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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COELHO VERMELHO / Tom Clancy
COELHO VERMELHO / Tom Clancy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Jack Ryan, ex-marine que se tornou analista da CIA, passa uma temporada de estudos em Londres com os "primos" do SIS, o serviço de inteligência britânico. Quase por acaso ajuda a transportar um desertor soviético e sua família primeiro para a Inglaterra, depois para os Estados Unidos. A primeira e explosiva revelação do "coelho vermelho", importante funcionário do principal centro de comunicações da KGB, é o plano do Kremlin para assassinar o papa João Paulo II. O livro foi publicado em 2002, mas sua trama se situa no início dos anos 80, antes portanto de Caçada ao Outubro Vermelho, o primeiro romance do americano Tom Clancy (1947-2013), lançado em 1984.

 

 

 

 

O JARDIM DOS FUNDOS

A PARTE MAIS ASSUSTADORA, concluiu Jack, seria dirigir. Ele já havia comprado um Jaguar — que, naquele lugar, se pronunciava "jag-you-ah", tinha de lembrar —, mas, nas duas vezes em que fora à concessionária, encaminhara-se à porta esquerda, em vez da direita. O vendedor não riu dele, mas Jack estava certo de que teve vontade.

Pelo menos não havia entrado no carro pelo lado do carona e, assim, feito papel de um verdadeiro idiota. Teria que lembrar de tudo aquilo. O lado correto da rua era o esquerdo. Uma curva à direita, e não à esquerda, atravessava o fluxo dos carros. A pista da esquerda era a mais lenta nas interestaduais — ou melhor, autoestradas.

As tomadas nas paredes eram todas tortas. A casa não tinha aquecimento central, apesar do alto preço que havia pago por ela. Não havia ar-condicionado, embora isso provavelmente não fosse necessário lá. O clima não era dos mais quentes: os moradores do lugar começavam a cair mortos nas ruas quando a temperatura passava dos 24°C.

Jack imaginava o que o clima de Washington faria àquelas pessoas. Evidentemente, a história da música "Mad Dogs and Englishmen" era coisa do passado.

Podia ter sido pior. Ele pelo menos tinha autorização para comprar comida no Serviço Reembolsável do Exército-Força Aérea — também conhecido como PX —, na base aérea Greenham Commons. Então teria pelo menos autênticos cachorros-quentes e marcas parecidas com as que comprava no Giant, perto de casa, em Maryland.

Mas havia tantas outras notas destoantes. A televisão britânica era diferente, claro. Não que ele esperasse ter muita oportunidade de vegetar em frente à tela de fósforo, mas a pequena Sally precisava de sua ração de desenhos animados. Além disso, mesmo quando estava lendo algo importante, o murmurinho de um programa descartável era reconfortante à sua própria maneira. Os noticiários de TV, porém, não eram tão ruins, e os jornais eram particularmente bons — em geral, melhores do que aqueles que lia em casa. Mas ele sentiria falta das tirinhas do Far Side. Tinha esperança de que o International Tribune as publicasse. Poderia comprá-lo na banca da estação de trem.

Tinha de acompanhar os resultados do beisebol de qualquer maneira.

Os homens da mudança estavam dando duro sob as ordens de Cathy. Não era um lugar ruim, embora fosse menor que sua casa em Peregrine Cliff, agora alugada a um coronel da Marinha que dava aulas aos aplicados meninos e meninas da Academia Naval.

O quarto principal tinha vista para um jardim de mil metros quadrados. O corretor havia sido particularmente insistente sobre aquilo. E os antigos donos haviam passado muito tempo ali: era todo coberto de rosas, na sua maioria vermelhas e brancas, aparentemente para homenagear as dinastias Lancaster e York. Havia algumas cor-de-rosa no meio para mostrar que elas se juntaram para formar os Tudor, ainda que essa dinastia tenha acabado na rainha Elizabeth I — e, por fim, tenha aberto caminho para a nova realeza, da qual Ryan tinha muita razão para gostar.

