby. A água passava voando num borrão verde-azulado. Na lan­cha, as cores vivas dos desenhos haidas brilhavam ao sol. Os sentidos de Pitt ficaram mais apurados face ao perigo, suas reações se tornaram mais velozes.

Do ar, o canal entre as ilhas parecia pouco mais que um rio largo. No mar, porém, a convidativa segurança das árvores e dos rochedos de Moresby não passava de uma mancha no horizonte.

Pitt estava admirado com a estabilidade do casco em V da Wetjet e com a potência de seu motor modificado, que, com uma rosnadura feroz e quase sem solavancos, impelia a lancha entre as ondas baixas. Rápida e ágil, o hélice imprimia um impulso incrível. Eram verdadeiras máquinas com músculos. Ele não tinha como saber ao certo, mas acre­ditava que estava a uma velocidade próxima dos sessenta nós. Era quase como viajar na água numa motocicleta de corrida.

Saltando por cima da esteira de Broadmoor, Pitt se emparelhou com ele e, quando se encontravam quase lado a lado, gritou:

Se eles vierem no nosso encalço, nós estamos fritos!

Não se preocupe! — respondeu o índio também aos gritos. — Somos mais rápidos que suas lanchas de patrulha.

Pitt se voltou e, por cima do ombro, olhou para a ilha, que ia ficando rapidamente para trás. Praguejou ao ver o helicóptero Defender levan­tando vôo sobre o monte que cercava a mina. Em menos de um minuto estava atravessando o canal e iniciando a perseguição em suas esteiras.

Mais rápidos do que o helicóptero nós não somos! — informou Pitt em voz alta.

Ao contrário do americano, que exibia uma careta de aflição, o haida se mostrava entusiasmado e contente como um garoto preparando-se para o primeiro encontro com a primeira namorada. Suas escuras feições estavam coradas de excitação. Erguendo o corpo, olhou para trás.

Esses filhos da puta não têm a menor chance — disse, sorrindo. — Venha na minha esteira.

Em pouco tempo alcançaram a frota de pesqueiros que retornava; contudo, Broadmoor desviou bruscamente na direção da ilha de Mo­resby, mantendo uma prudente distância dos barcos. O litoral estava a poucas centenas de metros, e o Defender se encontrava a cerca de um quilômetro. Ao ver as ondas erguendo-se em constante movimento e arremetendo contra as rochas de uma praia de denteados penhascos, Pitt se perguntou se Broadmoor não pretendia suicidar-se, rumando, como estava, para a furiosa rebentação. No entanto, olhando uma vez mais para o helicóptero que se acercava, preferiu depositar toda a fé no escultor de totens haida. E, apontando a proa da lancha para a popa da outra, manteve-se na espumante esteira de Broadmoor. Ambos avan­çaram sobre a ebulição das vagas que iam esboroar-se numa fortaleza de rochas.

Pitt teve a impressão de que estavam a ponto de colidir com as pedras castigadas pela agitação do mar. Segurando com força as ala­vancas e firmando os pés no chão, tratou de evitar ser jogado para fora. O rumor das ondas chegou como uma trovoada, e tudo o que ele conseguiu ver foi uma cortina de repuxos e espuma. Veio-lhe à mente a imagem do Polar Queen a derivar desamparado de encontro à estéril ilha rochosa da Antártida. Mas dessa vez, ele se achava a bordo de uma casca de noz, não de um transatlântico. Seguiu em frente, muito embora estivesse quase convencido de que Broadmoor tinha perdido definitivamente o juízo.

O índio contornou uma gigantesca rocha. Pitt o seguiu de perto na curva, deslocando o corpo para compensar a força centrífuga, e conti­nuou ferindo as águas em sua esteira. Foram suspensos na crista de uma gigantesca onda e tornaram a descer no vazio, para logo subir no dorso da seguinte.

O Defender estava quase sobre eles, mas o piloto ficou olhando com espanto para o rumo suicida escolhido pelos dois homens nas lanchas. Assombrado, não se lembrou de apontar e disparar as duas metralha­doras 7.62. Sem se esquecer do perigo que corria, tratou de subir ver­ticalmente e, inclinando o aparelho, iniciou uma ampla trajetória cir­cular. Depois de passar rapidamente por cima dos penhascos, voltou a sobrevoar o mar em busca das presas. No entanto, aqueles dez se­gundos tinham sido decisivos: as lanchas acabavam de desaparecer.

O instinto disse a Pitt que dali a cem metros o mar o arrojaria contra a dura muralha que se erguia a sua frente, e seria o fim de tudo. A única escolha era tentar voltar e enfrentar o fogo do helicóptero, mas preferiu manter-se firme em seu rumo. Os episódios de sua vida co­meçaram a passar como um filme diante de seus olhos. Então ele viu.

Uma pequena fenda na face mais baixa do penhasco se abriu subi­tamente como o buraco de uma agulha. Não tinha mais de dois metros. Broadmoor avançou diretamente para lá, entrou pela estreita abertura e desapareceu. Mesmo jurando que as laterais da lancha esbarrariam na entrada, Pitt o seguiu sem pestanejar e se viu repentinamente mer­gulhado numa gruta com teto em forma de V invertido. Pouco adiante, o índio reduziu a velocidade e parou junto a uma pequena plataforma rochosa. Desembarcou com pressa, tirou o casaco e começou a recheá-lo com as algas mortas que o mar tinha varrido para dentro da gruta. Pitt compreendeu imediatamente o astucioso plano do índio e, detendo também a sua lancha, não hesitou em imitá-lo.

Quando estavam cheios o suficiente para imitar dorsos decapitados, os casacos foram jogados na água, à entrada da gruta. Pitt e Broadmoor ficaram observando os bonecos que, arrastados de um lado para outro, foram levados pelo recuo das ondas para a agitação das águas mais distantes.

Acha que isso vai enganá-los?

Garanto que sim — respondeu o haida com segurança. — As saliências das rochas tornam a gruta invisível, lá de cima. — Pôs-se a escutar o barulho do helicóptero. — Aposto que em dez minutos eles estarão voltando para a mina, a fim de contar a John Delicadeza Mer­chant, caso ele tenha voltado a si, que nós nos arrebentamos nas pedras.

Broadmoor foi profético. O ruído do helicóptero, que ecoava no in­terior da gruta, começou a diminuir aos poucos e por fim desapareceu. Ele examinou os tanques de gasolina da lancha e sorriu.

Se dirigirmos em velocidade moderada, temos combustível para chegar ao povoado.

Proponho que fiquemos descansando até o anoitecer — disse Pitt. — Não vale a pena aparecer agora. O piloto pode estar desconfiado. Consegue navegar até lá no escuro?

Consigo até mesmo com os olhos vendados e com uma camisa-de-força. Vamos partir à meia-noite. Estaremos na cama às três horas.

Exaustos pela excitação da veloz travessia do canal e da proximidade da morte, passaram os minutos seguintes sentados, em silêncio, a ouvir a reverberação do fragor das ondas à entrada da gruta. Finalmente, Broadmoor abriu um pequeno compartimento de sua Wetjet e pegou um cantil revestido de lona. Destampou-o e o entregou a Pitt.

Vinho de frutas silvestres. Eu mesmo fiz.

Pitt tomou um longo gole e fez uma careta.

Você quis dizer aguardente de frutas silvestres, não?

É verdade que é meio forte. — Sorriu quando Pitt lhe devolveu o cantil. — Encontrou o que estava procurando na mina?

Encontrei. O engenheiro me levou à origem do problema.

Que bom. Então valeu a pena.

Você pagou um alto preço. Não vai mais poder vender peixe à empresa de mineração.

Eu me sentia uma puta aceitando o dinheiro de Dorsett — disse o índio com expressão de nojo.

Para consolá-lo, saiba que Boudicca Dorsett afirmou que seu pai pretende fechar a mina dentro de um mês.

Se for verdade, meu povo vai ficar contente — disse Broadmoor, entregando-lhe o cantil novamente. — Merece um brinde.

