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Arnie Cunnigham era um perdedor. Rosto coberto de espinhas, desajeitado com as garotas, magro demais para esportes, passava os dias como sombra pelos corredores da escola, tentando fugir das gozações implacáveis dos jovens de sua idade.
Isso até Christine entrar em sua vida. Amor à primeira vista -- não há melhor forma de explicar o que aconteceu a Arnie ao vê-la. A partir desse dia, o mundo ganha novo sentido. Tudo o que ele quer é estar junto de Christine e nada, ninguém conseguirá detê-lo. Uma velha história de amor, mais um Romeu e Julieta do século XX? Não, quando a trama nasce da mente insuperável de Stephen King. Christine é um carro. Um Plymouth Fury 1958. Um feitiço sobre rodas que se apodera do jovem Arnie e faz dele alguém diferente. Muito diferente. Christine é uma obsessão.
A vida de Arnie Cunnigham nunca mais será igual. Também não será igual o pacato subúrbio de classe média em que mora. Nao quando Christine está nas ruas. Não quando a velha e irascível Christine resolve tirar de seu caminho quem quer que tente afastá-la de seu novo dono.
Esta é a história de um triângulo amoroso — suponho que este seria o nome — formado por Arnie Cunningham, Leigh Cabot e, naturalmente, Christine. Quero que compreendam, no entanto, que Christine chegou primeiro. Ela foi o primeiro amor de Arnie e, embora eu não tenha a presunção de garantir (de qualquer modo, não após os altos níveis de sabedoria que alcancei, em meus 22 anos), creio que ela foi seu único e verdadeiro amor. Portanto, chamo de tragédia ao que aconteceu.
Eu e Arnie crescemos no mesmo quarteirão, freqüentamos juntos a Escola Primária Owen Andrews e o Ginásio Darby. Também juntos, fomos para o Ginásio de Libertyville. Penso que fui o principal motivo de Arnie não haver sido devorado no ginásio. Eu era um cara importante — sei que isso não quer dizer grande coisa; cinco anos após o diploma, não se consegue nem mesmo uma cerveja grátis, por termos sido o capitão dos times de futebol e beisebol, e um nadador da Associação de Escolas—, mas, como fui tudo isso, pelo menos Arnie nunca foi liquidado. Abusaram dele um bocado, mas nunca o destruíram.
Ele era um perdedor, compreendam. Todo ginásio tem dois, pelo menos; é como uma lei nacional.
Um homem, uma mulher. Sacos-de-pancada de todos. Seu dia foi ruim? Falhou em uma prova importante?
Discutiu com seus velhos e ficou o fim de semana a pé? Não há problema. Encontre um daqueles pobres coitados que se esgueiram pelos corredores como criminosos, antes do sinal para as aulas, e vá direto ao infeliz. Sabiam que, algumas vezes, eles são abatidos em todos os sentidos, exceto no físico; em outras, acham alguém a quem agarrar-se e sobrevivem. Arnie tinha a mim. Depois teve Cristine. Leigh apareceu mais tarde.
Eu só queria que vocês compreendessem isso.
Arnie era um deslocado natural. Estava fora do atletismo por ser magricela — um e setenta e cinco, com cerca de setenta quilos, tragado por todas as suas roupas, mais um par de botas Desert Drive. Estava por fora também para os intelectuais do ginásio (eles próprios, um grupo inteiramente "desajustado" em uma cidadezinha como Libertyville), porque não tinha nenhuma especialização. Arnie era esperto, mas seus miolos não se fixavam naturalmente em coisa alguma, a menos que fosse mecânica automotora.
Era grande nisso. Em se tratando de carros, o garoto era uma espécie de alucinado nato. Seus pais. no entanto (os dois lecionavam na Universidade, em Horlicks), não podiam ver seu filho — que tinha marcado o máximo de cinco por cento no teste de inteligência Stanford-Binet — matricular-se nos cursos profissionalizantes. Andy teve muita sorte, quando lhe permitiram cursar Mecânica de Motores I. II e III. Precisou batalhar muito para conseguir a permissão. Estava ainda deslocado com os que se drogavam, porque não era disso. E também não se ligava com o grupo machão calças-jeans-e-Lucky-Strikes, porque não era de beber e chorava, se atingido com força.
Oh, sim, era um desajustado também com as garotas. Seu mecanismo glandular degringolara inteiramente. Quero dizer, Arnie era um tapete de espinhas. Acho que lavava o rosto umas cinco vezes por dia, tomava umas duas dúzias de duchas por semana e experimentava cada creme ou panacéia conhecidos pela ciência moderna. Nada funcionava. O rosto de Arnie parecia uma pizza e ele ia ficar com uma daquelas caras furadas e marcadas para sempre.
Eu gostava dele assim mesmo. Arnie tinha um sutil senso de humor e uma mente que não se cansava de fazer perguntas, inventar jogos e pequenas, divertidas brincadeiras. Foi Arnie quem me mostrou como construir uma fazenda de formigas quando eu tinha sete anos, e passamos todo um verão espiando aqueles animaizinhos, fascinados por sua diligência e total seriedade. Quando tínhamos dez anos, foi por sugestão de Arnie que nos esgueiramos de casa certa noite e colocamos um monte de bostaseca de cavalo, tirada dos Estábulos da Rota 17, debaixo do enorme cavalo de plástico sobre o gramado do Libertyville Motel, do outro lado da linha do trem, em Monroeville. Arnie aprendeu xadrez primeiro.
Aprendeu pôquer primeiro. Ensinou-me a aumentar meu escore em Scrabble. Nos dias chuvosos, bem até a época em que me apaixonei (ora, foi mais ou menos isso — ela era chefe de torcida, com um corpo espetacular; achei que me apaixonara pelo corpo, embora, quando Amie avisou que a mente da garota tinha toda a profundidade e ressonância de um Chaun Cassidy 45, eu não pudesse responder que ele estava mentindo, porque não estava mesmo), era nele que eu pensava primeiro, porque Arnie sabia como engrandecer os dias de chuva, da mesma forma como sabia aumentar os escores no Scrabble. Talvez seja esta uma das maneiras de identificarmos as pessoas realmente solitárias... elas sempre podem imaginar algo legal para se fazer em um dia de chuva. A gente sempre pode contar com ela. Estão sempre em casa. Sempre na pior.
De minha parte, ensinei Arnie a nadar. Chateei-o até convencê-lo a comer verduras, para que pudesse melhorar um pouco a sua magreza. Consegui trabalho para ele em uma estrada, um ano antes de nosso último ano no Ginásio de Libertyville — e para isso nos empenhamos a fundo com os pais dele, que se viam como grandes amigos dos trabalhadores nas fazendas da Califórnia e dos metalúrgicos daquela cidadezinha cretina, mas que ficavam horrorizados à idéia de seu talentoso filho (com um máximo de cinco por cento em seu teste Stanford-Binet, lembrem-se) ficando com os pulsos sujos de terra e o pescoço vermelho.
Então, perto do fim daquelas férias de verão, Arnie viu Christine pela primeira vez e se apaixonou por ela. Eu estava com ele nesse dia — íamos para casa, voltando do trabalho — e testemunharia a respeito diante do Trono de Deus Todo-Poderoso, se para isso me convocassem.
Irmão, ele gamou e gamou de fato. Até que podia ter sido gozado, se não fosse tão triste, se aquilo não ficasse assustador tão depressa como ficou. Podia ter sido divertido, se não houvesse sido tão ruim.
Ruim — a que ponto?
Foi ruim desde o começo. E se tornou rapidamente pior.
Dennis - Canções adolescentes sobre carros
Ei, olhe lá!
Do outro lado da rua!
Um carro feito na medida para mim,
Seria um luxo ter aquele carro...
Aquele carro é um barato, cara,
É algo fora de série.
— Eddie Cochran
— Deus do céu! — gritou de repente meu amigo Arnie Cunningham.
— O que foi? — perguntei.
Seus olhos saltavam por trás dos óculos de aros de aço, ele espalmara a mão sobre o rosto, de maneira que a palma cobria a boca parcialmente e o pescoço parecia girar sobre rolamentos, no modo como Arnie se virava para trás, por sobre o ombro.
— Pare o carro, Dennis! Volte!
— O que você está...
— Volte, quero olhar para ela outra vez! Entendi na mesma hora.
— Oh, cara, esqueça — falei. — Se está se referindo àquela... coisa que acabamos de deixar para trás...
— Volte! — ele quase berrou.
Voltei, imaginando que talvez fosse uma daquelas sutis piadinhas de Arnie. Só que não era. Ele gamara mesmo. Arnie se apaixonara.
Ela era uma piada imbecil e jamais saberei o que Arnie viu nela, nesse dia. Na máquina, quero dizer, no carro. O lado direito do pára-brisa era uma confusa teia de aranha em rachaduras. A traseira direita do teto estava afundada e um ninho horrendo de ferrugem se espraiara pelo vale de pintura descascada. O pára-choque traseiro descambava para um lado e o tampo do porta-mala estava entreaberto. O estofamento sangrava para fora, através de compridos rasgões na cobertura dos assentos, da frente e traseiro. Era como se alguém tivesse brincado ali com uma faca. Um pneu estava arriado. Os outros, tão carecas, que dava para se ver o encordoamento interno. O pior de tudo era a mancha escura de óleo, debaixo do motor.
Arnie se apaixonara por um Plymouth Fury 1958, um daqueles compridões, com enormes aletas no radiador. Havia um velho anúncio de À VENDA, já desbotado pelo sol, escorado contra o lado direito do pára-brisa — o lado que não estava rachado.
— Veja que linhas ele tem, Dennis! — sussurrou Arnie.
Corria em torno do carro, como um possesso. Seu cabelo suado subia e descia na cabeça. Experimentou a porta traseira, no lado do passageiro, e ela se abriu com um rangido.
— Você está me gozando, Arnie, não está? — perguntei. — É insolação, certo? Me diz que é insolação. Vou levar você para casa, ligar o ar-condicionado e esquecemos tudo isto, está bem?
De qualquer modo, falei isso sem muita esperança. Ele sabia fazer uma piada, mas então não havia nada que lembrasse uma piada em sua cara. Pelo contrário, era uma espécie de loucura imbecil, que não me agradou nem um pouco.
Ele nem mesmo se deu ao trabalho de responder. Um bafo quente e espesso de ar, cheirando a velhice, óleo e adiantada decomposição brotou da porta aberta do carro. Arnie também pareceu nem perceber. Entrou e sentou-se no desbotado banco traseiro dilacerado. Um dia, vinte anos antes, aquilo tinha sido vermelho. Agora, era um rosa lavado e desbotado.
Estiquei o braço e arranquei um pouco do recheio, olhei para ele e o soprei ao vento.
— É como se o exército russo tivesse pisado sobre isso, ao avançar para Berlim — comentei. Ele finalmente notou que eu ainda estava ali.
— Certo... certo, mas poderia ser consertado. Essa máquina... ela ficaria um barato. Uma unidade móvel, Dennis. Uma beleza. Uma verdadeira...
— Ei, ei! O que estão fazendo aí, garotos?
Era um velhote que parecia estar curtindo — mais ou menos — seu septuagésimo verão. Talvez menos. Aquele sujeito me deu a impressão de ser dos que não curtem muito as coisas. O pouco que restava do cabelo era comprido e ralo. Tinha um bom caso de psoríase em andamento, na parte careca do crânio.
Usava calças verdes de velho e tênis de basquete de cano baixo. Estava sem camisa; em vez disso, tinha algo apertado em torno da cintura, parecendo uma cinta de mulher. Quando chegou mais perto, vi que era um colete ortopédico para as costas. De saída, só em olhar para aquilo, eu podia dizer que o homem o tinha trocado, pela última vez, mais ou menos na época em que Lyndon Johnson morrera.
— O que estão querendo, garotos? — gritou, em voz aguda e estridente.
— Este carro é seu, senhor? — perguntou Arnie.
Uma pergunta quase desnecessária. O Plymouth estava estacionado no terreno da casa pós-guerra, de onde o velho brotara. O gramado era horrível, mas ficava um barato com aquele Plymouth nos fundos.
— E daí, se for? — perguntou o velho.
— Eu... — Arnie engoliu em seco. — Eu quero comprá-lo.
Os olhos do velhote cintilaram. A expressão irritada do rosto foi substituída por um brilho furtivo no olho e um certo sarcasmo faminto em torno dos lábios. Então surgiu um falso, resplendente e largo sorriso. Foi naquele momento, creio — bem, justo naquele momento — que senti algo frio e depressivo dentro de mim. Houve um instante — só então — que senti vontade de puxar Arnie e arrancá-lo dali. Alguma coisa transpareceu dentro dos olhos do velho. Não foi só o brilho; era algo por trás do brilho.
— Bem, devia ter dito logo — falou o velhote. Estendeu a mão, que Arnie apertou. — LeBay. Roland D. LeBay. Reformado do Exército.
— Arnie Cunningham.
O velho pareceu puxar a mão e fez uma espécie de aceno para mim. Eu estava fora da jogada; ele já tinha seu otário. Arnie podia perfeitamente entregar sua carteira a LeBay.
— Quanto? — perguntou Arnie. Depois insistiu: — Seja o que for que quer pela máquina, ainda é pouco.
Grunhi intimamente, em vez de suspirar. O talão de cheques de Arnie estava dentro de sua carteira.
Por um momento, o sorriso de LeBay falhou um pouco e ele apertou os olhos desconfiadamente. Devia estar avaliando a possibilidade que tinha pela frente. Estudou o rosto franco e ansioso de Arnie, à procura de algum sinal de malícia, para então disparar a pergunta homicidamente perfeita:
— Já teve algum carro antes, filho?
— Ele tem um Mustang Mach II — respondi rapidamente. — Seus pais compraram para ele. Tem uma mudança Hurst, uma superbateria e pode fazer a estrada ferver, quando em primeira. O carro...
— Não — respondeu Arnie, tranqüilo. — Só tirei minha carteira de motorista esta primavera. LeBay dedicou-me um rápido, mas astuto olhar, para em seguida voltar a concentrar inteiramente a atenção em seu alvo principal. Colocou as mãos no final das costas e estirou-se. Captei uma azeda onda de suor rançoso.
— O Exército me deixou com um problema nas costas — disse ele. — Invalidez total. Os médicos nunca conseguiram endireitar-me. Se perguntarem a vocês o que há de errado no mundo, rapazes, digam que são três coisas: médicos, comunista e radicais que gostam de negros. Dos três, os comunistas são os piores, seguidos de perto pelos médicos. E se perguntarem quem disse isto, respondam que foi Roland D. LeBay. Sim, senhor!
Ele tocou o velho e arranhado capô do Plymouth, com uma espécie de admirado amor.
— Este aqui foi o melhor carro que já tive. Comprei em setembro de 1957. Naquele tempo, era em setembro que se conseguia o novo modelo do ano. Durante todo o verão, exibiam fotos de carros debaixo de lonas e encerados, até a gente ficar morrendo para saber como eles eram, por baixo daquilo. Hoje é diferente. — Sua voz ressumava irritação, pelos tempos degradantes que vivera. — Uma máquina novinha em folha. Cheirava como carro saído da fábrica e, para mim, este é o melhor cheiro do mundo. — Fez uma pausa para considerar. — Exceto, talvez, pelo de uma cona.
Olhei para Arnie, mordendo furiosamente o interior das bochechas, para não estourar de rir de tudo aquilo. Arnie olhou para mim, surpreso. O velho nem pareceu notar-nos; estava isolado em seu próprio planeta.
— Vesti cáqui trinta e quatro anos — contou LeBay, ainda tocando o capô do carro. — Entrei aos dezessete, em 1923. Comi poeira no Texas e vi piolhos do tamanho de lagostas, em algumas casas das putas de Nogales. Vi homens com as tripas saindo pelos ouvidos, no tempo da guerra. Foi na França que vi isso. As tripas deles saíam pelos ouvidos. Acredita nisso, filho?
— Sim, senhor — respondeu Arnie.
Duvido que tivesse ouvido uma só palavra do que LeBay dizia. Equilibrava-se ora em um pé, ora no outro, como se estivesse apertado para ir ao banheiro.
— Bem, e quanto ao carro... — insistiu Arnie.
— Você está na Universidade? — clamou LeBay, subitamente. — Lá em Horlicks?
— Não, senhor. Estou no Ginásio de Libertyville.
— Muito bom — disse LeBay, taciturno. — Fique longe de universidades. Estão cheias de gente que gosta de negros, gente que quer entregar o Canal do Panamá. "Cérebros", é o nome que dão a eles. Pois eu digo que são "cacholas de merda".
Olhou amorosamente para o carro em cima do pneu arriado, a pintura dissolvendo-se em ferrugem, banhado pelo último sol da tarde.
— Machuquei as costas na primavera de 57 — disse ele. — O Exército já estava falindo naquele tempo. Saí na hora exata. Voltei para Libertyville. Torrei grana. Aproveitei meu tempo. Então, entrei na Norman Cobb, concessionária Plymouth, onde hoje fica o boliche, lá perto da Main Street, e encomendei este carro aqui. Disse para eles: quero vermelho e branco, modelo do próximo ano. Vermelho como um carro de bombeiros por dentro. Eles conseguiram. Quando recebi a máquina, tinha um total de seis milhas no odômetro. Sim, senhor.
Ele cuspiu.
Olhei para o odômetro, por cima do ombro de Arnie. O vidro estava turvo, mas pude ler o estrago assim mesmo: 97.432. E seis décimos. Caramba!
— Se gosta tanto do carro, por que quer vendê-lo? — perguntei. Ele me dirigiu um olhar leitoso, bastante aterrador.
— Está querendo bancar o sabido pra cima de mim, filho? Não respondi, mas tampouco fugi com o olhar.
Após alguns momentos daquele duelo olho-a-olho (o que Arnie ignorou por completo; deslizava lentamente uma amorosa mão por uma das aletas dorsais), ele disse:
— Não posso mais dirigir. Minhas costas pioraram muito. E os olhos estão indo pelo mesmo caminho.
Entendi de repente — ou acho que entendi. Se ele nos fornecera as datas exatas, teria setenta e um anos. E, aos setenta, neste Estado é obrigatório o exame de vista a cada ano, para que renovem a licença de motorista. LeBay devia ter falhado no exame de vista ou tinha medo de falhar, o que vinha a dar no mesmo. Antes de submeter-se a tal indignidade, resolveu colocar o Plymouth à venda. E, depois disso, o carro envelhecera rapidamente.
— Quanto quer por ele? — Arnie tornou a perguntar.
Ele mal podia esperar para ser degolado. LeBay virou o rosto para o céu, como se o estudasse para saber se choveria. Depois baixou os olhos para Arnie, oferecendo-lhe um largo e gentil sorriso, para mim demasiado semelhante ao anterior sorriso astuto que me dirigira.
— Estou pedindo trezentos — disse —, mas você me parece um bom rapaz. Deixo por duzentos e cinqüenta para você.
— Deus do céu! — exclamei.
Não obstante, ele sabia quem era o seu pato, como sabia exatamente aumentar a barreira entre nós. Nas palavras de meu avô, LeBay não tinha caído ontem de um caminhão de feno.
— Está bem — disse ele, bruscamente. — Se quiser, é assim. Tenho meu programa das quatro e meia para ver. Beira da Noite. Nunca perco, se depender de mim. Tive um bom papo com vocês, rapazes. Adeus.
Arnie dirigiu-me um olhar tão dorido e raivoso que recuei um passo. Depois foi atrás do velho e o segurou pelo cotovelo. Conversaram. Não ouvi tudo, porém vi mais do que suficiente. O orgulho do velho ficara ferido. Arnie estava ansioso e se desculpando. O velho apenas queria fazer Arnie entender que não suportava ver insultado o carro que o conduzira através de seus anos dourados. Arnie concordou. Pouco a pouco, o velho permitiu que ele o reconduzisse de volta. E, de novo, senti algo conscientemente amedrontador em relação a ele... era como se um frio vento de novembro pudesse pensar. Não consigo palavras melhores para expressá-lo.
— Se ele disser mais uma só palavra, lavo as mãos disto tudo — disse LeBay, apontando um polegar calejado e chifrudo para mim.
— Ele não dirá, ele não dirá — assegurou Arnie, apressadamente. — Trezentos, foi o que disse?
— Sim, acho que foi...
— O preço combinado foi de duzentos e cinqüenta! — falei bem alto.
Arnie pareceu aflito, temendo que o velho se fosse de novo, mas LeBay não queria arriscar-se. O peixe agora estava quase fora d'água.
— Sim, acho que duzentos e cinqüenta está bem — concedeu LeBay.
Tornou a olhar para mim e vi que estávamos de acordo — ele não ia comigo e nem eu com ele. Para meu crescente horror, Arnie puxou a carteira e começou a manusear seu interior. Houve silêncio entre nós três. LeBay era um mero espectador. Espiei para um garotinho que tentava matar-se em um skate verde-vômito. Um cão latiu em algum lugar. Duas garotas com ar de estarem na oitava série passaram rindo muito e apertando uma pilha de livros contra os bustos em formação. Restava-me apenas uma esperança de que Arnie se visse fora daquilo: faltava um dia para o pagamento. Com tempo, até mesmo vinte e quatro horas, aquela febre selvagem passaria. Arnie começava a recordar-me Toad, Toad Hall.
Quando tornei a olhar para eles, Arnie e LeBay fitavam duas notas de cinco e seis de um dólar — aparentemente, tudo que ele tinha na carteira.
— Que tal um cheque? — sugeriu Arnie. LeBay sorriu friamente e nada disse.
— É um cheque bom — protestou Arnie.
Claro que era. Havíamos passado todo o verão trabalhando para Carson Brothers, na extensão da I-376, aquela que, na opinião dos nativos da área de Pittsburgh, jamais seria finalmente terminada. Às vezes, Arnie dizia que a Penn-DOT tinha começado a apostar no trabalho da I-376 pouco depois que a Guerra Civil terminara. Não que qualquer um de nós tivesse alguma queixa; muitos jovens trabalharam naquele verão em troca de salários de escravos, ou não trabalharam em absoluto. Estávamos fazendo um bom dinheiro, inclusive em hora extra. Brad Jeffries, o capataz, se mostrara francamente duvidoso em aceitar um garoto como Arnie, mas por fim concordara que ele podia ser usado como sinaleiro; a jovem que planejara contratar ficara grávida e fugira para casar-se. Assim, Arnie se iniciara como sinaleiro em junho, mas aos poucos fora passando para o trabalho mais pesado, no que mostrava muita coragem e determinação. Era o primeiro emprego de verdade que já tivera e não queria estragar tudo. Brad ficara um tanto impressionado e, inclusive, o sol de verão contribuíra para amenizar um pouco as erupções cutâneas de Arnie. Talvez fosse o ultravioleta.
— Tenho certeza de que seu cheque é bom, filho — disse LeBay — mas meu negócio é feito a dinheiro. Procure entender.
Eu não sabia se Arnie entendera, mas eu entendia. Seria fácil demais sustar o pagamento de um cheque local, se aquele Plymouth comido de ferrugem soltasse uma biela ou explodisse um pistão, a caminho de casa.
— Pode telefonar para o banco — disse Arnie, começando a desesperar-se.
— Negativo — disse LeBay, coçando o sovaco acima do escabroso colete. — Vão dar cinco e meia. Os bancos já fecharam há muito tempo.
— Fica como um sinal, então — disse Arnie, estendendo os dezesseis dólares. Positivamente, agia como maluco. Talvez seja difícil acreditar-se que um cara, com idade quase suficiente para votar, em quinze minutos ficasse tão enredado com um velhote anônimo. Eu mesmo achava difícil acreditar. Somente Roland D. LeBay parecia não ter problemas a respeito e suponho que fosse devido à idade, quando já tinha visto tudo. Só mais tarde cheguei a crer que aquela sua estranha segurança podia originar-se de outras fontes. De qualquer modo, se já havia corrido em suas veias algum leite de gentileza humana, há muito se transformara em coalhada azeda.
— Preciso ter um sinal de dez por cento, pelo menos — declarou LeBay. O peixe estava fora d'água; em mais um momento, iria para a cesta. — Se me der os dez por cento, reservarei o carro por vinte e quatro horas.
— Dennis — pediu Arnie —, pode me emprestar nove pratas até amanhã?
Eu tinha doze na carteira e nenhum lugar particular aonde ir. Dia após dia espalhando areia e cavando trincheiras para bueiros, haviam feito maravilhas para quando chegasse a hora de treinar futebol, mas eu não tinha mais nenhuma vida social. Ultimamente, nem mesmo vinha assaltando as defesas do corpo de minha namorada chefe de torcida, no estilo a que ela se acostumara. Estava rico, mas solitário.
— Venha até aqui e veremos — falei.
LeBay franziu o cenho, mas sabia-se preso à minha intervenção, quisesse ou não. Seu anelado cabelo branco agitou-se de um lado para outro, à brisa ligeira. Manteve uma das mãos possessivamente sobre o capô do Plymouth.
Caminhei com Arnie até meu carro, um Duster 75, estacionado na esquina. Passei o braço pelos ombros dele. Por algum motivo, lembrei-me do dia chuvoso que havíamos passado em seu quarto, quando não tínhamos mais de seis anos — os desenhos animados saltitavam na tela em preto-e-branco de um antigo aparelho de TV, enquanto coloríamos com lápis de cor velhos, guardados em uma lata de café serrilhada. A imagem me deixou triste e um tanto amedrontado. Compreendam, há dias em que seis anos me parece uma idade excelente, isto porque a lembrança dura, de fato, apenas 7,2 segundos.
— Você tem o dinheiro, Dennis? Eu devolvo amanhã de tarde.
— Sim, tenho — respondi —, mas, pelo amor de Deus, o que está fazendo, Arnie? Aquele pilantra é totalmente inválido, não vê? Ele não precisa de dinheiro e você não é uma instituição de caridade.
— Não compreendo. De que está falando?
— Ele está se aproveitando de você. Faz isso pelo simples prazer da coisa. Se levar o carro à Darnell's, não conseguirá nem cinqüenta dólares por peças. Aquilo é um monte de bosta!
— Não. Não é não.
Sem a pele ruim, meu amigo Arnie pareceria absolutamente normal. Contudo, Deus dá a todos pelo menos um traço bom, acho eu, e em Arnie eram os olhos. Por trás das lentes, que em geral os obscureciam, seus olhos mostravam um belo e inteligente cinza, a cor das nuvens em um nublado céu de outono. Podiam ser quase incomodamente agudos e perscrutadores quando surgisse algo que lhe interessasse, mas agora estavam distantes e sonhadores.
— Não é nenhum monte de bosta — insistiu ele.
Foi quando comecei realmente a compreender que ali havia mais do que a súbita decisão de Arnie em ter um carro. Ele nunca demonstrara o menor interesse por um, antes; contentava-se em rodar no meu, contribuindo para a gasolina ou apertando o pedal de suas três marchas. E agora não era como se precisasse de um carro, a fim de sair sozinho; que eu soubesse, Arnie jamais tivera um encontro com garotas na vida. Tratava-se de algo diferente. Era amor ou coisa assim.
— Pelo menos — argumentei — deixe que ele ligue o motor para você, Arnie. E que levante o capô. Tem uma poça de óleo debaixo do motor. O bloco bem que pode estar partido. Se quer saber, acho que...
— Pode emprestar os nove?
Os olhos dele estavam fixos nos meus. Desisti. Tirei minha carteira e entreguei-lhe os nove dólares.
— Obrigado, Dennis — disse ele.
— O funeral é seu, cara.
Ele nem ouviu. Juntou meus nove aos seus dezesseis e voltou para junto de LeBay, ao lado do carro. Estendeu-lhe o dinheiro e o velho o contou cuidadosamente, molhando o polegar.
— Só vou segurá-lo por vinte e quatro horas, compreenda — disse LeBay.
— Sim, senhor. Assim está ótimo — respondeu Arnie.
— Vou até em casa, passar um recibo — disse o velho. — Como é mesmo o seu nome, soldado? Arnie sorriu ligeiramente.
— Cunningham. Arnold Cunningham.
LeBay grunhiu um assentimento e cruzou seu gramado maltratado até a porta dos fundos. A porta externa era uma daquelas engraçadas estruturas de alumínio, com uma floreada letra no centro — um L maiúsculo, no caso.
A porta bateu atrás dele.
— O sujeito é esquisito, Arnie. O sujeito é um fodido esqui...
Arnie não estava mais ali. Sentara-se atrás do volante do carro. Em seu rosto havia a mesma expressão enérgica.
Dei a volta até a frente e descobri o fecho do capô. Puxei-o e o capô subiu, com um grito enferrujado que me fez pensar nos efeitos sonoros ouvidos naqueles discos de casas mal-assombradas. Fragmentos metálicos voaram para baixo. A bateria era uma velha Allstate e os terminais estavam tão cobertos de corrosão esverdeada que não se poderia dizer qual o positivo e o negativo. Puxei o filtro de ar e olhei sombriamente para um carburador de quatro difusores, tão negro como uma galeria de mina.
Baixei o capô e fui para o lugar onde Arnie continuava, agora deslizando a mão ao longo da borda do painel de instrumentos, por sobre o velocímetro, calibrado para uma marcação totalmente absurda de 120 milhas por hora. Os carros teriam realmente atingido tal velocidade?
— Acho que o bloco do motor está trincado, Arnie. Acho mesmo. Este carro é uma droga, meu amigo. Uma droga total. Se está querendo rodas, por duzentos e cinqüenta podemos encontrar coisa muito melhor do que isto. Falo sério. Muito melhor.
— Ele tem vinte anos de idade — replicou Arnie. — Sabe que um carro é oficialmente uma antigüidade, quando tem vinte anos de idade?
— Claro — falei. — O pátio de ferro-velho atrás da Darnell's está repleto de antigüidades oficiais, está entendendo?
— Dennis...
A porta bateu. LeBay estava de volta. Não adiantava; qualquer discussão posterior não teria sentido. Posso não ser o humano mais sensível, mas quando os sinais são fortes o bastante, consigo captá-los. Aquilo era algo que Arnie decidira ser preciso fazer e eu não iria dissuadi-lo. Aliás, creio que ninguém conseguiria dissuadi-lo.
Com um floreio, LeBay estendeu-lhe o recibo. Escrito em uma folha comum de bloco, em uma aracnóide, e ligeiramente trêmula, caligrafia de velho, havia o seguinte: Recebido de Arnold Cunningham, $25,00, como sinal e reserva por vinte e quatro horas de Christine, um Plymouth 1958. Abaixo, ele assinara seu nome.
— O que significa isto de Christine? — perguntei, pensando ter lido errado ou não entendido bem.
Os lábios de LeBay estreitaram-se e seus ombros se ergueram um pouco, como se esperasse que rissem dele... ou como se me desafiasse a isso.
— Christine — explicou — é como sempre chamei o carro.
— Christine — repetiu Arnie. — Gostei. E você, Dennis?
Agora ele falava em batizar a maldita coisa. Aquilo estava passando dos limites.
— O que acha, Dennis, você gostou?
— Não — respondi. — Se tem que dar um nome a isso, Arnie, por que não o chama de Problema? Ele pareceu magoar-se com isso, mas eu pouco me importava. Voltei para meu carro, a fim de esperá-lo, desejando que antes houvesse tomado um caminho diferente, na volta para casa.
Diga apenas aos seus amigos marginais lá fora,
Que você não tem tempo para dar um passeio!
(Conversa mole!)
Não responda!
— The Coasters
Levei Arnie de carro até sua casa e entrei com ele para um pedaço de bolo e um copo de leite, antes de seguir para a minha. Foi uma decisão da qual me arrependi prontamente.
Arnie morava na Laurel Street, situada em uma tranqüila zona residencial, no lado oeste de Libertyville. Em geral, Libertyville é quase que integralmente tranqüila e residencial. Nada de grande estilo, como o subúrbio vizinho de Fox Chapei (onde a maioria das residências se compõe de propriedades como aquelas que costumamos ver todas as semanas em Columbo), mas também não é como Monroeville, com seus quilômetros de ruas comerciais, depósitos de pneus vendidos com desconto e sujos empórios de livros. Por aqui não temos nenhuma indústria pesada; trata-se, principalmente, de uma comunidade-dormitório para a vizinha Universidade. Sem suntuosidade, mas pelo menos uma espécie de concentração de cérebros.
Arnie estivera calado e pensativo, durante toda a caminhada para casa; tentei distraí-lo, mas ele não se deixou distrair. Perguntei-lhe o que pretendia fazer com o carro.
— Ajeitá-lo — respondeu, em voz ausente, tornando a ficar em silêncio.
Bem, ele tinha jeito para isso; eu não questionava o assunto. Era bom com ferramentas, podia ouvir e concentrar-se. Suas mãos eram sensíveis e ágeis com mecanismos; somente quando estava perto de outras pessoas, em especial garotas, é que elas ficavam desajeitadas e inquietas, procurando estalar os nós dos dedos ou enfiar-se nos bolsos, quando não (pior do que tudo) se encaminhavam para o rosto e deslizavam pela acidentada paisagem das bochechas, queixo e testa, chamando a atenção para esses pontos.
Ele podia ajeitar o carro, mas o dinheiro que ganhara nesse verão era reservado para a Universidade. Nunca tivera um carro antes e pensei que talvez não imaginasse a maneira sinistra como carros velhos podem sugar dinheiro. Eles o sugam, como se imagina que um vampiro suga o sangue. Arnie evitaria os custos da mão-de-obra na maioria dos casos, fazendo o trabalho ele mesmo, porém só o conserto das peças isoladas quase o mataria, antes de chegar ao fim.
Disse-lhe algumas dessas coisas, mas ele preferiu ignorar-me. Tinha o olhar ainda distante e sonhador. Eu não saberia dizer em que pensava.
Michael e Regina Cunningham estavam em casa — ela decifrava uma daquelas séries intermináveis de quebra-cabeças idiotas (este era a respeito de seis mil rodas denteadas e engrenagens diferentes, sobre um fundo absolutamente branco — e me deixaria arrancando os cabelos em quinze minutos) e ele ouvia música na sala.
Não demorou muito, comecei a desejar que tivesse desistido do bolo e do leite. Arnie contou a eles o que fizera, mostrou o recibo e os dois imediatamente subiram pelas paredes.
Compreendam, Michael e Regina eram criaturas da Universidade até o âmago. Procuravam ser bem-sucedidos e, para eles, isto significava protestar. Haviam protestado em favor da integração, no início dos anos 60, passaram para o Vietnã e, quando desistiram, havia Nixon, questões de equilíbrio racial nas escolas (podiam citar capítulo e versículos do caso Alan Bakke, até pegarmos no sono), violência policial e brutalidade paternal. Depois, foram os discursos — toda aquela discurseira. Estavam quase tão envolvidos nisso, como nos protestos. Pareciam sempre dispostos a tomar parte em sessões pela noite inteira, tratando das mais variadas questões, desde o programa espacial a conferências estudantis em desafio às autoridades acadêmicas, ou mesmo de um seminário sobre possíveis alternativas de combustíveis fósseis. Só Deus sabe como conseguiam tempo para tantas "linhas quentes" — números de telefone para estuprados, drogados, para crianças fujonas que queriam conversar com um amigo, bem como o bom, o velho DISQUE-AJUDA, para onde os suicidas podiam ligar e ouvir uma voz compreensiva dizendo não faça isso, chapa, você tem um compromisso social com a Espaçonave Terra. Com vinte ou trinta anos lecionando em uma Universidade, o sujeito está pronto para a discussão, da mesma forma que os cães de Pavlov estavam prontos para sair quando ele tocava a campainha. Acredito que até se chegue a gostar disso.
Regina (eles insistiam em que eu os chamasse por seus primeiros nomes) tinha quarenta e cinco anos e era simpática, atraente de uma forma um tanto fria e semi-aristocrática — isto é, conseguia parecer aristocrática, mesmo usando jeans, o que fazia a maior parte do tempo. Sua área era Inglês mas, naturalmente, quando se atinge um nível universitário, isso nunca é bastante: é como dizer "América" se alguém lhe pergunta de onde você é. Ela se refinara nisso e estava calibrada, como o "blip" de uma tela de radar. Especializara-se em poetas primitivos ingleses, tendo apresentado tese sobre Robert Herrick.
O negócio de Michael era História. Tinha uma aparência tão lutuosa e melancólica, como a música que saía de sua flauta, embora luto e melancolia não fossem uma parte normal de sua estrutura. Por vezes, ele me fazia pensar no que Ringo Star supostamente havia dito, quando os Beatles vieram à América pela primeira vez, e certo repórter, em uma entrevista à imprensa, perguntou-lhe se ele era realmente tão triste quanto parecia. "Não", replicou Ringo, "é só o meu rosto." Michael era assim. Além do mais, seu rosto fino e os óculos grossos que usava combinavam para emprestar-lhe uma leve aparência de caricatura de professor, em uma inamistosa charge editorial. Seu cabelo começava a diminuir e ele usava um pequeno cavanhaque anelado.
— Oi, Arnie — disse Regina, quando entramos. — Olá, Dennis.,
Naquela tarde, foi essa a última coisa cordial que ela disse para nós dois. Respondemos "Oi" e passamos ao nosso bolo com leite. Sentamos no canto reservado ao café da manhã. O jantar estava em andamento no forno e, lamento dizer, o cheiro era francamente repelente. Regina e Michael tinham andado flertando com o vegetarianismo durante algum tempo e, naquela noite, o aroma dava a impressão de que ela preparava uma boa e velha torta de algas ou coisa assim. Esperei que não me convidassem para ficar.
A música da flauta cessou e Michael veio para a cozinha. Usava bermudas, recortadas de uma calça jeans e tinha um ar de quem acaba de receber a notícia da morte de seu melhor amigo.
— Estão atrasados, rapazes — disse. — Algo errado?
Abriu a geladeira e começou a vistoriar seu interior. Talvez a torta de algas também não lhe fosse tão agradável ao olfato.
— Comprei um carro — disse Arnie, cortando outro pedaço de bolo.
— Você fez o quê? — exclamou sua mãe no outro aposento, imediatamente.
Ela se levantou depressa demais e houve uma batida seca, quando suas coxas colidiram solidamente contra a beira da mesa de jogo, onde resolvia seus quebra-cabeças. O baque foi seguido pelo ruído cascateado de peças caindo ao chão. Foi quando comecei a pensar que seria melhor ter ido direto para casa.
Michael Cunningham se voltara da geladeira para fitar o filho, segurando uma maçã em uma das mãos e uma embalagem de papelão com iogurte natural na outra.
— Você está brincando — disse, e por alguma absurda razão, pela primeira vez notei que seu cavanhaque, usado desde mais ou menos 1970, estava ficando um bocado grisalho. — Arnie, você está brincando, não? Diga que é uma brincadeira.
Regina entrou, alta e semi-aristocrática, além de infernalmente furiosa. Esquadrinhou de perto o rosto de Arnie e soube que ele não estava brincando.
— Você não pode comprar um carro — falou. — De que está falando, afinal? Só tem dezessete anos!
Arnie olhou lentamente, do pai junto à geladeira, para a mãe parada à porta que levava à sala de estar. Havia uma expressão teimosa e decidida em seu rosto, algo que eu nunca vira antes, que me lembrasse. Pensei que, se usasse aquela expressão com mais freqüência na escola, os colegas da cantina não se mostrariam tão ávidos em massacrá-lo.
— A verdade é que se enganam — respondeu ele. — Posso comprar um carro sem qualquer problema. Claro, à prestação seria impossível, mas uma compra em dinheiro não oferece problema algum. Naturalmente, registrar um carro aos dezessete anos é uma questão totalmente diferente. Para isso, eu precisaria de sua permissão.
Os dois o fitavam com surpresa, inquietação e crescente raiva. Quando percebi a última, experimentei uma profunda sensação de dor no estômago. Apesar de todas as suas idéias liberais e comprometimentos com os trabalhadores das fazendas, as esposas maltratadas, mães solteiras e o resto, eles manipulavam Arnie completamente. E Arnie se deixava dirigir.
— Não me parece legal, falar com sua mãe dessa maneira — disse Michael. Recolocou o iogurte no lugar, conservou a maçã e fechou lentamente a porta da geladeira. — Você é muito novo para ter um carro.
— Dennis tem um — disse Arnie prontamente.
— Bem, puxa! Como está ficando tarde! — falei. — Eu já devia estar chegando em. casa! Devia estar chegando neste momento! Eu...-
— O que os pais de Dennis fazem e o que nós fazemos são coisas muito diferentes — disse Regina Cunningham. Eu jamais ouvira sua voz soar tão fria. Nunca. — E você não tem o direito de fazer semelhante coisa sem consultar seu pai e a mim sobre...
— Consultar vocês?— rugiu Arnie, de repente.
Derramou o leite. Havia enormes veias em seu pescoço, estiradas como cordas. Regina recuou um passo, boquiaberta. Eu podia apostar que o filho-patinho-feio nunca lhe rugira daquela forma, em toda a sua vida. Michael ficara estupidificado. Estavam tendo um gostinho do que eu já provara — por motivos que só ele saberia explicar, Arnie finalmente conseguira ter algo que realmente desejava. E que Deus se apiedasse de quem ficasse em seu caminho.
— Consultar vocês? Eu sempre consultei vocês em cada maldita coisa que já fiz! Em tudo havia uma reunião para discutir e quando era algo que não me interessava fazer, vocês venciam por dois contra um! Só que agora não estamos em nenhuma reunião para discutir o assunto. Comprei um carro... e está acabado!
— Pois eu não acho que esteja acabado — disse Regina.
Seus lábios se tinham afilado e, curiosamente (ou talvez não), ela deixara de parecer tão semi-aristocrática; era agora como a Rainha da Inglaterra ou de algum lugar, com jeans e tudo. Michael estava fora da situação, dali por diante. Parecia tão surpreso e desgostoso como eu e, por um instante, senti uma bruta pena do homem. Ele nem ao menos podia ir para casa jantar e se ver livre daquilo: já estava em casa. Ali se desenrolava uma crua luta pelo poder, entre a velha guarda e a jovem guarda. Tudo acabaria sendo decidido da mesma forma de antes, com uma monstruosa exibição de amargura e aspereza. Aparentemente, Regina estava disposta àquilo, mesmo que não fosse este o caso de Michael. Eu, no entanto, não queria tomar parte em nada. Levantei-me e caminhei para a porta.
— Você deixou que ele fizesse isto? — perguntou Regina. Olhou para mim com arrogância, como se nunca tivéssemos rido juntos, feito bolos juntos ou participado juntos de acampamentos familiares. — Dennis, estou surpresa com você.
Aquilo me atingiu. Eu sempre gostara da mãe de Arnie, porém nunca chegara a confiar inteiramente nela, pelo menos desde que acontecera algo, quando eu tinha uns oito anos.
Eu e Arnie tínhamos ido de bicicleta até o centro da cidade, para uma matinê no sábado. Quando voltávamos, ele caíra da bicicleta, em uma manobra para evitar um cachorro, e machucara bastante a perna. Levei-o para casa de carona em minha bicicleta, e Regina foi com ele ao pronto-socorro, onde o médico deu meia dúzia de pontos. Então, por algum motivo, depois que tudo terminou e se soube que Arnie ia ficar perfeitamente bom, Regina se voltou contra mim e desandou com sua língua afiada. Pregou-me um sermão como se fosse sargento-chefe. Ao terminar, eu tremia dos pés à cabeça e estava a ponto de chorar — que diabo, tinha apenas oito anos e havia um bocado de sangue. Não posso recordar capítulo e versículos de todo o falatório, mas a sensação generalizada que ficou comigo era perturbadora. Que me lembre, ela começou por acusar-me de não ter tomado conta dele direito — como se Arnie fosse muito mais novo e não quase da minha idade — e terminou dizendo (ou parecendo dizer) que aquilo devia ter acontecido era comigo.
Agora, a situação parecia repetir-se — Dennis, você não tomou conta dele direito — e aquilo me irritou. Minha desconfiança quanto a Regina talvez fosse apenas parte da coisa e, para ser inteiramente sincero, talvez apenas a menor parte. Quando somos crianças (e, afinal de contas, dezessete anos não são apenas o limite extremo da infância?), tendemos a ficar ao lado de outras crianças. Um forte e infalível instinto nos diz que, se não derrubarmos alguns muros e arrombarmos alguns portões, nossos pais — com a melhor das intenções — ficariam satisfeitos nos mantendo para sempre no cercado para bebês.
Fiquei zangado, mas disfarcei o melhor que pude.
— Eu não o deixei coisa nenhuma — respondi. — Ele quis comprar e comprou. — Antes, eu podia ter contado que Arnie apenas dera um sinal, mas não faria mais isso. Agora, eu empinava as costas. — A verdade é que tentei convencê-lo a não comprar.
— Duvido que tenha tentado com insistência — atacou Regina.
Ela bem poderia ter encerrado a frase, dizendo: Você não me engana, Dennis. Sei que os dois estavam de combinação nisto. Havia manchas vermelhas nas maçãs de seu rosto e os olhos dela atiravam faíscas. Estava procurando fazer com que me sentisse novamente um garoto de oito anos e não se saía mal na história. No entanto, mantive minha posição.
— Ora, pensando bem, afinal não foi uma coisa tão terrível assim. Ele comprou o carro por duzentos e cinqüenta dólares e...
— Duzentos e cinqüenta dólares? — explodiu Michael. — Que espécie de carro se consegue por duzentos e cinqüenta dólares?
Seu anterior e incômodo desligamento — se é que existira, e não o simples choque, ao som da tranqüila voz de seu filho, erguida em protesto — desaparecera. O preço do carro é que o despertara. E ele olhou para Arnie com tão aberto desdém que me senti mal. Eu gostaria de ter filhos um dia e, se os tiver, espero poder deixar fora de meu repertório aquela particular expressão.
Fiquei dizendo para mim mesmo que não me alterasse, que aquilo não era da minha conta, que não havia motivos para me irritar... porém o bolo que comera se grudara no meio de meu estômago, em uma grande bola pegajosa, e sentia a pele fervendo. Os Cunningham tinham sido minha segunda família, desde que eu era garotinho, e podia sentir dentro de mim todos os aborrecidos sintomas físicos de uma disputa familiar.
— Podemos aprender muito sobre carros, quando consertamos um já velho — argumentei. De repente, soava para mim mesmo como uma imitação maluca de LeBay. — E é preciso um bocado de trabalho, antes mesmo que fique bom para rodar na rua. (Se chegar a ficar, pensei.) Pode-se encarar isso como... como um hobby.
— Eu encaro como loucura — disse Regina.
De súbito, eu só queria ir embora. Creio que, se as vibrações emocionais ali dentro não estivessem tão pesadas, até acharia graça naquilo. De certa forma, passara a defender o carro de Arnie, quando decidi que era um despropósito seguir em frente.
— Pensem o que quiserem — murmurei —, mas me deixem fora disto. Vou para casa.
— Ótimo! — exclamou Regina, com aspereza.
— Muito bem — disse Arnie, em voz inexpressiva. Levantou-se. — Vou dar o fora desta merda. Regina engoliu em seco e Michael piscou, como se tivesse sido esbofeteado.
— O que foi que disse?— bufou Regina. — O que foi que... ?
— Não sei por que estão tão irritados — respondeu Arnie, em uma voz distante, controlada —, mas não vou ficar aqui sentado ouvindo um monte de besteiras de cada um. Você quis que eu fizesse os cursos do colégio. Estou fazendo. — Ele olhou para a mãe. — Quis que eu entrasse para o clube de xadrez, em vez de ficar na banda da escola: muito bem, estou lá também. Consegui atravessar dezessete anos sem envergonhá-la no clube de bridge ou ir parar na cadeia.
Os dois estavam olhando para ele, de olhos esbugalhados, como se uma das paredes da cozinha tivesse ganho lábios subitamente e começasse a falar.
Arnie os encarou, seus olhos eram estranhos, brancos e perigosos.
— Estou dizendo a vocês que vou ter esse carro. É só isso.
— Arnie, o seguro... — começou Michael.
— Pare com isso! — gritou Regina.
Ela não queria começar a falar sobre os problemas específicos, porque esse seria o primeiro passo no caminho para uma possível aceitação. Sua única idéia era esmagar a rebelião sob o calcanhar, rápida e completamente. Há momentos em que os adultos nos aborrecem de tal forma, que eles jamais compreenderão; creio que vocês sabem disso. Eu vivia um desses momentos e isso só fez com que me sentisse pior. Quando Regina gritou com o marido, pude vê-la vulgar e assustada, ao mesmo tempo. E, como gostava dela, desejaria nunca tê-la visto de um jeito ou de outro.
Ainda assim, permaneci parado à porta, querendo ir embora, mas doentiamente fascinado pelo que acontecia — a primeira discussão em grande escala que já presenciara na família Cunningham, talvez a única. Sem dúvida, aquilo era uma caretice, marcando no mínimo dez, na escala Richter.
— É melhor você ir, Dennis, enquanto resolvemos isto — disse Regina, carrancuda.
— Certo — falei —, mas acho que estão fazendo tempestade num copo d'água. Esse carro... Regina... Michael... se vocês o vissem... talvez vá de zero a trinta em vinte minutos, se chegar a se mover...
— Dennis! Vá embora! Eu fui.
Quando entrava em meu Duster, Arnie saía pela porta dos fundos, aparentemente afirmando sua intenção de ir embora. Os pais o seguiram, agora parecendo preocupados e também infelizes. Eu podia entender um pouco o que eles sentiam. Fora tudo tão repentino como um ciclone, descendo de um claro céu azul.
Liguei o motor e dei marcha à ré, até a rua sossegada. Evidentemente, muita coisa acontecera, desde que nós dois havíamos saído do trabalho às quatro, duas horas atrás. Então, eu estava faminto a ponto de comer quase qualquer coisa (exceto torta de algas). Agora, meu estômago estava tão embrulhado que por pouco não devolvia tudo quanto fora engolido.
Quando parti, eles três estavam parados na entrada para carros, em frente de sua garagem para dois automóveis (o Porsche de Michael e a camionete Volvo de Regina estavam enfiados lá dentro — eles têm seus carros, pensei, com certa maldade; estão pouco ligando), ainda discutindo.
É isso aí, pensei, um tanto triste e aborrecido. Eles o derrotarão, LeBay embolsará os vinte e cinco dólares de Arnie e aquele Plymouth 58 ficará em seu gramado por outros mil anos. Os pais de Arnie já tinham feito coisas semelhantes com ele. Porque Arnie era um perdedor. Até Regina e Michael sabiam disso. Ele era inteligente, e quando se conseguia varar seu exterior tímido e desconfiado, ficava divertido, amável e... dócil, acho eu. Dócil, exatamente o termo que faltava. Dócil, mas um perdedor.
Seus pais sabiam disso, tão bem como os soquetes-brancas da cantina, que implicavam com ele aos gritos pelos corredores e esfregavam polegares em seus óculos. Eles sabiam que Arnie era um perdedor e o derrotariam. Foi o que pensei. Só que, desta vez, estava enganado.
Meu velho disse "Filho,
Me dê uma carona para eu ir beber,
Se você ainda dirige aquele
Lincoln envenenado. "
— Charlie Ryan
Na manhã seguinte, passei pela casa de Arnie às 6:30 e apenas parei junto ao meio-fio, não querendo entrar, mesmo imaginando que seus pais ainda estariam na cama — na noite anterior houvera demasiadas vibrações negativas flutuando naquela cozinha, para que me sentisse tentado pelo costumeiro café com biscoitos, antes de ir trabalhar.
Arnie demorou quase cinco minutos para sair e comecei a pensar se ele não cumprira a ameaça de ir realmente embora. Então a porta dos fundos se abriu e ele veio descendo pela entrada de carros, a marmita do almoço balançando contra sua perna.
Ele entrou no carro, bateu a porta e disse:
— Vamos rodando, Jeeves.
Este era um dos chistes padronizados de Arnie, quando estava de bom humor.
Comecei a rodar e olhei para ele cautelosamente, quase decidido a falar alguma coisa, mas em seguida decidindo ser melhor esperar que ele começasse... se é que tinha alguma coisa para dizer.
Durante bastante tempo, pareceu que ele não tinha. Fizemos a maior parte do caminho para o trabalho sem qualquer conversa entre nós, a não ser o som da WMDY, a estação local de rock e soul. Arnie marcava o compasso distraidamente, batendo na perna.
Por fim, ele disse:
— Lamento que você tenha se envolvido naquilo a noite passada, cara.
— Está tudo certo, Arnie.
— Nunca lhe ocorreu — disse ele, abruptamente — que os pais não passam de crianças desenvolvidas, até que os filhos os empurrem para que se tornem adultos? Geralmente esperneando e chorando?
Sacudi a cabeça.
— Vou lhe dizer o que penso — continuou ele. Estávamos agora chegando ao local da construção; o trailer da Garson Brothers ficava a apenas duas rampas além. Naquela manhã, o trânsito era leve e sonolento. O céu tinha uma suave cor de pêssego. — Acho que uma das funções de ser pai é destruir os filhos.
— Parece bastante racional — respondi. — Os meus estão sempre querendo destruir-me. Esta noite, mamãe esgueirou-se com um travesseiro e o segurou contra meu rosto. Na véspera, foi papai, correndo atrás de mim e de minha irmã com uma chave de fenda.
Eu estava brincando, mas me perguntei o que Michael e Regina diriam, se pudessem ouvir nossa conversa.
— A princípio, sei que parece um tanto louco — disse Arnie, imperturbável —, mas muita coisa é esquisita, antes de começarmos a considerá-las. Complexo de pênis. Conflitos edipianos. O sudário de Turim.
— Para mim, é tudo besteira — respondi. — Você teve uma discussão com seus pais, só isso.
— Acredito nisso, realmente — disse Arnie, com ar pensativo. — Não que eles soubessem o que faziam; não acredito nisso. E sabe por quê?
— Diga.
— Porque assim que se tem um filho, a gente tem certeza de que irá morrer. Quando temos um filho, vemos nossa própria sepultura.
— Sabe de uma coisa, Arnie?
— O quê?
— Acho que isso é uma merda de macabro. Nós dois explodimos em gargalhadas.
— Não falei nesse sentido — replicou ele.
Paramos no local de estacionamento e desliguei o motor. Ficamos ali, ainda por um momento.
— Eu disse a eles que não seguiria mais os cursos do colégio — declarou Arnie. — Disse que me matricularia em T.V. Do começo ao fim.
T.V. era treinamento vocacional. A mesma espécie de coisa feita pelos garotos dos reformatórios para menores, exceto, naturalmente, que eles não voltam para casa à noite. Seguem o que se poderia chamar de programa compulsório de internato.
— Arnie... — comecei, sem saber bem como continuar. A forma como aquilo brotara do nada me dava a impressão de um capricho. — Você ainda é menor, Arnie. Eles têm que assinar o seu programa...
— Claro, eu sei disso — respondeu Arnie. Sorriu para mim sem humor e, àquela claridade fria da manhã, pareceu ao mesmo tempo mais velho e muito, muito mais jovem... algo assim como uma criança cínica. — Eles têm o poder de cancelar todo o meu programa para o outro ano, se quiserem, trocando-o por um de sua preferência. Querendo, podem matricular-me em Economia Doméstica e Mundo da Moda. A lei diz que podem. Entretanto, não há nenhuma lei dizendo que podem me obrigar a fazer o que quiserem.
Aquilo me abriu os olhos — quero dizer, mostrou a que distância ele fora. Como era possível que um calhambeque caindo aos pedaços chegara a significar tanto para ele e tão depressa? Nos dias seguintes, essa pergunta ficou insistindo comigo de maneiras diferentes, como eu sempre imaginara que seria um desgosto recente. Quando Arnie disse a Michael e Regina que ia ficar com o carro, falava sério. Ele seguira diretamente para aquele lugar onde eram mais fortes as suas expectativas e avançara com uma impiedosa diligência que me surpreendia. Não creio que táticas menores funcionassem com Regina, mas a verdade é que Arnie conseguira surpreender-me. De fato, ele me surpreendera um bocado. O que fervia por baixo daquilo era que, se Arnie passasse seu último ano em T.V., a universidade seria jogada pela janela. E, para Michael e Regina, isso era uma impossibilidade.
— Quer dizer que... então eles desistiram?
Era quase como extorquir-lhe as respostas, porém eu não podia deixar as coisas assim, enquanto não soubesse tudo.
— Não dessa maneira. Eu disse que encontraria um lugar para guardar o carro e que não tentaria submetê-lo a uma vistoria ou registro sem a aprovação deles.
— Acha mesmo que vai levar a melhor nisto?
Ele esboçou um breve e soturno sorriso, ao mesmo tempo confiante e amedrontado. Era o sorriso de um operador de escavadeira, baixando a lâmina de um Cat D-9, diante de um barranco especialmente difícil.
— Levarei — respondeu Arnie. — Quando quero, eu levo a melhor. E sabem de uma coisa? Acreditei que ele levaria mesmo.
Recordo o dia
Quando o escolhi entre todo aquele ferro-velho,
Eu podia dizer que ele era ouro,
Debaixo daquela camada de ferrugem,
E sem batidas...
— The Beach Boys
Podíamos ter duas horas de trabalho extra naquela noite de sexta-feira, mas não quisemos. Recolhemos nossos cheques no escritório, descemos até a filial de Libertyville do Banco de Empréstimos e Poupança de Pittsburgh e os descontamos. Depositei a maior parte do meu em uma conta de poupança, deixei cinqüenta na conta corrente (ter uma conta corrente fazia com que me sentisse inquietantemente adulto — imagino que a sensação se apague com o tempo) e fiquei com vinte em dinheiro.
Arnie retirou todo o seu cheque em dinheiro vivo.
— Tome — disse ele, estendendo-me uma nota de dez.
— Não — respondi. — Fique com ela, cara. Vai precisar de cada centavo, antes de terminar aquela lanternagem.
— Aceite — insistiu ele. — Eu pago minhas dívidas, Dennis.
— Guarde o dinheiro. Sinceramente.
— Aceite.
Ele estendia a nota, inexoravelmente. Apanhei-a, mas o obriguei a ficar com o dólar que sobrava. Arnie não queria aceitar.
Ao cruzarmos a cidade em direção ao terreno da casa de LeBay, Arnie ficou mais agitado, tocando o rádio alto demais, marcando um improvisado compasso primeiro batendo nas coxas, depois no painel de instrumentos. Foreigner começou a cantar "Dirty White Boy".
— É a história da minha vida, Arnie meu chapa — falei.
Ele riu, muito alto e por muito tempo. Agia como homem esperando que a mulher tenha um bebê. Por fim, percebi que estava assustado, temendo que LeBay houvesse vendido o carro, fora do combinado.
— Fique calmo, Arnie — falei. — Ele está lá.
— Estou calmo, estou calmo — disse, oferecendo-me um largo, brilhante e falso sorriso. Naquele dia, sua pele estava pior do que nunca, e me perguntei (não pela primeira, nem pela última vez) como se sentiria sendo Arnie Cunningham, encurralado atrás daquele rosto gotejante, de segundo a segundo, minuto a minuto e...
— Ora, pare de suar! Está agitado como se tivesse borrado as calças, antes mesmo de chegarmos lá!
— Não estou suando — disse ele.
Batucou outro nervoso compasso no painel de instrumentos, justamente para me provar que não estava nervoso. "Dirty White Boy", de Foreigner, foi substituído por "Jukebox Heroes", também cantado por ele. Era um anoitecer de sexta-feira e o Block Party Weekend já começara, em FM-104. Quando recordo aquele ano, meu último ano escolar, tenho a sensação de que poderia medi-lo em quarteirões de rock... e uma ascendente, uma fantástica sensação de terror.
— O que significa isso exatamente? — perguntei. — O que há de mais nesse carro?
Ele ficou olhando para Libertyville Avenue sem dizer nada, durante um tempão. Depois desligou o rádio com um gesto rápido, cortando o vôo de Foreigner pelo meio.
— Não sei ao certo — respondeu. — Talvez seja porque, pela primeira vez, desde que fiz onze anos e comecei a ficar com espinhas, tenha visto uma coisa ainda mais feia do que eu. Não é o que queria que eu dissesse? Isto não o deixa em uma categoriazinha elegante?
— Ei, Arnie, o que há? — falei. — Este aqui é o Dennis, lembra-se de mim?
— Claro que me lembro — replicou ele. — E ainda somos amigos, certo?
— Certo, pela última vez que chequei. Mas o que tem isso a ver com...
— Significa que não precisamos mentir um para o outro. Pelo menos, é o que penso. Portanto, quero lhe dizer, talvez nem tudo seja legal. Sei o que sou. Sou feio. Não faço amigos com facilidade. De certa forma... afugento as pessoas. Não é minha intenção, mas acontece. Você entende?
Assenti com certa relutância, Como ele dissera, éramos amigos e isso significava que as mentiras e tolices deviam ser reduzidas ao mínimo.
Ele assentiu de volta, com naturalidade.
— Outras pessoas — disse, para então acrescentar, cautelosamente —, você por exemplo Dennis, nem sempre entendem o que isto significa. Quando a gente é feio e os outros riem de nós, a maneira como vemos o mundo se modifica. E muito difícil manter o senso de humor. É uma coisa que se gruda por dentro. Às vezes, até é difícil permanecer lúcido.
— Bem, eu posso entender isso, mas...
— Não — disse ele, calmo. — Você não pode entender. Pensa que pode, mas não pode. Não mesmo! Mas você gosta de mim, Dennis...
— Eu adoro você, cara — falei. — Sabe muito bem disso.
— Talvez — respondeu ele —, e fico satisfeito. Se gosta de mim, é porque sabe que existe algo mais... qualquer coisa por baixo das espinhas e de meu rosto imbecil...
— Seu rosto não é imbecil, Arnie — discordei. — Pode ser esquisito, mas não imbecil.
— Foda-se — disse ele, sorrindo.
— Foda-se também o pangaré que vai montar, Cavaleiro da Montanha.
— De qualquer modo, aquele carro é assim. Há qualquer coisa por baixo dele. Algo mais. Algo melhor. Eu sinto, é só isso.
— Sente?
— Exato, Dennis — disse ele, tranqüilo. — Eu sinto.
Dobrei para Main Street. Estávamos chegando à casa de LeBay. De repente, tive uma idéia absolutamente idiota. E se o pai de Arnie tivesse convocado alguns de seus amigos ou alunos para irem à casa de LeBay e comprar aquele carro, tirando-o de seu filho? Poder-se-ia dizer que seria um toque maquiavélico, só que a mente de Michael Cunningham era mais do que ligeiramente tortuosa. Sua especialidade era História Militar.
— Eu vi aquele carro e senti tal atração por ele... Nem mesmo para mim sei explicar bem como foi, mas...
A voz se extinguiu, aqueles olhos cinzentos e sonhadores pareciam ver o futuro.
— Eu vi que poderia melhorá-lo — concluiu.
— Consertá-lo, quer dizer, não é?
— Sim... bem, não. Assim, seria muito impessoal. A gente conserta mesas, cadeiras, essas coisas. O cortador de grama, quando não quer funcionar. E carros comuns.
Talvez ele tivesse visto minhas sobrancelhas erguidas. De qualquer modo, deu uma risada — uma risadinha defensiva.
— Certo, percebo como a coisa soa — disse. — Nem mesmo gostaria de colocar em palavras, porque sei como soa, mas você é um amigo, Dennis. E isto significa um mínimo de conversa fiada. Não acredito que aquele seja um carro comum. Não sei por que penso assim, mas... é o que penso.
Abri a boca para dizer algo que mais tarde poderia lamentar, algo sobre tentar olhar as coisas de outra forma ou mesmo evitar um comportamento obsessivo. Entretanto, naquele exato momento, dobramos a esquina e entramos na rua de LeBay.
Arnie encheu os pulmões de ar, em uma inspiração rude e dolorida.
No gramado de LeBay, havia um retângulo ainda mais amarelado, mais pelado e feio do que o resto do terreno. Perto de uma extremidade do retângulo, havia uma mancha de óleo com aparência doentia, que mergulhara no solo, matando tudo que ali crescera antes. Aquele pedaço retangular de terreno era tão infernalmente extenso que, acho, quem olhasse para ele por muito tempo ficaria cego.
Era ali que estivera o Plymouth 58, no dia anterior.
O chão continuava lá, mas o Plymouth se fora.
— Arnie — falei, quando encostei o carro no meio fio —, vá com calma. Não se descontrole, pelo amor de Deus!
Ele não me deu a menor atenção e até duvido que me tivesse ouvido. Seu rosto ficara lívido. As equimoses que o cobriam tornaram-se purpúreas, ganhando relevo. Antes mesmo que eu freasse, ele já escancarava a porta de meu Duster, no lado do passageiro, e mergulhava para fora.
— Arnie...
— Foi meu pai — disse ele, com raiva e desgosto. — Posso farejar aquele filho da mãe em tudo isto!
Disparou em seguida, correndo pelo gramado até a porta de LeBay.
Saí do carro e corri atrás dele, refletindo que aquela merda nunca mais teria fim. Mal podia acreditar que acabara de ouvir Arnie Cunningham chamar Michael de filho da mãe.
Arnie erguia o punho para martelar a porta, quando ela se abriu. Roland D. LeBay, em pessoa, surgiu à vista. Agora usava uma camisa sobre o colete para as costas. Olhou para o rosto enfurecido de Arnie com um sorriso benignamente cobiçoso.
— Olá, filho — disse.
— Onde está ele? — perguntou Arnie, fora de si. — Nós fizemos um negócio! Droga, fizemos um negócio! Entregou-me um recibo!
— Baixe a fervura — disse LeBay. Então me viu, parado junto ao último degrau, com as mãos enfiadas nos bolsos. — O que há de errado com seu amigo, filho?
— O carro sumiu — falei. — É o que há de errado com ele.
— Quem o comprou? — gritou Arnie.
Eu nunca o vira tão enfurecido. Se tivesse uma arma naquele momento, creio que a teria encostado à têmpora de LeBay. Fiquei fascinado, mesmo sem querer. Aquilo era como se um coelho tivesse ficado subitamente carnívoro. Que Deus me perdoe, mas cheguei a pensar, em um relance, se Arnie não teria um tumor no cérebro.
— Quem o comprou? — repetiu LeBay brandamente. — Até agora, ninguém, filho. Bem, você deu um sinal pelo carro. Eu o levei para a garagem, eis tudo. Coloquei o pneu sobressalente e troquei o óleo.
O velho empertigou-se e então ofereceu-nos um sorriso absurdamente magnânimo.
— Você é um grande sujeito — falei.
Arnie o fitou com incerteza, depois girou bruscamente a cabeça para a porta fechada da modesta garagem para um carro, anexada à casa por um corredor coberto. Um corredor que, como tudo o mais na propriedade de LeBay, já vira melhores dias.
— Por outro lado, não quis deixá-lo aqui fora, já que você tinha dado um sinal de compra — disse ele. — Um ou dois caras desta rua podiam criar problemas. Certa noite, um garoto atirou uma pedra em meu carro. Oh, claro, tenho alguns vizinhos saídos diretamente da B.E.P.
— O que é isso? — perguntei.
— É a Brigada dos Espíritos de Porco, filho.
Ele varreu o lado oposto da rua com um maligno olhar de caçador à espreita, abrangendo os carros simples e econômicos que agora tinham retomado do trabalho para casa, as crianças brincando de pique e pulando corda, as pessoas sentadas à porta de casa e bebericando, à primeira brisa da noite fria.
— Eu gostaria de saber quem jogou aquela pedra — disse ele, em voz branda. — Sim, senhor, eu gostaria de saber quem foi.
Arnie pigarreou.
— Sinto muito ter-lhe falado daquela maneira.
— Não tem importância — respondeu LeBay vivamente. — Gosto de ver um sujeito exigir o que é seu... ou quase seu. Trouxe o dinheiro, garoto?
— Sim, trouxe.
— Muito bem, entrem. Você e seu amigo também. Vou passar um recibo de compra em seu nome e tomaremos um copo de cerveja para comemorar.
— Não, obrigado — falei. — Eu fico aqui fora, se não se importa.
— Isso é com você, filho — disse LeBay... e me piscou o olho.
Até hoje não sei bem o que significaria aquela piscadela. Os dois entraram e a porta bateu, fechando-se atrás deles. O peixe caíra na rede e agora ia ser escamado.
Sentindo-me deprimido, caminhei pelo corredor coberto até a garagem e tentei abrir a porta. Ela deslizou para cima com facilidade e aspirei os mesmos odores já sentidos, quando abrira a porta do Plymouth, na véspera: óleo, estofamento antigo, o calor acumulado de um longo verão.
Ancinhos e alguns velhos apetrechos de jardim alinhavam-se ao longo de uma parede. Na outra, uma mangueira velhíssima, uma bomba de bicicleta e um antigo saco de golfe, cheio de tacos enferrujados. No meio da garagem, com a proa virada para a saída, estava Christine, o carro de Arnie, parecendo ter um quilômetro de comprimento naquela época, em que os próprios Cadillacs davam uma idéia de comprimidos e semelhantes a caixotes. A confusa teia de aranha de rachaduras a um lado do pára-brisa captou a claridade, transformando-a em um prateado sujo. Um garoto com uma pedra — tinha dito LeBay —, ou talvez um ligeiro acidente, ao voltar para casa, vindo de uma reunião com os VFW (os veteranos de guerras no estrangeiro), após uma noite bebendo uísque misturado a cerveja e contando histórias sobre a Batalha do Bulge ou de Pork Chop Hill. Os bons e velhos tempos, quando um homem podia ver a Europa, o Pacífico e o misterioso Oriente de trás da mira de uma bazuca. Quem podia saber... e o que importava? De qualquer modo, não ia ser fácil encontrar um pára-brisa para reposição tão grande como aquele.
E nem ia ser barato.
Oh, Arnie! pensei. Cara, você está indo muito fundo.
O pneu que LeBay trocara descansava contra a parede. Agachei-me sobre as mãos e os joelhos, para uma espiada debaixo do carro. Uma recente mancha de óleo começava a formar-se ali, negra contra o fantasma acastanhado de outra mais antiga e mais larga, que se infiltrara no cimento, durante um período de anos. Aquilo não diminuiu minha depressão. Sem dúvida, o bloco do motor devia estar rachado.
Dei a volta até o lado do motorista e, ao segurar o volante, avistei uma lata de lixo no canto mais distante da garagem. Por sobre a borda, assomava uma enorme garrafa de plástico. As letras SAPPH eram visíveis acima da borda.
Grunhi. Muito bem, ele trocou o óleo. Quanta gentileza. Retirara o velho — o que quer que houvesse sobrado dele — e despejara alguns quartos de Sapphire Motor Oil. É o troço que se consegue a 3 dólares e cinqüenta em Mammoth Mart, por lata de cinco galões reciclados. Roland D. LeBay era um verdadeiro príncipe, sem dúvida. Roland D. LeBay era um sujeito formidável.
Abri a porta do carro e deslizei para trás do volante. Agora, o cheiro na garagem não parecia tão pesado ou tão carregado com impressões de desuso e fracasso. O volante era amplo e vermelho — um volante de confiança. Tornei a olhar para aquele espantoso velocímetro, aquele velocímetro calibrado, não para 70 ou 80, mas todo o caminho até 120 milhas por hora. Não havia a marcação por quilômetro, em pequenos números vermelhos, abaixo das milhas; quando aquele bebê rodara para fora da linha de montagem, a idéia do sistema métrico ainda não ocorrera a ninguém em Washington. Tão pouco vi qualquer grande 55 em vermelho no velocímetro. Naquele tempo, a gasolina saía por 29,9 o galão, talvez menos, se em sua cidade estivesse em prática o preço de guerra. Os embargos ao petróleo árabe e as penalidades quanto ao limite de velocidade, ainda estavam a quinze anos de distância.
Os bons e velhos tempos, pensei, e tive que sorrir um pouco. Remexi no lado esquerdo do assento, embaixo, e encontrei o pequeno console com o botão que movia o banco para diante e para trás, para cima e para baixo (se ainda funcionava, claro). Mais poder para você, como se diz por aí. Havia um condicionador de ar (com toda certeza, aquilo não funcionava), controle para velocidade de cruzeiro e um enorme rádio com botões de apertar e montanhas de cromados — AM apenas, é claro. Em 1958, a FM era principalmente um deserto vazio.
Segurei o volante com as duas mãos e algo aconteceu.
Mesmo hoje, depois de muito refletir, não imagino exatamente o que fosse. Uma visão, talvez — mas se fosse, talvez não tivesse grande importância. Acontece que, por um momento, aquele estofamento rasgado parecia ter desaparecido. Agora estava inteiro, desprendendo um cheiro agradável de vinil... ou talvez aquele cheiro fosse de couro verdadeiro. As partes gastas da direção haviam sumido; o cromado piscava alegremente à claridade noturna do verão, entrando pela porta da garagem.
Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão, Christine pareceu sussurrar, em meio ao quente silêncio estivai da garagem de LeBay. Vamos rodar por aí.
Então, só por um instante, pareceu que tudo mudara. Aquela horrorosa confusão de rachaduras no pára-brisa sumira — ou era esta a impressão. O pequeno trecho do gramado de LeBay, que eu podia ver dali, não estava amarelado, ralo e maltratado, mas ficara de um verde exuberante e farto, recentemente aparado. A calçada mais além estava cimentada de fresco, sem uma fenda no piso à vista. Eu vi (pensei ou sonhei ter visto) um motor de Cadillac 57 à minha frente. Aquele cavalo empinado GM era de um verde-hortelã, não havia o menor salpico de ferrugem na lataria, os pneus eram enormes, de banda branca, com calotas refletindo mais que espelhos. Um Cadilac do tamanho de um iate, por que não? A gasolina era quase tão barata como a água da torneira.
Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí.
Claro, por que não? Eu podia ligar o motor e rumar para o centro da cidade, em direção ao antigo ginásio que ainda estava de pé — ele só se incendiaria seis anos mais tarde, em 1964 — e eu poderia ligar o rádio, para ouvir Chuck Berry cantando "Maybelline" ou os Everlys em " Wake up little Susie". Talvez Robin Luke, gemendo "Susie Darling'. E então, eu...
E então saí daquele carro, o mais depressa que pude. A porta se abriu com um infernal rangido enferrujado e arranhei fundo o cotovelo, em uma das paredes da garagem. Empurrei a porta para que se fechasse (falando francamente, eu nem queria tocar nela) e então fiquei lá parado, contemplando o Plymouth que, salvo algum milagre, logo pertenceria a meu amigo Arnie. Esfreguei o osso arranhado do cotovelo. Meu coração batia aceleradamente.
Nada. Não havia cromados novos nem novo estofamento. Ao contrário, havia uma profusão de amassaduras e ferrugem, faltava um farol dianteiro (detalhe que, na véspera, me passara despercebido) e a antena do rádio se inclinava em um ângulo esquisito. Mais aquela poeira, o cheiro sujo de velhice.
Naquele momento, decidi que não gostava do carro de meu amigo Arnie.
Saí da garagem, olhando constantemente para trás por sobre o ombro — sei lá por quê, mas não gostava daquilo às minhas costas. Sei que pode parecer absurdo, mas era como me sentia. E lá estava o carro, com o radiador amassado e enferrujado, sem nada de sinistro e nem mesmo estranho, apenas um velho automóvel Plymouth, com uma etiqueta adesiva de inspeção, que caducara em 1º de junho de 1976 muito tempo atrás.
Arnie e LeBay saíam da casa. Arnie tinha na mão um pedaço de papel, que deduzi ser seu recibo de compra. As mãos de LeBay estavam vazias; ele já fizera o dinheiro desaparecer.
— Espero que desfrute bastante da máquina — dizia LeBay, fazendo-me pensar em um gigolô muito idoso, engambelando um rapaz muito novo. Senti uma onda de pura aversão por ele... ele com sua psoríase no crânio e seu suado colete ortopédico. — Creio que a desfrutará. Com o tempo.
Seus olhos ligeiramente remelosos encontraram os meus, fixaram-se neles por um segundo e depois deslizaram de volta a Arnie.
— Com o tempo — repetiu.
— Sim, senhor, tenho certeza disso — respondeu Arnie, alheiamente. Moveu-se para a garagem como um sonâmbulo e ficou parado, olhando seu carro.