O clima também não era ruim. Eles tinham chegado no país três dias antes, e não havia chovido. O sol nascia bem cedo e se punha tarde. E, no inverno, Jack ouvira dizer, ele nunca despontava e sumia imediatamente depois. Alguns dos amigos que tinha feito no Departamento de Estado contaram que as longas noites podiam ser difíceis para crianças pequenas. Com quatro anos e meio, Sally ainda se encaixava nessa definição. Jack, de cinco meses, provavelmente não ligaria para esse tipo de coisa e, felizmente, dormia muito bem — ele estava bem, na verdade, sob os cuidados de sua babá, Margaret van der Beek, uma jovem ruiva, filha de uma pastora metodista da África do Sul. Ela tinha excelentes recomendações... e fora aprovada depois de ter sua ficha verificada pela Polícia Metropolitana. Cathy se preocupava um pouco com a ideia de contratar uma babá. A imagem de outra pessoa criando seu filho a incomodava tanto quanto <> som de unhas arranhando um quadro-negro, mas se tratava de um respeitado costume local e havia funcionado muito bem para um certo Winston Spencer Churchill. A Srta. Margaret fora avaliada pela agência de Sir Basil — a própria agência, na realidade, fora oficialmente sancionada pelo governo de Sua Majestade. O que não significava nada, lembrou Jack. Ele havia sido cuidadosamente instruído semanas antes de ir para lá. A "oposição" — um termo britânico também usado em Langley — já tinha se infiltrado mais de uma vez na inteligência britânica. A CIA acreditava que isso ainda não acontecera em Langley, mas Jack tinha razões para duvidar daquilo. A KGB era boa demais, e as pessoas eram ambiciosas no mundo inteiro. Os russos não pagavam muito bem, mas alguns sujeitos vendiam suas almas e sua liberdade por migalhas. Eles também não usavam um sinal luminoso na roupa dizendo "SOU UM TRAIDOR".

De todos os períodos de instrução, as de segurança haviam sido as mais cansativas. O pai de Jack era o policial da família, e Ryan nunca aprendeu a pensar daquela maneira.

Uma coisa era procurar dados úteis na cascata de besteiras que chegava ao sistema de inteligência, outra era olhar com desconfiança para todos no escritório e, apesar disso, esperar conviver cordialmente com eles. Ele imaginava se algum dos outros o via daquela forma... provavelmente não, concluiu. Afinal, ele tinha pago seus pecados do modo mais difícil e as cicatrizes no ombro eram prova disso. Sem contar os pesadelos sobre aquela noite na Baía de Chesapeake, os sonhos em que sua arma não disparava apesar de seu esforço, os gritos frenéticos de terror e susto de Cathy ressoando em seus ouvidos. Ele vencera aquela batalha, não vencera? Por que os sonhos raciocinavam de outra maneira? Era algo para se conversar com um psicanalista, talvez, mas, como dizia o velho ditado, é preciso estar louco para ir a um psicanalista...

Sally corria em círculos, observando seu novo quarto, contemplando a nova cama sendo montada pelos homens da mudança. Jack mantinha-se fora do seu caminho. Cathy lhe dissera que não era capacitado sequer para supervisionar aquele tipo de coisa, apesar de ele ter uma caixa de ferramentas, sem a qual nenhum homem americano se sente verdadeiramente um homem, e que fora uma das primeiras coisas tiradas dos caixotes.

Os carregadores tinham suas próprias ferramentas, claro, e também haviam sido avaliados pelo serviço de inteligência, por medo de que um agente a serviço da KGB tentasse colocar um grampo na casa. Isso simplesmente não funcionaria, meu amigo.

— Cadê o turista? — perguntou uma voz de americano. Ryan foi até o foyer ver quem...

— Dan! Como diabos você vai?

— Foi um dia entediante no escritório, então eu e Liz viemos ver como estão as coisas com vocês — disse Dan. E logo atrás do adido jurídico estava sua deslumbrante mulher, a mais bondosa e sofredora das esposas do FBI. A Sra. Murray aproximou-se de Cathy para lhe dar um abraço e um beijo, depois as duas seguiram imediatamente para o jardim. Cathy adorava as rosas, claro, o que era bom para Jack. Seu pai recebera todos os genes de jardinagem da família Ryan e não passara nenhum ao filho. Murray observava o amigo. — Você parece péssimo.

— Voo demorado, livro chato — explicou Ryan.

— Você não dormiu na viagem?

— Num avião?

— Isso o incomoda tanto?

— Dan, em um navio você pode ver o que está sustentando você, mas não em um avião.

A resposta fez Murray rir.

— É melhor se acostumar a isso, amigo. Você vai acumular um monte de milhas indo e voltando de Dulles.