Eu tenho uma dívida com você que não posso pagar. Arriscou-se muito para me ajudar a escapar.

Valeu a pena dar uma bordoada na cabeça de Merchant e outra na de Crutcher — riu o haida. — Nunca me senti tão bem. Sou eu quem deve agradecer a oportunidade.

Pitt apertou a mão de Broadmoor.

Vou sentir saudade de você.

Vai embora?

Preciso levar a Washington a informação que conseguimos.

Para um cara do continente, até que você é boa gente, amigo Pitt. Se alguma vez precisar de um segundo lar, sempre será bem-vindo em nossa aldeia.

Olhe lá, hein? — disse Pitt com ternura. — É possível que um dia eu aceite a sua oferta.

Para não correr o risco de ser descobertos pelas patrulhas de Dorsett, eles saíram da gruta muito depois do anoitecer. Broadmoor amarrou uma pequena lanterna no pescoço, de modo que ficasse pendendo a suas costas. Animado pelo vinho de frutas silvestres, Pitt foi acompa­nhando a pequena luz pelas ondas e ao redor das rochas; estava as­sombrado com a facilidade com que o índio navegava na escuridão sem cometer um erro sequer.

A idéia de Maeve forçada a servir de espiã para o pai, que lhe havia seqüestrado os filhos e a chantageava, encheu-o de raiva. Também es­tava sentindo uma pontada no coração, uma sensação que havia anos não experimentava. Suas emoções colidiam com a lembrança de outra mulher. Só então ele se deu conta de que era possível sentir o mesmo amor por duas mulheres diferentes, de diferentes épocas, uma viva, outra morta.

Conduzido e dilacerado por emoções conflitantes de amor e ódio e pela determinação de deter Arthur Dorsett a qualquer custo, ante quais­quer conseqüências, segurou com força as alavancas, até que as arti­culações de seus dedos brilhassem, brancas, à luz do quarto crescente, e seguiu a catarata da esteira de Broadmoor.

 

O vento nordeste vinha soprando continuamente durante quase toda a tarde. Um vento forte, embora não conseguisse erguer mais de uma ocasional crista branca nas ondas, que chegavam a um metro de altura. Trouxe uma chuva intensa, em caudais, que reduziu a visibilidade a menos de cinco quilômetros e salpicou a água como se a superfície estivesse fervendo com milhões de arenques a debater-se.

Para um marinheiro, aquele não passava de um tempo miserável. Mas para um marujo britânico da cepa do capitão Ian Briscoe, que passara a juventude no convés de navios que percorriam infinitamente

mar do Norte, era como estar em casa. Ao contrário dos jovens oficiais, que procuravam evitar as lufadas e ficar no seco, Briscoe permanecia no tombadilho de seu barco, a recarregar o sangue nas veias, olhando por cima da proa como que esperando avistar um navio-fantasma não detectado pelos radares. Notou que o mercúrio estava constante e a temperatura, a vários graus acima de zero. Sentia-se bem no casaco impermeável, a não ser quando alguma gota de água lhe penetrava os fios da bem-aparada barba ruiva e lhe escorria pelo pescoço.

Depois de quinze dias em Vancouver, onde tinha participado de uma série de manobras com a Marinha canadense, o HMS Bridlington, um destróier tipo 42, sob o comando de Briscoe, estava retornando à Inglaterra via Hong Kong, escala obrigatória a todo navio de guerra britânico que navegasse no Pacífico. Apesar de já vencido o prazo de noventa e nove anos de concessão, e embora a colônia da Coroa Britânica tivesse sido devolvida à China em 1997, era uma questão de honra exibir ocasionalmente a Cruz de São Jorge e não deixar que os novos proprietários esquecessem quem eram os fundadores da Meca financeira da Ásia.

A porta da casa do leme se abriu e o segundo oficial, o tenente Samuel Angus, pôs metade do corpo para fora.

Se puder se abster durante alguns minutos de desafiar o tempo, capitão, o senhor fará o favor de entrar?

Por que não vem para fora, rapaz? — rosnou Briscoe na ventania. — Moleirões. Este é o problema dos jovens. Não passam de uns moleirões. Não sabem apreciar o tempo encoberto.

Por favor, capitão. Detectamos uma aeronave no radar. Está se aproximando.

Briscoe atravessou o tombadilho e entrou na casa do leme.

Que há de extraordinário nisso? Pode-se dizer que é rotina. De­zenas de aeronaves sobrevoam o navio.

— Um helicóptero, senhor? A dois mil e quinhentos quilômetros do continente americano e sem uma única embarcação militar daqui até o Havaí?

O cretino deve ter se perdido — resmungou o capitão. — Entre em contato com o piloto e pergunte se ele solicita que lhe dêem a posição.

Já tomei a liberdade de entrar em contato com ele, senhor — respondeu Angus. — Só fala russo.

Quem é capaz de entendê-lo aqui?

O tenente médico Rudolph. Ele fala russo fluentemente.

Chame-o.

Três minutos depois, um homem baixo e loiro se apresentou a Bris­coe, que estava sentado na cadeira alta de comandante, a contemplar a chuva.

Às suas ordens, capitão.

Há um helicóptero russo perdido na tempestade. Vá para o rádio e descubra por que está voando a esmo sobre um mar vazio.

O tenente Angus pegou um par de fones, ligou-o ao painel de co­municações e o entregou a Rudolph.

Já está na freqüência. Pode falar.

O tenente médico colocou os fones nos ouvidos e falou ao pequeno microfone. Briscoe e Angus esperaram pacientemente enquanto ele man­tinha o que parecia ser uma conversa unilateral. Por fim, voltou-se para o capitão.

O homem parece terrivelmente perturbado, quase incoerente. Pelo que entendi, vem vindo de um baleeiro russo.

Neste caso, só está fazendo o seu trabalho.

Rudolph sacudiu a cabeça.

Ele não pára de repetir "morreu todo mundo" e pergunta se há condições de pousar no Bridlington. Se assim for, quer vir a bordo.

Impossível — rosnou Briscoe. — Informe-o de que a Marinha Real não permite que aeronaves estrangeiras pousem nos navios de Sua Majestade.

Rudolph repetiu a mensagem exatamente quando os motores do helicóptero se tornaram audíveis e ele apareceu subitamente na chuva, uns quinhentos metros a bombordo da proa, a uma altitude não superior a vinte metros do mar.

Droga! — A exclamação explodiu nos lábios de Briscoe. — Só me faltava um terrorista querendo explodir meu navio!

Não costuma haver terroristas nesta parte do oceano — disse Angus.

Sei, sei, e a Guerra Fria acabou há mais de dez anos. Já sei disso tudo.

O que eu posso dizer é que o piloto parece apavorado — interveio Rudolph. — Não detectei nenhum sinal de ameaça em sua voz.

Briscoe ficou alguns minutos calado; depois, ligou o interfone do navio.

Radar, vocês estão atentos?

Sim, senhor — respondeu uma voz.

Algum navio na região?

Detectei uma embarcação grande e quatro menores a duzentos e setenta e dois graus, distância de noventa e cinco quilômetros.

Briscoe desligou e apertou outro botão.

— Comunicações?

Sim, senhor.

Veja se consegue localizar uma frota de baleeiros russos noventa e cinco quilômetros a oeste de nós. Se precisar de um intérprete, o médico do navio pode traduzir.

Meu vocabulário de trinta palavras russas deve bastar — respon­deu com bom humor o oficial de comunicações.

Briscoe olhou para Rudolph.

       Está bem. Diga-lhe que está autorizado a pousar em nosso heliporto.

O oficial médico transmitiu a mensagem. Todos ficaram observando o helicóptero mudar de curso e iniciar uma lenta aproximação da área de pouso, pouco adiante da popa, preparando-se para descer.

Aos olhos experimentados de Briscoe, o russo estava pilotando er­raticamente a aeronave, incapaz de compensar o vento forte.