— As chaves estão nele — disse LeBay. — Terá que levá-lo daqui. Compreende, não?
— E o motor dará partida?
— Deu partida ontem para mim, à noite — disse LeBay, mas seus olhos se voltaram para o horizonte. Depois em um tom de quem lavou as mãos em todo aquele negócio, acrescentou: — Seu amigo aqui deve ter algum cabo no porta-mala.
Bem, para dizer a verdade, eu tinha o cabo no porta-mala, porém não gostei muito de LeBay ter adivinhado isso. Não gostei que ele adivinhasse, porque... Suspirei de leve. Porque não queria ser envolvido no futuro relacionamento de Arnie com o calhambeque que havia comprado. No entanto, estava me vendo ser arrastado para aquilo, passo a passo.
Arnie cessara inteiramente a conversa. Caminhou para a garagem e entrou no carro. O sol do fim da tarde agora batia em cheio sobre o carro e vi a pequena nuvem de poeira que subiu quando Arnie se sentou, e sacudi automaticamente os meus fundilhos. Por um instante, ele ficou apenas parado diante do volante, as mãos segurando-o frouxamente, e senti que minha inquietação voltava. De certa forma, era como se o Plymouth o tivesse engolido. Disse a mim mesmo para parar com aquilo, que não havia nenhuma maldita razão para que continuasse agindo como uma menininha imbecil da sétima série.
Então, Arnie inclinou-se ligeiramente. O motor começou a dar partida, depois morreu. Virando-me, atirei um olhar irritado e acusador para LeBay, porém ele voltara a estudar o céu, como que em busca de chuva.
Aquele motor não ia pegar, não ia pegar de maneira alguma. Meu Duster estava em ótimo estado, mas os dois carros que eu tivera antes eram calhambeques (calhambeques recauchutados e nenhum deles pertencendo à mesma categoria de Christine), portanto, ficara bem familiarizado com aquele som nas manhãs frias de inverno, aquele lento e cansado ruído desconjuntado, indicando que a bateria arranhava o fundo do barril.
Rurr-rurr-rurr... rurr... rurr... rurr... rurr...
— Não se preocupe, Arnie — falei. — Não vai pegar nunca.
Ele nem mesmo ergueu a cabeça. Desligou e tornou a girar a chave na ignição. O motor resmungou, com dolorosa e difícil lentidão. Encaminhei-me para LeBay.
— Não podia tê-lo deixado trabalhar o tempo suficiente para carregar um pouco a bateria, pelo menos? — perguntei.
LeBay me fitou com seus olhos remelentos e amarelados, sem nada dizer. Depois começou a perscrutar novamente o céu, pesquisando chuva.
— O mais provável é que nem tenha chegado a trabalhar. Talvez você tenha arranjado uns dois amigos que o ajudaram a empurrá-lo até a garagem. Se é que um velho imbecil como você tem amigos.
Ele baixou os olhos para mim.
— Você não sabe tudo, filho — disse. — Ainda nem aprendeu a enxugar atrás das orelhas. Quando tiver passado por duas guerras, como eu...
— Suas duas guerras que se fodam! — repliquei deliberadamente.
Caminhei para a garagem, onde Arnie continuava tentando ligar o motor de seu carro. Pensei que seria mais fácil secar o Atlântico com um canudinho de palha ou ir até Marte em um balão de ar quente.
Rurr... rurr... rurr...
Logo o último ohm, o último erg, seriam sugados daquela velha bateria da Sears, não restando senão o mais desanimador de todos os sons automotrizes, ouvidos tão comumente em estradas secundárias encharcadas de chuva e auto-estradas desertas: o clique estéril e monótono do solenóide, seguido por um terrível som semelhante a um chocalho.
Abri a porta do lado do motorista.
— Vou apanhar meus cabos — falei. Ele ergueu os olhos.
— Acho que ele vai pegar para mim — respondeu.
Senti meus lábios se distenderem em um largo sorriso de dúvida.
— De qualquer modo, vou buscar os cabos.
— Está bem, já que você quer — Arnie respondeu com ar ausente. Então, em uma voz quase inaudível, acrescentou: — Vamos, Christine! O que me diz?
No mesmo instante, aquela voz despertou em minha cabeça e tornou a falar: Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí... e estremeci.
Ele tornou a girar a chave. Esperei o clique seco do solenóide e o chocalhar que logo engasgaria. No entanto, o que ouvi foi o lento estertorar do motor, de repente ganhando velocidade. O motor pegou, ficou assim um instante, depois morreu. Arnie girou a chave novamente. O motor trabalhou mais depressa. O arranque soava tão alto como uma bomba usada, mas em bom estado, naquele confinado espaço da garagem. Sobressaltei-me. Arnie continuou quieto, perdido em seu próprio mundo.
A essa altura, eu já teria praguejado umas duas vezes, apenas para dar força, para ajudar a máquina: Vamos, filha da puta, sempre é uma boa pedida; Pegue, porra! também tem seus méritos e, às vezes, apenas um bom e saudável merda-PEGUE! realiza o milagre. A maioria dos caras que conheço faria o mesmo; penso que isto é apenas uma das coisas que aprendemos com nosso pai.
O que nos fica da mãe, em geral, são conselhos práticos e insistentes: se cortar as unhas dos pés duas vezes por mês, não ficará com tantos buracos nas meias; largue uma coisa no chão, e não vai saber onde ela está; coma sua cenoura, porque faz bem — mas é com o pai que aprendemos as palavras mágicas, os talismãs do poder. Se o carro não pega, xingue-o... e certifique-se de que o xingamento seja no feminino. Se recuássemos sete gerações, provavelmente veríamos um de nossos tataravós xingando a maldita cadela daquele burro que parou na metade da ponte em que se pagava pedágio, em algum lugar do Sussex ou de Praga.
Arnie, entretanto, não xingou em absoluto. Murmurou baixinho:
— Vamos, boneca, o que me diz?
Girou a chave. A máquina estremeceu duas vezes, o arranque tornou a soar e então pegou. Era um som horrível, como se quatro dos oito êmbolos houvessem tirado folga naquele dia, mas o motor continuou funcionando. Eu mal podia acreditar, porém não pretendia ficar por ali e discutir o caso com Arnie. A garagem se enchia rapidamente de fumaça azul e vapores. Fui para fora.
— Afinal, o motor pegou direitinho, não foi? — disse LeBay. — E você não precisará arriscar sua preciosa bateria.
Ele deu uma cusparada. Não pude pensar em algo como resposta. Para ser franco, fiquei um pouco constrangido.
O carro saiu lentamente da garagem, parecendo tão absurdamente comprido que dava vontade de rir, chorar, fazer qualquer coisa. Era difícil acreditar que pudesse ser tão grande. Parecia uma ilusão de ótica. E Arnie ficara ainda menor, atrás do volante.
Ele arriou o vidro da janela e acenou para mim. Tínhamos que gritar, para que nossas vozes fossem ouvidas — era outro detalhe sobre Christine, a garota de Arnie: tinha uma voz extremamente alta e rouca, que exigiria um pronto controle. O que sobrara do sistema exaustor, ao qual se poderia adaptar um silencioso, não passava de um monte de rendilhado ferruginoso. Desde que Arnie tomara posição ao volante, a pequena caixa registradora na seção de automóveis de meu cérebro já totalizara as despesas em cerca de seiscentos dólares — nisto não incluído o pára-brisa estilhaçado. Só Deus sabia quanto poderia custar aquela reposição.
— Vou levá-lo para a Darnell's! — gritou Arnie. — Seu anúncio no jornal diz que posso estacioná-lo nos boxes traseiros por vinte dólares a semana!
— Arnie, vinte dólares por semana em um daqueles boxes dos fundos é demais! — gritei em resposta.
Aí vinha mais roubalheira contra os jovens e inocentes. A Garagem de Darnell fica contígua a um terreno baldio de quatro acres, ocupado por automóveis usados, sob o falsamente animador nome de Darnell's Used Auto Parts — Peças Usadas de Carro do Darnell. Eu estivera lá algumas vezes, uma delas a fim de comprar um acionador de arranque para o meu Duster, outra em busca de um carburador recondicionado para o Mercury que havia sido meu primeiro carro. Will Darnell era um sujeito grande e gordo como um porco, que bebia um bocado e fumava compridos charutos, um atrás do outro, embora se dissesse que sua condição de asmático não era das melhores. Ele declarava odiar quase todo adolescente dono de carro em Libertyville... embora isso não o privasse de fazer negócios com eles e enrolá-los.
— Eu sei — berrou Arnie, acima do barulhento motor —, mas será apenas por uma semana ou duas, até eu encontrar um lugar mais barato. Não posso levá-lo para casa do jeito como está, Dennis. Papai e mamãe iam armar uma discussão dos diabos!
Sem a menor dúvida, ele tinha razão. Abri a boca para dizer qualquer coisa mais — talvez pedir-lhe para acabar com aquela loucura, antes que fosse tarde. Então, tornei a fechá-la. O negócio estava feito. Por outro lado, eu não queria mais competir com aquele barulhento cano de descarga e muito menos ficar ali, enviando para os pulmões um bocado da empesteada fumaceira de carbono que o carro cuspia para fora.
— Está bem — falei. — Irei atrás de você.
— Boa idéia — disse ele, sorridente. — Vou por Walnut Street e Basin Drive. Prefiro ficar fora das ruas principais.
— Certo.
— Obrigado, Dennis.
Ele baixou novamente a transmissão hidramática e o Plymouth saltou um metro para diante, quase se desconjuntando. Arnie desacelerou um pouco e Christine soprou vento e terra para os lados. O Plymouth desceu a entrada para carros de LeBay, até a rua. Quando Arnie puxou o freio, somente uma lanterna traseira se acendeu. Minha calculadora automotiva mental somou impiedosamente mais cinco dólares.
Ele girou o volante para a esquerda e manobrou para a rua. Os remanescentes do silencioso arranharam ferruginosamente o ponto mais baixo da calçada. Arnie deu mais combustível e o carro rugiu como um refugiado de uma convenção Democrata em Philly Plains. Do outro lado da rua, as pessoas se debruçavam na entrada das casas ou chegavam à porta, para verem o que estava acontecendo.
Resfolegando e grunhindo, Christine rodou pela rua, a uns quinze quilômetros horários, expelindo espessas e fedorentas nuvens de azulado óleo queimado, que ficavam suspensas no ar e então se diluíam lentamente, ao suave anoitecer de agosto.
No sinal, uns quarenta metros adiante, o motor afogou. Um garoto passou pelo calhambeque em seu Raleigh e, até meus ouvidos, chegou seu grito insolente, debochado:
— Leve pro ferro-velho, mister!
O punho fechado de Arnie assomou fora da janela. Seu dedo médio ergueu-se no ar, quando fez o gesto obsceno para o guri. Mais uma primeira vez. Eu nunca tinha visto Arnie fazer aquilo para ninguém, em toda a minha vida.
O arranque uivou, o motor tossiu e pegou. Desta feita, houve toda uma série de sons chocalhantes. Era como se alguém começasse a disparar uma metralhadora em Laurel Drive, Libertyville, EUA.
Alguém logo chamaria os tiras, denunciando desordem na via pública e eles enquadrariam Arnie, por dirigir um veículo não-registrado e não-vistoriado — bem como, talvez, pela provocação em público também. Em casa, a situação não iria ficar exatamente uma beleza.
Houve o eco de um tiro final — que reverberou pela rua abaixo como a explosão de um morteiro — e então o Plymouth virou à esquerda, para Martin Street, o que o levaria à Walnut, uns dois quilômetros acima. O sol que se punha transformou ligeiramente em ouro a vetusta lataria vermelha, quando o carro desapareceu de vista. Vi que Arnie tinha o cotovelo dobrado sobre a janela.
Virei-me para LeBay, revoltado novamente, disposto a dizer-lhe mais algumas palavras ásperas. Confesso que estava fervendo por dentro. No entanto, o que vi me tirou prontamente aquela idéia da cabeça.
Roland D. LeBay estava chorando.
Era horrível e grotesco, lamentável acima de tudo. Quando estava com nove anos, tínhamos um gato chamado Capitão Beefheart, que foi atropelado por um caminhão da Limpeza Urbana. Nós o levamos ao veterinário — mamãe precisou dirigir devagar, porque chorava e não conseguia ver direito, enquanto eu estava no banco traseiro, com o Capitão Beefheart. Ele estava em uma caixa e eu lhe dizia que o veterinário ia salvá-lo, que tudo ia ficar bem, mas mesmo um garotinho cabeça oca de nove anos como eu podia ver que nunca mais tudo ia ficar novamente certo para o Capitão Beefheart, porque algumas de suas tripas estavam para fora, havia sangue saindo de seu ânus, fezes na caixa e em seu pêlo, e ele estava morrendo. Tentei afagá-lo e ele me mordeu a mão, bem nas peles sensíveis entre o polegar e o indicador. Foi uma dor forte e aumentou aquela sensação de pena. Eu nunca mais sentira nada igual, desde então. Não que eu me queixasse, compreendam; não creio que as pessoas sintam isso muitas vezes. Se alguém experimentar muitas dessas sensações, é levado para fazer cestas no hospício.
LeBay estava de pé em seu relvado careca; não muito distante do lugar em que aquela enorme mancha de óleo havia desfolhado tudo. Puxara um lenço enorme e, de cabeça baixa, enxugava os olhos com ele. As lágrimas brilhavam gordurosas em suas faces, mais como suor, do que lágrimas verdadeiras. Seu pomo-de-adão subia e descia.
Virei a cabeça, para não ter de vê-lo chorando e, por acaso, meus olhos se fixaram em sua garagem para um carro. Antes ela parecera entulhada — com os apetrechos ao longo da parede, claro, porém principalmente por causa daquele imenso carro velho, com seus faróis dianteiros duplos, o pára-brisa panorâmico e o capô de um acre. Agora, as coisas encostadas à parede serviam apenas para acentuar o vazio essencial da garagem, boquiaberto como uma boca desdentada.
Aquilo era quase tão horrível quanto LeBay. No entanto, quando olhei de novo, o velho filho da puta já se controlara — bem, quase. Parara de enxugar os olhos e enfiara o lenço no bolso traseiro de suas práticas calças de velho. O rosto, contudo, continuava desolado. Muito desolado.
— Bem, aí está — comentou, em voz roufenha. — Fiquei sem a minha máquina, filho.
— Eu só queria que meu amigo pudesse dizer a mesma coisa — repliquei. — Se soubesse o problema que ele vai ter com seus velhos, por causa daquela lata enferrujada...
— Saia daqui! — ordenou o velho. — Você parece um maldito carneiro! É só béé, béé, béé, que ouço saindo de sua goela! Acho que aquele seu amigo sabe muito mais do que você. Vá ver se ele precisa de ajuda!
Desci o gramado até meu carro. Não queria ficar por ali, perto de LeBay, nem mais um segundo.
— É só béé, béé, béé! — gritou ele as minhas costas, rabugentamente, fazendo-me pensar naquela antiga canção dos Youngbloods: Sou um cara de uma só nota, nela toco tudo o que posso. — Você não sabe metade do que pensa que sabe!
Entrei em meu carro e afastei-me dali. Ao dobrar para a Martin Street, olhei para trás ainda uma vez e o vi de pé em seu terreno, com o sol brilhando em sua calva.
Da maneira como aconteceram as coisas, LeBay estava certo. Eu não sabia metade do que imaginava saber.
Tenho um calhambeque 34
E o chamamos de biruta,
Compreendam, não tem nada de jovem,
Até já é bem velho, mas ainda muito bom...
— Jan and Dean
Desci pela Martin até Walnut e dobrei para a direita, em direção a Basin Drive. Não demorei muito a emparelhar com Arnie. Ele havia parado junto ao meio-fio e a tampa do capô de Christine estava erguida. Um macaco de automóvel, tão velho que quase parecia ter sido usado outrora para trocar rodas dos carroções Conestoga, jazia contra o empenado pára-choque traseiro. O pneu traseiro da direita estava murcho.
Freei atrás dele, e mal tinha saído do carro quando uma mulher nova saiu de sua casa em nossa direção, esgueirando-se por entre uma boa coleção de objetos de plástico fincados em sua grama (dois flamingos cor-de-rosa, quatro ou cinco patinhos enfileirados atrás da grande mãe pata e um poço dos desejos bastante apresentável, com flores de plástico brotando do balde de plástico). A mulher precisava urgentemente de orientação dos Vigilantes de Peso.
— Não podem deixar esse lixo aqui! — avisou, mascando boa quantidade de chicletes. — Não podem deixar esse lixo parado diante da nossa casa, espero que saibam disso.
— Foi apenas um pneu vazio, madame — disse Arnie. — Vou tirar o carro daqui, assim que...
— Não pode deixá-lo aí e espero que saiba disso! — insistiu ela, como que em louca circularidade. — Meu marido logo estará chegando e não quer nenhuma lata velha diante da casa.
— Não é uma lata velha! — exclamou Arnie, e algo em seu tom a fez recuar um passo.
— Não fale comigo nesse tom de voz, filho — disse insolentemente aquela obesa rainha do be-bop. — Não é preciso muita coisa para meu marido ficar furioso!
— Escute aqui — começou Arnie.
Era a mesma voz inexpressiva e perigosa que usara quando Michael e Regina tinham começado a discutir com ele. Agarrei-lhe o ombro com força. Não havia necessidade de mais confusão.
— Obrigado, madame — falei. — Tiraremos o carro daqui em um instante. Vamos dar um jeito nele tão depressa, que nem vai acreditar.
— Acho melhor — disse ela, e então apontou um polegar para o meu Duster. — E o seu carro está parado diante da entrada da minha garagem.
Fiz meu carro recuar. Ela espiou a manobra e depois também recuou sacolejando para a casa, onde um garotinho e uma garotinha se espremiam na porta. Também eram gorduchos. Cada um deles comia um belo e nutritivo sanduíche.
— O que foi, mãe? — perguntou o garotinho. — O que foi com o carro daquele homem, mãe? O que foi?
— Cale a boca! — ordenou a rainha do be-bop, empurrando as duas crianças para dentro. Sempre gostei de ver pais esclarecidos como aquela mulher; isso me enche de esperanças no futuro. Virei-me para Arnie.
— Muito bem — falei, dizendo a única coisa inteligente em que pude pensar —, no fundo, foi apenas um pneu furado, Arnie. Certo?
Ele sorriu aereamente.
— Estou com um probleminha, Dennis — disse.
Eu sabia qual era o seu problema: não tinha sobressalente. Arnie tornou a puxar a carteira — dava pena vê-lo fazendo aquilo — e olhou em seu interior.
— Preciso de um pneu novo — continuou.
— Claro, acho que precisa. Um recauchutado...
— Nada de recauchutados. Não é assim que quero começar.
Fiquei calado, mas olhei para meu Duster. Tinha dois recauchutados nele e decidi que eram ótimos.
— Quanto acha que custariam um Goodyear ou Firestone novos, Dennis?
Dei de ombros e consultei a pequena calculadora automotiva. Ela concluiu que Arnie talvez conseguisse um pneu simples, sem banda branca, por uns trinta e cinco dólares. Ele puxou duas notas de vinte da carteira e as estendeu para mim.
— Se for mais, com o imposto e tudo, pagarei a diferença. — Olhei para ele com tristeza.
— Quanto sobrou de seu pagamento da semana, Arnie? Seus olhos estreitaram-se, desviando-se dos meus.
— O bastante — respondeu.
Decidi tentar mais uma vez — lembrem-se de que eu tinha apenas dezessete anos, ainda acreditando que devemos mostrar aos outros como agir melhor.
— Você não conseguiria tomar parte em um jogo de pôquer de um níquel — falei. — Enfiou neste carro o que ganhou em toda a semana. Esvaziar a carteira vai ser um gesto muito familiar para você, Arnie. Por favor, cara. Reflita bem!
Seus olhos eram pétreos. Eu nunca lhe vira antes aquela expressão e, embora talvez me considerem o mais ingênuo adolescente da América, não me lembrava de tê-la visto em qualquer outro rosto. Estava surpreso e desalentado — era como se, de repente, descobrisse que procurava ter uma conversa racional com um indivíduo simplesmente lunático. Mais tarde, tornei a ver tal expressão e imagino que o mesmo lhes tenha sucedido. Hermetismo absoluto. É a expressão facial do sujeito ao qual dizemos que a mulher a quem ama o anda corneando pelas costas.
— Pare com isto, Dennis — disse ele. Levantei as mãos, exasperado.
— Está bem! Está bem!
— E também não precisa ir ver o maldito pneu, se não quiser. — Ainda aquela expressão pétrea, obstinada em seu rosto, e estupidamente inflexível, posso jurar. — Eu dou um jeito!
Eu ia responder, e bem poderia ter dito algo bem desaforado, mas aconteceu que olhei para a esquerda. As duas criancinhas roliças estavam lá, nos limites de seu gramado. Montadas em dois velocípedes idênticos, gêmeos, com os dedos manchados de chocolate. Olhavam para nós, solenes.
— Não precisa se exaltar, cara — falei. — Vou arranjar o pneu.
— Só vá se quiser mesmo ir, Dennis — disse ele. — Sei que já está ficando tarde.
— Está esfriando — respondi.
— Moço? — chamou o garotinho, lambendo o chocolate dos dedos.
— Mamãe disse que esse carro é um cocô.
— Isso mesmo — ecoou a garotinha. — Cocô-bosta.
— Cocô-bosta — disse Arnie. — Ora, isto é muito inteligente, não é, crianças? Sua mãe é filósofa?
— Não — respondeu o garotinho. — Ela é Capricórnio. Eu sou Libra. Minha irmã é...
— Volto o mais depressa que puder — falei, desajeitadamente.
— Certo.
— Fique calmo.
— Não se preocupe. Não vou agredir ninguém.
Corri para meu carro. Enquanto deslizava para trás do volante, ouvi a garotinha perguntar a Arnie, bem alto:
— Por que a sua cara é tão suja, moço?
Dirigi uns dois quilômetros até JFK Drive que — segundo minha mãe, criada em Libertyville — havia sido o centro de uma das zonas mais apreciadas da cidade, na época em que Kennedy fora assassinado, em Dallas. Talvez tivesse dado azar, rebatizar Barnswallow Drive em homenagem ao Presidente morto, porque desde os primeiros anos da década de 60 a área nos arredores da rua degenerara para uma faixa ex-urbana. Havia um cinema drive-in, um McDonald's, um Burger King, um Arby's e o Big Twenty Lanes. Havia ainda uns oito ou dez postos de gasolina, uma vez que a JFK Drive leva à Pennsylvania Turnpike, auto-estrada com pedágio.
Conseguir o pneu de Arnie devia ser coisa de minutos, mas os dois primeiros postos onde parei eram daqueles de auto-serviço, que nem ao menos vendem óleo, mas apenas gasolina; tinham uma garota com ar de retardada atrás de uma cabine de vidro à prova de bala, dessas que ficam sentadas diante de um console de computador, lendo um National Enquirer e mascando um punhado de goma, suficientemente grande para asfixiar uma mula do Missouri.
O terceiro era um posto Texaco, com uma liquidação de pneus. Pude comprar para Arnie um pneu comum que se encaixaria em seu Plymouth (eu não conseguia chamar o carro de Christine e nem pensar nele — nela? — por aquele nome), por apenas vinte e oito e cinqüenta, mais o imposto, porém só havia um sujeito trabalhando lá — e tinha que colocar o pneu novo no aro de roda de Arnie, ao mesmo tempo em que bombeava gasolina. A operação durou mais de quarenta e cinco minutos. Ofereci-me para bombear a gasolina em seu lugar, enquanto ele ajeitava o pneu, mas o sujeito disse que o patrão o mataria, se soubesse disso.
Quando finalmente pude colocar o pneu montado em meu porta-mala, pagando duas pratas ao cara pelo serviço, as primeiras luzes do crepúsculo se tinham transformado nas primeiras sombras de um purpúreo anoitecer. Cada arbusto lançava sombras alongadas e aveludadas e, ao rodar devagar subindo a rua, vi as últimas luzes do dia espalhando-se quase horizontalmente, através do espaço entulhado de lixo entre o Arby's e o boliche. Aquela claridade, tanto ouro flutuante no céu, chegava a ser terrível, em sua estranha e inesperada beleza.
Fiquei surpreso pelo sufocante pânico que me subiu da garganta como fogo seco. Era a primeira vez que experimentava tal sensação naquele ano — aquele longo e estranho ano —, porém não seria a última. Entretanto, é difícil explicar, inclusive, defini-la. Tinha algo a ver com a certeza de ser 11 de agosto de 1978, de que no mês seguinte eu passaria para meu último período letivo no ginásio e que, quando as aulas recomeçassem, aquilo significaria o final de uma longa e tranqüila fase de minha vida. Eu me preparava para ser adulto, e via isso de algum modo — tinha certeza de vê-lo, pela primeira vez, naquela maravilhosa, mas de certa forma antiga exibição de luminosidade dourada, flutuando além da passagem entre o campo de futebol e um restaurante de segunda. Compreendi que o que realmente assusta a gente sobre crescer: é que paramos de experimentar a máscara da vida, começando a experimentar uma outra. Se ser criança quer dizer aprender a como viver, então, ser adulto significa aprender a como morrer.
A sensação passou, mas em sua esteira eu me senti estremecido e melancólico. Nenhuma das duas sensações fazia parte do meu eu habitual.
Quando retornei a Basin Drive, via-me repentinamente alheio aos problemas de Arnie e procurando enfrentar os meus — idéias sobre tornar-me adulto, que tinham desembocado naturalmente em idéias como universidade, viver fora de casa e tentar entrar para o time de futebol na State, disputando minha posição com mais sessenta pessoas qualificadas, em vez de apenas dez ou doze. Então, talvez a gente diga: 'Grande droga, Dennis, tenho algumas novidades para você: um bilhão de chineses vermelhos pouco estão se lixando se você entrar para o primeiro time, como calouro universitário.' Muito justo. Estou apenas querendo dizer que tais coisas pareciam francamente reais pela primeira vez... e francamente aterradoras. Por vezes, a mente nos leva em viagens como essa, mesmo que não queiramos.
Ver que o marido da rainha do be-bop já chegara em casa e que ele e Arnie estavam quase frente a frente, parecendo dispostos a desgraçar tudo a qualquer segundo, não contribuiu em nada para modificar meu ânimo.
Os dois garotinhos continuavam escarranchados solenemente em seus velocípedes, os olhos viajando de modo alternado de Arnie para Papai e de novo para Arnie, como espectadores de alguma apocalíptica partida de tênis, em que o juiz abate alegremente o derrotado com um tiro. Pareciam esperar o momento de combustão, quando Papai achataria meu esquelético amigo e transformaria seu corpo quebrado em gelatina.
Freei rapidamente e saí do carro, quase correndo para eles.
— É o que lhe estou dizendo! — rugiu Papai. — Estou lhe dizendo que quero isso fora daqui e agora mesmo!
O homem tinha um enorme nariz achatado, repleto de veias arrebentadas. As bochechas afogueadas eram cor de tijolo novo e, acima da camisa de trabalho em sarja cinzenta, veias encordoadas sobressaíam no pescoço.
— Não vou dirigir em cima do aro — disse Arnie. — Já lhe falei isso. O senhor não dirigiria, se o carro fosse seu.
— Dirigirei você sobre o aro, Cara de pizza! — exclamou Papai, sem dúvida querendo mostrar a seus filhos como a gente grande resolve seus problemas, no Mundo Real. — Não vai estacionar seu horroroso calhambeque envenenado em frente da minha casa. Não me provoque, garoto, ou vai sair machucado!
— Ninguém vai sair machucado — falei. — Vamos, senhor. Dê-nos algum tempo.
Os olhos de Arnie se voltaram agradecidos para mim e percebi o quanto estivera amedrontado — quão amedrontado ainda estava. Sempre um pária, ele sabia que existia algo em si mesmo — só Deus sabia o quê — que fazia certo tipo de indivíduo querer acabar com ele. Devia estar certo de que isso ia acontecer novamente — mas agora ele enfrentava o perigo.
Os olhos do homem pousaram em mim.
— Mais um — disse, como que admirado por existirem tantos imbecis no mundo. — Querem que acabe com os dois? É o que querem? Pois acreditem, eu posso fazer isso.
Sim, eu conhecia o tipo. Dez anos antes, teria sido um dos caras no colégio que achavam muito divertido arrancar os livros dos braços de Arnie, quando ele seguia para sua sala de aulas, ou atirá-lo no chuveiro com todas as roupas no corpo, depois da educação física. Nunca mudavam, aqueles caras. Apenas ficavam mais velhos e ganhavam um câncer pulmonar, ao fumarem tantos Luckies, quando não eram vítimas de uma embolia cerebral aos cinqüenta e três ou coisa assim.
— Ninguém está querendo provocá-lo — falei. — Ele está com um pneu arriado, pelo amor de Deus! Nunca teve um pneu arriado?
— Quero esses dois fora daqui, Ralph!
A mulher com focinho de porco estava de pé na entrada. Sua voz era aguda e excitada. Aquilo era ainda melhor que o Phil Donahue Show. Outros vizinhos tinham-se aproximado para ver os acontecimentos e tornei a pensar, com grande angústia, que se já não tivessem chamado os tiras, alguém logo os chamaria.
— Nunca tive um pneu arriado e nem deixei um calhambeque em pedaços diante da casa de alguém, durante três horas — disse Ralph, bem alto.
Seus lábios estavam repuxados para trás e pude ver a saliva brilhando em seus dentes, à claridade do sol que se punha.
— Foi uma hora — repliquei, tranqüilo —, se tanto.
— Não me venha com suas gracinhas, garoto — disse Ralph. Não estou interessado. E não gosto de vocês. Trabalho para viver. Volto para casa cansado e não tenho tempo para discussões. Quero que tirem isso daqui e agora!
— Tenho um sobressalente em meu porta-mala — falei. — Se, ao menos, pudéssemos colocá-lo...
— E se o senhor tivesse um pouco de compostura — começou Arnie, irritado.
Aquilo quase fez efeito. Se havia alguma coisa que o nosso chapa Ralph não ia admitir diante dos filhos, era ser chamado de sem compostura. Avançou para Arnie. Não sei como a coisa terminaria — com Arnie na cadeia, talvez, seu precioso carro apreendido — mas de algum modo fui capaz de erguer a mão e agarrar a de Ralph pelo pulso. O encontro das duas provocou um nítido som de tapa, dentro do crepúsculo.
A garotinha com focinho de porco debulhou-se em lamurientas lágrimas.
O garotinho com focinho de porco ficou montado em seu velocípede, com o queixo quase batendo no peito.
Arnie, que sempre se esgueirava como um fantasma pela área de fumar da escola, nem ao menos se encolheu. Em verdade, parecia querer que aquilo acontecesse.
Ralph se voltou contra mim, os olhos esbugalhados de fúria.
— Muito bem, merdinha — disse. — Você primeiro! Sustive sua mão, pressionando-a.
— Vamos com calma, cara — falei, em voz baixa. — O pneu está em meu porta-mala. Dê-nos cinco minutos para mudá-lo e sair de sua vista. Por favor.
Pouco a pouco, foi diminuindo a pressão para suster-lhe a mão. Ele olhou para os filhos, a garotinha choramingando, o garotinho de olhos arregalados, e isso pareceu decidi-lo.
— Cinco minutos — assentiu. Olhou para Arnie. — Teve muita sorte por eu não chamar a polícia. Essa coisa não foi vistoriada e também está sem a placa de licença.
Esperei que Arnie dissesse algo também inflamado e acabasse de vez com a trégua, mas talvez ele não houvesse esquecido tudo quanto sabia sobre prudência.
— Obrigado — disse. — Sinto muito ter-me exaltado.
Ralph grunhiu e enfiou a camisa de volta nas calças, em pequenos gestos bruscos. Tornou a olhar para os filhos.
— Vão para casa! — vociferou. — O que estão fazendo aqui? Querem que lhes dê um chuta-bunda? Céus, que família criativa, pensei. Pelo amor de Deus, não dê um chuta-bunda neles, Papai — os dois podem fazer cocô-bosta nas calças.
As crianças voaram para junto da mãe, abandonando os velocípedes.
— Cinco minutos — repetiu Ralph, encarando-nos malignamente.
Mais tarde, nessa noite, quando estivesse batendo um papo com os rapazes, poderia contar-lhes como fizera o seu papel, mantendo os limites entre a geração das drogas e do sexo. Sim, senhor, rapazes, eu disse a eles para tirarem a droga daquele lixo da frente da minha casa, antes que eu lhes desse um chuta-bunda. E, podem acreditar, eles voaram como se tivessem os pés em fogo e os traseiros doloridos. Então, ele acenderia um Lucky. Ou um Camel.
Pusemos o macaco de Arnie debaixo do pára-choque. Arnie mal movera a alavanca umas três vezes quando o macaco se partiu em dois. Fez um som poeirento quando se dividiu e a ferrugem esvoaçou em torno. Arnie me fitou, seus olhos humildes e doridos ao mesmo tempo.
— Não se incomode — falei. — Usaremos o meu.
Já começava a escurecer. Meu coração ainda batia acelerado e a boca estava amarga, pela confrontação com o Grande Chefão de Basin Drive, 119.
— Sinto muito, Dennis — disse Arnie, em voz baixa. — Não tornarei a envolvê-lo nisto.
— Esqueça. Vamos logo colocar esse pneu.
Usamos o meu macaco para levantar o Plymouth (por vários e terríveis segundos pensei que o pára-choque traseiro fosse desconjuntar-se, em um rangido de metal podre, e retiramos o pneu avariado. Colocamos o novo, apertamos as porcas mais ou menos e então arriamos o carro. Foi um alívio imenso vê-lo novamente equilibrado sobre a rua; a maneira como o pára-choque empenado se inclinara debaixo do macaco chegara a assustar-me.
— Pronto — disse Arnie, encaixando a antiga e amassada calota sobre as porcas.
Fiquei olhando para o Plymouth e, de repente, voltou a sensação que eu experimentara na garagem de LeBay. Senti isso quando observei o novo Firestone na traseira direita. A banda negra ainda conservava um dos adesivos do fabricante e as vivas marcas de giz amarelo, da apressada calibragem no posto de gasolina.
Estremeci ligeiramente — mas era impossível transmitir a fantástica sensação que me dominava. Era como se eu tivesse visto uma serpente quase pronta a livrar-se da pele antiga, uma serpente que já se desfizera de parte dessa pele, revelando o que havia de novo e cintilante por baixo...
Ralph estava de pé à entrada de sua casa, espiando para nós. Em uma das mãos segurava um gotejante hambúrguer com Pão Maravilha. A outra mão enrolava-se em torno de uma lata de cerveja.
— Simpático, ele, não? — murmurei para Arnie, quando joguei seu macaco espatifado no porta-mala do Plymouth.
— Um grande sujeito — murmurou Arnie, em resposta.
Bastou isso e começamos a rir contidamente, da maneira que ríamos, ao superar uma situação tensa. Arnie jogou o pneu velho dentro do porta-malas, em cima do macaco, depois ficou rindo alto, com as mãos sobre a boca. Ele parecia um garoto, apanhado em flagrante, na investida contra o pote da geléia. Só em pensar nisso, comecei a rir com vontade agora.
— De que estão rindo, seus vadios? — rugiu Ralph. Ele desceu os degraus da entrada. — Hein? Querem rir com a cara virada do avesso por um instante? Posso mostrar como se faz, acreditem!
— Saia daqui depressa — falei para Arnie.
Corri de volta a meu Duster. Nada conseguia conter nosso riso agora, as gargalhadas saíam naturalmente. Joguei-me no banco da frente e liguei a chave, me torcendo de rir. À minha frente, o Plymouth de Arnie entrou em movimento com um rugido e uma espessa, fedorenta nuvem de descarga azul. Mesmo acima da barulheira, eu conseguia ouvir suas risadas incontidas, um som que beirava a histeria.
Ralph investiu através do gramado, ainda segurando o hambúrguer gotejante e a lata de cerveja.
— De que estão rindo, seus vadios? Hein?
— Seu, seu careta! Quadradão!— gritou Arnie, triunfante, partindo entre uma chocalhante fuzilaria de estouros.
Pisei no acelerador e tive que manobrar bruscamente, para evitar Ralph que, agora, aparentemente, partia para o homicídio. Eu continuava rindo, porém não era mais um riso satisfeito, se é que chegara a sê-lo — era um som agudo e arquejante, quase como um grito.
— Eu mato você, vagabundo!— rugiu Ralph.
Tornei a pisar no acelerador e, desta feita, quase engatei na traseira de Arnie. Fiz a Ralph o mesmo gesto obsceno que Arnie fizera aquela tarde, depois gritei:
— Enfie!
Então, ele começou a correr atrás de nós. Tentou emparelhar e, por alguns segundos, seus pés ressoaram na calçada. Depois parou, respirando com dificuldade e grunhindo.
— Que dia mais louco! — exclamei em voz alta, algo amedrontado pela trêmula e lacrimosa qualidade de minha voz. O gosto amargo me voltara à boca. — Que dia mais infernalmente louco!
Em Hampton Street, a Garagem de Darnell era uma construção alongada, com as laterais em folhas de zinco corrugado e um teto enferrujado, também de zinco corrugado. Na fachada havia uma tabuleta com letras ensebadas onde se lia: POUPE SEU DINHEIRO! SEU KNOW-HOW, NOSSAS FERRAMENTAS! Mais abaixo, em letras menores, lia-se: Vaga na Garagem, Alugada por Semana, Mês ou Ano.
O depósito de automóveis velhos ficava atrás da Darnell's. Era uma área com o comprimento de um quarteirão, encerrada entre muros formados por lâminas do mesmo zinco corrugado, com metro e meio de altura, o indiferente assentimento de Will Darnell aos regulamentos do Conselho de Zoneamento da Cidade. Não que houvesse alguma forma de o Conselho fazer Will Darnell andar na linha, nem porque dois dos três membros do Conselho de Zoneamento eram seus amigos. Em Libertyville, Will Darnell conhecia todos que lhe interessavam. Era um daqueles tipos encontrados em qualquer cidade, grande ou pequena, que se movimentam silenciosamente por trás de qualquer número de cenários.
Eu ouvira dizer que ele estava envolvido no ativo tráfico de drogas entre os alunos do Ginásio de Libertyville e do Ginásio Darby. Também ouvira dizer que era bem conhecido entre os escroques importantes de Pittsburgh e Filadélfia. Eu não acreditava nessa história — pelo menos, penso que não acreditava —, mas sabia que quem quisesse fogos de artifício, bombas de segunda mão ou foguetes de qualidade inferior para o Quatro de Julho, Will Darnell tinha para vender. Por meu pai, também ficara sabendo que Will fora acusado doze anos antes, quando eu era apenas um guri de cinco anos, de ser um dos chefes de uma quadrilha de carros roubados, que se estendia daquela nossa parte do mundo para leste, até a Cidade de Nova Iorque e em toda a longitude para cima, até Bangor, no Maine. Finalmente, as acusações foram retiradas. No entanto, meu pai dizia ter certeza de que Will Darnell devia estar atolado até as orelhas em outras bandalheiras, o que quer que fosse, desde roubo da carga de caminhões, a falsificação de antigüidades.
Fique longe daquele lugar, Dennis, dissera meu pai. Isto fora um ano antes, não muito depois de eu ter adquirido meu primeiro calhambeque e investido vinte dólares no aluguel de um dos boxes da Garagem Faça-você-mesmo, de Darnell, para tentar trocar o carburador, em uma experiência que terminara em total fracasso.
Eu devia ficar longe daquele lugar — mas lá estava, penetrando pela entrada principal, atrás de meu amigo Arnie, depois do escurecer, nada restando do dia senão uma mancha avermelhada de fornalha no horizonte. Os faróis dianteiros iluminaram um número suficiente de peças de carro rejeitadas, destroços inaproveitáveis e sucata por toda parte, o que me deixou mais deprimido e cansado do que nunca. Lembrei que não havia telefonado para casa e que meus pais certamente estariam se perguntando em que diabo de lugar eu estaria.
Arnie rodou até uma imensa porta de garagem, com um cartaz ao lado, dizendo BUZINE PARA ENTRAR. Uma claridade esmaecida brotava de uma janela coberta de sujeira, ao lado da porta — havia alguém em casa — e mal contive um impulso de debruçar-me para fora do carro e dizer a Arnie para levar o Plymouth até minha casa, por aquela noite. Tive uma visão de nós dois dando com Will Darnell e seus companheiros inventariando televisões coloridas contrabandeadas ou repintando Cadillacs roubados. Os garotos detetives chegam a Libertyville.
Arnie ficou quieto, sem buzinar ou fazer coisa alguma. Eu já me dispunha a sair e perguntar-lhe o que havia, quando ele caminhou até onde eu estacionara. Mesmo àquela débil claridade do lusco-fusco, ele parecia profundamente constrangido.
— Quer buzinar para mim, Dennis? — pediu, com humildade. — Parece que a buzina de Christine não funciona.
— Claro.
— Obrigado.
Buzinei duas vezes e, após uma pausa, a enorme porta da garagem se ergueu, com um ruído chocalhante. O próprio Will Darnell estava parado lá, com a pança sobrando acima do cinto. Acenou impacientemente para que Arnie entrasse.
Manobrei meu carro, colocando-o de frente para a saída e entrei também.
O interior era imenso, abobadado e terrivelmente silencioso no fim do dia. Havia pelo menos uns sessenta compartimentos para carros, cada um equipado com sua própria caixa de ferramentas, aparafusada por baixo, a fim de que os amadores com carros avariados, mas sem ferramentas, fizessem eles mesmos os consertos. O teto era alto, cruzado por vigas nuas e parecendo oscilantes.
Havia avisos pregados por toda parte: TODAS AS FERRAMENTAS DEVEM SER INSPECIONADAS ANTES DE SUA PARTIDA e MARQUE ANTECIPADAMENTE SUA HORA PARA O ELEVADOR e SOLICITE UM MANUAL DE MOTORES e NÃO ADMITIMOS LINGUAGEM IMPRÓPRIA E PALAVRÕES. Vi dúzias de outros — para cada canto que me virasse, um aviso parecia saltar em minha direção. Um enorme homem-aviso era Will Darnell.
— Boxe vinte! Boxe vinte! — gritou Darnell para Arnie, em sua voz irritante e resfolegante. — Ponha o carro lá e desligue o motor, antes que fiquemos todos asfixiados!
"Todos" parecia ser um grupo de homens em uma enorme mesa de jogo, no canto mais distante. Fichas de pôquer, cartas de baralho e garrafas de cerveja espalhavam-se por sobre a mesa. Eles observavam a nova aquisição de Arnie, com expressões que variavam da aversão ao divertimento.
Arnie dirigiu o Plymouth para o boxe vinte, estacionou-o e desligou o motor. Uma fumaceira azulada foi expelida para o imenso e cavernoso recinto.
Darnell se virou para mim. Usava uma camisa branca semelhante a um velame e calças cáqui marrons. Enormes rolos de gordura destacavam-se em seu pescoço e caíam em babados, abaixo do queixo.
— Garoto — disse ele, naquela mesma voz resfolegante —, se vendeu para ele aquele pedaço de merda, devia ter vergonha do que fez.
— Não fui eu que vendi. — Por alguma absurda razão, senti que devia justificar-me com aquela baleia, de uma forma como jamais fizera com meu pai. — Até procurei convencê-lo a cair fora do negócio.
— Devia ter sido mais insistente.
Ele caminhou até Arnie, que então saía do carro. Arnie bateu a porta; a ferrugem caiu em flocos, do painel oscilante daquele lado, em um fino chuveiro vermelho.
Com ou sem asma, Darnell caminhava com os movimentos graciosos e quase femininos do homem que é gordo há muito tempo e vê um longo futuro de obesidade pela frente. E gritava para Arnie, antes mesmo que meu amigo se virasse de frente, com ou sem asma. Penso que se poderia dizer ser ele um homem que não se deixava abater pela doença.
Como os caras na área de fumantes da escola, como Ralph, da Basin Drive, ou como Buddy Repperton (penso que logo estaremos falando a seu respeito), ele logo sentia uma aversão por Arnie — era um caso de antipatia à primeira vista.
— Muito bem, esta foi a última vez que ligou essa merda mecânica aqui dentro, sem o cano de descarga! — berrou ele. — Se o pegar fazendo isso, será posto na rua, entendido?
— Está bem. — Arnie parecia pequenino, cansado e exaurido. Fosse qual fosse a selvagem energia que o impelira até então, agora havia desaparecido. Senti pena, uma pena ligeira, ao vê-lo daquele jeito. Eu...
Darnell não o deixou ir em frente.
— Você quer um cano de descarga, que custa dois e cinqüenta a hora, se fizer uma reserva antecipada. E vou lhe dizer uma coisa, neste exato momento, que vai ter que decorar, meu amiguinho. Não sou obrigado a ficar com merda nenhuma de vocês, garotos. Não sou. Este lugar é para caras trabalhadores, que precisam manter os carros andando e botar pão na mesa, não para garotos ricos de universidade, que querem sair apostando corridas no Orange Belt. É proibido fumar aqui dentro. Se quiser uma tragada, tem que ir lá para trás, no depósito.
— Eu não fum...
— Não me interrompa, garoto. Não me interrompa e nem venha bancar o espertinho — disse Darnell.
Estava agora em pé diante de Arnie. Sendo mais alto e mais largo, encobria meu amigo inteiramente.
Comecei a ficar irritado de novo. Na verdade, podia sentir meu corpo gemer de protesto contra o barbante de ioiô em que minhas emoções haviam estado, desde nossa chegada à casa de LeBay, quando vimos que o maldito carro não estava mais sobre o gramado.
Adolescentes são uma classe tiranizada; após alguns anos, aprendemos a nossa própria versão de uma rotina de Pai Tomás quanto a inimigos da gente, como Will Darnell. Sim, senhor; não senhor; está bem; fique certo.
Agarrei repentinamente o braço de Darnell.
— Senhor?
Ele girou para mim. Descobri que, quanto maior a minha antipatia por adultos, mais apto me sinto a tratá-los por Senhor.
— O que é?
— Aqueles homens lá estão fumando. Seria melhor dizer a eles que parem.
Apontei para os sujeitos à mesa de pôquer. Eles haviam distribuído cartas para uma nova mão. A fumaça pairava acima da mesa, em um halo azulado. Darnell fitou os companheiros, depois olhou para mim. Seu rosto era muito solene.
— Está querendo ajudar seu amigo a ser mandado embora daqui, Júnior?
— Não — respondi. — Não, senhor.
— Então, feche sua matraca!
Voltando-se para Arnie, ele pousou as mãos carnudas sobre os quadris avantajados e bem acolchoados.
— Conheço um cara desagradável assim que o vejo — disse ele —, e acho que estou vendo um, neste exato momento. Estou de olho em você, garoto. Banque o engraçadinho comigo, uma só vez, e eu o farei cair sentado sobre o traseiro, pouco importando quanto tenha pago adiantado!
Uma fúria cega subiu de meu estômago para a cabeça, fazendo-a latejar. Por dentro, suplicava a Arnie para dizer àquele gordo imbecil que não chateasse, queria que ele o agredisse e depois corresse com seu calhambeque para fora dali, o mais depressa possível. Claro que os companheiros de pôquer de Darnell se meteriam e nós provavelmente terminaríamos aquela maravilhosa noite no pronto-socorro do Hospital Comunitário de Libertyville, enquanto nos costurariam a cabeça... mas aquilo quase que valia a pena.
Arnie, pedi mentalmente, diga a ele que se foda e vamos dar o fora daqui. Revide, Arnie! Não deixe que ele pise em você! Não seja um perdedor, Arnie — se enfrentou sua mãe, pode enfrentar também esse filho da puta. Faça isso apenas esta vez, não seja um perdedor!
Arnie ficou calado por muito tempo, cabisbaixo, para então dizer:
— Sim, senhor.
Foi tão baixo, que era quase inaudível. Como se ele estivesse sufocado.
— Como disse?
Arnie ergueu a cabeça. Tinha o rosto lívido. Os olhos estavam marejados de lágrimas. Não agüentei olhar para aquilo. Doía demais. Virei-me. Os jogadores de pôquer tinham parado de jogar e observavam os acontecimentos que se desenrolavam no boxe vinte.
— Eu disse "sim, senhor" — repetiu Arnie, com voz trêmula.
Era como se tivesse assinado alguma terrível confissão. Tornei a olhar para o carro, o Plymouth 58, estacionado ali, quando deveria estar no depósito de ferro-velho dos fundos, com o restante dos destroços inúteis e enferrujados de Darnell — e o odiei novamente, pelo que estava causando a Arnie.
— Muito bem, caiam fora — disse Darnell. — Já fechamos.
Arnie caminhou cegamente, aos tropeções. Teria avançado em linha reta para uma pilha de velhos pneus carecas, se eu não o agarrasse pelo braço e o guiasse. Darnell seguiu em direção contrária, rumando para a mesa de pôquer. Quando chegou lá, disse algo aos outros, em sua voz chiada. Todos riram grosseiramente.
— Estou bem, Dennis — falou Arnie, como se eu lhe tivesse perguntado. Os dentes estavam cerrados e o peito se movia em rápidas, fundas inspirações. — Estou bem, me solte. Está tudo certo comigo.
Larguei seu braço. Cruzamos a porta e Darnell berrou para nós:
— E não me traga seus amigos vagabundos para cá ou o ponho para fora daqui! Um dos outros acrescentou, em concordância:
— E deixe sua droga em casa!
Arnie encolheu-se. Era meu amigo, porém eu o odiava quando se encolhia daquele jeito. Escapamos para a fria escuridão do exterior. A porta chocalhou, quando foi arriada às nossas costas. Foi assim que levamos Christine para a Garagem de Darnell. Um bocado divertido, não?
Estou com um carro e alguma gasolina,
Diga a todos que podem puxar meu saco...
— Glenn Frey
Entramos em meu carro e rodei para fora do pátio da garagem. Não sei como, mas estava passando de nove da noite. Como o tempo voa, quando a gente está se divertindo! Uma meia-lua já pairava no céu. Isso e as luzes alaranjadas, no parque de estacionamento do Monroeville Mall, bastavam para eclipsar quaisquer possíveis estrelas cadentes a que se pudesse fazer um pedido.
Rodamos os dois ou três primeiros quarteirões em silêncio total. Então, de repente, Arnie desatou em um pranto furioso. Eu achava que ele iria chorar, mas a força de seu choro assustou-me. Tentei intervir.
— Arnie...
Desisti na hora. Ele ia chorar, até a vontade passar. As lágrimas e soluços brotaram em um jato estridente e amargo, descontroladamente — Arnie já esgotara sua quota de controle para o dia. A princípio, pareceu-me ser apenas uma reação; eu sentia mais ou menos a mesma coisa, só que minha raiva subira para a cabeça, fazendo-a latejar como um dente cariado, e para o estômago, que se enovelava doentiamente.
Sim, de início pensei que fosse tão-somente uma espécie de reação, uma liberação espontânea e, no começo, talvez assim acontecesse. No entanto, após um ou dois minutos, percebi que era muito mais do que isso, que a coisa ia muito mais fundo. Então, comecei a decifrar palavras, entre os sons que ele emitia. Poucas a princípio, depois séries delas.
— Eles me pagam! — gritou ele, engroladamente, entre os soluços. — Vou mostrar àqueles fodidos filhos da puta que vão me pagar, Dennis, farei com que se arrependam, os cretinos vão engolir... ENGOLIR... ENGOLIR!
— Pare com isso — falei, assustado. — Esqueça, Arnie.
Arnie não queria esquecer. Começou a dar com os punhos no painel de instrumentos acolchoado de meu Duster, com força bastante para marcá-lo.
— Eles me pagam, você vai ver!
À claridade pálida da lua e de uma lâmpada em um poste próximo, seu rosto parecia devastado e feroz. Naquele momento, Arnie era como um estranho para mim. Estava longe, caminhando por algum dos frios lugares do universo, que um Deus amante de gracejos reserva para pessoas como ele. Eu não o conhecia mais. Não queria conhecê-lo. Limitei-me a ficar ali, sentado, impotente e esperando pela volta do Arnie que eu conhecia. Após um momento, ele voltou.
As palavras histéricas confundiram-se novamente com soluços. O ódio se fora e ele apenas chorava. Era um som alto, penetrante e desnorteado.
Fiquei parado ao volante do carro, não muito certo sobre o que deveria fazer, mas desejando estar em outro lugar, qualquer lugar, experimentando sapatos na Thom McAn's, preenchendo uma solicitação de crédito em uma loja que vendesse com desconto, parado diante de um cubículo de banheiro pago, com diarréia e sem um centavo no bolso. Qualquer lugar, cara. Não precisava ser Monte Cario. Acima de tudo, fiquei ali desejando ser mais velho. Desejando que ambos fôssemos mais velhos.
Isto, no entanto, era fugir aos acontecimentos. Eu sabia o que fazer. Relutantemente, contra a vontade, deslizei no assento, passei os braços em torno dele e o abracei. Podia sentir seu rosto, quente e febril, esmagado contra meu peito. Ficamos assim por talvez uns cinco minutos. Depois o levei de carro para casa. Então, fui para casa também. Nenhum de nós dois comentou o assunto mais tarde, aquilo de abraçá-lo daquele jeito. Ninguém passou pela calçada e nos viu estacionados junto ao meio-fio. Se aparecesse alguém, sem dúvida pensaria que éramos um casal de gays. Dentro do carro, eu o abraçara e tentara demonstrar minha estima mais que podia, perguntando-me como era possível eu ser o único amigo de Arnie Cunningham. Porque naquele momento, acreditem, eu não queria ser seu amigo.
Não obstante, havia algo — percebi naquele momento, embora de maneira muito vaga — talvez Christine se tornasse amigo — amiga? — dele. Não estava bem certo se gostava disso, embora naquele longo e alucinado dia houvéssemos passado os mesmos maus pedaços por causa do Plymouth.
Quando paramos junto à calçada fronteira à sua casa, perguntei:
— Tudo bem com você, cara? Ele forçou um sorriso.
— Sim, está tudo bem. — Fitou-me com tristeza. — Sabe de uma coisa? Você deveria procurar outro tipo de caridade para fazer. Fundo Cardíaco. Sociedade do Câncer. Qualquer coisa.
— Ora, vá caindo fora!
— Você sabe o que estou dizendo.
— Se quer dizer que é um chorão, qual a novidade?
A luz da entrada foi acesa. Michael e Regina dispararam para fora, sem dúvida querendo verificar se éramos nós ou a Polícia Estadual, vindo comunicar-lhes que seu filho único fora atropelado na auto-estrada.
— Arnold? — chamou Regina, em voz estridente.
— É melhor dar o fora, Dennis — disse Arnie, sorrindo agora com mais honestidade. — Você não precisa desta merda. — Saiu do carro e disse obedientemente: — Olá, mamãe. Olá, papai.
— Onde foi que esteve? — perguntou Michael. — Deixou sua mãe terrivelmente preocupada, rapazinho!
Arnie tinha razão. Eu podia dispensar a cena. Olhei para trás, pelo espelho retrovisor, apenas de relance, e o vi parado na calçada, parecendo solitário e vulnerável — e então os dois o abraçaram e o guiaram de volta ao ninho de 60.000 dólares. Na certa, lançavam sobre ele toda a influência de sua última jornada paterna — o Treinamento para Eficiência Paterna, e sabe-se lá o que mais. Michael e Regina eram absolutamente racionais nesse sentido, aí estava a coisa. Haviam desempenhado papel fundamental para que Arnie se tornasse como era, mas eram racionais demais para perceber isso.
Liguei o rádio na FM-104, onde continuava o Block Party Weekend e peguei Bob Seger e a Silver Builet Band cantando 'Still the Same'. Aquilo estava horrendamente perfeito demais e passei para o jogo dos Phillies.
Os Phillies perdiam. Ainda bem. Combinava com o resto.
Sou um corredor de estrada, meu bem,
E você não pode me alcançar.
Sim, sou um corredor de estrada, meu bem,
E você não consegue emparelhar comigo.
Venha para cá e corra,
Querida, querida, você verá.
Chegue mais perto, meu bem! Pare atrás!
Vou jogar poeira nos seus olhos!
— Bo Diddley
Quando cheguei em casa, papai e minha irmã estavam sentados na cozinha, comendo sanduíches de açúcar mascavo. Comecei imediatamente a sentir fome e recordei que nem ao menos jantara.
— Por onde andou, chefe? — perguntou Elaine.
Nem levantou os olhos da revista que lia — 16, Creem ou Tiger Beat, não sei qual era. Começara a chamar-me de chefe desde que eu descobrira Bruce Springsteen, um ano antes, e ficara fanático. Evidentemente, aquele tratamento era com a finalidade de irritar-me.
Aos quatorze anos, Elaine deixava a meninice para trás e se transformava em uma futura beldade americana — alta, cabelos escuros e olhos azuis. Entretanto, no final daquele verão de 1978, era uma adolescente agressiva, como uma multidão de tantos outros. Começara com Donny e Marie Osmond aos nove anos, apaixonando-se por John Travolta aos onze (cometi o erro de chamá-lo de John Revolta certo dia, e ela me arranhou tanto que quase precisei levar um ponto no rosto — afinal, acho que eu merecia). Aos doze, ela gamou por Shaun. Depois foi Andy Gibb. Só ultimamente vinha demonstrando gostos mais sinistros: roqueiros da barulhenta música eletrônica, como Deep Purple e Styx, um grupo novo.
— Estive ajudando Arnie a levar o carro dele — falei, tanto para meu pai, como para ela. Era mais do que isso, de fato.
— Aquele asqueroso — suspirou Ellie, virando uma página de sua revista.
De repente, senti um súbito e espantoso ímpeto de arrancar a revista de suas mãos, rasgá-la em duas e jogar-lhe os pedaços na cara. Isso me deixou perceber, exatamente, como a tensão daquele dia fora mais forte do que tudo o mais. Na verdade, Elaine não achava Arnie asqueroso; ela apenas aproveitava qualquer oportunidade para irritar-me. Enfim, talvez eu tivesse ouvido Arnie ser chamado de asqueroso vezes demais, nas últimas horas. As lágrimas dele ainda secavam no peito de minha camisa e é possível que também me sentisse um pouco asqueroso.
— O que "Beijinho" esteve fazendo estes dias, queridinha? — perguntei-lhe docemente. — Escrevendo algumas cartas de amor para Erik Estrada? "Oh, Erik, eu morro por você, meu coração dispara como louco, a cada vez que penso em seus lábios grossos e melosos esmagando os meus..."
— Você é um animal — disse ela, friamente. — Um animal, é isso que você é!
— E não conheço ninguém melhor.
— Está legal.
Ela pegou o sanduíche de açúcar mascavo, a revista, e disparou bruscamente para a sala de estar.
— Não deixe essa coisa cair no chão, Ellie — avisou papai, prejudicando um pouco sua retirada. Fui até a geladeira, mas rejeitei um salsichão e um tomate, que não me agradaram muito. Havia
também meia embalagem de queijo pasteurizado, mas eu exagerara tanto naquela porcaria quando na escola primária que, aparentemente, esse exagero eliminara meu desejo por ele. Preferi meio litro de leite para acompanhar meu sanduíche e abri uma lata de sopa Campbell com carne picada.
— Ele conseguiu? — perguntou papai.
Meu pai é assessor tributário para a H & R Block. Como autônomo, faz outros trabalhos sobre impostos. Antigamente era contador em tempo integral para a maior firma de arquitetura de Pittsburgh, mas sofreu um ataque cardíaco e deixou o cargo. É um excelente sujeito.
— Sim, conseguiu.
— E você achou tão ruim como antes?
— Pior ainda. Onde está mamãe?
— Estudando — disse ele.
Seus olhos encontraram os meus e quase começamos a rir sufocadamente. Olhamos, para outras direções logo em seguida, envergonhados — embora o fato de nos envergonharmos não ajudasse muito. Minha mãe está com quarenta e três anos e trabalha como higienista dentária. Durante muito tempo não trabalhou em sua especialidade, mas voltou a ela quando papai teve o ataque cardíaco.
Quatro anos antes, ela concluíra ser uma escritora latente e começou a compor poemas sobre flores e a escrever contos sobre doces velhinhos no outono de suas vidas. De vez em quando ficava francamente realista e escrevia uma história sobre uma jovem tentada a "arriscar-se", mas então decidia ser muito melhor que ela continuasse Pura para o Leito Nupcial. Naquele verão, matriculara-se em um curso rápido para escritores, em Horlicks — onde Michael e Regina lecionavam, lembrem-se — e colecionava todos os seus temas e contos em um livro a que dera o nome de Rascunhos de Amor e Beleza.
Vocês podem estar pensando (e parabéns, se pensaram) que nada há de engraçado sobre uma mulher que consegue manter um emprego, cuidar da família e, ao mesmo tempo, desejar algo novo, querer expandir um pouco seus horizontes. Claro que estão certos nisso. Também poderão pensar que eu e meu pai tínhamos todos os motivos para envergonhar-nos, que não passávamos de uma dupla de porcos discriminadores grunhindo em nossa cozinha e, mais uma vez, têm toda razão. Não quero discutir este ponto, embora diga que, se tivessem sido obrigados a ouvir constantes leituras extraídas de Rascunhos de Amor e Beleza, como eu e papai — e também Elaine — poderiam compreender um pouco melhor a origem de nossas risadinhas sufocadas.
Bem, ela foi e é uma excelente mãe. Creio que também tem sido uma grande esposa para meu pai — pelo menos, nunca o ouvi queixar-se e ele tampouco já passou toda a noite fora de casa, bebendo —, de maneira que tudo quanto posso alegar em nossa defesa é que nunca rimos diante dela, nenhum de nós dois. É uma desculpa esfarrapada, bem sei, porém melhor do que nada. Nós não a magoaríamos, por nada do mundo.
Apertei a mão contra a boca, tentando estancar o riso. Papai pareceu subitamente engasgado com seu pão e o açúcar mascavo. Ignoro o que ele pensava, mas o que eu tinha em mente era um artigo mais ou menos recente, intitulado "Jesus Tinha um Cão?".
Somando-se ao que já acontecera naquele dia, isso era quase demais.
Fui até os armários em cima da pia e peguei um copo para o leite. Quando olhei para trás, papai já se controlara e isso me ajudou a controlar-me também.
— Você parecia meio aborrecido quando entrou — disse ele. — Está tudo bem com Arnie, Dennis?
— Tranqüilo — respondi, despejando a sopa em uma frigideira, que coloquei sobre o fogo. — Ele acabou de comprar um carro, uma boa droga, mas está legal.
Claro que Arnie não estava legal, mas há certas coisas que não nos dispomos a contar a nossos pais, pouco importando o quanto eles tenham tido êxito na grande tarefa americana da paternidade.
— Certas pessoas só enxergam as coisas quando as vêem com os próprios olhos — disse ele.
— Bem, espero que ele enxergue logo — falei. — Deixou o carro na Darnell's, a vinte por semana, porque seus pais não deixaram que o estacionasse em casa.
— Vinte por semana? Apenas por um boxe? Ou um boxe e ferramentas?
— Só o boxe.
— Isto é um assalto!
— Exato — respondi, percebendo que meu pai não entendera o comentário como uma oferta para que Arnie estacionasse o carro em nossa casa.
— Quer jogar uma rodada de cribbage? *
— Acho que sim — respondi.
— Anime-se, Dennis! Não pode cometer erros por outras pessoas.
— Sim, acho que tem razão.
Jogamos três ou quatro rodadas de cribbage, todas ganhas por ele — meu pai geralmente ganha, a menos que esteja muito cansado ou tenha bebido uns dois drinques. De qualquer modo, não me incomodo. As vezes que o derroto ficam valendo mais. Jogamos cribbage e mamãe apareceu pouco depois, alegre, com os olhos brilhantes, parecendo jovem demais para ser minha mãe, com o livro de contos e rascunhos apertado contra o busto. Beijou meu pai — não o beijo leve costumeiro, mas um beijo de verdade que, de repente, me fez perceber que eu devia estar em outro lugar.
Ela fez as mesmas perguntas sobre Arnie e seu carro, algo que rapidamente começava a tornar-se o ponto alto das conversas naquela casa, desde que Sid, irmão de mamãe, ficara arruinado e pedira um empréstimo a papai. Repeti a mesma lengalenga. Depois subi para meu quarto. Eu me movia vagarosamente, com a impressão de que papai e mamãe tinham assuntos pessoais para cuidar... embora essa fosse uma questão em que nunca me concentrara muito, como certamente vocês compreenderão.
Elaine estava em seu quarto, ouvindo sua nova coleção de sucessos. Pedi que baixasse um pouco o volume, porque queria dormir. Ela me espichou a língua. Eu não ia admitir aquilo, em absoluto. Entrei e fiz-lhe cócegas, até ela dizer que ia vomitar. Falei, vá em frente, vomite, a cama é sua — e fiz mais cócegas ainda. Ela então assumiu sua expressão de "por favor, Dennis, não ria de mim, porque isto é terrivelmente importante", e ficando muito solene perguntou se era mesmo verdade que se podia atear fogo a peidos. Carolyn Shambliss, uma de suas amigas, dissera ser possível, mas Carolyn mentia sobre quase tudo.
Respondi-lhe que perguntasse a Milton Dodd, seu namoradinho com cara de pênis. Foi quando Elaine ficou furiosa e tentou agredir-me, perguntando por que você sempre tem que ser tão nojento. Dennis? Então eu disse sim, era verdade que se podia atear fogo a peidos, mas aconselhei-a a não tentar. Fiz-lhe um ligeiro afago (o que se tornara bastante raro em mim — aquilo sempre me deixava sem jeito, depois que ela ficara com seios, de modo que preferia as cócegas) e depois fui para meu quarto.
Enquanto me despia, pensei: afinal, o dia não terminou tão ruim. Por aqui há gente que me considera um ser humano, e também a Arnie. Vou chamá-lo para vir amanhã ou no domingo. Ficaremos por aí, talvez vejamos os Phillies jogando pela TV, podemos ainda nos divertir com um jogo de damas idiota ou outra coisa qualquer, até mesmo o infalível jogo de siga-a-pista, e nos livramos dessa sensação esquisita. Voltaremos a nos sentir decentes outra vez.
Fui para a cama com tudo decidido na cabeça e devia ter pegado no sono em seguida, mas não foi assim. Eu não estava legal e sabia disso. As coisas começaram a acontecer e, às vezes, não sabemos que droga elas são.
Motores. Eis aí algo mais, sobre a gente ser um adolescente. Há todas aquelas máquinas e, de algum modo, terminamos com as chaves de ignição para uma delas, damos partida, mas ignoramos que merda poderão ser ou o que se supõe que façam. Existem apenas pistas, mais nada. O negócio da droga é assim, da mesma forma que o negócio da bebida e o negócio do sexo, por vezes outros negócios também — um emprego de verão que gera um novo interesse, uma viagem, um curso no colégio. Máquinas. Eles nos dão as chaves, algumas pistas e dizem: dê partida, veja o que acontece, e, às vezes, isso pode levar-nos para uma vida boa e satisfatória, mas em outras nos coloca direitinho na auto-estrada para o inferno, deixando-nos triturados e sangrando pela pista afora.
Máquinas.
Enormes. Como os motores 382, que eles costumavam colocar naqueles carros antigos. Como Christine.
Fiquei acordado no escuro, virando-me de um lado para outro, até o lençol desprender-se, ficar amarfanhado e embolado, enquanto eu pensava em LeBay dizendo: O nome da máquina é Christine. De alguma forma, Arnie captara o sentido da coisa. Quando éramos crianças, havíamos tido patinetes e depois bicicletas. Dei um nome para a minha, porém Arnie nunca batizou a sua — dizia que nomes eram para gatos, cachorros e peixes. Só que isso fora antes, não agora. Agora ele chamava aquele Plymouth de Christine e, pior ainda, tratava-a sempre no feminino.
Eu não gostava daquilo, embora sem saber por quê.
Até meu pai falara no caso como se, em vez de comprar um estropiado calhambeque, Arnie tivesse casado. Não era bem assim. De modo algum. Seria?
Pare o carro, Dennis. Volte... Quero olhar para ela outra vez.
Tão simples assim.
Sem nenhuma ponderação, e isso era incomum em Arnie, que em geral costumava ponderar tudo cuidadosamente — sua vida o tinha tornado dolorosamente cônscio do que acontecia a caras como ele, quando ficavam um pouco tocados e faziam algo (poxa!) no impulso do momento. Desta vez, no entanto, ele agira como o homem que conhece uma corista, envolve-se em um namoro tempestuoso, para terminar de ressaca e esposa nova, na manhã de segunda-feira.
Aquilo tinha sido... bem... como amor à primeira vista.
Não importa, pensei. Começaremos tudo outra vez. Começaremos amanhã. Então, obteremos alguma perspectiva sobre isto.
Por fim, peguei no sono. E sonhei.
A uivante rotação de um motor de arranque na escuridão.
Silêncio.
O motor de arranque uivando novamente.
O motor em funcionamento, morrendo, depois pegando.
A máquina correndo na escuridão.
Então, os faróis acesos, faróis enormes, faróis duplos e antigos, varando-me como uma lanterna de mão contra o vidro.
Eu estava parado aporta da garagem de LeBay e Christine lá dentro — uma nova Christine, sem nenhum amassado ou salpico de ferrugem. O pára-brisa incólume, sombreado para um azul polarizado no alto. Do rádio brotavam os sons rítmicos de Dale Hawkins em "Susie-Q " — uma voz de uma época morta, impregnada de aterrorizante vitalidade.
O motor murmurando palavras de potência, através de silenciosos duplos, em envoltórios de vidro. Não sei como, eu sabia haver uma caixa de mudança Hurst no interior e caixas de ligação Feully: o óleo Quaker State acabara de ser trocado— era agora de clara cor ambarina, o sangue vital automotivo.
Os limpadores de pára-brisa se ergueram de repente, uma coisa estranha, porque não há ninguém atrás do volante, o carro está vazio.
— Vamos garotão. Vamos dar uma volta. Vamos rodar.
Sacudo a cabeça. Não quero entrar lá. Tenho medo de entrar lá. Não quero dar uma volta. De repente, o motor começa a acelerar e morrer, acelerar e morrer; é um som faminto, aterrador, como um cão feroz em uma correia fraca... e eu quero andar... porém meus pés parecem pregados ao pavimento gretado da calçada.
— É a última chance, garotão.
E antes que eu possa responder — ou mesmo pensar em uma resposta — há o guincho terrível da borracha desligando-se do concreto e Christine investe contra mim, seu radiador escancarado como uma boca aberta, cheio de dentes cromados, os faróis ofuscantes...
Grito e acordo na escuridão morta das duas da madrugada, assustado com o som de minha voz, o ruído apressado de pés descalços correndo pelo corredor assustando-me ainda mais. Minhas mãos aferravam punhados do lençol. Puxei-o, estava todo embolado no meio da cama. Um suor escorregadio envolvia meu corpo.
No fundo do corredor, Ellie gritou: "O que foi isso?", em seu próprio terror.
A luz de meu quarto iluminou tudo e lá estava mamãe, em uma curta camisola que revelava mais do que ela permitiria, exceto na mais extrema emergência. Logo atrás dela, papai amarrava o cinto do roupão, fechado sobre absolutamente nada.
— O que foi, meu bem? — perguntou mamãe.
Tinha os olhos arregalados e assustados. Eu não recordava a última vez em que me chamara "meu bem" daquele jeito — aos quatorze anos? Doze? Talvez dez? Não sei dizer.
— Dennis? — chamou papai.
Então, surgiu Elaine mais atrás, depois entre eles, tremendo.
— Voltem para a cama — falei. — Foi apenas um sonho. Nada mais.
— Nossa! — disse Elaine, chocada pelo respeito à hora e à ocasião. — Deve ter sido um verdadeiro filme de horror. Não foi, Dennis?
— Sonhei que você tinha casado com Milton Dodd e veio morar comigo — respondi.
— Não aborreça sua irmã — disse mamãe. — O que foi, Dennis?
— Não me lembro.
De repente, percebi que o lençol era uma confusão, que havia um tufo de pêlos púbicos aparecendo. Ajeitei tudo depressa, entre culpados pensamentos de masturbação, polução noturna e sabe-se mais lá o que, martelando minha cabeça. Um deslocamento total. Nos primeiros dois ou três vertiginosos momentos, eu nem mesmo tinha certeza se era grande ou pequeno — havia apenas aquela imagem terrível, sombria e onipotente do carro investindo para diante, um pouquinho a cada vez que o motor funcionava, recuando, avançando de novo, o capô vibrando acima do motor, o radiador semelhante a dentes de aço...
É a última chance garotão.
Em seguida, a mão fria e seca de mamãe estava em minha testa, em busca de febre.
— Está tudo bem, mamãe — falei. — Não foi nada. Apenas um pesadelo.
— E você não se lembra...
— Não. Esqueci tudo agora.
— Fiquei assustada — disse ela, depois dando uma risadinha trêmula. — Você só saberá o quanto a gente se assusta, quando um de seus filhos gritar no escuro.
— Hum, nem me fale nisso — disse Elaine.
— Vá para a cama, garotinha — disse papai, dando um tapinha leve em sua nádega.
Ela obedeceu, não parecendo muito satisfeita. Talvez, superado o medo inicial, esperasse que eu tivesse um acesso de histeria. Isso lhe daria um bom motivo de comentários, enfiada em seu sutiã de treinamento, no programa matinal de discussões sobre o fato.
— Você está bem mesmo? — perguntou mamãe. — Está, benzinho?
Aquela palavra novamente, trazendo antigas lembranças de joelhos esfolados, ao cair de meu carrinho vermelho; seu rosto inclinado para minha cama era o mesmo que eu vira nos febris acessos de todas aquelas doenças infantis — caxumba, catapora, um ataque de escarlatina. Dando-me uma vontade absurda de chorar. Eu tinha nove anos e trinta e cinco quilos em seu colo.
— Claro que estou — respondi.
— Muito bem — disse ela. — Deixe a luz acesa. Ajuda um pouco.
Com um último e hesitante olhar para meu pai, ela se foi. Eu tinha algo para me deixar confuso — a idéia de que minha mãe jamais tivera um pesadelo. Deve ser uma daquelas coisas que nunca nos ocorrem. E quaisquer que fossem seus pesadelos, nenhum deles se transmitiria para os Rascunhos de Amor e Beleza.
Papai se sentou na beira da cama.
— Não se lembra mesmo do que foi? Meneei a cabeça.
— Deve ter sido horrível, para fazê-lo gritar daquele jeito, Dennis.
Seus olhos se fixavam nos meus, perguntando gravemente se haveria alguma coisa que ele devesse saber. Quase lhe contei — o carro, era o maldito carro de Arnie, Christine, a Rainha da Ferrugem, com vinte anos de idade, aquela velharia fodida. Quase contei. Entretanto, sei lá como, aquilo ficou engasgado em minha garganta, quase como se, falando, eu traísse meu amigo. O bom e velho Arnie, a quem um Deus amante de gracejos decidira espancar com umas boas varadas.
— Tudo bem — disse ele, e beijou meu rosto.
Pude sentir sua barba, diminutas cerdas espetando e que só brotam à noite. Senti também seu cheiro de suor e seu amor. Fiz-lhe um afago brusco e ele me afagou de volta.
Quando me vi sozinho, fiquei com o abajur da cabeceira aceso, temendo voltar a dormir. Deitado de costas, peguei um livro, sabendo que meus velhos estavam acordados em seu quarto, perguntando-se se eu estaria envolvido em alguma espécie de confusão ou se envolvera alguém mais — talvez a chefe de torcida com corpo espetacular — em qualquer tipo de problema.
Decidi que dormir era uma impossibilidade. Ficaria lendo até o dia clarear e tiraria um cochilo na tarde do dia seguinte, de preferência na parte mais monótona do futebol. E, assim pensando, adormeci e acordei na manhã seguinte, com o livro fechado e caído no chão, ao lado da cama.
Eu lhe direi o que faria se tivesse dinheiro,
Eu iria à cidade e compraria um ou dois Mercurys,
Compraria um Mercury para mim
E cruzaria esta estrada para cima e para baixo.