— Imagino que sim — disse Jack. Ele não havia pensado naquilo ao aceitar a função. Idiota. Percebera tarde demais. Ele iria e voltaria de Langley pelo menos uma vez por mês, algo longe do ideal para uma pessoa que hesitava em viajar de avião.

— A mudança está correndo bem? Sabe que pode confiar nesse pessoal, não é? Bas tem recorrido a eles há mais de vinte anos, a Scotland Yard também gosta deles. Metade desses caras é de ex-tiras — disse Dan. E tiras, ele não precisou acrescentar, são mais confiáveis que espiões.

— Sem escutas no banheiro? Ótimo — comentou Ryan. Em seu pouco tempo de experiência, ele tinha aprendido que a vida no serviço de inteligência era um pouco diferente de ensinar história na Academia Naval. Provavelmente havia escutas, mas conectadas ao escritório de Basil...

— Eu sei. Concordo. Mas tenho boas notícias: você me verá bastante, se não se importar.

Ryan fez um sinal desanimado e tentou dar um sorriso.

— Bem, pelo menos terei alguém com quem tomar uma cerveja.

— Esse é o esporte nacional. Mais negócios são fechados em pubs do que nos escritórios. É a versão deles para os country clubs.

— A cerveja até que não é ruim.

— Melhor do que aquele mijo que temos em casa. Já me converti totalmente nesse ponto.

— Eles me disseram em Langley que você faz muito trabalho de inteligência para Emil Jacobs.

— Alguns — respondeu Murray. — A verdade é que somos melhores nisso do que muitos de vocês da agência. O pessoal da Operações ainda não se recuperou de 1977 e não creio que isso venha a acontecer por um tempo.

Ryan teve de concordar.

— O almirante Greer também pensa assim. Bob Ritter é bem esperto. Talvez um pouco esperto demais, se é que me entende. Mas ele não tem amigos o suficiente no Congresso para expandir seu império do jeito que gostaria.

Greer era o principal analista da CIA, e Ritter, o diretor de Operações. Os dois se desentendiam com frequência.

— Eles não confiam em Ritter como confiam no vice de inteligência. Resquícios da confusão com a Comissão da Igreja, dez anos atrás. Sabe, o Senado parece nunca lembrar quem era responsável por aquelas operações. Eles canonizam o chefe e crucificam as tropas que tentavam cumprir as ordens, ainda que mal. Droga, aquilo foi uma... — Murray procurou a palavra. — Os alemães chamam isso de schweinerei. Sem tradução exata, mas soa exatamente como é.

Jack grunhiu com a graça daquilo.

— Sim, melhor do que bandalha.

A tentativa da CIA de assassinar Fidel Castro, que havia saído do escritório do procurador-geral na época de Camelot, como ficou conhecido o governo Kennedy, era uma obra do Pica-Pau, com pitadas de Três Patetas: políticos tentando imitar James Bond, personagem criado por um espião britânico fracassado. Os filmes não são o mundo real, como Ryan aprendera do modo mais difícil, primeiro em Londres, depois na sala da própria casa.

— Então, Dan, o quanto eles são bons de verdade?

— Os britânicos? — Murray levou Ryan para o gramado na frente da casa. Os carregadores haviam sido verificados pelo SIS, mas — mas Murray era do FBI. "Basil é primeira classe. É por isso que ele durou tanto tempo. Ele era um espião de campo brilhante, o primeiro cara a ter má impressão de Philby — e lembre-se, Basil era apenas um novato na época. Ele é bom na administração, um dos pensadores mais ágeis que já encontrei. Os políticos locais, de ambos os lados, gostam dele e confiam nele. Isso não é fácil. É mais ou menos o que Hoover foi para nós um dia, mas sem aquela história de culto à personalidade. Gosto dele. É uma boa pessoa para se trabalhar. E Bas gosta muito de você, Jack.

— Por quê? — perguntou Ryan. — Não fiz nada.

— Bas tem olho para perceber talentos. Ele acha que você tem as qualidades certas. Ele simplesmente adorou aquela coisa que você inventou para descobrir brechas na segurança, a Armadilha do Canário, e resgatar o próximo rei deles também não atrapalhou. Você vai ser um cara popular na Century House. Se corresponder às expectativas, pode ter um futuro no negócio de espionagem.