— O cretino está voando como se tivesse sofrido um colapso nervoso - disse. Voltou-se para Angus. — Reduza a velocidade e mande uma comissão de recepção armada receber o visitante. — Calou-se e refletiu um pouco. — Se ele fizer um arranhão em meu navio, fuzilem-no.

Angus sorriu e, por trás do capitão, piscou para Rudolph ao mesmo tempo em que mandava o homem do leme reduzir a velocidade. Não havia insubordinação em seu humor. Briscoe era admirado por toda a tripulação como um velho e calejado lobo-do-mar, que tratava bem os seus homens e comandava com segurança o navio. Sabiam que poucas embarcações da Marinha Real contavam com capitães que preferiam cumprir seu dever no mar a receber promoções e permanecer em terra.

O visitante era uma versão menor do helicóptero russo Ka-32 Hélix, empregado em transporte de carga ligeira e operações de reconheci­mento. Aquele, usado pela frota de pesca na localização de baleias, achava-se em péssimo estado de conservação. Escorria óleo do motor; a pintura da fuselagem estava toda pelada e desbotada.

Aguardando sob a proteção dos anteparos de aço, os marinheiros britânicos se encolheram quando o helicóptero lançou sinais de luz a meros três metros de altura. O piloto diminuiu cedo demais as rotações do motor, e o aparelho desceu pesadamente no deque, voltou a sacu­dir-se no ar, caiu com brusquidão sobre as rodas e, enfim, parou feito um vira-lata machucado, em submissa imobilidade. O piloto desligou o motor, e as hélices se detiveram devagar. Abriu a porta e, antes de se voltar para os cinco marujos que avançavam, empunhando firme­mente os fuzis automáticos, olhou para a enorme cúpula do radar do Bridlington. Saltou ao deque e se deixou ficar a observá-los com curio­sidade, até ser rudemente tomado pelos braços e levado por uma escotilha aberta. Os marinheiros o escoltaram por três conveses, até a larga escada de tombadilho, e pelo corredor que levava à câmara dos oficiais.

O tenente comandante Roger Avondale, primeiro-oficial do navio, tinha participado do comitê de recepção e se colocou junto ao tenente Angus. O tenente médico Rudolph esperava ao lado de Briscoe, a fim do servir de intérprete. Examinando os olhos do piloto russo, encontrou uma mistura de pavor e cansaço em suas dilatadas pupilas.

Briscoe fez um sinal para Rudolph.

Pergunte-lhe que diabos o faz acreditar que pode pousar num navio estrangeiro quando lhe dá na telha.

Também pode perguntar por que ninguém estava voando com ele — acrescentou Avondale. — Não me parece normal que tenha ido procurar baleias sozinho.

Rudolph e o piloto iniciaram um animado diálogo, que deve ter durado uns três minutos. Por fim, o médico se voltou e disse:

Ele se chama Fiodor Gorímikin. E piloto de uma frota de baleeiros do porto de Nicolaievsk, encarregado da localização das baleias. Se­gundo o seu relato, ele, o co-piloto e um observador estavam fazendo uma busca para os barcos de captura...

Barcos de captura? — perguntou Angus.

São navios rápidos, de uns sessenta e cinco metros de compri­mento, que disparam arpões explosivos nas baleias distraídas — expli­cou Briscoe. — Depois, inflam de ar o corpo da baleia, para que continue flutuando, e instalam nele um transmissor de rádio, que fica emitindo sinais de orientação, e vão embora para continuar a caça. Mais tarde, retornam e rebocam o animal.

Eu tomei um aperitivo com o capitão de um navio desses há alguns anos, em Odessa — contou Avondale. — Ele me convidou a bordo. Era uma embarcação enorme, com quase duzentos metros de comprimento, totalmente auto-suficiente, com equipamento de alta tec­nologia, laboratórios e até um hospital completo. São capazes de içar uma baleia azul de cem toneladas até uma rampa, retirar-lhe a gordura como a gente descasca uma banana e derretê-la num tambor rotativo. Uma vez extraído o óleo, o resto é embalado como farinha de peixe ou de ossos. O processo todo dura pouco mais de meia hora.

Depois de ter sido caçadas até quase a extinção, é um milagre que ainda existam baleias — murmurou Angus.

Vamos ouvir a história do homem — impacientou-se Briscoe.

Bem, uma vez que não conseguiram localizar nenhum cardume — prosseguiu Rudolph —, retornaram ao navio-fábrica, o Alecsandr Gortchacov. Ao pousar, ele jura que encontrou morta toda a tripulação da embarcação, assim como as dos barcos de captura próximos.

E o co-piloto e o observador?

Ele diz que entraram em pânico.

Aonde pretendia ir?

Rudolph interrogou o russo e traduziu a resposta:

Até onde o combustível lhe permitisse chegar.

Pergunte-lhe o que foi que matou seus colegas.

Após uma nova troca de palavras, Rudolph deu de ombros.

Ele não sabe. Só pode dizer que todos estavam com expressão de agonia e pareciam ter se afogado no próprio vômito.

A história é fantástica, para dizer o mínimo — observou Avondale.

Se ele não estivesse com essa cara de quem saiu de um cemitério cheio de fantasmas — disse Briscoe —, eu pensaria que o homem é louco varrido.

Avondale olhou para o capitão.

Devemos acreditar na palavra dele, senhor?

Briscoe refletiu um momento; depois fez que sim.

Acrescente dez nós e depois entre em contato com o comando da frota do Pacífico. Informe-o da situação e avise que estamos alterando nosso curso para investigar.

Antes que as ordens fossem cumpridas, uma voz familiar soou no sistema de alto-falantes:

Tombadilho, aqui é o radar.

Prossiga, radar — autorizou Briscoe.

Capitão, são esses navios que o senhor nos mandou localizar.

Sei, que há com eles?

Bem, senhor, não estão em movimento, mas começaram a desa­parecer da tela do radar.

Seu equipamento está funcionando bem?

Está sim, senhor.

Briscoe pareceu confuso.

Explique o que está querendo dizer com "desaparecer".

Isso mesmo, senhor — respondeu o oficial do radar. — Tenho a impressão de que os navios estão afundando.

Ao chegar à ultima posição conhecida da frota pesqueira russa, o Bridlington não encontrou nenhum navio flutuando na superfície. Bris­coe ordenou uma operação de busca e, depois de navegar de um lado para outro, encontraram uma vasta camada de óleo cercada de destroços espalhados em toda parte, alguns agrupados aqui e ali. O piloto russo so aproximou correndo da amurada, apontou para um objeto na água c começou a gritar, cheio de aflição.

Por que ele está berrando desse jeito? — Avondale perguntou a Rudolph do tombadilho.

Está dizendo que o navio sumiu, todos os seus amigos sumiram, seu co-piloto e o observador sumiram.

E está apontando para quê? — quis saber Briscoe.

Rudolph olhou para o mar e depois se voltou para cima.

É um colete salva-vidas com a inscrição Alecsandr Gortchacov.

Avistei corpos flutuando — anunciou Angus, que estava olhando com o binóculo. — São quatro corpos ao todo. Mas não por muito tempo. Há barbatanas de tubarões circulando ao redor deles.

Dê alguns tiros de Bofors nesses carniceiros — ordenou Briscoe. — Quero os cadáveres intactos, para que possam ser examinados. Man­de as lanchas resgatar tudo o que puder ser resgatado. Em algum lugar, hão de querer todas as evidências que pudermos colher.

Quando as metralhadoras gêmeas Bofors começaram a alvejar os tubarões, Avondale disse a Angus:

Que coisa mais esquisita! Que terá acontecido?

Angus se virou e riu para ele.

Eu diria que, depois de terem sido caçadas durante dois séculos, as baleias finalmente conseguiram vingar-se.

 

Pela primeira vez em quase dois meses, Pitt estava à escrivaninha de seu escritório. Com o olhar distante, manuseando distraidamente a faca Sea Hawk de mergulhador que usava como corta-papel, ficou es­perando calado a resposta do almirante Sandecker, sentado a sua frente.