— The Steve Miller Band
Pensando que Arnie fosse aparecer naquele sábado, fiquei perambulando pela casa — aparei a grama, limpei a garagem, até mesmo lavei todos os três carros. Mamãe observou com algum espanto toda aquela diligência e, à hora do almoço de cachorro-quente com salada de verduras, comentou que talvez eu devesse ter pesadelos com mais regularidade.
Eu não queria telefonar para a casa de Arnie, depois de todo aquele desagradável ambiente que havia presenciado, mas quando chegaram as preliminares do jogo e ele não apareceu, ganhei coragem e liguei. Regina atendeu e, embora estivesse fazendo uma boa imitação do nada-mudou, imaginei detectar uma recente frieza em sua voz. Aquilo me entristeceu. Seu único filho fora seduzido por uma velha e pelancuda prostituta chamada Christine e seu cúmplice devia ter sido o velho chapa Dennis. Talvez ele tivesse, inclusive, alcovitado o negócio. Arnie não estava em casa, disse Regina. Estava na garagem de Darnell. Fora para lá desde nove da manhã.
— Oh! — murmurei, sem jeito. — Oh, poxa, eu não sabia disso. — Minha voz soava mentirosa e, pior ainda, eu a sentia mentir.
— Não mesmo? — replicou Regina, em sua nova voz fria. — Adeus, Dennis.
O fone emudeceu em minha mão. Fiquei olhando para ele durante um instante, depois o coloquei no gancho.
Papai se aboletara diante da TV, com sua frouxa bermuda púrpura, calçando sapatos de lona e com seis latas de cerveja na geladeira portátil a seu lado. Os Phillies estavam tendo um dia ótimo, encurralando Atlanta inteiramente. Mamãe saíra para visitar uma colega (acho que uma lia seus rascunhos e poemas para a outra, exaltando-se juntas). Elaine fora para a casa de sua amiga Delia. Estava tudo quieto; lá fora, o sol brincava de pique com algumas nuvens brancas. Papai me passou uma cerveja, o que só faz quando se sente extraordinariamente bem-humorado.
Não obstante, o sábado ainda parecia desinteressante. Fiquei pensando em Arnie, que não estava vendo o jogo ou aproveitando os raios do sol, nem ao menos aparando a grama em sua casa e ficando com os pés esverdeados. Arnie, nas sombras oleosas da Garagem Faça-Você-Mesmo de Will Darnell, às voltas com aquela silenciosa banheira enferrujada, enquanto homens gritavam e ferramentas caíam no cimento com penetrante som metálico, a broca de ar comprimido afrouxando velhos parafusos, a voz resfolegante e a tosse asmática de Will Darnell...
Que merda, eu estaria enciumado? O que significava aquilo?
No sétimo turno do jogo, levantei-me e caminhei para a saída.
— Aonde vai? — perguntou meu pai.
Isso mesmo, para onde eu ia? Para lá? Ficar espiando Arnie, grudado a ele, ouvindo as implicâncias de Will Darnell? Procurando mais uma dose de sofrimento? Droga! Arnie já era um cara crescidinho.
— A lugar nenhum — respondi.
Achei uma embalagem de biscoito na caixa do pão, cuidadosamente empurrada para o fundo. Apanhei-a com certo prazer lúgubre, sabendo o quanto Elaine ficaria enfurecida, ao vir procurá-la durante um dos comerciais de Animada Noite de Sábado e nada mais encontrar ali.
Voltei para a sala de estar. Sentei-me, filei outra cerveja de papai e comi o biscoito de Elaine, inclusive rasgando a embalagem de papelão. Ficamos vendo os Phillies acabarem com Atlanta. ("Deram uma surra neles, Denny", eu podia ouvir meu avô, falecido cinco anos antes, dizendo com sua voz esganiçada de velho, "uma surra pra valer!") e não pensei mais em Arnie Cunningham.
Não muito.
Na tarde seguinte, ele apareceu em sua velha e desconjuntada bicicleta de três velocidades, quando eu e Elaine jogávamos croqué no gramado dos fundos. Ela insistia em acusar-me de estar roubando o jogo. Vestia um short, cortado de calças velhas. Sempre o usava quando "estava tendo suas regras mensais". Minha irmã sentia grande orgulho daquelas regras, que vinha tendo regularmente nos últimos quatorze meses.
— Olá — disse Arnie, surgindo por uma esquina da casa. — Vocês devem ser o Monstro da Lagoa Negra e a Noiva do Frankenstein, ou Dennis e Ellie.
— O que você acha, cara? — falei. — Pegue um taco.
— Não estou mais jogando — disse Elaine, deixando cair o seu taco de jogar croqué. — Ele rouba ainda mais do que você. Homens!
Depois que ela se foi, Arnie disse, em voz trêmula e afetada:
— É a primeira vez que ela me chama de homem, Dennis.
Caiu de joelhos, com uma expressão de exaltada adoração no rosto. Comecei a rir, Arnie sabia ser divertido, quando queria. Aquele era um dos motivos de apreciá-lo tanto. Uma espécie de segredo, compreenda. Acho que ninguém mais percebia aquilo, além de mim. Certa vez, ouvi falar de um milionário que roubara um Rembrandt e o guardara em seu porão, onde ninguém mais podia vê-lo, além dele. Eu podia entender esse sujeito. Não digo que Arnie fosse um Rembrandt ou algum campeão de inteligência, mas compreendia a atração de saber sobre algo bom... algo que era bom, mas permanecendo em segredo.
Divertimo-nos com o croqué por alguns momentos, não jogando para valer, mas tirando o máximo proveito de nossas boladas. Finalmente, uma bola atravessou a cerca viva até o quintal dos Blackfords e, após eu ter rastejado até lá para recuperá-la, desistimos de jogar. Ficamos sentados nas cadeiras do quintal. Dentro em pouco, Jay Hawkins Miador, nosso gato substituto do Capitão Beefheart, deslizou furtivamente da porta, sem dúvida esperando encontrar algum bom esquilinho, que assassinaria lenta e malevolamente. Seus olhos verde-âmbar cintilaram à luz da tarde, agora nublada e quieta.
— Pensei que você viesse ver o jogo ontem — falei. — Foi uma boa partida.
— Estive na Darnell's — disse ele. — De qualquer modo, ouvi o jogo pelo rádio. — Sua voz elevou-se três oitavas e fez uma boa imitação de meu avô: — "Deram uma surra neles! Uma surra pra valer, Denny!".
Ri e assenti. Naquele dia, havia algo nele parecendo diferente talvez fosse apenas por causa da claridade, bastante forte, mas ainda assim sombria e crepuscular. Em primeiro lugar, Arnie parecia cansado, estava com olheiras — mas, ao mesmo tempo, a pele estava um pouco melhor do que ultimamente. Andara bebendo um bocado de Cocas no trabalho, mesmo sabendo que não devia, é claro, mas incapaz de resistir à tentação, de vez em quando. Seus problemas de pele tendiam a surgir em ciclos, como na maioria dos adolescentes, dependendo do estado de ânimo. No caso de Arnie, contudo, os ciclos geralmente iam de ruim para pior, e retornavam ao ruim.
Talvez fosse apenas a claridade.
— O que fez no carro? — perguntei.
— Não muita coisa. Troquei o óleo. Dei uma espiada no bloco do motor. Enfim, não está rachado, Dennis. LeBay ou alguém mais deixou o bujão de drenagem em algum lugar ao longo da linha, eis tudo. Um bocado do óleo velho tinha vazado para fora. Tive sorte em não soltar um pistão, dirigindo na tarde de sexta-feira.
— Como conseguiu hora com o elevador? Pensei que era preciso uma reserva antecipada. Seus olhos desviaram-se dos meus.
— Não houve problema — disse, mas havia desapontamento em sua voz. — Fiz uns dois favores para o Sr. Darnell.
Abri a boca para perguntar que tipo de favores, mas decidi que não queria saber. Provavelmente, os "dois favores" se reduziriam apenas a uma ida à Schirmer's Lanchonete, na primeira esquina, a fim de trazer café puro para os habitués da garagem, ou então juntar várias partes de carros usados, para venda posterior. O que não me interessava era envolver-me na extremidade Christine da vida de Arnie — e isso incluía saber como ele estava se saindo (ou não saindo) na garagem de Darnell.
Havia ainda algo mais — uma sensação de perda. Eu não conseguia definir muito bem tal sensação, ou não queria defini-la. Hoje, posso afirmar que se tratava da maneira como nos sentimos quando um amigo nosso se apaixona por uma vagabunda experiente e metida a sebo. A gente não gosta da vagabunda e, em noventa e nove por cento dos casos, ela também não vai com a nossa cara, de maneira que nos limitamos a fechar a porta para aquele compartimento da antiga amizade. Feita a coisa, tanto podemos esquecer o assunto... como descobrir que o amigo nos esqueceu, em geral com entusiástica aprovação da vagabunda.
— Vamos ao cinema — disse Arnie, inquieto.
— O que está passando?
— Bem, há um daqueles violentos filmes Kung-fu, no State Twin, o que acha disso? Hiii-iah!— Ele fingiu dar um selvagem chute de caratê em Jay Hawkins Miador, e o gato saltou para longe como uma flecha.
— Parece bom. Bruce Lee?
— Não. Outro cara.
— Como é o nome dele?
— Não sei. Punhos Perigosos. Mãos Voadoras Mortais. Talvez seja Genitais Furiosos, sei lá. O que me diz? Quando voltarmos, podemos contar as partes mais violentas para Ellie e fazê-la vomitar.
— Está bem — falei. — Isto, se ainda pudermos entrar, pagando uma prata cada um.
— Claro. Podemos entrar até as três.
— Vamos embora.
Fomos. Afinal, era um filme de Chuck Norris, não ruim de todo.
Na segunda-feira, continuamos a construção do alongamento da Interestadual. Esqueci meu sonho. Aos poucos, percebi que não continuaria vendo Arnie tanto tempo como antes; de novo, era como nos sentimos se vamos perdendo contato com um cara recém-casado. Por outro lado, meu negócio com a chefe de torcida começou a esquentar. Havia também outra coisa que esquentava como o diabo — por várias noites, levei-a das corridas de submarinos no drive-in para casa, sentindo os colhões latejarem de tal modo, que mal podia caminhar.
Nesse ínterim, Arnie passava na Darnell's a maioria do tempo livre, depois que saía do trabalho.
E eu sei, pouco importa quanto custe,
Oooooh, aquele duplo exaustor
Faz o meu motor berrar,
E o meu carro então terá
Uma descarga Cadillac.
— Moon Martin
Nossa última semana de trabalho corrido, antes do início das aulas, foi a que precedeu o Dia do Trabalho. Quando passei pela casa de Arnie para apanhá-lo aquela manhã, ele apareceu com uma enorme mancha negro-azulada em torno de um olho e um feio corte na parte superior da face.
— O que houve com você?
— Não quero falar sobre isso — respondeu ele, carrancudo. — Já tive que explicar tanto a meus pais, que quase fiquei maluco.
Atirou sua maleta do lanche no assento traseiro e mergulhou em um sombrio silêncio, que durou todo o trajeto até o trabalho. Alguns companheiros o interrogaram sobre o corte, mas Arnie apenas deu de ombros.
Nada comentei ao voltarmos para casa; apenas liguei o rádio e fiquei entregue a mim mesmo. E talvez ficasse sem jamais ouvir a história, se não houvesse sido "atacado" por aquele seboso ítalo-irlandês chamado Gino, pouco antes de deixarmos a Main Street para trás.
Naquela época, Gino estava sempre me atocaiando — ele podia esgueirar-se através do vidro fechado de um carro e realizar a façanha. O estabelecimento Gino's Fine Italian Pizza (Deliciosa Pizza Italiana do Gino) fica na esquina da Main com Basin Drive, e sempre que eu via o anúncio com a pizza elevando-se no ar, com todos aqueles ii pontilhados por copos de bebida (aquilo piscava noite adentro, como é que se pode fugir?), sentia a cilada funcionando novamente. Aquela noite, minha mãe estaria em aula, isto significando que teríamos um jantar de sobras em casa. A perspectiva não me deixava nem um pouco alegre. Eu e meu pai não éramos muito chegados a cozinhar e, quanto a Ellie, seria capaz até de queimar água pura.
— Vamos comer uma pizza — falei, manobrando para o pátio de estacionamento do Gino's. — O que me diz? Uma bem grande e gordurosa, cheirando como sovacos.
— Que violência, Dennis!
— Sovacos limpos— emendei. — Vamos.
— Negativo. Estou de caixa baixa — disse Arnie, em um murmúrio.
— Eu pago. Pode até ficar com aquelas horríveis e fodidas enchovas em sua metade. E então, vamos?
— Dennis, acho que eu não...
— Com uma Pepsi — acrescentei.
— Pepsi me acaba com a pele, você sabe disso.
— Sim, eu sei. Um copo grande de Pepsi, Arnie.
Seus olhos cinzentos iluminaram-se pela primeira vez no dia.
— Um copo grande — repetiu. — Olha só! Você é mesmo pão-duro, Dennis.
— Dois, se preferir — falei.
Era uma grande pedida, francamente — como oferecer barras de chocolate à mulher gorda do circo.
— Dois — ele disse, apertando meu ombro. — Dois copões de Pepsi, Dennis! — Arnie começou a estirar-se no assento, com as duas mãos em torno da garganta e gritando: — Dois! Depressa! Dois! Depressa!
Eu ria tanto que quase embiquei com o carro para cima da parede cinzenta de concreto. Quando saímos de meu Duster, pensei, por que ele não beberia duas sodas? Sem dúvida, andou afastado delas ultimamente. A pequena melhora que eu percebera em seu rosto, naquele domingo nublado de duas semanas atrás, agora era definitiva. Ele continuava exibindo uma profusão de caroços e crateras, mas nem tantos estavam — perdoem-me, mas preciso dizer — gotejando. Arnie parecia melhor, também em outros sentidos. Um verão inteiro trabalhando na estrada o tinha bronzeado profundamente e o deixara na melhor forma física que já estivera na vida. Assim, pensei que ele merecia sua Pepsi. Ao vencedor os despojos.
O Gino's é dirigido por um cara italiano formidável, chamado Pat Donahue. Em sua caixa registradora, ele tem um adesivo dizendo MÁFIA IRLANDESA, serve cerveja verde no Dia de São Patrício (em 17 de março a gente nem pode chegar perto do Gino's, e uma das pedidas na vitrola automática é Rosemary Clooney cantando "Quando os Olhos Irlandeses Sorriem") e impressiona com um chapéu-coco reto que, em geral, usa empurrado bem para trás.
A vitrola automática é um antigo modelo Wurlitzer, com a parte frontal em forma de bolha, um remanescente dos finais dos anos 40, e todos os discos — não apenas Rosemary Clooney — têm etiquetas pré-históricas. Talvez seja a última vitrola automática do país em que se consegue três músicas por uma moeda de 25 centavos. Nas raras ocasiões em que fumo um baseado, é sobre o Gino's que fantasio — vejo-me entrando lá, pedindo três pizzas caprichadas, uma garrafa de Pepsi e seis ou sete daqueles doces de chocolate feitos em casa, especialidade de Pat Donahue. Entào, imagino-me apenas sentado ali e devorando tudo, enquanto daquela vitrola sai uma firme torrente de Beach Boys e Rolling Stones.
Entramos, fiz o pedido e ficamos sentados, vendo os três cozinheiros de pizza jogando a massa no ar e tornando a pegá-la. Estavam trocando amenidades em espirituoso estilo italiano, como: "Vi você a noite passada na pista de dança do Shriners's, Howie, quem era aquela coisa desajeitada que estava com seu irmão?". "Oh, ela? Era sua irmã."
Quero dizer, parecia algo como Velho Mundo, como se pode agüentar?
As pessoas entravam e saíam, muitas delas estudantes de meu colégio. Dentro em breve tornaria a vê-las pelos corredores e senti uma repetição daquela forte nostalgia antecipada, aquela sensação de medo. Em minha cabeça, ouvia o sinal de ir para casa, porém de algum modo aquele prolongado uivo soava como um alarma. Lá vamos nós de novo, Dennis, esta é a última vez, porque depois deste ano terá que aprender a ser adulto. Eu podia ouvir as portas de armários batendo com força no vestiário, ouvia o firme ka-chonk, ka-chonk, ka-chonk dos atacantes, cujas bastonadas perturbavam os adversários mais fracos, e também ouvia Marty Bellerman gritar rigorosamente: "Vamos em frente. Pedersen! Não esqueça disso! Vamos em frente! É melhor dizer a esses cretinos dos gêmeos Bobbsey que se separem!". O cheiro seco da poeira de giz na sala de aula, na Ala de Matemática. O som das máquinas de escrever, nas grandes salas de aulas de secretariado, no segundo andar. O Sr. Meecham, o diretor, fazendo os comunicados do fim do dia, em sua voz monótona e exigente. O almoço ao ar livre, nas arquibancadas do campo de esportes, quando o tempo era bom. Uma nova safra de calouros, parecendo desajeitados e perdidos. E, tudo encerrado, a gente caminha corredor abaixo, vestindo aquele enorme roupão de banho púrpura — e pronto. Terminou o ginásio. Liberam-nos para um mundo inimaginável.
— Você conhece Buddy Repperton, Dennis? — perguntou Arnie, despertando-me de meu sonho. Nossa pizza já chegara.
— Buddy o quê?
— Repperton.
O nome era familiar. Trabalhei no meu lado da pizza e me forcei a recordar, enquanto isso. Lembrei, após um momento. Eu havia tido uma discussão com ele, quando era ainda um dos desajeitados e pequenos calouros. Acontecera em um baile de confraternização. A banda tirava uma folga e eu esperava na fila de bebidas, para conseguir uma soda. Repperton empurrou-me, dizendo que calouros tinham que esperar, até que todos os mais adiantados tivessem suas bebidas. Ele era então um segundanista do ginásio, grande e corpulento, um significativo segundanista. Tinha um queixo em forma de lanterna, cabelos negros, espessos e gordurosos, e olhos pequeninos, muito juntos. Entretanto, aqueles olhos não eram totalmente estúpidos, deixando entrever um desagradável brilho de inteligência. Repperton era um daqueles tipos que passam a maior parte do tempo no ginásio na área de fumar.
Eu ousara emitir a herética opinião de que, na fila de bebidas, nada significava ser veterano. Repperton convidou-me a ir lá fora com ele. A esta altura, a fila se desfizera, tornando a organizar-se em um daqueles cautelosos porém ansiosos pequenos círculos, que geralmente prenunciam uma briga.
Uma recepcionista apareceu então, pondo um final naquilo. Repperton prometeu que me pegaria, mas nunca o fez. Aquele havia sido meu único contato com ele, exceto quando via seu nome de vez em quando na lista de detidos no final do dia, convocando-os para uma ida à secretaria do colégio. Parecia-me que ele fora suspenso umas duas vezes, além disso — e quando tal acontece, em geral é um bom sinal de que o sujeito não fazia parte da Liga de Jovens Cristãos.
Contei a Arnie meu único contato com Repperton e ele assentiu abatido. Tocou a equimose em torno do olho, que agora adquiria uma horrível tonalidade esverdeada.
— Foi ele.
— Foi Repperton quem fez isso em seu rosto?
— Hum-hum.
Arnie contou que conhecia Repperton dos cursos de Mecânica de Motores. Uma das ironias da perseguida e evidentemente infeliz vida escolar de Arnie era o fato de seus interesses e aptidões o encaminharem precisamente para um contato direto com o tipo de gente que sentia ser seu obrigatório dever chutar para fora o recheio dos Arnie Cunningham deste mundo.
Quando estava no segundo ano secundário, fazendo um curso chamado Motores Fundamentais (que nada mais era senão o simples e velho Mecânica de Motores 1, antes que a escola conseguisse do governo federal um bom dinheiro para treinamento vocacional), um garoto chamado Roger Gilman fizera Arnie pôr para fora toda a merda que tinha no corpo. Sei que isso é francamente vulgar, porém não existe forma mais delicada e elegante de expor o fato. Gilman o fez espirrar o recheio. Foi uma surra tão contundente — que Arnie precisou faltar dois dias à escola, enquanto Gilman tirava uma semana de férias — cortesia da direção. Atualmente, Gilman estava preso, acusado de roubo de automóvel. Buddy Repperton fizera parte do círculo de amigos de Roger Gilman e, de certa forma, herdara a liderança de seu grupo.
Para Arnie, ir à aula na Classe de Motores, era como visitar uma zona despoliciada. Então, se conseguia sobreviver, corria todo o trajeto até a outra extremidade da escola, com seu tabuleiro de xadrez debaixo do braço, para uma reunião ou jogo no clube de xadrez.
Recordo a vez em que fui a um torneio de xadrez da cidade, em Squirrel Hill, certo dia do ano anterior, e então vi algo que, para mim, simbolizava a esquizofrênica vida escolar de meu amigo. Lá estava ele, inclinado gravemente sobre seu tabuleiro, em meio àquele profundo e palpável silêncio que é, principalmente, o que se ouve em tais ocasiões. Após uma longa e meditativa pausa, ele moveu a pedra, com a mão tão profundamente impregnada de graxa e óleo que nem mesmo uma lixa conseguiria limpar.
Claro está, que nem todos os colegas de curso eram contra ele; havia muitos rapazes que não se metiam, porém muitos deles permaneciam em seus próprios e firmes círculos de amigos ou permanentemente indiferentes. Os que se reuniam em grupos fechados, em geral provinham da zona mais pobre de Libertyville (e não me venham dizer que estudantes secundários não se portam de acordo com a zona da cidade de onde se originam; eles se portam), sendo tão sérios e calados, que se poderia cometer o engano de classificá-los como imbecis. Em sua maioria, pareciam remanescentes de 1968, com cabelos compridos amarrados em rabos-de-cavalo, seus jeans e camisetas tingidos, mas, em 1978, nenhum desses caras queria derrubar o governo; eles queriam crescer e tornar-se Mr. Goodwrench [1].
E as salas de aulas profissionalizantes ainda são o destino final de alunos desajustados e durões, que não só freqüentavam a escola — ela lhes servia como prisão. Então, agora que Arnie mencionava o nome de Repperton, pude pensar em vários caras que circulavam em torno dele, como um sistema planetário. Em sua maioria, andavam pelos vinte anos e continuavam lutando para terminar os estudos. Don Vandenberg, Sandy Galton, "Penetra" Welch. O verdadeiro nome de "Penetra" era Peter, mas os outros o chamavam assim, porque era visto farejando os concertos de rock em Pittsburgh, à espera de conseguir entrar.
Buddy Repperton se tornara dono de um Camaro azul, com dois anos de fabricação, que havia capôtado umas duas vezes para fora da Rota 46, perto do Parque Estadual das Squantic Hills — segundo Arnie, ele o adquirira de um dos companheiros de pôquer de Darnell. A máquina estava legal, porém a carroceria mostrava amplamente os tristes efeitos da capotagem. Repperton o levara para a garagem de Darnell, uma semana após Arnie ter levado Christine, embora Buddy costumasse rondar por lá ainda antes disso.
Nos primeiros dois dias, Repperton parecera não ter dado por Arnie em absoluto. E Arnie, naturalmente, ficava muito feliz em não ser percebido. Entretanto, Repperton mantinha-se em boas relações com Darnell, parecendo não haver qualquer problema para conseguir ferramentas muito requisitadas que, em geral, só eram acessíveis em termos de reserva.
Então, Repperton começara a envolver-se com Arnie. Quando voltava da vendedora automática de Coca ou do banheiro, derrubava e espalhava por todo o piso do boxe de Arnie uma caixa cheia de acessórios, chave inglesa e juntas esféricas que ele estava usando. Ou então, se Arnie tinha um café em sua prateleira, Repperton dava um jeito de atingi-lo com o cotovelo e derramá-lo. Depois soltava um "Bem... me descuuuulpe...!", como Steve Martin, com seu largo sorriso perverso no rosto. Darnell, em seguida, berrava para Arnie recolher todos aqueles acessórios, antes que algum deles sumisse por um ralo no chão ou coisa assim.
Em breve, Repperton se desviava de seu caminho para dar um vigoroso tapa nas costas de Arnie, acompanhado por um estrondoso: "Como está se saindo, Cara de Cona?".
Arnie suportou aqueles ataques com o estoicismo do sujeito que já viu algo igual antes, que já passou por tudo aquilo. Provavelmente, esperava que Buddy Repperton se cansasse de amolá-lo ou que encontrasse alguma outra vítima para substituí-lo. Havia ainda uma terceira possibilidade, quase boa demais para acontecer — sempre havia a esperança de que Buddy fosse justamente afetado por alguma coisa e desaparecesse do cenário, como seu velho companheiro Roger Gilman.
Então, a coisa chegara às vias de fato, na tarde do último sábado. Arnie estava lubrificando o carro, principalmente porque ainda não acumulara fundos suficientes para as centenas de outros reparos que o Plymouth exigia. Repperton aproximou-se, assobiando alegremente, com uma Coca e um saco de amendoins em uma das mãos, um macaco de mão na outra. Ao passar pelo boxe vinte, moveu brusca e vigorosamente o macaco à altura da cintura e quebrou um dos faróis dianteiros de Christine.
— Arrebentou-o em pedacinhos — contou-me Arnie, sobre nossa pizza.
Então, mostrando no rosto uma exagerada expressão de tragédia, Buddy Repperton dissera: "Oh, poxa, veja só o que fiz! Bem... me descuuuulpe...".
Aquilo, entretanto, era o máximo que Arnie podia suportar. O ataque a Christine desencadeou as ações que ele ainda não fora capaz de liberar — impeliu-o à retaliação. Deu a volta ao Plymouth, com os punhos fechados, e atacou às cegas. Em um livro ou filme, talvez ele houvesse esmurrado Repperton certeiramente, derrubando-o ao chão para uma contagem de nocaute. Uma contagem até dez.
Não obstante, isso raramente acontece na vida real. Arnie nem mesmo conseguiu chegar perto do queixo de Repperton. Atingiu-lhe apenas a mão, derrubando ao chão o saco de amendoins e despejando a Coca-Cola inteiramente no rosto e camisa de Repperton.
— Muito bem, seu filho da puta! — bradou Repperton. Parecia quase comicamente surpreso. — Vou virar seu traseiro pelo avesso!
Avançou para Arnie empunhando o macaco. Vários dos outros homens se aproximaram às carreiras e um deles disse a Repperton que largasse o macaco e brigasse sem vantagens. Repperton atirou o macaco para um lado e avançou.
— Darnell não tentou pôr um fim à briga? — perguntei a Arnie.
— Ele não estava lá, Dennis. Desapareceu uns quinze minutos ou meia hora antes de tudo começar. Como se soubesse o que ia acontecer.
Arnie contou que Repperton havia feito a maior parte do estrago logo de saída. Primeiro o olho preto; o corte no rosto (feito pelo anel do colégio, adquirido por Repperton durante um de seus vários últimos anos como veterano) aconteceu logo em seguida.
— Além de várias outras coisas mais — acrescentou Arnie.
— Que outras coisas?
Estávamos sentados em uma das cabinas do fundo. Arnie olhou em torno, para certificar-se de que ninguém olhava para nós, e então ergueu a camiseta. Respirei de maneira sibilante, quando vi aquilo. Era um terrível pôr-do-sol em equimoses — amarelas, vermelhas, purpúreas, marrons — cobrindo seu peito e estômago. Estavam apenas começando a esmaecer. Não consegui entender como ele pudera ir trabalhar, massacrado daquele jeito.
— Tem certeza de que ele não lhe quebrou alguma costela, cara? — perguntei.
Eu estava francamente horrorizado. O olho preto e o corte do rosto eram café pequeno, perto de toda aquela coisa. Já vira o resultado de brigas no colégio, estivera metido em algumas, porém agora contemplava as conseqüências de uma surra em regra, pela primeira vez na vida.
— Certeza absoluta — disse Arnie, com calma. — Tive sorte.
— Se teve!
Arnie não contou muito mais, porém um garoto que eu conhecia, chamado Randy Turner, estava lá e me contou o sucedido com mais detalhes, quando as aulas começaram. Segundo ele, Arnie podia ter apanhado muito mais, porém avançara para Buddy com muito mais empenho e muito mais furioso do que ele esperara.
De fato, disse Randy, Arnie saltara para Buddy Repperton como se o diabo lhe tivesse jogado um punhado de pimenta no traseiro. Seus braços se moviam como pás de moinho, os punhos estavam em todos os lados. Ele gritava, praguejava e babava. Tentei imaginar o quadro e não pude — em vez disso, via apenas Arnie socando meu painel de instrumentos, com força apenas para deixar marcas, gritando que eles pagariam.
Arnie fizera Repperton recuar até o meio da garagem, com o nariz sangrando (mais por puro acaso, do que por boa pontaria), tendo-lhe esmurrado o peito com tal violência que ele começou a tossir, engasgando-se e terminando por perder o interesse em liquidar meu amigo.
Buddy se virara, segurando a garganta e tentando vomitar. Arnie assestara um pontapé nos fundilhos de Repperton, com sua bota de trabalho de biqueira de aço, derrubando-o espalhafatosamente sobre a barriga e os braços. Repperton ainda arquejava e segurava a garganta com uma das mãos, o nariz jorrava sangue aos borbotões e (novamente, segundo Randy Turner) Arnie parecia disposto a chutar o filho da puta até acabar com ele quando Will Darnell magicamente reapareceu, gritando em sua voz resfolegante que parassem com aquela merda, parassem aquela merda, aquela merda.
— Arnie pensava que a briga estava para acontecer — falei a Randy. — Pensou que fosse coisa combinada.
Randy deu de ombros.
— Talvez fosse. Podia ser. Engraçado foi a maneira como Darnell apareceu, quando Repperton começou realmente a perder.
Uns sete sujeitos agarraram Arnie e o afastaram. A princípio, ele lutou como um demônio para libertar-se, gritando que o soltassem, gritando que se Repperton não pagasse o farol quebrado, ele o mataria. Depois se deixou subjugar, espantado e sem consciência de como podia ter acontecido aquilo: Repperton caído e ele ainda de pé.
Repperton finalmente levantou-se, a camiseta branca suja de poeira e graxa, o nariz ainda borbulhando sangue. Mergulhou na direção de Arnie. Randy contou que mais parecia um ensaio de mergulho, quase por amor às aparências. Outros sujeitos o contiveram e o afastaram dali. Darnell aproximou-se de Arnie, dizendo que lhe entregasse a chave de sua caixa de ferramentas e desse o fora.
— Céus, Arnie! Por que não me telefonou na tarde de sábado? Ele suspirou.
— Estava deprimido demais.
Terminamos nossa pizza e comprei uma terceira Pepsi para ele. Esse tipo de refrigerante é um veneno para a pele, mas um alívio para a depressão.
— Não sei se ele me mandou dar o fora por aquele sábado ou para sempre — comentou Arnie, quando voltávamos para casa. — O que você acha, Dennis? Será que ele me chutou de lá definitivamente?
— Você disse que ele lhe pediu a chave da caixa de ferramentas.
— Exato, exato, foi o que ele fez. Nunca fui chutado de nenhum lugar antes. Arnie dava a impressão de que ia chorar.
— Seja como for, aquele lugar é uma droga. E Will Darnell é um filho da puta.
— Acho que seria estupidez tentar continuar lá — disse ele. — E mesmo que Darnell me deixe voltar, Repperton continua lá. Eu acabaria brigando com ele outra vez e...
Comecei a cantarolar baixinho o tema de Rocky.
— Vá para o inferno, você e o garanhão que monta, Cavaleiro da Montanha — disse ele, sorrindo ligeiramente. — Eu lutaria realmente com ele. Só que Repperton pode atacá-la novamente com aquele macaco, quando eu não estiver lá. E, se fizesse isso, não creio que Darnell o impedisse.
Como não respondi, talvez Arnie pensasse que eu era de sua mesma opinião. Entretanto, não me entrava na cabeça que seu velho calhambeque enferrujado, aquele Plymouth Fury, fosse o alvo principal. E, se Repperton não pudesse completar sozinho a demolição do alvo principal, bastaria pedir ajuda a seus amigos — Don Vandenberg, "Penetra" Welch, etc. Calcem suas botas ferradas, rapazes, vamos ter uma boa diversão esta noite.
Ocorreu-me que eles poderiam acabar com ele. Não apenas arrasá-lo, mas matá-lo mesmo. Sujeitos como eles às vezes fazem isso. As coisas apenas passam de um certo limite e algum garoto termina morto. Volta e meia, a gente lê isso nos jornais.
—... deixá-la?
— Como?
Eu não seguira o fio de sua conversa. Mais acima, a casa de Arnie estava à vista.
— Perguntei se você tinha alguma idéia sobre onde eu poderia deixá-la.
O carro, o carro, o carro, era tudo sobre o que ele falava. Arnie começava a soar como um disco rachado. E, pior ainda, era sempre ela, ela, ela. Era inteligente o bastante para sentir sua crescente obsessão por ela — ele, maldição, ele —, mas não dava pela coisa. Nem se mancava.
— Arnie — falei. — Escute aqui, cara. Você tem coisas mais importantes com que se preocupar, em vez de espremer os miolos imaginando onde vai deixar o carro. Onde o guardará. Quero saber onde você vai se guardar.
— Como? De que está falando?
— Pergunto o que fará, se Buddy e seus capangas decidirem que vão fazer você dançar.
Seu rosto subitamente adquiriu uma expressão consciente — tão subitamente que dava medo ver. Consciente, impotente e sofrido. Era um rosto que eu podia reconhecer, pois o vira nos noticiários, quando tinha apenas oito ou nove anos — o rosto de todos aqueles soldados de pijamas negros que tinham feito o diabo com o mais bem equipado e aguerido exército do mundo.
— Farei o que puder, Dennis — disse ele.
Não tenho carro e isso me corta o coração,
Mas tenho um motorista e já é um começo...
— Lennon e McCartney
Tinham começado a passar o filme Nos Tempos da Brilhantina e levei a chefe de torcida para vê-lo, aquela noite. Achei uma chatura, mas ela adorou. Fiquei lá, vendo aqueles adolescentes completamente irreais, dançando e cantando (se eu quisesse adolescentes realistas — bem, mais ou menos — veria O Balanço das Horas, em alguma reapresentação), de modo que minha mente se desligou do filme. De repente, fui acometido por uma súbita idéia, como às vezes costuma acontecer quando não estamos concentrados em nada particular.
Desculpei-me e fui até o saguão, para usar o telefone público. Liguei para a casa de Arnie, com rapidez e segurança. Decorara o número dele desde que andava pelos oito anos, ou coisa assim. Podia ter esperado até o filme terminar, mas aquela idéia me pareceu diabolicamente boa, para esperar tanto tempo. O próprio Arnie atendeu.
— Alô?
— Aqui é Dennis, Arnie.
— Oh, Dennis!
Sua voz era tão inexpressiva e alheia que fiquei um pouco assustado.
— Você está bem, Arnie?
— Como? Oh, claro que estou. Pensei que você tivesse levado Roseanne ao cinema.
— É do cinema que estou ligando.
— Então, o filme não deve ser tão legal assim — disse Arnie, com aquela voz ainda monótona, monótona e terrível.
— Roseanne está achando um barato.
Pensei que aquilo arrancasse o riso de Arnie, mas houve apenas aquele silêncio paciente, aguardando.
— Escute — falei —, encontrei a resposta.
— Que resposta?
— LeBay — respondi. — LeBay é a resposta.
— Le... — disse ele, em voz estranha e aguda... para então silenciar novamente. Aquilo começava a ser mais do que um susto para mim. Eu nunca o vira desse jeito.
— Exatamente — insisti. — LeBay. LeBay tem uma garagem e me veio a idéia de que ele comeria um sanduíche de rato morto se a margem de lucro fosse suficientemente alta. Se você o procurar oferecendo uma base, digamos, de dezesseis ou dezessete pratas por semana...
— Muito engraçado, Dennis.
A voz de Arnie era gélida e odiosa.
— Arnie, o que... Ele desligou.
Fiquei parado, contemplando o fone e me perguntando que diabo estava acontecendo. Alguma nova investida de seus pais? Teria ele voltado à garagem e descoberto um novo dano em seu carro? Ou...
Uma súbita intuição — quase uma certeza — me colheu de súbito. Recoloquei o fone no gancho e caminhei para o balcão onde vendiam doces e pipocas e perguntei se tinham o jornal daquele dia. A garota que atendia finalmente o pescou e voltou a estourar sua goma de mascar, enquanto eu folheava a parte final do jornal, onde publicam os obituários. A garota me vigiava, talvez querendo ter certeza de que eu não usaria o jornal para alguma estranha perversão ou possivelmente o comesse.
Nada encontrei — ou foi o que imaginei a princípio. Então, virando a página, vi o cabeçalho. VETERANO DE LIBERTYVILLE FALECE AOS 71 ANOS. Havia uma foto de Roland D. LeBay em seu uniforme do Exército, parecendo vinte anos mais jovem e com olhos muito mais vivos do que nas ocasiões em que eu e Arnie o tínhamos visto. A notícia era breve. LeBay falecera subitamente, na tarde de sábado. Deixava um irmão, George, e uma irmã, Márcia. Os serviços funerários estavam marcados para terça-feira, às duas da tarde.
Subitamente.
Nas notícias de falecimentos, sempre lemos: "após prolongada enfermidade," "após breve enfermidade" ou "subitamente". Subitamente pode significar qualquer coisa, desde embolia cerebral a uma eletrocussão na banheira. Recordei algo que tinha feito a Ellie, quando ela não passava de um bebê — teria uns três anos, talvez. Eu quase a matara de susto, com um boneco de molas. A mão de Dennis, seu grande irmão mais velho, girava a pequena manivela que produzia música. Nada mau. Muito interessante. E de repente — ploft! De dentro da caixa saltava aquele sujeito de rosto risonho e feio nariz de gancho, quase lhe atingindo o olho. Ellie abriu um berreiro e disparou em busca da mãe, enquanto eu ficava lá, olhando sombriamente para o boneco que oscilava de um lado para outro, sabendo que provavelmente seria repreendido, sabendo que provavelmente merecia ser repreendido — eu sabia antecipadamente que o boneco a assustaria, brotando da música daquele jeito, de repente, com um terrível ruído.
Brotando tão subitamente.
Devolvi o jornal e fiquei lá, olhando apaticamente para os cartazes que anunciavam PRÓXIMA ATRAÇÃO e PARA BREVE.
Tarde de sábado.
Subitamente.
É engraçado como as coisas às vezes acontecem. Minha repentina idéia havia sido de que talvez Arnie pudesse levar Christine de volta para o lugar de onde viera, pagando a LeBay por isso. Agora, no entanto, LeBay estava morto. De fato, morrera no mesmo dia da briga de Arnie com Buddy Repperton — o mesmo dia em que Buddy estraçalhara o farol de Christine.
Tive imediatamente um retrato irracional de Buddy Repperton movimentando aquele macaco — e, no mesmo exato momento, o olho de LeBay espirra sangue, ele emborca de pernas para o ar e, subitamente, muito subitamente...
Pare com isso, Dennis, me adverti. Pare com...
Então, em algum lugar lá no fundo de minha mente, algum ponto perto do centro, uma voz sussurrou: Vamos garotão, vamos rodar por aí — e silenciou.
A garota atrás do balcão explodiu sua goma de mascar e disse:
— Você está perdendo o fim do filme. É a melhor parte.
— Oh, sim, obrigado.
Comecei a caminhar para a porta do cinema e então mudei o rumo, direto ao bebedouro. Minha garganta estava muito seca.
Antes de terminar de beber, as portas se abriram e todos começaram a sair. Além e acima de suas cabeças em movimento, pude ler o nome dos participantes do filme. Roseanne surgiu à vista, olhando em torno à minha procura. Atraiu muitos olhares de admiração e os devolveu com simplicidade, naquele seu jeito sonhador e contido.
— Den-Den — disse ela, tomando meu braço. Ser chamado Den-Den não é a pior coisa do mundo, ter os olhos inutilizados por um rubro atiçador de brasas ou uma perna amputada por uma serra elétrica deve ser muito mais terrível, mas nunca me importei muito com aquilo. — Onde é que você esteve? Perdeu o final do filme. E o fim é...
—... a melhor parte — completei para ela. — Sinto muito. Houve uma necessidade fisiológica. Aconteceu quando menos esperava.
— Vou te contar tudinho, se me levar até a beira do rio, por um momento — disse ela, pressionando meu braço contra o lado macio de seu seio. — Se estiver querendo conversar, lógico.
— Foi um final feliz?
Ela sorriu para mim, os olhos grandes e doces, um pouco atordoados, como sempre. Segurou meu braço ainda mais apertadamente contra o seio.
— Muito feliz — disse. — Gosto de finais felizes. E você?
— Adoro — respondi.
Eu devia estar pensando na promessa de seus seios, mas a verdade é que voltara a concentrar-me em Arnie.
Naquela noite, tive um sonho novamente, porém neste Christine era velha — não, não apenas velha; era anciã, um terrível carro de carroceria desmantelada, algo que se esperaria ver em um baralho Tarot: em vez do Homem Enforcado, o Carro Morto. Algo que se poderia quase acreditar ser tão velho como as pirâmides. O motor rugia, morria e expelia uma fedorenta fumaça azulada de óleo queimado.
Ele não estava vazio: Roland D. LeBay estava refestelado ao volante. Seus olhos abertos eram vítreos e mortos. A cada vez que o motor pegava, a carroceria carcomida de ferrugem vibrava, Christine se sacudia como uma boneca de trapos. Seu crânio descascado assentia, para diante e para trás.
Então, os pneus deram seu grito terrível, o Plymouth saltou da garagem para cima de mim e, ao fazer isso, a ferrugem dissolveu-se, os vidros antigos e rachados ficaram cristalinos, os cromados cintilaram com selvagem frescor e os velhos pneus carecas subitamente floresceram em carnudos Firestones de banda branca, cada reentrância da banda de rolamento parecendo tão funda como o Grand Canyon.
Ele estrondeou para mim, os faróis despejando círculos brancos de ódio, e então ergui as mãos, em um gesto estúpido e inútil de defesa, pensando: Céus, essa fúria interminável...
Acordei.
Não gritei. Naquela noite, sufoquei o grito na garganta.
Com grande esforço.
Sentei-me na cama, uma poça fria de luar batia em um pedaço do lençol e pensei: Falecido subitamente...
Nessa noite, não consegui tornar a dormir tão depressa.
Rabo-de-peixe branco, de ponta a ponta,
E roda como algo do paraíso aqui na terra,
Bem, cara, quando eu morrer,
Jogue meu corpo na traseira
E me leve para o ferro-velho em meu Cadillac.
— Bruce Springsteen
Brad Jeffries, nosso capataz de turma na estrada, andava pelos quarenta e tantos anos, era careca, atarracado, permanentemente queimado de sol. Gostava muito de gritar — principalmente quando estávamos atrasados nos prazos de construção — mas era um bocado legal como pessoa. Fui procurá-lo na folga do café, para saber se Arnie pedira algumas horas livres ou a tarde inteira.
— Ele pediu duas horas, para ir a um enterro — disse Brad. Tirou os óculos de aros metálicos e massageou os pontos vermelhos que haviam deixado, nos lados do nariz. — Bolas, não vá pedir também... vou perder vocês dois no fim da semana, de qualquer jeito, e todos os imbecis ficam aqui.
— Tenho que pedir, Brad.
— Por quê? Quem é o cara? Cunningham disse que ele lhe vendera um carro, foi tudo. Céus, nunca pensei que alguém fosse ao enterro de um vendedor de carros usados, além dos parentes.
— Não era um vendedor de carros usados, apenas um cara. Arnie está tendo problemas nessa área, Brad. Acho que eu devia estar com ele.
Brad suspirou.
— Certo. Certo, certo, certo! Pode tirar uma folga, de uma às três, como ele. Se concordar em trabalhar durante a hora do almoço e ficar até as seis, na sexta-feira.
— Tudo bem, Brad. Obrigado.
— Vou fazer de conta que trabalharam o horário normal — declarou Brad. — Se alguém da Penn-DOT, em Pittsburgh, descobrir, minha cabeça vai rolar.
— Ninguém descobrirá.
— Será uma pena perder vocês dois, rapaz.
Pegou o jornal e procurou a parte esportiva. Vindo de Brad, aquilo era um elogio e tanto.
— Foi um bom verão para nós também.
— Fico satisfeito em saber, Dennis. Agora dê o fora daqui e me deixe ler o jornal. Obedeci.
Era uma da tarde quando peguei carona em uma niveladora até o barracão principal da construção. Arnie estava lá dentro, pendurando seu capacete amarelo e vestindo uma camisa limpa. Olhou para mim com espanto.
— Dennis! O que está fazendo aqui?
— Vim me aprontar para um enterro — falei. — O mesmo que você.
— Não — disse ele prontamente.
Naquela palavra, encerrava-se tudo — os sábados que não passava mais em casa, a frieza de Michael e Regina ao telefone, a maneira como ele se portara, quando lhe ligara do cinema —, fazendo-me perceber o quanto me isolara de sua vida e como aquilo acontecera da mesma forma como LeBay tinha morrido. Subitamente.
— Sim — falei. — Sonhei com o sujeito, Arnie. Está me ouvindo? Eu sonhei com ele. Vou ao enterro. Podemos ir juntos ou separados, mas eu vou também.
— Não estava brincando, estava?
— Quê?
— Quando ligou para mim, do cinema. Ainda não sabia que ele estava morto, sabia?
— Droga! Acha que eu ia brincar com uma coisa dessas?
— Não — respondeu ele, mas demorou um pouco.
Só respondeu depois de refletir cautelosamente. Via a possibilidade de todas as mãos agora se voltarem contra ele. Will Darnell agira assim, bem como Buddy Repperton. Imagino que também seu pai e sua mãe. Contudo, não se tratava somente deles, nem mesmo principalmente deles, porque nenhum era a causa primordial. Era o carro.
— Você sonhou com ele?
— Sonhei.
Ele ficou parado, segurando a camisa limpa, meditando naquilo.
— O jornal disse Cemitério de Libertyville Heights — comentei finalmente. — Vai pegar o ônibus ou prefere ir comigo?
— Vou com você.
— Boa idéia.
Postamo-nos em uma elevação, um pouco acima da cerimônia à beira da sepultura, não ousando ou não querendo descer e juntar-nos ao punhado das pessoas ali presentes. Ao todo, eram menos de uma dúzia, metade composta de velhos sujeitos vestindo uniformes que pareciam velhos e cuidadosamente preservados — quase se podia sentir o cheiro da naftalina. O ataúde de LeBay estava em deslizadores sobre a sepultura. Havia uma bandeira sobre ele. As palavras do pregador chegaram até nós, levadas pela brisa quente de um final de agosto: "O homem é como a relva, que cresce e depois é aparada, o homem é como a flor, que desabrocha na primavera e esmaece no verão, o homem é amor, e ama o que desaparece.
Terminada a cerimônia, a bandeira foi removida e um homem aparentando mais de sessenta anos jogou um punhado de terra sobre o caixão. Pequenos fragmentos saltitaram e caíram na fossa abaixo. O noticiário do óbito dizia que ele deixara um irmão e uma irmã. Aquele devia ser o irmão; a semelhança não era espantosa, mas existia. Evidentemente, a irmã não comparecera; ali havia apenas homens, em torno do buraco no chão.
Dois dos sujeitos da Legião Americana dobraram a bandeira em formato de quepe e um deles a entregou ao irmão de LeBay. O pregador pediu ao Senhor para abençoá-los e guardá-los, que Seu rosto fulgurasse sobre eles e lhes desse paz. Em seguida, todos começaram a dispersar-se. Olhei em torno, procurando Arnie, porém ele não estava mais ao meu lado. Tinha-se afastado um pouco e o vi de pé sob uma árvore. Havia lágrimas em suas faces.
— Você está bem, Arnie? — perguntei.
Tive absoluta certeza de não ter visto uma só maldita lágrima vertida pelos que circundavam a sepultura. Pensei que, se Roland D. LeBay soubesse que Arnie Cunningham seria o único a derramar lágrimas por ele, na cerimônia simples junto à sepultura, em um dos mais anônimos cemitérios do oeste da Pensilvânia, bem poderia ter rebaixado cinqüenta pratas do preço de seu nojento carro. Afinal de contas, Arnie ainda estaria pagando cento e cinqüenta a mais do que o calhambeque valia.
Ele limpou o rosto com as palmas das mãos, em um gesto quase selvagem.
— Estou ótimo — disse. — Vamos.
— Está bem.
Pensei que ele se referia à hora de irmos embora, porém Arnie não caminhou para onde eu estacionara meu Duster, começando, em vez disso, a descer a elevação. Comecei a perguntar-lhe aonde ia, mas fechei a boca; eu o conhecia bem, sabia que pretendia falar com o irmão de LeBay.
O irmão estava parado com dois daqueles sujeitos com tipo de Legionários, conversando tranqüilamente, com a bandeira debaixo do braço. Usava o terno do homem que se aproxima da aposentadoria, com um rendimento insuficiente. Era um tecido com fino listrado azul, os fundilhos ligeiramente brilhantes. A gravata aparecia com a ponta amarrotada e a camisa branca estava amarelada no colarinho.
Ele nos viu chegando.
— Com licença — disse Arnie —, mas o senhor é o irmão do Sr. LeBay, não?
— Sim, sou eu mesmo.
Ele fitou Arnie de modo inquisitivo e, pensei, um tanto desconfiado. Arnie estendeu a mão.
— Meu nome é Arnold Cunningham. Conheci seu irmão ligeiramente. Comprei um carro dele, não faz muito tempo.
Quando Arnie estendeu a mão, LeBay a procurou automaticamente — entre homens americanos, o único gesto que parece mais arraigado do que o aperto de mão é observar a braguilha, para certificar-se de que o zíper foi fechado, após a saída de um toalete público. Entretanto, quando Arnie acrescentou que comprara um carro de LeBay, a mão vacilou no trajeto. Por um momento, pensei que não ia haver qualquer aperto de mãos, que ele recuaria com a sua, deixando a de Arnie boiar no vazio.
Entretanto, ele não fez tal coisa... pelo menos, não de todo. Apertou superficialmente a mão de Arnie e depois a soltou.
— Christine — disse ele, em voz inexpressiva. Sim, a semelhança do parentesco era patente: na maneira como as sobrancelhas formavam uma prateleira acima dos olhos, na forma do queixo, nos olhos de um azul-claro. Este homem, no entanto, tinha o rosto mais suave, quase gentil; duvido que um dia fosse ficar com a aparência magra e astuta de Roland D. LeBay. — Na última notícia sua que me enviou, Rollie disse que a vendera.
Deus meu, também ele usava o maldito pronome feminino. E Rollie! Era difícil imaginar LeBay, com seu crânio pelado e o fedorento colete ortopédico, sendo Rollie para alguém. Seu irmão, contudo, pronunciara o diminutivo na mesma voz seca e indiferente. Não havia amor naquela voz, pelo menos nenhum que eu pudesse captar.
LeBay prosseguiu:
— Meu irmão não escrevia com freqüência, Sr. Cunningham, mas tinha uma tendência a vangloriar-se. Eu desejaria ter para ele uma palavra mais delicada, porém creio que não existe. Em seu bilhete, Rollie falava do senhor como um "pato" e disse que lhe passara o que considerava "um conto-do-vigário".
Fiquei de boca aberta. Virei-me para Arnie, quase esperando outro acesso de fúria. Seu rosto, contudo, não se modificou em absoluto.
— Um conto-do-vigário — disse brandamente — é sempre a opinião do espectador. Acredita nisso, Sr. LeBay?
LeBay riu... com certa relutância, observei.
— Este é meu amigo. Estávamos juntos, no dia em que comprei o carro. Fui apresentado e apertei a mão de George LeBay.
Os soldados já se tinham ido. Nós três, eu, Arnie e LeBay, entreolhamo-nos desconfortavelmente. LeBay passou a bandeira do irmão de uma para a outra mão.
— Posso ser-lhe útil em alguma coisa, Sr. Cunningham? — perguntou LeBay finalmente. Arnie pigarreou.
— Eu estava pensando na garagem — disse por fim. — Compreenda, estou consertando o carro, tentando deixá-lo em condições de rodar novamente pelas ruas. Meus pais não o querem em nossa casa e, desta forma, eu estava pensando se...
— Nada feito.
— ... talvez pudesse alugar a garagem.
— O assunto está fora de discussão. De fato, é...
— Eu pagaria vinte dólares por semana — disse Arnie. — Até vinte e cinco, se quiser. Pestanejei. Arnie se portava como um menino, preso em areia movediça, que decide divertir-se comendo alguns bombons com arsênico.
— Impossível. — LeBay parecia cada vez mais constrangido.
— Apenas a garagem — disse Arnie, sua calma começando a fraquejar. — Apenas a garagem onde o carro estava antes.
— Não é possível — disse LeBay. — Ainda esta manhã, registrei a casa com os corretores da Century 21, Libertyville Realty e Pittsburg Homes. Eles ficaram incumbidos de mostrá-la...
— Claro, dentro de algum tempo, mas até lá...
— ...e eu não gostaria de tê-lo na propriedade. Compreende, não? — Ele se inclinou ligeiramente para Arnie. — Por favor, não me interprete mal. Nada tenho contra adolescentes em geral... Se tivesse, provavelmente estaria agora em um hospício, porque lecionei no ginásio de Paradise Falls, Ohio, durante quase quarenta anos, e você me parece um cortês e inteligente exemplo do gênero adolescente. De qualquer modo, tudo quanto pretendo fazer aqui, em Libertyville, é vender a casa e dividir qualquer que seja o produto obtido, com minha irmã em Denver. Quero ver-me livre daquela casa, Sr. Cunningham, e também livre da vida de meu irmão.
— Entendo — disse Arnie. — Faria muita diferença se eu lhe prometesse cuidar da propriedade? Aparar a grama? Repintar as portas e janelas? Fazer pequenos reparos? Tenho muito jeito para essas coisas.
— Ele é realmente bom nisso — falei.
Para Arnie, seria bom recordar, mais tarde, que eu estivera do seu lado... mesmo não estando. —Já contratei um homem para ficar de olho por lá e fazer um pequeno trabalho de conservação. Aquilo soava plausível mas, de repente, tive certeza absoluta de que era mentira. E Arnie sabia também, pensei.
— Está certo. Sinto muito sobre seu irmão. Ele parecia um... um homem de grande força de vontade.
Quando Arnie disse isso, recordei o momento em que me virara e tinha visto LeBay com compridas e gordurosas lágrimas nas faces. Bem, aí está. Fiquei sem a minha máquina, filho.
— Força de vontade? — LeBay sorriu cinicamente. — Oh, sim. Ele era um filho da mãe com força de vontade. — Pareceu não notar o ar chocado de Arnie. — Com licença, senhores. Creio que o sol perturbou um pouco o meu estômago.
Começou a caminhar. Ficamos parados, não muito longe da sepultura, vendo-o afastar-se. LeBay parou subitamente e o rosto de Arnie iluminou-se, sem dúvida pensando que o homem mudara de idéia de repente. Por um momento, LeBay ficou parado sobre a grama, a cabeça baixa, na postura de quem reflete profundamente. Então tomou a caminhar para nós.
— Se quer um conselho, esqueça aquele carro — disse a Arnie. — Venda-o. Se ninguém o quiser comprar inteiro, venda-o por peças. E se ninguém se interessar assim mesmo, leve para o ferro-velho. Faça isso, o mais rápido possível. Como quem se livra de um vício. Creio que você seria mais feliz.
Ficou olhando para Arnie, esperando que ele dissesse alguma coisa, mas não houve resposta. Meu amigo apenas o encarou fixamente. Seus olhos tinham aquela peculiar e estranha tonalidade que adquiriam quando a mente de Arnie estava decidida em alguma coisa, os pés bem firmes no chão. LeBay entendeu e assentiu. Pareceu angustiado e um pouco indisposto.
— Bom dia, senhores. Arnie suspirou.
— Bem, suponho que isto encerra tudo.
Olhou para Lebay que se afastava, com certo ressentimento.
— Certo — concordei, esperando soar mais infeliz do que me sentia.
Era o sonho. Eu não gostava da idéia de Christine novamente naquela garagem. Era semelhante demais ao meu sonho.
Em silêncio, começamos a caminhar de volta para meu carro. LeBay piscou para mim. Os dois LeBays tinham piscado para mim. Tomei uma súbita, impulsiva decisão — só Deus sabe como as coisas podiam ter sido muito diferentes, se eu não tivesse seguido meu impulso.
— Ei, cara — falei. — Tenho que dar uma mijada. Será só um ou dois minutos, certo?
— Certo — disse ele, mal erguendo os olhos.
Continuou caminhando, com as mãos enfiadas nos bolsos e os olhos cravados no chão. Caminhei para a esquerda, onde um pequeno e discreto aviso, com uma flecha ainda menor, indicava o trajeto para os toaletes. Entretanto, quando escalei a primeira elevação e fiquei fora da vista de Arnie, dobrei para a direita e corri para o pátio de estacionamento. Alcancei George LeBay quando ele deslizava lentamente para trás do volante de um diminuto Chevette, com um adesivo Hertz colado no pára-brisa.
— Sr. LeBay! — chamei, arquejante. — Sr. LeBay! — Ele ergueu os olhos, curiosamente. — Desculpe-me — falei. — Sinto muito incomodá-lo novamente.
— Não tem importância — respondeu ele —, mas continuo firme no que disse a seu amigo. Não posso deixá-lo guardar o carro na garagem.
— Faz muito bem — falei.
Suas espessas sobrancelhas se elevaram.
— Aquele carro — continuei —, aquele Fury, não gosto dele. Ele continuou a olhar para mim, sem dizer nada.
— Não creio que aquele carro tenha feito bem a meu amigo. Talvez, em parte seja porque... Oh, eu não sei como dizer...
— Está com ciúmes? — perguntou ele, brandamente. — O tempo que seu amigo passava com você agora é dedicado a... Christine?
— Bem, acho que é isso — falei. — Somos amigos há muito tempo... Só que... bem, não creio que se trate apenas disso.
— Não?
— Não. — Olhei em torno, para ver se avistava Arnie e, nesse meio tempo, consegui concatenar os pensamentos. — Por que disse a ele para levar o carro ao ferro-velho e esquecê-lo? Por que disse que era como um vício?
Ele ficou calado e receio que nada tivesse a dizer — pelo menos, não a mim. Então, quase baixo demais para eu ouvir, perguntou:
— Tem certeza de que isto é da sua conta, filho?
— Não sei. — De repente, parecia muito importante fitá-lo nos olhos. — No entanto, eu me preocupo com Arnie, entende? Não quero vê-lo sofrer. Aquele carro já lhe trouxe problemas. Não quero que a situação fique pior.
— Venha a meu hotel esta noite. Fica logo depois da Western Avenue, na saída da 376. Acha que pode encontrar?
— Ajudei a compactar os lados da rampa — falei, estendendo-lhe as mãos. — Ainda tenho bolhas.
Sorri, mas ele não correspondeu ao sorriso.
— Rainbow Hotel. Há dois, na cabeceira daquela saída. O meu é o mais barato.
— Obrigado — falei, desajeitadamente. — Ouça, acha mesmo que...
— Talvez não seja da sua conta, da minha, nem da de ninguém — disse LeBay, em sua voz macia de professor, tão diferente do selvagem cacarejo de seu falecido irmão (porém, de certo modo, tão fantasticamente similar).
(e este é o melhor cheiro do mundo... excetuando talvez o de uma cona)
— No entanto, vou lhe dizer uma coisa — prosseguiu ele. — Meu irmão não era um bom homem. Em minha opinião, a única coisa que ele realmente amou na vida foi esse Plymouth Fury que seu amigo comprou. Portanto, o assunto deve ser entre eles, apenas entre eles, pouco importa o que me diga ou o que eu lhe possa dizer.
Ele sorriu para mim. Não era um sorriso agradável e, naquele instante, pareceu-me ver Roland D. LeBay espiando através de seus olhos. Fiquei arrepiado.
— Filho, você talvez ainda seja jovem demais para buscar sabedoria nas palavras de alguém, preferindo as suas próprias, porém eu lhe digo isto: o inimigo é o amor. — Assentiu lentamente para mim. — Exatamente. Os poetas se enganam com o amor, de maneira contínua e por vezes deliberadamente. O amor é o velho carniceiro. O amor não é cego. O amor é um canibal com visão extremamente apurada. O amor é como os insetos: sempre faminto.
— E o que ele come? — perguntei, inconscientemente.
Não tinha idéia de perguntar coisa alguma. Cada parte minha, exceto a boca, considerava insana toda aquela conversa.
— A amizade — disse George LeBay. — Ele come a amizade. Se fosse você, Dennis, eu agora me prepararia para o pior.
Fechou a porta do Chevette com um pluft! macio e ligou seu motor de máquina de costura. O carro afastou-se, deixando-me parado no final do piso acimentado. De repente, lembrei que Arnie podia avistar-me vindo daqueles lados e então saí dali o mais depressa que pude.
Enquanto me afastava, refleti que os coveiros, enterradores, engenheiros perpétuos ou fosse lá que nome tivessem nos dias atuais, naquele momento deviam estar baixando o caixão de LeBay à sepultura. A terra atirada por George LeBay no final da cerimônia estaria dispersa sobre a tampa, à maneira de uma cartada vitoriosa. Tentei afastar a imagem, porém outra ainda pior a substituiu: Roland D. LeBay, dentro do ataúde forrado de seda, envergando seu melhor terno e sua melhor roupa de baixo — sem o nauseabundo e encardido colete ortopédico, naturalmente.
LeBay estava debaixo da terra, LeBay estava em seu caixão, com as mãos cruzadas sobre o peito... e por que eu tinha tanta certeza de haver em seu rosto um largo e debochado sorriso?
Não ficou sabendo em Needham?
A Rota 128 está em suas linhas de força...
É tão frio aqui no escuro.
É tão excitante no escuro...
- Jonathan Richmond e os Modern Lovers
O Rainbow Hotel era bastante ruim, sem dúvida. Tinha apenas um andar, a pavimentação do pátio de estacionamento estava rachada e duas das letras no anúncio de néon estavam avariadas. Era exatamente o tipo de lugar onde se espera encontrar um idoso professor inglês. Sei o quanto isto pode parecer deprimente, porém é a pura verdade. E, no dia seguinte, ele devolveria seu carro à Agência Hertz, no aeroporto, para em seguida tomar o avião de volta a casa, em Paradise Falls, Ohio.
O Rainbow Hotel parecia uma enfermaria geriátrica. Havia vários grupos sentados do lado de fora de seus aposentos, nas espreguiçadeiras de jardim que a gerência fornecia para tal finalidade, cruzados os joelhos ossudos, as meias brancas puxadas para cima, sobre as canelas peludas. Todos os homens tinham uma aparência de alpinistas envelhecidos, eram magricelas e rijos. Em sua maioria, as mulheres desabrochavam com a macia gordura do pós-cinqüenta, uma gordura sem esperanças de desaparecer. Desde então, comecei a perceber a existência de hotéis que parecem cheios apenas de pessoas com mais de cinqüenta anos como se eles ficassem sabendo desses lugares através de um Telefone de Emergência para Idosos, mas Decentes. Traga a sua Histerectomia e Próstata Dilatada para o Não-Tão-Cênico Rainbow Hotel. Sem Televisão, mas Temos Dedos Mágicos, Apenas 25 Centavos a Injeção. Não vi qualquer pessoa jovem no exterior das unidades e, a um lado, o enferrujado equipamento do playground permanecia vazio, os balanços lançando compridas sombras imóveis no chão. Em cima, um arco-íris de néon, justificando o nome do lugar (Rainbow), arqueava-se sobre o anúncio. Zumbia como um punhado de moscas presas em uma garrafa.
LeBay estava sentado fora da Unidade 14, com um copo na mão. Caminhei até lá e troquei um aperto de mão com ele.
— Gostaria de um refrigerante? — perguntou ele. — No escritório há uma máquina automática que os fornece.
— Não, obrigado — respondi.
Peguei uma das espreguiçadeiras que vi diante de uma unidade vazia e me sentei ao lado dele.
— Então, deixe-me contar-lhe o que posso — disse ele, em sua voz culta e suave. — Sou onze anos mais novo que Rollie e um homem que ainda está aprendendo a envelhecer.
Remexi-me desajeitadamente no assento e não disse nada.
— Éramos quatro — disse ele. — Rollie o mais velho, eu o mais novo. Nosso irmão Drew morreu na França, em 1914. Ele e Rollie fizeram carreira no Exército. Fomos criados aqui, em Libertyville. Só que, naquela, época, Libertyville era muito, muito menor, compreenda, apenas uma aldeia. Pequena o bastante para ter seus endinheirados e seus párias. Nós pertencíamos aos párias. Éramos uma família pobre. Gente sem iniciativa. Do lado errado dos trilhos. Escolha o clichê.
Ele deu uma risadinha contida e despejou mais cerveja em seu copo.
— Em verdade, só consigo recordar uma coisa constante sobre a infância de Rollie, afinal, ele estava no quinto ano quando nasci mas é algo de que me lembro perfeitamente.
— O que é?
— Sua raiva — disse LeBay. — Rollie estava sempre furioso. Irritava-se por ter de ir à escola com roupas velhas, irritava-se por nosso pai ser um bêbado que não conseguia manter um emprego fixo em nenhuma das metalúrgicas, irritava-se por nossa mãe não conseguir fazer com que nosso pai deixasse de beber. Ficava também irritado com as três crianças menores — Drew, Márcia e eu —, pois tornávamos a pobreza insustentável.
Ele estendeu o braço para mim e arregaçou a manga da camisa, a fim de mostrar-me os duros e esbranquiçados tendões de seu braço de velho, jazendo logo abaixo da superfície da pele luzidia e estirada. Uma cicatriz alastrava-se do cotovelo até o pulso, onde finalmente se desfazia.
— Isto foi um presente de Rollie — disse. — Eu tinha três anos e ele quatorze. Eu brincava com alguns blocos de madeira pintados, que fingia serem carros e caminhões, na calçada diante de uma casa, quando ele apareceu, a caminho da escola. Imagino que eu estivesse em seu caminho. Ele me empurrou, ganhou a calçada e então voltou, para empurrar-me de novo. Caí com o braço sobre as estacas pontiagudas do gradil que cercava um punhado de plantas e girassóis, que minha mãe insistia em chamar de "jardim". Sangrei o bastante para assustá-los até as lágrimas todos eles, exceto Rollie, que se limitou a ficar gritando: "De agora em diante, fique fora do meu caminho, seu maldito imbecil, fique fora do meu caminho, ouviu?".
Fascinado, contemplei a antiga cicatriz que agora parecia tortuosa, porque o pequeno e rechonchudo braço de três anos, no decorrer dos anos, se transformara naquele outro, um braço de velho, magro e reluzente, para o qual então olhava. Um ferimento que fora uma feia cratera expelindo sangue, em algum momento de 1921, alongara-se pouco a pouco naquela prateada progressão de marcas, como degraus de escada de mão. O ferimento se fechara, mas a cicatriz... se espalhara.
Um terrível e impotente estremecimento sacudiu-me por dentro. Recordei Arnie, esmurrando o painel de instrumentos de meu carro, Arnie gritando roucamente que ia fazê-los pagar, que eles pagariam, eles pagariam.
George LeBay olhava para mim. Ignoro o que viu em meu rosto, mas baixou a manga lentamente e, quando a abotoou com firmeza sobre a cicatriz, foi como se tivesse fechado as cortinas sobre um passado quase intolerável.
Ele bebericou mais cerveja.
— Quando meu pai chegou em casa aquela noite, estivera em uma das bebedeiras a que chamava de "caçar um emprego", e ouviu o que Rollie tinha feito, quase lhe arrancou a pele com uma bruta surra. Rollie, entretanto, não se retratava. Chorava, mas não se retratava. — LeBay sorriu de leve. — Por fim, aterrorizada, minha mãe gritou para meu pai acabar com aquilo, antes que o matasse. As lágrimas rolavam pelo rosto de Rollie, mas ainda assim, ele não se retratava. "Ele estava em meu caminho", dizia, por entre as lágrimas. "E se ficar no meu caminho outra vez, torno a fazer a mesma coisa e ninguém pode impedir-me, nem mesmo você, seu maldito velho beberrão!". Então meu pai lhe bateu no rosto, fazendo seu nariz sangrar, e Rollie caiu no chão, com o sangue fluindo por entre seus dedos. Minha mãe gritava, Márcia chorava, Drew estava encolhido a um canto e eu berrava em desespero, amparando o braço enfaixado. Pois Rollie continuava dizendo: "Eu farei a mesma coisa, seu beberrão-beberrão-maldito-velho-beberrão!".
Sobre nós, as estrelas começavam a despontar. Uma mulher idosa saiu de uma unidade mais abaixo, apanhou uma mala surrada em um Ford e a levou para seus aposentos. Um rádio tocava em algum lugar. Não estava sintonizado para os rocks em FM-104.
— É daquela sua fúria inesgotável que mais me lembro — repetiu LeBay, com voz macia. — Na escola, ele brigava com todos que zombavam de suas roupas ou da maneira como seu cabelo era coitado. Ele brigava com qualquer um, se suspeitasse que queria fazê-lo de vítima. Era suspenso vezes sem conta. Por fim, saiu da escola e entrou para o Exército.
"Os anos 20 não foram uma boa época para alguém estar no Exército. Não havia dignidade, promoções, divisas e condecorações. Não havia nobreza. Ele vagou de base em base, primeiro no Sul, depois no Sudoeste. Recebíamos uma carta mais ou menos de três em três meses. Ele continuava furioso. Enfurecia-se contra os que chamava de 'bostas'. Tudo acontecia por culpa dos 'bostas'. Os bostas não lhe davam a promoção que merecia, os bostas tinham cancelado uma licença, os bostas não conseguiam achar o próprio traseiro, com as duas mãos e uma lanterna. Em duas ocasiões, pelo menos, os bostas o puseram atrás das grades.
"O Exército o suportou, porque ele era um excelente mecânico, conseguia manter rodando os velhos e decrépitos veículos que eram tudo quanto o Congresso permitia que tivessem."
Constrangido, vi-me pensando em Arnie novamente — Arnie, que era tão hábil com as mãos.
LeBay inclinou-se para diante.
— Mas o talento era apenas outra fonte para a cólera de Rollie, meu rapaz. Uma cólera que só terminou quando ele comprou aquele carro, que agora é de seu amigo.
— O que quer dizer?
LeBay deu uma risadinha seca.
— Rollie consertou caminhões de comboio do Exército, carros dos grandões do Exército, veículos para suprimento de armas do Exército. Consertou bulldozers e manteve rodando os automóveis oficiais, com cuspo e arame de enfardar. Certa vez, quando um congressista-visitante apareceu para visitar Fort Arnold, a oeste do Texas, e teve um problema com seu carro, o oficial-comandante de Rollie, que estava louco para causar boa impressão, ordenou-lhe que consertasse o luxuoso Bentley do sujeito. Oh, claro, recebemos uma carta de quatro páginas sobre aquele "bosta" em particular, uma arenga de quatro páginas, destilando o ódio e o veneno de Rollie. Era de admirar que as palavras não queimassem o papel.
"Todos aqueles veículos... e Rollie nunca teve um carro seu, senão após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo então, o único que pôde adquirir foi um velho Chevrolet, que mal podia correr e estava corroído pela ferrugem. Nos anos 20 e 30 mal havia dinheiro suficiente, e durante os anos de guerra ele estava ocupado demais, procurando manter-se vivo.
"Permaneceu na oficina mecânica por todos aqueles anos e consertou milhares de veículos para os bostas, sem nunca possuir um, que fosse todo seu. Era novamente como estar em Libertyville. Nem mesmo o velho Chevrolet conseguia amenizar a sensação ou o velho Hudson Hornet usado que ele comprou, um ano depois de casado."
— Casado?
— Ele não lhe contou isso, contou? — disse LeBay. — Ficaria satisfeito rememorando incessantemente suas experiência no Exército suas experiências na guerra e suas intermináveis confrontações com os bostas, enquanto você e seu amigo pudessem ouvi-lo, sem pegar no sono... e ele com a mão em seu bolso, apalpando-lhe a carteira o tempo todo. Rollie não se daria ao trabalho de falar-lhes sobre Verônica ou Rita.
— Quem foram elas?
— Verônica foi sua esposa — disse LeBay. — Casaram-se em 1951, pouco antes de Rollie partir para a Coréia. Poderia ter ficado em Stateside, compreenda. Estava casado, a mulher esperava um filho e ele se aproximava da meia-idade. No entanto, preferiu ir.
LeBay contemplou pensativamente o equipamento sem uso do play-ground.
— Foi bigamia, entenda. Em 1951, ele tinha quarenta e quatro anos e já era casado. Casado com o Exército. E com os bostas.
LeBay tornou a calar-se. Seu silêncio tinha algo mórbido.
— O senhor está bem? — perguntei por fim.
— Estou — disse ele. — Apenas pensava. Tinha maus pensamentos sobre os mortos. — Olhou para mim com serenidade, exceto no tocante aos olhos, que pareciam sombrios e magoados. — Compreenda, meu rapaz, tudo isso me dói muito. Como disse que se chamava? Não quero ficar aqui sentado, contando todas estas tristes e velhas cantigas para alguém que não posso chamar pelo primeiro nome. Seria Donald?
— Dennis — falei. — Escute, Sr. LeBay...
— Dói mais do que eu poderia imaginar — prosseguiu ele. — No entanto, já que começamos, vamos terminar, não? Só vi Verônica duas vezes. Ela era da Virgínia Ocidental. Perto de Wheeling. Era o que se poderia chamar uma sulista do interior e não muito inteligente. Rollie foi capaz de dominá-la e não lhe dava valor, o que parecia ser seu desejo. No entanto, creio que ela o amava, pelo menos, até acontecer aquela coisa horrível com Rita. Quanto a Rollie, não acredito que se tenha realmente casado com uma mulher. Ele se casou com uma espécie de... muro das lamentações.
"As cartas que nos mandava... bem, você deve lembrar que ele deixou a escola muito cedo. Aquelas cartas mal escritas significavam um tremendo esforço para meu irmão. Eram a sua ponte suspensa, sua novela, sua sinfonia, seu grande esforço. Não creio que as escrevesse para livrar-se do veneno que tinha no coração. Acho que as escrevia para transmiti-lo.
"Então, quando teve Verônica, as cartas cessaram. Ele agora contava com dois ouvidos permanentes, não precisava mais preocupar-se conosco. Suponho que tenha escrito para ela, nos dois anos que ficou na Coréia. Em todo esse período, recebi apenas uma, e creio que Márcia recebeu duas. Ele não ficou feliz com o nascimento da filha, em começos de 1952; houve apenas um comentário azedo sobre ter em casa mais uma boca para alimentar e a queixa de que os bostas arrancavam dele um pouco mais."
— Ele nunca subiu de posto? — perguntei.
No ano anterior, eu tinha visto parte de um longo seriado para a TV, uma daquelas novelas de televisão, chamado A Antiga Águia. No dia seguinte, encontrando uma brochura da história no drugstore, comprei-a esperando uma boa novela de guerra. Acabei lendo sobre guerra e paz e fiquei com algumas idéias novas sobre as Forças Armadas. Uma delas, que a velha questão de promoções realmente continuava fluindo, nos tempos de guerra. Era-me difícil compreender como LeBay permanecera no Exército desde inícios da década de 20, atravessara duas guerras e ainda era um reles meganha, quando Ike se tornou presidente.
LeBay riu.
— Ele era como Prewitt, em A Um Passo da Eternidade. Quando avançava de posto, depois era rebaixado por alguma coisa, insubordinação, insolência ou embriaguez. Já lhe disse que ele foi detido? Uma das vezes foi quando urinou na terrina do ponche, no Clube dos Oficiais em Fort Dix antes de uma reunião. Ele pegou apenas dez dias por este desacato; acho que eles amoleceram, acreditando que aquilo não passasse de uma brincadeira de bêbado, exatamente como alguns dos próprios oficiais, sem dúvida, já tinham feito como membros de associações estudantis... eles não faziam, não podiam fazer a menor idéia sobre o ódio e mortal desprezo que jaziam por trás daquele gesto. Contudo, imagino que, a essa altura, Verônica poderia ter contado a eles.