— Ótimo. — Ryan, porém, ainda não tinha plena certeza do que queria fazer. — Dan, sou um corretor de ações que se tornou professor de história, lembra?

— Jack, isso está no seu passado agora. Olhe para a frente, pode ser? Você era bom em escolher ações na Merrill Lynch, certo?

— Consegui algum dinheiro — admitiu Ryan. Na verdade, era muito dinheiro, e sua carteira continuava crescendo. Pessoas estavam ficando ricas em Wall Street.

— Então aplique seu cérebro em algo realmente importante — sugeriu Dan. — Odeio lhe dizer isso, Jack, mas não há muitas pessoas espertas na inteligência. Eu sei, trabalho lá. Um monte de chatos, um monte de pessoas moderadamente espertas, mas pouquíssimas estrelas, cara. Você tem o que é necessário para ser uma estrela. Jim Greer pensa assim. E Basil também. Você tem um raciocínio que foge do convencional. Eu também. É por isso que não estou mais perseguindo ladrões de banco em Riverside, Filadélfia. Mas nunca ganhei milhões arriscando no mercado.

— Ter sorte não faz de você um grande homem, Dan. O pai de Cathy, Joe, já ganhou muito mais do que eu nunca conseguirei e não passa de um filho da mãe autoritário e arrogante.

— Bem, você transformou a filha dele na esposa de um cavaleiro honorário, não foi?

Jack deu um sorriso tímido.

— É, parece que sim.

— Isso abrirá várias portas aqui, Jack. Os britânicos gostam mesmo de seus títulos. — Dan fez uma pausa. — Agora... agora, que tal eu arrastar vocês para tomarmos uma bebida? Tem um bom pub subindo o morro, o Gypsy Moth. Esse negócio de mudança vai deixá-lo maluco. É quase tão ruim quanto construir uma casa.

 

 

SEU ESCRITÓRIO FICAVA no primeiro subsolo do Centro, uma medida de segurança que nunca lhe fora explicada, mas que tinha um correspondente exato no quartel-general do Inimigo Principal. Lá, chamava-se MERCÚRIO, o mensageiro dos deuses — algo muito adequado se sua nação reconhecesse o conceito de deus. As mensagens passavam pelos funcionários responsáveis por códigos e criptografia, chegavam a sua mesa, e ele as examinava atrás de conteúdo e palavras-código, antes de encaminhá-las aos departamentos e funcionários apropriados para que tomassem as medidas necessárias; depois, quando as mensagens desciam de volta, ele as encaminhava na direção contrária. O tráfego passou a ter uma rotina regular: de manhã, era normalmente de chegada; à tarde, de saída. A parte tediosa, logicamente, era a encriptação, já que muitos dos agentes de campo usavam teclados descartáveis exclusivos. As únicas cópias desses teclados ficavam em um conjunto de salas à sua direita. Os funcionários de lá transmitiam e guardavam segredos que iam das vidas sexuais de parlamentares italianos à hierarquia precisa dos alvos nos planos americanos de ataque nuclear.

Estranhamente, nenhum deles falava sobre o que faziam ou o que encriptavam, chegando ou saindo do Centro. Os funcionários eram bem indiferentes. Talvez fossem recrutados com esses fatores psicológicos em mente — isso não os surpreenderia. Esta era uma agência concebida por gênios para ser operada por robôs.

Se alguém pudesse de fato construir tais robôs, ele estava seguro de que os colocariam ali, porque se podia ter certeza de que máquinas não sairiam muito do caminho previsto.

Máquinas, no entanto, não podiam pensar. E, para seu próprio trabalho, pensar e lembrar eram coisas úteis, se a agência fosse funcionar — e ela tinha que funcionar. Era o escudo e a espada de um Estado que precisava de ambos. E ele era o encarregado do correio de várias maneiras; tinha de lembrar o que ia para onde. Não sabia de tudo o que acontecia ali, mas sabia muito mais do que a maioria das pessoas no prédio: nomes operacionais, localização, com frequência, missões operacionais e missões. Não conhecia os nomes verdadeiros dos oficiais de operações, ma conhecia seus alvos, os codinomes dos agentes recrutados e, na maioria das vezes, o que estes agentes estavam providenciando.

Estava ali, naquele departamento, havia nove anos e meio. Havia começado em 1973, logo depois de se formar em matemática na Universidade Estadual de Moscou. Sua mente muito disciplinada logo chamara a atenção de um caçador de talentos da KGB.