Tinha chegado a Washington bem cedo, naquela manhã de domingo, e fora diretamente ao vazio quartel-general da ANPS, onde passou as seis horas seguintes escrevendo um detalhado relatório sobre suas des­cobertas na ilha Kunghit e oferecendo sugestões quanto a como lidar com o fenômeno acústico submarino. A redação do documento foi um verdadeiro anticlímax após os exaustivos rigores dos últimos dias. Ago­ra, tinha de resignar-se a aceitar que outros homens, mais qualificados, se ocupassem do problema e tratassem de encontrar as soluções ade­quadas.

Girando na cadeira, olhou, pela janela, para o rio Potomac, e viu Maeve no convés do Ice Hunter, com expressão de medo e desespero. Sentiu muita raiva de si mesmo por havê-la abandonado. Tinha certeza de que fora a bordo do Ice Hunter que Deirdre a havia informado do seqüestro de seus filhos. Maeve voltara-se para o único homem em quem podia confiar, e ele não tinha sido capaz de notar a sua aflição. Essa parte da história não figurava no relatório, que Sandecker naquele momento acabava de fechar e estava colocando na mesa.

Uma proeza notável — disse. — E um milagre que você ainda esteja vivo.

Contei com a ajuda de gente muito boa.

Você e Giordino já fizeram o que podiam ter feito neste caso. Quero que tirem uns dias de férias. Vá para casa e ocupe-se de seus carros antigos.

Nao serei eu quem irá se opor a isso — sorriu Pitt, massageando os antebraços doloridos.

A julgar pelo modo como você teve de fugir, Dorsett e suas filhas jogam mesmo pesado.

Com exceção de Maeve. É a ovelha negra da família.

Você já deve saber que ela está trabalhando com Roy Van Fleet em nosso departamento de biologia.

Pesquisando os efeitos do ultra-som na vida marinha, eu sei.

Sandecker olhou para Pitt, examinando detidamente cada linha de seu rosto curtido mas ainda jovem.

Podemos confiar nessa moça? Ela não estará passando para o pai os dados de nossas pesquisas?

Os olhos verdes de Pitt continuaram imperturbáveis.

Ela nada tem em comum com as irmãs.

Notando que uma discussão sobre Maeve não era bem-vinda, San­decker mudou de assunto.

Falando nas irmãs, Boudicca Dorsett lhe deu alguma indicação de por que seu pai pretende encerrar as atividades dentro de algumas semanas?

Nenhuma.

Pensativo, o almirante se pôs a rolar o charuto entre os dedos.

Como Dorsett não atua em território americano, a curto prazo não temos como deter futuras matanças.

Basta fechar uma das quatro minas para que as ondas sonoras percam a potência destrutiva.

Estamos com as mãos atadas. A menos que se ordene um ataque de bombardeiros B-l, coisa que o presidente não vai fazer.

Deve existir uma lei internacional que se aplique a assassinato em alto-mar.

O almirante sacudiu a cabeça.

Nenhuma que contemple esta situação. A inexistência de uma organização internacional que imponha o cumprimento da lei favorece Dorsett. A ilha Gladiator pertence exclusivamente à família, e demoraria mais de um ano para convencer os russos a fechar a mina da Sibéria. O mesmo vale para o Chile. Enquanto Dorsett estiver subornando os altos funcionários dos governos, suas minas continuarão fazendo o que quiserem.

E os canadenses? — perguntou Pitt. — Se lhe derem sinal verde, a Polícia Montada está disposta a fechar a ilha Kunghit amanhã mesmo, por causa do emprego de imigrantes clandestinos e do trabalho escravo por parte da Dorsett.

E que os impediu de invadir a mina até agora?

Pitt se lembrou das palavras do inspetor Stokes sobre os burocratas e os membros do Parlamento que Dorsett tinha nas mãos.

As mesmas barreiras: funcionários corruptos e advogados esper­talhões.

Dinheiro chama dinheiro — filosofou Sandecker. — Dorsett é muito bem financiado e organizado para tropeçar em métodos ordiná­rios. E uma amostra incrível do poder econômico.

Não estou acostumado a vê-lo em atitude derrotista, almirante. Duvido que esteja disposto a entregar o jogo.

O olhar de Sandecker assumiu a expressão de uma serpente a pre­parar o bote.

Quem falou em entregar o jogo?

Pitt adorava provocar o chefe. Não tinha acreditado um minuto se­quer que ele fugiria à luta.

Que pretende fazer?

Como não posso ordenar uma invasão armada numa propriedade comercial, que envolveria a morte de centenas de civis inocentes, nem mandar as Forças Especiais saltar de pára-quedas e neutralizar todas as escavações de Arthur Dorsett, sou obrigado a tomar o único caminho que me resta.

Qual seria?

Manifestar-me publicamente — disse o almirante sem hesitar nem mudar de expressão. — A primeira coisa que vou fazer amanhã é chamar uma coletiva de imprensa e acusar Atrhur Dorsett de ser o pior monstro que a humanidade já produziu depois de Átila, o huno. Revelarei as causas das mortes em massa e jogarei a culpa nele. A seguir, vou incitar alguns membros do Congresso para que pressionem o Departamento de Estado, que, por sua vez, pressionará os governos do Chile, do Canadá e da Rússia para que proíbam todas as atividades da Dorsett em seu território. Depois, vamos esperar para ver no que dá.

Pitt fitou Sandecker, admirado, e sorriu. O almirante estava nave­gando em águas turbulentas sem dar a mínima para os torpedos ou as conseqüências.

Vai ser o diabo se ele se voltar contra o senhor.

Desculpe a minha bravata. Você sabe tanto quanto eu que não vai haver nenhuma coletiva. Sem provas concretas e evidentes, tudo o que eu conseguiria seria uma vaga no hospício mais próximo. Pessoas como Arthur Dorsett se auto-regeneram. Não é fácil destruí-las. São criadas por um sistema de ambições que conduz diretamente ao poder. O mais patético é que essa gente não sabe como gastar sua fortuna nem está disposta a dar alguma coisa aos necessitados. — O almirante fez uma pausa e acendeu o charuto com um gesto teatral. — Não sei como, mas juro pela Constituição que vou cravar esse canalha quando ele menos esperar.

Maeve se fez bonita apesar do sofrimento. No princípio, chorava muito quando estava a sós na casinha colonial de Georgetown, que os auxiliares de seu pai haviam alugado. O medo lhe maltratava o coração toda vez que pensava no que podia estar acontecendo aos filhos na ilha Gladiator. Queria correr ao encontro deles e levá-los a um lugar seguro, mas era impotente. Sonhava sempre com os dois. Tais sonhos, porém, se convertiam em pesadelos quando ela acordava. Não tinha a mais remota esperança de combater os ilimitados recursos de seu pai. Mesmo sem jamais tê-los detectado, sabia que os guarda-costas do velho Dorsett controlavam cada movimento seu.

Roy Van Fleet e a esposa, Robin, que a haviam acolhido sob a sua proteção, convidaram-na a uma festa oferecida pelo rico proprietário de uma empresa de exploração submarina. Maeve não estava com a menor vontade de ir, porém Robin insistiu muito; sem sequer imaginar o tormento pelo qual a pobre moça estava passando, recusou-se a aceitar uma resposta negativa e teimou em que ela precisava distrair-se um pouco.

Haverá punhados de ricaços influentes e políticos — argumentou. — Não podemos faltar.

Depois de maquiar-se e prender firmemente o cabelo num coque, Maeve pôs um vestido de chiffon de seda marrom, todo bordado no peito, que lhe chegava bem acima dos joelhos. Uma extravagância que se havia permitido em Sídnei e que, à época, lhe pareceu chique. Agora, não tinha tanta certeza. Sentia-se acanhada ante a idéia de exibir tanta perna numa recepção em Washington.

Ora, que se dane — disse diante do espelho de corpo inteiro. — Ninguém me conhece mesmo.