Olhei para meu relógio. Nove e quinze da noite. LeBay estivera falando por quase uma hora.
— Meu irmão voltou da Coréia em 1953; foi quando viu a filha pela primeira vez. Imagino que a tenha contemplado por um ou dois minutos, para em seguida devolvê-la à esposa e ir remendar seu velho Chevrolet pelo resto do dia... entediado, Dennis?
— Não — respondi, e era verdade.
— Durante todos aqueles anos, a única coisa que Rollie desejava realmente era ter um carro novo em folha. Não um Cadillac ou um Lincoln; ele não queria nivelar-se à classe superior, aos oficiais, aos bostas. Meu irmão queria um Plymouth novo, talvez um Ford ou um Dodge.
"Verônica escrevia de vez em quando, contando que eles passavam a maior parte de seus domingos à procura de vendedores de carros, onde quer que Rollie estivesse servindo. Ela e o bebê aboletavam-se no velho Hornet que meu irmão possuía no momento e Verônica lia pequenos livros de histórias para Rita, enquanto Rollie visitava pátios empoeirados, um atrás do outro, falando com vendedor após vendedor, discutindo sobre compressão e cavalos de força, cabeçotes e relação de engrenagens... Às vezes, penso na garotinha crescendo com o fundo musical daquelas flâmulas açoitadas pela ventania ardente de meia dúzia de blindados do Exército, e não sei se devo rir ou chorar.
Meus pensamentos voltaram novamente para Arnie.
— O senhor diria que ele estava obcecado?
— Sim, eu diria isso. Rollie começou a dar dinheiro a Verônica para ela guardar. Além de sua impossibilidade de ser promovido em sua carreira além de suboficial, meu irmão tinha um problema com o álcool. Não era um alcoólatra, mas mergulhava em bebedeiras periódicas, a cada seis ou oito meses. E, terminada a bebedeira, lá se fora o dinheiro que conseguira economizar. Nunca tinha certeza de onde o gastara.
"Supostamente, cabia a Verônica pôr um paradeiro nisso. Era um dos motivos pelos quais casara com ela. Iniciada a fase da bebedeira, Rollie exigia que ela lhe entregasse o dinheiro. Ameaçou-a com uma faca, certa vez, ferindo-lhe a garganta. Fiquei sabendo disso por minha irmã, que volta e meia falava com ela ao telefone. Verônica não entregou o dinheiro que, naquela época — 1955 — chegava a cerca de oitocentos dólares, lembre-se do carro, meu bem', disse ela, com a ponta da faca encostada ao pescoço. 'Se gastar o dinheiro em bebida, nunca terá aquele carro novo'."
— Acho que ela o amava — falei.
— É possível. Entretanto, não fique com a romântica suposição de que o amor de Verônica modificou Rollie de algum modo. A água pode furar a pedra, mas somente após centenas de anos. Pessoas são mortais.
Ele pareceu vacilar, quanto a acrescentar algo mais naquele sentido, e decidiu contra. O lapso me pareceu peculiar.
— De qualquer modo, Rollie nunca as agrediu — disse ele. — Lembre-se, ainda, de que ele estava bêbado, quando encostou a faca na garganta da esposa. Hoje em dia, há um terrível falatório nas escolas sobre drogas, e não sou contra isso, porque acho obsceno pensar em crianças de quinze e dezesseis anos andando por aí cheias de droga, mas continuo acreditando que o álcool é a mais vulgar, a mais perigosa droga que já se inventou... e é legal.
"Quando meu irmão finalmente deixou o Exército, em 1957, Verônica tinha posto de lado pouco mais de mil e duzentos dólares. Adicionável a isto, havia uma substancial pensão de invalidez, pelo problema que ele ficou nas costas. Rollie moveu céus e terras por essa pensão e venceu, segundo disse.
"Assim, finalmente havia dinheiro. Compraram a casa que você e seu amigo visitaram; mas antes mesmo que fosse considerada a idéia de uma moradia, naturalmente havia o carro. O carro era sempre primordial. As visitas aos vendedores de automóveis atingiram o auge. Por fim, ele escolheu Christine. Recebi uma longa carta a respeito. Era um cupê esporte Fury, ele me forneceu todos os detalhes e números em sua carta. Não me lembro deles, mas garanto como seu amigo poderia citar as estatísticas vitais de Christine, ponto por ponto."
— Suas medidas — falei.
LeBay sorriu, sem o menor humor.
— Exato, suas medidas. Lembro-me de Rollie ter escrito que o preço afixado era pouco abaixo de 3.000 dólares, mas ele "pechinchou", segundo disse, até chegar a 2.100 com o vendedor. Fez a encomenda, pagou dez por cento como entrada e, quando o carro chegou, saldou o resto da dívida em dinheiro vivo... notas de dez e de vinte dólares.
"No ano seguinte, Rita, que então estava com seis anos, morreu asfixiada." Saltei na cadeira e quase a derrubei. Aquela voz macia de professor era acariciante e eu estava cansado, quase chegara a cochilar. A última frase fora como um balde de água fria em meu rosto.
— Sim, foi exatamente isso — disse ele, vendo meu ar assustado e questionador. — Eles tinham estado "motorando" o dia inteiro. Isso havia substituído as expedições à caça de carros. "Motorando." Foi a palavra que ele escolheu para tais excursões. Tirara-a de uma daquelas músicas de rock and roll que estava sempre escutando. Todos os domingos, os três saíam "motorando". Havia bolsas para lixo nos assentos traseiro e dianteiro. A garota não podia deixar nada cair no piso. Não podia fazer nenhuma sujeira. Ela aprendera bem a lição. Ela...
LeBay recaiu novamente naquele pensativo e peculiar silêncio, para então prosseguir.
— Rollie mantinha os cinzeiros limpos. Sempre. Era um fumante inveterado, mas batia a cinza do cigarro fora da janela, em vez de dentro do cinzeiro. Quando terminava de fumar, jogava o toco de cigarro também pela janela. Se tivesse alguém com ele que usasse o cinzeiro, assim que terminava a corrida retirava o cinzeiro e o limpava com um lenço de papel. Lavava o carro duas vezes por semana e aplicava polidor duas vezes ao ano. Ele próprio o consertava, alugando tempo em uma garagem local.
Perguntei-me se a garagem não seria a Darnell's.
— Naquele particular domingo, pararam em um stand de beira de estrada para alguns hambúrgueres, a caminho de casa. Sabe como é, não havia nenhum McDonald's naqueles tempos, apenas stands à beira da estrada. E o que aconteceu foi... bastante simples, imagino...
Novamente aquele silêncio, como se ele procurasse decidir sobre o que devia contar-me ou como separar de suas especulações o que realmente sabia.
— Ela se engasgou com um pedaço de carne — disse ele por fim. — Quando a menina começou a sufocar-se e levou as mãos à garganta, Rollie parou o carro e desceu com ela. Então, deitou-a de costas, tentando extrair o que a sufocava. Claro, hoje existe um novo método, a Manobra Heimlich, que funciona bastante bem, em situações semelhantes. De fato, uma jovem estudante para professora salvou um menino que se asfixiava na cantina de minha escola, ainda o ano passado, empregando a Manobra Heimlich. Só que, naquele tempo...
"Minha sobrinha morreu à beira da estrada. Acho que foi uma horrenda, assustadora maneira de morrer."
Sua voz retomara aquela sonolenta cadência professoral, porém eu não sentia mais sono. Em absoluto.
— Ele tentou salvá-la. Acredito nisso piamente. Como também acredito que foi somente a má sorte que a fez morrer. Rollie estivera em um ambiente desumano por muito tempo e não creio que amasse demasiadamente a filha, se é que a amava. Contudo, em questões mortais, algumas vezes a falta de amor pode ser uma graça salvadora. Por vezes, o necessário é apenas a desumanidade.
— Mas não daquela vez — falei.
— Por fim, ele a virou de cabeça para baixo, segurando-a pelos tornozelos, com isto esperando fazê-la vomitar. Acho que tentaria uma traqueotomia com seu canivete, se tivesse a mais leve idéia de como agir. Só que, evidentemente, ele não sabia como. Ela morreu.
"Márcia, o marido e os filhos foram ao funeral. Eu também. Aquela foi nossa última reunião familiar. Na ocasião, pensei que ele teria vendido o carro. Estranhamente, fiquei um tanto desapontado. Aquele carro figurara tanto nas cartas de Verônica e nas poucas escritas por Rollie, que eu já o considerava quase um membro da família deles. Entretanto, Rollie não o vendera. Foram nele à Igreja Metodista de Libertyville, e Christine estava polida... reluzente... e odiosa. Estava odiosa. — LeBay se virou e olhou para mim. — Pode acreditar nisso, Dennis?"
Tive que engolir em seco, antes de poder responder.
— Sim, posso — respondi. LeBay assentiu soturnamente.
— Verônica estava no assento do passageiro, como uma boneca de cera. O que quer que ela tivesse sido, o que quer que houvesse em seu íntimo, desaparecera. Rollie tivera o carro, ela tivera a filha. Não se limitou a chorar a perda. Morreu.
Fiquei quieto, tentando imaginar — procurando pensar no que faria, se fosse eu. Minha filha começa a engasgar e sufoca no banco traseiro de meu carro, depois morre à beira da estrada. Eu me desfaria daquele carro? Por quê? Não havia sido o carro que a matara, mas sim aquilo que a sufocara, um pedaço de hambúrguer e a bebida, obstruindo sua traquéia. Então, por que desfazer-me do carro? Restava apenas a leve questão de que não poderia mais olhar para ele, nem mesmo pensar nele, sem horror e tristeza. Ei, cara, um urso se queixa da floresta?
— O senhor o interrogou a respeito?
— Claro que sim. Márcia estava comigo. Foi depois da cerimônia. O irmão de Verônica viera de Glory, na Virgínia Ocidental, e a levou para casa, após o serviço fúnebre à beira da sepultura, ela estava em uma espécie de profundo torpor, afinal.
"Ficamos sozinhos com ele, eu e Márcia. Aquela foi a verdadeira reunião. Perguntei-lhe se pretendia desfazer-se do carro. Ficara estacionado logo atrás do carro fúnebre que trouxera sua filha para o cemitério, o mesmo cemitério em que Rollie foi sepultado hoje. Era vermelho e branco... a Chrysler nunca ofereceu o Plymouth Fury 1958 naquelas cores; Rollie o conseguira com tal pintura, por encomenda. Estávamos a uns quinze metros dele e tive uma estranha sensação... a mais estranha ânsia... de afastar-me ainda mais, como se ele pudesse ouvir-nos."
— O que disse o senhor?
— Perguntei-lhe se ia vender o carro. Em seu rosto surgiu aquela expressão dura e obstinada que eu conhecia tão bem, desde os tempos de criança. Era a mesma expressão de quando me atirara contra o gradil pontiagudo. A expressão que mostrara ao chamar meu pai de beberrão, mesmo depois dele lhe ter feito o nariz sangrar. Rollie respondeu, 'Eu seria louco se o vendesse, George. Christine só tem um ano de uso e rodou somente 11.000 milhas. Sabe que nunca se consegue o preço adequado em uma venda, a menos que um carro tenha mais de três anos'.
"Respondi: 'Se isto significa uma questão de dinheiro para você, Rollie, alguém roubou o que restou de seu coração e colocou uma pedra no lugar. Quer que sua esposa veja esse carro todo dia? Que ande nele? Deus do céu, homem!'
"Aquela expressão não se modificou. Não, até ele contemplar o automóvel, estacionado ao sol... junto ao carro funerário. Foi o único momento em que suas feições se suavizaram. Recordo que me perguntei se ele algum dia olhara para Rita daquele jeito. Não creio que o tenha feito. Não estava nele ser assim."
LeBay ficou calado por um instante, antes de continuar.
— Márcia disse para ele a mesma coisa. Sempre o temera, mas naquele dia estava mais fora de si do que amedrontada... havia recebido as cartas de Verônica, lembre-se, sabia o quanto a cunhada adorava a filha. Disse para ele que, quando alguém morre, queima-se o seu colchão, doam-se suas roupas ao Exército da Salvação, seja como for, aquilo fica liquidado de algum modo, para que os vivos possam seguir em frente. Ela lhe disse que Verônica nunca mais poderia seguir em frente, enquanto o carro onde a filha morrera continuasse na garagem.
"Com aquele seu jeito sarcástico e hediondo, Rollie perguntou se queria que encharcasse seu carro de gasolina e acendesse um fósforo, só porque sua filha morrera sufocada. Minha irmã começou a chorar e respondeu que era uma excelente idéia. Por fim, tomei-a pelo braço e a levei dali. Não houve mais diálogo com Rollie, naquela época ou mais tarde. O carro era dele e ele ficaria insistindo em conservá-lo durante três anos, antes de poder vendê-lo, falaria sobre as milhas rodadas até ficar roxo, mas o simples fato acima de tudo era que pretendia mantê-lo, porque assim queria.
"Márcia e os seus voltaram de ônibus para Denver e, que me conste, nunca mais tornou a ver Rollie e nem mesmo escreveu-lhe um bilhete. Não foi ao sepultamento de Verônica."
A esposa dele. Primeiro a filha, depois a esposa. De certa forma, eu sabia que fora exatamente assim. Bangue-bangue. Uma espécie de entorpecimento me subiu das pernas até a boca do estômago.
— Ela morreu seis meses depois. Em janeiro de 1959.
— Mas nada tinha a ver com o carro — falei. — Nada a ver com o carro, certo?
— Teve tudo a ver com o carro — disse ele, suavemente.
Eu não queria ouvir mais aquilo, pensei. Só que, naturalmente, acabei ouvindo. Meu amigo era agora o dono daquele carro e, por causa do carro, algo em sua vida ganhara proporções descomunais, algo que jamais deveria ter acontecido.
— Depois que Rita morreu, Verônica entrou em depressão. Simplesmente, nunca se recuperou disso. Tinha alguns amigos em Libertyville, e eles tentaram ajudá-la... ajudá-la a encontrar seu caminho novamente, como se diz. Contudo, ela não conseguiu encontrá-lo. De maneira alguma.
"Fora isso, tudo ia muito bem. Pela primeira vez na vida, meu irmão tinha bastante dinheiro. Tinha sua pensão do Exército, sua pensão por incapacidade física, e conseguira um emprego de vigia noturno, na fábrica de pneus lá para o lado oeste da cidade. Fui de carro até lá, depois do enterro, porém não existe mais."
— Ela foi à falência, faz uns doze anos — comentei. — Eu ainda era criança. No lugar, existe hoje uma lanchonete de comida chinesa.
— Eles estavam saldando as prestações da casa, na proporção de dois pagamentos mensais. E, naturalmente, agora não tinham mais nenhuma filhinha com que se preocupar. Para Verônica, no entanto, nunca houve a mínima possibilidade, o menor impulso para a recuperação.
"Ela se dispôs ao suicídio com incrível sangue-frio, por tudo o que consegui descobrir. Se houvesse manuais para aspirantes ao suicídio, ela devia ser incluída, como exemplo a ser imitado. Foi à loja Western Auto, aqui na cidade, a mesma onde comprei minha primeira bicicleta, há muitos e muitos anos, e comprou seis metros de mangueira de borracha. Adaptou uma extremidade ao cano de descarga de Christine e colocou a outra em uma das janelas traseiras. Nunca tirara carteira de motorista, mas sabia como ligar o motor. De fato, era tudo quanto precisava saber."
Apertei os lábios, molhei-os com a ponta da língua, e ouvi minha voz, pouco mais que um roufenho lamento:
— Acho que vou querer agora aquela soda.
— Talvez fosse melhor trazer uma para mim também — disse ele. — A soda me mantém acordado, sempre foi assim, mas acho que, de qualquer modo, passarei acordado a maior parte desta noite.
Desconfiei que eu também. Fui apanhar as sodas no escritório do hotel e, quando voltava, parei a meio caminho, no pátio de estacionamento. Ele era apenas uma sombra mais forte diante de sua unidade no hotel, as meias brancas reluzindo como pequenos fantasmas. Pensei: Talvez o carro seja amaldiçoado. Talvez seja isso. Parece uma perfeita história de fantasmas. Há um poste indicador mais adiante... próxima parada, a Zona Crepuscular!
Bem, era ridículo, não?
Claro que era. Recomecei a caminhar. Nem carros nem pessoas podiam ser amaldiçoados, isso era coisa de filmes de terror, muito interessante para uma noite de sábado no drive-in, porém nada tinha em comum, absolutamente nada, com os fatos corriqueiros de vida diária, que formam a realidade.
Entreguei a ele sua lata de soda e ouvi o resto da história, a qual poderia ser resumida em uma linha: e ele viveu infeliz para sempre. Agora sozinho, Roland D. LeBay conservara sua pequena casa e o terreno, como conservara o Plymouth 1958. Em 1965, pendurara seu quepe de vigia e o relógio de ponto de trabalho. Mais ou menos na mesma época, abdicara de seus penosos esforços para manter Christine parecendo e rodando como nova, deixara-a desandar, da mesma forma que alguém pode deixar um relógio parar.
— Quer dizer que o carro ficou estacionado lá fora? — perguntei. — Desde 1965? Durante treze anos?
— Não. Ele o deixou na garagem, claro — disse LeBay. — Os vizinhos jamais admitiram um carro apenas se deteriorando, no gramado de alguém. No campo, talvez, mas não em Suburbia, EUA.
— Certo, mas estava lá fora, quando nós...
— Eu sei. Ele o colocou no gramado com um aviso À VENDA, pregado na janela. Fiz perguntas a respeito. Estava curioso, então perguntei. Na Legião. Em sua maioria, os antigos companheiros tinham perdido o contato com Rollie, mas um deles contou que vira o carro no gramado, pela primeira vez, em maio deste ano.
Eu ia dizer algo, mas me calei. Uma terrível idéia me viera à cabeça, uma idéia que consistia simplesmente nisto: Era muito conveniente. Conveniente demais. Christine ficara naquela garagem escura durante anos — quatro, oito, doze, talvez mais. Então — meses antes de eu e Arnie passarmos por lá, de Arnie vê-lo — Roland LeBay subitamente o tirara da garagem e pregara nele um aviso de À VENDA.
Mais tarde — muito mais tarde — consultei exemplares atrasados dos jornais de Pittsburgh e do Keystone, o jornal de Libertyville. LeBay nunca anunciara o Fury, pelo menos nos jornais, que geralmente é onde se anuncia um carro que se quer vender. Ele apenas o deixou em sua rua suburbana — nem mesmo era uma rua principal — e esperou que o comprador aparecesse.
Naquele momento, não entendi inteiramente o resto do pensamento — pelo menos, não de qualquer modo lógico e racional —, mas já tivera suficiente daquilo, para sentir uma repetição daquela fria, perturbadora sensação de medo. Era como se ele soubesse que um comprador estava a caminho. Se não em maio, então em junho. Ou julho. Ou agosto. De algum modo, em breve.
Não, tal pensamento não me viera de maneira lógica ou racional. Em vez disso, o que imaginei foi um quadro inteiramente visceral: uma planta carnívora, à beira de um pântano, com suas verdes mandíbulas abertas, esperando que algum inseto pousasse nelas.
O inseto exato.
— Recordo ter pensado que ele talvez desistira temendo não ter chance de ser aprovado no exame de motorista — falei por fim. — Quando o sujeito envelhece, eles exigem que faça um ou dois exames por ano. A renovação da licença deixa de ser automática.
LeBay assentiu.
— Isto me parece bem próprio de Rollie — comentou. — Contudo...
— O quê?
— Li em algum lugar, e não me lembro quem disse ou escreveu isso, que existem "épocas" na existência humana. Chegada a "época da máquina a vapor", uns doze homens inventaram máquinas a vapor. Talvez apenas um deles tenha conseguido a patente ou o crédito nos livros de História, porém, de repente, lá estavam todas aquelas pessoas, trabalhando em uma única idéia. Como explicar o fato? Apenas que é a época da máquina a vapor.
LeBay tomou um gole de sua soda e olhou para o céu.
— Chega a Guerra Civil e então, imediatamente, é "época do navio blindado de ferro". Depois vem a "época da metralhadora". A seguinte que conhecemos é a "época da eletricidade", seguida pela "época do sem-fio". Finalmente, a "época da bomba atômica" Como se todas essas idéias não viessem de indivíduos, mas de alguma grande onda de inteligência, que flui permanentemente... alguma onda de inteligência que reside fora da humanidade.
Ele me encarou.
— Essa idéia me assusta e tenho pensado muito nisso, Dennis. Parece haver qualquer coisa... bem, decididamente não-cristã a respeito.
— E, para seu irmão, havia a "época de vender Christine"?
— É possível. No Eclesiastes, diz que há um tempo para tudo: tempo para plantar e tempo para colher, tempo para a guerra e tempo para a paz, tempo de abandonar o estilingue e tempo de juntar pedras. Um negativo para cada positivo. Portanto, se houve uma "época de Christine" na vida de Rollie, deve ter havido também uma época de abandonar Christine.
"Se foi assim, ele deve ter sabido. Rollie era um animal, e os animais ouvem perfeitamente seus instintos.
"É ainda possível que ele finalmente se cansasse dela", concluiu LeBay.
Concordei que podia ser isso, principalmente porque me sentia ansioso para encerrar o assunto, embora a explicação não me deixasse plenamente satisfeito. George LeBay não tinha visto aquele carro, no dia em que Arnie gritara para eu voltar atrás. Contudo, eu o vira. O 58 não parecia um carro que estivera repousando tranqüilamente em uma garagem. Estava sujo de poeira e amassado, com o pára-brisa rachado, um pára-choque entortado. Parecia um cadáver, que tivesse sido desenterrado e deixado apodrecer ao sol.
Pensei em Verônica LeBay e estremeci.
Como se lesse meus pensamentos — parte deles, pelo menos —, LeBay disse:
— Pouco sei a respeito de como meu irmão viveu ou se sentiu durante seus últimos anos de vida, porém estou certo de uma coisa, Dennis: quando ele achou, em 1965 ou seja lá quando foi, que era chegado o momento de abandonar o carro, ele o abandonou. E quando achou que era a hora de colocá-lo à venda, ele o colocou à venda.
LeBay fez uma pausa.
— Penso que nada mais tenho a lhe dizer... exceto quanto a acreditar, sinceramente, que seu amigo seria mais feliz desfazendo-se daquele carro. Olhei bem para ele, o seu amigo. No presente momento, não me pareceu um jovem particularmente feliz. Estarei enganado?
Considerei a pergunta cuidadosamente. Não, felicidade não era e nunca fora algo que se aplicasse a Arnie. No entanto, ele pelo menos parecera contente, até ter começado a coisa com o Plymouth. Antes, era como se... tivesse alcançado um modus vivendi com a vida. Não era um cara completamente feliz, mas dava para o gasto.
— Não — respondi. — Não se enganou.
— Não creio que o carro de meu irmão o faça feliz. Pelo contrário, penso exatamente o oposto. — E, como se tivesse lido meus pensamentos alguns minutos antes, ele prosseguiu: — Não acredito em maldições, é bom que saiba. Muito menos em fantasmas ou qualquer coisa precisamente sobrenatural. Entretanto, acredito que emoções e eventos possam ter uma certa... prolongada ressonância. Talvez as emoções possam comunicar-se entre si, sob determinadas circunstâncias, caso tais circunstância sejam suficientemente peculiares... da maneira como uma caixa de leite adquire o sabor de certos alimentos muito condimentados, que foram deixados destampados na geladeira. Bem, pode ser apenas uma fantasia ridícula de minha parte. Talvez fosse o caso de eu me sentir melhor, sabendo que o carro em que minha sobrinha foi asfixiada e onde minha cunhada suicidou-se tivesse sido prensado em um cubo de metal sem valor. Talvez tudo quanto eu sinta seja uma sensação de decoro ultrajado.
— Sr. LeBay, o senhor disse que contratou alguém para cuidar da casa de seu irmão, até que ela seja vendida. É verdade?
Ele se ergueu ligeiramente no assento.
— Não, não é. Menti no impulso do momento. Não gostei da idéia daquele carro de volta àquela garagem... como se houvesse reencontrado o caminho de casa. Se existem emoções e sentimentos que permanecem vivos, eles estarão lá, assim como na própria Christine. — Então, rapidamente, ele se emendou: — No próprio carro.
Não muito tempo depois, me despedi e segui meus faróis para casa, através da noite, refletindo em tudo quanto LeBay me dissera. Perguntei-me se, para Arnie, faria alguma diferença contar-lhe que uma pessoa sofrera um acidente mortal em seu carro e outra, realmente, morrera dentro dele. Eu sabia muito bem que não adiantava; à sua maneira, Arnie podia ser tão obstinado quanto o próprio Roland LeBay. A encantadora cena com seus pais, a respeito do carro, demonstrara isso perfeitamente. O fato de que ele continuava seguindo o curso de Mecânica de Motores, no Ginásio de Libertyville, indicava a mesma coisa.
Pensei em LeBay dizendo: Não gostei da idéia daquele carro de volta àquela garagem... como se houvesse reencontrado o caminho de casa.
Ele também dissera que o irmão levara o carro a algum lugar, a fim de consertá-lo. Atualmente, existia em Libertyville apenas a Will Darnell's, como garagem faça-você-mesmo. Poderia ter havido outra, nos anos 50, mas eu não acreditava. No fundo, achava que Arnie estava consertando Christine no lugar em que já tinha sido consertada antes.
Tinha sido. Essa era a frase correta. Devido à briga com Buddy Repperton, Arnie receava deixar o carro lá por mais tempo. Desta forma, era possível que aquela via para o passado de Christine também estivesse bloqueada.
E, naturalmente, não existem maldições. Mesmo a idéia de LeBay, sobre emoções que se prolongam, era completamente absurda. Ele próprio nem devia acreditar nisso. Exibira-me uma antiga cicatriz e usara a palavra vingança. Sem dúvida, aquilo era bem mais próximo da verdade do que qualquer falsa tolice sobrenatural. Sem dúvida.
Era isso. Eu tinha dezessete anos, iria para a universidade no ano seguinte e não acreditava em coisas tais como maldições e emoções que perduram, azedando o leite derramado dos sonhos. De modo algum acreditava no poder do passado em estender suas horrendas mãos mortas para os vivos.
Entretanto, agora sou um pouco mais velho.
Quando eu estava motorando na montanha
Vi Maybelline em um Cupê de Ville,
Um Cadillac, disparando estrada afora,
Mas nada ultrapassava meu Ford V8...
— Chuck Berry
Mamãe e Elaine já tinham ido dormir, porém papai estava acordado, assistindo ao noticiário das 23 horas na TV.
— Por onde andou, Dennis? — perguntou.
— Jogando boliche — respondi.
A mentira veio natural e instintivamente a meus lábios. Não queria que papai soubesse de nada daquilo. Embora fosse peculiar, não o era o bastante para ser mais do que moderadamente interessante. Pelo menos, foi assim que racionalizei.
— Arnie telefonou — disse ele. — Pediu que você ligasse, se voltasse antes das onze e meia, mais ou menos.
Olhei para o meu relógio. Apenas onze e vinte. Entretanto, será que já não tivera o bastante de Arnie e seus problemas para um dia?
— E então?
— Então, o quê?
— Não vai telefonar para ele? Suspirei.
— Está certo, acho que vou.
Fui até a cozinha, preparei um sanduíche de frango frio, enchi um copo de Ponche Havaiano — um negócio espesso, mas eu adoro — e disquei para a casa de Arnie. Ele mesmo atendeu, ao segundo toque. Parecia alegre e excitado.
— Dennis! Onde foi que esteve?
— Jogando boliche — falei.
— Escute, voltei à garagem de Darnell esta noite, sabe? E... escute só, Dennis... ele chutou Repperton! Repperton saiu e eu posso ficar!
Senti novamente aquele medo tomando forma em meu estômago. Larguei o sanduíche. De repente, não o queria mais.
— Arnie, acha que continuar lá é mesmo uma boa idéia?
— O que quer dizer com isso? Repperton se foi. Não acha que é uma boa idéia?
Pensei em Darnell, ordenando a Arnie que tirasse o carro de lá, antes que poluísse sua garagem imunda. Darnell, dizendo a Arnie que não explorava merda nenhuma de garotos como ele. Pensei na maneira envergonhada como ele desviara os olhos, ao contar que conseguira hora no elevador, para trocar seu óleo, fazendo "uns dois favores". Tive a impressão de que Darnell talvez achasse divertido transformá-lo em seu empregadinho de estimação. Sem dúvida, isso também divertiria bastante os habitués e seus companheiros de pôquer. Arnie, vá buscar café, Arnie, traga biscoitos, Arnie, mude os rolos de papel sanitário da privada e encha o toalheiro com toalhas de papel. Ei, Will, quem é o quatro olhos rondando lá pelo banheiro?... Oh, aquele? Seu nome é Cunningham. Os velhos dele lecionam na universidade. Ele está aqui fazendo uma merda de curso de pós-graduação. E eles riram. Arnie se transformaria na piada local da garagem de Darnell, em Hampton Street.
Pensei isso tudo, mas nada disse. Achei que Arnie poderia muito bem decidir se estava caminhando pela água ou pisoteando merda. Aquilo não podia durar muito — ele era bastante esperto para ver. Bem, assim esperava eu. Arnie era feio, mas não debilóide.
— Se Repperton caiu fora, acho que é uma excelente idéia — respondi. — Apenas pensei que a garagem de Darnell fosse uma medida temporária. Quero dizer, vinte por semana, Arnie, é muita grana, sem falar no aluguel de ferramentas, do elevador e tudo o mais.
— Por isso pensei que seria formidável alugar a garagem do Sr. LeBay — disse ele. — Achei que, mesmo pagando vinte e cinco por semana, estaria em melhor situação.
— Bem, isso é com você. Se pusesse um anúncio no jornal, procurando vaga em uma garagem, aposto como...
— Um momento, deixe-me terminar, Dennis — disse Arnie, ainda excitado. — Quando fui lá esta tarde, Darnell me chamou de lado imediatamente. Disse que lamentava o que Repperton fizera comigo. Disse também que me julgara erradamente.
— Darnell disse isso?
Acho que acreditei, mas não confiei muito.
— Exato. Perguntou se eu gostaria de trabalhar para ele, em horas extras. Dez, talvez vinte horas por semana, durante as aulas. Separando peças, manobrando o elevador, coisas assim. E posso ficar com o boxe por dez dólares semanais, pagando metade do aluguel pelas ferramentas e o elevador. O que acha disso?
Pensei que era infernalmente bom demais, para ser verdade.
— Veja bem onde põe o traseiro, Arnie.
— O quê?
— Meu pai diz que ele é um escroque.
— Não vi o menor sinal disso por lá. Acho que tudo não passa de boato, Dennis. Darnell faz muito barulho, mas creio que é tudo.
— Estou apenas dizendo para você ficar prevenido. — Passei o fone para o outro ouvido e bebi um pouco de Ponche Havaiano. — Fique de olhos bem abertos e caia fora depressinha, se a barra começar a ficar pesada demais.
— Está falando de alguma coisa específica?
Pensei nas vagas histórias sobre drogas e nas mais específicas sobre carros roubados.
— Não — respondi. — Apenas não confio nele.
— Bem... — disse Arnie, hesitante. Pareceu refletir, mas retornou ao tema original: Christine. Com ele, o tema sempre voltava a Christine. — De qualquer modo, vai ser legal, muito legal para mim, Dennis, se der certo. Christine... está realmente mal. Consegui fazer algumas coisas nela, mas para cada uma que faço, parece que tem mais quatro. Algumas que ainda não sei resolver, mas vou aprender.
— Hum-hum — falei, dando uma dentada no sanduíche.
Após minha conversa com LeBay, o entusiasmo por Christine, a garota de Arnie, passara do zero e penetrara em regiões negativas.
— Ela precisa de um alinhamento das rodas dianteiras... Diabo, ela precisa de pneus dianteiros novos, e novas sapatas de freios... anéis de segmento... Posso tentar retificar os pistons... mas não conseguirei nada disso com meu estojo de ferramentas Craftsman, de cinqüenta e quatro pratas. Entende o que quero dizer, Dennis?
Era como se ele estivesse suplicando a minha aprovação. Com vazio no estômago, lembrei-me de repente de um sujeito que tinha sido nosso colega na escola: Freddy Darlington, era o seu nome. Fred nada tinha de excepcional, mas era um bom sujeito, com um senso de humor legal. Então, conheceu uma prostituta de Penn Hills — estou querendo dizer uma puta de verdade, a mais feliz em dar para todos, a maria-batalhão, escolha o seu pejorativo predileto. Tinha uma cara bronca e idiota, que me fazia lembrar a traseira de um caminhão Mack, e não parava de mastigar chicletes. O cheiro de Tutti-Frutti pairava em torno dela, numa nuvem constante. Ficou grávida mais ou menos na época em que Freddy lhe botou as mãos. De certa forma, sempre imaginei que ele a tivesse apanhado, porque fora a primeira garota a deixá-lo ir até o fim. Aconteceu, em seguida, que ele saiu da escola, arranjou emprego em um depósito, a princesa teve o bebê e Freddy apareceu com ela no baile de encerramento do ginásio, no último mês de dezembro, querendo que tudo fosse o mesmo, quando nada é mais o mesmo; e lá está ela, olhando para todos nós, os rapazes, com aqueles olhos mortos e desdenhosos, as mandíbulas subindo e descendo como as de uma vaca ruminando algo particularmente saboroso, enquanto tínhamos que ouvir as novidades: ela está de volta à pista de boliche, de volta à cantina de Libertyville, de volta ao Gino's, andando de carro enquanto Freddy trabalha, retornou ao trabalho duro, dando para todos e divertindo a tropa. Sei que se costuma dizer que um pau não tem consciência, mas eu lhe digo agora que certas conas têm dentes, e então, ao olhar para Freddy, que parecia dez anos mais velho, tive vontade de chorar. Depois, quando Freddy falou sobre ela, foi naquele mesmo tom suplicante que eu captava na voz de Arnie, soando ao telefone em meu ouvido, naquele exato momento... Vocês gostaram mesmo dela, não foi, caras? Ela não é legal, caras? Não me saí tão mal, hein, caras? Quero dizer, talvez seja apenas um pesadelo e logo estarei acordado, certo? Certo? Certo?
— É claro que entendo — falei ao telefone. — Tem razão, Arnie.
Toda aquela horrível, nojenta história de Freddy Darlington levara talvez dois segundos passando por meu cérebro.
— Ótimo — disse ele, aliviado.
— Apenas veja onde mete o traseiro, cara. E isto vale dobrado, para quando voltar às aulas. Fique longe de Buddy Repperton.
— Certo. Pode apostar que sim.
— Arnie...
— O quê?
Fiz uma pausa. Queria perguntar-lhe se Darnell mencionara alguma coisa sobre Christine ter estado antes em sua oficina, se a reconhecera. Ainda mais, eu queria dizer-lhe o que acontecera à Sra. LeBay e sua filhinha, Rita. Só que não pude. Ele adivinharia imediatamente de onde viera a informação. E, em seu estado emocional sobre o maldito carro, poderia muito bem pensar que eu estivera agindo por trás de suas costas e, de certo modo, fora isso mesmo. Contar tudo a ele talvez significasse o fim de nossa amizade.
Eu já me enchera de Christine, mas ainda me preocupava com Arnie. Isto significava que aquela porta devia ser fechada para sempre. Nada mais de andar me esgueirando e fazendo perguntas. Nada mais de sermões.
— Nada — respondi. — Ia apenas dizer que você parece ter encontrado um lar para sua banheira enferrujada. Parabéns.
— Está comendo alguma coisa, Dennis?
— Estou: um sanduíche de frango. Por quê?
— Porque está mastigando em meu ouvido. É grosseiro demais.
Comecei a mastigar o mais ruidosamente que pude. Arnie imitou arrotos. Começamos a rir e aquilo foi bom — era como nos velhos tempos, antes de seu casamento com aquele maldito e fodido carro.
— Você é um filho da mãe, Dennis.
— Certo. Aprendi com você.
— Viado — disse ele e desligou.
Terminei o sanduíche e o Ponche Havaiano, lavei o prato e o copo e voltei para a sala, disposto a tomar uma ducha e ir para a cama. Estava exausto.
A certa altura de minha conversa ao telefone, ouvira a TV ser desligada, o que me fez supor que papai tivesse subido. Não subira. Continuava ali, em sua poltrona reclinável, com a camisa aberta. Um tanto desconcertado, reparei como os pêlos de seu peito estavam ficando grisalhos, a maneira como o abajur de leitura, ao lado dele, penetrava através de seus cabelos e mostrava o rosado do couro cabeludo. O cabelo estava rareando ali. Meu pai não era mais uma criança. Com maior desconcerto ainda, refleti que em mais cinco anos, à época em que, teoricamente, eu terminaria a faculdade, ele estaria com cinqüenta anos e ficando calvo, o estereótipo do guarda-livros. Cinqüenta anos em cinco, se antes não caísse duro, com outro ataque cardíaco. O primeiro não tinha sido grave — nenhuma cicatriz miocardiana, respondeu ele certa vez, quando lhe perguntei. Entretanto, ele não tentara dizer que seria improvável um segundo ataque. Eu sabia dessa possibilidade, mamãe sabia e ele também. Somente Ellie ainda o considerava invulnerável — mas eu não percebera uma pergunta em seus olhos, uma ou duas vezes? Eu tinha quase certeza disso.
Falecido subitamente.
Senti os cabelos se eriçarem em minha cabeça. Subitamente. Retesando-se em sua mesa de trabalho, apertando o peito. Subitamente. Deixando cair a raquete na quadra de tênis. Ninguém gosta de ter tais pensamentos sobre o próprio pai, mas às vezes eles aparecem. Deus sabe que sim.
— Não pude deixar de ouvir parte do que falou — disse ele.
— É mesmo? — falei, prudentemente.
— Arnie Cunningham meteu o pé em um balde de algo quente e sujo, Dennis?
— Eu... eu não tenho certeza — falei, lentamente.
Bem, afinal de contas, o que eu tinha para confirmar? Noções vagas, nada mais.
— Quer falar a respeito?
— Agora não, papai, se você não se importa.
— Está bem — disse ele. — No entanto, se... como você disse ao telefone, se a barra ficar muito pesada, pelo amor de Deus, quer me contar o que estiver acontecendo?
— Certo, contarei.
— Muito bem.
Comecei a caminhar para a escada e estava quase lá, quando ele me deteve, ao dizer:
— Fiz a contabilidade de Will Darnell e suas declarações de imposto de renda durante quase quinze anos, você sabe.
Virei-me para ele, francamente surpreso.
— Não. Eu não sabia.
Meu pai sorriu. Era um sorriso. Eu nunca o vira antes, podia imaginar que mamãe o vira apenas algumas vezes e minha irmã talvez nunca. Poder-se-ia pensar, a princípio, que fosse uma espécie de sorriso sonolento, mas uma observação melhor diria que nada tinha de sonolento — era cínico, rude e totalmente consciente.
— Pode ficar de boca fechada sobre uma coisa, Dennis?
— Posso — falei. — Acho que posso.
— Não adianta apenas achar que pode.
— Está bem. Eu posso.
— Ótimo. Fiz a contabilidade de Darnell até 1975 e então ele contratou Bill Upshaw, lá de Monrolville.
Meu pai me fitou atentamente.
— Eu não diria que Bill Upshaw é um escroque, mas posso dizer que seus escrúpulos são bastante transparentes para que se leia um jornal através deles. E, no ano passado, ele comprou uma casa em Sewickely, no estilo Tudor inglês, valendo 300 mil dólares. Pagamento à vista.
Fez um gesto para nossa casa, com um pequeno aceno do braço direito e o deixou cair de novo em seu colo. Ele e mamãe a tinham comprado no ano em que nasci, por 62 mil dólares — agora devia valer uns 150 mil — e só recentemente tinham conseguido resgatar a última promissória do banco. Tivemos uma festinha no quintal, no fim do verão passado. Papai acendeu a churrasqueira, espetou o pequeno papel rosa na ponta do espeto mais comprido e cada um de nós teve a chance de segurá-lo sobre as brasas, até ele desaparecer por completo.
— Nada de Tudor inglês por aqui, hein, Dennis? — comentou.
— Esta casa é legal — falei. Recuei e sentei-me no sofá.
— Eu e Darnell nos separamos amistosamente — prosseguiu meu pai —, não que eu me preocupasse muito com ele, em termos pessoais. Sempre o achei um vigarista.
Assenti de leve, porque gostava daquilo; expressava meus sentimentos sobre Will Darnell, melhor do que qualquer palavrão.
— No entanto, há toda uma diferença entre um relacionamento pessoal e um relacionamento profissional. Deve-se aprender bem depressa nesse assunto, ou a gente desiste e passa a vender escovas e vassouras de porta em porta. Nosso relacionamento profissional era bom, enquanto durou... porém não durou muito. Então, decidi acabar com aquilo.
— Não compreendo.
— Havia sempre dinheiro aparecendo — disse ele. — Grandes quantidades de dinheiro, sem uma procedência limpa. A pedido de Darnell, investi em duas sociedades anônimas, Aquecimento Solar Pensilvânia e Gráfica Nova Iorque, que pareciam as firmas mais falsas dentre todas que eram de meu conhecimento. Por fim, procurei-o, porque queria ter todas as minhas cartas na mesa. Comuniquei-lhe qual era a minha opinião profissional: se houvesse uma auditoria do pessoal do Imposto de Renda ou do Estado da Pensilvânia, era bem provável que ele tivesse muitas explicações a dar e que logo eu estaria sabendo demais para lhe ser útil.
— O que ele disse?
— Começou a ficar inquieto — respondeu meu pai, ainda mostrando aquele sorriso sonolento e cínico. — Na minha profissão, a gente fica familiarizado com os sinais da inquietação, aos trinta e oito anos, mais ou menos... quero dizer, se formos bons no que fazemos. E eu não sou dos piores. A intranqüilidade começa com o sujeito perguntando se estamos satisfeitos com o trabalho, se o pagamento é suficiente. Se respondemos que gostamos do trabalho mas, sem dúvida, podíamos estar ganhando mais, o sujeito nos encoraja a contar o que nos está pesando nas costas: a casa, o carro, o colégio dos filhos, talvez uma esposa que goste de roupas um pouco mais elegantes do que o orçamento doméstico permite... Você entende?
— Uma sondagem, certo?
— É mais como apalpar-nos — disse ele, e então riu. — Pois bem, a dança é semelhante a um minueto, ponto por ponto. Há todos os tipos de frases, de passos e pausas. Depois que o sujeito confessa quais as cargas financeiras de que gostaria de livrar-se, ele começa perguntando que tipo de coisas gostaria de ter. Um Cadillac, uma casa de verão nas Catskills ou Poconos, talvez um barco.
Sobressaltei-me ao ouvi-lo, sabendo o quanto meu pai sonhava com um barco — era o que mais desejava naquela época — por duas vezes, fora com ele a marinas, ao longo do lago Rei George e do lago Passeeonkee, em tardes ensolaradas de verão. Perguntava o preço dos iates menores e eu vira um brilho cobiçoso em seus olhos. Agora, começava a entender. Estavam fora do nosso alcance. Sua vida talvez tivesse tomado um rumo diverso se ele não tivesse de pensar em uma universidade para os filhos, por exemplo.
— E você recusou? — perguntei. Meu pai deu de ombros.
— Já no início da conversa, deixei bem claro que não queria dançar. Antes de mais nada, porque isso significaria envolver-me mais com ele em nível pessoal e, como disse, considerava-o um trapaceiro. Por outro lado, tais sujeitos são fundamentalmente ignorantes no tocante a números, um dos motivos pelos quais muitos deles foram apanhados por sonegação de impostos. Eles acham que a gente pode camuflar um rendimento ilegal. Estão certos disso. — Papai riu. — Enfiaram na cabeça essa idéia mística de que podemos lavar dinheiro como lavamos roupas, quando tudo quanto podemos realmente fazer é um malabarismo, até que isso desmorone e nos caia na cabeça.
— Foram esses os motivos?
— Dois ou três deles. — Papai me fitou dentro dos olhos. — Não sou nenhum maldito trapaceiro, Dennis.
Houve um momento de instantânea comunicação entre nós — ainda agora, quatro anos mais tarde, fico arrepiado ao pensar nisso, embora não possa afirmar que sou capaz de transmitir a vocês a sensação. Não porque ele me tratasse como igual aquela noite, pela primeira vez; não porque estivesse me mostrando o ansioso cavaleiro errante, ainda escondido dentro do homem que, de cabeça baixa, lutava pela vida em um mundo sujo e desonesto. Creio que o percebia como uma realidade, alguém que existia muito antes de minha chegada ao palco, uma pessoa que tivera sua ração de sofrimento. Nesse momento, acho que poderia tê-lo imaginado fazendo amor com minha mãe, ambos suados e esforçando-se pelo final — e não ficaria embaraçado.
Então ele baixou os olhos, esboçou um sorriso defensivo e fez aquela voz seca e vigorosa de Nixon, uma imitação em que era muito bom:
— Vocês merecem saber se seu pai é um trapaceiro. Bem, eu não sou um trapaceiro, podia ter aceitado o dinheiro, mas isso... ha-rrrã... teria sido errado.
Ri alto demais, uma liberação da tensão — e senti o momento passar; embora parte de mim não o desejasse, a outra parte queria isso era demasiado intenso. Penso que ele devia sentir o mesmo.
— Pssst! Vai acabar acordando sua mãe e ela fará o diabo conosco, por ficarmos acordados até tão tarde.
— Desculpe. Escute, papai, você sabe em que ele está metido? Estou falando de Darnell.
— Naquele tempo eu não sabia e nem queria saber, porque então seria uma parte da coisa. Tinha minhas idéias e ouvi algumas coisas. Carros roubados, imagino. Não que Darnell os tenha levado para aquela garagem da Hampton Street; ele não é totalmente imbecil, e só mesmo um idiota sujaria o prato onde come. Talvez esteja também envolvido em contrabando.
— Armas e munições? — perguntei, em voz algo rouca.
— Nada tão romântico. Se eu fosse capaz de adivinhar, diria que principalmente cigarros... cigarros e bebidas, os dois velhos e infalíveis produtos. O contrabando é como um delírio. Talvez um carregamento de fornos de microondas ou televisões coloridas, de vez em quando, se o risco for baixo. O suficiente para mantê-lo ocupado durante tantos anos.
Papai me fitou com ar grave.
— Ele tem enfrentado bem os riscos e teve sorte por muito tempo, Dennis. Bem, nesta cidade, talvez não precisasse realmente de sorte. Se tudo fosse exatamente como em Lybertyville, acho que ele poderia continuar para sempre ou, pelo menos, até cair morto com um ataque do coração, mas os rapazes dos impostos estaduais são cações, enquanto os federais são as grandes baleias brancas. Ele teve sorte, mas qualquer dia os agentes vão cair em cima dele, como a Grande Muralha da China.
— Você... você soube de alguma coisa?
— Nem um sussurro. Aliás, não estou em posição de saber nada. Acontece, apenas, que gosto muito de Arnie Cunningham e sei que você anda preocupado com essa história do carro.
— Certo. Ele está... bem, ele não está se portando com muita lucidez com relação a isso, papai. Tudo para Arnie é o carro, o carro, o carro.
— Pessoas sem muitas chances tendem a agir assim — disse ele. — Às vezes é um carro, em outras uma namorada, uma carreira ou instrumento musical, quando não, uma obsessão doentia por alguma figura famosa. Tive um colega alto e feio, a quem chamávamos de Cegonha. Com Cegonha, foi o trenzinho elétrico. Ele foi apaixonado por trenzinhos desde o segundo grau, e seu conjunto era quase a oitava maravilha do mundo. Ele deixou Brown no segundo semestre de seu ano de calouro. Estava com notas péssimas, e teve que escolher entre o colégio e seus trens Lionel. Cegonha preferiu os trens.
— O que aconteceu com ele?
— Matou-se em 1961 — disse meu pai e levantou-se. — Minha opinião é que pessoas decentes às vezes podem ficar cegas e nem sempre por culpa delas. Talvez Darnell acabe deixando Arnie de lado. Passará a vê-lo apenas como outro cara qualquer, escorregando para baixo de seu carro em um deslizador. Entretanto, se Darnell tentar usá-lo, olhe por ele, Dennis. Não o deixe ser puxado para a dança.
— Está bem, vou tentar, mas talvez não possa fazer grande coisa.
— Hum-hum. Sei disso muito bem. Vai subir?
— Claro.
Subimos e, embora cansado como estava, fiquei muito tempo acordado. Aquele fora um dia movimentado. Lá fora, um vento noturno agitava suavemente um ramo contra o lado da casa e, muito distante, no centro da cidade, ouvi garotos fazendo chiar os pneus no asfalto um som que, dentro da noite, assemelhava-se ao gargalhar desesperado de uma mulher histérica.
Ele soube de um casal
vivendo nos EUA,
Contou que eles trocaram seu bebê por um Chevrolet:
Falemos agora do futuro,
Esqueçamos o passado...
— Elvis Costello
Entre trabalhar durante o dia no projeto da construção da estrada e trabalhar em Christine à noite, Arnie não estivera muito tempo com seus pais. As relações haviam ficado bastante tensas e desgastantes. O lar dos Cunningham, que sempre fora agradável e relaxante no passado, agora era um campo armado. Esta é uma situação que muita gente lembra de sua adolescência, imagino; talvez, gente demais. O adolescente é egoísta bastante para considerar-se a primeira pessoa do mundo a descobrir certa coisa em particular (geralmente é uma garota, mas nem sempre tem que ser assim), e os pais são demasiado broncos e possessivos, têm medo de soltar o cabresto. Ambos os lados pecam. Algumas vezes, isso se torna doloroso e ultrajante — nenhuma guerra é tão suja e amarga como uma guerra civil. Tal situação era particularmente penosa no caso de Arnie, porque a separação acontecera muito tarde, seus pais já estavam demasiado acostumados a manejar tudo à sua maneira. Não seria injusto afirmar que haviam programado a vida do filho.
Assim, quando Regina e Michael propuseram um fim de semana de quatro dias em sua casa do lago, ao norte do Estado de Nova Iorque, antes do reinicio das aulas, Arnie concordou, embora desejasse ardentemente aqueles últimos quatro dias para trabalhar em Christine. Passando cada vez mais horas trabalhando, ele me contara como ia "mostrar a eles", ia transformar Christine em um carro de verdade e "mostrar a todos eles". Já planejara restaurar o vermelho brilhante e marfim original do Plymouth, após terminado o trabalho na carroceria.
Contudo, lá se foi com os pais, determinado a ser obediente e afável durante aqueles quatro dias inteiros e divertir-se com eles — em um fac-símile racional. Apareci em sua casa, na véspera de partirem, e fiquei aliviado ao perceber que ambos me tinham absolvido de culpa no assunto do carro de Arnie (que ainda não tinham nem mesmo visto). Aparentemente, haviam decidido ser aquilo uma obsessão particular. Para mim, foi ótimo.
Regina estava ocupada, fazendo as malas. Ajudei Arnie e Michael a amarrarem sua velha canoa Oldtown na capota do Scout, o carro da família. Terminado o trabalho, Michael sugeriu ao filho — com o ar de um rei poderoso, concedendo um favor quase inacreditável a dois de seus vassalos favoritos — que ele entrasse e pegasse algumas cervejas para nós.
Fingindo a expressão e o tom de admirada gratidão, Arnie respondeu que seria formidável. Ao afastar-se, piscou-me um olho.
Michael recostou-se contra o Scout e acendeu um cigarro.
— Arnie já está se cansando dessa história do carro, Dennis?
— Não sei — respondi.
— Quer me fazer um favor?
— Claro, se eu puder — respondi cauteloso.
Tinha certeza de que ele me pediria para procurar Arnie, bancar o conselheiro e tentar convencê-lo a "parar com aquilo". No entanto, ele disse:
— Se tiver tempo, vá até a Darnell's enquanto estivermos fora e veja que tipo de progresso ele está fazendo. Fiquei interessado.
— Por que esse interesse?
Mal fiz a pergunta, pensei imediatamente que fora bastante rude, mas era tarde demais.
— Porque desejo que ele seja bem-sucedido — disse Michael com simplicidade e olhou para mim. — Oh, Regina continua absolutamente contrária a isso. Se Arnie tiver um carro, significa que está crescendo. E, se está crescendo, isso significa... bem, toda uma série de coisas — terminou ele, desajeitadamente. — Você poderia considerar-me também contra essa história, porém isso foi antes. Claro, a princípio ele me pegou de surpresa.... Tive visões de uma lata-velha estacionada diante de nossa casa, até Arnie ir para a universidade, ou dele asfixiando-se até a morte com o cano de descarga, qualquer noite.
O pensamento de Verônica LeBay saltou em minha cabeça, involuntariamente.
— Agora, no entanto... — Michael deu de ombros, olhou para a porta entre a garagem e a cozinha, deixou o cigarro cair e o esmagou com o salto. — Ele está visivelmente empenhado. Adquiriu um senso de respeito próprio nesse assunto. Eu gostaria de, pelo menos, vê-lo pôr o carro rodando.
Talvez ele percebesse algo em meu rosto, porque ao prosseguir, o tom era defensivo.
— Não esqueci inteiramente o que significa ser jovem — disse. — Sei que um carro é importante para um rapaz como Arnie. Regina é que não consegue ver isso tão claramente. Sempre teve a primeira e última palavra e não se conforma em ser passada para trás. Recordo que um carro é importante... se um rapaz tem que sair com garotas.
Então, era assim que ele pensava. Encarava Christine como o meio para uma finalidade, não a própria finalidade. Perguntei-me o que pensaria, se lhe contasse que a única idéia de Arnie era colocar aquele Fury rodando e legalizado. Perguntei-me, também, se isso não o deixaria um tanto ou quanto inquieto.
Ouvimos o baque da porta da cozinha ao se fechar.
— Você daria uma espiada?
— Está bem — respondi. — Se é o que você quer.
— Obrigado.
Arnie voltava com as cervejas.
— O que estava agradecendo? — perguntou a Michael.
Falava em tom jovial e despreocupado, mas seus olhos se moveram entre nós com rapidez, desconfiadamente. Tornei a reparar que sua pele estava ficando muito melhor e que seu rosto parecia ter-se revigorado. Pela primeira vez, Arnie e garotas foram dois pensamentos que não me pareceram mutuamente excludentes. Ocorreu-me que Arnie tinha um rosto quase atraente, não como o de um peitudo salva-vidas, rei-do-baile-estudantil, porém de um modo diferente, interessante e suave. Ele jamais seria o tipo de Roseanne, mas...
— Por ele ajudar com a canoa — disse Michael, com naturalidade.
— Ah.
Bebemos nossas cervejas e depois fui para casa. No dia seguinte, o feliz trio partiu para Nova Iorque, presumidamente a fim de redescobrir a unidade familiar, perdida durante o último terço daquele verão.
Um dia antes de eles voltarem, fui de carro até a garagem de Darnell — tanto para satisfazer minha curiosidade como a de Michael Cunningham.
Situada à frente do depósito de carros velhos, este do comprimento do quarteirão, a garagem parecia tão atraente à luz do dia, como na noite em que havíamos trazido Christine — tinha todo o encanto de uma ratazana morta.
Estacionei em uma vaga diante da loja de acessórios que pertencia também a Darnell — muito bem provida de peças, como cabeçotes Feully, caixas de mudança Hurst e supercompressores Ram-Jett (para todos aqueles trabalhadores que precisavam manter seus velhos carros rodando a fim de poderem pôr pão na mesa, sem dúvida), para não mencionar uma vasta seleção de compactos pneus e uma imensa variedade de calotas especiais. Espiar pela janela da loja de acessórios para alta velocidade de Darnell era como observar uma louca Disneylândia automotiva.
Afastei-me dali e cruzei o piso alcatroado para a garagem e para os sons ruidosos de ferramentas, gritos, rajadas de metralhadoras das chaves de boca pneumáticas. Um indivíduo de aparência desmazelada, com uma surrada jaqueta de couro, estava às voltas com uma velha bicicleta, junto a um dos boxes da garagem, desmontando a tubuladora ou tornando a montá-la. Havia um fundo arranhão interrompido, descendo por sua face esquerda. As costas da jaqueta do sujeito exibiam uma caveira' usando uma boina verde e o fascinante lema MORRAM TODOS ELES E QUE DEUS OS DIVIDA.
Fitou-me com olhos injetados de sangue, como um lunático Rasputin, depois voltou a atenção para o que fazia. As ferramentas à sua volta se dispunham em ordenação cirúrgica, havendo em cada uma, estampadas a tinta, as palavras DARNELL'S GARAGE.
Lá dentro, o mundo se enchia do barulho reverberante e evocativo de ferramentas e do som de homens trabalhando nos carros, gritando palavrões para aquele em que trabalhavam. Sempre os palavrões e sempre do gênero feminino: "Vamos, sua filha da puta", "Afrouxe, sua cona", "Venha cá, Rick, e me ajude a tirar fora esta racha".
Olhei em torno, procurando Darnell, mas não o vi em parte alguma. Ninguém prestou muita atenção em mim, de maneira que caminhei até o boxe vinte, onde estava Christine, agora apontando o focinho para fora, como se tivesse todo o direito de estar ali. No boxe à direita, dois caras gordos, ambos vestindo camisas da associação de boliche, estavam colocando um toldo na carroceria de uma camioneta pickup, que já vira dias melhores. O boxe do outro lado estava deserto.
Quando me aproximei de Christine, senti que voltava aquele arrepio. Não havia motivos para isso, mas era impossível controlá-lo — e, sem pensar, movi-me um pouco para a esquerda, em direção ao boxe vazio. Não queria ficar na frente dela, de Christine.
Meu primeiro pensamento foi de que a pele de Arnie havia melhorado ao mesmo tempo que a de Christine. O segundo, que ele estava fazendo seus melhoramentos de modo curiosamente ao acaso... quando, em geral, meu amigo costumava ser muito metódico.
A antena empenada e caída fora substituída por uma nova e retilínea, que cintilava à luz das lâmpadas fluorescentes. Metade da grade do radiador do Fury havia sido trocada; a outra metade continuava amassada e salpicada de ferrugem. Havia também algo mais...
Caminhei ao longo do lado direito do carro, até o pára-choque traseiro, com o cenho franzido.
Bem, era no outro lado, sem dúvida, pensei.
Assim, dei a volta pelo outro lado, mas também não estava lá.
Fiquei em pé junto à parede dos fundos, ainda de cenho franzido, procurando lembrar. Estava absolutamente certo de que quando vira aquele carro no gramado de LeBay, com um aviso À VENDA colado ao pára-brisa, havia um amassado enferrujado, de bom tamanho, em um ou outro lado do veículo, perto da traseira — a espécie de marca de batida funda que meu avô sempre chamava de "coice de mula". Estávamos rodando ao longo da estrada de pedágio, quando passamos por um carro com um amassado enorme em alguma parte da lataria. Vovô então disse: "Ei, Denny, dê uma espiada naquilo! Foi um coice de mula!". Meu avô era do tipo que sempre tem uma frase pronta para tudo.
Comecei a pensar que imaginara aquilo e abanei a cabeça de leve. Aquilo era uma idéia sem sentido. O amassado estivera lá, podia recordá-lo perfeitamente. Só porque não estava agora, não significava que nunca estivera antes. Sem dúvida, Arnie fizera uma lanternagem no local, uma excelente lanternagem, para fazê-lo desaparecer.
Exceto que...
Bem, não havia o menor sinal de que ele houvesse feito qualquer coisa ali. No lugar não havia pintura, nenhuma massa cinzenta para nivelar a superfície da lataria, qualquer mancha de tinta. Apenas o vermelho opaco e o branco sujo de Christine.
No entanto, havia um maldito amassado ali! Um amassado fundo e coberto de poeira, em um ou outro lado do carro.
De qualquer modo, ele agora desaparecera.
Fiquei ali, entre a barulheira ensurdecedora de ferramentas e maquinismos, sentindo-me muito solitário e, de repente, muito assustado. Estava tudo errado, tudo louco. Ele substituíra a antena do rádio, quando o cano de descarga praticamente se arrastava pelo chão. Substituíra metade do radiador, mas não a outra. Falara comigo sobre um conserto geral na traseira, mas dentro do carro; substituíra o rasgado e empoeirado estofamento do banco de trás por um outro, novo e brilhante. O estofamento do banco dianteiro continuava um destroço empoeirado, com uma mola assomando para fora, no banco do passageiro.
Não gostei daquilo nem um pouco. Era loucura, sem nenhum traço da meticulosidade de Arnie.
Algo me acudiu à mente, uma lembrança fugaz e, sem mesmo analisá-la, fiquei atrás do carro e olhei para todo ele — não apenas para um detalhe aqui e outro acolá, mas abrangendo tudo. Então, consegui: tudo se encaixava no lugar e o arrepio voltou.
Aquela noite, quando tínhamos levado Christine para a garagem. O pneu arriado. A substituição. Eu olhara para o pneu novo no carro velho e havia pensado que um pouquinho daquela velhice toda fora retirada, que o automóvel novo — recente, cintilante, acabado de sair da linha de montagem, em um ano quando Ike ainda era presidente e Batista continuava mandando em Cuba — reaparecia um pouquinho, através daquele pneu.
O que eu via agora era mais ou menos isso... só que, em vez de um mero pneu novo, havia todos os tipos de coisas — a antena, a grade do radiador cintilando pela metade, um lado traseiro em reluzente vermelho-escuro, aquele novo estofamento no banco de trás.
Por sua vez, isto me fez recordar algo da infância. Eu e Arnie freqüentávamos a Escola Bíblica de Férias durante uma quinzena a cada verão e, todos os dias, a professora contava uma história da Bíblia, deixando-a por terminar. Então, ela dava a cada garoto uma folha em branco de "papel mágico". Quando a gente passava a borda de uma moeda ou o lado do lápis sobre o papel, de sua brancura ia gradualmente emergindo uma ilustração — a pomba trazendo o ramo de oliveira para Noé, as muralhas de Jerico desmoronando, coisas milagrosas assim. Aquilo nos deixava fascinados, vendo as ilustrações irem surgindo pouco a pouco. A princípio, apenas linhas flutuando no vazio... depois, essas linhas se ligavam a outras... ganhavam coerência... ganhavam significado.
Olhei para a Christine de Arnie com crescente horror, tentando afugentar a sensação de que, nela, via algo terrivelmente similar àquelas mágicas frustrações de milagres.
Tive vontade de espiar debaixo do capô.
De repente, parecia muito importante espiar o que havia lá.
Caminhei para a frente do carro (não queria ficar diante dele, não havia um bom motivo para isso, apenas eu não queria) e remexi no capô, em busca do trinco. Não consegui abri-lo. Então, percebi que devia estar dentro do carro.
Comecei a dar a volta, quando vi algo mais, algo que me deixou mais assustado ainda. Eu podia estar enganado sobre o coice de mula. Sabia que não estava mas, pelo menos tecnicamente..
Só que isto era completamente outra coisa.
A teia de aranha das rachaduras no pára-brisa diminuíra.
Estava positivamente menor.
Minha mente recuou até o dia, um mês atrás, quando eu perambulara pela garagem de LeBay, a fim de dar uma espiada no carro, enquanto Arnie entrava na casa para fechar negócio com o velho. Todo lado esquerdo do pára-brisa era uma imensa teia de aranha de rachaduras, que se espraiavam de uma ziguezagueante fenda central, provavelmente causada por uma pedrada.
Agora, a teia de aranha parecia menor e mais simples — por aquele lado, era possível enxergar-se dentro do carro, o que eu não pudera fazer antes, tinha certeza (apenas uma ilusão devido à luz, eis tudo, cochichou minha mente).
No entanto, eu tinha que estar enganado — porque isso era impossível. A gente substitui um pára-brisa, isto não é problema, havendo dinheiro para a despesa. No entanto, fazer uma teia de aranha de rachaduras encolher...
Ri um pouco. Era um som trêmulo, e um dos sujeitos que trabalhava com a lona da camioneta olhou para mim com curiosidade, em seguida comentando algo com o companheiro. Era um som trêmulo, porém talvez melhor do que nenhum som. Claro que era a luz nada mais. Eu vira o carro, pela primeira vez, com o sol brilhando em cheio sobre o pára-brisa estilhaçado e o vira, pela segunda vez, nas sombras da garagem de LeBay. Via-o, agora, sob a luz fluorescente daqueles tubos colocados muito no alto. Três momentos diferentes e, tudo somado, traduzia-se em uma ilusão de ótica.
Ainda assim, eu queria olhar debaixo do capô. Mais do que nunca.
Cheguei até o lado do motorista e sacudi a porta. Ela não se abriu. Estava trancada. Claro que estava: via abaixados todos os quatro botões que trancavam as portas. Arnie não deixaria seu carro aberto ali, para que alguém chegasse e ficasse remexendo em tudo. Repperton podia ter ido embora, mas a espécie sordidus é uma erva daninha comum. Tornei a rir. O tolo e velho Dennis — mas agora meu riso soou ainda mais agudo e trêmulo. Eu começava a sentir-me aéreo, como me sentia às vezes de manhã, após ter fumado um pouco de erva além da conta.
Trancar as portas do Fury era uma atitude muito natural, claro. Exceto que, ao dar a volta ao carro pela primeira vez, julguei perceber levantados todos os botões que fechavam as portas.
De novo, caminhei lentamente para a traseira do carro. Aquela velharia, pouco mais que uma carcaça enferrujada. Eu não pensava em nada específico — tenho certeza disso — exceto, talvez, que era como se Christine soubesse que eu queria entrar e puxar a alavanca de liberação do capô.
Então, por não querer que eu entrasse, o carro trancara as próprias portas?
Francamente, era uma idéia hilariante. Tão hilariante que tomei a rir (várias pessoas agora olhavam para mim, de maneira como os outros sempre olham para quem está sozinho e ri, sem qualquer motivo aparente).
Foi quando aquela mão enorme caiu em meu ombro e me fez girar. Era Darnell, com um toco apagado de charuto enfiado no meio da boca. A outra extremidade estava molhada, com uma aparência lamentável. Ele usava pequenos óculos com lentes até a metade, e os olhos atrás delas eram friamente especulativos.
— O que está fazendo, garoto? — perguntou. — Isto aqui não é seu.
Os caras da camioneta olhavam avidamente para nós. Um deles cutucou o outro e sussurrou algo.
— É de um amigo meu — respondi. — Eu o trouxe para cá com ele. Talvez se lembre de mim. Eu era aquele com o enorme tumor na ponta do nariz e o...
— Pouco me importa se vocês trouxeram o carro para cá em um skate— disse ele. — Não lhe pertence. Guarde suas piadas sem graça e dê o fora, garoto. Caia fora daqui!
Meu pai estava certo — ele era um miserável. E eu ficaria mais do que feliz em dar o fora dali; podia pensar em seis mil lugares, pelo menos, onde preferiria estar, naquela antevéspera do fim das férias de verão. A própria Caverna Negra, em Calcutá, seria superior. Não muito, mas sempre superior. No entanto, o carro me perturbava. Um monte de coisinhas que, somadas, formavam uma baita erupção que precisava ser coçada. Olhe por ele, meu pai dissera, e fora um bom conselho. O problema é que eu não conseguia- acreditar no que via.
— Meu nome é Dennis Guilder — falei. — Meu pai já fez sua contabilidade, não foi?
Ele me fitou por um tempo imenso, sem qualquer expressão em seus olhinhos de porco. De repente, tive a impressão de que ia dizer que pouco se lixava quem fosse meu pai, que era melhor eu dar o fora dali e deixar que aqueles homens continuassem consertando seus carros para poderem continuar pondo pão em suas mesas. Et cetera.
Então, Darnell sorriu, mas o sorriso nem tocou seus olhos.
— Você é o filho de Kenny Guilder?
— Sou eu mesmo.
Ele deu tapinha no capô do carro de Arnie com uma gorda e pálida mão — havia dois anéis nos dedos e um deles parecia um diamante de verdade. No entanto, o que pode saber um garoto como eu?
— Sendo assim, acho que tudo está bem com você. Se for o filho de Kenny. Por um segundo, pensei que ele ia pedir minha identidade.
Os dois sujeitos do lado voltaram a trabalhar em sua camioneta e, aparentemente, decidiram que nada mais transpiraria de interessante.
— Vamos até o escritório, conversar um pouco — disse ele.
Virou-se e começou a caminhar, sem ao menos olhar para trás. Parecia certo de que eu o seguiria. Caminhava como um barco de velas enfunadas, a camisa branca esvoaçando, com uma circunferência impressionante de quadris e costas, inverossímil. Muitas pessoas gordas sempre me afetam dessa maneira, com nítida impressão de inverossimilhança, como se eu estivesse olhando para uma fantástica ilusão de ótica. Acontece, no entanto, que provenho de uma longa linha de pessoas magras. Para minha família, sou um peso-pesado.
Darnell fez uma pausa aqui e ali, a caminho de seu escritório, o qual tinha uma parede envidraçada, dando para o interior da garagem. Fazia-me recordar ligeiramente o deus Moloch, sobre quem havia lido em minha aula de Origens de Literatura — era o deus que se supunha capaz de ver tudo, com seu único olho vermelho. Darnell gritou para um sujeito colocar o silencioso em seu cano de descarga, antes que ele o expulsasse dali; gritou para outro indivíduo algo sobre como "as costas de Nicky o estavam atrapalhando novamente" (isto provocou uma série de ferozes e ruidosas gargalhadas dos dois); berrou para outro que ajuntasse aquelas fodidas latas de Pepsi-Cola, será que ele nascera em um monturo de lixo? Aparentemente, Will Darnell nada sabia sobre o que minha mãe sempre denominava "um tom normal de voz".
Eu hesitei por um momento, mas depois o segui. Acho que a curiosidade matou o gato.
O escritório dele era em estilo Primitivo Carburador Americano, uma cópia de todo infecto escritório de garagem, de costa a costa, em um país que corre sobre borracha e ouro ambarino. Havia um calendário sebento com uma deusa loura em shorts curtíssimos e blusa aberta, trepada em uma cerca, no campo. Havia placas ilegíveis de meia dúzia de companhias que vendiam peças para carros. Pilhas de livros de contabilidade. Uma antiga máquina de somar. Havia uma foto — que Deus nos perdoe! — de Will Darnell usando um fez e montado em uma motocicleta miniatura, que parecia quase arriada sob seu corpo volumoso. Havia ainda o cheiro de charutos há muito usados e de suor.
Darnell sentou-se em uma cadeira giratória, com braços de madeira. A almofada gemeu debaixo dele, com um som cansado, mas conformado. Ele se reclinou para trás. Tirou um fósforo da cabeça oca de um jóquei negro de cerâmica. Depois o riscou em uma tira de lixa que cobria uma beirada da mesa e acendeu com ele o toco de charuto. Tossiu, fundo e demoradamente, o peito largo e flácido sacudindo-se para cima e para baixo. Diretamente atrás dele, pregado à parede, havia um quadro de Garfield, o Gato. "Quer uma viagem para a Cidade de Dentes Frouxos?", perguntava Garfield, sobre uma pata erguida. Aquilo parecia uma perfeita síntese de Will Darnell: Miserável na Residência Oficial.
— Quer uma Pepsi, garoto?
— Não, obrigado — falei.
Sentei-me na cadeira de espaldar reto, oposta a ele. Darnell olhou para mim — novamente aquele olhar frio e calculista — e então assentiu.
— Como vai seu pai, Dennis? Continua às voltas com a Bolsa?
— Vai muito bem. Quando lhe contei que Arnie trouxera o carro para cá, ele logo se lembrou do senhor. Disse que Bill Upshaw é que faz sua contabilidade agora.
— Hum-hum. Um bom homem. Um bom homem. Não tanto quanto seu pai, mas bom.
Assenti. Um silêncio caiu entre nós e comecei a sentir-me inquieto. Will Darnell não parecia pouco à vontade, não olhava para nada em particular. Aquele frio olhar de apreciação nunca mudava.
— Seu companheiro o mandou aqui para descobrir se Repperton foi mesmo embora? — perguntou ele, tão de repente, que me sobressaltei.
— Não — respondi. — De maneira nenhuma.
— Bem, diga a ele que foi mesmo embora — prosseguiu Darnell, ignorando o que eu acabara de dizer. — Um burro metido a sebo. Sempre digo a eles, quando vêm com seu lixo para cá: andem na linha ou caiam fora. Ele trabalhava para mim, fazendo um pouquinho disto e um pouquinho daquilo, mas talvez tenha pensado que era dono da chave de ouro para a privada ou coisa assim. Um sabe-tudo novato.
Ele começou a tossir novamente e demorou muito a parar o acesso de tosse. Era um som doentio. Eu começava a sentir claustrofobia, confinado naquele escritório, mesmo com a janela se abrindo para a garagem.
— Arnie é um bom rapaz — disse Darnell finalmente, ainda me avaliando com os olhos. Mesmo quando tossia, a expressão não mudava. — Ele se vira muito bem. Sabe fazer as coisas.
Fazer o quê? Eu quis perguntar, mas faltou coragem.
Darnell acabou contando. Excetuando-se o olhar frio, aparentemente ele se sentia expansivo.
— Ele limpa o chão, recolhe a tralha dos boxes da garagem no fim do dia, mantém as ferramentas inventariadas, juntamente com Jimmy Sykes... Preciso ter muito cuidado com as ferramentas por aqui, Dennis. Elas costumam fugir quando viro as costas. — Ele riu e sua risada transformou-se em um chiado. — Botei o Arnie também desmontando peças, lá nos fundos. O garoto tem boas mãos. Boas mãos e mau gosto para carros. Há anos não vejo uma carcaça pior do que aquele 58.
— Acho que Arnie o encara como um passatempo — comentei.
— Claro — disse Darnell, expansivamente. — Claro que sim. Até o dia em que não quiser bancar o mandão com aquilo, aqui dentro. Como aquele imbecil, aquele Repperton. Bem, acho que não há muita possibilidade disso por algum tempo, hein?
— Penso que não. Aquele carro está um bocado ruim.
— Que merda ele pretende fazer? — perguntou Darnell. Inclinou-se para diante, subitamente, os ombros enormes subindo até a raiz dos cabelos. Franziu as sobrancelhas e os olhos desapareceram, exceto por dois pequenos botões gêmeos. — Que merda ele pretende? Estive metido nesse ramo a vida inteira e nunca vi ninguém consertar um carro da maneira louca como ele está fazendo. Uma piada? Uma brincadeira?
— Não estou entendendo — falei, embora estivesse, e perfeitamente bem.
— Pois eu lhe dou a dica — replicou Darnell. — O garoto traz o carro para cá e, a princípio, faz nele tudo o que eu esperava que fizesse. Que diabo, ele não tem dinheiro escapando pelo traseiro, certo? Se tivesse, não estaria aqui. Ele troca o óleo. Muda o filtro. Graxa, lubrificante, um dia vi os dois Firestones novos que ele trouxe para as rodas dianteiras, a fim de combinarem com as duas traseiras.
Duas traseiras? Fiz a pergunta a mim mesmo e então concluí que ele comprara três pneus novos, para combinarem com o original que eu lhe levara, na noite em que trazíamos Christine para a garagem.
— Então, um belo dia chego aqui e vejo que ele substituiu os limpadores de pára-brisa — continuou Darnell. — Nada estranho, exceto que o carro não irá a lugar nenhum, com chuva ou com sol, durante muito tempo. Depois, uma antena nova para o rádio e pensei: ele vai ficar ouvindo o rádio enquanto trabalha, arriando a bateria. Agora, o garoto me vem com um novo assento coberto e metade da grade do radiador. Afinal, o que significa tudo isto? Uma brincadeira?
— Não sei — respondi. — Ele comprou as peças de reposição com o senhor?
— Não — disse Darnell, parecendo ofendido. — Não sei onde as conseguiu. Aquela grade... não tem nem sinal de ferrugem! Ele deve ter encomendado de algum lugar. Da Custom Chrysler, em Nova Jersey, ou outro lugar semelhante. Só que... e a outra metade? Enfiada em seu rabo? Nunca ouvi falar de uma grade para radiador que chegasse em duas partes.