Ele jogava xadrez particularmente bem, e era dali, supunha, que vinha sua memória treinada — todo aquele tempo estudando as partidas dos grandes mestres para que, em qualquer situação, soubesse o movimento seguinte. Ele chegou a pensar em seguir carreira no xadrez, mas, embora tivesse estudado muito, aparentemente não fora o suficiente. Boris Spassky, ele próprio apenas um jovem jogador na época, aniquilara-o por seis a zero, com dois empates no desespero, e assim acabara com seus sonhos de fama e fortuna... e viagens. Ele suspirou em sua mesa. Viagens. Também havia estudado os livros de geografia e, fechando os olhos, podia ver as imagens, a maioria em preto e branco: o Canal Grande em Veneza, a Regent Street em Londres, a magnífica praia de Copacabana no Rio de Janeiro, a face do Monte Everest, que Hillary tinha escalado quando ele próprio ainda estava aprendendo a andar... todos os lugares que nunca conheceria. Não ele. Não uma pessoa com seu nível de acesso e credenciais de segurança. Não, a KGB era muito cuidadosa com esse tipo de gente. Não confiava em ninguém, uma lição aprendida da maneira mais difícil. O que havia em seu país que levava tantas pessoas a tentar escapar dele? E, ainda assim, milhões haviam morrido lutando pela Rodina1... Ele tinha sido liberado do serviço militar por seu conhecimento de matemática e seu potencial no xadrez, e, depois, supunha, por causa do seu recrutamento para servir no número 2 da Praça Dzerzhinskiy. Com isso, viera um belo apartamento, de 75 metros quadrados, em um prédio recém-concluído. As patentes militares também: ele se tornaria capitão semanas depois, o que, considerando-se tudo, não era tão mau. Para melhorar, começara a receber em rublos certificados e, portanto, podia comprar em lojas restritas que vendiam produtos ocidentais — e, melhor ainda, com filas menores. Sua esposa gostava daquilo. Logo estaria no nível de entrada da nomenklatura, como um pequeno príncipe czarista, olhando para a escada e se perguntando até onde poderia subir. Mas, ao contrário dos czares, ele não estava aqui pelo sangue, mas pelo mérito — um fato que apelava à sua masculinidade, pensou o capitão Zaitzev.

Sim, ele tinha feito por merecer estar ali, e isso era importante. Era por isso que lhe confiavam segredos. Este, por exemplo: o agente de codinome CASSIUS, um americano que morava em Washington, parecia ter recebido acesso a um valioso material de inteligência envolvendo política, que era cobiçado pelo pessoal do quinto andar e frequentemente repassado a especialistas do Instituto Estados Unidos—Canadá que acompanhavam as coisas na América. O Canadá não tinha muita importância para a KGB, exceto por sua participação nos sistemas de defesa aérea americanos e porque alguns dos seus políticos mais graduados não gostavam do poderoso vizinho ao sul ou, ao menos, era isso que os rezident em Ottawa costumavam dizer aos superiores do andar de cima. Zaitzev tinha dúvidas em relação àquilo. Os poloneses também podiam não adorar seus vizinhos do leste, mas na maioria das vezes cumpriam as ordens — o rezident de Varsóvia havia relatado isso sem esconder o prazer em seu despacho do mês anterior —, como aquele sindicalista esquentado tinha descoberto, para seu incômodo.

"Escória revolucionária" fora a expressão usada pelo coronel Igor Alekseievich Tomachevskiy. O coronel era considerado uma figura em ascensão devido a uma nomeação para o Ocidente. Era para lá que iam os melhores.

 

 

A QUATRO QUILÔMETROS dali, Ed Foley era o primeiro na porta, acompanhado da esposa, Mary Patricia, logo atrás, segurando-o pela mão. Os olhos inexperientes e azuis do seu filho, o pequeno Eddie, estavam arregalados com uma curiosidade infantil, mas mesmo agora o menino de quatro anos e meio estava aprendendo que Moscou não era a Disneylândia. Os pais achavam que o impacto do choque cultural seria como um golpe do martelo de Tor, mas ampliaria seus horizontes. E os deles também.

— Hum — disse Ed Foley, à primeira olhada.