Olhou pela janela, por trás da cortina. Havia um pouco de neve no chão, mas as ruas estavam limpas. Embora a temperatura estivesse bai­xa, o frio não chegava a ser insuportável. Serviu-se de uma dose de vodca com gelo, vestiu um casaco preto, longo até os tornozelos, e ficou esperando que os Van Fleet viessem buscá-la.

À entrada do clube de campo, Pitl mostrou o convite que o almirante lhe dera e passou pelas bonitas portas de madeira entalhada ao gosto dos golfistas famosos. Deixou o sobretudo na chapelaria e foi conduzido ao espaçoso salão de baile, revestido de nogueira escura. Um dos de­coradores da elite de Washington conseguira imprimir ao ambiente uma assombrosa ilusão de fundo do mar. Peixes de papel habilmente desenhados pendiam cio teto, enquanto a iluminação oculta emprestava à atmosfera um suave e oscilante colorido azul-esverdeado, que pro­porcionava um agradável efeito aquático.

O anfitrião, o presidente da Deep Abyss Engineering, sua esposa e outros funcionários da empresa alinhavam-se à entrada para receber os convidados. Tratando de evitá-los, Pitt desviou da fila e foi direta­mente para um dos cantos escuros do bar, onde pediu uma tequila com gelo e limão. Então, voltando-se e apoiando as costas no balcão, examinou a sala.

Havia umas duzentas pessoas. A orquestra tocava um pot-pourri de trilhas sonoras cinematográficas. Ele reconheceu vários deputados e quatro ou cinco senadores, todos envolvidos com comissões ligadas aos oceanos e ao meio ambiente. Muitos dos homens estavam de smo­king. A maioria trajava ternos escuros comuns, alguns com vistosas faixas e gravatas borboletas. Pitt preferia algo mais tradicional. Seu smoking incluía um colete atravessado por uma pesada corrente de ouro presa a um relógio de bolso que pertencera a seu bisavô, outrora en­genheiro de locomotivas a vapor na ferrovia de Santa Fé.

As mulheres, em sua maioria esposas — com um punhado de aman­tes de permeio —, estavam elegantemente vestidas, algumas com ves­tidos longos, outras com saias mais curtas e casacos adornados com brocados ou paetês. Não era difícil distinguir os pares solteiros dos casados. Estes ficavam lado a lado como velhos amigos, aqueles toca­vam-se constantemente.

Pitt costumava isolar-se nos coquetéis, preferindo fugir da conversa frívola que neles se entretinha. Aborrecia-se com facilidade e, em geral, depois de uma hora acabava voltando a seu apartamento, no hangar. Aquela noite era diferente. Ele tinha uma motivo para estar lá. Sandecker o havia informado de que Maeve compareceria com os Van Fleet.

Seus olhos percorreram as mesas e a povoada pista de dança, mas não encontraram sinal dela. Ou mudara de idéia no último minuto ou ainda não tinha chegado, imaginou. Sem vontade de disputar a atenção das belas moças cercadas de admiradores, escolheu uma balzaquiana simples, que devia pesar tanto quanto ele. Estava sozinha a uma mesa e ficou emocionada quando o bem-apessoado desconhecido se aproxi­mou e a convidou a dançar. Pitt descobrira que as mulheres de que os outros homens não faziam caso, as que não chamavam a atenção pela beleza, costumavam ser as mais inteligentes e interessantes. E resultou que aquela era uma alta funcionária do Departamento de Estado e o divertiu muito com um vasto repertório de fofocas sobre as relações internacionais. Ele dançou ainda com duas outras damas que alguns consideravam pouco atraentes, a secretária particular do anfitrião e a assessora de um senador que presidia a Comissão dos Oceanos. Tendo cumprido seu agradável dever, retornou ao bar para mais uma tequila.

Foi quando Maeve entrou no salão.

Ao vê-la, ele se sentiu agradavelmente surpreso com a cálida aura que lhe envolvia o corpo. Todo o recinto pareceu anuviar-se, e os pre­sentes ficaram encobertos por uma neblina cinzenta, restando unica­mente ela com seu esplendor.

Pitt voltou à realidade quando Maeve, adiante dos Van Fleet, passou pelos anfitriões enfileirados à entrada e olhou para os numerosos con­vidados. Presos num coque, seus cabelos loiros e compridos agora dei­xavam à mostra todos os detalhes do rosto, realçando-lhe os pômulos. Ela ergueu a mão e a levou ao peito, os dedos ligeiramente estirados. O vestido curto exibia as pernas longas e bem torneadas, acentuando-lhe a escultura perfeita do corpo. Era majestosa, pensou ele com uma ponta de desejo. Não havia outra palavra para descrevê-la. Ela se movia com a graça de uma ave prestes a levantar vôo.

Que mulherão! — exclamou o bamian, com os olhos presos em Maeve.

Concordo em número, gênero e grau — murmurou Pitt.

A seguir, ela e os Van Fleet se aproximaram de uma mesa, sentaram-se e fizeram seus pedidos ao garçom. Maeve mal havia se acomo­dado na cadeira quando vários homens, alguns jovens, outros com idade avançada, foram tirá-la para dançar. Ela recusou educadamente todos os convites. Pitt achou curioso que nenhum apelo fosse capaz de de movê-la. Os galãs desistiram logo e se afastaram com um infantil sen­timento de rejeição. Os Van Fleet pediram licença e foram dançar antes que servissem o hors-d'oeuvre. Maeve ficou a sós.

Ela é simplesmente um tesão! — observou o barman.

Hora de entrar em campo — Pitt disse ao colocar o copo vazio no balcão.

Avançou em linha reta pela pista, entre os casais dançantes, sem se desviar à esquerda nem à direita. Esbarrou num grandalhão que logo reconheceu como um senador do Estado de Nevada. Este fez menção de dizer alguma coisa, mas Pitt o calou com um olhar intimidador.

Maeve olhava, entediada, à sua volta, quando percebeu vagamente que um homem se aproximava. A princípio, não lhe deu atenção, ima­ginando que se tratasse apenas de mais um desconhecido que quisesse dançar com ela. Em outro lugar e em outro tempo, ter-se-ia sentido lisonjeada com tantas atenções, porém seus pensamentos estavam a vinte mil quilômetros dali. Só quando o intruso chegou à mesa e, apoian­do as mãos na toalha azul, inclinou-se, ela o reconheceu. Seu rosto se iluminou com uma indizível alegria.

Oh, Dirk, pensei que nunca mais fosse vê-lo! — disse quase sem fôlego.

Vim pedir desculpas por não ter me despedido quando Al e eu partimos abruptamente do Ice Hunter.

Aquela atitude a surpreendeu e ao mesmo tempo agradou-a. Pensava que Pitt já a tivesse esquecido. Agora, no entanto, era evidente a afeição expressa em seus olhos.

Você não podia saber quanto eu precisava de sua ajuda — mur­murou.

Ele contornou a mesa e se sentou a seu lado.

Agora eu sei de tudo.

Maeve virou o rosto, evitando-lhe o olhar.

Você não tem a menor idéia da minha situação.

Pitt lhe segurou a mão. Era a primeira vez que a tocava deliberadamente.

Tive uma conversinha agradável com Boudicca — sorriu com sarcasmo. — Ela me contou tudo.

O porte majestoso e a graça de Maeve desabaram.

Você? Boudicca? Como é possível?

Ele se levantou e a puxou delicadamente.

Vamos dançar um pouco. Depois eu lhe conto.

E, como por encanto, lá estava ele, abraçando-a, estreitando-a com força, e Maeve correspondia, amoldava-se a seu corpo. Pitt fechou mo­mentaneamente os olhos, inalando-lhe o perfume. O aroma de sua loção de barbear espalhou-se nela como as ondulações na superfície de um lago nas montanhas. Dançaram de rosto colado o Moon River, de Henry Mancini.

Maeve se pôs a cantarolar. De súbito, ficou tensa e o afastou ligei­ramente.

Sabe de meus filhos?

Como se chamam?

Sean e Michael.