— Não sei de nada. Sinceramente. Ele esmagou o toco do charuto.
— E não me venha dizer que não está curioso. Via a maneira como olhava para aquele carro. Dei de ombros.
— Arnie não fala muito sobre ele — respondi.
— Oh, não, aposto como não fala. É um filho da mãe de boca fechada. No entanto, é um batalhador. Aquele Repperton apertou o botão errado, quando se meteu com Cunningham. Se trabalhar legal este outono, posso arranjar-lhe um emprego fixo para este inverno. Jimmy Sykes é um bom garoto, mas não muito chegado ao departamento cerebral. — Seus olhos me avaliaram. — Acha que ele é bom trabalhador, Dennis?
— Arnie é legal.
— Tenho um bocado de carros no fogo — comentou ele. — Um bocado. Alugo caminhões sem grades na carroceria para sujeitos que precisam transportar seus carrões envenenados até Filadélfia. Recolho a tralha depois das corridas. Estou sempre necessitando de gente nesse negócio. Bem, gente de confiança.
Comecei a ter a desagradável suspeita de que estava sendo convidado a dançar. Levantei-me precipitadamente, quase derrubando a cadeira.
— Tenho mesmo que ir andando — falei. — E... Sr. Darnell... ficaria muito grato se não dissesse a Arnie que estive aqui. Ele é... um pouco suscetível sobre o carro. Para ser franco, seu pai andava curioso e queria saber como ele está se saindo.
— O garoto tirou um monte de bosta da porta de casa, não foi? — O olho direito de Darnell se fechou astutamente em algo que não era bem uma piscadela. — Seus velhos engolem alguns quilos de laxativo e depois ficam em cima dele, de pernas bem abertas, não é assim?
— Bem... o senhor sabe como é.
— Pode apostar que sei.
Ele se levantou em um movimento flexível e bateu em minhas costas, com força bastante para fazer-me vacilar sobre os pés. Com ou sem respiração chiada e tosse, ele era um sujeito forte.
— Não direi nada — prometeu, caminhando comigo até a porta.
Sua mão continuava em meu ombro, o que me deixava nervoso e também um pouco irritado.
— Quero lhe confessar uma coisa que também me preocupa — falou. — Devo ver uns cem carros por aqui, a cada ano... bem, não tantos, mas entende o que quero dizer, e preciso ficar de olho neles. Pois quase juraria que já vi aquele antes. Quando não era a velharia que está agora. Onde foi que o garoto o conseguiu?
— Com um homem chamado Roland LeBay — respondi, pensando no irmão de LeBay, ao me contar que ele próprio fazia a manutenção, em alguma garagem do tipo faça-você-mesmo. — Está morto agora.
Darnell estacou subitamente.
— LeBay? Rollie LeBay?
— Isso mesmo.
— Do Exército? Reformado?
— Exato.
— É isso mesmo, raios! Durante seis, talvez oito anos, ele trouxe o carro para cá, tão regular como um relógio. Depois parou de vir. Isso foi há muito tempo. Aquele sujeito era um filho da puta. Se a gente despejasse água fervendo por sua maldita garganta abaixo, ele mijaria cubos de gelo. Não se dava com ninguém. — Darnell apertou meu ombro com mais força. — Seu amigo Cunningham sabe que a mulher de LeBay suicidou-se naquele carro?
— É mesmo? — exclamei, fingindo surpresa.
Eu não queria deixá-lo saber que meu interesse fora suficiente para procurar o irmão de LeBay, após o funeral. Receava que Darnell pudesse repetir a informação para Arnie — completa, com a fonte. Darnell me contou a história toda. Primeiro a filha, depois a mãe.
— Poxa! — tornei a exclamar, quando ele terminou. — Tenho certeza de que Arnie não sabe disso. Vai contar a ele?
Aquele olhar avaliador novamente.
— Você vai?
— Não — respondi. — Não vejo motivos para contar.
— Nem eu. — Ele abriu a porta, e o ar cheirando a graxa pareceu quase purificado, depois da fumaça de charuto no escritório. — Aquele filho da puta do LeBay, maldito seja! Espero que esteja oferecendo a face direita e depois a esquerda lá no inferno. E dando o traseiro. — Sua boca se encurvou perversamente por um instante e depois ele olhou na direção do boxe vinte, onde repousava Christine com sua velha pintura enferrujada, a antena e metade da grade do radiador reluzindo de novas.
— Essa cadela aqui outra vez — continuou ele, e então olhou para mim. — Bem, dizem que o centavo falso sempre aparece, não é?
— Sim, acho que dizem — respondi.
— Até logo, garoto — disse, enfiando um novo charuto na boca. — Diga alô a seu pai por mim.
— Eu direi.
— E diga a Cunningham para ficar de olho naquele traste do Rupperton. Tenho a impressão de que ele não aceita fácil uma derrota.
— Eu também — falei.
Saí da garagem, parando uma vez a fim de olhar para trás — contudo, vista da claridade, Christine era pouco mais do que uma sombra entre sombras. O centavo falso sempre aparece, tinha dito Darnell. Fui para casa com aquela frase na cabeça.
Aprender a tocar saxofone,
Só tocar o que eu gostar,
Beber uísque escocês
A noite inteira
E morrer atrás do volante...
— Steely Dan
As aulas começaram, e nada de importante aconteceu por uma semana ou duas. Arnie não soube que eu estivera na garagem, o que me alegrou, pois não creio que aceitasse a notícia com muita satisfação. Darnell ficou de boca fechada, como prometera (talvez por questões pessoais). Telefonei para Michael certa tarde, depois das aulas, sabendo que Arnie já teria ido para a garagem, e lhe contei que ele fizera alguma coisa no carro, mas que este ainda estava longe de poder andar legalmente pelas ruas. Comentei minha impressão de que seu filho apenas procurava distrair-se na garagem. Michael acolheu as notícias com um misto de alívio e surpresa. Isto encerrou a questão... por algum tempo.
Eu via Arnie de vez em quando, assim como algo que entra em nosso campo visual, pelo canto do olho. Ele perambulava pelos corredores, tínhamos aulas de três matérias juntos e, por vezes, aparecia lá em casa, depois das aulas ou nos fins de semana. Em certas ocasiões, parecia que nada mudara realmente, porém Arnie ficava mais tempo na Darnell's do que em minha casa, e seguia para Philly Plains — a pista de corridas para automóveis — nas noites de sexta-feira, juntamente com Jimmy Sykes, o empregado meio idiota de Darnell. Lá corriam carros esportes e outros modelos de classe, envenenados, em sua maioria Camaros e Mustangs, com todos os vidros retirados e com fechos corrediços. Arnie e Jimmy Sykes os recolhiam ao caminhão de carroceria aberta de Darnell e voltavam com o lixo recente para o cemitério de automóveis.
Foi mais ou menos nessa época que Arnie machucou as costas. Não foi nada sério — pelo menos, era o que dizia —, mas minha mãe percebeu que havia algo errado com ele, quase em seguida. Arnie apareceu um domingo para ver o jogo dos Phillies, que naquele ano abriam caminho para uma glória moderada, e durante o terceiro tempo levantou-se para pegar um copo de suco de laranja para cada um de nós. Mamãe estava sentada no sofá com papai, lendo um livro. Ergueu os olhos quando Arnie retomava e disse:
— Você está mancando, Arnie.
Penso ter visto uma expressão inesperada de surpresa no rosto dele, por um ou dois segundos
— um ar furtivo, quase culpado. Talvez me enganasse. Se aconteceu, um segundo depois havia desaparecido.
— Acho que forcei as costas em Plains, a noite passada — disse ele, entregando-me o suco de laranja. — Jimmy Sykes deixou escorregar a última das peças batidas que carregávamos, quando ela estava praticamente em cima do caminhão. Pude vê-la escorregando para fora, e então levamos umas duas horas fazendo força para endireitar tudo. Empurrei com as costas. Acho que não devia ter forçado tanto.
Parecia uma explicação muito minuciosa para um simples coxear, porém eu talvez estivesse enganado sobre isso também.
— Precisa ter mais cuidado com suas costas — disse mamãe, severamente. — O Senhor...
— Podemos ver o jogo agora, mãe? — falei. —...só lhe dá uma — concluiu ela.
— Sim, Sra. Guilder — respondeu Arnie, obedientemente. Elaine entrou na sala.
— Ainda tem um resto de suco ou os dois cabeças-de-pepino beberam tudo?
— Por favor, me dê uma folga! — gritei.
Tinha havido uma grande jogada naquele segundo e perdi toda a seqüência.
— Não grite com sua irmã, Dennis — murmurou papai, das profundezas de The Hobbyist, a revista que estava lendo.
— Sobrou muita coisa, Ellie — disse Arnie para ela.
— Às vezes, Arnie — retrucou Elaine —, você me surpreende como um ser quase humano. Ela foi para a cozinha.
— Quase humano, Dennis! — sussurrou Arnie, aparentemente à beira de lágrimas de gratidão.
— Você ouviu isso? Quase humaaaano!
Talvez seja apenas uma lembrança retrospectiva — ou a imaginação — levando-me a crer que seu humor fosse forçado, irreal, apenas uma fachada. Seja ou não verdadeira a recordação, o assunto sobre suas costas encerrou-se, embora ele volta e meia mancasse, durante aquele outono.
Pessoalmente, eu andava muito ocupado. Havia rompido com a chefe de torcida, mas em geral sempre encontrava alguém para uma volta nas noites de sábado... se não estivesse esgotado pelo treino constante de futebol.
O treinador Puffer nada tinha do miserável que era Will Darnell, porém estava longe de ser uma flor; como metade dos treinadores de ginásio nas cidades pequenas da América, ele moldava suas técnicas de treinamento pelas do falecido Vince Lombardi, cujo lema principal era de que ganhar não significava tudo, era a única coisa. Vocês ficariam surpresos, se soubessem quanta gente — que deveria entender melhor do assunto — acredita nessa mentira deslavada.
Um verão de trabalho para a Carson Brothers me deixara em excelente forma, e creio que poderia valer-me para toda a temporada — se aquela houvesse sido uma temporada vitoriosa. Entretanto, por ocasião da briga feia que eu e Arnie tivemos com Buddy Repperton, perto da área de fumar, nos fundos da oficina — e creio que aconteceu durante a terceira semana de aula —, já era francamente visível que não teríamos uma temporada de vitórias. Isso tornou extremamente difícil a convivência com o treinador Puffer, porque em seus dez anos no Ginásio Libertyville ele jamais tivera uma temporada de derrotas. Aquele foi o ano em que Puffer teve que se sujeitar a uma amarga humildade. Foi uma dura lição para ele... e também para nós.
Nosso primeiro jogo, contra os Tigres de Luneburg, foi em setembro. Bem, Luneburg não passa de um vilarejo. Trata-se de uma merdinha de ginásio rural no extremo oeste de nosso distrito, e durante meus anos no Libertyville o grito de guerra costumeiro, após a convencida defesa de Luneburg ter permitido mais um touchdown, um ponto para nós, era: CONTEM-PRA-NÓS-COMO-É-BOSTA-DE-VACA-NO-SEU-PÉ! Seguido por um estrondoso, sarcástico aplauso: HUUURRRAAAA, LUUUUNEBURG!
Fazia vinte anos que Luneburg não conseguia derrotar um time de Libertyville, mas nesse ano eles se levantaram e acabaram conosco completamente. Eu jogava na extrema-esquerda e, chegado o meio tempo, estava moralmente convicto de que carregaria nas costas, pelo resto da vida, cicatrizes de marcas de travas. O escore era então de 17-3. Terminou com 30-10. A torcida do Luneburg delirava. Eles derrubaram as traves do gol, como se aquele fosse um jogo pelo Campeonato Regional, e carregaram nos ombros seus jogadores para fora do campo.
Nossa torcida, que viera em ônibus fretados especialmente para a ocasião, ficou encolhida nas arquibancadas de visitantes, parecendo perdida sob um forte e prematuro calorão de setembro. No vestiário, atordoado e pálido, o treinador Puffer sugeriu que ficássemos de joelho e rezássemos, pedindo orientação para as semanas vindouras. Percebi então que a calamidade não terminara, que apenas começava.
Caímos sobre os joelhos doloridos, arranhados e cansados, desejando apenas uma chuveirada que nos lavasse aquele cheiro de derrota, enquanto ouvíamos Puffer explicar a situação a Deus, em uma peroração de dez minutos, encerrada com a promessa de que faríamos a nossa parte, se Ele fizesse a Sua.
Na semana seguinte, treinamos três horas diárias (em vez dos costumeiros noventa minutos a duas horas), sob o sol escaldante. À noite, eu caía na cama e sonhava com seus berros: "Ataque aquele otário! Ataque! Ataque!". Eu partia em desabalada carreira, até começar a sentir que minhas pernas sofreriam uma decomposição espontânea (provavelmente, no mesmo instante em que meus pulmões explodiriam em chamas). Lenny Barongg, um de nossos tailbacks, tivera um ataque brando de insolação e, misericordiosamente — para ele, pelo menos foi dispensado pelo resto da semana.
Eu só via Arnie quando ele aparecia para jantar comigo, meus pais e Ellie nas noites de quinta ou sexta-feira. Às vezes aparecia para ver um ou dois jogos conosco, nas tardes de domingo, mas, além disso, perdi-o de vista por completo — ou quase isso. Naquela época, andava ocupado demais em arrastar minhas dores e sofrimentos até as salas de aula, treinando e voltando para casa, a fim de fazer os deveres de casa em meu quarto.
Voltando às calamidades do futebol, acho que o pior de tudo era a maneira como os outros olhavam para mim, Lenny e o resto do time pelos corredores. Hoje em dia, esse "espírito de colégio" se compõe principalmente de besteiras inventadas pelos administradores de escolas, ao recordarem o inferno das disputas de futebol nas tardes de sábado, quando jovens, mas esquecendo convenientemente que muito disso resultava de estarem bêbados, no cio ou as duas coisas. Quando há um comício em favor da legalização da maconha, é possível ver-se um pouco desse espírito de colégio. No entanto, em se tratando de futebol, basquete ou atletismo, a maioria dos alunos não dá nenhuma banana. Estão todos ocupados demais em conseguir entrar para a universidade, em chegar ao ponto final com alguma garota ou procurando confusão. Muito ocupados, em geral.
Ainda assim, ficamos acostumados à vitória — começamos a acreditar que ela nos pertence por direito. Libertyville estivera formando equipes vencedoras por muito tempo; a última vez que o colégio havia sido derrotado — pelo menos, até meu último ano lá — fora doze anos antes, em 1966. Assim, na semana após a derrota para Luneburg, embora não houvesse choro nem ranger de dentes, havia aqueles olhares atônitos nos corredores e alguns comentários na habitual reunião da tarde de sexta-feira, no final do sétimo tempo. Os comentários deixaram o treinador quase púrpura e ele convidou aqueles "esportistas-de-meia-tigela e amigos-das-horas-boas" a aproveitarem a tarde de sábado para verem a reabilitação do século.
Não sei se os esportistas-de-meia-tigela e os amigos-das-horas-boas apareceram ou não, mas eu estava lá. Jogávamos em casa e nossos adversários eram os Ursos de Ridge Rock. Ridge Rock é uma cidade de mineração e, embora os garotos que freqüentam o Ginásio de Ridge Rock sejam caipiras, não são caipiras frouxos. São caipiras durões, ferozes e decididos. No ano anterior, o time de futebol de Libertyville os vencera por pouco, na disputa do título regional, e um dos comentaristas esportivos locais comentara que a vitória não acontecera porque o time de Libertyville era melhor, mas porque sua torcida era mais animada. Posso afirmar que isso também fez o treinador arrancar os cabelos.
De qualquer modo, aquele foi o ano dos Ursos. Foram como um rolo compressor contra nós. Fred Dann saiu do jogo com uma concussão, no primeiro tempo. No segundo, Norman Aleppo foi levado para o Hospital Comunitário de Libertyville com um braço quebrado. E, no último período, os Ursos marcaram três touchdowns consecutivos, dois deles como punt returns. O escore final foi de 40-6. Deixando de lado a falsa modéstia, eu lhes confesso que marquei o sexto ponto. Entretanto, não ponho o realismo ao lado da modéstia: o que tive foi sorte.
Assim sendo... mais uma semana de infernal treinamento no campo. Outra semana com o treinador gritando: "Ataque aquele otário." Certo dia, treinamos durante quase quatro horas, e quando Lenny sugeriu ao treinador que seria ótimo termos algum tempo de sobra para os trabalhos de casa, cheguei a pensar — apenas por um instante — que Puffer ia surrá-lo com o cinto. Ele passara a ficar jogando seu molho de chaves constantemente, de uma das mãos para a outra, recordando-me o Capitão Queeg, no filme Motim. Suponho que a maneira como você perde é um indicador muito melhor para o caráter do que a forma como vence. Puffer, que nunca vira um 0-2 em sua carreira de treinador, reagia com uma fúria cega e inútil, como um tigre enjaulado e acuado pelos filhotes cruéis.
Na tarde da sexta-feira seguinte — que seria 22 de setembro — foi cancelada a reunião costumeira, durante os últimos quinze minutos do sétimo tempo. Nenhum jogador se preocupava com aquilo; ficar ali de pé e ser apresentado por doze gigantes chefes de torcida, pela décima milionésima vez, era bem tedioso. Nessa noite, fomos convidados pelo treinador a voltar ao ginásio e ficamos duas horas vendo os filmes, testemunhando nossa humilhação infligida pelos Tigres e Ursos, nos jogos filmados. Talvez aquilo tivesse a finalidade de levantar nosso moral, porém eu fiquei apenas deprimido.
Nessa noite, antes de nosso segundo jogo do ano em casa, tive um sonho singular. Não foi bem um pesadelo, não como aquele em que eu acordara a casa com meus gritos, claro, mas ainda assim foi... desconfortável. Estávamos jogando contra os Dragões da cidade de Filadélfia, e soprava um vento forte. Os sons dos gritos da torcida, a voz estridente e distorcida de Chubby McCarhy, brotando do alto-falante, quando anunciava os downs e yards do jogo, o próprio som dos jogadores atacando-se entre si, tudo tinha um toque fantástico, que ecoava naquele vento firme e constante.
Nas arquibancadas, os rostos apareciam amarelados e estranhamente sombreados, como máscaras chinesas. As chefes de torcida dançavam e cabriolavam como autômatos de corda. O céu tinha um cinzento esquisito, coberto de nuvens. Estávamos apanhando em toda a linha. O treinador gritava suas ordens, mas ninguém conseguia ouvi-lo. Os Dragões afastavam-se de nós rapidamente e a bola estava sempre com eles. Lenny Barongg" parecia estar jogando em meio a uma dor terrível: tinha a boca repuxada para baixo, em trêmula meia circunferência, como uma máscara de tragédia.
Fui atacado, derrubado e atropelado. Fiquei caído, muito atrás da linha de formação dos jogadores, encolhido, tentando recuperar a respiração. Olhei para cima e lá, parada no meio da pista de atletismo, atrás das arquibancadas dos visitantes, estava Christine. Novamente se mostrava cintilante, como recém-saída da fábrica, parecendo ter deixado o salão de exibição apenas uma hora antes.
Arnie estava sentado no teto do carro, as pernas cruzadas como Buda, fitando-me inexpressivamente. Gritou alguma coisa para mim, porém o ruído do vento quase sobrepujou o que dissera. Tive a impressão de ouvir algo assim: Não se preocupe, Dennis! Cuidaremos de tudo, portanto, fique calmo! Está tudo sob controle!
Cuidariam de quê? Foi o que me perguntei, caído no campo de jogo do sonho (que, por algum motivo, meu eu onírico transformara em pista de corrida de cavalos), lutando para recuperar o fôlego, a cueca penetrando cruelmente na junção das coxas, logo abaixo dos testículos. Cuidariam de quê?
De quê?
Não houve resposta. Apenas o brilho malévolo dos faróis amarelos de Christine, e Arnie sentado tranqüilamente, de pernas cruzadas sobre a capota, naquele vento forte e barulhento.
No dia seguinte, partimos para a luta novamente, em benefício do bom e velho Ginásio de Libertyville. Não foi tão ruim como em meu sonho — ninguém saiu ferido naquele sábado, e por um breve momento do terceiro quarter até pareceu que teríamos uma chance — mas então o quarterback da cidade de Filadélfia deu sorte com uns dois passes longos — quando a situação começa a perigar, tudo dá errado — e tornamos a perder.
Depois do jogo, o treinador Puffer limitou-se a ficar sentado no banco. Não olhou para nenhum de nós. Restavam onze jogos em nosso calendário, mas ele já era um homem derrotado.
Não lhe contei vantagem, meu bem,
Então, não me venha humilhar,
Tenho as rodas mais velozes da cidade,
Quem quiser passar à frente, nem adianta tentar,
Porque também tenho asas, cara,
Minha máquina pode voar,
É o meu cupê endoidado,
Você nem sabe o que tenho...
— The Beach Boys
Tenho absoluta certeza de que foi na terça-feira seguinte à nossa derrota diante dos Dragões da cidade de Filadélfia que as coisas começaram a agitar-se outra vez. Devíamos estar a 26 de setembro.
Eu e Arnie assistimos a três aulas juntos, sendo uma delas Tópicos da História Americana, um curso seriado, no quarto período. Nas primeiras nove semanas, o professor fora o Sr. Thompson, chefe do departamento. Então, o tema era Duzentos Anos de Desenvolvimento e Crise. Arnie dizia que aquela era a aula do tchau-tchau, porque ficava justamente antes da hora do almoço e os estômagos da gente pareciam ter coisas mais interessantes para fazer.
Terminada a aula daquele dia, uma garota aproximou-se de Arnie e perguntou-lhe se tinha o trabalho de Inglês para casa. Ele tinha. Folheou com cuidado seu caderno de anotações e, enquanto isso, ela o observava seriamente com olhos azul-escuros, nunca os desviando do rosto dele. Tinha cabelos louro-escuros, cor de mel fresco — não do tipo refinado, mas daquele que sai direto da colméia —, mantidos presos para trás por uma fita azul, combinando com os olhos. Ao vê-la, meu estômago deu uma reviravolta de felicidade. Depois que a garota terminou de copiar o trabalho, Arnie olhou para ela.
Aquela não era a primeira vez que eu via Leigh Cabot, é claro, ela havia sido transferida de uma cidade em Massachusetts para Libertyville, três semanas antes, de modo que já ficara conhecida. Alguém me contara que seu pai trabalhava para a 3M, o pessoal que fabrica a fita adesiva Scotch.
Não era a primeira vez também que eu reparava nela, porque Leigh Cabot era — usando os termos mais simples — uma bela garota. Em uma obra de ficção, percebi que os escritores sempre inventam um pequeno defeito aqui ou acolá nas mulheres e jovens que criam, talvez por pensarem que a beleza real seja um estereótipo ou por acharem que um ou dois senões tornam a dama mais real. Assim, a heroína é bonita, com exceção do lábio inferior um pouco longo demais, ou apesar de ter o nariz ligeiramente afilado. Talvez tenha o busto achatado. Sempre há alguma coisa.
Com Leigh, no entanto, era beleza pura. Tinha a pele clara e perfeita, em geral com um toque de cor perfeitamente natural. Mediria um metro e setenta, mais ou menos, alta para uma garota, mas não em excesso, com um corpo adorável — seios bonitos e firmes, uma cinturinha que quase se poderia contornar com as mãos (pelo menos, dava vontade de tentar), quadris bem feitos, pernas bem torneadas. Uma garota bonita, sexy, de belo corpo — artisticamente sem graça, imagino, sem o lábio inferior demasiado longo, o nariz afilado, uma reentrância ou saliência erradas em algum lugar (nem ao menos um gracioso dentinho torto — ela devia ter tido um excelente ortodontista, também), mas o caso é que ela nada tinha de sem graça, quando a gente a contemplava.
Alguns caras já tinham dado em cima dela, mas haviam sido delicadamente afastados. Imaginava-se que, provavelmente, Leigh Cabot estava com dor-de-cotovelo por causa de algum sujeito de Andover, Braintrese ou seja lá de onde viera, mas que o tempo a faria recuperar-se. Em duas das aulas a que eu assistira com Arnie, ela também estivera presente, de maneira que minha idéia era apenas aguardar um pouco, antes de tentar uma aproximação.
Agora, observando os olhares roubados entre os dois, quando Arnie procurara o dever e depois, quando ela o anotava cuidadosamente, perguntei-me se chegaria a ter chance daquela aproximação. Então, ri para mim mesmo. Arnie Cunningham, o próprio e velho Cara de Pizza e Leigh Cabot. Era totalmente ridículo. Era...
O sorriso interior quase secou de repente. Pela terceira vez — a definitiva — eu percebia que a pele dele estava se curando sozinha, com uma rapidez quase impressionante. As equimoses haviam desaparecido. Algumas ainda tinham deixado mínimas cicatrizes reentrantes ao longo das faces, é verdade, mas se um cara tem feições fortes, aquelas pequenas reentrâncias não parecem significar muito. De uma forma um tanto louca, até parecem dar mais caráter.
Leigh e Arnie estudaram-se disfarçadamente. Também estudei Arnie disfarçadamente, perguntando-me quando e como aquele milagre acontecera. A luz do sol penetrava com força pelas janelas da sala do Sr. Thompson, delineando claramente as linhas do rosto de meu amigo. Ele parecia... mais velho. Como se tivesse vencido as equimoses e a acne, não somente com lavagens ou aplicações regulares de qualquer creme especial, mas conseguindo algum meio de adiantar o relógio por três anos. Também estava usando o cabelo de modo diferente — agora era mais curto, e as costeletas que cismara de usar, desde que pudera cultivá-las (uns dezoito meses atrás), tinham desaparecido.
Fiquei pensando naquela tarde encoberta, quando tínhamos ido ver o filme Kung-fu de Chuck Norris. Fora a primeira vez em que eu notara alguma melhora, concluí. Mais ou menos na época em que ele havia comprado o carro. Sim, devia ser isso. Adolescentes do mundo, rejubilem-se! Resolvam dolorosos problemas de acne para sempre! Comprem um carro velho e ele fará com que...
O sorriso interior, que voltara a aflorar, de repente azedou.
Comprem um carro velho e ele fará... o quê? Será que ele irá modificar suas cabeças, suas maneiras de pensar, desta forma alterando o metabolismo? Liberando o eu real? Tive a sensação de ouvir Stukey James, nosso antigo professor de Matemática, sussurrando em minha cabeça seu insistentemente repetido refrão: Se seguirmos esta linha de raciocínio até o amargo fim, senhoras e senhores, aonde isso nos levará?
Certo — aonde?
— Obrigada, Arnie — disse Leigh, em sua voz doce e clara.
Já havia copiado o dever de casa em seu caderno de apontamentos.
— Tudo bem — disse ele.
Os olhos dos dois se encontraram — agora entreolhavam-se, em vez de se observarem furtivamente —, e até eu pude sentir a fagulha saltar.
— Vejo você no sexto tempo — disse ela.
Depois se afastou, os quadris ondulando suavemente sob uma saia verde de tricô, os cabelos oscilando contra as costas do suéter.
— O que tem você a ver com o sexto tempo dela? — perguntei.
Eu tinha tempo vago naquele período. Estudaria os corredores fiscalizados pela terrível Srta. Raypach, a quem todos nós chamávamos de Sita. Rat-Pack (Trouxa-de-Ratos), só que nunca em presença dela, como é fácil imaginar.
— Cálculo — respondeu ele, naquela voz sonhadora e melosa, tão diferente da que eu conhecia, que me provocou o riso. Arnie olhou para mim, de cenho franzido.
— De que está rindo, Dennis?
— Cal-Q-luuuu — respondi.
Revirei os olhos, agitei as mãos como asas e ri mais alto. Ele fingiu que ia me esmurrar.
— É bom tomar cuidado, Guilder — falou.
— Desgrude, Cara de barata!
— Eles botam você na universidade e vamos ver o que acontece ao fodido time de futebol!
O Sr. Hodder, que ensina aos calouros os mais primorosos detalhes gramaticais (e também como masturbar-se, no dizer de certos espirituosos), ia passando por nós nesse exato momento.
— Cuidado com sua linguagem nos corredores! — disse significativamente para Arnie, franzindo o cenho.
Depois seguiu em frente, com uma pasta em uma das mãos e, na outra, um hambúrguer apanhado na fila do almoço. Arnie ficou vermelho como uma beterraba; sempre enrubescia se um professor lhe dizia alguma coisa (tratava-se de uma reação tão automática que quando estávamos no primário acabava castigado por coisas que não fizera, apenas porque parecia culpado). Suponho que isso tenha algo a ver com a maneira como foi criado por Regina e Michael — eu sou legal, você é legal, eu sou uma pessoa, você é uma pessoa, nós nos respeitamos profundamente, e quando alguém fizer algo errado sentiremos uma reação alérgica de culpa. Acredito que isso faça parte da criação liberal de filhos na América.
— Cuidado com sua linguagem, Cunningham — falei. — Tu tá envorvido num monte de probrema. Ele começou a rir também. Descemos o corredor reverberante de ruídos. As pessoas caminhavam
depressa de um lado para outro ou se apoiavam contra seus armários, comendo. Não se devia comer pelos corredores, mas muitos não ligavam para isso.
— Trouxe seu almoço? — perguntei.
— Trouxe. Num saco de papel pardo.
— Vá pegar. Vamos comer lá fora, nas arquibancadas.
— A esta altura, ainda não se encheu daquele campo de futebol? — perguntou Arnie. — Se ficasse muito mais tempo deitado de barriga, no sábado passado, acho que um dos zeladores o plantaria.
— Não ligo. Vamos à forra essa semana. Além do mais, quero sair daqui.
— Certo. Encontro você lá fora.
Arnie afastou-se e rumei para meu armário, a fim de pegar meu almoço. Havia trazido quatro sanduíches, para começar. Desde que o treinador iniciara suas sessões-maratonas de treinamento, eu vivia faminto.
Segui ao longo do corredor, pensando em Leigh Cabot e em como muita gente ficaria alvoroçada se aqueles dois começassem a sair juntos. Nos colégios, a sociedade é muito conservadora, como todos sabem. Nada de grandes repressões, mas é assim. As garotas sempre usam as modas mais loucas, os rapazes às vezes deixam o cabelo chegar até o traseiro, todos fumam uma maconhazinha ou cheiram um pouco de coca — mas tudo não passa de uma camada externa de verniz, a defesa usada enquanto fazemos experiências e procuramos imaginar o que acontecerá, exatamente, em nossa vida. É como um espelho — usado para refletir de volta a luz do sol nos olhos de pais e professores, esperando confundi-los, antes que nos tornem ainda mais confusos do que já estamos. No fundo, a maioria dos estudantes de ginásio é quase tão careta como um bando de banqueiros republicanos em uma reunião social da igreja. Há garotas que podem ter todo álbum já produzido do conjunto Black Sabbath, mas se Ozzy Osbourne for à escola que elas freqüentam e convidar uma delas para sair, essa garota (e todas as suas amigas) seria capaz de arrebentar de rir apenas ante tal idéia.
Agora sem espinhas, Arnie estava legal — de fato, parecia mais do que isso. Contudo, nenhuma garota que freqüentasse a escola quando ele ainda tinha o rosto em sua pior aparência aceitaria sair com ele, creio eu. De fato, não o viam como era agora, mas apenas a lembrança do que Arnie havia sido. Com Leigh, no entanto, era diferente. Sendo uma aluna transferida, não fazia idéia de como era horrível a aparência dele, em seus três primeiros anos no Ginásio de Libertyville. Bem, poderia ter uma noção, se folheasse o Libertonian do ano anterior e visse a foto de Arnie no clube de xadrez, mas, curiosamente, aquela mesma tendência republicana certamente a faria passar por cima do detalhe. O de agora é eterno — interrogue qualquer banqueiro republicano e ele lhe dirá que o mundo deve ser governado exatamente assim.
Ginasianos e banqueiros republicanos... Em criança, todos aceitamos como fato consumado que tudo se modifica constantemente. Quando adulto, o indivíduo acredita seriamente que tudo irá mudar, pouco importando o esforço para ser mantido o status quo (os próprios banqueiros republicanos sabem disso — podem não gostar, mas sabem). Apenas quando se é adolescente é que se fala o tempo todo em modificar, mas acreditando, no fundo do coração, que isso nunca acontece realmente.
Saí com minha gigantesca sacola de lanche na mão e caminhei em diagonal pelo pátio de estacionamento, rumando para o edifício em que ficavam as oficinas. É uma estrutura alongada, com laterais metálicas corrugadas e pintadas de azul — em formato não muito diferente da garagem de Will Darnell, porém muito mais limpa. Ali dentro ficam as oficinas para trabalhos em madeira, as oficinas para mecânica de motores e o departamento de artes gráficas. A área de fumar fica, em princípio, nos fundos da edificação, mas nos dias de bom tempo, durante a folga para o almoço, em geral se vê alunos das oficinas alinhados em ambos os lados do prédio, com suas botas de motoqueiros ou sapatos de biqueira, recostados contra a parede, rumando e conversando com as namoradas. Ou apalpando-as.
Nesse dia, não havia uma alma no lado direito das oficinas, e isso poderia ter-me alertado sobre algo anormal, mas não foi assim. Eu estava concentrado em meus próprios e divertidos pensamentos sobre Arnie e Leigh, bem como na psicologia do Estudante Moderno do Ginásio Americano.
A verdadeira área de fumar — a área "designada" para fumar — fica em um pequeno beco sem saída, atrás da oficina de mecânica de motores. Além das oficinas, a cinqüenta ou sessenta metros de distância, está o campo de futebol, dominado pelo grande painel elétrico da marcação de pontos, com DURO NELES, TERRIERS, engalanando sua parte superior.
Havia um grupo de pessoas pouco além da área de fumar, umas vinte ou trinta, amontoadas em estreito círculo. Esse tipo de aglomeração geralmente significa uma briga ou o que Arnie costuma chamar "puxa-empurra" — dois sujeitos, que não estão muito a fim de brigar, ficam empurrando um ao outro, esmurrando-se nos ombros com força, com isso tentando proteger as respectivas reputações de machos.
Olhei para lá, mas sem grande interesse. Não queria assistir a uma briga, mas sim comer meu almoço e descobrir o que estava acontecendo entre Arnie e Leigh Cabot. Se existisse algo entre os dois, por menor que fosse, isso talvez o livrasse daquela obsessão por Christine. Uma coisa era certa: Leigh Cabot não tinha qualquer ferrugem na lataria.
Então, uma garota gritou e alguém mais bradou:
— Ei, assim, não! Largue isso, cara!
Aquilo não soava muito normal. Mudei de rumo, para ver o que havia. Abri caminho por entre o grupo apertado e vi Arnie no círculo, de pé, com as mãos ligeiramente estiradas para diante, ao nível do peito. Parecia assustado e pálido, mas não em pânico. Um pouco à sua esquerda, estava o seu saco de almoço, completamente achatado contra o solo. No meio do saco, havia a impressão de uma sola de tênis. Em direção oposta a Arnie, de jeans e camiseta justa sobre cada músculo e saliência do tórax, estava Buddy Repperton. Tinha um canivete de mola na mão direita e o movia lentamente de trás para diante, à frente do rosto, como um mágico fazendo passes místicos.
Buddy era alto e de ombros largos. Tinha cabelos longos e negros. Usava-os amarrados atrás da cabeça, em rabo-de-cavalo, com uma tira de couro cru. As feições do rosto eram rudes e idiotas, com expressão malévola. Sorria de leve. O que senti foi uma mistura covarde de puro medo e angústia. Ele não parecia apenas idiota e malévolo, parecia louco.
— Eu disse que ia pegar você, cara — falou maciamente para Arnie.
Inclinou o canivete e o esgrimiu de leve no ar, na direção de Arnie, fazendo-o encolher-se um pouco. A lâmina retrátil tinha cabo de marfim, com um pequeno botão cromado que o fazia saltar para fora ou recolher-se no punho. A lâmina parecia ter uns vinte centímetros de comprimento — não era um canivete, em absoluto, mas uma maldita baioneta.
— Vamos, Buddy, marque ele! — gritou Dan Vandenberg alegremente.
Senti a boca seca. Olhei para o garoto perto de mim, algum calouro careta, que eu não conhecia. Ele parecia completamente hipnotizado, de olhos arregalados.
— Ei — falei. Como não olhasse para mim, cutuquei-o nas costelas com o cotovelo. — Ei! Ele saltou e olhou para mim aterrorizado.
— Vá chamar o Sr. Casey. Está almoçando na oficina de trabalhos em madeira. Vá chamá-lo, agora mesmo!
Repperton olhou para mim, depois para Arnie.
— Vamos, Cunningham — desafiou. — O que me diz, não está querendo briga?
— Largue o canivete primeiro, seu bosta — disse Arnie.
A voz era perfeitamente calma. Bosta. Onde é que eu ouvira aquilo antes? Não fora dito por George LeBay? Sim, isso. Também ouvira a palavra na boca de seu irmão.
Aparentemente, Repperton não ligou muito. Enrubesceu e aproximou-se mais de Arnie. Arnie girou, afastando-se. Pensei que alguma coisa estava para acontecer ali, bem depressa — talvez daquelas que exigem suturas e deixam cicatriz.
— Vá chamar Casey, já! — falei para o calouro de jeito careta.
Ele se foi, mas pensei que, sem dúvida, tudo já teria acontecido antes do Sr. Casey chegar... a menos que eu pudesse retardar um pouco as coisas.
— Largue esse canivete, Repperton — falei. Seus olhos se voltaram novamente para mim.
— Você não sabe de nada — replicou. — O amigo de Cara de Cona. Por que não vem tirar ele de mim?
— Você tem um canivete, mas ele não — falei. — Pelo meu manual, isso faz de você uma fodida galinha covarde.
O vermelho de seu rosto aumentou. Agora, sua concentração se rompera. Ele olhou para Arnie, depois para mim. Meu amigo dirigiu-me um olhar de pura gratidão — e moveu-se um pouco mais para perto de Repperton. Não gostei daquilo.
— Largue o canivete! — gritou alguém para Repperton.
Logo depois, alguém mais gritou também: "Largue o canivete!". Então, todos começaram a cantar: "Largue o canivete, largue o canivete, largue o canivete!".
Repperton pareceu não gostar. Não se importava de ser o alvo das atenções, mas aquele era o tipo errado de atenção. Seu olhar começou a saltar nervosamente, primeiro para Arnie, depois para mim, em seguida para os outros. Uma mecha de cabelo lhe caiu na testa e ele a jogou para trás.
Quando tornou a olhar para mim, esbocei um movimento como se fosse avançar para ele. O canivete girou agora em minha direção e Arnie se moveu — moveu-se mais depressa do que eu poderia acreditar. Foi uma cutelada com a mão direita, em um golpe de caratê meio fajuto, mas eficiente. Atingiu com força o pulso de Repperton e arrancou-lhe o canivete da mão, fazendo-o cair com um som metálico no chão sujo. Repperton abaixou-se, tentando recuperá-lo. Arnie cronometrou o movimento com mortal precisão e, quando a mão de Repperton chegou ao asfalto, pisou em cima dela. Com toda a força. Repperton gritou.
Don Vandenberg entrou rapidamente em cena. Com um tranco brutal, atirou Arnie ao chão. Mal pensando no que fazia, entrei no círculo e chutei o traseiro de Vandenberg com toda a força que tinha — levantei o pé, em vez de arrastá-lo; chutei-o como chutaria uma bola.
Vandenberg, um cara alto e magro, que naquela época teria uns dezenove ou vinte anos, começou a gritar e saltitar, segurando os fundilhos. Esqueceu toda sua idéia de socorrer Buddy, deixou de ser um fator determinante na situação. Acho espantoso eu não ter aleijado Vanderberg com aquele chute. Jamais chutei alguém ou alguma coisa com tanta força, e meus amigos, fiquem certos de que me senti ótimo.
De repente, um braço passou em torno de meu pescoço e havia uma mão entre minhas pernas. Percebi o que ia acontecer, apenas um segundo tarde demais para poder evitá-lo de todo. Meus colhões foram apertados com firmeza e a dor espraiou-se, em um berro de pura agonia, subindo das virilhas para o estômago, depois descendo até as pernas, tornando-as tão frouxas e vacilantes, que quando o braço largou meu pescoço eu simplesmente arriei como um trapo no piso cimentado da área de fumar.
— Gostou disso, cara de pica? — perguntou-me um sujeito atarracado e de dentes estragados. Ele usava um daqueles pequenos e delicados óculos com aros de arame, óculos que pareciam
absurdos em seu rosto grande e pesadão. Era "Penetra" Welch, outro amigo de Buddy
De súbito o círculo de espectadores começou a diluir-se e ouvi uma voz de homem gritando:
— Afastem-se! Afastem-se, imediatamente! Vamos, rapazes, andando! Andando, droga, estou mandando!
Era o Sr. Casey. Finalmente, Sr. Casey.
Buddy Repperton recolheu seu canivete de mola do chão. Fez a lâmina retrair-se e, com um gesto rápido, guardou-o no bolso traseiro da calça. Tinha a mão arranhada e sangrando, com todos os sinais de que ia inchar. Filho da puta miserável, pensei. Desejei que aquela mão inchasse como uma das luvas usadas pelo Pato Donald nas histórias em quadrinhos.
"Penetra" Welch afastou-se de mim, olhou na direção em que soava a voz do Sr. Casey e tocou delicadamente o canto da boca com o polegar.
— Fica pra mais tarde, cara de pica — disse.
Don Vandenberg agora dançava mais devagar, mas ainda esfregava a parte afetada. Lágrimas de dor escorriam-lhe pelo rosto. Então, Arnie estava ao meu lado, passando um braço ao redor de meu corpo, ajudando-me a levantar. Sua camisa estava um bocado suja, devido à queda, quando Vandenberg o derrubara. Vi tocos de cigarros amassados contra os joelhos de sua calça jeans.
— Você está bem, Dennis? O que foi que ele fez corn você?
— Deu um apertãozinho em meu saco. Já estou melhor.
Pelo menos, assim esperava. Se você é homem e já lhe deram um bom apertão nos colhões alguma vez (e que homem não passou por isso?), sabe o que estou dizendo. Se for mulher, não sabe — não pode saber. A agonia inicial é apenas o começo; ela desaparece, substituída por uma dorida e latejante sensação de pressão, que se enovela na boca do estômago. Uma sensação que diz: Ei, você! É bom estar aqui, rondando a boca de seu estômago e fazendo com que você tenha vontade de vomitar o almoço e borrar as calças ao mesmo tempo! Acho que vou ficar por aqui algum tempo, certo? Que tal uma meia hora ou coisa assim? Grande! Levar um apertão nos colhões não é um dos mais excitantes momentos da vida.
O Sr. Casey abriu caminho entre os espectadores que se dispersavam e percebeu a situação. Não era um sujeito grande, como o treinador Puffer, nem mesmo parecia forte. Era de altura e idade medianas, e começava a ficar careca. Os óculos enormes, de armação de chifre, davam um ar conservador em seu rosto. Gostava de camisas brancas e simples — sem gravata — e usava uma delas agora. Não era um sujeito grande, mas impunha respeito. Ninguém o fazia de trouxa, porque ele não tinha medo dos rapazes, aquele medo profundo que tantos professores sentem. E os rapazes sabiam disso. Buddy e Don sabiam. "Penetra" também. Isso se refletia na maneira como baixaram os olhos e moveram os pés inquietamente.
— Dêem o fora — ordenou rispidamente o Sr. Casey, aos poucos espectadores restantes. Eles começaram a afastar-se. "Penetra" Welch decidiu dar o golpe e acompanhá-los. — Você não, Peter — disse o Sr. Casey.
— Ora, Sr. Casey, eu não fiz nada — disse "Penetra".
— Nem eu — emendou Don. — Por que está sempre acusando a gente? O Sr. Casey aproximou-se de onde eu estava, ainda amparado por Arnie.
— Tudo bem com você, Dennis?
Finalmente eu estava conseguindo superar a crise — o que não aconteceria, se uma de minhas coxas não tivessem bloqueado parcialmente a mão de "Penetra". Assenti.
O Sr. Casey caminhou para onde Buddy Repperton, "Penetra" Welch e Don Vandenberg se enfileiravam, zangados e remexendo os pés. Don não estivera brincando, falara por todos eles. De fato, sentiam-se acusados.
— Muito interessante, não? — disse finalmente o Sr. Casey. — Três contra dois. É assim que costuma agir, Buddy? A desvantagem não parece importar-lhe muito.
Buddy ergueu o rosto, atirou a Casey um olhar maligno e enfurecido, depois tornou a baixá-lo.
— Foram eles que começaram. Esses dois.
— Não é verdade... — começou Arnie.
— Cale a boca, cara de cona — disse Buddy.
Ia acrescentar algo, mas antes que pudesse o Sr. Casey o agarrou e atirou contra a parede dos fundos da oficina. Ali havia um pequeno aviso: FUMAR SOMENTE AQUI. O Sr. Casey começou a bater Buddy Repperton contra aquele aviso e, a cada vez que o sacudia, o aviso balançava, como uma dramática marcação. Sacudia Repperton da maneira como eu ou vocês sacudiríamos uma grande boneca de trapo. Acho que tinha uma musculatura escondida em algum lugar.
— Quer fechar sua bocarra? — disse ele, tornando a bater Buddy contra o aviso. — Vai calar esse boca ou vou ter de limpá-la! Porque não vou ouvir coisas assim, ditas por você, Buddy!
Por fim, ele largou a camisa de Repperton, agora fora da calça, mostrando seu estômago branco e sem cor. O Sr. Casey olhou para Arnie.
— O que estava dizendo? — perguntou.
— Passei pela área de fumar a caminho das arquibancadas, onde ia comer meu almoço — disse Arnie. — Repperton estava aqui, fumando com seus amigos. Chegou para mim, arrancou o saco do almoço da minha mão e o pisoteou. Esmagou-o. — Ele pareceu prestes a dizer algo mais, vacilou e desistiu. — Foi isso que começou a briga.
Entretanto, eu não ia deixar aquilo assim. Não sou dedo-duro nem falador em circunstâncias normais. Repperton, contudo, aparentemente decidira ser necessário mais do que uma boa surra para vingar-se por ter sido expulso da Darnell's. Poderia ter feito um buraco nos intestinos de Arnie, talvez até o matasse.
— Sr. Casey — falei.
Ele olhou para mim. Mais atrás, os olhos verdes de Buddy brilharam malevolamente em minha direção — era um aviso. Fique de boca fechada, isto é entre nós. Até um ano antes, uma distorcida noção de orgulho poderia forçar-me a fazer seu jogo e não ir em frente. Agora era diferente.
— O que é, Dennis?
— Ele está atrás de Arnie desde o verão. Tem um canivete e parecia decidido a usá-lo.
Arnie olhava para mim, os olhos cinzentos opacos e herméticos. Recordei quando ele chamara Repperton de bosta — a palavra de LeBay — e senti um arrepio nas costas.
— Seu fodido mentiroso! — gritou Repperton, dramaticamente. — Não tenho canivete nenhum! Casey olhou para ele em silêncio. Vandenberg e Welch agora pareciam muito pouco à vontade
— assustados. Sua possível punição por aquele pequeno tumulto progredira para além dos castigos — a que estavam acostumados — e da suspensão — que já haviam experimentado — beirando os limites extremos da expulsão.
Bastava eu dizer mais uma palavra. Pensei a respeito. Quase não falei. No entanto, Arnie estava envolvido e ele era meu amigo. Além do mais, eu não apenas achava que ele podia usar aquele canivete
— eu sabia. Falei.
— É um canivete de mola.
Agora os olhos de Repperton não apenas brilharam, eles fulguraram, prometendo o inferno, a danação e um longo período de inatividade, fazendo tração para endireitar o corpo machucado.
— É mentira dele, Sr. Casey — disse em voz rouca. — Ele está mentindo, juro por Deus. O Sr. Casey nada disse. Virou-se lentamente para Arnie.
— Cunningham — perguntou —, Repperton puxou um canivete para você?
A princípio, parecia que ele não ia responder. Depois, em uma voz tão baixa que mais parecia um suspiro, soltou:
— Puxou.
O olhar cáustico de Repperton agora foi para nós dois.
Casey se virou para "Penetra" Welch e Don Vandenberg. Percebi imediatamente uma mudança em seu método de resolver a situação. Começara a mover-se lenta e cautelosamente, como se testasse as próprias pisadas com cuidado, antes de dar mais um passo. O Sr. Casey já havia sentido as conseqüências.
— Havia um canivete na briga? — perguntou a eles.
"Penetra" e Vandenberg olharam para os pés e não responderam. Seu gesto já era uma resposta suficiente.
— Vire seus bolsos pelo avesso, Buddy — disse o Sr. Casey.
— Uma merda que eu vou fazer isso! — exclamou Buddy, em voz esganiçada. — Não pode me obrigar!
— Se está querendo dizer que não tenho autoridade, enganou-se — disse o Sr. Casey. — Se está querendo dizer que não posso virar seus bolsos pelo avesso eu mesmo, se quiser, também enganou-se. Mas...
— Muito bem, tente, tente! — gritou Buddy para ele. — Jogo você através dessa parede, seu carequinha fodido!
Meu estômago contorcia-se, impotente. Eu odiava coisas como aquela, horríveis cenas de confrontação — e nunca fizera parte de nenhuma pior.
O Sr. Casey, no entanto, tinha a situação sob controle e não se desviava de seu curso.
— Mas, não farei isso — concluiu ele. — Você mesmo é que vai virar seus bolsos pelo avesso.
— Uma merda, se vou obedecer! — disse Buddy.
Estava de pé contra a parede dos fundos da oficina, de modo que o volume no bolso da calça não aparecia. As fraldas da camisa pendiam em duas abas amarrotadas sobre a frente do jeans. Seus olhos se moviam para todos os lados, como os de um animal acuado.
O Sr. Casey se virou para "Penetra" e Don Vandenberg.
— Vocês dois vão para o gabinete e fiquem lá até eu chegar — disse. — Não se atrevam a ir para outro lugar, já estão com problemas de sobra, para acrescentar mais um.
Os dois começaram a afastar-se lentamente, muito juntos, como por medida de proteção. "Penetra" arriscou um olhar para trás. No prédio principal soou o aviso de chamada para as aulas. Todos começaram a caminhar para lá, alguns deles envolvendo-nos em olhares curiosos. Tínhamos perdido a hora do almoço, mas pouco importava. Eu não sentia mais fome.
O Sr. Casey tornou a concentrar sua atenção em Buddy.
— Você está dentro do colégio agora — ele disse — e deve agradecer a Deus por isso, porque se você está realmente com um canivete e se você o sacou, isso é agressão à mão armada. Mandam você para a prisão por causa disso.
— Prove, prove que estou com um canivete — Buddy gritou.
Suas bochechas chamejavam, a respiração saía em pequenos e rápidos arquejos nervosos.
— Se não virar seus bolsos para fora imediatamente, preencherei uma ficha de dispensa para você. Depois vou chamar os tiras e, no minuto em que puser os pés fora do portão principal, eles o agarrarão. Percebe em que enrascada se meteu? — Olhou severamente para Buddy. — Procuramos manter o nome desta casa — continuou —, mas se me forçar a preencher uma dispensa, seu traseiro pertencerá a eles, Buddy. Se não tiver um canivete em seu poder, é claro que tudo estará certo com você, mas se tiver e eles o encontrarem...
Houve um momento de silêncio. Nós quatro estávamos imóveis. Achei que e não cederia, preferindo aceitar a dispensa e tentar enterrar o canivete, rapidamente, em algum lugar. Então, deve ter percebido que os tiras o procurariam e terminariam encontrando, porque o puxou do bolso traseiro e o jogou no piso cimentado. O canivete bateu sobre o botão de pressão. A lâmina soltou e cintilou malignamente ao sol da tarde: vinte centímetros de aço cromado!
Arnie olhou para ela e passou o dorso da mão sobre a boca.
— Vá para o gabinete, Buddy — disse tranqüilamente o Sr. Casey —, e espere até eu chegar lá.
— O gabinete que se foda! — gritou Buddy. Sua voz era aguda e histérica de raiva. O cabelo tornara a cair sobre a testa e ele o jogou para trás. — O que vou fazer é dar o fora desse maldito chiqueiro!
— Perfeitamente, tudo bem — disse o Sr. Casey.
A inflexão e excitamento de sua voz seriam os mesmos, se Buddy lhe tivesse oferecido uma xícara de café. Compreendi, então, que Buddy estava liquidado no Ginásio de Libertyville. Nada de suspensão ou três dias de férias: seus pais receberiam pelo correio o rijo formulário azul de expulsão, explicando por que ele fora expulso e informando sobre seus direitos e opções legais quanto ao assunto.
Buddy olhou para mim e Arnie. Então sorriu.
— Vocês me pagam — disse. — Ainda vamos ajustar contas. Vão desejar nunca terem nascido, seus merdas.
Chutou o canivete e ele deslizou, girando e cintilando. Ele parou a alguma distância e Buddy afastou-se, as travas nos tacões de suas botas de motoqueiro dando estalidos e rangendo. O Sr. Casey se voltou para nós. Tinha a expressão triste e fatigada.
— Sinto muito — disse.
— Está tudo bem — replicou Arnie.
— Vocês querem cartões de dispensa? Posso preenchê-los para os dois, se acharem melhor ficar em casa o resto do dia.
Olhei para Arnie, que sacudia a camisa para limpá-la. Ele abanou a cabeça.
— Não é preciso, está tudo bem — falei.
— Certo. Preencherei então os cartões de atraso.
Fomos à sala do Sr. Casey e ele preencheu cartões de atrasados para nossa aula seguinte, uma das que, por acaso, teríamos juntos — Física Avançada. Quando entramos no laboratório de Física, um bocado de gente olhou curiosamente para nós e ouvimos alguns cochichos.
A ficha de ausência da tarde circulou no final do sexto período. Observei-a e vi os nomes de Repperton, Vandenberg e Welch, cada um deles com um (S) após o nome. Pensei que eu e Arnie seríamos chamados ao gabinete no fim das aulas, para contarmos o sucedido à Sra. Lothrop, a chefe de disciplina. Não fomos.
Procurei Arnie depois das aulas, pensando que iríamos juntos para casa em meu carro, a fim de comentarmos o caso, mas também me enganei quanto a isso. Ele já se mandara para a Garagem de Darnell, a fim de trabalhar em Christine.
Tenho um Ford Mustang 66, vermelho-cereja,
Com uma potência de 380 cavalos,
Compreenda, ele é potente demais
Para rastejar em rotas interestaduais.
— Chuck Berry
De fato, só tive uma chance de falar com Arnie, depois da partida de futebol do sábado seguinte. Também foi aquela a primeira vez que Christine saiu para a rua, desde o dia em que ele a comprara.
O time foi para Hidden Hills, a uns vinte e cinco quilômetros de distância, na viagem mais silenciosa que já vi, em nosso ônibus de atividades escolares. Era como se rumássemos para a guilhotina e não para uma partida de futebol. O próprio fato de a contagem deles (1-2) ser ligeiramente melhor do que a nossa, era um fator que não levantava muito o moral. Puffer, o treinador, ocupava o banco atrás do motorista, pálido e silencioso, como se estivesse de ressaca.
Em geral, a viagem para uma partida em outro local era uma combinação de caravana e circo. Um segundo ônibus, lotado com as chefes de torcidas, a banda e todos os estudantes do Ginásio de Libertyville que se alistassem como "torcedores" ("torcedores", meu Deus do céu! quem acreditaria nisso, se não houvéssemos todos cursado o ginásio?) rodava atrás do ônibus do time. Após os dois ônibus, havia uma fila de quinze ou vinte carros, em sua maioria repletos de adolescentes, quase todos os veículos com DURO NELES, TERRIERS colado nos pára-choques, buzinando, de faróis acesos e todos aqueles detalhes que, sem dúvida, vocês ainda recordam de seus tempos escolares.
Naquela viagem, contudo, havia apenas o ônibus das chefes-de-torcida/banda (assim mesmo, nem inteiramente lotado quando, em um ano vencedor, se você não se alistasse até terça-feira, não tinha chance de ir) e três ou quatro carros atrás dele. Os amigos dos bons tempos tinham se mandado. Eu ia sentado no ônibus do time, perto de Lenny Barongg, perguntando-me sombriamente se não me arrancariam a cueca naquela tarde, e ignorando por completo que um dos poucos carros atrás de nós era Christine.
Só a vi quando descemos do ônibus, no pátio de estacionamento do Ginásio de Hidden Hills. A banda deles já estava no campo e ouvíamos claramente a batida do bombo, amplificada de modo estranho, sob o céu anuviado e sombrio. Aquele seria o primeiro sábado realmente bom para futebol — frio, de céu fechado e outonal.
Já foi surpresa suficiente ver Christine estacionada ao lado do ônibus da banda, mas quando Arnie saiu por um lado e Leigh Cabot pelo outro, fiquei pasmo — e também um pouquinho enciumado. Ela usava calças compridas justas de lã marrom e um pulôver branco de malha, os cabelos alourados derramando-se maravilhosamente sobre os ombros.
— Arnie! — chamei. — Ei, cara!
— Oi, Dennis — respondeu ele, um pouco acanhado.
Eu percebia que alguns jogadores saindo do ônibus também estavam surpresos: ali estava Cunningham Cara de Pizza, com a fascinante transferida de Massachusetts. Como, em nome de Deus, aquilo acontecera?
— Como vai?
— Bem — disse ele. — Conhece Leigh Cabot?
— Sim, da sala de aulas — falei. — Oi, Leigh.
— Oi, Dennis. Como é, vão vencer hoje? Baixei a voz para um sussurro.
— Vai ser um jogo combinado. Pode apostar o traseiro.
Arnie enrubesceu um pouco ao ouvir-me, mas Leigh levou a mão à boca e deu uma risadinha.
— Vamos fazer o possível, mas não sei dizer — continuei.
— Torceremos por sua vitória — disse Arnie. — Até posso ver nos jornais de amanhã: Transportado pelo Ar, Guilder Quebra o Recorde de Touchdown da Associação.
— Guilder Levado para o Hospital com Fratura de Crânio, seria o mais provável — repliquei. — Quantos rapazes vieram? Dez? Quinze?
— Vai sobrar mais lugar nas arquibancadas para os que vieram — disse Leigh.
Ela tomou o braço de Arnie — acho que o surpreendendo e agradando. Eu já gostava dela. Ela podia ser uma garota sexualmente provocante ou repugnante — em minha opinião, um bando de garotas realmente bonitas é uma ou outra coisa —, mas ela não era nada disso.
— Como vai o rodante? — perguntei, aproximando-me do carro.
— Nada mau.
Arnie me seguiu, tentando não rir de forma tão escandalosa. O trabalho progredira e já havia muita coisa feita no Fury, de maneira que não parecia mais tão absurdo e irremediável. A outra metade da grade antiga e enferrujada do radiador fora substituída e desaparecera por completo o ninho de rachaduras no pára-brisa.
— Você trocou o pára-brisa — comentei. Arnie assentiu.
— E o capô.
O capô estava límpido, novo em folha, formando um chocante contraste com as laterais pontilhadas de ferrugem. Era um vermelho vivo de carro de bombeiros. Aparência brilhante. Arnie o tocou possessivamente e o toque se transformou em carícia.
— Hum-hum. Eu mesmo o coloquei.
Algo daquilo penetrou em mim. Ele havia feito tudo sozinho, não?
— Você disse que ia transformá-lo em peça de exposição — falei. — Acho que estou começando a acreditar.
Dei a volta, até o lado do motorista. A forração lateral das portas e do piso continuava suja e surrada, mas agora o estofamento do banco dianteiro fora substituído, bem como o do traseiro.
— Vai ficar muito bonito — disse Leigh, mas havia uma nota falsa em sua voz.
Seu tom não soara naturalmente brilhante e efervescente, como quando estávamos falando sobre o jogo — e isso me fez observá-la. Um olhar apenas foi suficiente. Ela não gostava de Christine. Adivinhei de maneira tão completa e absoluta, como se houvesse captado uma das ondas cerebrais de Leigh no ar. Senti que faria o possível para gostar do carro, porque gostava de Arnie. No entanto... ela não iria gostar realmente de Christine.
— Quer dizer que já legalizou o carro para rodar na rua — falei.
— Bem... — Arnie pareceu pouco à vontade. — Não consegui ainda. A legalização completa.
— O que quer dizer?
— A buzina não funciona e, às vezes, as lanternas traseiras apagam, quando piso no freio. Deve existir um curto em algum lugar, mas até agora ainda não descobri onde.
Olhei para o pára-brisa novo. Havia um adesivo recente de inspeção sobre ele. Arnie seguiu meu olhar e conseguiu ficar constrangido e algo agressivo ao mesmo tempo.
— Will me arranjou o adesivo — explicou. — Ele sabe que o carro está noventa por cento legal. Além disso, pensei, você conseguiu sair com sua garota, certo?
— Não é perigoso, é? — perguntou Leigh.
A pergunta foi dirigida a nós dois. Ela franzira o cenho ligeiramente — creio que captara a súbita corrente fria entre Arnie e eu.
— Não — respondi. — Creio que não. Quando estiver com Arnie e ele na direção, estará em companhia do próprio anjo da guarda.
Meu comentário rompeu a estranha tensão que se formara. Do campo chegou até nós um esganiçado dissonante de metais, seguido pela voz do instrutor da banda, perfeitamente nítida sob o céu carregado:
— De novo, por favor! Isto é Rodgers e Hammerstein, não rock and ro-ool! De novo, por favor! Nós três nos entreolhamos. Eu e Arnie começamos a rir e, após um momento, Leigh riu também.
Ao fitá-la, tornei a sentir aquele ciúme momentâneo. Eu nada mais queria senão o melhor para meu amigo Arnie, porém ela era realmente alguma coisa — dezessete anos, caminhando para os dezoito, fascinante, perfeita, saudável, viva para tudo em seu mundo. Roseanne era bonita à sua maneira, porém Leigh a fazia parecer um bicho-preguiça tirando um cochilo.
Foi então que comecei a querê-la? Que comecei a querer a garota de meu melhor amigo? Sim, suponho que tenha sido. No entanto, eu lhe juro, nunca a teria assediado, se as coisas tivessem acontecido de modo diferente. Apenas, eu não imaginava que pudessem ser diferentes. Talvez fosse tão-somente uma questão de sentimentos.
— É melhor irmos andando, Arnie, ou não encontraremos um bom lugar nas arquibancadas dos visitantes — disse Leigh, com uma entonação de grande dama.
Ele sorriu. Ela ainda lhe segurava o braço de leve, deixando-o bastante desajeitado com aquilo. Por que não? Se fosse comigo, se tivesse minha primeira experiência com uma garota daquelas, alguém tão bonita como Leigh, já estaria três quartos apaixonado por ela. Desejei a ele o melhor com ela. Gostaria que vocês acreditassem nisso, mesmo que não acreditem em mais nada do que vou contar, daqui por diante. Se alguém merecia um pouco de felicidade, era Arnie.
O resto do time tinha ido para os vestiários dos visitantes, nos fundos da ala do ginásio da escola, e agora Puffer mostrava a cabeça.
— Será que pode nos favorecer com a sua presença, Sr. Guilder? — gritou ele. — Sei que é pedir muito, mas espero que me perdoe, se tiver algo mais importante a fazer. Se não tiver, poderia trazer seu rabo até este vestiário?
Murmurei para Arnie e Leigh:
— Isto é Rodgers e Hammerstein, não rock and ro-ool— e corri na direção do prédio. Caminhei para os vestiários — Puffer voltara para dentro — e Arnie e Leigh afastaram-se para
as arquibancadas. A meio caminho para as portas, parei e voltei até Christine. Aproximei-me dela em um círculo, ainda persistia aquele absurdo preconceito contra caminhar à frente do carro.
Na traseira, vi uma placa de concessionário da Pensilvânia, mantida no lugar por uma mola. Virei-a do outro lado e vi uma fita adesiva fosca, com os dizeres: ESTA PLACA É DE PROPRIEDADE DA GARAGEM DARNELL, LIBERTYVILLE, PA.
Deixei a placa cair de volta e levantei-me, de cenho franzido. Então, Darnell dera a Arnie um adesivo de inspeção, quando o carro ainda estava longe de ter condições para trafegar; ele lhe emprestara uma placa de concessionário, a fim de poder usar o carro e trazer Leigh ao jogo. Além do mais, deixara de ser "Darnell" para Arnie, que pouco antes o chamara de "Will". Interessante, mas não muito confortador.
Perguntei-me se Arnie era idiota o bastante para pensar que os Will Darnell do mundo algum dia prestavam favores por pura bondade. Esperei que não fosse, mas não tinha certeza. Eu não tinha mais muita certeza sobre Arnie. Ele mudara demais nas últimas semanas.
Nós pintamos o diabo no campo e conseguimos ganhar o jogo — como se viu mais tarde, foi um dos únicos dois que ganhamos em toda a temporada... embora eu não estivesse mais no time, quando ela terminou.
Não tínhamos direito algum de vencer: fomos para o campo já nos sentindo derrotados e perdemos o lançamento. Os Hilmen Montanheses (nome tolo para uma equipe, mas o que há de tão inteligente em ser conhecido como os Terriers — cães de toca — se descemos a isto?) avançaram quarenta metros em duas primeiras jogadas, penetrando em nossa linha de defesa como queijo em goela de pato. Então, em sua terceira jogada seguida, o zagueiro deles deixou a bola escapar. Gary Tardiff a agarrou e rastejou sessenta metros para o escore, com um enorme sorriso aberto no rosto.
Os Hilmen e seu treinador perderam a pose, protestando que a bola estava impedida na linha do centro, mas os árbitros discordaram e ganhamos por 6-0. De meu lugar no banco, eu podia olhar até as arquibancadas dos visitantes e via que os poucos torcedores do Libertyville estavam ficando alucinados. Acho que tinham todo o direito, afinal era a primeira vez que levávamos a melhor em uma partida, em toda a temporada. Arnie e Leigh sacudiam bandeirolas dos Terriers. Acenei para eles. Leigh me viu, acenou de volta e depois cutucou Arnie. Ele acenou também. Pareciam estar ficando muito íntimos, lá em cima, o que me fez sorrir.
Quanto ao jogo, não perdemos o entusiasmo, após aquela contagem obtida na pura sorte. Havíamos conseguido para nós essa coisa mística, o ímpeto — talvez pela última vez do ano. Não quebrei o recorde de touchdown da Associação, conforme Arnie previra, mas fiz pontos três vezes, uma delas em uma corrida de noventa metros, a mais longa que já fizera. Chegado o meio tempo, a contagem era de 17-0 e o treinador se tornara um novo homem. Ele entrevia uma grande reviravolta à nossa frente, a maior arrancada na história da Associação. Claro está que era um sonho louco, como se viu depois, porém ele tinha motivos para ficar eufórico naquele dia, e gostei que assim fosse, como gostei do aprofundamento da amizade de Arnie e Leigh.
O segundo tempo não foi tão bom; nossa defesa reassumiu a postura cabisbaixa a maior parte do tempo, a mesma postura de nossos três primeiros jogos, porém a contagem continuou bem a nosso favor. Vencemos por 27-18.
O último quarto de hora ia pelo meio quando o treinador me mandou sair e entrou Brian McNally, que me substituiria no ano seguinte — em realidade, ainda mais cedo do que isso, como se viu depois. Tomei uma ducha, troquei de roupa e saí, no momento em que soava o aviso para os dois últimos minutos de jogo.
O pátio de estacionamento estava repleto de carros, mas vazio de gente. Uma gritaria selvagem vinha do campo, quando a torcida dos Hilmen insistia com seu time para que fizesse o impossível, naqueles dois últimos minutos da partida. Da distância em que me achava, tudo me parecia tão sem importância, como indubitavelmente o era.
Caminhei em direção a Christine.
Lá estava ela, com sua lataria lateral pontilhada de ferrugem, o capô novo e a traseira parecendo ter mil quilômetros de comprimento. Um dinossauro dos soturnos dias do bop dos anos 50, quando todos os milionários do petróleo eram do Texas e o dólar ianque tripudiava do iene japonês, em vez de ser o contrário. De volta aos tempos em que Carl Perkins cantava sobre calças três quartos cor-de-rosa e Johnny Horton cantava sobre dançar-se a noite inteira no piso de madeira dura de uma espelunca, e o maior ídolo dos adolescentes no país era Edd "Kookie" Byrnes.
Toquei em Christine. Tentei acariciá-la, como Arnie fizera. Queria gostar daquele carro por causa de Arnie, como Leigh havia feito. Certamente, se alguém fosse capaz de forçar-se a gostar dele, esse alguém era eu. Leigh conhecia Arnie a apenas um mês. Eu o conhecera a vida inteira.
Deslizei a mão pela superfície enferrujada, pensando em George LeBay, Verônica e Rita LeBay. Em algum ponto de tais pensamentos, a mão que supostamente devia acariciar fechou-se em um punho e esmurrei subitamente o flanco de Christine, com quanta força pude, com violência bastante para me machucar a mão e me fazer dar uma risadinha defensiva, perguntando-me que diabo eu pensava estar fazendo.
Ouvi o som de flocos de ferrugem desprendendo-se da lataria.
O som de um bombo, vindo do campo de futebol, como gigantesca pulsação cardíaca.
O som de minhas próprias pulsações cardíacas.
Experimentei a porta da frente.
Estava trancada.
Passei a língua pelos lábios e senti que estava assustado.
Era quase como se — aquilo era engraçado, era hilariante —, era quase como se o carro não gostasse de mim, como se desconfiasse que eu queria intrometer-me entre ele e Arnie, como se soubesse que eu não queria caminhar diante dele porque...
Tornei a rir, mas então recordei meu sonho e fiquei sério. Aquilo era demais, para deixar-me sossegado. Não era Chubby McCarthy clamando pelo rádio, claro, não em Hidden Hills, mas o final daquilo provocou uma sensação desagradável e fantástica de déjà vu — o som dos gritos da torcida, o som do contato de corpos acolchoados, o vento sibilando por entre as árvores que pareciam recortadas, sob um céu encoberto.
O motor dispararia. O carro saltaria para diante, recuando, avançando, recuando. E então os pneus chiariam, quando rugissem diretamente para mim...
Afugentei o pensamento. Era tempo de parar de entulhar-me com toda aquela merda idiota. Era tempo — mais do que tempo — de controlar minha imaginação. Aquilo ali era um carro — não uma "ela" mas um "ele", não realmente Christine, mas apenas um Plymouth Fury 1958, que saíra de uma linha de montagem em Detroit, juntamente com mais uns quatrocentos mil outros.
Isso funcionou... pelo menos temporariamente. Só para demonstrar que não estava nem um pouco amedrontado, ajoelhei-me e espiei debaixo do carro. O que vi lá era ainda mais louco do que a estranha maneira pela qual o Plymouth estava sendo reconstruído no alto. Havia três amortecedores novos mas o quarto era uma ruína escura e suja de graxa, parecendo ter estado ali desde sempre. O cano de descarga era tão novo que ainda reluzia como prata, porém o silencioso tinha uma aparência de meia-idade, pelo menos, enquanto que a junção do cano de descarga se mostrava em péssimo estado. Ao olhar para este último, pensei nas emanações que poderiam passar para dentro do carro e isso me fez novamente recordar Verônica LeBay. Porque emanações do cano de descarga podem matar.
Elas...
— O que está fazendo, Dennis?
Creio que estava mais inquieto do que imaginava, porque me levantei como uma flecha, o coração disparando no peito. Era Arnie. Ele se mostrava frio e irritado.
Porque eu dava uma espiada em seu carro? Por que isso deveria deixá-lo tão fora de si? Uma boa pergunta. No entanto, era evidente que o deixara furioso.
— Examinava seu potente motor — falei, tentando aparentar naturalidade. — Onde está Leigh?
— Foi ao toalete — respondeu ele, encerrando este ponto. Os olhos cinzentos permaneciam fixos em meu rosto. — Dennis, você é meu melhor amigo, o melhor que já tive. Acho que me poupou uma viagem ao hospital outro dia, quando Repperton puxou aquela faca para mim, mas não gosto do que anda fazendo pelas minhas costas, Dennis. Você nunca foi assim.
Houve um tremendo rugido da torcida no campo — os Hillmen tinham acabado de fazer o tento final do jogo, com menos de trinta segundos de tempo restando.
— Não sei de que diabo está falando, Arnie — respondi.
No entanto, sentia-me culpado. Culpado pela maneira como me sentira ao ser apresentado a Leigh, avaliando-a, desejando-a um pouquinho — desejando a garota que, tão evidentemente, Arnie queria para si. Contudo... fazer algo por trás de suas costas? Era isso que eu estivera fazendo?
Suponho que ele poderia ter encarado assim a questão. Eu estava sabendo que seu irracional — interesse, obsessão, seja lá o que for —, sua postura irracional sobre o carro era o aposento trancado na casa de nossa amizade, o lugar em que eu não poderia penetrar sem atrair todo tipo de problemas. E, se ele não me surpreendera tentando arrombar a porta, pelo menos me apanhara espiando pelo buraco da fechadura.
— Acho que sabe muito bem do que estou falando — respondeu ele, e não estava apenas irritado, mas enfurecido, conforme pude constatar, com certa apreensão. — Você, meu pai, minha mãe, estão todos me espionando "para o meu bem", não é assim que se diz? Eles o mandaram à Garagem de Darnell para bisbilhotar, não foi?
— Escute aqui, Arnie, espere um pouco...
— Cara, não pensou que eu acabaria descobrindo? Não disse nada quando soube porque... bem, porque somos amigos. Só que não gosto disso, Dennis. Tem que haver um limite e acho que o estou marcando. Por que não deixa meu carro em paz e pára de se meter onde não foi chamado?
— Em primeiro lugar — respondi — não foram seu pai e sua mãe. Michael me chamou de lado e pediu que desse uma espiada no que você já tinha feito com o carro. Concordei, porque também estava curioso. Seu pai sempre foi muito legal comigo. O que mais poderia responder a ele?
— Devia ter respondido "não".
— Você não entende, Arnie. Ele está do seu lado. Sua mãe ainda espera que tudo isto dê em nada, foi o que percebi, mas Michael tem realmente esperança de que você ponha o carro rodando. Ele me disse isso.
— Claro, era a melhor maneira de convencer você. — Arnie estava quase rosnando. — Na verdade, ele está interessado é em ter certeza de que continuo atrapalhado com o carro. É só o que interessa a eles. Não querem que eu cresça, porque então estariam enfrentando a própria velhice.
— Está sendo muito duro, cara.
— Talvez você acredite nisso. Talvez o fato de vir de uma família mais ou menos normal deixe você de miolo mole, Dennis. Eles me ofereceram um carro novo quando eu tirasse o diploma, sabia?
Tudo o que eu devia fazer era desistir de Christine, tirar A em todas as matérias e concordar em matricular-me em Horlicks... onde os dois poderiam manter-me sob sua vigilância direta por mais quatro anos.
Fiquei sem saber o que dizer. Aquilo era pura estupidez, claro.
— Portanto, fique fora disso, Dennis. É tudo quanto tenho a dizer. Será melhor para nós dois.
— De qualquer modo, não contei nada a ele — repliquei. — Falei apenas que você estava consertando umas coisinhas, aqui e ali. Ele pareceu ficar aliviado.
— Oh, aposto que sim!
— Não fazia a menor idéia de que o carro estivesse quase no ponto de poder rodar na rua. Mas falta ainda alguma coisa. Dei uma espiada por baixo dele e vi que o cano de juntura da descarga está em terríveis condições. Espero que esteja dirigindo com os vidros arriados.
— Não venha me dizer o que devo fazer! Conheço esse carro muito melhor do que você!
Foi quando comecei a me encher daquilo. Não estava gostando do rumo que o caso tomava — não queria discutir com Arnie, especialmente agora, quando Leigh chegaria a qualquer momento —, mas pude sentir alguém no compartimento cerebral do andar de cima, começando a apertar aqueles botões vermelhos, um por um.