Um oficial consular havia morado ali antes e pelo menos se esforçara para arrumar o lugar, sem dúvida auxiliado por uma empregada russa. O governo russo pagava o serviço, e elas eram muito zelosas... para ambos os chefes. Ed e Mary Pat tinham sido preparados durante semanas — ou melhor, meses — antes de pegar o longo voo da Pan Am, do JFK para Moscou.

— Então isto é o lar, hein? — Ed observou numa voz calculadamente neutra.

— Bem-vindos a Moscou — disse Mike Barnes aos novatos. Ele também era funcionário consular, diplomata de carreira em ascensão, e era sua semana de plantão como anfitrião da embaixada. O último ocupante tinha sido Charlie Wooster. Grande cara, agora está em Foggy Bottom, aproveitando o calor do verão.

— Como são os verões aqui? — perguntou Mary Pat.

— Mais ou menos como em Mineápolis — respondeu Barnes. — Não são muito quentes, e a umidade não chega a incomodar. Os invernos não são tão rigorosos. Eu cresci em Mineápolis... Claro que o exército alemão pode discordar, ou Napoleão, mas, bem, ninguém disse que Moscou tinha que ser como Paris, certo?

— É, me contaram sobre a vida noturna — disse Ed, rindo.

Estava tudo bem para Ed. Eles não precisavam de um chefe num discreto escritório em Paris, e aquela era uma missão muito desejada, que ele jamais esperara conseguir. A Bulgária, talvez, mas não o próprio olho do furacão. Bob Ritter devia ter ficado mesmo muito impressionado com sua passagem por Teerã. Graças a Deus o nascimento de Eddie acontecera no momento oportuno. Eles escaparam da revolução no Irã por três semanas. A gravidez havia sido complicada, e o médico de Mary Pat insistira pela volta do casal a Nova York para o parto. As crianças eram mesmo um presente de Deus... Além disso, aquilo também fizera de Eddie um nova-iorquino, e Ed queria muito que seu filho fosse um torcedor dos Yankees e dos Rangers desde o nascimento. A melhor notícia com aquela nomeação, fora o aspecto profissional, era que ele poderia assistir ao melhor hóquei no gelo do mundo, bem ali, em Moscou. Que se danassem o balé e as sinfonias. Aqueles caras sabiam patinar. Era uma pena que os russos não entendessem o beisebol. Provavelmente era muito sofisticado para os mujiques. Todas aquelas opções de arremesso para escolher...

— Não é tão grande — comentou Mary Pat, olhando para uma janela quebrada.

Ficava no sexto andar. Pelo menos o barulho do trânsito não seria tão alto. O conjunto dos estrangeiros — o gueto — era cercado e vigiado. Era para sua proteção, garantiam os russos, mas os crimes de rua contra estrangeiros não eram um problema em Moscou.

O cidadão russo comum não podia ter moeda estrangeira, e não teria como gastar de todo modo. Assim, havia pouco lucro em assaltar um americano ou francês nas ruas, e não havia dúvida — suas roupas os marcavam tão claramente como pavões entre corvos.

— Olá! — Era um sotaque inglês. O rosto sorridente se revelou um instante depois. — Somos seus vizinhos. Nigel e Penny Haydock — disse o dono do rosto.

Ele tinha uns 45 anos, era alto e magro, com cabelos prematuramente brancos e ralos.

Sua esposa, mais jovem e bonita do que ele provavelmente merecia, apareceu logo em seguida com uma bandeja de sanduíches e um vinho branco de boas-vindas.

— Você deve ser Eddie — disse a loura senhora Haydock.

Foi então que Eddie notou a roupa de grávida. Ela devia estar no sexto mês, pela aparência. As informações que recebera estavam certas em todos os detalhes. Foley confiava na CIA, mas aprendera do modo mais difícil a verificar tudo, dos nomes das pessoas vivendo no mesmo andar à confiabilidade da descarga do banheiro.

Principalmente em Moscou, pensou, indo para o banheiro. Nigel o seguiu.

— O encanamento funciona bem por aqui, mas é barulhento. Ninguém reclama — explicou Haydock.

Ed Foley apertou a descarga, e, realmente, fazia muito barulho.

— Consertei sozinho. Sou uma espécie de faz-tudo, sabe — disse Nigel. Depois, acrescentou, falando mais baixo: — Tome cuidado com o lugar onde fala, Ed. Há essa droga de grampos em toda parte. Principalmente nos quartos. Esses russos miseráveis parecem gostar de contar nossos orgasmos. Penny e eu tentamos não desapontá-los — disse com um sorriso malicioso; em algumas cidades era preciso levar sua própria vida noturna.