Seu pai os está mantendo reféns na ilha Gladiator, para lhe ex­torquir informações a respeito das pesquisas da ANPS sobre as mortes no mar.

Maeve fitou-o, confusa. Contudo, antes que pudesse fazer mais per­guntas, ele a estreitou novamente. Passados alguns momentos, notou que ela estava chorando baixinho.

Estou tão desesperada! Não sei a quem pedir ajuda.

Pense só no momento — disse ele com ternura. — O resto virá por si.

O alívio e o prazer de estar na companhia daquele homem ajuda­ram-na a colocar de lado os problemas imediatos, e ela tornou a mur­murar os versos de Moon River.

"Estamos à procura do fim do arco-íris na próxima curva do rio, meu amigo e eu"...

A música terminou. Ainda nos braços de Pitt, Maeve ergueu o rosto e sorriu por entre as lágrimas.

É você.

Pitt a fitou.

Quem?

O amigo de que fala a música. Você, Dirk, é a perfeita encarnação desse personagem, sempre a navegar à espera de encontrar alguma coisa, que não sabe o que é, na próxima curva do rio.

Talvez ele e eu tenhamos alguma coisa em comum.

Continuaram abraçados na pista quando a orquestra fez uma pausa e os pares começaram a voltar para as mesas. Nenhum dos dois se deu conta dos olhares irônicos neles pousados. Maeve disse:

Vamos embora daqui. — E, sem reprimir o que estava pensando, acrescentou: — Eu quero você.

Assim que pronunciou as palavras, sentiu-se constrangida e corou. Que esse homem vai pensar de mim?, perguntou-se, mortificada.

Ele mostrou um amplo sorriso.

Vá despedir-se dos Van Fleet enquanto eu pego o carro. A gente se encontra lá fora. Espero que tenha trazido um agasalho.

Os Van Fleet trocaram olhares significativos quando Maeve anunciou que ia sair com Pitt. Com o coração disparado, ela atravessou o salão, pegou o casaco no chapelaria e correu para a porta. Lá fora, ao descer os degraus, viu-o junto a um carro baixo, vermelho, dando uma gorjeta ao manobrista. O automóvel parecia de corrida. Além dos bancos gê­meos, não tinha revestimento algum. O pequeno pára-brisa curvo mal protegia contra o vento. Não havia pára-choques, e as rodas dianteiras estavam cobertas pelo que Maeve tomou pelos pára-lamas de uma motocicleta. O estepe ia preso ao lado direito da carroceria, entre o pára-lama e a porta.

Você viaja nisto?

Viajo — respondeu ele sem dissimular o orgulho.

Como se chama?

É um J2X Allard. — Pitt lhe abriu a minúscula porta de alumínio.

Parece antigo.

Fabricado na Inglaterra em 1952, pelo menos vinte e cinco anos antes do seu nascimento. Com o grande motor V-8, americano, os Allard ganharam todas as corridas de carros esporte até que a Mercedes lan­çasse o 300 SL.

Maeve se instalou no banco espartano, as pernas esticadas quase paralelamente ao chão. Notou que não havia velocímetro no painel, somente quatro mostradores e um tacômetro.

Esta coisa vai nos levar a algum lugar? — perguntou com incredulidade.

Não é confortável, mas quase alcança a velocidade do som — respondeu Pitt, rindo.

Não tem nem capota!

Nunca saio com ele quando está chovendo. — Entregou-lhe um lenço de seda. — Para o seu cabelo. Venta muito aqui dentro. E não se esqueça do cinto de segurança. Sua porta tem o péssimo hábito de se abrir nas curvas fechadas para a esquerda.

Colocou-se ao volante, enquanto Maeve atava o lenço sob o queixo. Girou a chave, pisou na embreagem e engatou a primeira. Não seu ouviu nenhum rugido estridente, nenhum gemido dos pneus. Ele saiu do clube num silêncio e numa lentidão de cortejo fúnebre.

Como você passa as informações da ANPS a seu pai? — perguntou como que ao acaso.

Ela ficou alguns momentos calada, sem coragem de olhá-lo nos olhos.

Um dos auxiliares de meu pai vai a minha casa vestido de en­tregador de pizza.

Não é brilhante, mas não deixa de ser inteligente — comentou Pitt, examinando um moderno Cadillac STS estacionado à entrada, junto aos enormes portões do clube de campo. Viu pelo espelho retrovisor quando o luxuoso carro piscou os faróis e se pôs a seguir o Allard a uma prudente distância. — Você está sendo seguida?

Disseram-me que seria vigiada de perto, mas ainda não vi nin­guém atrás de mim.

Você não é muito observadora. Um automóvel está nos seguindo.

Ela lhe segurou o braço com força.

Este carro deve ser veloz. Por que não acelera e os deixa para trás?

Deixá-los para trás? — Pitt olhou para ela e viu a excitação em seus olhos. — É um Cadillac STS, com motor com mais de trezentos HP, capaz de uns duzentos e sessenta quilômetros por hora. Este car­rinho também tem motor Cadillac, com dupla carburação e...

Isso não significa nada para mim.

É simples. Este carro era muito veloz há quarenta e oito anos. Ainda é bem rápido, mas não passa dos duzentos e dez por hora, mesmo a favor do vento. A verdade é que está superado em potência do motor e velocidade.

Você precisa fazer alguma coisa para se livrar desses caras.

Eu sei disso. Mas acho que você não vai gostar.

Pitt subiu lentamente uma inclinada ladeira e esperou até ter descido pelo outro lado. Então pisou até o fundo no acelerador. Momentanea­mente fora de vista, obteve uma preciosa vantagem de cinco segundos sobre o motorista do Cadillac. Com um novo impulso, o carrinho esporte vermelho deu um salto abrupto no asfalto. As árvores que o margeavam, cujos ramos desfolhados se estendiam por cima da estrada qual esque­lético toldo, transformaram-se num desvairado borrão à luz dos faróis. A sensação era a de estar caindo num poço. Olhando pelo minúsculo espelho retrovisor, montado numa haste presa à carroceria, Pitt calculou que tinha obtido uns cento e cinqüenta metros de vantagem sobre o Cadillac antes que seu motorista tivesse chegado ao topo da ladeira e percebido que sua presa havia se adiantado. Sua vantagem, agora, era de uns trezentos metros. Considerando a velocidade superior do Ca­dillac, seria alcançado dentro de quatro ou cinco minutos.

A estrada reta atravessava uma região pantanosa da Virgínia, na periferia de Washington, ocupada por haras. O trânsito era praticamente inexistente àquela hora da noite, de modo que não foi difícil ultrapassar dois outros carros mais lentos. O Cadillac continuava avançando, che­gando mais perto a cada quilômetro. Relaxado, Pitt segurava o volante de leve. Não estava com medo. Os homens no carro que o perseguia não pretendiam fazer-lhes mal, nem a ele nem a Maeve. Não era uma luta de vida e morte. O que sentiu foi uma grande excitação quando o ponteiro do tacômetro chegou ao vermelho; a sua frente, estendia-se uma rodovia praticamente vazia, e o vento lhe soprava nos ouvidos em coro com o ruído gutural dos dois enormes tubos de escape insta­lados sob as laterais do Allard.

Ele tirou os olhos da estrada um instante e fitou Maeve. Pressionada no respaldo, a cabeça ligeiramente erguida como para respirar o ar que soprava por cima do pára-brisa, ela mantinha os olhos semicerrados e os lábios entreabertos. Quase como se estivesse à beira do êxtase sexual. Fosse como fosse, não era a primeira mulher a se deixar arrebatar pelo encanto da aventura, pela emoção, a fúria dos ruídos, a velocidade. E o que toda mulher desejava ter a seu lado naquelas circunstâncias era um bom homem.

Até chegar à periferia da cidade, Pitt não pôde fazer mais do que pisar no acelerador e manter as rodas alinhadas com a faixa intermitente pintada no asfalto. Sem velocímetro, tinha de calcular a velocidade pelo tacômetro. Na melhor das hipóteses, devia estar entre os cento e noventa e os duzentos quilômetros por hora. O velho automóvel estava dando tudo.