— Talvez seja verdade — repliquei, controlando a voz —, mas não estou muito certo sobre até que ponto você conhece as pessoas. Will Darnell lhe deu um adesivo de licença inadequado. Se você for apanhado, Arnie, poderá perder seu certificado estadual de inspeção. Ele arranjou também uma placa de concessionário. Por que Darnell fez isso, Arnie?
Pela primeira vez, Arnie ficou na defensiva.
— Eu já lhe disse. Ele sabe que estou trabalhando no carro.
— Não seja imbecil! Aquele cara não daria uma muleta a um caranguejo aleijado se não tirasse nisso algum proveito e você sabe.
— Pelo amor de Deus, Dennis, quer fazer o favor de ficar fora disso?
— Escute aqui, cara — falei, dando um passo para ele. — Estou pouco me lixando se você tem ou não um carro. Só não quero que se meta em enrascadas por causa dele. Sinceramente.
Ele me fitou com incerteza.
— E outra coisa: por que estamos aqui aos gritos, um para o outro? — acrescentei. — Só porque espiei debaixo de seu carro, para ver como o cano de descarga estava preso?
Enfim, aquilo não era tudo o que eu tinha feito. Não tudo. E penso que ambos sabíamos disso.
No campo de jogo, o tiro final soou com um "bangue" monótono. Uma brisa ligeira começara a soprar e estava esfriando. Viramo-nos para o som do tiro e avistamos Leigh, caminhando em nossa direção, trazendo suas bandeirolas e as de Arnie. Ela acenou. Acenamos em resposta.
— Posso muito bem cuidar de mim, Dennis — avisou ele.
— Está legal — respondi simplesmente. — Espero que possa.
De repente, senti vontade de perguntar-lhe até que ponto ia sua amizade com Darnell. Foi uma pergunta que não pude fazer, porque originaria uma discussão ainda mais amarga. Seriam ditas coisas que talvez nunca mais fossem reparadas.
— Claro que posso — disse ele.
Tocou seu carro e a expressão dura dos olhos suavizou-se. Experimentei uma mistura de alívio e inquietação — alívio, por afinal não acabarmos brigando, pois tínhamos conseguido controlar as palavras que, se ditas, seriam o golpe final. Não obstante, tive a sensação de que não fora fechado apenas um aposento em nossa amizade, mas toda uma maldita ala. Ele rejeitara totalmente o que eu tinha para dizer e deixou bem claras as condições para que nossa amizade continuasse: tudo estaria bem, desde que eu não me atravessasse em seu caminho.
Se ele pudesse perceber, essa também era a atitude de seus pais. De qualquer modo, Arnie teria que descobrir isso em outra oportunidade.
Leigh chegou até nós, com gotas de chuva cintilando em seu cabelo. Estava corada, os olhos brilhantes de boa saúde e saudável excitamento. Exalava uma ingênua e não-testada sexualidade, que me deixou com a cabeça ligeiramente zonza. Não que eu fosse o objeto principal de sua atenção — Arnie é que o era.
— Como foi que terminou? — perguntou ele.
— Vinte e sete a dezoito — disse ela, para acrescentar, jovialmente: — Nós acabamos com eles. Onde estavam vocês dois?
— Conversando sobre carros, nada mais — falei.
Arnie dirigiu-me um olhar divertido — pelo menos, seu senso de humor não havia desaparecido, juntamente com o senso comum. Pensei que houvesse algum motivo de esperança, na maneira como olhava para ela. Estava gamado por Leigh, da cabeça aos pés. No momento, ainda era uma queda lenta, mas certamente a velocidade aumentaria, com eles dois saindo juntos. A pele de Arnie limpara completamente e sua aparência era muito boa, apesar de um tanto intelectual, por causa dos óculos que usava. Não era o tipo de pessoa que se esperaria fosse do agrado de alguém como Leigh Cabot; o que qualquer um imaginaria, era vê-la pendurada ao braço da versão ginasial americana de Apolo.
As pessoas agora cruzavam o campo correndo, nossos jogadores e os adversários, nossa torcida e a deles.
— Apenas conversando sobre carros — repetiu Leigh, zombeteira.
Ergueu o rosto para Arnie e sorriu. Ele sorriu também, um sorriso enternecido e satisfeito, que encheu meu coração de alegria. Bastava olhar para ele e eu poderia dizer que quando Leigh lhe sorria daquele jeito, Christine era o assunto mais remoto em sua mente, ficava relegada ao seu lugar exato, isto é, um meio de transporte.
Achei aquilo ótimo.
Ó Senhor, quer me comprar um Mercedes-Benz?
Todos os meus amigos dirigem Porsches,
Preciso ser compensado...
— Janis Joplin
Nas primeiras duas semanas de outubro, vi Arnie e Leigh um bocado de vezes pelos corredores, primeiro recostados contra seus armários pessoais, o dele ou o dela, conversando antes do toque de ida para casa; depois de mãos dadas; em seguida, saindo da escola enlaçados pelos ombros. Tinha acontecido. No jargão escolar, eles estavam "saindo juntos". Pensei que era bem mais do que isso. Pensei em como estavam apaixonados.
Eu não vira mais Christine desde o dia em que derrotamos o time de Hidden Hills. Aparentemente, ela retornara à Darnell's para novos reparos — talvez isso fizesse parte do acordo entre Arnie e Darnell, quando este lhe emprestara a placa de concessionário e o adesivo ilegal aquele dia. Não vi o Fury, mas vi Leigh e Arnie muitas vezes... e também ouvi muito a respeito dos dois. Eram um assunto quente, nas fofocas da escola. As garotas queriam saber o que Leigh vira nele, afinal; os rapazes, sempre mais práticos e vulgares, queriam apenas saber se meu amigo tampinha já conseguira ir "até o fim do caminho" com sua garota. Eu não me preocupava com nenhuma das duas coisas, mas de tempos em tempos me perguntava o que pensariam Regina e Michael sobre o caso extremo de primeiro amor de seu filho.
Em certa segunda-feira de meados de outubro, eu e Arnie almoçamos juntos nas arquibancadas, perto do campo de futebol, como havíamos planejado fazer naquele dia em que Buddy Repperton exibira sua faca. Aliás, Repperton fora realmente expulso por causa daquilo. "Penetra" e Don saíram-se com três dias de suspensão. No momento, comportavam-se como bons meninos. E, nesse ínterim não-tão-doce, o time de futebol sofrera mais duas derrotas. Nossa contagem agora era de 1-5 e o treinador recaíra em rabugento silêncio.
Meu saco de almoço não estava tão bem abastecido como no dia de Repperton e da faca; o único ponto positivo que eu via em nossa contagem de 1-5 era que agora nos mantínhamos tão atrás dos Ursos de Ridge Rock (cuja contagem era de 5-0-1) que somente se o ônibus da equipe deles despencasse por um abismo conseguiríamos fazer alguma coisa na Associação.
Estávamos sentados ao brando sol de outubro — não faltava muito tempo para os fantasmas feitos de lençóis, as máscaras de borracha e fantasias compradas no Woolworth —, mastigando e falando pouco. Arnie tinha um ovo grelhado com temperos picantes e o trocou por um de meus sanduíches de carne fria. Os pais pouco sabem sobre as vidas secretas dos filhos, penso eu. Desde o primeiro grau, todas as segundas-feiras Regina Cunningham colocava um ovo-grelhado-picante na lancheira de Arnie, e todos os dias, depois de havermos jantado carne assada (em geral na ceia dos domingos), eu tinha uma fatia daquela carne em meu sanduíche. Acontece que sempre detestei carne assada fria e Arnie sempre detestou aqueles ovos picantes, embora eu nunca o tivesse visto rejeitar um ovo preparado de outro modo. Muitas e muitas vezes me perguntei o que pensariam nossas mães se soubessem que parte ínfima das centenas de ovos picantes e dúzias de sanduíches de carne assada fria, postos em nossas respectivas lancheiras, tinham sido realmente comidos por aqueles a quem eram destinados.
Comi meus biscoitos e Arnie seus doces de figo em barra. Ele me olhou para certificar-se de que eu espiava e então enfiou todas as seis barras de doce de figo na boca, ao mesmo tempo, começando a mastigá-las. Suas bochechas se incharam grotescamente.
— Que falta de educação, raios! — exclamei.
— Ung-un-guut-ung — replicou Arnie.
Comecei a espetar meus dedos em suas costelas, onde ele sempre sentira muita cócega, gritando:
— Vou tocar piano em suas costelas! Ouviu bem, Arnie? Vou tocar piano em suas costelas! Ele começou a rir, expelindo pequenos punhados de massa de doce meio mastigada. Sei o quanto isto pode parecer detestável, mas era bastante divertido.
— Pare, Dennis! — disse ele, com a boca ainda cheia de doce.
— Como disse? Não consigo entender o que diz, seu filho da mãe!
Eu continuava a fazer-lhe cócegas, no estilo que denominávamos "tocar piano" quando éramos crianças (por algum motivo hoje perdido nas areias do tempo), enquanto ele ficava se torcendo, retorcendo e rindo.
Engoliu tudo o que tinha na boca e depois arrotou.
— Nossa! Você é muito mal-educado, Cunningham! — exclamei.
— E eu não sei?
Ele parecia realmente satisfeito com aquilo. Talvez estivesse mesmo; que eu soubesse, nunca fizera aquele truque das seis barras de doce enfiadas na boca ao mesmo tempo, diante de mais ninguém. Se cometesse tal atrocidade em presença dos pais, acho que Regina pariria um gatinho e Michael possivelmente teria uma trombose cerebral.
— Quantas você já conseguiu enfiar na boca? — perguntei.
— Uma vez já botei doze ao mesmo tempo — disse ele —, mas pensei que fosse sufocar. Eu ri com vontade.
— Já fez a demonstração para Leigh?
— Estou reservando para a festa de fim de ano — disse. — Espero também poder tocar piano nas costelas dela.
Rimos à beça com isso e percebi o quanto às vezes sentia falta de Arnie — e eu tinha o futebol, o conselho de estudantes, uma nova namorada que (assim esperava) consentiria em masturbar-me, antes que terminasse a temporada do drive-in. Minhas esperanças de que ela fosse além disso eram mínimas: a garota parecia encantada demais consigo mesma. De qualquer modo, seria uma experiência divertida.
Mesmo com tanta coisa acontecendo, eu ainda sentia falta de Arnie. Primeiro havia sido Christine, agora eram Leigh e Christine. Nesta ordem, era o que esperava.
— Onde está ela hoje? — perguntei.
— Indisposta — informou ele. — Ficou menstruada e parece que não passa muito bem com suas regras.
Ergui as sobrancelhas mentalmente. Se ela discutia seus problemas femininos com ele, é porque já estavam ficando muito íntimos.
— Como foi que pediu a ela para ir ao jogo de futebol aquele dia? Quando jogamos em Hidden Hills?
Ele riu.
— O único jogo de futebol a que já fui, desde calouro. Demos sorte a você, Dennis.
— Foi só telefonar para ela e convidá-la?
— Quase não tive coragem. Foi o primeiro encontro que tive. — Ele me fitou com acanhamento.
— Na véspera, acho que só dormi umas duas horas. Depois que telefonei, e ela disse que iria comigo, fiquei em pânico, achando que tinha feito um papel idiota ou que Buddy Repperton ia aparecer e querer brigar. Pensei que ia acontecer qualquer coisa terrível.
— Você parecia ter tudo sob controle.
— É mesmo? — Ele ficou satisfeito. — Hum, é bom ouvir isso, mas a verdade é que estava apavorado. Ela já tinha conversado comigo nos corredores, sabe como é, me perguntava sobre os deveres de casa e coisas assim. Entrou para o clube de xadrez, mesmo não sendo muito boa... Agora está ficando melhor. Estou ensinando como se joga.
Aposto que sim, vivaldino, pensei, não ousando dizer em voz alta. Ainda recordava a maneira como Arnie se voltara contra mim, naquele dia do jogo em Hidden Hills. Por outro lado, eu queria ouvir aquilo, estava morrendo de curiosidade. Conquistar uma garota fascinante como Leigh Cabot devia ter sido uma dureza.
— Então, depois de algum tempo, comecei a pensar que ela poderia estar interessada em mim — prosseguiu Arnie. — Talvez eu demorasse mais a me convencer do que qualquer outro cara... estou falando de caras como você, Dennis.
— Lógico, sou uma fera — respondi. — Aquilo a que James Brown costumava chamar de máquina sexual.
— Bem, você não é nenhuma máquina sexual, mas entende de garotas — disse Arnie, muito sério. — Você as compreende. Sempre tive medo delas e nunca sabia o que dizer. E ainda não sei, acho. Leigh é diferente.
— Eu tinha receio de convidá-la para sair. — Ele continuou e pareceu considerar a questão. — Quero dizer, Leigh é uma garota bonita, muito bonita mesmo. Você não acha, Dennis?
— Acho. Que me conste, é a mais bonita da escola. Ele sorriu satisfeito.
— Eu também acho... mas pensei que só achasse porque a amo.
Olhei para meu amigo, esperando que não se envolvesse em problemas maiores do que poderia controlar. A esta altura, naturalmente, eu não tinha idéia do significado da palavra problema.
— Além do mais, ouvi dois caras conversando um dia, no laboratório de química, Lenny Barongg e Ned Stroughman. Ned contava a Lenny que a convidava para sair e que ela se recusara, de maneira delicada... como se talvez aceitasse um segundo convite. Quando imaginei que ela poderia estar firme com Ned na primavera, comecei a ficar com um ciúme dos diabos. Você entende o que quero dizer?
Sorri e assenti. Lá fora, no campo, as chefes de torcida ensaiavam novas rotinas. Não achei que fossem de grande ajuda para o nosso time, mas era gostoso espiá-las. Suas sombras acumulavam-se em torno dos pés sobre a grama verde, à luz brilhante do meio-dia.
— Outra coisa que me tocou, foi ver que Ned não parecia chateado... nem tampouco envergonhado ou... rejeitado. Nada assim. Ele a convidou, levou um fora e foi tudo. Decidi que também podia fazer aquilo. Mas então, quando liguei para a casa dela, suava pelo corpo todo. Cara, foi o diabo! Fiquei imaginando Leigh rindo de mim e dizendo qualquer coisa como "Eu, sair com você, seu asqueroso? Deve estar sonhando! Ainda não estou desesperada!".
— É — concordei. — Não sei como ela não disse isso. Ele me esmurrou o estômago.
— Vou tocar piano em suas tripas, Dennis! Vou fazer você vomitar!
— Pare com isso — falei. — E depois? Arnie deu de ombros.
— Não há muito mais para contar. A mãe dela atendeu, quando liguei para lá, e disse que ia chamá-la. Ouvi o barulho do fone sendo colocado em cima da mesa e quase desliguei. — Arnie exibiu dois dedos, afastados entre si por menos de um centímetro. — Faltou isto para que eu desligasse. Sem brincadeira!
— Conheço a sensação — falei, e conhecia mesmo.
A gente se preocupa com as zombadas, o desprezo em qualquer dose, pouco importando se jogamos futebol ou somos um nanico com espinhas e de óculos, mas não creio que vocês possam avaliar o grau em que Arnie deve ter sentido isso. Seu gesto exigira uma coragem fenomenal. Convidar uma garota para sair é algo insignificante, mas em nossa sociedade existem todos os tipos de forças negativas, girando atrás de tão simples conceito — quero dizer, há caras que cursam todo o ginásio e nunca reúnem coragem bastante para convidar uma garota a um encontro. Nem uma só vez, em todos os quatro anos. E isto não acontece apenas com um ou dois caras, mas com bandos deles. Como também há bandos de garotas tristonhas que nunca foram convidadas. É uma merda de maneira de dirigir as coisas, quando se pára para refletir a respeito. Muita gente se machuca. Eu podia imaginar perfeitamente o terror de Arnie, esperando que Leigh viesse atender o telefone; a sensação de mortal espanto à idéia de que não pretendia convidar uma garota qualquer, porém a garota mais bonita da escola.
— Ela atendeu — continuou Arnie. — Disse: "Alô?" e, cara, eu não conseguia falar nada! Tentei, mas nada saía da garganta além de ar resfolegado. Então ela insistiu: "Alô, quem está falando?", como se fosse uma espécie de trote, sabe como é. Fiquei pensando: isto é ridículo! Se pude conversar com ela no corredor, devia ser capaz de falar com ela pelo maldito telefone. Tudo que Leigh pode dizer é não, quero dizer, não vai me matar, nada disso, se a convidar para sair. Então, falei: "oi, aqui é Arnie Cunningham". Ela respondeu: "oi", e blablablá, conversa mole, conversa mole, conversa mole, até eu perceber que nem mesmo, droga, sabia para onde convidá-la. E logo ficaríamos sem assunto, ela ia desligar... Foi quando lhe disse a primeira coisa que me passou pela cabeça, perguntei se queria ir comigo ao jogo de futebol no sábado. Ela disse que adoraria ir, foi bem assim, como se só estivesse esperando que eu a convidasse, você saca?
— Vai ver, ela estava mesmo esperando que você a convidasse.
— Hum... Talvez sim.
Arnie meditou na questão, bestificado. O sinal tocou, significando cinco minutos para o quinto tempo. Eu e Arnie nos levantamos. As chefes de torcida correram para fora do campo, com seus saiotes agitando-se provocativamente.
Descemos as arquibancadas, jogamos os sacos vazios do almoço em um dos barris de lixo, pintados com as cores da escola — laranja e preto, falando-se do Dia das Bruxas — e caminhamos para a escola.
Arnie ainda sorria, recordando a maneira como tudo havia acontecido, naquela primeira vez com Leigh.
— Convidá-la para ir ao jogo foi puro desespero.
— Muito obrigado — repliquei. — É isso o que mereço por ter botado os bofes pra fora a tarde toda do sábado, hein?
— Você entende o que eu quero dizer. Então, depois que ela concordou em ir comigo, tive aquela idéia horrível e liguei para você lembra-se?
Lembrei-me de repente. Ele ligara para saber se íamos jogar em casa ou fora, tendo parecido absurdamente arrasado, quando lhe falei que seria em Hidden Hills.
— Pois lá estava eu, prestes a sair com a garota mais bonita da escola, doidão por ela, e fico sabendo que o jogo ia ser fora daqui. E com meu carro emperrado na garagem de Will.
— Podiam ter ido no ônibus.
— Eu sei, mas na hora nem pensei nisso. O ônibus sempre costumava estar lotado, uma semana antes do jogo. Não podia imaginar que tanta gente fosse deixando de assistir às partidas, com o time perdendo.
— Não me lembre isso — pedi.
— Então, apelei para Will. Sabia que Christine agüentaria a viagem, mas ainda não tinha a papelada legal para a rua. Resumindo, eu estava desesperado.
Desesperado, como?— perguntei-me, fria e repentinamente.
— Ele foi muito legal comigo. Disse que compreendia o quanto aquilo era importante e, se... — Arnie fez uma pausa, parecendo considerar. — Bem, era a tal história do grande encontro — terminou, desajeitadamente.
E se...
Bem, não era da minha conta.
Olhe por ele, meu pai tinha dito.
Recusei também este pensamento.
Passávamos agora pela área de fumar, deserta, exceto por três caras e duas garotas, fumando apressadamente o que restava de um baseado. Usavam o artifício de uma carteirinha de fósforos, dobrada como clipe para segurar a minúscula guimba. O odor evocativo da maconha, tão similar ao aroma das folhas de outono queimadas lentamente, deslizou por minhas narinas.
— Tem visto Buddy Repperton? — perguntei.
— Não e nem quero — respondeu ele. — E você?
Eu o vira apenas uma vez, quando ele aparecera no posto de gasolina Happy Gas, de Vandenberg, na Rota 22, em Monroeville. O posto tinha uma bomba apenas, pertencia ao pai de Vandenberg e vivia à beira da falência, desde o embargo do petróleo árabe, em 73. Buddy não me vira — eu estava apenas passando por perto.
— Não cheguei a falar com ele.
— Acha que ele falaria? — perguntou Arnie, com um sarcasmo que não lhe era costumeiro. — O grande bosta!
Sobressaltei-me. Aquela palavra novamente. Pensei a respeito, disse a mim mesmo, que diabo, e então perguntei-lhe onde ouvira aquele termo tão específico.
— Lembra-se do dia em que comprei o carro? — perguntou. — Não o dia em que dei o dinheiro de entrada, mas aquele em que paguei o restante.
— Claro que me lembro.
— Entrei com LeBay em sua casa, enquanto você ficava do lado de fora. Havia uma cozinha minúscula, com uma toalha de xadrez vermelho na mesa. Sentamo-nos e ele me ofereceu uma cerveja. Achei que devia aceitar. Eu queria o carro e não pretendia ofendê-lo de modo algum, entende? Assim, cada um bebeu uma cerveja, enquanto ele começava com aquela interminável divagação... como a chamaria? Acho que arenga. Aquela arenga sobre todos os bostas estarem contra ele. Era o nome que empregava, Dennis. Os bostas. Disse serem os bostas que o forçavam a vender o carro.
— O que queria dizer com isso?
— Sem dúvida, queria dar a entender que era velho demais para dirigir, mas não se expressou em palavras. Era tudo culpa deles. Dos bostas. Os bostas queriam que ele fizesse exame de estrada para motorista a cada dois anos e um exame de vista todo ano. Era este último que o preocupava. Alegou que não o queriam na rua, que ninguém o queria dirigindo. Então, alguém atirou uma pedrada em seu carro.
"Sinceramente, eu compreendia tudo aquilo. Mas não compreendo como ele pôde... — Arnie fez uma pausa rente à porta, esquecendo que já estávamos atrasados para a aula. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos traseiros do jeans e franzia o cenho. — Não compreendo como ele pôde deixar Christine ficar parada, arruinando-se daquela maneira, Dennis. Do jeito como estava, quando a comprei. Principalmente, se falava sobre ela como se realmente a amasse... você talvez vá pensar que isso fazia parte da conversa fiada para me vender o carro, mas não era. Então, já no fim, quando ele contava o dinheiro, deu uma espécie de resmungo: 'Esse carro de merda! Que me foda, se sei por que o quer, garoto. É o ás de espadas.' Respondi qualquer coisa, alegando achar que eu poderia pôr Christine em excelente estado. Ele respondeu: 'Tudo isso e ainda mais. Se os bostas permitirem"'
Entramos. O Sr. Lehereux, professor de Francês, rumava apressadamente para algum lugar, a cabeça calva luzindo sob as luzes fluorescentes.
— Estão atrasados, garotos — disse ele, em uma voz ofegante, que me fez lembrar o coelho branco de Alice no País das Maravilhas.
Ele caminhou mais depressa, até ficar fora de vista. Então, nós dois voltamos a caminhar devagar.
— Quando Buddy Repperton foi atrás de mim daquele jeito — disse Arnie —, confesso que fiquei com medo de verdade. — Ele baixou a voz, sorrindo, mas sério. — Quase borrei as calças, se quer saber. Enfim, acho que usei a palavra de LeBay sem sentir. Não acha que se aplica ao caso de Repperton?
— Tem razão.
— Preciso ir agora — disse Arnie. — Cálculos primeiro, depois Mecânica de Motores III. De qualquer modo, acho que fiz todo o curso trabalhando em Christine.
Arnie apressou-se e fiquei no corredor, parado por coisa de um minuto, vendo-o afastar-se. Havia um período vago em meu horário, sob a orientação da Srta. Trouxa-de-Ratos. Era o sexto período das segundas-feiras, e achei que podia esgueirar-me para os fundos, sem ser visto. Já havia feito isso antes. Por outro lado, os alunos do último ano sempre levavam a melhor em muitas coisas, como eu ia rapidamente aprendendo.
Fiquei ali, tentando afastar uma sensação de medo, que nunca fora tão amorfa, tão pouco concreta. Havia algo errado, qualquer coisa fora do lugar, não combinado. Senti um calafrio, que nem todo o brilhante sol de outubro, penetrando por todas as janelas do ginásio, conseguia desfazer. As coisas eram as mesmas de sempre, mas estavam se dispondo para uma mudança — eu podia pressentir isso perfeitamente.
Fiquei ali, tentando pôr-me em movimento, dizer a mim mesmo que o calafrio não passava de temores sobre meu próprio futuro, sendo essa a mudança que me inquietava. Talvez o medo fizesse parte disso. Possivelmente, mas não todo ele. Esse carro de merda! Que me foda, se sei por que o quer, garoto. É o ás de espadas. Avistei o Sr. Lehereux, que voltava do gabinete, e comecei a mover-me.
Penso que todos nós temos uma espécie de enxada atrás da cabeça, que, em momentos de tensão ou problemas, pode ser movimentada e simplesmente introduzir tudo que nos preocupa em uma grande fenda no solo de nossa mente consciente. Livrando-se de tudo. Enterrando-o. No entanto, a tal fenda penetra no subconsciente e, às vezes, em sonhos, os corpos despertam e caminham. Tornei a sonhar com Christine naquela noite. Desta vez, Arnie estava ao volante e o cadáver em decomposição de Roland D. LeBay oscilava obscenamente no banco do passageiro, enquanto o carro rugia para fora da garagem e vinha contra mim, espetando-me com os círculos selvagens de seus faróis.
Acordei com o travesseiro apertado contra a boca, para sufocar os gritos.
Mais depressa, mais depressa,
Amigão, ninguém te deixa pra trás.
— The Beach Boys
Até o Dia de Ação de Graças, aquela foi a última vez que conversei com Arnie — que conversei realmente com ele —, porque fui posto fora de circulação no sábado seguinte. Era o dia em que tornávamos a enfrentar os Ursos de Ridge Rock e, desta feita, perdemos pela contagem verdadeiramente espetacular de 46—3. Entretanto, eu não estaria mais lá, quando o jogo terminou. Já teria transcorrido uns sete minutos do terceiro quarto de tempo, quando vi o campo livre, agarrei um passe e me dispunha a correr, no exato momento em que fui atingido simultaneamente pelos três jogadores da linha de defesa dos Ursos. Houve um instante de dor horrenda, um clarão ofuscante como se eu houvesse sido apanhado na área zero de uma explosão nuclear... e depois a escuridão. Uma escuridão total.
Tudo permaneceu escuro por um período razoavelmente longo, embora eu não tivesse qualquer noção do fato. Fiquei inconsciente por cerca de cinqüenta horas, e ao acordar no final da tarde de segunda-feira, 23 de outubro, estava no Hospital Comunitário de Libertyville. Vi papai e mamãe por perto. Também Ellie, parecendo pálida e cansada. Havia olheiras escuras em torno de seus olhos e fiquei absurdamente comovido; minha irmã ainda tinha forças para chorar por mim, apesar das guloseimas que eu roubava da caixa de pão, depois que ela ia dormir, apesar da caixinha de pílulas de vitaminas que lhe dera, quando ela estava com doze anos e havia passado uma semana observando-se de perfil no espelho, vestindo sua camiseta mais apertada, para ver se seus peitinhos estavam mais crescidos (Ellie prorrompera em lágrimas e mamãe ficara irritada comigo por quase duas semanas) e apesar das irritantes brincadeirinhas fraternas de eu sou melhor do que você.
Arnie não estava lá quando acordei, mas apareceu pouco depois e se juntou à minha família; ele e Leigh tinham ficado na sala de espera. Naquela noite, meu tio e minha tia de Albany deram as caras e, pelo restante da semana, houve um fixo desfilar de parentes e amigos — toda a equipe de futebol esteve no hospital para visitar-me, incluindo-se o treinador Puffer, que parecia ter envelhecido vinte anos. Talvez tivesse descoberto que existem coisas piores do que uma temporada de derrotas. Foi o treinador que me deu a notícia de que eu nunca mais poderia voltar ao futebol. A julgar pela expressão grave e tensa de seu rosto, não sei o que ele esperava — que eu explodisse em choro ou tivesse um acesso de histeria. Entretanto, quase não esbocei qualquer reação, interna ou externamente. Já bastava a alegria de saber-me vivo e que, eventualmente, tornaria a andar.
Se eu houvesse sido atingido apenas uma vez, sem dúvida escaparia bem e pronto para outra. O corpo humano, no entanto, não foi feito para ser comprimido de três ângulos diferentes, ao mesmo tempo. Eu estava com as duas pernas quebradas, a esquerda em dois lugares. Meu braço direito havia sido puxado para trás, quando caí, de maneira que ostentava uma feia fratura parcial no antebraço. Entretanto, tudo isso era apenas o enfeite do bolo. Também tive o crânio fraturado, e mais o que o médico incumbido de meu caso persistia em qualificar como "um acidente na porção inferior da coluna", com isto querendo dizer que, por fração de centímetro, eu escapava de ficar paralisado da cintura para baixo, pelo resto da vida.
Recebi montes de visitas, montes de flores, montes de cartões. De certo modo, tudo isso era muito agradável — como estar vivo para ajudar a comemorar a própria ressurreição.
Entretanto, houve também um bocado de dores e um bocado de noites em que não podia dormir; um de meus braços ficou suspenso acima do corpo através de pesos e roldanas, o mesmo acontecendo a uma das pernas (ambas comichavam o tempo todo, por sob o gesso) e houve também mais uma carapaça de gesso temporária — conhecida como "molde compressor" — em torno da parte inferior do torso. Além do mais, havia a perspectiva de uma longa permanência no hospital e viagens intermináveis de cadeira de rodas àquela câmara de horrores tão inocentemente intitulada Ala de Terapia.
Oh, havia mais uma coisa — eu tinha um bocado de tempo.
Eu lia o jornal. Fazia perguntas aos que me visitavam. E por diversas vezes, quando as coisas prosseguiram e minhas suspeitas começaram a tomar proporções exageradas, interroguei-me sobre se não poderia estar perdendo a razão.
Fiquei no hospital até o Natal, e ao voltar para casa aquelas suspeitas já quase haviam adquirido sua moldagem final. A cada vez me era mais difícil negar essa monstruosa configuração e eu sabia muitíssimo bem que não estava perdendo o juízo. Em certos sentidos, teria sido até melhor — mais confortador — se pudesse ter acreditado nisso. Àquela altura, no entanto, além de estar terrivelmente assustado, estava também quase apaixonado pela garota de meu melhor amigo.
Havia tempo para pensar... tempo demais.
Tempo para xingar cem vezes a mim mesmo, pelo que vinha pensando sobre Leigh. Tempo para contemplar o forro de meu quarto e desejar jamais ter ouvido falar de Arnie Cunningham... de Leigh Cabot... ou de Christine.
Arnie — Canções adolescentes sobre amor
O vendedor chegou pra mim e disse:
"Dê seu Ford de entrada,
E lhe arranjo um carro que comerá a estrada!
Basta me dizer o que deseja e assinar nesta linha,
Que lhe entregarei o carro novo dentro de uma hora.
Vou ficar com um carrão
E disparar estrada abaixo;
Então, adeus preocupações
Com aquele Ford caindo aos pedaços.
— Chuck Berry
O Plymouth 1958, de Arnie Cunningham, foi licenciado para trafegar nas ruas, na tarde de 19 de novembro de 1978. Ali se encerrava o processo — realmente iniciado na noite em que ele e Dennis Guilder trocaram aquele primeiro pneu arriado —, com o pagamento de uma taxa de licença no valor de 8,50 dólares, uma taxa rodoviária municipal de 2 dólares (que também incluía a permissão de estacionamento grátis nos parquímetros do centro da cidade) e 15 dólares por uma placa de matrícula. No Departamento de Veículos a Motor, em Monroeville, Arnie recebeu a chapa da Pensilvânia HY-6241-J.
Ele voltou do DVM para Libertyville em um carro que Will Darnell lhe emprestara e saiu da Garagem Faça-Você-Mesmo de Darnell atrás do volante de Christine. Levou-a para casa.
Seu pai e sua mãe chegaram juntos da Universidade Horlicks, cerca de uma hora mais tarde. A briga teve início quase imediatamente.
— Vocês o viram? — perguntou Arnie, dirigindo-se aos dois, porém principalmente ao pai. — Acabei de registrá-lo esta tarde.
Sentia-se orgulhoso e tinha motivos. Christine acabara de ser lavada e polida, reluzia à última claridade do sol da tarde de outono. Ainda tinha um bocado de ferrugem, mas parecia mil vezes melhor do que naquele dia em que Arnie a trouxera. Os estofos das portas, como o capô e as traseiras estavam novos em folha. O interior se apresentava impecável, imaculadamente limpo. Os vidros e cromados cintilavam.
— Sim, eu... — começou Michael.
— É claro que o vimos! — explodiu Regina. Preparava um drinque, que mexia com um misturador de coquetel em um copo de cristal, formando furiosos círculos no sentido contrário ao movimento de um relógio. — Quase o atropelamos. Não o quero estacionado aqui. A casa vai parecer um depósito de carros usados!
— Mamãe! — exclamou Arnie, ofendido e espantado.
Olhou para o pai, mas Michael se afastara para preparar um drinque — talvez decidindo que ia precisar de um.
— Muito bem — disse Regina Cunningham. Seu rosto estava ligeiramente mais pálido que de costume. O ruge nas faces salientava-se, quase como a pintura de um palhaço. Engoliu metade de seu gim com tônica, fazendo uma careta como quem sente o gosto de um remédio amargo. — Leve-o de volta para onde esteve. Não o quero aqui e não vou admiti-lo aqui, Arnie. É a palavra final.
— Levá-lo de volta? — disse Arnie, agora não só ofendido, como também irritado. — Formidável, não? Lá ele me sai a vinte pratas por semana!
— Está lhe saindo a muito mais do que isso — replicou Regina. Terminou de beber seu drinque e largou o copo. Virou-se e o encarou. — Estive dando uma espiada em seu talão de cheques outro dia...
— Você fez o quê?— exclamou Arnie, com olhos arregalados.
Ela enrubesceu ligeiramente, mas não baixou os olhos. Michael se aproximou e parou junto à porta, olhando pesaroso da mulher para o filho.
— Eu queria saber quanto você andou gastando nesse maldito carro — disse ela. — Será alguma coisa demais? Você tem que ir para a universidade o ano que vem. Que me conste, na Pensilvânia não estão dando estudo de graça nas universidades.
— Então você apenas entrou em meu quarto e revirou tudo, até encontrar meu talão de cheques, não foi? — disse Arnie. Seus olhos cinzentos estavam frios de ódio. — Talvez estivesse procurando por maconha também. Ou revistas pornográficas. Quem sabe, manchas de esperma nos lençóis?
Regina ficou boquiaberta. É possível que esperasse dele uma reação de mágoa ou raiva, mas não aquela fúria total e descontrolada.
— Arnie! — rugiu Michael.
— E daí, por que não? — gritou Arnie, em resposta. — Pensei que o assunto fosse coisa minha! Deus é testemunha do quanto vocês ficaram dizendo que era minha responsabilidade!
— Estou muito decepcionada por sua atitude, Arnold — disse Regina. — Decepcionada e magoada. Você está se portando como...
— Não venha me dizer como me porto! Como acha que me sinto? Trabalhei como o diabo para conseguir licenciar o carro, trabalhei nele mais de dois meses e meio, mas quando o trago para casa, a primeira coisa que ouço de você é para tirá-lo da entrada. Como é que deveria me sentir? Feliz?
— Não é motivo para usar esse tom com sua mãe — disse Michael. A despeito das palavras, o tom era desajeitadamente conciliatório. — Ou para empregar esse tipo de linguagem.
Regina estendeu o copo para o marido.
— Prepare-me outro drinque. Há uma garrafa fechada de gim na despensa.
— Fique aqui, papai — disse Arnie. — Por favor. Vamos resolver isto!
Michael Cunningham olhou para a esposa, depois para o filho e em seguida novamente para ela. Ambos pareciam como que de pedra. Ele recuou para a cozinha, apertando o copo de Regina.
Regina se virou implacável para o filho. A cunha estivera em sua porta desde finais do último verão e talvez ela percebesse ser aquela sua última chance para chutá-la novamente.
— Em julho, você tinha quase quatro mil dólares no banco — disse. — Cerca de três quartos de todo o dinheiro que conseguiu nos últimos anos, mais os juros...
— Oh, você esteve de olho o tempo todo, não? — disse Arnie. Sentou-se de repente, encarando a mãe. Seu tom era de desgostosa surpresa. — Mamãe, por que não retirou o maldito dinheiro e colocou em uma conta em seu nome?
— Porque até recentemente — disse ela — você parecia compreender qual era a finalidade desse dinheiro. Nos últimos dois meses, ele se foi diluindo em carro-carro-carro e, mais recentemente, em garota-garota-garota. Como se você tivesse enlouquecido, quanto a essas duas coisas.
— Muito bem, obrigado. Afinal, sempre posso receber uma bela opinião sem preconceitos, sobre a maneira como estou dirigindo minha vida!
— Este julho, você tinha quase quatro mil dólares. Para os seus estudos, Arnie. Para os seus estudos. Agora, tem apenas pouco mais de dois mil e oitocentos. Pode esbravejar como quiser, e admito que dói um pouco, mas aí estão os fatos. Em dois meses, você deu cabo de mil e duzentos dólares. Talvez seja por isso que não suporto ver aquele carro. Você devia compreender meus sentimentos. Para mim, isso é como...
— Ouça...
— ... como jogar fora uma enorme nota de dólar.
— Posso lhe dizer duas coisas?
— Não, não creio que possa, Arnie — disse ela, como se encerrasse o assunto. — Sinceramente, 118 não creio que possa.
Michael retornara com o copo de Regina, cheio de gim até a metade. Acrescentou água tônica no bar e entregou a ela. Regina bebeu, tornando a fazer aquela careta de repugnância. Arnie permaneceu sentado na poltrona perto da TV, olhando pensativamente para a mãe.
— E você leciona em uma universidade! — exclamou. — Leciona em uma universidade e é essa a sua atitude? "Tenho dito. Vocês agora se limitem a ficar de boca fechada." Formidável! Sabe de uma coisa? Tenho pena de seus alunos.
— Veja lá o que diz, Arnie! — disse ela, apontando-lhe um dedo. — Veja lá como fala!
— Posso dizer duas coisas ou não?
— Fale, embora não faça qualquer diferença. Michael pigarreou.
— Reg, acho que Arnie tem razão. Francamente, esta não é uma atitude construt... Ela se voltou para o marido como um felino.
— E nem uma palavra você também! Michael emudeceu.
— A primeira coisa que quero dizer é o seguinte — Arnie começou. — Se você examinou minha poupança um pouco mais atentamente, e tenho certeza disso, deve ter percebido que o total baixou de uma só vez em dois mil e duzentos dólares na primeira semana de setembro. Tive que comprar toda a parte dianteira nova para Christine.
— E fala nisso como se estivesse orgulhoso do que fez! — exclamou Regina, irritada.
— É claro que estou. — Arnie fixou os olhos nos dela. — Eu mesmo montei aquela parte dianteira, sem que ninguém me ajudasse. Ninguém seria capaz... — aqui sua voz pareceu vacilar momentaneamente, mas depois se firmou. — Ninguém seria capaz de distingui-la da original. Enfim, o que quero dizer é que o total daquele dinheiro aumentou em seiscentos dólares, a partir daí. Porque Will Darnell gostou do meu trabalho e me conseguiu algo para fazer. Se eu puder acrescentar seiscentos dólares à conta de poupança, de dois em dois meses, e posso consegui-lo, se Will me contratar para ir a Albany, onde ele compra seus carros usados, em minha conta haverá quatro mil e seiscentos dólares quando terminar o período escolar. E se eu trabalhar em horário integral no próximo verão, estarei começando a universidade com quase sete mil dólares. Então, você pode deixar todo o dinheiro à porta desse carro que tanto odeia.
— Isso de nada lhe adiantará, se não conseguir uma boa universidade — contra-atacou ela, dissecando desafiadoramente o assunto, como fazia tantas vezes nas reuniões do departamento, quando alguém ousava questionar uma de suas opiniões... algo não muito freqüente. Ela não assentia, limitando-se a passar para outra faceta do caso. — Suas notas baixaram.
— Não tanto para criar problemas — disse Arnie.
— O que quer dizer com "não tanto para criar problemas"? Você teve um deficiente em Cálculo! Recebemos o cartão com a nota vermelha faz apenas uma semana!
Aqueles cartões vermelhos, às vezes conhecidos como cartões-de-bomba pelo corpo estudantil, eram despachados em meados de cada período a estudantes com nota média 75 ou menos, durante as primeiras cinco semanas do trimestre.
— Aquilo foi baseado em uma única prova — disse Arnie tranqüilo. — O Sr. Fenderson é tão famoso por dar tão poucas provas na primeira metade do trimestre que qualquer um pode levar para casa um cartão vermelho com um F, por não entender um conceito básico — e terminar com um A, abrangendo todo o ano letivo. Eu poderia ter-lhes dito tudo isto, se me tivessem perguntado. Só que não perguntaram. Aliás, foi somente o terceiro cartão vermelho que recebi, desde que comecei o ginásio. Minha média continua sendo 93 e vocês dois sabem o quanto é boa e...
— Pois eu digo que irá baixar! — exclamou Regina em voz aguda, dando um passo para ele. — É tudo por causa de sua maldita obsessão com esse carro! Arranjou uma namorada; acho ótimo, excelente, formidável! Mas a mania por esse carro é insana! O próprio Dennis diz...
Arnie estava de pé, tão depressa, tão próximo dela, que Regina recuou um passo, sua fúria suplantada momentaneamente pela dele.
— Deixe Dennis fora disto — disse Arnie, em voz malevolamente gélida. — Isto é entre nós!
— Está bem — respondeu Regina, pisando novamente em chão firme. — O simples fato é que suas notas irão baixar. Eu sei disso, como seu pai, e uma prova é aquele cartão vermelho em Matemática.
Arnie sorriu confiantemente e Regina pareceu desconfiada.
— Bem, vou lhe dizer uma coisa — falou Arnie. — Deixe eu ficar com o carro aqui, até terminar o período das provas. Se eu tiver alguma nota mais baixa do que C, prometo vendê-lo a Darnell. Ele o comprará; sabe que pode obter mil pratas pelo carro, no estado em que se encontra agora. E o valor só tende a subir.
Arnie refletiu um pouco.
— Farei ainda melhor — disse. — Se eu não estiver no quadro de honra do semestre, também me livrarei dele. Isto significa que estou apostando meu carro como conseguirei um B em Cálculo, não apenas pelo trimestre, mas por todo o semestre. O que me diz?
— Não — respondeu Regina prontamente.
Lançou ao marido um olhar de: Não se meta nisto. Michael, que tinha aberto a boca, fechou-a prontamente.
— Por que não? — perguntou Arnie, com enganadora suavidade.
— Porque é um truque seu, sabe muito bem! — gritou Regina para ele, agora com fúria total e incontida. — E não vou mais ficar aqui debatendo esta imbecilidade e ouvindo suas insolências! Eu... eu mudei suas fraldas sujas! Já falei que quero aquele carro fora daqui, ande nele, se quiser, mas não o deixe onde eu tenha que vê-lo! Pronto! Está decidido!
— O que acha disto, papai? — perguntou Arnie, encarando Michael. Seu pai tornou a abrir a boca para falar.
— Ele acha o mesmo que eu — disse Regina.
Arnie a fitou novamente. Os olhos de ambos encontraram-se, a mesma tonalidade de cinza.
— O que ele disser pouco importa, não?
— Penso que isto já foi longe demais e...
Ela começou a dar meia-volta, a boca ainda dura e decidida, os olhos estranhamente confusos. Arnie pegou seu braço, pouco acima do cotovelo.
— Pouco importa, não é? Porque quando você decide algo, não quer ver, não quer ouvir e nem pensar.
— Pare com isso, Arnie! — gritou Michael.
Arnie olhou para sua mãe e ela lhe devolveu o olhar. Os olhos de ambos estavam gélidos, impenetráveis.
— Pois eu vou dizer por que não quer nem considerar o assunto — continuou Arnie, naquela mesma voz suave. — Não se trata de dinheiro, porque o carro me pôs em contato com um trabalho em que sou bom, e no qual terminarei ganhando dinheiro. Você sabe disso. Não são as minhas notas, também. Elas não estão piores do que sempre foram. E você também sabe disso. É porque você não admite que eu escape de sua coleira, como faz com seu departamento, como faz com ele! — Arnie apontou o indicador para Michael, que tinha uma expressão irritada, culpada e infeliz ao mesmo tempo. — Você não quer me ver fora da coleira em que sempre estive!
O rosto de Arnie agora estava vermelho, as mãos crispadas ao longo do corpo.
— Toda aquela asneira liberal sobre a família decidir as coisas, discuti-las em reunião, fazê-las funcionar... No entanto, o fato é que você sempre escolheu minhas roupas para o colégio, meus sapatos para o colégio, com quem eu podia andar e com quem não podia, você decidia onde passaríamos as férias, você dizia a ele quando trocar de carro e por qual carro. Bem, isto é uma coisa que você não pode dirigir e então fica com um ódio desgraçado, não é mesmo?
Ela o esbofeteou no rosto. O som foi como um tiro de revólver na sala de estar. Lá fora, o crepúsculo se instalara e os carros passavam indistintos, os faróis dianteiros semelhantes a olhos amarelos. Christine estava estacionada na entrada asfaltada dos Cunningham, como estivera uma vez no gramado de Roland D. LeBay, só que agora parecendo consideravelmente melhor de aparência — altaneira e acima de toda aquela feia e indecente discussão familiar. Ela havia, talvez, brotado para o mundo.
De repente, de modo chocante, Regina Cunningham começou a chorar. Aquilo era um fenômeno, algo assim como a chuva no deserto, uma coisa que Arnie só a vira fazer quatro ou cinco vezes em toda a sua vida — e em nenhuma das outras ocasiões fora ele o culpado pelas lágrimas.
Era um choro assustador — contou ele a Dennis, mais tarde —, pelo simples fato de existir. Terrível, porém ainda havia mais: as lágrimas a tinham feito envelhecer de um golpe, como se Regina houvesse dado um salto espantoso dos quarenta e cinco para os sessenta anos, no espaço de segundos. O acinzentado pétreo de seu olhar ficara aguado e enfraquecido. Subitamente, as lágrimas lhe corriam pelas faces, estragando a pintura do rosto.
Ela tateou na borda da lareira à procura de seu drinque e os dedos colidiram contra o copo, que caiu e espatifou-se. Uma espécie de incrédulo silêncio pairou entre eles três, um espanto por as coisas terem chegado a tal extremo.
Não obstante, mesmo por entre a fraqueza das lágrimas, ela conseguiu dizer:
— Não quero aquele carro em nossa garagem ou na entrada, Arnold.
— Ele não ficará aqui, mamãe — respondeu Arnie friamente. Caminhou para a porta, depois se virou e olhou para eles.
— Obrigado. Por serem tão compreensivos. Muito obrigado, aos dois. Então saiu.
Desde que você foi embora
Ando por aí de óculos escuros
Mas sei que tudo ficará legal
Enquanto puder ter meu negríssimo
e brilhante Cadillac.
— Moon Martin
Michael alcançou Arnie na entrada para carros, ocupada por Christine. Pousou a mão no ombro do filho. Arnie sacudiu o ombro para libertar-se do contato e continuou remexendo o bolso, em busca das chaves do carro.
— Arnie, por favor.
Arnie deu uma rápida meia-volta. Por um momento, esteve à beira de tornar absoluta a escuridão da noite, agredindo o pai. Então, parte da tensão em seu corpo diminuiu e se recostou no carro, tocando-o com a mão esquerda, alisando-o, parecendo extrair forças dele.
— Está bem — disse. — O que você quer?
Michael abriu a boca e então pareceu incerto quanto ao que fazer. Um ar de impotência — teria sido divertido, se não parecesse tão horrivelmente taciturno — tomou conta de seu rosto. Ele parecia ter envelhecido, estava desfigurado e nervoso.
— Arnie — disse ele, parecendo forçar as palavras contra algum enorme peso de inércia se opondo. — Eu sinto muito, Arnie.
— Hum-hum — respondeu Arnie, virando-se e abrindo a porta do lado do motorista. Um cheiro agradável de carro bem cuidado escapou do interior. — Pude ver, pela maneira como ficou do meu lado.
— Por favor — disse Michael. — Isto é muito duro para mim. Mais do que possa imaginar. Algo em sua voz fez com que Arnie se virasse. Havia desespero e infelicidade no olhar de seu pai.
— Não digo que eu quisesse ficar do seu lado — disse Michael. Também vejo o lado dela, compreenda. E vi a maneira como você se impôs, querendo que fosse feita a sua vontade, a todo custo...
Arnie deu uma risada malévola.
— Em outras palavras, vocês dois pensam o mesmo.
— Sua mãe está atravessando uma crise de idade — comentou brandamente Michael. — Isto tudo é muito difícil para ela.
Arnie pestanejou, a princípio não muito certo do que ouvira. Era como se, de repente, seu pai lhe tivesse dito algo na "língua do p"; aquilo parecia ter tanta importância como se estivesse discutindo escores de beisebol.
— C-como?
— Crise de idade, envelhecimento. Ela anda assustada, tem bebido demais e, às vezes, sente dores físicas. Não sempre — acrescentou, vendo o ar alarmado de Arnie —, mas já foi ao médico e agora sabemos que é por causa da mudança de idade. De qualquer modo, sua mãe está emocionalmente perturbada. Você é filho único e, da maneira como ela está agora, deseja apenas que tudo lhe corra bem, seja lá a que preço for.
— Ela quer tudo à sua maneira, o que não é nenhuma novidade. Ela sempre quis tudo à sua maneira.
— O que sua mãe acha certo para você, é o que considera correto. Isso é óbvio — disse Michael. — Entretanto, o que o faz achar-se tão diferente? Ou melhor? Você insistiu em enfrentá-la e ela sabia disso. Como eu também sabia.
— Foi ela que começou e...
— Não, quem começou foi você, quando trouxe o carro para casa, embora sabendo qual a opinião dela. Sua mãe também está certa em outro ponto: você mudou, Arnie. Desde aquele primeiro dia, quando chegou em casa, com Dennis e anunciou que comprara um carro. Foi quando tudo começou. Pensa que isso não a perturbou? Que não me perturbou também? Vermos nosso filho exibindo traços de personalidade que nem mesmo sabíamos existir?
— Ora, vamos, papai! Foi apenas um...
— Nós agora nunca o vemos, você está sempre trabalhando em seu carro ou com Leigh.
— Você está começando a falar como mamãe. Michael riu subitamente — mas era um riso tristonho.
— Está enganado, filho. Nem imagina quanto. Sua mãe tem sua própria personalidade e você se parece com ela, mas eu pareço apenas o cara incumbido de alguma idiota força de paz das Nações Unidas, prestes a botar no fogo o traseiro coletivo.
Arnie encolheu-se um pouco; sua mão tornou a encontrar o carro e começou a acariciá-lo... acariciá-lo...
— Está legal — disse. — Acho que entendo o que quer dizer. Não sei como permite que ela o manobre desse jeito, mas por mim, tudo bem.
O sorriso triste e humilhado permaneceu, um tanto como a careta do cão que ficou caçando uma marmota durante muito tempo, em um dia calorento de verão.
— Certas coisas talvez constituam um sistema de vida. Talvez, também, haja compensações que você não pode entender, nem eu possa explicar. Como... bem, eu a amo, compreenda.
Arnie deu de ombros.
— Certo, mas... e daí?
— Podemos dar uma volta?
Arnie pareceu surpreso, depois contente.
— Claro. Entre. Algum lugar em particular?
— O aeroporto.
As sobrancelhas de Arnie arquearam-se.
— O aeroporto? Por quê?
— Eu lhe direi quando chegarmos lá.
— E Regina?
— Sua mãe foi para a cama — disse Michael, com voz branda. Arnie teve o decoro de enrubescer ligeiramente.
Arnie dirigiu bem e com firmeza. Os novos faróis de Christine rasgavam a prematura escuridão em um límpido e fundo túnel luminoso. Arnie passou pela residência dos Guilder, depois dobrou à esquerda para Elm Street, junto ao sinal de trânsito. Em seguida, rumou para a JFK Drive. A rota I-376 os levou à I-287 e então tomaram a direção do aeroporto. O tráfego era ligeiro. O motor ronronava maciamente, através dos novos canos de descarga. Os mostradores no painel de instrumentos irradiavam um místico fulgor esverdeado.
Arnie ligou o rádio e encontrou a WDIL de Pittsburgh, estação em FM, que só tocava músicas antigas. Gene Chandler cantava "The Duke of Earl'.
— Esta coisa roda como um sonho — disse Michael Cunningham, parecendo admirado.
— Obrigado — respondeu Arnie, sorrindo. Michael respirou fundo.
— Tem cheiro de novo.
— Há muita coisa nova aqui dentro. As capas traseiras me ficaram em oitenta pratas. Parte do dinheiro que provocou tanta reclamação de Regina. Fui à biblioteca, pedi um monte de livros e tentei copiar tudo, o melhor que pude. De qualquer modo, não foi tão fácil como se possa pensar.
— Por que não?
— Em primeiro lugar, o Plymouth Fury 58 não foi lançado como um carro clássico, de maneira que ninguém escreveu muito a respeito, inclusive nos volumes retrospectivos sobre automóveis: O Carro Americano, Automóveis Americanos Clássicos, Automóveis dos Anos 50, coisas assim. O Pontiac 58 foi um clássico, mas somente no segundo ano saiu o modelo Bonneville. O T-Bird 58, com aletas em forma de orelha de coelho, é que foi realmente o último grande Thunderbird, acho eu. Além disso...
— Não pensei que você entendesse tanto de carros antigos — disse Michael. — Há quanto tempo se interessa pelo assunto, Arnie?
Ele deu de ombros vagamente.
— O pior é que LeBay havia feito um pedido pessoal, diretamente a Detroit. O Plymouth não oferecia um modelo Fury em vermelho e branco... procurei restaurar o carro o mais igual possível à maneira como foi feito em Detroit. Suei um bocado para isso.
— Por que deseja restaurá-lo exatamente como LeBay o tinha? Novamente, aquele vago encolher de ombros.
— Sei lá. Apenas me pareceu o mais acertado a fazer.
— Olhe, acho que fez um trabalho excelente.
— Obrigado.
Michael inclinou-se e observou o painel de instrumentos.
— O que é? — perguntou Arnie, um pouco rudemente.
— Macacos me mordam — disse Michael. — Nunca vi isso antes!
— O quê? — Arnie baixou os olhos. — Oh, o odômetro...
— Está rodando para trás, não?
Realmente, o odômetro girava para trás. Naquele dia, o entardecer de 1º de novembro, indicava 79.500 e tantas milhas. Enquanto Michael espiava, o indicador das dezenas de milha girou de 2 para 1, depois para 0. Quando voltou a 9, o marcador de milhas comeu mais uma.
Michael riu.
— Eis algo que você deixou passar, filho. Arnie riu também — um leve riso.
— Concordo — disse. — Segundo Will, deve haver um fio cruzado em algum lugar. Creio que não vou mexer nisso. Chega a ser divertido, ter um odômetro que anda para trás.
— Ele é preciso?
— Como?
— Bem, se você for de nossa casa à Praça da Estação, ele subtrairia cinco milhas do total?
— Oh, entendi — disse Arnie. — Não, ele não tem nada de preciso. Atrasa duas ou três milhas, para cada milha real percorrida. Às vezes mais. O cabo do velocímetro vai acabar rebentando, cedo ou tarde e, quando o trocar, o problema se resolverá por si só.
Michael já enfrentara um ou dois cabos do velocímetro rebentados e olhou para o ponteiro, esperando o tremular característico, indicando que ali havia problema. O ponteiro, entretanto, permanecia imóvel, pouco acima de 40. O velocímetro parecia excelente; apenas o odômetro é que enlouquecera. Estaria Arnie acreditando realmente que os mesmos cabos serviam para o velocímetro e o odômetro? Certamente que não.
Ele riu e comentou:
— É qualquer coisa de fantástico, filho.
— Por que o aeroporto? — perguntou Arnie.
— Vou lhe dar um tíquete de trinta dias de estacionamento — disse Michael. — Cinco dólares. Mais barato do que na garagem de Darnell e você poderá ter o carro sempre que quiser. O ônibus para o aeroporto faz parada nos pontos normais de outros ônibus.
— Céus, é a coisa mais louca que já ouvi! — bradou Arnie. Manobrou para o retorno, diante de uma sombria loja de lavagem a seco. — Vou ter que andar trinta quilômetros de ônibus até o aeroporto para apanhar meu carro quando quiser? Oh, não! De maneira nenhuma!
Ia dizer mais alguma coisa, quando foi subitamente agarrado pelo pescoço.
— Agora escute — disse Michael. — Sou seu pai, portanto, me ouça! Sua mãe tinha razão, Arnie. Você ficou irracional, mais do que irracional, nos dois últimos meses. Aliás, ficou bastante estranho!
— Me larga — exclamou Arnie, esforçando-se para libertar-se. Michael não o largou, mas afrouxou a pressão.
— Vou colocar a situação por outro ângulo para você — disse. — Sim, o aeroporto fica a uma boa distância, mas os mesmos 25 centavos que o levam à garagem de Darnell o trarão até aqui. Há garagens de estacionamento mais próximas, porém na cidade são maiores as incidências de roubo e vandalismo. Aqui no aeroporto, ao contrário, é perfeitamente seguro.
— Nenhum estacionamento público é seguro.
— Em segundo lugar, é mais barato que uma garagem no centro da cidade e muito mais barato do que na Darnell's.
— Não é esta a questão, sabe muito bem!
— Talvez esteja certo — disse Michael —, mas também está esquecendo algo, Arnie. A questão real.
— Suponhamos que você me diga qual é.
— Certo, eu direi. — Michael fez uma ligeira pausa, olhando fixamente para o filho. Ao falar, sua voz era baixa e contida, quase tão melodiosa como sua flauta. — Juntamente com qualquer noção do que é razoável, você parece ter perdido inteiramente o sentido de perspectiva. Está quase com dezoito anos, em seu último ano em uma escola pública. Creio que já decidiu não entrar para Horlicks; estive vendo as brochuras de universidades que levou para casa...
— Isso mesmo, não vou para Horlicks — disse Arnie, agora um pouco mais calmo. — Não depois de tudo isto. Você não pode imaginar o quanto estou querendo afastar-me daqui. Bem, talvez imagine.
— Sim, eu imagino. Talvez seja a melhor providência. Melhor do que esta constante animosidade entre você e sua mãe. Tudo quanto lhe peço é que não conte a ela por enquanto, que espere até ter enviado seus documentos de solicitação à universidade.
Arnie deu de ombros, sem nada prometer.
— Você irá levar seu carro para lá, caso ainda esteja rodando...
— Ele estará rodando.
—...e se for uma universidade que permita aos calouros estacionarem seus carros no campus. Arnie se virou para o pai, com a surpresa brotando de sua raiva latente. Estava surpreso e inquieto. Aquela era uma possibilidade que ainda não havia considerado.
— Não irei para uma universidade que não me permita ter meu carro comigo — disse.
Seu tom era de paciente recitação, o tipo de voz que um professor de crianças excepcionais usaria em aula.
— Viu só? — exclamou Michael. — Ela tem razão. Basear sua escolha de universidade na política escolar envolvendo calouros e carros é totalmente irracional. Você ficou obcecado por este carro.
— Não creio que você consiga entender. Michael apertou os lábios por um momento.
— De qualquer modo, que diferença faz vir de ônibus ao aeroporto para apanhar seu carro, se quiser sair com Leigh? Claro, é um inconveniente, porém não tão grande assim. Significa que você só o usará se houver necessidade, além de poupar dinheiro da gasolina. — Michael fez uma pausa e tornou a exibir seu sorriso tristonho. — Ambos sabemos que Regina não encara isto como jogar dinheiro fora. Para ela, este é o seu primeiro passo decisivo para afastar-se dela... de nós. Acho que sua mãe... oh, droga, que sei eu?
Interrompeu-se, fitando o filho. Arnie o encarou, pensativo.
— Leve o carro para a universidade com você; mesmo se os calouros forem proibidos de ter carros no campus, sempre há outros meios de...
— Como estacionar no aeroporto?
— Sim, mais ou menos isso. Quando você vier para casa nos fins de semana, Regina ficará tão contente em vê-lo que nem mencionará o carro. Diabo, ela provavelmente até irá para a entrada de automóveis ajudá-lo a lavá-lo e poli-lo, apenas para descobrir o que você estará fazendo. Dez meses. Então, tudo terminará. Podemos ter paz na família novamente. Vamos, Arnie. Dirija.
Arnie afastou-se da frente da lavanderia e reentrou no tráfego.
— Esta coisa está no seguro? — perguntou Michael, abruptamente. Arnie riu.
— Está brincando? Neste Estado quando não se tem um seguro de responsabilidade legal e acontece um acidente os tiras nos matam. Sem isso, seremos sempre os culpados, mesmo que o outro carro caia do céu e nos amasse o teto. Este é um dos meios pelos quais os bostas mantêm os adolescentes fora das estradas, na Pensilvânia.
Michael quis dizer a ele que um número despropositado de acidentes fatais na Pensilvânia — 41 por cento — envolvia motoristas adolescentes. Regina lera a estatística para ele, como parte de um artigo no suplemento dominical de um jornal, declamando o número em lentos tons apocalípticos, "Quarenta e um por cento!", pouco depois de Arnie ter comprado o carro. Não obstante, ficou calado, concluindo que seu filho não quereria ouvir aquilo... pelo menos em seu atual estado de espírito.
— Apenas um seguro de responsabilidade legal?
Estavam passando sob um sinal refletor, dizendo FAIXA ESQUERDA — PARA O AEROPORTO. Arnie ligou o pisca-pisca e mudou de faixa. Michael pareceu relaxar um pouco.
— Só depois dos vinte e um anos se pode fazer um seguro contra acidentes; essas merdas de companhias de seguros são ricas como Creso, mas não nos cobrem, a menos que a vantagem esteja escandalosamente do lado delas.
Na voz de Arnie havia uma nota um tanto impertinente, algo que Michael jamais havia notado antes. Também estava espantado e um pouco consternado pela escolha das palavras de seu filho. Imaginava que ele empregasse tal tipo de linguagem com os companheiros (pelo menos, foi o que mais tarde comentou com Dennis Guilder, parecendo ignorar por completo que, até seu último ano de ginásio, Arnie não tivera outro companheiro além do próprio Dennis), mas o fato é que jamais a usara diante dos pais.
— Seu registro de motorista e se é ou não motorista habilitado nada têm a ver com isso — prosseguiu Arnie. — Não se pode ter uma batida, porque as merdas das tabelas atuariais deles dizem que não se pode bater. Quando o cara faz vinte e um anos, tudo bem, mas desde que esteja disposto a gastar uma fortuna, em geral, os prêmios das apólices acabam sendo mais altos do que as multas impostas ao carro, até completarmos os vinte e três anos, ou por aí, a menos que estejamos casados. Oh, os bostas pensaram em tudo direitinho! Eles sabem como encurralar a gente, ora se sabem!
À frente e acima deles, as luzes do aeroporto fulguravam, as pistas de pouso e decolagem delineavam-se em místicas paralelas de luminosidade azulada.
— Se alguém chegar para mim e perguntar qual a forma de vida humana mais baixa, responderei que é um agente de seguros.
— Parece ter feito um profundo estudo a respeito — comentou Michael.
Não ousava dizer algo mais, pois Arnie parecia esperar um pretexto para um novo acesso de ódio.
— Andei perguntando em cinco companhias diferentes. Apesar do que mamãe insinuou, não sinto a menor vontade de jogar meu dinheiro fora.
— E responsabilidade legal foi o máximo que conseguiu?
— Certo. Seiscentos e cinqüenta dólares por ano. Michael assobiou.
— Exatamente isso — acrescentou Arnie.
Outro sinal intermitente avisava que as duas faixas da mão esquerda eram para estacionar, as da direita para partida ou saída. À entrada do pátio de estacionamento, o caminho se dividia novamente. À direita, havia um portão automático, onde era obtido um tíquete para estacionamento de curto prazo. No lado esquerdo, ficava a cabina envidraçada onde permanecia o encarregado do pátio de estacionamento, vendo uma pequena TV em preto e branco e fumando um cigarro.
Arnie suspirou.
— Talvez você esteja certo. Enfim, esta pode ser a melhor solução.
— Claro que é — disse Michael, aliviado. Arnie estava se assemelhando agora ao antigo Arnie e aquele brilho duro de seus olhos desaparecera finalmente. — Dez meses, eis tudo.
— Certo.
Dirigiu até a cabina. O encarregado, um rapazinho com a suéter preta e laranja do ginásio, com o escudo do Libertyville nos bolsos, fez deslizar a divisão envidraçada e inclinou-se para fora.
— O que vai ser? — perguntou.
— Eu queria um tíquete para trinta dias — disse Arnie, enfiando a mão no bolso para tirar a carteira.
Michael pousou a mão sobre a dele.
— A idéia foi minha — disse. — Eu pago.
Arnie puxou a mão, com delicadeza, mas firmemente, e tirou a carteira.
— O carro é meu — respondeu. — Eu mesmo pago.
— Eu só queria... — começou Michael.
— Eu sei — disse Arnie —, mas quero pagar. Michael suspirou.
— Dava para imaginar. Você e sua mãe... Tudo ficará ótimo, desde que feito como sugeri. Os lábios de Arnie tremeram momentaneamente, depois sorriram.
— Bem... é isso aí — disse ele.
Os dois se entreolharam e começaram a rir.
No mesmo instante em que riram, o motor de Christine morreu. Até então, a máquina viera funcionando com absoluta perfeição. Agora, simplesmente, silenciara; as luzes do marcador do óleo e amperagem se apagaram.
Michael ergueu as sobrancelhas.
— O que terá sido?
— Não sei — respondeu Arnie, franzindo o cenho. — Nunca aconteceu antes. Girou a chave e o motor pegou imediatamente.
— Bem, parece que não foi nada — comentou Michael.
— No fim da semana, vou dar um jeito na regulagem — murmurou Arnie.
Ligou o motor e ouviu atentamente. Naquele momento, Michael constatou que Arnie não tinha a menor semelhança com seu filho. Parecia uma outra pessoa, alguém muito mais velho e endurecido. Sentiu uma leve, mas extremamente dolorosa aguilhoada de medo no peito.
— Ei, vai querer o tíquete ou prefere ficar aí a noite inteira, discutindo sua regulagem? — perguntou o encarregado do pátio de estacionamento.
Arnie o achou vagamente familiar, como acontece quando vemos alguém se movimentando pelos corredores da escola, sem que tenhamos nada a ver com tal pessoa.
— Oh, sim, desculpe.
Arnie entregou-lhe uma nota de cinco dólares e o encarregado lhe deu um tíquete mensal.
— No fim do pátio — indicou o rapazinho. — Não esqueça de revalidar o tíquete cinco dias antes do fim do mês, se quiser ter a mesma vaga novamente.
— Certo.
Arnie dirigiu para os fundos do pátio, a sombra de Christine avolumando e encolhendo, quando passavam sob os postes com lâmpadas de sódio. Encontrou uma vaga e manobrou o carro para ela. Quando desligou o motor, fez uma careta e levou a mão às costas.
— Isso ainda o incomoda? — perguntou Michael.
— Só um pouquinho — respondeu Arnie. — Quase havia desaparecido, mas voltou ontem. Devo ter levantado algum peso, sem querer. Não esqueça de trancar sua porta.
Os dois saíram e trancaram o carro. Uma vez fora dele, Michael se sentiu muito melhor — como se estivesse mais ligado ao filho e, provavelmente ainda mais importante, com a impressão de não ser tão grande o seu papel de bobo impotente com uma tilintante carapuça de sininhos, na discussão que acontecera em casa. Fora do carro, surgia a sensação de que algo poderia ser salvo daquela noite — talvez muita coisa.
— Vejamos o quanto esse ônibus é rápido — disse Arnie.
Juntos, começaram a cruzar o pátio de estacionamento em direção ao terminal, como dois companheiros.
No trajeto para o aeroporto, Michael formara uma opinião sobre Christine. Ficara impressionado com o trabalho de restauração feito por Arnie, mas não gostava do carro em si — teve por ele profunda antipatia. Refletiu que era ridículo sentir-se daquela forma em relação a um objeto inanimado, porém a antipatia estava ali, forte e indiscutível, como um caroço em sua garganta.
Era impossível isolar a fonte do antagonismo. Aquele carro provocara um amargo problema familiar, e ele supôs que talvez fosse esse o motivo... porém não era tudo. Michael não gostara do jeito como Arnie ficava, quando na direção: algo arrogante e petulante ao mesmo tempo, como um pequeno rei. O modo impotente como injuriara o seguro... seu uso daquela palavra feia e contundente — "bostas" —, inclusive a maneira como o carro morrera, quando tinham rido juntos.
Havia ainda o cheiro. Não era perceptível logo de início, mas estava lá. Não o cheiro das novas capas dos assentos, porque este era bastante agradável. O outro exalava um odor sutil, amargo e quase (mas não inteiramente) secreto. Um odor antigo. Bem, disse Michael para si mesmo: o carro é velho; por que, raios, era de se esperar um cheiro de novo? E isto fazia um sentido indiscutível. A despeito do trabalho realmente fantástico que Arnie fizera nele ao restaurá-lo, o Fury tinha vinte anos de idade. Aquele cheiro acre e mofado poderia provir da forração antiga do porta-mala ou dos tapetes velhos, por baixo dos novos. Talvez se originasse do estofamento original, sob os novos e reluzentes. Apenas um cheiro de idade.
No entanto, aquele cheiro subjacente, difuso e vagamente doentio o preocupava. Parecia ir e vir em ondas, às vezes bastante perceptível, em outras totalmente indetectável. Não parecia ter uma fonte específica. Quando no auge, era o cheiro semelhante ao exalado pelo cadáver putrefato de algum animal pequeno — um gato, um camundongo, talvez um esquilo — que houvesse penetrado no porta-mala ou rastejado para o interior da estrutura, e lá tivesse morrido.
Michael estava orgulhoso com o que seu filho realizara... e muito satisfeito em sair do carro dele.
Primeiro caminhei pelo Pare e Compre,
Depois passei de carro pelo Pare e Compre.
Gostei muito mais, quando passei dirigindo pelo Pare e Compre,
Porque tinha o rádio ligado.
— Jonathan Richmond e os Modern Lovers
O encarregado do pátio de estacionamento naquela noite — de fato, todas as noites, das seis da tarde às dez da noite — era um jovem chamado Sandy Galton, o único membro do bando de amigos íntimos de Buddy Repperton que não estivera presente na área de fumar no dia em que Buddy fora expulso do colégio. Arnie não o reconheceu, mas Galton o viu muito bem.
Afastado da escola e sem o menor interesse em iniciar as providências para sua readmissão no início do semestre da primavera, em janeiro, Buddy Repperton tinha ido trabalhar no posto de gasolina dirigido pelo pai de Don Vandenberg. Em suas poucas semanas de serviço ali, ele já pusera em ação um razoável número de tramóias — como dar troco incompleto aos clientes apressados demais para contar as notas recebidas, praticar a farsa da recauchutagem (cobrando do cliente um pneu recauchutado como se fosse novo e embolsando a diferença de quinze a sessenta dólares), praticar ato semelhante com "peças usadas" e também vender tíquetes de inspeção a rapazinhos do ginásio e da próxima Universidade de Horlicks, jovens demasiado ansiosos em manterem na estrada suas mortais arapucas.
O posto ficava aberto vinte e quatro horas por dia e Buddy Repperton trabalhava no último turno, de 9 da noite às cinco da manhã. Por volta de onze da noite, "Penetra" Welch e Sandy Galton às vezes apareciam lá, no velho e maltratado Mustang de Sandy. Richie Trelawney costumava ir em sua Firebird, e Don, naturalmente, estava sempre chegando e saindo quase todo o tempo, quando não ficava divertindo-se na escola. Por volta de meia-noite de qualquer dia da semana, era comum ver-se seis ou oito indivíduos nas dependências do prédio, bebendo cerveja em xícaras sujas, esvaziando em rodízio uma garrafa do Texas Driver de Buddy, fumando um baseado ou comendo qualquer coisa, arrotando, contando piadas sujas, mentindo sobre quantas conas estavam comendo e talvez ajudando Buddy a roubar o que quer que estivesse dando sopa por ali.
Durante uma daquelas reuniões de fim de noite, em princípios de novembro, aconteceu de Sandy mencionar que Arnie Cunningham estava estacionando sua máquina na área do aeroporto de longo prazo. De fato, Cunningham havia pago um tíquete de estadia por trinta dias.
Buddy, cuja conduta costumeira durante aquelas reuniões de fanfarronice a altas horas era de macambúzio retraimento, empurrou bruscamente para trás sua cadeira de assento plástico barato, sobre todas as quatro pernas, e colocou sua garrafa de Driver sobre o armário dos limpadores de pára-brisa, com um baque surdo.
— O que foi que você disse? — perguntou. — Cunningham? O velho Cara de Cona?
— Hum-hum — disse Sandy, surpreso e um tanto inquieto. — Era ele.
— Tem certeza? O cara que me chutou da escola? Sandy olhou para ele com crescente alarma.
— Exato. Por quê?
— E ele ficou com um tíquete de trinta dias, sinal de que vai ficar estacionado nas vagas de longo prazo.
— Certo. Talvez seus velhos não quisessem que ele deixasse o carro em...
A voz de Sandy extinguiu-se. Buddy Repperton começara a sorrir. Aquele sorriso não era uma visão agradável, não apenas porque os dentes por ele revelados começassem a ficar cariados. Era como se algum terrível mecanismo, em alguma parte, tivesse acabado de ganhar vida e começasse a funcionar, ganhando alta velocidade.
Buddy olhou em torno, de Sandy para Don, depois "Penetra" Welch e Richie Trelawney. Os outros o encararam interessados e um pouco assustados.
— O Cara de Cona — disse ele em tom suave, acariciante. — O velho Cara de Cona já legalizou sua máquina e seus velhos caretas fizeram ele estacionar no aeroporto...
Ele riu.
"Penetra" e Don trocaram um olhar que tanto tinha de inquieto como de ansioso.
Buddy inclinou-se para eles, de cotovelos nos joelhos dos jeans.
— Ouçam — começou.
Rodando em meu automóvel,
Com meu bem junto de mim, no volante,
Roubei um beijo e rodei mais depressa,
A curiosidade ficando mais forte —
Rodando e ouvindo o rádio,
Sem nenhum destino certo.
— Chuck Berry
O rádio do carro estava na WDIL e Dion cantava "Runaround Sue" em sua voz forte, a plenos pulmões, porém nenhum deles o ouvia.
Ele escorregara a mão por baixo da camiseta que ela usava e encontrara a glória macia dos seios, coroados por mamilos eretos e rijos de excitamento. A respiração dela saía em haustos curtos e ofegantes. E, pela primeira vez, encaminhara a mão para onde ele queria, para onde ele a necessitava, na junção das coxas, onde pressionava, virava e mexia, sem experiência, mas com desejo suficiente para suprir a deficiência.
Ele a beijou e ela abriu a boca amplamente, expondo a língua. O beijo foi como inalar o límpido aroma/sabor de uma floresta após a chuva. Ele podia sentir o excitamento, a ânsia que ela exalava, como uma aura.
Inclinou-se para ela, estirou-se em sua direção, todo inteiro e, por um momento, sentiu-a corresponder com pura e simples paixão.
Então, ela não estava mais ali.
Arnie sentou-se ereto, admirado e estupidificado, um pouco à direita do volante, quando a luz do teto de Christine se acendeu. Foi um breve clarão, a porta do passageiro bateu com firmeza, fechando-se, e a luz voltou a desligar-se.
Ele ficou parado mais alguns segundos, não muito certo sobre o acontecido, momentaneamente nem muito certo de onde se encontrava. Seu corpo estava em total ebulição — um confuso amontoado de emoções e erráticas reações físicas, metade maravilhosas e metade terríveis. Sua glande doía; o pênis enrijecera como uma barra de ferro e os testículos latejavam surdamente. Ele podia sentir a adrenalina turbilhonando velozmente no sangue, subindo, descendo, indo a todos os recantos.
Seu punho fechado caiu com força sobre a perna. Então, deslizando no assento, abriu a porta e foi atrás dela.
Leigh estava de pé bem na borda da terraplenagem, olhando para a escuridão mais abaixo. Dentro de um brilhante retângulo, no meio daquela escuridão, Sylvester Stallone varou a noite, vestido como um jovem líder trabalhista dos anos 30. Arnie tinha experimentado novamente a sensação de viver em algum sonho maravilhoso que, a qualquer momento, poderia transformar-se em pesadelo... talvez isso já tivesse começado a acontecer.
Ela estava demasiado perto da borda — ele lhe pegou o braço e a puxou delicadamente para trás. O solo ali era seco e esboroado. Não havia gradil nem mureta. Se a terra da borda cedesse Leigh teria ido junto, cairia em alguma parte das moradias suburbanas espalhadas a esmo em torno do drive-in de Liberty Hill.
A terraplenagem tinha sido o local de encontro dos namorados, desde tempos imemorais. Ficava no final de Stanson Road, uma longa e serpenteante faixa de duas pistas asfaltadas, que primeiro se curvara para fora da cidade, depois formando uma curva apertada e retomando até morrer como rua sem saída em Libertyville Heights, onde outrora houvera uma fazenda.
Era 4 de novembro e a chuva que começara no início daquela noite de sábado transformara-se em ligeiro chuvisco. Eles tinham a terraplenagem e a visão grátis do drive-in (embora silenciosa) para si mesmos. Arnie a conduziu de volta ao carro — ela voltou de boa vontade —, observando os diminutos pingos do chuvisco no rosto de Leigh. Foi somente no interior, à luz fantasmagórica do clarão esverdeado que brotava do painel de instrumentos, que Arnie teve certeza: ela estava chorando.
— O que foi? — perguntou ele. — O que houve de errado? Ela sacudiu a cabeça e chorou mais forte.
— Eu fiz... alguma coisa que você não queria? — Engolindo em seco, obrigou-se a perguntar: — Tocando-me daquele jeito?
Ela tornou a sacudir a cabeça, mas Arnie não tinha certeza do significado. Ele a abraçou, desajeitado e preocupado. No fundo da mente, pensava na camada de neve que se formara, na viagem de volta descendo a ladeira e no fato de que ainda não colocara pneus de neve em Christine.
— Nunca fiz isso com nenhum rapaz — disse ela, contra o ombro dele. — Foi a primeira vez que toquei... você sabe. Fiz porque queria. Porque quis mesmo.
— Então, o que foi?
— Não posso... aqui.
As palavras saíram lentas e difíceis, uma de cada vez, com quase medrosa relutância.
— Na terraplenagem? — disse Arnie.
Olhou estupidamente em torno, pensando que Leigh talvez acreditasse que só tinham ido ali para verem o filme sem pagar.
— Neste carro! — gritou ela, de repente. — Não posso fazer amor com você neste carro!
— Hein? — Ele a fitou, sem entender. — De que está falando? E por que não?
— Porque... porque... eu não sei! — Ela se esforçou para dizer algo mais, porém explodiu em novas lágrimas.
Arnie tornou a abraçá-la, até vê-la acalmar-se.
— Apenas não sei a quem você está amando mais — disse Leigh, quando o choro permitiu.
— Isso é... — Arnie interrompeu-se, meneou a cabeça e sorriu. — Isso é loucura, Leigh!
— Será mesmo? — perguntou ela, observando-lhe o rosto. — Com qual de nós você fica mais tempo? Comigo... ou com ela?
— Está falando de Christine?
Ele olhou em torno, esboçando aquele enigmático sorriso que ela tanto podia achar adorável ou terrivelmente odioso — às vezes, ambas as coisas ao mesmo tempo.
— Estou — disse Leigh, em voz sem entonação. Baixou os olhos para as mãos que jaziam inanimadas sobre as calças compridas de lã azul. — Acho que é imbecilidade minha.
— Fico muito mais tempo com você — disse Arnie. Meneou a cabeça. — Isso é loucura. Bem, talvez seja o normal... e apenas eu ache uma loucura, porque nunca tive uma namorada antes.
Estendeu a mão e tocou-lhe os cabelos, onde cascateavam sobre um ombro do casaco aberto. Por baixo, a camiseta dizia DÊ-ME LIBERTYVILLE OU DÊ-ME A MORTE e os mamilos salientavam-se sob o algodão fino de modo tão sensual que Arnie se sentiu algo delirante.
— Pensei que garotas sentissem ciúmes de outras garotas. Não de carros. Leigh riu brevemente.
— Tem razão. Deve ser porque você nunca teve uma namorada. Carros são garotas. Não sabia?
— Ora, francamente...
— Então, por que não lhe deu o nome de Christopher?
Repentinamente, Leigh bateu com a palma aberta, fortemente, contra o assento. Arnie pestanejou.
— Ora, vamos, Leigh. Não faça isso.
— Não gosta que eu bata em sua garota? — perguntou ela, com súbito e inesperado veneno. Então, percebeu os olhos magoados. — Sinto muito, Arnie.
— Sente mesmo? — disse ele, fitando-a inexpressivamente. — Parece que ninguém gosta de meu carro, no momento: você, meu pai, minha mãe, até mesmo Dennis. Larguei couro do corpo, trabalhando nele, e tudo significa apenas zero para os outros!
— Significa algo para mim — disse ela, maciamente. — O trabalho que deu.
— Hum-hum — disse Arnie, taciturnamente. A paixão, o calor haviam desaparecido. Sentia frio agora e tinha o estômago um pouco nauseado. — Escute, é melhor irmos andando. Não tenho pneus para neve. Seus pais vão achar muito esquisito, nós dois irmos jogar boliche e depois ficarmos presos na Stanson Road.
Leigh riu baixinho.
— Eles não sabem onde a Stanson Road termina.
Arnie ergueu uma sobrancelha para ela, parte do bom humor retornando.
— Isto é o que você pensa — disse.
Arnie dirigiu lentamente na descida, quando voltavam. Christine se saiu muito bem, na estrada íngreme e serpenteante, suas rodas aderindo perfeita e facilmente ao solo. O chuveiro de estrelas terrestres, que eram Libertyville e Monroeville, foi ficando maior, depois se fundiu e parou de ostentar qualquer formato. Leigh olhava para aquilo com tristeza, sentindo que a melhor parte de uma noite potencialmente espetacular de algum modo se perdera. Estava irritada, menosprezando-se — insatisfeita, foi o que supôs. Havia uma dor surda em seus seios. Ignorava se pretendia deixá-lo ir "até o fim da linha" como era eufemisticamente conhecido, mas depois que a situação chegara a um certo ponto, nada havia sido como esperara... tudo porque havia aberto a maldita boca no momento errado.
Seu corpo estava confuso e o mesmo acontecia aos pensamentos. Por várias vezes, durante a quase silenciosa corrida de volta, ela abriu a boca, a fim de tentar esclarecer como se sentia... para tornar a fechá-la, receando ser interpretada erradamente. Aliás, a própria Leigh não sabia ao certo como se sentia.
Não tinha ciúmes de Christine... e tinha, ao mesmo tempo. Quanto a isso, Arnie não dissera a verdade. Leigh fazia uma boa idéia de todo o tempo que ele gastava consertando o carro, mas o que havia de tão errado nisso? Arnie tinha habilidade manual, gostava de trabalhar no carro e este rodava como um relógio... exceto por aquele esquisito detalhe do odômetro, cujos números corriam para trás.
Carros são garotas, ela dissera, sem pensar muito no que dizia; aquilo apenas lhe escapara da boca. Evidentemente, nem sempre isto era verdade, porque não pensava no sedã de sua família como tendo um gênero em particular; era apenas um Ford.
Só que...
Esqueça, livre-se de todas essas idiotices, essas besteiras! A verdade era muito mais brutal, inclusive mais louca, não? Ela não pudera fazer amor com ele, não pudera tocá-lo daquele jeito íntimo, muito menos pensara em fazê-lo chegar ao clímax daquela maneira (ou da outra, a maneira real — tinha pensado nisso vezes sem conta, enquanto jazia em sua cama estreita, sentindo um novo e quase incrível excitamento assaltá-la), dentro do carro.
Não naquele carro.
Porque a parte mais alucinante de tudo havia sido sentir que Christine os espiava. Sentir que talvez tivesse ciúmes deles, que os desaprovava, até mesmo odiava. Porque havia ocasiões (como agora, quando Arnie dirigia o Plymouth tão suave e delicadamente através das camadas de neve que se iam formando) em que ela sentia estarem os dois — Arnie e Christine — abraçados, envolvidos em perturbadora paródia do ato amoroso. Porque Leigh não se sentia andando em Christine; ao entrar no carro para ir com Arnie a algum lugar, sentia-se engolida por Christine. E o ato de beijá-lo, de fazer amor com ele, parecia uma perversão, pior que o voyeurismo ou exibicionismo — era como fazer amor dentro do corpo de sua rival.
E a parte realmente louca daquilo era que odiava Christine.
Odiava-a e a temia. Leigh passara a ter uma vaga irritação contra caminhar diante da nova grade do radiador ou muito perto do porta-mala. Surgiam-lhe vagos pensamentos do freio de emergência falhando ou da mudança passando bruscamente de parado para ponto morto, por algum motivo. Jamais nutrira pensamentos semelhantes em relação ao sedã da família.
O mais importante, contudo, era não querer fazer nada no carro... ou mesmo ir nele a algum lugar, se pudesse evitá-lo. De algum modo, Arnie ficava diferente quando dentro do carro, transformava-se em uma pessoa que ela não conhecia mais. Adorava o contato das mãos dele em seu corpo — seus seios e coxas (ainda não permitira que ele tocasse o seu centro, mas desejava as mãos de Arnie lá; achava que, se ele a tocasse lá, ela certamente se diluiria). O contato dele sempre lhe provocava um sabor de excitamento na boca, a sensação de que cada sentido estava vivo e deliciosamente sincronizado. No carro, entretanto, tais sensações pareciam embotadas... talvez porque, no carro, Arnie fosse menos honestamente apaixonado e, de certo modo, mais lúbrico.
Leigh tornou a abrir a boca quando dobraram para a sua rua, querendo explicar um pouco daquilo mas, novamente, nada conseguia dizer. Por que falar? Nada havia realmente para explicar — era tudo muito vago. Vapores nebulosos. Bem... havia uma coisa — mas isto não poderia contar a ele, porque o magoaria demais. E Leigh não queira feri-lo, pois achava que estava começando a amá-lo.
Contudo, a coisa existia. Estava lá.
O cheiro — um cheiro forte e pútrido, camuflado sob o aroma dos estofamentos novos e do fluido de limpeza que ele usara nos tapetes do piso. Estava lá, fraco, mas terrivelmente desagradável. Quase nauseante.
Como se, alguma vez, qualquer coisa houvesse rastejado para dentro do carro e tivesse morrido lá.
Ele lhe deu um beijo de boa-noite à porta de casa, a neve cintilando prateada no cone de luz amarela, despejada pela lâmpada da entrada de carros, aos pés dos degraus da varanda. A claridade reluzia como jóias, no louro-escuro de seus cabelos.
Arnie gostaria de tê-la beijado realmente, mas o fato de os pais dela poderem estar espiando da sala de estar — deviam estar lá, sem dúvida, o forçou a beijá-la quase formalmente, como se beijaria uma prima querida.
— Sinto muito — disse ela. — Agi como uma tola.
— Não — respondeu Arnie, obviamente querendo dizer sim.
— Foi apenas porque — sua mente forneceu algo que era um curioso híbrido de verdade e mentira — não me pareceu correto no carro. Em nenhum carro. Quero ficar com você, mas não estacionados no escuro, no fim de uma rua sem saída. Você compreende?
— Claro — disse ele. — Compreendo perfeitamente o que quer dizer.
Lá em cima, na terraplenagem, dentro do carro, ficara um pouco aborrecido com ela... para ser franco, ficara bem irritado. Agora, no entanto, junto à porta de sua casa, achou que podia compreender — e admirou-se por não querer negar-lhe nada ou contrariar-lhe a vontade de modo algum.
Ela o afagou, passou os braços por seu pescoço. O casaco continuava aberto e Arnie pôde sentir o toque macio e enlouquecido de seus seios.
— Amo você — disse Leigh, pela primeira vez.
Então, deslizou para dentro de casa, deixando-o de pé momentaneamente na entrada, agradavelmente surpreso e muito mais acalorado do que deveria estar, naquela pulsante e tamborilante neve de fins do outono.
A idéia de que os Cabot poderiam achar peculiar que ele permanecesse parado à sua porta por muito mais tempo, sob a neve, finalmente abriu caminho em seu cérebro entorpecido. Arnie deu meia-volta e começou a caminhar pela entrada de carros, entre o pulsar e o tamborilar da neve, estalando os dedos e sorrindo. Estava agora rodando na montanha-russa, fazendo a melhor parte do trajeto, a que só deixam a gente fazer uma vez.
Perto do ponto em que a alameda de concreto se unia à calçada, ele parou, o sorriso desaparecendo do rosto. Christine ficara junto ao meio-fio com pequenos flocos de neve desfeitos misturados ao chuvisco, perolando seu vidro, maculando as luzes vermelhas de lembrete do painel interno. De passagem, ele se perguntou qual seria a fonte daquela particular expressão — luzes de lembrete; uma expressão desagradável. Seus pensamentos foram então cortados pela cogitação mais importante: deixara Christine com o motor ligado e ele havia parado. Era a segunda vez que acontecia.
— Fiação molhada — murmurou para si mesmo. — Tem que ser isso.
Não podiam ser as velas, colocara todo um novo conjunto na garagem de Will, apenas dois dias antes. Oito novas Champions e...
Com qual de nós você fica mais tempo? Comigo... ou com ela?
O sorriso retornou, mas agora era inquieto. Bem, ele ficava mais tempo às voltas com carros em geral— claro. Isto, porque trabalhava para Will. Não obstante, era ridículo imaginar que...
Você mentiu para ela. Não foi?
Não, respondeu para si mesmo, nervoso. Acho que, na realidade, não se poderia dizer que menti para ela...
Não mesmo? Então, que nome dá a isso?
Pela primeira e única vez, desde que levara Leigh ao jogo de futebol em Hidden Hill, ele lhe pregara uma grande mentira. Porque a verdade é que ficava mais tempo com Christine e odiava tê-la estacionada naquela área de longa estadia do pátio de estacionamento do aeroporto, exposta ao vento e à chuva, dentro em pouco também à neve...
Mentira para Leigh.
Ele ficava mais tempo com Christine.
E isso era...
Era...
— Errado — resmungou, e a palavra quase se perdeu entre o pegajoso e misterioso som da neve caindo.
Arnie ficou parado na calçada, contemplando o carro cujo motor silenciara, um viajante do tempo, maravilhosamente ressuscitado da era de Buddy Holly, de Khruschev e de Laika, a cadela espacial. E odiou-o de repente. Não estava bem certo do que, mas ele lhe tinha feito algo. Alguma coisa.
As luzes de lembrete, deformadas para olhos vermelhos em forma de bolas de futebol, pela umidade na vidraça, pareciam zombar dele e censurá-lo ao mesmo tempo.
Arnie abriu a porta do lado do motorista, deslizou para o volante e tornou a fechá-la. Cerrou os olhos. A paz fluiu por ele e as coisas pareciam acudir juntas à mente. Sim, mentira para ela, mas fora uma pequena mentira. Uma mentirinha insignificante. Não — uma mentira absolutamente sem importância.
Estirou a mão, sem abrir os olhos, e tocou o retângulo de couro ao qual as chaves estavam presas — velho e surrado, com as iniciais R.D.L. gravadas a fogo. Arnie não sentira necessidade de um novo porta-chaves ou de um pedaço de couro com suas próprias iniciais.
Entretanto, havia algo peculiar sobre a etiqueta de couro que reunia as chaves, não havia? Sim, havia. Algo bastante peculiar.
Quando contara o dinheiro sobre a mesa da cozinha de LeBay e ele lhe jogara as chaves através da toalha de oleado em xadrez vermelho e branco, o retângulo de couro estava puído, deteriorado e encardido pela idade, as iniciais quase apagadas pelo tempo e pela constante fricção contra as moedas no bolso do velho e o próprio tecido do bolso.
Agora, as iniciais sobressaíam no couro, vivas e nítidas novamente. Tinham sido renovadas.
Como a mentira, no entanto, aquilo não tinha qualquer importância. Sentado no interior da concha metálica da carroceria de Christine, ele concluiu decisivamente que aquela era a verdade.
Ele soube. Sem a menor importância, tudo aquilo.
Girou a chave. O starter gemeu mas, durante bastante tempo, o motor não pegou. Fiação molhada. Claro que tinha de ser aquilo.
— Por favor — sussurrou. — Está tudo bem, não se preocupe, tudo está como antes.
O motor pegou e falhou. O starter ficou uivando sem parar. A neve derretida pela chuva se colava fria sobre o vidro. Era seguro ali dentro, seco e aquecido. Se o motor pegasse...
— Vamos — sussurrou Arnie. — Vamos, Christine. Vamos, meu bem.
O motor pegou novamente, com firmeza agora. As luzes de lembrete piscaram e apagaram. A luz DIN tornou a pulsar fracamente enquanto o motor se esforçava para pegar, apagando-se depois de vez, quando as pulsações da máquina se uniformizaram para um firme ronronar.
O aquecedor expeliu ar quente, suavemente, em torno de suas pernas, negando a gelidez do exterior.
Ele tinha a impressão de que Leigh não podia entender certas coisas, jamais as entenderia. Porque não estivera por ali antes. As espinhas. Os gritos de "Ei, Cara de Pizza!". O querer falar, querer chegar às outras pessoas e ser incapaz disso. A impotência. Parecia-lhe que ela não podia compreender o simples fato de que, não fosse Christine, ele jamais teria coragem de telefonar-lhe, mesmo que Leigh perambulasse com QUERO SAIR COM ARNIE CUNNINGHAM tatuado na testa. Ela não podia compreender que, às vezes, ele se sentia com trinta anos a mais do que sua idade. Não, cinqüenta anos a mais! Não um adolescente, em absoluto, mas algum veterano terrivelmente vencido, retornando de uma guerra não-declarada.
Arnie acariciou o volante. Os verdes olhos-de-gato dos indicadores, no painel de instrumentos, cintilaram confortavelmente para ele.
— Tudo certo — disse ele.
Quase suspirou. Puxou a mudança para o D maiúsculo e ligou o rádio. Dee Dee Sharp cantando "Mashed Potato Time" — tolice mística nas ondas radiofônicas, brotando do escuro.
Partiu, planejando encaminhar-se para o aeroporto, onde estacionaria o carro e pegaria o ônibus que o traria de volta à cidade. Foi o que fez, mas não em tempo de pegar o ônibus das 23 horas, como pretendera. Em vez disso, apanhou o da meia-noite e, só quando já estava na cama, recordando os beijos cálidos de Leigh, em vez de pensar na falha do motor de Christine, ocorreu-lhe que naquela noite, após deixar a casa dos Cabot e antes de chegar ao aeroporto, perdera uma hora. Era algo tão óbvio, que ele se sentiu como o homem que, após revirar a casa de alto a baixo, procurando uma peça vital de correspondência, acaba descobrindo que, o tempo todo, a tinha na outra mão. Óbvio... e um tanto assustador.
Onde estivera?
Tinha uma vaga noção de afastar-se do meio-fio, em frente à casa de Leigh, e então apenas...
... apenas rodar.
Exatamente. Rodar. Era tudo. Nada de importante.
Rodando por sobre a neve que se espessava, rodando por ruas vazias e amortalhadas de branco, rodando sem pneus de neve (mas ainda assim, por incrível que fosse, Christine rodava com segurança, parecia descobrir a maneira mais segura de ir em frente, como que por magia, avançando com tal firmeza que dava a impressão de trafegar sobre trilhos), rodando com o rádio ligado, ouvindo uma corrente constante de músicas antigas, consistindo apenas em nomes de garotas: "Peggy Sue", "Carol", "Barbara-Ann", "Susie Querida".
Arnie tinha a vaga idéia de que, a certa altura, ficara um tanto amedrontado e apertara um dos botões cromados do transformador que instalara, mas em vez de FM-104 e do Block Party Weekend, voltou a captar a estação WDIL, só que agora o disc-jockey tinha uma absurda semelhança com Allan Fred, e a voz que se seguiu era a de Screamin' Jay Hawkins, rouca e cantando: "Lancei um feitiço em vocêêê... porque você é miiiiinha...".
Por fim, lá estava o aeroporto, com suas luzes do mau tempo pulsando seqüencialmente, como uma batida cardíaca visível. O que quer que o rádio tocava, tornara-se inaudível numa confusão de estática, e ele o desligou. Ao sair do carro, experimentou uma suada espécie de incompreensível alívio.
Agora ele jazia na cama, querendo dormir, mas incapaz de conciliar o sono. O granizo engrossara, acumulando-se em pesadas camadas de neve.
Aquilo não estava certo.
Algo havia sido iniciado e algo estava em andamento. Ele nem ao menos podia mentir para si mesmo e dizer que nada sabia a respeito. O carro — Christine — recebera elogios de várias pessoas, todas dizendo como havia sido espetacularmente restaurado. Arnie fora nele para a escola e os colegas de Mecânica de Motores se comprimiram em torno, espiaram debaixo do automóvel em deslizadores de rodas, querendo ver os novos canos de escapamento, os novos amortecedores, a lanternagem. Mergulharam até a cintura no compartimento do motor, verificando as correias e o radiador (que se apresentava miraculosamente livre da corrosão e da massa esverdeada, resíduo de anos de anticongelante), examinando o dínamo e os ajustados, cintilantes pistons encaixados em seus cilindros. Até o filtro de ar era novo, com o número 318 pintado através do topo, inclinado para trás para indicar velocidade.
Sim, ele se tornara uma espécie de herói para os colegas da aula de motores, recebendo todos os comentários e cumprimentos apenas com um sorriso de protesto. Contudo, mesmo então, não estivera ali a confusão, em algum lugar bem no fundo? Claro!
Porque ele não conseguia recordar o que tinha ou não feito de reparos em Christine.
O tempo gasto trabalhando nela na Darnell's, agora não passava de um borrão, como havia sido sua corrida para o aeroporto horas antes, naquela noite. Podia recordar que começara a lanternagem na traseira enferrujada do carro, mas não se lembrava de havê-la terminado. Recordava-se pintando o capô — cobrindo o pára-brisa e pára-lamas com adesivo protetor e preparando o emassado branco, no galpão de pintura dos fundos —, mas era impossível lembrar quando trocara as molas. Nem ao menos onde as conseguira. A única certeza, era a de que permanecera atrás do volante por longos períodos, transbordando de felicidade... sentindo o mesmo êxtase de quando Leigh sussurrara: "Amo você", antes de desaparecer dentro de casa. Sentado lá, depois que a maioria dos sujeitos que consertavam seus carros na Darnell's havia ido jantar em casa. Sentado lá, e às vezes ligando o rádio, a fim de ouvir as melodias antigas da WDIL.
O pior, talvez tivesse sido o caso do pára-brisa.
Tinha certeza absoluta de que não comprara um pára-brisa novo para Christine. Se tivesse comprado um daqueles novos tipos panorâmicos, sua conta bancária estaria muito mais desfalcada. E, evidentemente, haveria um recibo. Já o procurara no fichário de mesa, marcado CARRO-CONTAS, que mantinha em seu quarto. Nada encontrara, contudo. De fato, ele o procurara com certa ansiedade.
Dennis tinha dito algo — que o emaranhado das rachaduras parecia menor, menos sério. Então, naquele dia em Hidden Hills, simplesmente... desaparecera! O pára-brisa se mostrava cristalino, imaculado.
E quando é que isso acontecera? Como acontecera?
Ele não sabia.
Adormeceu finalmente e teve sonhos desagradáveis, torcendo as cobertas em uma bola, quando o vento empurrou as nuvens para longe e as estrelas outonais brilharam friamente para a terra.
Vou levá-la a passear em meu carro-carro,
Vou levá-la a passear em meu carro-carro.
Vou levá-la a passear,
Vou levá-la a passear,
Vou levá-la a passear em meu carro-carro.
— Woody Guthrie
Havia sido um sonho — até quase o próprio final, estava certa de que havia sido um sonho.
No sonho, ela despertava de um sonho com Arnie. Estivera fazendo amor com ele, não no carro, mas em um aposento azul muito frio, sem outro mobiliário além de um fofo tapete azul-escuro e almofadas espalhadas, cobertas de cetim azul-claro... e despertava deste sonho em seu quarto, nas primeiras horas da madrugada de domingo.
Podia ouvir um carro lá fora. Chegou à janela e olhou para baixo.
Christine estava junto ao meio-fio. Tinha o motor ligado — Leigh podia ver os tufos de fumaça escapando dos canos de descarga — mas não havia ninguém em seu interior. No sonho, ela pensava que Arnie pudesse estar à porta de sua casa, embora ainda não tivesse batido. Tinha que descer até lá, e depressa. Seu pai ficaria furioso, se acordasse e encontrasse Arnie ali a tal hora da madrugada.
Leigh, contudo, não se moveu. Olhava para o carro e pensava no quanto o odiava — e o temia.
E o carro também a odiava.
Rivais, pensou, e o pensamento — naquele sonho — não era de ciúme feroz e intenso, antes desesperado e temeroso. Lá estava o carro diante do meio-fio, lá estava ele — ela estava — parada à frente de sua casa, na trincheira escura da madrugada, esperando-a. Esperando por Leigh. Venha cá para baixo, meu bem. Venha! Rodaremos por aí e conversaremos sobre quem precisa mais dele, quem se preocupa mais com ele e quem será melhor para ele, a longo prazo. Venha.. Não está com medo, está?
Leigh estava aterrorizada.
Não é justo, ela é mais velha, conhece os truques, saberá como engambelá-lo...
— Vá embora! — sussurrou Leigh, ardentemente, no sonho.
Bateu de leve na vidraça com os nós dos dedos. O vidro era frio ao seu toque, podia ver as pequeninas marcas em forma de crescente deixadas pelos nós dos dedos na superfície embaciada. Era espantoso como certos sonhos podem ser tão reais.
No entanto, tinha que ser um sonho. Tinha que ser, porque o carro a ouvira. As palavras mal haviam saído de sua boca, e os limpadores de pára-brisa começaram a mover-se repentinamente, espalhando a neve molhada aderida ao vidro. Então, ele — ela — se afastou maciamente do meio-fio e seguiu rua abaixo.
Sem ninguém na direção.
Leigh tinha certeza disso... toda a certeza que se pode ter sobre alguma coisa, em um sonho. A janela do passageiro estava polvilhada de neve, mas não ficara opaca com isso. Leigh pudera ver o interior e não havia ninguém ao volante. Portanto, é claro, tinha que ser um sonho.
Voltou para a cama (para a qual jamais levara um amante; como Arnie, nunca tivera um amante) pensando em um Natal de há muito tempo — de uns doze, talvez mesmo quatorze anos atrás. Ela não devia ter mais de quatro anos naquela época. Tinha ido com a mãe a uma das grandes lojas de departamentos de Boston, talvez a Filene's...
Pousou a cabeça no travesseiro e adormeceu (no sonho) de olhos abertos, contemplando a ligeira fímbria das primeiras luzes do alvorecer na janela e então — nos sonhos tudo pode acontecer — viu o departamento de brinquedos da Filene's, no outro lado da janela: ouropéis, brilhos, luzes.
Procuravam um brinquedo para Bruce, único sobrinho de seus pais. Em alguma parte, um Papai Noel da loja de departamentos clamava em um sistema de alto-falantes e o som amplificado não era apenas jovial, mas de certo modo terrível, como o riso de um maníaco que surgisse dentro da noite, empunhando um facão de açougueiro, em vez de presentes.
Leigh estendera a mão para um dos brinquedos em exibição e, apontando, tinha dito para sua mãe que queria ganhar aquilo de Papai Noel.
Não, meu bem. Papai Noel não pode lhe dar isso. É um brinquedo para meninos.
Mas eu quero!
Papai Noel lhe trará uma linda boneca, talvez até uma Barbie...
É este aqui que eu quero!
Só meninos é que pedem um brinquedo assim, Lee-Lee querida. Só os meninos. Meninas boazinhas gostam mais de lindas bonecas...
Eu não quero uma BONECA! Não quero uma BARBIE! É... AQUILO... que eu quero!
Se vai começar a fazer malcriação, Leigh, levo você já, já para casa. Estou falando sério, levo agora mesmo!
Ela se conformara, então, e o Natal lhe trouxera não apenas a Barbie Malibu, mas também o Ken Malibu. Leigh gostara de seus presentes (esperava-se que gostasse), mas não esquecera o carro de corridas vermelho, correndo sem ser puxado, naquela superfície de verdes montanhas pintadas, ao longo de uma estrada tão perfeita que havia até mesmo pequenas muretas de metal — uma estrada, cuja ilusão essencial era desfeita apenas pela inevitável circularidade. Oh, mas como aquele carro corria depressa — e seu vermelho cintilante seria mágico para seus olhos e sua mente? Sem dúvida. Também era mágica, a ilusão essencial do carro. Uma ilusão exercendo tanta atração que a conquistara por completo. A ilusão, naturalmente, de que o carro dirigia a si mesmo. Em realidade, Leigh sabia que um empregado da loja o controlava, de uma cabina à direita, apertando botões em um dispositivo quadrado de controle remoto. Sua mãe lhe explicara isso e assim devia ser, mas seus olhos negavam o que ouvia.
Também seu coração negava.
Ficara fascinada, as mãozinhas enluvadas sobre o gradil da área de exibição, espiando o carro que corria e corria, movendo-se depressa, rodando por si mesmo, até que a mãe a puxou dali suavemente.
E, acima de tudo aquilo, parecendo fazer vibrar o próprio fio de ouropéis pendurados junto ao teto, a risada sinistra do Papai Noel da loja de departamentos.
Leigh dormiu mais profundamente. Sonhos e lembranças esmaeceram-se lentamente e, lá fora, a luz do dia rastejava como leite frio, iluminando uma rua vazia e silenciosa em sua manhã de domingo. A primeira nevada do outono estava imaculada, exceto pela marca de pneus, no meio-fio diante da residência dos Cabot. Marca que depois se alongava suavemente, em direção à esquina, no final daquele quarteirão suburbano.
Ela só se levantou quase às dez horas (sua mãe, que não acreditava em dorminhocos, finalmente a chamara para descer e tomar seu café, antes do almoço) e, a esta altura, o dia já esquentara, chegando a quase 16 graus — na parte oeste da Pensilvânia, o começo de novembro é mais ou menos tão caprichoso como o começo de abril. Assim, às dez da manhã, a neve já se derretera. E as marcas haviam desaparecido.
Nós fazemos com que se calem e então os liquidamos.
— Bruce Springsteen
Uma noite, cerca de dez dias depois, quando perus de cartolina e cornucópias de papel começavam a aparecer nas janelas das escolas primárias, um Camaro azul, de traseira tão levantada que o nariz quase parecia roçar o chão, deslizou pela ala do estacionamento de longo prazo do aeroporto.
Sandy Galton debruçou-se nervosamente pela abertura de sua cabine de vidro. No assento do Ford, ao lado do motorista, o rosto sorridente e feliz de Buddy Repperton se ergueu para ele. Buddy tinha as faces cobertas pela barba rala de uma semana e seus olhos exibiam um brilho maníaco, mais devido à cocaína do que à alegria no Dia de Ação de Graças — ele e os rapazes tinham conseguido bom provimento aquela noite. Em tudo e por tudo, Buddy assemelhava-se bastante a um depravado Clint Eastwood.
— Como é que vão as coisas, Sandy? — perguntou Buddy.
Seu cumprimento foi devidamente acompanhado por risadas no Camaro. Don Vandenberg, "Penetra" Welch e Richie Trelawney estavam com Buddy e, com a coca e as seis garrafas de Texas Driver que Buddy arranjara para a ocasião, sentiam-se eufóricos e na mais perfeita forma. Estavam chegando para um pequeno trabalhinho sujo, no Plymouth de Arnie Cunningham.
— Escutem aqui, caras, se vocês forem apanhados, eu perco o meu emprego — disse Sandy, nervosamente.
Era o único sóbrio e lamentava ter mencionado que Cunningham estacionava seu calhambeque ali. Felizmente, ainda não lhe ocorrera o pensamento de que também podia ir parar na cadeia.
— Se você ou qualquer membro de sua fodida Missão Impossível forem apanhados, o chefão negará qualquer envolvimento no negócio — declarou "Penetra", no banco traseiro.
Houve um coro de risos. Sandy olhou em torno, à procura de outros carros — testemunhas —, porém faltava mais de hora para a chegada de aviões e o pátio de estacionamento estava tão deserto como as montanhas da lua. O tempo esfriara muito. Um vento cortante como lâmina de barbear gemia pelas pistas do campo, uivando miseramente por entre as fileiras de carros vazios. Acima dele e à esquerda, o cartaz com a sigla "Apco" batia furiosa e incessantemente de um lado para outro.
— Riam à vontade, debilóides — disse Sandy. — A verdade é que nunca vi vocês por aqui. Se forem apanhados, vou dizer que estava cochilando.
— Nossa, que gracinha! — exclamou Buddy. Pareceu triste. — Nunca pensei que fosse tão cagão, Sandy. Honestamente.
— Au! Au! — latiu Richie, e houve novo coro de risos. — Role de costas e finja-se de morto para o papai, Sandy!
Sandy enrubesceu.
— Não estou me importando — disse —, mas tomem cuidado.
— Tomaremos, cara — disse Buddy, sinceramente. Havia reservado uma sétima garrafa de Texas Driver e uma dose caprichada de coca. Estendeu as duas coisas para Sandy: — Tome aí. Divirta-se.
Sandy sorriu a contragosto.
— Está legal — disse, acrescentando, apenas para dar a entender que não era do contra: — Façam um bom trabalho.
O sorriso de Buddy endureceu-se, ficou metálico. A luz desapareceu de seus olhos e eles ficaram opacos, mortiços e aterradores.
— Oh, nós faremos — disse. — Se faremos!
O Camaro embicou para o pátio de estacionamento. Por um momento, Sandy pôde apreciar sua avançada, guiando-se pela luz dos faróis traseiros, mas depois Buddy os apagou. O som do motor, gorgolejando através de dois escapamentos, foi trazido momentaneamente pelo vento, mas depois até isso cessou também.
Sandy ajeitou a coca sobre o balcão, junto de sua TV portátil, e a aspirou através de uma nota enrolada de um dólar. Em seguida, passou para o Texas Driver. Sabia que se o apanhassem embriagado no trabalho teriam motivo para demiti-lo, mas não se incomodou muito. Embebedar-se era muito melhor do que ficar sobressaltado e sempre olhando em torno, para descobrir um dos dois carros cinzentos da Segurança do Aeroporto.
O vento soprava a seu favor e ele pôde ouvir — ouvir demais.
Vidros quebrados se estilhaçando, risos sufocados, uma ruidosa pancada metálica.
Mais vidros quebrados.
Uma pausa.
Vozes baixas chegando até ele, trazidas pelo vento. Não conseguiu distinguir palavras individuais, estavam distorcidas.
De repente, uma perfeita fuzilaria de baques. Sandy pestanejou ao ouvir o ruído. Mais barulho de vidros quebrados na escuridão e um tilintar de metal caindo no piso — cromados ou alguma coisa assim, supôs ele. Desejou que Buddy houvesse trazido mais coca. A coca era uma coisa que dava alegria e, tinha certeza, naquele momento estava bem precisado disso, porque tudo indicava que algo bastante feio estava acontecendo, no extremo mais distante do pátio de estacionamento.
Então, uma voz mais alta, urgente e ordenando, sem dúvida a de Buddy:
— Agora aqui!
Um protesto abafado. Novamente Buddy:
— Não liguem para isso! No painel de instrumentos, estou mandando! Outro murmúrio.
— Estou pouco me lixando! — era a voz de Buddy de novo. Por algum motivo, aquilo provocou um coro de risadas.
Agora suando, a despeito do frio cortante, Sandy fechou repentinamente a vidraça de sua janela e ligou a TV. Bebeu um grande gole, careteando ante o sabor forte da mistura de uísque e vinho barato. Sandy não ligava para o sabor porque Texas Driver era o que todos eles bebiam quando não havia cerveja. O que podia fazer? Imaginar-se melhor do que eles? Aquilo o deixaria frito, cedo ou tarde. Buddy detestava medrosos.
Bebeu e começou a sentir-se um pouco melhor — pelo menos, ligeiramente bêbado. Quando um carro da Segurança do Aeroporto passou, ele nem mesmo se encolheu. O tira ergueu a mão para ele. Sandy retribuiu, com a maior naturalidade possível.
Uns quinze minutos depois que o carro foi para os fundos do pátio, o Camaro azul reapareceu, agora na alameda de saída. Buddy se sentava tranqüilo e relaxado atrás do volante, tendo uma garrafa de Driver acomodada junto às virilhas, com apenas um quarto de bebida. Sorria e, inquieto, Sandy reparou como tinha os olhos estranhos, injetados de sangue. Aquilo não era ocasionado apenas pelo vinho, como tampouco não era somente da coca. Ninguém devia fazer pouco de Buddy. Era o que Cunningham descobriria, sem grande demora.
— Tudo acertado, meu chapa — disse Buddy.
— Ótimo — disse Sandy, forçando um sorriso.
Sentia-se um tanto indisposto. Não tinha maiores amizades por Cunningham e nem era uma pessoa particularmente imaginativa, mas podia imaginar perfeitamente como se sentiria Arnie, quando visse o que acontecera a todo o seu cuidadoso trabalho de restauração naquele Plymouth vermelho e branco. De qualquer modo, aquilo era da conta de Buddy, não sua.
— Ótimo — repetiu.
— Segure-se nas cuecas, cara — disse Richie e riu.
— Claro — respondeu Sandy.
Era bom eles estarem indo embora. Depois daquilo, talvez não ficasse mais tanto tempo rondando o posto de gasolina Happy Gas, de Vandenberg. Depois daquilo, o mais provável é que nem quisesse ir lá. Aquele negócio era merda fedorenta. Um negócio pesado demais, certamente. Talvez até fosse preferível faltar umas duas noites ao curso noturno. Possivelmente acabaria tendo que abandonar aquele serviço, mas isso não chegava a ser tão ruim — afinal, era um trabalho infernalmente monótono.
Buddy ainda olhava para ele, com aquele seu sorriso cruel e drogado. Sandy tomou um longo gole de Texas Driver. Quase se engasgou. Por um momento, pensou em cuspi-lo no rosto erguido de Buddy, e sua inquietação beirou o terror.
— Se os tiras derem com a coisa — disse Buddy —, você não sabe de nada, não viu nada, sacou? Como você falou, estava tirando uma soneca, por volta de nove e meia.
— Certo, Buddy.
— Todos usamos luvas. Não deixamos nenhuma impressão digital.
— Certo.
— Fique calmo, Sandy — disse Buddy suavemente.
— Está legal.
O Camaro começou a rodar novamente. Sandy levantou a barreira, usando o botão manual. O carro avançou para a via de saída do aeroporto, a uma velocidade moderada.
Alguém latiu "Au! Au!" e o som chegou até Sandy, trazido pelo vento.
Perturbado, ele se acomodou para assistir televisão.
Pouco antes do fluxo de viajantes que chegavam no horário de dez e quarenta, vindos de Cleveland, ele despejou o resto do Driver pela janela, no chão fora da cabine. Não o queria mais.
Transfusão, transfusão,
Oh, nunca-nunca-nunca mais vou rodar em alta velocidade,
Passe o sangue para mim, chapa.
— "Nervous" Norvus
Depois das aulas do dia seguinte, Arnie e Leigh foram juntos ao aeroporto, pegar Christine. Planejavam uma ida a Pittsburgh para as primeiras compras de Natal e ansiavam fazê-las juntos — de certo modo, isso parecia incrivelmente adulto.
Arnie estava com excelente disposição de ânimo no ônibus, fazendo pequenos comentários fantasiosos sobre seus companheiros de viagem. Isto provocava o riso de Leigh, embora ela estivesse menstruada, um período que geralmente a deixava deprimida e que quase sempre era doloroso. A senhora gorda, calçando sapatos de homem, era uma freira degenerada, dizia ele. O cara com chapéu de vaqueiro era um punguista. E assim por diante. Era espantosa a maneira como ele saíra da concha... a maneira como havia desabrochado. Na verdade, esta era e única palavra para aquilo. Ela sentia a agradável e incrível satisfação de um garimpeiro que suspeitara da presença de ouro através de certos indícios — e acertara em suas suposições. Leigh o amava e estava certa em amá-lo.
Saíram juntos do ônibus no ponto final e, de mãos dadas, caminharam pela estrada de acesso ao pátio de estacionamento.
— Nada mau — disse Leigh. Era a primeira vez que vinha apanhar Christine com ele. Vinte e cinco minutos, da escola até aqui.
— Certo, nada mau — concordou ele. — Assim, é mantida a paz na família, o que realmente importa. Posso garantir, naquela noite em que mamãe chegou em casa e viu Christine na entrada para carros, ficou completamente fora de si.
Leigh riu e o vento jogou seu cabelo para trás. A temperatura ficara mais moderada, após a friagem da noite anterior, mas ainda assim era fria. Ela estava contente. Sem uma certa friagem no ar, não parecia haver ambiente para compras natalinas. Ainda pior: as decorações em Pittsburgh estariam incompletas. De qualquer modo, isso não era ruim, mas bom. E, de repente, ela ficou feliz com tudo, em especial por estar viva. E amando.
Leigh havia refletido nisso, na maneira como o amava. Já tivera "paixonites" antes e, certa vez, em Massachusetts, imaginara-se verdadeiramente apaixonada, mas agora, com Arnie, não havia dúvidas. Ele a perturbava algumas vezes — aquele interesse pelo carro parecia quase obsessivo —, mas até mesmo uma inquietação ocasional que ela experimentava tinha certo papel em seus sentimentos, que eram mais intensos do que tudo quanto já conhecera antes. Evidentemente, admitia para si mesma que parte disso era egoísmo — em apenas semanas, começara a estruturá-lo... a completá-lo.
Cortaram atalhos por entre os carros, encaminhando-se para a zona do estacionamento mensal. Acima deles, um jato evoluía em sua aproximação final, o trovejar dos motores despejando-se em grandes ondas agudas de som. Arnie dizia algo, mas o barulho do avião sufocou sua voz, logo após as palavras iniciais — qualquer coisa sobre o ajantarado do Dia de Ação de Graças — e Leigh se virou para fitá-lo, secretamente divertida por sua boca que continuava a mover-se, silenciosamente.
Então, de súbito, a boca de Arnie parou de mover-se. Ele também parou de caminhar. Os olhos se dilataram... e pareceram explodir. A boca começou a torcer-se e a mão que segurava a dela de repente se contraiu impiedosamente, esmagando-lhe dolorosamente os ossos dos dedos.
— Arnie...
O ruído do jato diminuía, mas ele parecia não a ter ouvido. Os punhos se crisparam com mais força. A boca se fechara e agora formava uma horrenda careta de surpresa e terror. Leigh pensou: Ele está tendo um ataque do coração... um infarto... alguma coisa!
— O que há de errado, Arnie? — gritou ela. E ele:
— Ooowwwhoww, como dói!
Por um insuportável momento, a pressão na mão que, até bem pouco, ele segurara tão de leve e tão carinhosamente, intensificou-se de tal maneira que os ossos poderiam estilhaçar-se e quebrar-se. A cor do rosto dele desaparecera e sua pele adquirira a cor acinzentada de uma lousa sepulcral.
Ele emitiu apenas uma palavra — "Christine!" — e, de repente, soltou a mão de Leigh. Correu para diante, batendo com a perna no pára-choque de um Cadillac, desequilibrando-se, quase caindo, equilibrando-se e recomeçando a correr.
Por fim, Leigh percebeu que era algo relacionado ao carro — o carro, o carro, sempre o maldito carro — e em seu peito surgiu uma fúria amarga, total e desesperada. Pela primeira vez, perguntou-se se seria possível amá-lo, se Arnie o permitiria.
Sua fúria terminou no instante em que olhou realmente... e viu.
Arnie correu para o que restava de seu carro, com os braços e as mãos para cima, parando tão de repente diante do Plymouth que o gesto pareceu uma aterrorizada forma de defesa: a clássica pose cinematográfica da vítima ao ser atropelada, um instante antes da colisão fatal.
Ele ficou assim por um momento, como se fosse parar o carro ou o mundo inteiro. Então baixou os braços. Seu pomo-de-adão subiu e desceu duas vezes, dando a impressão de que parecia forçar-se a engolir algo — um gemido ou um grito — para em seguida a garganta se endurecer, cada músculo salientando-se, cada veia ressaltada, os tendões surgindo em perfeito relevo. Era a garganta de um homem tentando erguer um piano.
Leigh caminhou lentamente para ele. Sua mão ainda latejava, no dia seguinte estaria inchada e praticamente inútil, mas no momento ela a esquecera. Seu coração estendeu-se até ele e pareceu encontrá-lo. Leigh experimentou e partilhou a angústia que ele sentia — ou foi o que lhe pareceu ter feito. Só mais tarde compreendeu o quanto Arnie a relegara aquele dia, quanto sofrimento ele decidira ter para si apenas, e quanto de seu ódio conseguiu ocultar.
— Quem foi que fez isto. Arnie? — exclamou, em voz sentida e sofrendo com ele.
Não, ela detestava aquele carro, mas ao vê-lo reduzido àquilo compreendeu perfeitamente o que Arnie devia estar sentido e não odiou mais o Plymouth — ou, pelo menos, assim julgou no momento.
Arnie não respondeu. Ficou olhando para Christine, com os olhos ardentes, a cabeça ligeiramente abaixada.
O pára-brisa havia sido estilhaçado em dois lugares; punhados do vidro fragmentado polvilhavam o estofamento dilacerado, como falsos diamantes. Metade do pára-choque dianteiro tinha sido arrancada e agora pendia para o pavimento, perto de um emaranhado de fios negros, como tentáculos de polvo.
Três das quatro janelas laterais também tinham sido quebradas. Haviam furado a lataria em ambos os lados do carro, na altura da cintura, formando linhas ziguezagueantes. Como se tivessem usado algum instrumento pesado e perfurante — como a extremidade aguda de uma alavanca para pneus. A porta do lado do passageiro estava escancarada e Leigh viu que todos os vidros do painel de instrumentos haviam sido quebrados. Tufos e rolos do recheio dos assentos espalhavam-se por toda parte. A agulha do velocímetro jazia no piso, sobre o tapete, abaixo do volante.
Arnie caminhou vagarosamente em torno do carro, observando tudo aquilo. Leigh falou com ele duas vezes, mas não houve resposta. Agora, a cor plúmbea do rosto dele era interrompida por duas confusas e ardentes manchas vermelhas nas faces. Arnie recolheu do chão a forma tentacular que ali jazera, e Leigh percebeu que era o bujão do distribuidor — seu pai lhe explicara isso certa vez, quando estivera mexendo em seu carro.
Arnie o contemplou por um instante, como quem examinaria algum exótico espécime zoológico, para em seguida atirá-lo ao chão. O vidro quebrado rangia sob os sapatos dos dois. Leigh tornou a falar com ele. Não ouvindo resposta, além de sentir uma pena terrível dele, começou também a ficar com medo. Mais tarde, disse a Dennis Guilder que parecia — pelo menos naqueles momentos — perfeitamente possível Arnie ter perdido o juízo.
Ele chutou uma peça cromada para fora de seu caminho. A peça foi bater no muro anticiclone, nos fundos do pátio de estacionamento, com um leve som tilintante. As lanternas traseiras haviam sido quebradas, mais gemas falsas, rubis desta vez, polvilhando o pavimento e não os assentos do carro.
— Arnie... — tentou ela, mais uma vez.
Ele parou. Olhava pelo buraco feito na vidraça do motorista. Um horrível som rouco partiu de seu peito, um som selvagem. Olhando por sobre o ombro dele, Leigh viu o que havia e, de repente, sentiu uma louca necessidade de rir, de chorar e desmaiar, tudo ao mesmo tempo. Sobre o painel de instrumentos... ela não percebera, de início. Em meio à destruição geral, não percebera o que havia no painel. E se perguntou, com o vômito subindo de repente em sua garganta, quem poderia ser tão baixo, tão absolutamente ignóbil para fazer tal coisa, para...
— Os bostas! — exclamou Arnie, e a voz não parecia a dele.
Quase gritara, com uma voz aguda e estridente, cheia de fúria. Leigh se virou e vomitou, apoiando-se às cegas no carro mais próximo de Christine, vendo diante dos olhos pequeninos pontos brancos, que se expandiam como arroz cozido. De maneira vaga, pensou na feira do condado — a cada ano, faziam içar um carro imprestável para uma plataforma, deixavam uma marreta ao lado e cada um podia dar três marretadas por 25 centavos. A idéia era acabar com o carro, mas não fazer... fazer...
— Seus bostas malditos! — bradou Arnie. — Vou pegar vocês! Vou pegar vocês, nem que seja a última coisa que faça! Nem que seja a última merda de coisa que eu faça!
Leigh vomitou novamente e, por um terrível momento, chegou a desejar nunca ter conhecido Arnie Cunningham.
Quer dar uma volta
Em meu Buick 59?
Eu perguntei, quer dar uma volta
Em meu Buick 59?
Ele tem dois carburadores
E um supercompressor de quebra.
— The Medallions
Naquela noite, ele chegou em casa faltando quinze para meia-noite. As roupas que estivera usando para a projetada viagem de compras em Pittsburgh estavam manchadas de graxa e de suor. As mãos pareciam ainda mais sujas e havia um feio corte ziguezagueante no dorso da esquerda, como uma marca. O rosto tinha uma aparência abatida e atordoada. Também estava com olheiras.
Sentada à mesa, sua mãe tinha um jogo de paciência disposto diante dela. Estivera esperando que Arnie chegasse e, ao mesmo tempo, temendo aquele momento. A jovem — que dera a Regina a impressão de ser uma boa moça, embora talvez não suficientemente boa para seu filho — parecia ter chorado.
Alarmada, Regina desligara o mais depressa possível e ligara para a Garagem de Darnell. Leigh lhe contara que Arnie telefonara, chamando um caminhão-reboque para lá e que partira nele, com o motorista. Colocara-a em um táxi, sem ouvir seus protestos. O telefone havia tocado duas vezes e então uma voz sibilante, desagradável, respondera.
— Aqui é da Darnell's.
Regina desligara, pensando que seria um erro falar com Arnie estando ele lá — e tudo indicava que ele e Mike já haviam cometido erros suficientes, envolvendo Arnie e seu carro. Seria melhor esperar até que ele voltasse para casa. Diria o que fosse preciso, mas frente a frente.
Foi o que disse agora.
— Eu sinto muito, Arnie.
Teria sido melhor se Mike também estivesse ali. No entanto, ele viajara para Kansas City, onde haveria um simpósio sobre o Mercado e Início do Livre Empreendimento na Idade Média. Só chegaria no domingo, a menos que o atual incidente o trouxesse mais cedo para casa. Regina pensou que isso seria possível. Percebia — não sem algum arrependimento — que talvez estivesse apenas despertando para a total gravidade daquela situação.
— Sente muito — ecoou Arnie, em voz apática, inexpressiva.
— Sim. Eu, isto é, nós...
Regina não pôde continuar. Havia algo terrível, na imobilidade da expressão dele. Os olhos estavam parados. Só conseguiu fitá-lo e sacudir a cabeça, com os olhos ardendo, o gosto odioso de lágrimas no nariz e na garganta. Regina detestava chorar. Possuindo vontade forte, uma de duas filhas de uma família católica composta de um pai severo que trabalhava em construções, a mãe exaurida e sete irmãos, firmemente decidida a cursar uma universidade, embora o pai acreditasse que lá as moças só aprendiam como deixar de ser virgens e abandonar a igreja, ela tivera sua razoável porção de lágrimas — e ainda mais. E, se a própria família, às vezes, a julgava dura, era por não compreender que, quando se atravessa o inferno, sai-se cozido pelo fogo. E que, se alguém precisa queimar-se para abrir o próprio caminho, esse alguém sempre fará o que quer.
— Sabe de alguma coisa? — perguntou Arnie.
Ela sacudiu a cabeça, ainda sentindo a ardência quente e desagradável das lágrimas sob as pálpebras.
— Você me dá vontade de rir e eu riria mesmo, se não estivesse tão cansado. Poderia ter estado lá, destruindo os pneus e esmagando tudo, com os sujeitos que fizeram aquilo. Talvez agora estivesse ainda mais contente do que eles.
— Arnie, não é justo!
— É justo! — rugiu ele, os olhos repentinamente queimando com um fogo terrível. Pela primeira vez na vida, Regina teve medo do filho. — Foi sua a idéia de tirar o carro da entrada da casa! Foi sua a idéia de levá-lo para o pátio de estacionamento do aeroporto! Quem acha você que merece censuras aqui? Sim, quem você acha? Acredita que aquilo aconteceria se o carro estivesse aqui? Hein?
Deu um passo para ela, os punhos crispados ao longo do corpo. Regina procurou esforçar-se para não recuar.
— Será que não podemos conversar a respeito, Arnie? — perguntou. — Como dois seres humanos racionais?
— Um deles jogou um punhado de merda no painel de meu carro — replicou Arnie friamente.
— O que há nisso de racional, mamãe?
Ela acreditara, sinceramente, que conseguira controlar as lágrimas. No entanto, aquela notícia — a notícia de uma fúria tão estúpida e irracional — trouxe-as de volta. Então chorou. Chorou de angústia pelo que seu filho tinha visto. Baixando a cabeça, chorou de perplexidade, de dor e de medo.
Em toda a sua vida como mãe, Regina se sentira secretamente superior às que tinham filhos mais velhos do que Arnie. Quando ele estava com um ano, aquelas outras mães lhe tinham dito, sacudindo lugubremente a cabeça, que esperasse até ele fazer cinco — era quando começavam os problemas, quando eles tinham idade suficiente para dizer "merda" diante dos avós e brincar com fósforos, ao se verem sozinhos. Arnold, no entanto, um menino bom como ouro quando tinha um ano, assim permanecera aos cinco. Então, as outras mães reviravam os olhos e diziam-lhe que esperasse até ele ter dez. Em seguida, até ele fazer quinze, que era quando a situação perigava realmente, com aquela história de drogas, concertos de rock e garotas que tudo permitiam, além de — que Deus nos perdoe — roubarem calotas de automóveis e pegarem aquelas... bem, doenças.
Durante todo esse tempo, ela continuava sorrindo para si mesma, porque tudo funcionava segundo o programado, tudo marchava da maneira como desejaria ter acontecido em sua própria infância. Seu filho tinha pais amorosos, que o apoiavam e se preocupavam com ele, pais que lhe davam tudo (dentro do razoável), que o enviariam com prazer para a universidade que o filho escolhesse (desde que fosse adequada), desta forma encerrando-se satisfatoriamente o jogo/negócio/vocação da paternidade. Se alguém lhe sugerisse que Arnie tinha poucos amigos e freqüentemente era objeto de menosprezo pelos outros, Regina apontaria orgulhosamente que ela freqüentara uma escola paroquial em uma vizinhança rude, onde as calcinhas de algodão das meninas às vezes eram rasgadas de brincadeira e depois queimadas com o fogo de isqueiros Zippo, nos quais havia a figura gravada de Jesus crucificado. E se sugerissem que suas atitudes no tocante à criação do filho diferiam das do pai odiado, apenas em termos de finalidades materiais, ela ficaria furiosa e apontava para seu excelente filho, como derradeira justificativa.
No entanto, o filho excelente agora estava diante dela, pálido, exausto e sujo de graxa até os cotovelos, parecendo apresentar a mesma espécie de raiva que havia sido a marca registrada do avô, até mesmo se parecendo com ele. Tudo dava a impressão de haver desmoronado.
— Falaremos amanhã cedo sobre o que pode ser feito sobre isso, Arnie — disse ela, tentando recompor-se e conter as lágrimas. — Conversaremos de manhã.
— Não, a menos que você levante bem cedo — respondeu ele, parecendo perder o interesse.
— Vou subir, dormir umas quatro horas e depois voltar à garagem.
— Para quê?
Ele deixou escapar uma risada de louco e seus braços adejaram abaixo dos tubos de luz fluorescente da cozinha, como se fosse voar.
— O que você acha? Tenho um bocado de trabalho a fazer! Mais do que poderia imaginar.
— Não... você tem aulas amanhã... Eu o proíbo, Arnie, está absolutamente proi...
Ele se virou para fitá-la, estudou-a e Regina encolheu-se. Aquilo era como algum horrendo pesadelo, que ia continuar para sempre.
— Não faltarei às aulas — disse. — Vou levar um embrulho de roupas limpas e até mesmo tomo uma ducha, para que meu cheiro não incomode ninguém na sala. Então, quando as aulas terminarem, voltarei à garagem. Há muito trabalho a fazer, mas eu o farei... Sei que posso... mesmo comendo uma boa fatia de minhas economias. Além disso, tenho que prosseguir com o serviço que venho fazendo para Will.
— Seus trabalhos de casa... seus estudos!
— Oh, isso... — Arnie esboçou um sorriso frio, imóvel e estático como uma peça de mecanismo de relógio. — Eles baixarão de qualidade, é lógico. Não se pode brincar com isso. Aliás, também não lhe prometo mais uma nota média de noventa e três, mas posso chegar perto. Posso conseguir um C. Talvez alguns B.
— Não... Você precisa pensar na universidade!
Ele tornou a chegar perto da mesa, mancando de novo, agora acentuadamente. Plantou as mãos sobre a superfície, diante dela, depois inclinando-se lentamente. Regina pensou: Um estranho... meu filho é um estranho para mim. Será realmente culpa minha? Será? Porque só quis o que fosse melhor para ele. Será possível? Oh, Deus, por favor, torne isto um pesadelo, faça-me acordar com o rosto molhado de lágrimas, por ter sido tão real!
— Neste exato momento — disse ele com suavidade, os olhos fixos nos dela —, as únicas coisas que me interessam são Christine, Leigh e ficar bem com Will Darnell, a fim de deixar novamente aquele carro como novo. Não ligo uma merda para a universidade. E se você ficar insistindo, pulo fora do colégio. Se nada mais der certo, acho que isto vai fazer você calar a boca de vez.
— Você não pode — disse ela, sem afastar os olhos. — Precisa compreender isto, Arnold. Talvez eu mereça sua... sua crueldade... mas lutei contra esta sua tendência autodestrutiva com todas as forças. Portanto, não me venha com essa de largar os estudos.
— Pois é justamente o que vou fazer — respondeu ele. — Nem brincando pense que não farei. Em fevereiro, completo dezoito anos e poderei dirigir minha vida, se você não parar de se meter nisto, daqui por diante. Acha que compreendeu?
— Vá dormir — disse ela, lacrimosa. — Vá dormir, você me parte o coração.
— É mesmo? — Ele riu, de maneira chocante. — Dói, não? Eu sei.
Ele se foi então, caminhando devagar, o corpo pendendo ligeiramente para a esquerda, quando mancava. Pouco depois, Regina ouvia o ruído surdo e cansado dos sapatos dele nos degraus — um som que também lhe recordava terrivelmente a infância, quando pensava consigo mesma: O bicho-papão uai dormir.
Ela teve novo acesso de lágrimas, levantou-se desajeitadamente e saiu pela porta dos fundos, a fim de chorar sozinha. Conseguiu controlar-se — breve conforto, mas melhor do que nada — e ergueu os olhos para a lua em quarto crescente, que se quadruplicou através de suas lágrimas. Tudo mudara e havia sido com a velocidade de um ciclone. O filho a odiava; vira isso no rosto dele — não era uma malcriação. Não era uma tempestade temporária, uma crise transitória da adolescência. Ele a odiava, e essa não era a maneira correta que se ajustava com seu bom menino, de maneira alguma.
De maneira alguma.
Regina permaneceu na varanda e chorou até as lágrimas acabarem, até os soluços se tornarem arquejos ocasionais. O frio envolveu-lhe os tornozelos nus acima dos chinelos e a picou com vontade, através do casaco caseiro. Foi para dentro e subiu ao andar de cima. Parou ao lado da porta do quarto de Arnie, indecisa, por quase um minuto, antes de entrar.
Arnie adormecera sobre a colcha. Ainda estava com as calças. Parecia mais inconsciente do que adormecido, o rosto com uma aparência terrivelmente envelhecida. Um foco de luz, vindo do corredor e penetrando no quarto acima de seu ombro, por um momento deu-lhe a impressão de que o cabelo dele rareava, que a boca aberta no sono estava desdentada. Um ligeiro guincho de horror manifestou-se através da mão tapando a boca e ela se aproximou rapidamente do filho.
Sua sombra, que estivera sobre a cama, moveu-se com ela, e Regina viu que era somente Arnie, a impressão de mais idade proveniente apenas de uma ilusão de ótica, feita pela luz e por seu fatigado estado de confusão.
Olhou para o rádio-despertador e viu que fora marcado para acordá-lo às 4:30 da manhã. Pensou em desligar o alarme, chegou mesmo a estender o braço mas, finalmente, compreendeu que não podia fazer aquilo.
Em vez disso, foi para seu quarto, sentou-se junto à mesinha do telefone e pegou a caderneta de endereços. Segurou-a por um momento, debatendo-se na dúvida. Se telefonasse para Mike, no meio da noite, ele pensaria que...
Que algo terrível acontecera?
Regina deu uma risadinha sufocada. Bem, não acontecera mesmo? Era claro que sim. E ainda estava acontecendo.
Discou o número do Ramada Inn, em Kansas City, onde seu marido se hospedara, vagamente cônscia de que, pela primeira vez, desde que deixara a suja e lúgubre casa de três andares em Rocksburg, trocando-a pela universidade, vinte e sete anos antes, estava pedindo ajuda.
Não quero causar confusão,
Mas posso comprar seu ônibus mágico?
Pouco importa quanto eu pague,
Vou nesse ônibus para junto do meu bem.
Eu o quero... Quero... Quero...
(Tem que vendê-lo para mim...)
— The Who
Ela se conduziu muito bem durante a maior parte da história, sentada em uma das duas cadeiras para visitantes do quarto do hospital, os joelhos firmemente unidos e os tornozelos cruzados, caprichosamente vestida com uma suéter de lã em várias cores e uma saia marrom de brim. Só no final é que começou a chorar e não conseguia encontrar um lenço. Dennis Guilder estendeu-lhe a caixa de lenços de papel, que estava na mesinha junto à cama.
— Acalme-se, Leigh — disse ele.
— Eu não po-po-posso! Arnie não me procurou mais e... na escola parece tão cansado... e você di-disse que ele não esteve aqui...
— Ele virá, se precisar de mim — disse Dennis.
— Vocês são tão cheios dessas bes-besteiras m-ma-ch-chis-tas! — soluçou ela, e então pareceu comicamente admirada do que tinha dito.
As lágrimas haviam feito traços na pintura leve que usava. Ela e Dennis entreolharam-se por um momento, depois riram. No entanto, foi uma risada breve, nada de muito confortante.
— Boca de motor o viu? — perguntou Dennis.
— Quem?
— Boca de motor. É como Lenny Barongg chama o Sr. Vickers. O conselheiro para orientação.
— Oh! Sim, acho que sim. Arnie foi chamado ao gabinete do orientador anteontem, segunda-feira. Mas não comentou nada e não tive coragem de perguntar. Ele não se abre. Ficou tão estranho!
Dennis assentiu. Embora achando que Leigh não percebesse — estava mergulhada em seus próprios problemas e confusão —, experimentava uma sensação de impotência e um terrível receio por Arnie. A partir dos relatos filtrados até seu quarto nos últimos dias, Arnie parecia estar à beira de um colapso nervoso; o relato de Leigh era apenas o mais recente e mais real. Dennis jamais desejaria estar tão liquidado como agora. Sem dúvida, poderia ligar para Vickers e perguntar-lhe se havia alguma coisa que pudesse fazer. Também podia ligar para Arnie... mas, baseado nas palavras de Leigh, percebia que, agora, Arnie estava sempre na escola, na garagem de Darnell ou dormindo. Seu pai abandonara uma espécie de convenção antecipadamente e havia voltado para casa. Lá, houve outra briga, segundo Leigh lhe dissera. Embora Arnie nada lhe houvesse dito, Leigh contou acreditar que ele estivesse a ponto de abandonar a casa dos pais.
Dennis não queria falar com Arnie enquanto ele estivesse na Garagem de Darnell.
— O que posso fazer? — perguntou ela. — O que você faria, se estivesse em meu lugar?
— Esperar — respondeu Dennis. — Não sei mais o que se pode fazer.
— Só que isso é o mais difícil — respondeu ela, em uma voz tão baixa que era quase inaudível. Suas mãos amassavam e desamassavam o lenço de papel, esfrangalhando-o, pontihando sua saia marrom de fragmentos. — Meus pais querem que eu pare de vê-lo... que o largue. Eles receiam... que Repperton e aqueles outros rapazes façam mais alguma coisa.
— Parece muito certa de que foram Buddy e seus amigos, hein?
— É claro. Todos têm certeza. O Sr. Cunningham chamou a polícia, embora Arnie lhe pedisse para não fazer isso. Arnie falou que aceitaria as coisas à sua maneira e isso deixou os dois amendrontados.
Também eu me amedronto. A polícia pegou Buddy Repperton e um de seus amigos, que chamam de "Penetra"... sabe de quem estou falando?
— Sei.
— Pegaram ainda o rapaz que trabalha à noite no aeroporto, no pátio de estacionamento. Parece que se chama Galton...
— Sandy. Sandy Galton.
— Pensaram que ele também estivesse envolvido na coisa, que talvez os tivesse deixado entrar.
— Sim... Sandy anda com eles — disse Dennis —, mas não é tão degenerado como os outros. Leigh, eu diria que... Bem, se Arnie não conversou com você, certamente alguém mais...
— Claro. Primeiro foi a Sra. Cunningham, depois o pai dele. Acho que um não sabia que o outro havia falado comigo. Eles estão...
— Perturbados — sugeriu Dennis. Ela meneou a cabeça.
— É mais do que isto. Os dois dão a impressão de terem sido... agredidos ou coisa assim. Sinceramente, não consigo ter pena dela, parece estar sempre querendo impor sua vontade, mas lamento pelo Sr. Cunningham. Ele me pareceu tão... tão... — A voz dela se extinguiu, depois tornou a ganhar volume. — Quando fui lá ontem de tarde, depois das aulas, a Sra. Cunningham, ela me pediu para chamá-la de Regina, mas não consigo...
Dennis sorriu.
— Você consegue? — perguntou Leigh.
— Bem, sim... mas tenho um bocado mais de prática. Leigh sorriu, pela primeira vez em sua visita.
— Talvez isso fizesse diferença. De qualquer maneira, quando fui lá, encontrei a Sra. Cunningham, mas seu marido ainda estava na escola... na Universidade, quero dizer.
— Entendo.
— Ela tirou a semana de folga... o que sobrou da semana. Comentou que não se sentia em condições de retornar, inclusive nos três dias antes da Ação de Graças.
— Como ela estava?
— Acabada — disse Leigh, e estendeu a mão para outro lenço de papel, cujas pontas começou a esfarrapar. — Parecia mais velha dez anos, comparando com a vez em que a conheci, cerca de um mês atrás.
— E ele? Michael?
— Mais velho, porém mais seguro — disse Leigh, hesitante. — Como se isto tudo, de algum modo... de algum modo o pusesse em movimento.
Dennis ficou calado. Conhecera Michael Cunningham durante treze anos e nunca o vira em movimento. Era Regina que sempre tomava a frente de tudo, com Michael trotando atrás, preparando os drinques nas reuniões (em sua maioria, reuniões de membros da faculdade) oferecidas pelos Cunningham. Ele tocava sua flauta, parecia melancólico... mas nem com um esforço de imaginação Dennis poderia dizer que já o vira "em movimento".
O triunfo final, dissera certa vez o pai de Dennis, junto à janela, vendo Regina levar Arnie pela mão, caminhando pela estrada da casa dos Guilder ao encontro de Michael, que os esperava atrás do volante de seu carro. Naquela época, Arnie e Dennis deviam andar pelos sete anos. O maternalismo supremo. Eu me pergunto se ela não fará o pobre idiota esperar no carro, quando Arnie se casar. Ou talvez ela possa...
A mãe de Dennis lhe franzira o cenho e o fizera calar-se, indicando o filho com os olhos, em um gesto de crianças-têm-orelhas-grandes. Dennis nunca esquecera o gesto e nem o que seu pai comentara. Aos sete anos, não entendera bem aquilo, mas, mesmo nessa idade, sabia perfeitamente o que significava "pobre idiota". E, mesmo aos sete, entendera vagamente por que seu pai achava que Michael Cunningham fosse um. Sentira pena de Michael... um sentimento que persistia, sempre e sempre, até o presente.
— Ele chegou quando ela terminava a sua história — prosseguiu Leigh. — Convidaram-me a ficar para jantar, Arnie estava comendo na Darnell's, mas eu disse que precisava voltar para casa. Assim, o Sr. Cunningham me ofereceu uma carona e fiquei sabendo de sua versão, a caminho de casa.
— Os dois têm pontos de vista diferentes?
— Não exatamente, mas... foi o Sr. Cunningham que chamou a polícia, por exemplo. Arnie não queria, e a Sra. Cunningham... Regina não se animava a fazê-lo.
Dennis perguntou cauteloso:
— Ele está, realmente, tentando reconstruir o carro?
— Está — sussurrou ela, para então soltar, agudamente: — Só que isso não é tudo! Arnie está profundamente envolvido com aquele tal Darnell, eu sei que está! Ontem, durante o período vago, ele me contou que ia colocar uma traseira nova no carro esta tarde e esta noite. Então, comentei que devia ser tremendamente caro, mas ele respondeu que não me preocupasse, que seu crédito era bom e...
— Acalme-se.
Ela estava chorando novamente.
— Que seu crédito era bom, porque ele e alguém chamado Jimmy Sykes iam fazer alguns favores para Will, na sexta e no sábado. Foi o que ele disse. E... bem, não acredito que esses favores para aquele miserável sejam legais!
— O que ele disse à polícia, quando o interrogaram sobre Christine?
— Falou que a encontrou... daquela maneira. Perguntaram se tinha alguma idéia de quem fizera aquilo e Arnie disse que não. Perguntaram-lhe se não era verdade que tivera uma briga com Buddy Repperton, que Repperton o ameaçara com uma faca e fora expulso por causa disso. Arnie contou que Repperton lhe arrancara da mão sua sacola do almoço e a pisoteara, mas que então o Sr. Casey aparecera, acabando com a briga. Perguntaram-lhe se Repperton não tinha dito que ele pagaria por aquilo. Arnie respondeu que talvez tivesse falado algo semelhante, mas que era conversa fiada.
Dennis estava calado, olhando para o carregado céu de novembro através de sua janela, considerando o que ouvia. Aquilo tudo era sinistro. Se Leigh contava exatamente o que havia sido a entrevista com a polícia, Arnie não contara uma só mentira... mas manejara os fatos, de maneira a fazer parecer uma briguinha trivial, aquele incidente na área de fumar.
Sim, aquilo tudo era muito sinistro.
— Imagina o que ele poderia estar fazendo para esse Darnell? — perguntou Leigh.
— Não — respondeu Dennis.
No entanto, tinha algumas suspeitas. Um pequeno gravador interno se ligou e ele ouviu seu pai dizendo: Ouvi algumas coisas... carros roubados... cigarros e bebidas... o contrabando é como um frenesi... ele vem tendo sorte por muito tempo, Dennis.
Ele olhou para o rosto de Leigh, muito pálido, com a pintura manchada pelas lágrimas. Ela ligava-se a Arnie o mais que podia. Talvez estivesse aprendendo algo sobre ser forte, algo que, com sua aparência, não teria aprendido de outra forma, por mais dez anos. Entretanto, isso não facilitava as coisas, não as endireitava necessariamente. De súbito, ocorreu-lhe quase ao acaso que percebera a melhora da pele de Arnie mais de um mês antes de ele se ligar a Leigh... mas depois de ligar-se a Christine.
— Vou falar com ele — prometeu.
— Está bem — disse ela. Levantou-se. — Eu... eu não quero que tudo seja como era antes, Dennis. Sei que nunca mais será. No entanto, ainda o amo e... Bem, eu só queria que lhe dissesse isto.
— Certo, eu direi.
Ficaram ambos constrangidos e nenhum dos dois conseguiu dizer qualquer coisa, por um longo momento. Dennis pensava que devia ser aquele o momento, em uma canção, em que surge o Melhor Amigo. Não obstante, uma parte sua, desprezível, baixa (e também lúbrica) era contrária a isso. Totalmente. Continuava ainda sentindo uma fortíssima atração por ela, mais do que sentira por qualquer outra garota, em muito tempo. Talvez em toda a sua vida. Que Arnie levasse bebida e contrabando para Burlington, que se fodesse com seu carro! Nesse meio tempo, ele e Leigh travariam um conhecimento mais íntimo. Um pouco de ajuda e conforto. Todos sabem como é isso.
Teve a impressão de que levaria a melhor, precisamente naquele momento de constrangimento, após ela declarar que amava Arnie; Leigh estava vulnerável. Talvez estivesse aprendendo a ser forte, mas ela não aprenderia isso em uma escola à qual se vai voluntariamente. Ele poderia dizer alguma coisa — a coisa certa, talvez apenas: chegue aqui — e ela se aproximaria, sentaria na beira da cama, eles conversariam mais um pouco, talvez falassem sobre coisas mais agradáveis, possivelmente ele a beijaria. Leigh tinha uma boca adorável e cheia, sensual, feita para beijar e ser beijada. Uma vez para consolo. Duas por amizade. A terceira englobaria tudo. Sim, um certo instinto, que só então lhe parecia seguro, dizia que isso poderia ser feito.
Entretanto, Dennis não disse nenhuma das coisas que poderiam dar nascimento ao que imaginava, nem tampouco Leigh. Arnie estava entre eles e, quase seguramente, estaria sempre. Arnie e sua dama. Se a coisa não fosse tão ridiculamente chocante, ele teria achado graça.
— Quando é que vão deixar você sair? — perguntou ela.
— Sem que o público desconfie? — perguntou ele, começando a rir. Após um momento, ela começou a rir também.
— Algo mais ou menos assim — disse, tornando a rir. — Oh, sinto muito — acrescentou.
— Não se desculpe — disse Dennis. — Os outros riram de mim a vida inteira. Já fiquei acostumado. Disseram que vão me prender aqui até janeiro, mas vou enganá-los. Voltarei para casa no Natal. Tenho me rebolado um bocado, na câmara de tortura.
— Câmara de tortura?
— A fisioterapia. Minhas costas já estão outra coisa. Os outros ossos se emendam ativamente... às vezes a coceira é insuportável. Tenho devorado uma porção de botões de rosa. O Dr. Arroway diz que isso não passa de conversa fiada, mas o treinador Puffer jura que fazem efeito e confere as sobras, cada vez que me visita.
— E ele vem sempre? O treinador?
— Oh, sim, ele vem. Está quase me fazendo acreditar nessa história de que botões de rosa fazem os ossos se soldarem mais depressa. — Dennis fez uma pausa. — Naturalmente, vou parar de jogar futebol. Ficarei andando de muletas durante algum tempo e depois, com sorte, posso me candidatar a uma bengala. O velho e jovial Dr. Arroway me disse que vou mancar por uns dois anos. Talvez fique mancando para sempre.
— Sinto muito — disse ela, em voz baixa. — É pena que isso fosse acontecer logo com um cara tão legal como você, Dennis, mas em parte falo por egoísmo. Gostaria de saber se o resto de tudo isto, essa história horrível que aconteceu com Arnie, aconteceria realmente se você estivesse por perto.
— Muito bem — disse Dennis, rolando os olhos dramaticamente. — Jogue a culpa em mim! Ela, entretanto, não sorriu.
— Sabe que começo a duvidar da sanidade de Arnie? Isso é uma coisa que não cheguei a comentar com meus pais nem com os dele. No entanto, acho que a mãe dele... que ela talvez... Bem, não sei o que Arnie disse a ela naquela noite, depois que encontramos o carro destroçado, mas... tenho a impressão de que os dois se engalfinharam.
Dennis assentiu.