Presa pelo cinto de segurança, Maeve torceu o corpo no banco e olhou para trás.

— Estão nos alcançando! — gritou, contra o barulho do motor e o vento.

Pitt olhou de relance pelo espelho retrovisor. O carro perseguidor achava-se agora a uns cem metros de distância. O motorista era dos bons, pensou. Tinha reflexos tão rápidos quanto os dele. E tornou a olhar para a estrada.

Estavam entrando num bairro residencial. Pitt avaliou a hipótese de tentar despistar o Cadillac naquelas ruas, mas era perigoso demais. Não podia arriscar atropelar uma família e seu cachorro que, eventual­mente, estivessem dando uma volta tarde da noite. Não estava disposto a provocar um acidente fatal envolvendo inocentes.

Por segurança, dentro de um ou dois minutos teria de reduzir a velocidade e misturar-se ao trânsito cada vez mais intenso. Por enquan­to, porém, a estrada estava deserta, e ele continuou acelerando. Então, avistou o sinal que alertava quanto às obras numa estrada vicinal, no cruzamento seguinte, estrada que, ele sabia, tinha numerosas curvas fechadas. Percorria uns cinco quilômetros em campo aberto e terminava na autopista que passava pelo quartel-general da CIA, em Langley.

Tirou o pé do acelerador e pisou no freio. A seguir, girou o volante para a esquerda, jogando o Allard de lado antes de entrar no centro da pista, os pneus soltando fumaça e uivando no asfalto. Antes que o carro parasse, os pneus traseiros giraram, fazendo-o saltar na estrada vicinal que levava à escuridão da zona rural.

Pitt era obrigado a se concentrar totalmente nas curvas à frente. Os velhos faróis não iluminavam tanto a estrada quanto as modernas peças halógenas, de modo que tinha de se valer do sexto sentido para se preparar para a curva seguinte. Ele adorava cortar caminho, alheio aos freios, levando o carro a derrapagens controladas e logo manobrando para endireitar o seu curso até a curva seguinte.

O Allard estava agora em seu elemento. Bem mais pesado, o Cadillac tinha molas boas para a estrada, mas sua suspensão não podia competir com a do carro esporte, construída para a corrida. Pitt tinha um caso de amor com o Allard. Conhecia excepcionalmente sua estabilidade e exaltava a simplicidade de seu enorme e poderoso motor. Um sorriso tenso lhe dilatava os lábios quando entrava numa curva, dirigindo como um demônio, sem tocar nos freios, diminuindo a velocidade unicamente nas curvas em U. O motorista do Cadillac lutava com valentia, porém ia perdendo terreno rapidamente a cada curva.

Havia uma barreira pouco adiante, as luzes amarelas a piscar. Ti­nham aberto uma vala ao lado da estrada, onde estavam instalando canos hidráulicos. Pitt ficou aliviado ao ver que a rodovia não ficara completamente bloqueada. Havia uma passagem. Mesmo ao passar por um trecho de terra e pedrisco de cerca de cem metros, não tirou o pé do acelerador. Alegrou-se com a imensa nuvem de poeira que se ergueu em sua esteira, sabendo que ela obrigaria seus perseguidores a diminuir a velocidade.

Dois minutos mais tarde, Maeve apontou para a frente, um pouco à direita.

Estou vendo faróis.

A auto-estrada — disse Pitt. — E aqui que vamos despistá-los.

Não havia tráfego no cruzamento; de qualquer direção, nenhum veí­culo se aproximava a menos de quinhentos metros. Ele queimou a bor­racha numa brusca guinada à esquerda, no sentido oposto ao da cidade.

Não tomou o caminho errado? — gritou Maeve em meio aos gemidos dos pneus.

Fique de olho e aprenda — retrucou Pitt, pisando de leve no freio e girando o volante para fazer o balão e tomar a pista contrária. Atravessou o cruzamento da estrada vicinal antes que o Cadillac pu­desse ser visto e ganhou velocidade rumando para o aglomerado de luzes da capital.

Por que fez isso?

Para enganá-los — respondeu ele tranqüilamente. — Se os caras forem espertos como imagino, vão seguir as marcas dos pneus na di­reção oposta.

Ela lhe segurou o braço e se aconchegou a ele.

Que vai fazer agora?

Bem, como já a impressionei com minha habilidade ao volante, chegou a hora de encantá-la com meu charme.

Ela o fitou com malícia.

E se eu tiver ficado com medo a ponto de perder o desejo da intimidade?

Posso penetrar a sua mente e ver que não é bem assim.

Como consegue ler meu pensamento?

Pitt deu de ombros e sorriu.

E um dom. Tenho sangue cigano nas veias.

Você? Cigano?

De acordo com a árvore genealógica de minha família, meus an­cestrais paternos eram ciganos espanhóis que emigraram à Inglaterra no século 17.

E agora você lê a mão e prevê o futuro?

Na verdade, meu talento toma outro rumo quando a Lua está cheia.

Ela o mirou com cautela.

Que acontece quando a Lua está cheia?

Pitt se voltou e, sem sombra de sorriso, respondeu:

Eu vou roubar galinhas.

 

Maeve olhou com desconfiança para a escura estrada de terra, no perímetro do aeroporto internacional de Washington, por onde Pitt en­veredara. Aproximaram-se do que parecia um hangar abandonado. Não havia nenhum outro prédio por perto. Sentindo um mal-estar, Maeve encolheu-se instintivamente quando ele deteve o Allard à fraca luz ama­relada de um alto poste.

Aonde você está me levando?

Pitt a fitou com ar divertido.

A minha casa, é claro.

Ela assumiu uma expressão de contrariedade tipicamente feminina.

E aí que você mora?

O que você está vendo é um edifício histórico, construído em 1936. Foi o hangar de manutenção de uma antiga empresa aérea há muito tempo extinta.

Tirando um pequeno controle remoto do bolso do sobretudo, ele digitou um código. Um segundo depois, uma porta se ergueu, revelando o que a Maeve pareceu a entrada de uma sombria caverna cheia de perigos. Para aumentar o efeito, Pitt apagou os faróis, entrou na escu­ridão, enviou um sinal para que a porta se fechasse e ficou ali.

E então? Que acha? — provocou.

- Estou com vontade de gritar por socorro — respondeu Maeve, cada vez mais confusa.

Desculpe-me. — Pitt digitou outro código, e o interior do hangar se inundou da luz de várias fileiras de lâmpadas fluorescentes estra­tegicamente instaladas no teto arqueado.

Maeve ficou boquiaberta ao dar com a inestimável coleção de auto­móveis clássicos, os aviões e o vagão de trem americano do começo do século. Identificou dois Rolls-Royce e um enorme Daimler conver­sível, mas não conhecia o Packard, o Pierce Arrow, o Stutze nem o Cord americanos, muito menos os outros carros europeus ali expostos, como o Hispano-Suiza, o Bugatti, o Isotta Fraschini, o Talbot Lago e o Delahaye. Os dois aviões, que pendiam do teto, eram um antigo Ford Trimotor e um caça Messerschmitt 262, da Segunda Guerra Mundial. A coleção era espantosa. A única peça que parecia fora de lugar era um estrado retangular com um motor de barco preso a uma antiga banheira de ferro fundido.

Tudo isso é seu? — balbuciou.

Tive de escolher entre isto e uma mulher e filhos — Pitt gracejou.

Maeve se voltou e, com coquetice, inclinou a cabeça.

Você não é tão velho assim para se casar e ter filhos. E que ainda não encontrou a mulher certa.

Acho que é verdade.

Infeliz no amor?

A maldição dos Pitt.

Ela olhou para um trailer Pierce Arrow azul-marinho.

É ali que você mora?

Ele riu e apontou para o mezanino.

Meu apartamento fica lá em cima. Por aquela escada circular ou, se estiver com preguiça, podemos subir pelo elevador de carga.

Prefiro fazer um pouco de exercício — sorriu ela.

Pitt a conduziu pela escada em espiral de ferro batido ornado. A porta se abria para uma sala de estar e escritório com estantes abarro­tadas de livros sobre o mar e estojos de vidro com os modelos dos navios que ele tinha localizado e descoberto em seu trabalho para a ANPS. A um lado da sala, outra porta conduzia a um enorme quarto decorado como o camarote do capitão de um antigo veleiro, sendo que um leme gigantesco fazia as vezes de guarda da cama. A extremidade oposta da sala de estar dava para a cozinha e uma pequena sala de jantar. A Maeve, sem dúvida, o apartamento recendia a masculinidade.

Então é aqui que o meu amigo se refugia depois de navegar pelas curvas do rio — disse ela, tirando os sapatos, instalando-se num sofá de couro e encolhendo as pernas nas almofadas.

Passo a maior parte do ano na água. Não fico aqui tanto quanto gostaria. — Ele tirou o sobretudo e desfez o nó da gravata-borboleta.

Que quer tomar?

Um conhaque cairia bem.

Pensando bem, eu a tirei da festa antes que você tivesse tempo de jantar. Vou preparar alguma coisa.

O conhaque basta. Posso comer amanhã.

Pitt lhe serviu um Rémy Martin e sentou-se a seu lado. Maeve o desejava desesperadamente. Queria atirar-se em seus braços, tocá-lo, mas a aflição a corroía por dentro. Invadida por uma súbita vaga de culpa, visualizou os filhos sofrendo sob o jugo brutal de Jack Ferguson. Não conseguia parar de pensar nisso. Sentia o peito apertado e o resto do corpo entorpecido e fraco. Estava morrendo de saudade de Sean e Michael, que para ela continuavam sendo bebês. Permitir-se uma aven­tura sensual naquelas circunstâncias era pouco menos do que um delito. Queria gritar de desespero. Colocando o conhaque na mesa de centro, começou a chorar abrupta e descontroladamente.

Pitt a abraçou.

É por causa dos meninos?

Sem parar de soluçar, ela fez que sim.

Desculpe, eu não queria decepcioná-lo.

Curiosamente, as emoções femininas não eram um grande mistério para Pitt, como acontecia com a maioria dos homens, e ele jamais ficava confuso nem perplexo diante das lágrimas. Às vezes, encarava o com­portamento afetivo das mulheres mais com compaixão do que com desconforto.

Quando uma mulher se vê dividida entre a preocupação pela prole e o impulso sexual, o instinto maternal sempre vence.

Maeve mal conseguia acreditar que Pitt pudesse ser tão compreen­sivo. Aquele homem não parecia humano. Certamente era diferente de todos os que ela conhecia.

Estou tão perdida e atemorizada... Nunca me senti tão desampa­rada na vida.

Ele se levantou e foi buscar uma caixa de lenços de papel.

Desculpe, não tenho lenços de tecido em casa. Não os uso mais.

Não está zangado... porque eu o decepcionei?

Pitt sorriu, vendo-a enxugar os olhos e assoar ruidosamente o nariz.

A verdade é que tenho outras intenções.

Ela arregalou os olhos com surpresa.

Não quer ir para a cama comigo?

Só se estivesse louco eu não quereria. Mas este não é o único motivo por que a trouxe aqui.

Não entendo.

Preciso de sua ajuda para consolidar meus planos.

Que planos?

Ele a encarou, surpreso com a pergunta.

De entrar na ilha Gladiator, claro, pegar os meninos e fugir.

Esforçando-se por compreender, Maeve se pôs a gesticular, nervosa.

O quê? Você arriscaria a própria vida por mim?

E por seus filhos — acrescentou ele com firmeza.

Por quê?

Pitt sentiu vontade de lhe dizer que ela era uma mulher adorável, encantadora, e de confessar a profunda afeição que sentia, mas não era capaz de se comportar como um adolescente apaixonado. Fiel à forma, preferiu uma explicação mais fácil.

Por quê? Ora, porque o almirante Sandecker me deu dez dias de férias, e eu detesto ficar sem fazer nada de produtivo.

Um sorriso iluminou o rosto ainda molhado de Maeve, que o atraiu para si e o abraçou.

Que mentira esfarrapada!

Por que será — disse ele antes de beijá-la — que as mulheres sempre conseguem saber o que está acontecendo aqui dentro? Sou tão transparente assim?

 

 

                                                                                   CONTINUA

 

 

DIAMANTES... UMA GRANDE ILUSÃO

30 de janeiro de 2000

Ilha Gladiator, mar da Tasmânia

A casa de Dorsett, na ilha, ficava numa selada entre dois vulcões extintos. A frente oferecia vista para uma lagoa, que se tornara um movimentado porto das atividades de mineração de diamante. Duas minas na encosta de ambos os vulcões estavam em operação quase contínua desde o dia em que Charles e Mary Dorsett voltaram casados da Inglaterra. Havia os que afirmavam que o império da família fora inaugurado naquela ocasião; outros, porém, conhecendo melhor a his­tória, sustentavam que tudo na verdade começara quando Betsy Fletcher achou aquelas pedras esquisitas e as deu aos filhos como brinquedo.

A moradia original, quase toda construída de madeira, com telhado de folhas de palmeira, fora demolida por Anson Dorsett, que projetou e construiu a vasta mansão que continuava existindo. Reformada por sucessivas gerações, foi finalmente ocupada por Arthur Dorsett. O estilo se baseava no modelo clássico — um pátio central cercado de varandas com portas que davam para trinta cômodos, todos mobiliados com antigüidades coloniais inglesas. A única instalação moderna visível era uma enorme antena parabólica, que se erguia num jardim exuberante, e uma grande piscina no centro do pátio.

 

 

 

 

Arthur Dorsett desligou o telefone, saiu do escritório e foi para a piscina, à beira da qual Deirdre, com um reduzidíssimo biquíni, estava languidamente estendida numa espreguiçadeira, a absorver com cui­dado o sol tropical na aveludada pele.

— É melhor que os meus superintendentes não a vejam assim — resmungou ele.

A moça ergueu lentamente a cabeça e olhou para o próprio corpo.

— Não sei qual é o problema. Estou de sutiã, não estou?

Depois, quando são estupradas, as mulheres se queixam.

Você não há de querer que eu ande por aí vestindo um hábito.

Acabo de falar com Washington — disse ele em tom sombrio. — Parece que sua irmã desapareceu mesmo.

Sobressaltada, Deirdre se sentou e toldou os olhos com a mão.

Suas fontes são fidedignas? Eu, pessoalmente, contratei os me­lhores detetives para vigiá-la, todos ex-agentes do serviço secreto.

Foi confirmado. Eles falharam e a perderam de vista depois de uma corrida maluca na periferia.

Não é possível que Maeve tenha conseguido despistar investiga­dores profissionais.

Pelo que me disseram, contou com ajuda.

Deirdre torceu os lábios, numa careta.

Quer que eu adivinhe? Dirk Pitt.

Dorsett fez que sim.

Esse cara está em toda parte. Boudicca o teve nas mãos, na mina da ilha Kunghit, mas o deixou escapar entre os dedos.

Senti que ele era perigoso quando salvou Maeve. Devia ter com­preendido quanto era perigoso quando frustrou meu plano de ser re­tirada do Polar Queen de helicóptero, depois de haver colocado o navio em rota de colisão com os rochedos. Pensei que estaríamos livres dele depois disso. Não imaginei que fosse se intrometer em nossas atividades no Canadá.

Dorsett fez um gesto para uma linda chinesa postada junto a uma das colunas que sustentavam o telhado da varanda. Usava um vestido de seda com aberturas laterais.

Traga-me um gim — ordenou. — Copo longo. Não gosto de miséria quando bebo.

Deirdre ergueu seu copo vazio.

Outro collins.

A garota se apressou a preparar os coquetéis. Notando que o pai estava interessadíssimo no traseiro da moça, Deirdre...

 

                                                                              

 

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