— De qualquer modo, tudo parece tão... louco! Os pais dele quiseram comprar um bom carro usado para ele, para substituir Christine, mas Arnie recusou. Quando me levava para casa, o Sr. Cunningham contou que se prontificou a comprar um carro novo para Arnie... usaria algumas ações que guarda desde 1955. Arnie recusou novamente, dizendo que não poderia aceitar um presente desses. O Sr. Cunningham respondeu que compreendia, que o carro não tinha que ser um presente, que Arnie lhe pagaria aos poucos, podia até incluir juros, se ele fizesse questão... Você entende aonde quero chegar, Dennis?
— Entendo — respondeu Dennis. — A questão é que não pode ser outro carro. Tem que ser Christine.
— Para mim, isso parece obsessivo. Arnie descobre uma coisa e se fixa nela. Não é o que se chama uma obsessão? Tenho medo e, às vezes, sinto ódio... mas não é dele que tenho medo. Não é a ele que odeio. É tudo por causa daquele ter... não, daquela merda de carro. A maldita Christine.
As faces de Leigh ficaram vermelhas. Ela apertou os olhos. Os cantos de sua boca penderam. De repente, seu rosto deixara de ser bonito, nem mesmo era atraente. A expressão era cruel, modificando-se para algo horrível, mas também magoado e compulsivo. Pela primeira vez, Dennis percebeu por que davam a isso o nome de monstro — o monstro de olhos verdes.
— Sabe o que eu gostaria que acontecesse? — perguntou Leigh. — Era que alguém, numa noite dessas, levasse sua preciosa e maldita Christine por engano, para os ferros-velhos de Philly Plains. — Os olhos dela cintilaram maldosamente. — E, no dia seguinte, que aquele guindaste com o enorme imã redondo recolhesse o carro e o colocasse no compressor. Depois, que alguém apertasse o botão e que então só sobrasse um cubinho de metal amassado, medindo dez centímetros de lado. Então, tudo isso teria terminado, não acha?
Dennis não respondeu e, após um momento, quase pôde ver o monstro girar, envolver-se em sua cauda escamosa e desaparecer do rosto dela. Os ombros de Leigh encurvaram-se.
— Bem, imagino que minhas palavras sejam horríveis, não? Seria como dizer que desejaria que aqueles caras terminassem o trabalho.
— Sei como você se sente, Leigh.
— Sabe mesmo? — desafiou ela.
Dennis evocou a expressão de Arnie, quando esmurrara o painel do carro. A espécie de luz maníaca que lhe surgia nos olhos, quando estava perto de Christine. Pensou na vez em que sentara ao volante, na garagem de LeBay e no tipo de visão que tivera.
Por último, pensou em seu sonho: faróis apontando para ele, em meio ao agudo grito feminino de pneus queimando.
— Sei — respondeu. — Penso que sei.
Os dois entreolharam-se, no quarto do hospital.
Duas-três horas passaram por nós,
A altitude caiu para 505,
Havia menos consumo de combustível,
Vamos para casa, antes que acabe a gasolina.
Você não pode me alcançar...
Não, meu bem, não pode me alcançar...
Porque se chegar muito perto,
Eu me transformo em uma briiiisa fresca.
— Chuck Berry
No hospital, o almoço do Dia de Ação de Graças foi servido em turnos, das onze da manhã até uma da tarde. Dennis recebeu o seu faltando quinze para o meio-dia: três cautelosas fatias de carne branca de peito de peru, três cautelosas colheradas de molho de ferrugem, um bom punhado de purê de batata, no formato e tamanho exato de uma bola de futebol (faltando apenas as suturas vermelhas, pensou ele, com sarcástico humor), uma pequena concha de abóbora gelada, em arrogante e fluorescente alaranjado, e um pequeno recipiente plástico contendo geléia de uva-do-monte. Havia ainda sorvete, como sobremesa. Um pequeno cartão azul repousava no canto de sua bandeja.
A esta altura, mais enfronhado no sistema hospitalar — após ser tratado da primeira erupção de úlceras de decúbito no traseiro, Dennis surpreendera-se mais entendido nos sistemas do hospital do que gostaria de estar —, ele perguntou, à atendente de uniforme listrado que veio levar sua bandeja, o que os cartões amarelo e vermelho reservavam para o ajantarado de Ação de Graças. Ficou sabendo que os cartões amarelos indicavam duas fatias de peru, nenhum molho, batatas, sem abóbora e geléia artificial como sobremesa. Os cartões vermelhos indicavam uma fatia de carne branca, purê de batatas. Pouca comida, na maioria dos casos.
Para Dennis, tudo aquilo foi bastante deprimente. Era fácil imaginar sua mãe trazendo um enorme e tostado peru para a sala da mesa de refeições, por volta de quatro da tarde, seu pai afiando a faca de trinchar, sua irmã, corada pela pompa e excitamento, com uma fita vermelha de veludo no cabelo, enchendo um bom copo de vinho tinto para cada um deles. Era também fácil imaginar os deliciosos aromas e a alegria, quando se sentavam para comer.
Fácil de imaginar... mas provavelmente um erro.
De fato, aquele era o Dia da Ação de Graças mais deprimente de sua vida. Dennis evadiu-se para uma desacostumada sesta no início da tarde (nada de fisioterapia, por ser feriado) e teve um sonho perturbador, no qual várias atendentes de uniforme listrado percorriam a enfermaria de Tratamento Intensivo aplicando decalques da figura de um peru nos aparelhos de manutenção da vida e nos injetares intravenosos.
Sua mãe, o pai e a irmã tinham ido visitá-lo pela manhã, durante uma hora. Era a primeira vez que percebia em Ellie certa ansiedade para ir embora dali. Tinham sido convidados pelos Callison para um brunch * ligeiro de Ação de Graças; Lou Callison, um dos três filhos do casal, tinha quatorze anos e era "legal". O irmão hospitalizado se tomara tedioso. Não lhe haviam descoberto uma forma rara e trágica de câncer espalhando-se pelos ossos. Ele tampouco ficaria paralítico para o resto da vida. Em Dennis, nada havia de comparável ao filme da semana na tevê.
Telefonaram para ele da residência dos Callison, por volta de meio-dia e meia. Seu pai lhe parecera levemente embriagado — Dennis supôs que estaria no segundo Bloody Mary e talvez recebendo alguns olhares desaprovadores de mamãe. Pessoalmente, ele terminara pouco antes seu ajantarado de Ação de Graças — cartão azul, dieteticamente aprovado, o único de semelhante data que já conseguira comer em quinze minutos — e saiu-se bem, simulando alegria, não querendo estragar-lhes os bons momentos. Ellie falou rapidamente ao telefone, dando risadinhas e com voz um tanto estridente. Talvez fosse a conversa com Ellie que o fatigara o suficiente para precisar de uma soneca.
Dennis adormecera (e tivera aquele sonho perturbador) por volta de duas da tarde. O hospital estava singularmente quieto aquele dia, apenas com o pessoal estritamente necessário. A costumeira tagarelice das TVs e rádios transistorizados dos outros quartos emudecera. O uniforme listrado que recolhera sua bandeja sorrira amplamente, dizendo esperar que ele tivesse apreciado seu "ajantarado especial". Dennis garantiu-lhe que o apreciara. Afinal de contas, era Dia de Ação de Graças também para ela.
Então, aconteceu o sonho, um sonho que depois se interrompeu e foi substituído por um sono profundo. Quando acordou, eram quase cinco da tarde e Arnie Cunningham estava sentado na mesma cadeira de plástico duro que sua namorada ocupara ainda na véspera.
Não foi muita surpresa deparar com ele ali; Dennis imaginou, simplesmente, que se tratava de um novo sonho.
— Olá, Arnie — disse. — Como vão as coisas?
— Tudo legal — respondeu Arnie —, mas você parece ainda estar dormindo, Dennis. Que tal uma pausa para o almoço? Isso o despertará.
Havia um saco de papel pardo no colo dele e a mente sonolenta de Dennis pensou: Afinal, ele recuperou seu saco do almoço. Talvez Repperton não o tivesse pisoteado tanto quanto pensei. Tentou sentar-se na cama, porém as costas doeram e usou o painel de controle, para deixá-la quase em posição de sentar. O motor gemeu.
— Céus, é você mesmo!
— Esperava Chidrah, o Monstro de Três Cabeças? — respondeu Arnie amistosamente.
— Eu estava dormindo. Devo ter pensado que ainda estava. — Dennis friccionou a testa com força, como para livrar-se do sono. — Feliz Dia de Ação de Graças, Arnie.
— Obrigado — disse Arnie. — O mesmo para você. Eles lhe deram peru e tudo o mais para comer?
Dennis riu.
— Ganhei algo parecido àquelas comidinhas de brinquedo, que vieram com o Bar Horas Felizes, de Ellie, quando ela estava com uns sete anos. Lembra-se?
Arnie colocou as mãos em concha ao redor da boca e fez ruídos obscenos.
— Claro que me lembro. Uma baixaria!
— Foi bom você ter vindo — disse Dennis e, por um instante, esteve perigosamente à beira das lágrimas.
Talvez não houvesse percebido inteiramente o quanto estava deprimido. Sua decisão de estar em casa pelo Natal ganhou força redobrada. Se ainda continuasse lá, certamente se suicidaria.
— Seus velhos não vieram?
— É lógico que vieram — disse Dennis —, e vão voltar à noite, pelo menos, mamãe e papai, mas não é a mesma coisa. Você sabe.
— Hum-hum. Bem, eu lhe trouxe uma coisa. Disse à matrona lá embaixo que era o seu roupão de banho.
Arnie deu uma risadinha contida.
— O que é isso?— perguntou Dennis, indicando o saco.
Podia ver que não era apenas um saco de papel para almoço, mas uma sacola de compras.
— Oh, fiz uma vistoria na geladeira, depois que comemos o bicho — disse Arnie. — Os velhos saíram para visitar amigos da Universidade, é costume de todo ano, na tarde do Dia da Ação de Graças. Só estarão de volta lá pelas oito da noite.
Enquanto falava, foi tirando coisas da sacola. Dennis ficou olhando, espantado. Dois castiçais de estanho. Duas velas. Arnie enfiou as velas nos castiçais, acendeu-as usando uma caixinha de fósforos com propaganda da Garagem de Darnell e desligou a luz da cabeceira. Em seguida, quatro sanduíches, grosseiramente embrulhados em papel encerado.
— Segundo me lembro — disse ele —, você sempre dizia que dois sanduíches de peru, por volta de onze e meia da noite de sexta-feira, eram melhores do que o ajantarado de Ação de Graças. Porque a pressão já terminara.
— Isso mesmo — assentiu Dennis. — Sanduíches em frente da TV. Carson ou algum filme antigo. Bem, mas... francamente, Arnie, você não precisava...
— Droga, faz umas três semanas que não ponho os olhos em você. Foi bom ter chegado enquanto você dormia, porque do contrário teria me fuzilado. — Passou dois sanduíches para Dennis. — Seus favoritos, acho. De carne branca, com maionese e Pão Maravilha.
Dennis deu uma risadinha, depois riu com vontade, então gargalhou. Arnie percebia que aquele esforço lhe doía nas costas, mas ele não conseguia parar de rir. Pão Maravilha havia sido um dos maiores segredos comuns de Dennis e Arnie, quando crianças. As mães de ambos eram muito severas no tocante ao pão; Regina comprava Torradas Dietéticas, com ocasionais incursões ao Centeio Moído-Solo Pedregoso. A mãe de Dennis preferia Farinha de Milho e pão de centeio. Arnie e Dennis comiam o que lhes era dado — mas ambos eram secretos apreciadores do Pão Maravilha e, por várias ocasiões, juntavam seu dinheiro para comprar um Maravilha e um pote de Mostarda Francesa, em vez de doces e balas. Então, enfiavam-se na garagem da casa de Arnie (ou na casa na árvore de Dennis, lamentavelmente demolida por um vendaval quase nove anos antes) e lá ficavam comendo sanduíches de mostarda e lendo histórias em quadrinhos de Ricardo Rico, até todo o pão terminar.
Arnie o acompanhou em suas risadas e, para Dennis, aquela foi a melhor parte do Dia de Ação de Graças.
Dennis havia ficado com companheiros de quarto por quase dez dias, mas agora tinha sozinho o quarto semiparticular. Arnie fechou a porta e tirou da sacola parda seis latas de cerveja.
— As maravilhas continuam — disse Dennis e teve que rir novamente, com o trocadilho involuntário.
— Certo — disse Arnie. — Não creio que terminem. — Fez um brinde acima das velas, com a lata de cerveja. — Prost?
— Vida eterna! — respondeu Dennis.
Os dois beberam. Após terminarem os enormes sanduíches de peru, Arnie retirou da sacola aparentemente sem fundo dois recipientes plásticos para torta e retirou as tampas. Em cada um, havia uma fatia de torta de maçã caseira.
— Não, cara, não posso — disse Dennis. — Vou explodir.
— Coma! — ordenou Arnie.
— É verdade, não posso — disse Dennis, pegando o recipiente e um garfo de plástico. Terminou a fatia de torta em quatro grandes bocados e depois arrotou. Esgotou o que sobrava de sua segunda cerveja e tornou a arrotar. — Em Portugal, isto é um cumprimento ao cozinheiro — disse, com a cabeça zumbindo agradavelmente, devido à cerveja.
— Se você diz... — respondeu Arnie, com uma careta.
Levantou-se, ligou a luz fluorescente da cabeceira e apagou as velas. No exterior, uma chuva forte começara a bater contra as janelas. O ambiente esfriava. E, para Dennis, parte do cálido espírito da amizade e da verdadeira Ação de Graças parecera extinguir-se com as velas.
— Vou odiar você amanhã — disse Dennis. — Aposto como vou ficar uma hora sentado naquela privada. E isso me dói as costas.
— Lembra-se daquela vez em que Elaine deu os peidos? — perguntou Arnie, e os dois riram. — Implicamos com ela, até sua mãe despejar o inferno em cima da gente.
— Não fediam, mas foram um bocado barulhentos — disse Dennis, sorrindo.
— Como tiros de revólver — concordou Arnie.
Os dois riram um pouco — mas era uma espécie de riso triste, se é que isso existe. Muita água passara debaixo da ponte. A idéia de que o acesso de gases de Ellie acontecera sete anos atrás, de certa forma era mais perturbadora do que divertida. Havia um hálito de mortalidade na percepção de que sete anos podiam significar o passado, com a mais total e calma facilidade.
A conversa morreu um pouco, ambos perdidos em seus pensamentos. Por fim, Dennis disse:
— Leigh esteve aqui ontem. Contou-me sobre Christine. Sinto muito cara. De verdade.
Arnie ergueu os olhos e seu ar de pensativa melancolia foi trocado por um sorriso jovial, em que Dennis mal podia acreditar.
— Sim — concordou Arnie. — Foi terrível, mas vou dar a volta por cima.
— É o melhor — respondeu Dennis, cônscio de que estava repentinamente vigilante, odiando-se por isso, mas não conseguindo agir de outro modo.
A parte referente à amizade terminara. Era algo que estivera ali, aquecendo e enchendo o quarto, mas que agora simplesmente se desfizera, como a coisa delicada e efêmera que era. Agora, os dois apenas se fitavam. Os olhos joviais de Arnie estavam também opacos e — Dennis podia jurar — também vigilantes.
— Certo. Fiz a velha passar maus bocados. Leigh também, creio. Acho que foi o choque de ver que tanto trabalho... todo o meu trabalho, tinha ido por água abaixo. — Ele meneou a cabeça. — Uma catástrofe.
— E você conseguirá fazer alguma coisa?
Arnie ficou imediatamente radiante — francamente radiante naquele momento, Dennis pôde sentir.
— Claro que sim! Aliás, já fiz. Você nem acreditaria, Dennis, se tivesse visto o estrago que fizeram, naquele pátio de estacionamento. Antigamente eles faziam um carro para valer, não como agora, quando tudo que parece metal é, na verdade, plástico reluzente. Aquele carro é um maldito tanque de guerra, cara. A parte dos vidros foi a pior. E também os pneus, claro. Eles estraçalharam os pneus.
— E quanto ao motor?
— Nem chegaram perto — disse Arnie prontamente.
Foi sua primeira mentira. Quando ele e Leigh tinham visto Christine, naquela tarde, o bujão do distribuidor jazia no pavimento. Leigh o reconhecera e falara com Dennis a respeito. E Dennis se perguntava o que mais eles teriam feito debaixo do capô. O radiador? Se alguém se propõe a usar uma alavanca de pneus para fazer buracos na lataria, não poderia usá-la também para furar o radiador em alguns lugares? E quanto às velas? Ao regulador de voltagem? O carburador?
Por que está mentindo para mim, Arnie?
— O que está fazendo no carro agora? — perguntou Dennis.
— Gastando dinheiro, o que mais poderia ser? — respondeu Arnie, e seu riso agora foi quase verdadeiro. Dennis poderia até aceitá-lo como verdadeiro, se não tivesse ouvido o riso real uma ou duas vezes, durante o banquete de Ação de Graças proporcionado pelo amigo. Novos pneus. Vidros novos. Algum trabalho de lanternagem e então tudo ficará bom como antes.
Bom como antes. No entanto, Leigh lhe contara que haviam deparado com algo que não passava de uma carcaça massacrada, o calhambeque de feira, a ser liquidado na base das três-marteladas-por-um-quarto-de-dólar.
Por que está mentindo?
Durante um gélido instante, ele se perguntou se Arnie talvez não tivesse ficado um pouco maluco
— mas, não, essa não era a impressão que ele dava. A impressão que Arnie fornecia era de... furtividade. Astúcia. Então, pela primeira vez, imaginou que Arnie talvez estivesse apenas mentindo pela metade, procurando estabelecer um fundamento de plausibilidade para... para o quê? Um caso de regeneração espontânea? Bem, isso era absolutamente louco, não?
Não era?
Sem dúvida, pensou Dennis, a menos que a gente testemunhasse como um monte de rachaduras em um pára-brisa começa a encolher-se, entre uma e outra visita.
Apenas uma ilusão de ótica, um truque provocado pela luz. Foi o que você pensou naquela vez e tinha razão.
Não obstante, um truque provocado pela luz não explicaria a singular maneira como Arnie reconstituíra Christine, aquela excentricidade de partes novas misturadas a velhas. Não explicaria a estranha sensação que se apoderara de Dennis ao sentar-se ao volante de Christine, na garagem de LeBay. Ou a sensação, após ter colocado o pneu novo, quando estavam a caminho da Darnell's, de que ele olhava para o retrato de um carro velho com uma foto do carro novo diretamente abaixo dele — ou que havia sido recortado um buraco no quadro do carro velho, no lugar onde estivera um dos seus pneus.
E nada explicaria a mentira de Arnie agora... ou a maneira astuta, disfarçada, como o observava, para ver se sua mentira seria aceita. Então, ele sorriu... uma grande, tranqüila e aliviada careta.
— Bem, isso é ótimo — falou.
A expressão astuciosa e calculista de Arnie permaneceu por um segundo mais. Depois ele sorriu, careteando, enquanto encolhia os ombros.
— Tive sorte — disse. — Quando penso nas coisas que eles poderiam ter feito... Açúcar no tanque de gasolina, melado no carburador... foram imbecis. Sorte minha.
— Repperton e seu alegre bando? — perguntou Dennis, calmamente.
A expressão de desconfiança, tão sombria e estranha a Arnie, tornou a aparecer e desaparecer. Agora, ele parecia taciturno. Taciturno e vacilante. Deu a impressão de que ia falar, mas em vez disso suspirou.
— Certo — assentiu. — Quem mais poderia ser?
— No entanto, você não deu parte do fato.
— Meu velho fez isso.
— Foi o que Leigh me disse
— O que mais ela lhe contou? — perguntou Arnie, bruscamente.
— Nada e nem perguntei — respondeu Dennis, estendendo a mão. — O problema é seu, Arnie. Paz.
— Claro. — Arnie riu um pouco e depois passou a mão pelo rosto. — Ainda não consegui superar aquilo. Droga! Acho que nunca irei superar, Dennis. Chegar àquele pátio de estacionamento com Leigh, sentindo-me o dono do mundo, para então ver...
— Será que eles não repetirão a dose, depois que você consertar o carro? O rosto de Arnie ficou hermético, gélido.
— Eles não farão outra vez — disse.
Seus olhos cinzentos eram como o gelo de março e, de repente, Dennis ficou satisfeito por não ser Buddy Repperton.
— O que quer dizer com isso?
— Estou dizendo que agora vou deixar o carro em casa — explicou e, novamente, seu rosto mostrou aquela ampla, jovial careta esquisita. — O que mais pensou que fosse?
— Não pensei nada — replicou Dennis. A imagem gelada permanecia. Agora era uma sensação de gelo fino, estalando inquietamente debaixo de seus pés. E, abaixo do gelo, água negra e fria. — Sei lá, Arnie. Você parece muito certo de que Buddy desistiu.
— Espero que ele encare a coisa como um acerto de contas — declarou Arnie tranqüilo. — Nós provocamos sua expulsão do colégio...
— Ele é que provocou a própria expulsão! — exclamou Dennis, acalorado. — Puxou uma faca... diabo, aquilo nem era faca, mas um maldito facão de açougueiro!
— Só estou imaginando o modo como ele verá a coisa — disse Arnie, para então estender a mão e acrescentar, rindo: — Paz.
— Ok, tudo bem.
— Nós conseguimos sua expulsão, ou, mais precisamente, eu a consegui. Em troca, ele e sua turma fizeram o diabo com Christine. Agora estamos quites. Fim.
— Ainda bem, caso ele encare os fatos dessa maneira.
— Acho que vai ser assim — disse Arnie. — Os tiras o interrogaram. Também interrogaram "Penetra" Welch e Richie Trelawney. Encheram os três de medo. E suponho que quase fizeram Sandy Galton confessar. — Os lábios de Arnie encurvaram-se desdenhosos. — Aquele babaca chorão!
Aquilo era tão inusitado em Arnie — no velho Arnie — que Dennis se sentou na cama sem pensar, pestanejou com a dor nas costas e tornou a se deitar rapidamente.
— Nossa, cara, e você não acha que eles tinham que ficar assustados mesmo?
— Estou pouco ligando para o que ele ou qualquer daqueles bostas venham a fazer — disse Arnie. Então, em voz estranhamente distante, acrescentou: — Aliás, nada mais importa...
Dennis perguntou:
— Você está bem, Arnie?
Por um instante, um olhar de desesperada tristeza cobriu o rosto de Arnie — foi mais do que tristeza. Ele parecia atormentado e perseguido. Mais tarde (é muito fácil analisar tais coisas mais tarde, bem mais tarde), Dennis decidiu que era a expressão de alguém tão desnorteado, envolvido e cansado de lutar, que nem sabe mais direito o que faz.
Então, essa expressão, como qualquer outra de escura suspeita, terminou desaparecendo.
— Claro — respondeu. — Estou ótimo. Exceto que você não é o único com dor nas costas. Lembra-se de quando fiz aquele esforço, em Philly Plains?
Dennis assentiu.
— Pois dê uma olhada nisto.
Levantando-se, Arnie puxou a camisa para fora das calças. Algo pareceu agitar-se em seu olhar. Algo inquieto, que depois mergulhou em negras profundezas.
Ergueu a camisa. Não era uma coisa antiquada, como o de LeBay. Também estava mais limpo — uma caprichada tira de Lycra, parecendo contínua, com uns trinta centímetros de largura. Entretanto, pensou Dennis, um colete era um colete. Para seu desconsolo, aproximava-se demais do de LeBay.
— Piorei as coisas, ao levar Christine de volta para a garagem — disse Arnie. — Nem mesmo sei como foi, tão perturbado estava. Ajudando a enganchá-la no guincho do carro-reboque, imagino, mas não tenho certeza. A princípio não foi tão ruim, mas depois piorou. O Dr. Mascia receitou... Dennis, você está legal?
Com o que sentiu ser um fantástico esforço, Dennis manteve a voz controlada. Movimentou as feições, formando uma expressão que, pelo menos fracamente, dava uma idéia de agradável interesse... mas ainda continuava aquilo nos olhos de Arnie, dançando, dançando e dançando.
— Você vai sair dessa — falou Dennis.
— Bem, acho que sim — respondeu Arnie, tornando a enfiar a camisa dentro das calças, em torno do colete para as costas. — Apenas preciso ficar atento na hora de levantar pesos, para que não torne a acontecer.
Sorriu para Dennis.
— Se ainda houvesse recrutamento, isso me livraria do Exército — comentou.
De novo, Dennis evitou qualquer movimento que pudesse ser interpretado como surpresa, mas colocou os braços debaixo das cobertas. Ao ver aquele colete para as costas, tão semelhante ao de LeBay, ficara com ambos arrepiados.
E os olhos de Arnie! Eram como águas escuras, por baixo do fino gelo de março. Águas escuras e jubilosas, agitando-se muito fundo dentro dele, como o corpo agitado e decomposto de um afogado.
— Bem — disse Arnie, animadamente. — Tenho que ir andando. Certamente não vai esperar que eu fique rondando em um lugar horrível como este, a noite inteira.
— E lá se vai você, sempre solicitado — disse Dennis. — Falando sério, cara, obrigado. Você alegrou um dia sombrio.
Por um estranho instante, ele pensou que Arnie fosse chorar. Aquela coisa dançante no fundo de seus olhos havia desaparecido e seu amigo estava ali — realmente ali. Arnie sorriu sincero.
— Lembre só uma coisa, Dennis: ninguém está sentindo sua falta. Absolutamente ninguém!
— Vai tomar banho — disse Dennis, em tom solene. Arnie fez um gesto obsceno com o dedo.
As formalidades agora estavam completas — Arnie podia ir embora. Recolheu sua sacola parda
de compras, consideravelmente desinflada, castiçais e latas vazias de cerveja, que tilintaram no interior.
Dennis teve uma súbita inspiração. Bateu com os nós dos dedos no gesso em torno da perna.
— Quer assinar aqui, Arnie?
— Eu já assinei, não foi?
— Sim, mas apagou. Assina outra vez? Arnie deu de ombros.
— Tem uma caneta?
Dennis entregou-lhe uma caneta que tirou da gaveta da mesa-de-cabeceira. Sorridente, Arnie inclinou-se para o gesso, erguido em ângulo acima da cama, através de uma série de pesos e polias, encontrou espaço em branco no meio do emaranhado de nomes e frases e garatujou:
(Para Dennis Guilder, o maior cacete do mundo.)
Deu um tapinha no gesso, após terminar, e devolveu a caneta.
— Tudo certo?
— Legal — disse Dennis. — Obrigado. Agora pode dar o fora, Arnie.
— Certo, sabichão. Feliz Dia de Ação de Graças.
— O mesmo pra você.
Arnie se foi. Mais tarde, chegaram os pais de Dennis. Aparentemente exausta pela hilaridade do dia, Ellie tinha ido dormir. Ao voltarem para casa, os Guilder comentaram o abatimento de Dennis.
— Tinha que estar mesmo — disse Guilder. — Feriados num hospital nada têm de divertidos.
Quanto a Dennis, naquela noite ele passou um longo e meditativo período examinando as duas assinaturas. De fato, Arnie já assinara seu gesso, mas quando ele ainda estava com as duas pernas inteiramente engessadas. Daquela primeira vez, ele assinara no molde sobre a perna direita, a que estava suspensa no ar durante a visita de Arnie. Esta noite, ele pusera sua assinatura na esquerda.
Dennis tocou a cigarra, chamando uma enfermeira, e usou todo o seu poder de persuasão para que ela lhe baixasse a perna esquerda, a fim de poder comparar as duas assinaturas, lado a lado. O gesso da perna direita havia sido recortado e o retirariam em mais uma semana ou dez dias. A assinatura de Arnie não se desfizera — essa tinha sido uma das mentiras de Dennis —, mas quase se fora, quando recortaram o gesso.
Arnie não escrevera uma mensagem na perna direita, apenas assinara. Com algum esforço (e um pouco de dor), Dennis e a enfermeira conseguiram manobrar-lhe as pernas, deixando-as aproximadas o suficiente para que ele estudasse as duas assinaturas, lado a lado. Em uma voz tão sem entonação e falha, que ele mal conseguiu identificar como sua, ele perguntou à enfermeira:
— Acha que são parecidas?
— Não — disse ela. — Já ouvi falar de cheques com assinaturas falsificadas, mas nunca moldes de gesso. É alguma brincadeira?
— Claro — Dennis sentiu algo gélido subir do estômago para o peito. — É brincadeira.
Olhou para as assinaturas. Olhou para ambas, lado a lado, e sentiu um jato gelado se espraiando por todo seu corpo, baixando sua temperatura, deixando os cabelos da nuca eriçados, espetando o ar:
As duas assinaturas não tinham a menor semelhança.
Mais tarde, naquela noite do Dia de Ação de Graças, levantou-se um vento frio, primeiro em lufadas, depois permanentemente. A clara lua cheia espiava para baixo, do alto de um céu negro. As últimas folhas murchas e queimadas do outono foram arrancadas das árvores e depois atiradas pelas sarjetas. Emitiam um som parecido ao de ossos rolando.
O inverno chegara a Libertyville.
A noite estava escura, o céu estava azul,
e um carrão brilhante fugia no fundo do beco,
Uma porta se abriu com estrondo,
Alguém gritou,
Você precisava ouvir só o que eu vi
— Bo Diddley
A quinta-feira depois da do Dia de Ação de Graças foi o último dia de novembro, a noite em que Jackson Browne tocou no Centro Cívico de Pittsburgh, para uma platéia lotada. "Penetra" Welch foi até lá com Ricchie Trelawney e Nickey Billingham mas separou-se deles antes de começar o espetáculo. A grana estava curta e, fosse porque o eminente concerto de Browne houvesse gerado algumas vibrações harmoniosas ou porque ele estava adquirindo traços afetivos (sendo um romântico, "Penetra" gostava de acreditar na última hipótese), ele tivera uma noite extraordinariamente boa. Conseguira juntar quase trinta dólares em "trocados". Distribuíra as moedas por todos os seus bolsos e tilintava como um cofre de criança. Pedir carona para casa também fora incrivelmente fácil, com todo o tráfego formado a partir do Centro Cívico. O concerto terminara às onze e quarenta da noite e ele estava de volta a Libertyville pouco depois de uma e quinze da madrugada.
Sua última carona havia sido com um rapaz que seguia de volta para Prestonville, pela Rota 63. O cara o deixara na rampa da 376, da JFK Drive. "Penetra" decidiu caminhar até o posto de gasolina Happy Gas, de Vandenberg, para um papo com Buddy. Buddy tinha um carro e isto, para "Penetra" — que morava longe, em Kingsfield Pike — significava que não precisaria ir para casa andando. Era dureza conseguir uma carona quando se está em zonas menos populosas — e Kingsfield Pike ficava no fim do mundo. Desta maneira, ele só chegaria em casa bem depois do amanhecer mas, em tempo frio, uma carona garantida não é coisa que se despreze. E Buddy podia ter uma garrafa.
"Penetra" já caminhara uns trezentos metros, a partir da rampa de saída da 376, em meio a um frio intenso, suas botas ferradas crepitando sobre a calçada deserta, a sombra diminuindo e se desfazendo sob a claridade fantasmagórica e alaranjada da luz dos postes, tendo ainda mais de um quilômetro a percorrer, quando avistou o carro estacionado junto ao meio-fio, pouco adiante. O escapamento turbilhonava para fora dos dois canos de descarga e pendia no ar perfeitamente imóvel, em forma de nuvem, antes de se desmanchar preguiçosamente em camadas superpostas. A grade do radiador, em reluzente cromado que se acentuava com toques de luz laranja, olhava para ele como a boca sorridente de um débil mental. "Penetra" reconheceu o carro. Era um Plymouth de duas cores. À luz das lâmpadas da rua, os dois tons pareciam ser marfim e sangue seco. Era Christine.
"Penetra" estacou e uma espécie de estúpida admiração o envolveu — não havia medo, pelo menos naquele momento. Não podia ser Christine, aquilo era impossível — eles tinham feito uma dúzia de furos no radiador do carro do Cara de Cona, haviam despejado uma garrafa de Texas Driver quase cheia no carburador, e Buddy exibira um saco de açúcar de três quilos, que deixara escorregar para o tanque de gasolina, através das mãos de "Penetra", formando um funil. E aquilo fora apenas o começo. Buddy demonstrara um tipo de furiosa imaginação, para destruir o carro do Cara de Cona. Aquilo deixara "Penetra" deliciado e inquieto ao mesmo tempo. Tudo somado, aquele carro não conseguiria mover-se por esforço próprio nem em seis meses, talvez nunca mais. Portanto, não podia ser Christine o que estava ali. Devia ser outro Fury 58.
Exceto que era Christine. "Penetra" o conhecia.
Ficou imóvel na calçada deserta daquela madrugada, as orelhas entorpecias assomando por sob os cabelos compridos, a respiração congelando-se no ar.
O carro estava junto ao meio-fio, de frente para ele, o motor ronronando maciamente. Era impossível dizer quem estaria ao volante, caso houvesse alguém. O carro estacionara diretamente abaixo da luz de um poste, e o globo alaranjado brilhava através do pára-brisa imaculado, como um jack-o'-lantern * à prova d'água, percebido bem no fundo de águas escuras.
"Penetra" começou a ficar com medo.
Deslizou a língua sobre os lábios secos e olhou em torno. À sua esquerda, ficava a JFK Drive, com seis faixas de trânsito e se assemelhando ao leito seco de um rio, àquela hora morta da madrugada. À esquerda, havia uma loja fotográfica, com letras alaranjadas delineadas em vermelho, soletrando KODAK, através da vitrine.
"Penetra" tornou a olhar para o carro. Ele permanecia lá, parado.
Ele abriu a boca para falar, mas não emitiu som algum. Experimentou de novo e conseguiu um grasnido.
— Olá, Cunningham!
O carro continuou parado, preguiçosamente. A fumaça do escapamento turbilhonava, morosamente farta, produzida pela gasolina especial.
— É você, Cunningham?
Deu mais um passo. Os pregos da bota ferrada retiniram no cimento. Seu coração latejava no pescoço. Tornou a olhar em torno, para a rua; certamente apareceria outro carro, a JFK Drive não podia estar inteiramente deserta, mesmo à uma e vinte e cinco da madrugada, podia? Entretanto, não havia carros, apenas o monótono clarão alaranjado dos postes de luz.
"Penetra" pigarreou.
— Você não está louco, está?
Os faróis duplos dianteiros ganharam vida subitamente, envolvendo-o em cintilante luz branca. O Fury disparou para ele, a toda velocidade, os pneus deixando marcas negras de borracha no pavimento. Arremeteu com tal potência que a retaguarda pareceu afundar, como as patas traseiras de um cão preparando-se para o salto — um cão ou uma loba. As rodas junto ao meio-fio ergueram-se acima do pavimento e correram para "Penetra" daquela maneira — as rodas externas mais baixas, as internas rodando sobre a calçada, em ângulo saliente. O chassi arranhou e gemeu, despejando um jato de faíscas turbilhonantes.
"Penetra" gritou e tentou dar um passo de lado. A extremidade do pára-choque de Christine mal lhe tocou a barriga da perna esquerda, mas arrancou um pedaço de carne. Um líquido quente desceu por sua perna e empoçou-se no sapato. O calor do próprio sangue o fez perceber, de modo algo confuso, o quanto a noite estava fria.
Ele se chocou contra a porta da loja de fotografias, batendo nela com o quadril, escapando por pouco da vitrine. Mais trinta centímetros para a esquerda e afundaria através do vidro, aterrando sobre um amontoado de Nikons e Polaroids.
Ouviu o motor do carro, aumentando subitamente de rotação. E, de novo, aquele alienado ranger do chassi contra o cimento. "Penetra" olhou em redor, arfando penosamente. Christine dava marcha à ré na sarjeta e, quando passou por ele, "Penetra" viu. Ele viu.
Não havia ninguém ao volante.
O pânico começou a latejar em sua cabeça. "Penetra" se firmou nos calcanhares. Correu pela JFK Drive, procurando o lugar mais distante. Havia um beco, entre um mercado e uma lavanderia. Estreito demais para o carro. Se pudesse alcançá-lo...
As moedas tilintaram loucamente em seus bolsos das calças e nos cinco ou seis bolsos do casaco, excedente de equipamento militar do Exército. Moedas de vinte e cinco, dez e cinco centavos. Um tilitante carrilhão de prata. Os joelhos quase lhe chegaram ao queixo. As botas ferradas de engenheiro tamborilaram sobre a calçada. Sua sombra o perseguiu.
Em algum ponto mais atrás, o carro tornou a aumentar as rotações, morreu, aumentou de novo, morreu, e então o motor começou a guinchar. Os pneus uivaram e Christine disparou contra as costas de "Penetra" Welch, cruzando as faixas da JFK Drive em ângulo reto. "Penetra" gritou, mas nem ouviu o próprio grito, porque o carro ainda queimava borracha, ainda se esganiçava como uma mulher insanamente furiosa e homicida — e aquele guincho encheu o mundo.
A sombra de "Penetra" não o perseguia mais. Agora estava à sua frente e alongando-se. Na vitrine da lavanderia, ele viu o desabrochar de enormes olhos amarelados.
Nem mesmo estava perto de lá.
No preciso e último instante, "Penetra" tentou gingar para a esquerda, mas Christine imitou seu movimento, como se tivesse lido seu final e desesperado pensamento. O Plymouth o atingiu em cheio, ainda acelerando, quebrando-lhe as costelas e arrancando as botas de engenheiro de seus pés. Ele foi atirado a doze metros, contra a parede lateral de tijolos do pequeno mercado, novamente escapando por pouco de um mergulho através da vitrine.
A força do impacto foi dura o bastante para fazê-lo ricochetear de novo para a rua, deixando na parede uma mancha de sangue, como em um mata-borrão. Uma foto da mancha surgiria no dia seguinte, na primeira página do Keystone de Libertyville.
Christine deu marcha à ré, guinchou quando de uma brusca e deslizante parada, tornando a rugir ao avançar. "Penetra" jazia perto a calçada, tentando levantar-se. Não foi possível. Nada parecia funcionar. Todos os sinais estavam confusos.
A intensa luz branca o lavou de alto a baixo.
— Não — sussurrou, através da boca cheia de dentes quebrados. — N...
O carro rugiu para diante e sobre ele. Moedas voaram para todos os lados. "Penetra" foi puxado, rolando primeiro para um lado, depois para o outro, quando Christine tornou a recuar para a rua. O carro ficou ali, o motor acelerando e caindo para um zumbido preguiçoso, depois tornando a acelerar. Ficou ali, como que cismando.
Então, voltou a atacá-lo. Atingiu-o, subiu na calçada, derrapou um pouco e então recuou, sacolejando na marcha à ré.
Guinchou para diante.
Deu marcha à ré.
Investiu de novo.
Os faróis dianteiros cintilaram. Os canos de descarga expeliram uma quente fumaça azulada.
A coisa na rua não parecia mais um ser humano; agora tinha a aparência de um monte de trapos espalhado.
O carro deu marcha à ré uma última vez, derrapou fazendo um semicírculo e acelerou, rugindo para a trouxa sangrenta na rua, em seguida descendo a estrada a toda potência do motor, ainda acelerando ao máximo, o ruído reverberando nas paredes dos prédios adormecidos mas não inteiramente adormecidos agora. Havia luzes começando a brilhar, pessoas que moravam sobre suas lojas chegavam às janelas, querendo ver o que provocava toda aquela barulheira e se houvera algum acidente.
Um dos faróis de Christine ficara estilhaçado. O outro piscava sem cessar, manchado com uma fina camada do sangue de "Penetra". A grade do radiador estava amassada para dentro e as mossas feitas nela aproximavam-se em tamanho e formato ao torso de "Penetra", com toda a horrenda perfeição de uma máscara mortuária. Havia sangue espalhado sobre o capô, um sangue que era uma mancha aumentando de tamanho, à medida que aumentava a velocidade. A descarga apresentava um som ruidoso, ensurdecedor; um dos dois silenciosos de Christine fora destruído.
Dentro do carro, no painel de instrumentos, o odômetro continuava girando ao contrário, como se, de algum modo, Christine recuasse no tempo, escapando não apenas do cenário do atropelamento e fuga, mas do verdadeiro fato do atropelamento e fuga.
O silencioso foi a primeira coisa.
De repente, aquele som ruidoso, ensurdecedor, diminuiu e normalizou-se.
Os leques de sangue sobre o capô começaram a recuar para a dianteira do carro, a despeito do vento — como um filme, rodando ao contrário.
O farol vacilante de súbito passou a brilhar com firmeza e, duzentos metros além, o farol apagado voltou a brilhar também. Com um tilintar insignificante — não mais do que o som do sapato de um garotinho quebrando a fina camada de gelo formada sobre uma poça lamacenta — o vidro se reestruturou do nada.
Houve um som cavo — punk! punk! punk!— brotando da dianteira do carro, o som de metal amassado, aquele som que ouvimos às vezes quando apertamos uma lata de cerveja. Só que, em vez de amassar-se, a grade dianteira de Christine estava se desamassando — um lanterneiro veterano, com cinqüenta anos de experiência em seu trabalho, não o teria feito com mais perícia e capricho.
Christine dobrou para Hampton Street, ainda antes de o primeiro daqueles despertados pelo chiado de seus pneus alcançar os despojos de "Penetra". O sangue desaparecera. Tinha chegado à frente do capô e ali desaparecera. Os arranhões não existiam mais. Quando o carro rodou quietamente para a porta da garagem, com seu aviso BUZINE PARA ENTRAR, houve um punk! final, e então a última amassadura — esta no pára-lama dianteiro esquerdo, o local onde Christine colidira contra a barriga da perna de "Penetra" — se desamassou e ficou perfeita.
Christine estava como nova.
O carro parou diante da grande porta da garagem, no meio do edifício escuro e silencioso. Havia uma pequena caixa de plástico, presa à viseira contra o sol, do lado do motorista. Era uma bugigangazinha que Will Darnell dera a Arnie, quando ele começara a transportar cigarros e bebida para o Estado de Nova York, por sua ordem — talvez fosse a versão de Darnell sobre uma chave de ouro para o banheiro público.
No ar quieto, o abridor de porta zumbiu brevemente e a porta da garagem chocalhou obedientemente para cima. Outro circuito se formara com o levantamento da porta e algumas luzes internas acenderam-se dentro do prédio, brilhando francamente.
O botão dos faróis dianteiros se moveu repentinamente no painel de instrumentos e as luzes de Christine apagaram-se. O carro rodou para o interior murmurando através do concreto manchado de óleo, em direção ao boxe vinte. Atrás dele, a porta erguida que fora programada para uma espera de trinta segundos tornou a descer. O circuito das luzes se interrompera e a garagem voltou à escuridão.
Na fenda da ignição de Christine, as chaves oscilando para baixo giraram subitamente para a esquerda. O motor morreu. A etiqueta de couro com as iniciais RDL marcadas em sua superfície balançou de um lado para outro, em arcos decrescentes... até finalmente ficar imóvel.
Christine ficou no escuro, e o único som na Garagem Faça-Você-Mesmo, de Darnell, era o lento palpitar de seu motor esfriando.
O Dia Seguinte
Tenho um "Chevy" 69 com um 396,
Faróis Feully e um Hurst no piso,
Que me espera esta noite
No pátio de estacionamento
Junto à loja 7-11...
— Bruce Springsteen
Arnie Cunningham não foi à aula no dia seguinte. Alegou ter quase certeza de que ia ficar gripado. Naquela noite, contudo, disse aos pais que se sentia melhor, o bastante para ir até a Garagem de Darnell e trabalhar um pouco em Christine.
Regina protestou — embora não se expressasse para dizer o que sentia, pensou que Arnie tinha uma aparência terrível. O rosto dele estava agora inteiramente livre da acne e das equimoses, mas houve uma troca: ficara muito pálido e havia círculos escuros em torno dos olhos, como se não estivesse dormindo bem. Além disso, ainda mancava. Inquieta, ela se perguntou se o filho não estaria usando algum tipo de droga, se talvez não houvesse machucado mais as costas do que dava a entender e começasse a tomar pílulas para poder continuar trabalhando no amaldiçoado carro. Então, rejeitou o pensamento. Por mais obcecado que pudesse estar com o carro, Arnie não seria idiota a tal ponto.
— Eu estou ótimo, mamãe — disse ele.
— Não me parece nada ótimo. E mal tocou em seu jantar.
— Comerei alguma coisa mais tarde.
— E suas costas, como estão? Será que não anda levantando coisas muito pesadas para você?
— Não, mamãe.
Era mentira. E suas costas tinham doído horrivelmente o dia inteiro. Estava atravessando a pior fase, desde a lesão original, em Philly Plains. (Oh, em verdade, como é que aquilo começara? sussurrou sua mente. Como havia sido? Você tem certeza de alguma coisa?) Havia tirado o colete por instantes e as costas latejavam tanto, que mal pudera suportar. Colocara-o novamente, após apenas quinze minutos, apertando-o mais do que nunca. Agora, as costas estavam um pouquinho melhor. Ele sabia por quê. Era porque ia vê-la, ver Christine. Era isso.
Regina olhou para ele, preocupada e desnorteada. Pela primeira vez na vida, simplesmente não sabia como agir. Arnie agora estava fora de seu controle. O conhecimento disto provocava um desespero insano, que algumas vezes a envolvia, rastejante, enchendo-lhe o cérebro de uma horrível, vazia e infecta friagem. Nestas ocasiões era tão grande a depressão que custava a crer na passagem furtiva daquela dúvida por sua cabeça fazendo-a perguntar-se se era exatamente para isso que vivera — ver seu filho apaixonado por uma garota e por um carro, no mesmo terrível outono. Teria sido? Para que pudesse ver, precisamente, o quanto se tornara odiosa para ele, ao fitar seus olhos cinzentos? Teria sido? E, em realidade, aquilo tinha algo a ver com a garota? Não. Em sua mente, tudo acabava retornando ao carro. Seu repouso passara a ser interrompido e inquieto e, pela primeira vez desde seu parto, quase vinte anos antes, começou a considerar uma consulta com o Dr. Mascia, para ver se ele lhe daria alguma pílula para a tensão, a depressão e a insônia resultante. Pensava em Arnie, nas longas noites insones, nos erros que jamais poderiam ser retificados; pensava em como o tempo conseguia deslocar de seu eixo o equilíbrio do poder e em como a meia-idade às vezes espionava através de um espelho de toucador, como a mão de um cadáver, assomando através de uma terra erodida.
— Vai voltar cedo? — perguntou.
Sabia ser este o último apoio dos pais verdadeiramente impotentes e odiou-o, mas agora era incapaz de modificá-lo.
— Claro — respondeu ele, mas Regina não acreditou muito, a julgar pelo tom da resposta.
— Arnie, eu gostaria que ficasse em casa. Sinceramente, você não me parece com boa aparência.
— Vou melhorar — disse ele. — Tenho que melhorar. Preciso levar algumas peças de carro amanhã até Jamesburg, para Will.
— Não poderá ir, se estiver doente — disse ela. — São quase duzentos quilômetros.
— Não se preocupe.
Ele lhe beijou a face — o beijo-na-face desapaixonado, dos conhecidos que se encontram em um coquetel. Arnie abria a porta da cozinha para sair, quando Regina perguntou:
— Você conhecia o rapaz que foi atropelado a noite passada, na Rodovia Kennedy? Ele se virou para fitá-la, com rosto inexpressivo.
— O quê?
— O jornal disse que ele vinha para Libertyville.
— Oh, aquele atropelamento com fuga... É disso que está falando? -É.
— Éramos da mesma sala, quando eu era calouro — disse Arnie. — Pelo menos, acho que sim. Mas eu não o conhecia muito, mamãe.
— Oh — assentiu ela satisfeita. — Ainda bem. Segundo o jornal, havia resíduos de droga em seu organismo. Você nunca tomou drogas, não é, Arnie?
Arnie sorriu suavemente para o rosto pálido e perscrutador de sua mãe.
— Nunca, mamãe.
— E se suas costas começarem a incomodá-lo... quero dizer, se realmente começarem a incomodá-lo... você irá ver o Dr. Mascia, está bem? Não comprará nada de um... traficante de drogas, não é mesmo?
— Não comprarei, mamãe — repetiu ele, e saiu.
Havia mais neve agora. Outro degelo derretera a maior parte, mas desta feita ela não desaparecera por completo, apenas recuando para as sombras, onde formava uma orla branca debaixo das sebes, na base das árvores, na cobertura da garagem. Não obstante, a despeito da neve em torno das beiradas — ou talvez por isso mesmo — o gramado da casa parecia singularmente verde, quando Arnie saiu para o crepúsculo, seu pai assemelhando-se a um estranho refugiado do verão, enquanto recolhia as últimas folhas do outono com um ancinho.
Arnie ergueu a mão brevemente para ele e deu a impressão de que ia passar por Michael sem falar. Seu pai o chamou. Ele se aproximou com relutância. Não queria atrasar-se para seu ônibus.
Seu pai também envelhecera com as tormentas que haviam desabado sobre Christine, embora outras coisas certamente também tivessem tido parte nisso. Candidatara-se à cátedra do Departamento de História, em Horlicks, em fins do último verão e havia sido solenemente rejeitado. Além do mais, durante seu check-up anual de outubro, o médico apontara um problema incipiente de flebite — flebite, que quase matara Nixon; flebite, um problema de pais com certa idade. E, quando o outono anterior dera vez a outro cinzento inverno do oeste da Pensilvânia, Michael Cunningham parecia mais abatido do que nunca.
— Oi, pai. Escute, tenho que me apressar, se quiser pegar o...
Michael ergueu os olhos da pequena pilha de congeladas folhas castanhas que conseguira reunir. O pôr-do-sol banhou as partes planas de seu rosto e pareceu fazê-las sangrar. Arnie recuou involuntariamente, um tanto chocado. O rosto de seu pai era espectral.
— Onde esteve a noite passada, Arnold? — perguntou ele.
— Quê? — ofegou Arnie, depois fechando a boca lentamente. — Ora, aqui. Aqui em casa, papai. Você sabe disso.
— A noite inteira?
— É claro! Fui para a cama às dez horas. Estava arriado. Por quê?
— Porque hoje recebi um telefonema da polícia — disse Michael. — Sobre o rapaz que foi atropelado na JFK Drive, à noite passada.
— "Penetra" Welch — disse Arnie.
Fitou o pai com olhos calmos, mas orlados de profundas olheiras e comprimidos nas órbitas. Se o filho ficara chocado com a aparência do pai, também o pai ficara perplexo ante a do filho. Para Michael, as órbitas do rapaz quase pareciam os buracos vazios de uma caveira, àquela claridade esfumada do crepúsculo.
— Sim, o sobrenome era Welch.
— Era quase certo que ligariam. Bem, acho eu. Mamãe sabe... que ele poderia ter sido um dos caras que demoliram Christine?
— Não por mim.
— Eu também nada lhe disse. Seria bom ela não ficar sabendo — declarou Arnie.
— Ela acabará descobrindo — disse Michael. — De fato, sua mãe certamente deduzirá isso. É uma mulher tremendamente inteligente, caso você nunca tenha notado. Entretanto, não ficará sabendo por mim.
Arnie assentiu, depois sorriu sem vontade.
— Onde esteve a noite passada? Sua confiança é tocante, papai. Michael enrubesceu, mas não baixou os olhos.
— Se você não estivesse fora de si nestes últimos dois meses — falou —, talvez compreendesse por que fiz a pergunta.
— Bem, diabo, o que significa?
— Você sabe perfeitamente. Nem mesmo adianta ficarmos discutindo, porque vamos terminar sempre na mesma coisa, após rodeios e mais rodeios. Toda a sua vida está se desintegrando e você ainda fica aí, perguntando sobre o que estou falando!
Arnie riu. Era um som duro, insolente. Michael pareceu encolher-se um pouco, ao ouvi-lo.
— Mamãe perguntou se eu tomava drogas. Talvez você também queira testar isso. — Arnie fez um gesto de arregaçar as mangas do blusão de frio. — Quer ver se tem marcas de picadas?
— Não preciso perguntar se toma drogas — disse Michael. — Você já está tomando uma que conheço, e isso basta. E aquele maldito carro.
Arnie se virou como para ir embora, mas Michael o reteve.
— Largue meu braço. Michael deixou a mão cair.
— Só queria que ficasse sabendo de uma coisa — disse ele. — Acredito tanto que você mataria alguém, como acreditaria que fosse capaz de caminhar através da piscina dos Symond. Entretanto, a polícia irá interrogá-lo, Arnie, e as pessoas podem assustar-se, quando a polícia surge de repente. Para eles, susto ou surpresa podem assemelhar-se a culpa.
— Tudo isto porque algum bêbado atropelou aquele bosta do Welch?
— A coisa não foi bem assim — disse Michael. — Fiquei sabendo por esse tal Junkins, que ligou para mim. Quem quer que tenha liquidado o rapaz Welch, atropelou-o, depois deu marcha à ré, tornou a passar por cima dele com o carro, recuou, passou sobre ele, tornou a...
— Pare com isso! — exclamou Arnie.
De repente, parecia sentir-se mal e amedrontado. Michael experimentou a mesma sensação de Dennis, no Dia de Ação de Graças: a sensação de que, em sua fatigada infelicidade, o verdadeiro Arnie subitamente se aproximara da superfície, talvez quase podendo ser atingido.
— Foi... incrivelmente brutal — comentou Michael. — Assim me disse Junkins. Compreenda, não pareceu realmente um acidente. Foi mais um assassinato.
— Assassinato — murmurou Arnie estonteado. — Não, eu nunca...
— O quê? — perguntou Michael brusco. Tornou a agarrar o blusão de Arnie. — O que ia dizer? Arnie olhou para o pai. Seu rosto ficara novamente hermético.
— Nunca pensei que pudesse ser isso — disse ele. — Era o que eu ia dizer.
— Quero apenas que saiba de uma coisa — explicou Michael. — Eles irão procurar alguém com um motivo, por menor que seja. Sabem o que aconteceu com seu carro, como sabem que esse Welch poderia estar envolvido naquilo ou que você o julgasse envolvido. É bem possível que Junkins vá procurá-lo.
— Nada tenho a esconder.
— Claro, eu sei disso — concordou Michael. — Ande, vai perder seu ônibus!
— Certo — disse Arnie. — Tenho que ir agora.
No entanto, ficou ali um pouco mais, fitando o pai. De súbito, Michael se viu recordando o nono aniversário de Arnie. Ele e o filho tinham ido ao pequeno zoológico em Philly Plains, almoçado juntos e encerrado o dia jogando dezoito buracos no campo de golfe em miniatura, perto da Estrada Basin, ao ar livre. O local havia pegado fogo em 1975. Regina não pudera ir, ficara em casa, atacada de bronquite. Eles dois tinham-se divertido muito. Para Michael, aquele fora o melhor aniversário do filho, o que simbolizara, em sua concepção, o melhor ponto da doce e despreocupada infância de Arnie, como menino americano. Tinham ido ao zoológico e voltado para casa sem grandes acontecimentos, exceto que se haviam divertido — ele e o filho, um filho que fora e continuava sendo tão querido.
Michael passou a língua pelos lábios e disse:
— Venda aquele carro, Arnie. Por que não o vende? Depois que o reconstruir inteiramente, desfaça-se dele. Pode conseguir um bom dinheiro. Uns dois... talvez até três mil dólares.
De novo, aquela assustadora e cansada expressão passou pelo rosto de Arnie, mas Michael não podia afirmar com certeza. O sol poente se transformara em acre linha alaranjada no horizonte ocidental e o pequeno jardim ficara sombrio. Então a expressão desaparecera, se é que existira.
— Não, eu não poderia fazer isso, papai — disse Arnie docemente, como se falasse a uma criança. — Agora, não. Já investi muito em Christine. Demais.
Então ele se foi, cruzando o jardim até a calçada, fundindo-se a outras sombras, deixando para trás apenas o som de suas pisadas, mas que em breve desaparecia.
Investiu muito em Christine? É mesmo? O que, exatamente, Arnie? O que investiu nesse carro?
Michael baixou os olhos para as folhas, depois observou seu jardim. Por baixo de sebe e na cobertura da garagem, a neve cintilava na escuridão que ia chegando, lívida e teimosamente aguardando reforços. À espera do inverno.
Regina e Michael
Minha máquina é um barato, minha 409,
Minha 409, com "dual-quad".
— The Beach Boys
Regina estava cansada — parecia cansar-se com mais facilidade, naqueles dias —, de modo que foram para a cama às nove, muito antes de Arnie chegar. Fizeram amor, um ato sem alegria e mais por obrigação (ultimamente eles se amavam bastante, quase sempre como obrigação e sem alegria, deixando Michael com a desagradável sensação de que a esposa passara a usar seu pênis como uma pílula para dormir), depois do que permaneceram em suas camas geminadas, quando então ele perguntou, casualmente:
— Dormiu bem a noite passada?
— Muito bem — respondeu ela, candidamente, e ele soube que mentia.
— Ótimo.
— Levantei por volta das onze e Arnie parecia inquieto — disse Michael, ainda mantendo o tom casual.
No momento, sentia-se profundamente apreensivo. Nesta noite, percebera algo no rosto do filho, algo que não conseguira desvendar, por causa das sombras do anoitecer. Talvez não fosse nada, absolutamente nada, mas aquilo cintilava em sua mente como um maldito anúncio de néon que não se desligava. Seu filho pareceria culpado ou assustado? Não fora apenas um efeito da luz? A menos que resolvesse a charada, o sono demoraria muito a chegar — e talvez nem chegasse.
— Levantei-me lá pela uma da madrugada — disse Regina, apressando-se a acrescentar: — Só para ir ao banheiro. Dei uma espiada em Arnie. — Riu, um tanto melancólica. — Velhos hábitos custam a morrer, não?
— Sim, acho que custam — concordou Michael.
— Então, ele dormia profundamente. Eu gostaria que ele passasse a usar pijama, no tempo frio.
— Estava de cuecas?
— Estava.
Michael tranqüilizou-se, imensamente aliviado e bastante envergonhado de si mesmo. Entretanto, era melhor ficar sabendo... ter certeza. Fora muito bom ter dito a Arnie que o sabia tão capaz de cometer um homicídio, quanto caminhar sobre a água. Não obstante, a mente, aquele perverso demônio, tudo pode conceber e parece sentir uma perversa alegria nisso. Entrelaçando as mãos atrás da cabeça e encarando a escuridão, Michael pensou que talvez fosse justamente essa a maldita peculiaridade do viver. Mentalmente, uma esposa pode atacar alegremente seu melhor amigo, um grande amigo pode tramar contra nós e planejar trair-nos, um filho pode assassinar alguém com um carro.
Era melhor ficar envergonhado e esquecer as idéias cretinas.
Arnie estava em casa à uma da madrugada. Era improvável que Regina se enganasse com a hora, por causa do rádio-relógio digital sobre a cômoda do quarto do casal — ele marcava as horas em números enormes, azuis e indiscutíveis. Seu filho estava ali à uma hora, e o rapaz Welch havia sido atropelado a cinco quilômetros de distância, vinte e cinco minutos depois. Era impossível crer que Arnie pudesse vestir-se, sair (sem Regina perceber, pois certamente ficara acordada, atenta a ele), ir até a Darnell's, retirar Christine e dirigi-la até o local em que "Penetra" Welch fora assassinado. Fisicamente impossível.
E, para começar, ele nunca acreditara nisso.
Suas idéias demoníacas estavam satisfeitas. Michael se virou para o lado direito, dormiu e sonhou que jogava golfe com seu filho de nove anos, em uma sucessão de pequenos campos verdejantes, onde giravam moinhos de vento e pequenos acidentes do terreno os esperavam... Sonhou ainda que os dois estavam sozinhos, inteiramente sós no mundo, porque a mãe de seu filho morrera de parto — algo muito triste. Todos ainda recordavam como Michael ficara inconsolável — mas quando voltassem para casa, ele e seu filho, a teriam apenas para os dois, comeriam macarrão diretamente da panela como despreocupados solteirões, e ao terminarem de lavar os pratos sentar-se-iam à mesa da cozinha, oculta sob jornais espalhados, e construiriam modelos de carros com inofensivos motores plásticos.
Michael Cunningham sorria em seu sonho. Ao lado dele, na outra cama, Regina não sorria. Permanecia acordada, esperando o ruído da porta, denunciando que seu filho voltara do mundo lá de fora.
Quando ouvisse a porta sendo aberta e fechada... quando ouvisse os passos dele nos degraus... então seria capaz de dormir.
Talvez.
Junkins
Fique calma e venha motorar comigo, meu bem
O que foi que disse?
Que me cale e não faça propostas?
Oh, meu bem, você é a minha proposta!
Uma excelente proposta, meu bem.
E adoro excelentes propostas!
Que carro estou dirigindo?
É um Cadillac 48,
Um Cadillac rabo-de-peixe,
Uma máquina e tanto, meu bem,
Vamos rodar, Josephine, rodar...
— Elias McDaniel
Junkins apareceu na Darnell's mais ou menos às oito e quarenta e cinco daquela noite. Arnie tinha acabado de encerrar seu trabalho em Christine por aquele dia. Substituíra por uma nova a antena de rádio que Repperton e seu bando tinham arrancado e, durante os últimos quinze minutos, ficara sentado ao volante, ouvindo Cavalgada do Ouro de Sexta à Noite na estação WDIL.
Sua única idéia tinha sido a de ligar o rádio e mover o ponteiro no mostrador, do começo ao fim, para certificar-se de que instalara a antena devidamente e não havia estática. Entretanto, o ponteiro dera com o forte sinal da WDIL e ele ficara quieto, olhando para diante através do pára-brisa, sentado ali com os olhos cinzentos cismadores e distantes. Enquanto isso, Bobby Fuller cantava "I Fought the Law" Frankie Lymon e os Teenagers cantavam "Why Do Fools Fall in Love", Eddie Cochran cantava "C'mon Everybody" e Buddy Holly cantava "Rave On"... Não havia comerciais na WDIL nas noites de sexta-feira, nem disc-jockeys. Apenas os sons, a música. Vinda da programação, não de nosso coração. De vez em quando, uma suave voz feminina interrompia para dizer o que Arnie já sabia — que estava ouvindo a WDIL-Pittsburgh, o som da Rádio Camurça Azul.
Arnie permaneceu ao volante, sonhador, as luzes vermelhas dos marcadores fosforescendo no painel de instrumentos, tamborilando de leve com os dedos. A antena estava ótima. Sim, tinha feito um bom trabalho. Como Will dissera: ele possuía jeito para aquilo. Bastava olhar para Christine, ela era a prova. Parecia um monte de ferro-velho descansando no gramado de LeBay, mas ele a ressuscitara. Mais tarde, parecera outro monte de ferro-velho, no estacionamento do aeroporto, e tornara a ressuscitá-la. Ele tinha...
Fique gamado... fique gamado e me diga...
Me diga... para não ficar sozinho...
Ele tinha o quê?
Substituído a antena, claro. Podia recordar, também, que fizera alguma lanternagem nos amassados. Entretanto, não encomendara nenhum vidro de pára-brisa (embora ele houvesse sido trocado), não encomendara nenhum encapamento novo para os assentos (mas também haviam sido trocados), tendo-se limitado a olhar de perto o que havia debaixo do capô, uma vez, antes de deixá-lo cair com estrondo, horrorizado ante o estrago que tinham feito na fiação de Christine.
No entanto, agora o radiador estava intacto, o bloco do motor perfeito e brilhando, os pistons movimentando-se livre e claramente. E Christine ronronava como uma gata.
Entretanto, havia os sonhos.
Ele sonhara com LeBay ao volante de Christine, LeBay vestindo um uniforme do Exército, salpicado e sujo de manchas cinza-azuladas do bolor da sepultura. A carne dele se retraíra e sumira. O osso branco e reluzente assomava em alguns lugares. As órbitas onde outrora ficavam os olhos de LeBay eram vazias e escuras (mas havia algo cintilando lá no fundo, sim, havia algo). E então, os faróis dianteiros de Christine haviam sido acesos e projetados sobre alguém, espetando-o como se espetaria uma tachinha em um quadrado de cartolina branca. Alguém familiar.
"Penetra" Welch?
Talvez. No entanto, quando Christine arremetia de súbito para a frente, com os pneus chiando, parecera a Arnie que o rosto aterrorizado lá fora, na rua, se derretia como sebo, modificando-se a cada vez que o Plymouth atacava: ora, era o rosto de Repperton, depois o de Sandy Galton ou a cara de lua cheia de Will Darnell.
Fosse quem fosse, saltara para um lado, mas LeBay fizera Christine dar marcha à ré, manobrando a alavanca de mudança com negros dedos em decomposição — uma aliança de casamento pendia de um deles, tão frouxa como um laço atirado sobre o tronco de uma árvore morta —, e então a fazia retornar à rua, enquanto a figura corria para um lugar mais distante. Nessa nova arremetida de Christine, a figura virava a cabeça, atirando um olhar terrível para trás, e Arnie vira o rosto de sua mãe... depois o de Dennis Guilder... o de Leigh, os olhos arregalados sob uma nuvem flutuante de cabelos louro-escuros... e finalmente o seu próprio, com a boca torcida, gritando: Não! Não! Não!
Sobrepondo-se a tudo, inclusive ao tremendo barulho do cano de descarga (sem a menor dúvida, algo lá embaixo se danificara), havia a voz pútrida e triunfante de LeBay, provindo de uma laringe deteriorada, passando por lábios que já tinham sido repuxados sobre os dentes e tatuados com uma delicada fiação de bolor verde-escuro, a voz vitoriosa e estridente de LeBay:
Mais um pouco, seu bosta! Prove só o gostinho!
Houve então o baque surdo e mortal do pára-lama de Christine colidindo contra carne, o brilho dos óculos que voavam para o alto, no ar noturno, girando e girando... até Arnie acordar em seu quarto, enovelado em uma bola trêmula, agarrado ao travesseiro. Faltavam quinze para as duas da madrugada e sua primeira sensação havia sido de grande e incrível alívio, o alívio de estar vivo. Ele estava vivo, LeBay estava morto e Christine estava salva. As únicas três coisas no mundo que importavam.
Oh, mas como foi que machucou suas costas Arnie?
Era uma voz interior, tímida e insinuante, fazendo uma pergunta que ele temia responder.
Machuquei-me em Philly Plains, dizia a todos. Uma peça de ferro-velho começou a deslizar pela carroceria sem laterais do caminho de Will e a empurrei para cima novamente — na hora não refleti nisso, apenas empurrei. Devo ter sofrido alguma boa distensão. Era o que tinha dito. Um ferro-velho começara a escorregar e ele o empurrara para o alto. Entretanto, não havia sido assim que machucara as costas, hein? Não, não havia.
Naquela noite, depois que ele e Leigh tinham deparado com Christine demolida no pátio de estacionamento, assentada sobre quatro pneus em tiras... naquela noite na Darnell's, depois que todos saíram... ele sintonizara o rádio do escritório de Will para ouvir música antiga no WDIL... Will agora confiava nele, não? Estava entregando cigarros em Nova Iorque, cruzando a divisa estadual, entregando bebida em Burlington e, por duas vezes, entregara algo embrulhado em pacotes de papel pardo liso, em Wheeling, onde um cara novo, em um velho Dodge Challenger, os trocara por outro pacote ligeiramente maior, também embrulhado em papel pardo. Arnie pensou que talvez fosse uma troca de cocaína por dinheiro, mas não quis ter certeza.
Naquelas viagens, ele dirigia um automóvel, um carro particular de Will, um Imperial 1966, tão negro como a meia-noite na Pérsia. O motor era silencioso e o porta-mala tinha fundo falso. Não havia problema, desde que mantivesse a velocidade limite. Por que haveria? O importante é que agora ele tinha as chaves para a garagem. Podia entrar, depois que todos tivessem ido embora. Como havia feito nessa noite. Então, sintonizara a WDIL... e tinha... tinha...
Machucado as costas de algum modo.
O que havia feito, para machucá-las?
Uma frase estranha lhe chegou em resposta, flutuando de seu subconsciente: É apenas um probleminha singular.
Ele desejaria mesmo saber? Não. De fato, houve vezes em que nem mesmo queria o carro. Houve vezes em que sentiu ser melhor apenas... bem, vendê-lo ao ferro-velho. Não que fosse ou pudesse fazer isso. Era tão-somente porque às vezes (como por exemplo, após o suado e trêmulo período em seguida ao sonho da noite passada) achava que livrando-se do carro, poderia ser... mais feliz.
Subitamente, o rádio cuspiu um jato quase felino de estática.
— Não se preocupe — sussurrou Arnie.
Deslizou a mão lentamente pelo painel de instrumentos, adorando aquele contato. Sim, o carro às vezes o amedrontava. Também supunha que seu pai estivesse certo: Christine modificara sua vida em certo grau. No entanto, destiná-la ao ferro-velho era tão impossível quanto suicidar-se.
A estática sumiu. The Marvelettes cantavam "Please Mr. Postman".
Então, uma voz disse em seu ouvido:
— Arnold Cunningham?
Assustado, ele desligou o rádio. Virou-se. Um homenzinho baixote e vivo debruçava-se na janela de Christine. Tinha olhos castanho-escuros e o rosto corado — devido ao frio do exterior, supôs Arnie.
— Sim?
— Rudolph Junkins. Polícia Estadual, Divisão de Detetives.
Junkins enfiou a mão pela janela aberta. Arnie a observou por um momento. Então, seu pai estava certo.
Ofereceu ao homem seu mais encantador sorriso, apertou-lhe a mão com firmeza e disse:
— Não atire, seu guarda, estou desarmado.
Junkins devolveu-lhe o sorriso, mas Arnie percebeu que os olhos dele permaneciam sérios, explorando o carro de uma maneira rápida e minuciosa, que não lhe agradou. Não agradou nem um pouco.
— Caramba! A julgar pelo que ouvi da polícia local, fiquei com a impressão de que os caras realmente tinham marcado seu carro, quando fizeram o trabalhinho nele. Pois nem parece!
Arnie deu de ombros e saiu do carro. As noites de sexta-feira eram enfadonhas na garagem, o próprio Will raramente aparecia, e não estava lá agora. Do outro lado, no boxe dez, um sujeito chamado Gabbs colocava um pára-lama novo em seu antigo Valiant e, no canto mais distante da garagem, havia o "brrr" periódico de uma chave a ar comprimido, enquanto um cara colocava pneus de neve em seu carro. Excetuando-se aqueles dois, ele e Junkins tinham toda a garagem para si mesmos.
— Não estava tão ruim quanto parecia — disse Arnie. Decidiu que aquele homenzinho sorridente devia ser muito esperto. Como se em um prolongamento natural do pensamento, pousou a mão com naturalidade sobre o teto de Christine e imediatamente se sentiu melhor. Podia enfrentar o cara, fosse ele inteligente ou não. Afinal, nada havia que o preocupasse. — Não houve dano estrutural.
— É mesmo? Ouvi dizer que fizeram buracos na carroceria, usando um instrumento perfurante. — Enquanto falava, Junkins olhava atentamente para os flancos de Christine. — Pois eu juro que não vejo o menor indício disso. Você deve ser um gênio na lanternagem, Arnie. Do jeito como minha mulher dirige, talvez eu devesse contratar seus serviços.
Sorriu de modo tranqüilizador, mas seus olhos continuavam examinando o carro, de alto a baixo. Pousavam por um instante no rosto de Arnie, e então voltavam de novo ao carro. Arnie cada vez estava gostando menos daquilo.
— Sei que sou bom nisso, mas nenhum Deus — disse Arnie. — Se procurar com atenção, poderá descobrir onde foi feita a lanternagem. — Apontou para uma ligeira ondulação na coberta posterior. — Ali também — apontou para outra ondulação. — Tive sorte de encontrar algumas partes originais da carroceria Plymouth, no Ruggles. Troquei toda a porta traseira deste lado. Reparou que a tinta não combina perfeitamente? — acrescentou, batendo na porta com os nós dos dedos.
— De jeito nenhum — disse Junkins. — Com um microscópio talvez eu visse a diferença. Assim, a tinta me parece absolutamente igual, Arnie.
Também bateu na porta com os nós dos dedos. Arnie franziu o cenho.
— Um trabalho dos diabos — comentou Junkins. Caminhou até a frente do carro. — Sim, senhor, um trabalho dos diabos, Arnie. Merece parabéns.
— Obrigado. — Arnie observou Junkins, disfarçado em sincero admirador, usando os perspicazes olhos castanhos para descobrir amassados suspeitos, falhas na pintura, talvez uma mancha de sangue ou um punhado de cabelos emaranhados. Procurando sinais de "Penetra" Welcher. De repente, Arnie teve certeza de ser justamente isso que o bosta fazia. — O que posso, exatamente, fazer pelo senhor, detetive Junkins?
Junkins riu.
— Rapaz, quanta formalidade! Não faça isso comigo! Me chame de Rudy, está bem?
— Claro — Arnie concordou sorrindo. — Em que posso ajudá-lo, Rudy?
— Compreenda, é curioso — disse Junkins, agachando-se para espiar os faróis dianteiros do lado do motorista. Bateu pensativamente em um deles com os nós dos dedos e então, com aparente alheamento, deslizou o indicador pela metálica cobertura semicircular do farol.
Seu sobretudo pairou por um instante sobre o piso cimentado manchado de óleo, depois ele se ergueu. — Recebemos comunicação de algo desta natureza... o quebra-quebra em seu carro, quero dizer...
— Oh, na verdade eles não o reduziram a cacos — disse Arnie. Começava a sentir-se em uma espécie de corda bamba e voltou a tocar Christine. A solidez do carro, sua realidade, tornaram a confortá-lo. — Eles bem que tentaram, entenda, mas não fizeram um trabalho completo.
— Ok. Acho que não estou bem a par do jargão atual. — Junkins riu. — De qualquer modo, quando o caso veio a mim, o que acha que perguntei? "Onde estão as fotografias?" Foi o que perguntei. Imaginei que fosse um descuido, entender? Então, telefonei para a Delegacia de Polícia de Libertyville e me disseram que não havia fotografias.
— Claro — respondeu Arnie. — Um cara da minha idade só consegue seguro de responsabilidade e, mesmo assim, com dedução de setecentos dólares. Se eu tivesse seguro contra danos, teria feito um bocado de fotos. Então, como não tinha, para que as fotos? Francamente, não ia querer nenhuma para meu álbum de recordações.
— Tem razão — disse Junkins e caminhou preguiçosamente até a traseira do carro, os olhos perscrutando em busca de vidros quebrados, arranhões, traços de culpa. — Sabe o que mais achei curioso? Você nem ao menos deu parte do crime! — Ergueu os olhos escuros e questionadores para Arnie, fitando-o de perto, e então esboçou um pequeno e falso sorriso de perplexidade. — Nem ao menos deu parte! "Poxa", falei, "o filho da mãe! E quem comunicou o fato?" O pai do cara, eles me disseram. — Junkins meneou a cabeça. — Não entendi isso, Arnie, e sou franco em dizer. Um sujeito se esgota, reformando um carro velho até que ele valha uns dois, talvez cinco mil dólares, e então aparecem alguns caras e fazem um baita de um estrago no carro...
— Eu já disse que...
Rudy Junkins ergueu a mão e sorriu tranqüilizadoramente. Por um fantástico segundo, Arnie pensou que ele fosse dizer "Paz", como Dennis, quando a situação às vezes ficava um pouco pesada.
— Desculpe. Danificaram um pouco o carro.
— Certo — disse Arnie.
— De qualquer modo, segundo o que disse sua namorada, um dos perpetradores... bem, defecou no painel de instrumentos. Achei que você devia…
* Jogo de cartas (N.T.)
[1] Elemento especializado, em uma oficina mecânica e postos de serviço, com estágio em fábricas de automóveis e apto, entre outras coisas, a orientar o cliente sobre consertos em seu veículo, reposição de peças genuínas e orçamento definitivo do trabalho. (N.T.).
* Mistura de breakfast e lunch — ajantarado dominical. (N.T.).
* Lanterna feita com uma abóbora recortada com um rosto humano. (N.T.)
Stephen King
O melhor da literatura para todos os gostos e idades