— Está há dois anos aqui? — perguntou Foley.

Ele ficou tentado a levantar a tampa da caixa para verificar se Haydock havia substituído a parte hidráulica por algo especial, mas concluiu que não precisava olhar para checar aquilo.

— Vinte e nove meses. Faltam sete. É um lugar animado para se trabalhar. Tenho certeza de que lhe contaram que, a qualquer lugar que vá, encontrará logo um "amigo".

Não os subestime. O pessoal da Segunda Diretoria é cuidadosamente treinado... —A descarga terminou, e Haydock mudou de tom. — O chuveiro... a água quente é bem confiável, mas o chuveirinho balança, igual ao que temos em nosso apartamento.

Ele abriu a torneira para fazer uma demonstração. Realmente balançava. Será que alguém havia mexido na parede para afrouxá-la?, pensou Ed. Provavelmente. Na certa aquele mesmo faz-tudo a seu lado.

— Perfeito.

— Sim, você terá muito trabalho aqui. Tome banho acompanhado e economize água. Não é o que dizem na Califórnia?

Foley conseguiu dar sua primeira risada em Moscou.

— É, é isso o que dizem, está certo.

Ele olhou para sua visita. Estava surpreso que Haydock tivesse se apresentado tão rápido, mas talvez fosse apenas uma técnica inversa de espionagem dos ingleses, ser tão óbvio. O negócio da espionagem tinha todo tipo de regra, e os russos eram seguidores de regras. Então, Bob Ritter lhe dissera, jogue parte do livro de regras fora. Mantenha seu disfarce e seja um americano idiota e imprevisível sempre que tiver chance. Ele também dissera aos Foley que Nigel Haydock era uma pessoa em quem podiam confiar. Era filho de outro oficial de inteligência — um homem traído pelo próprio Kim Philby, um dos pobres filhos da mãe que caíram de paraquedas, na Albânia, diretamente nos braços ansiosos da comissão de boas-vindas da KGB. Nigel tinha cinco anos naquela época, idade suficiente para guardar na memória como era perder o pai para o inimigo.

A motivação de Nigel era provavelmente tão forte quanto a de Pat, e a dela era realmente forte. Mais intensa até que a sua própria, Ed Foley seria capaz de admitir depois de uns drinques. Mary odiava os canalhas tanto quanto o próprio Deus odiava pecados. Haydock não era o chefe do escritório ali, mas era o principal observador para a operação do SIS (Serviço de Inteligência) em Moscou, e isso o tornava muito bom. O diretor da CIA, o juiz Moore, confiava nos britânicos: depois de Philby, ele os vira devassar o SIS com um lança-chamas mais quente que a vara de pescar de James Jesus Angleton e cauterizar cada possível fonte de vazamentos. Por sua vez, Foley confiava no juiz Moore, e o presidente também. Essa era a parte mais estranha da atividade de inteligência: não se podia confiar em ninguém, mas era preciso confiar em alguém.

Bem, pensou Foley, verificando a água quente com a mão, ninguém disse que esse negócio tinha muito sentido. Como na metafísica clássica: ele apenas existia.

— Quando os móveis vão chegar?

— O contêiner deve estar num caminhão em Leningrado neste exato momento. Vão mexer nele?

Haydock deu de ombros.

— Eles verificam tudo — disse com seriedade, mas logo se mostrou mais descontraído.

— Não há como saber o quanto serão meticulosos, Edward. A KGB é uma grande burocracia. Você não sabe o significado da palavra até vê-la em funcionamento aqui.

Por exemplo, as escutas em seu apartamento, quantas delas funcionam de fato? Eles não são a British Telecom, nem a AT&T. É a maldição deste país, sério, e é bom para a gente, mas nem isso é confiável. Quando você é seguido, não dá para perceber se é um especialista experiente ou se é um imbecil que não consegue achar o caminho do banheiro. Eles se parecem e se vestem do mesmo jeito. Igual ao nosso pessoal, se pensar bem, mas a burocracia deles é tão exagerada que é mais provável que só sirva para proteger os incompetentes. Ou talvez não. Quem vai saber? Na Century House também temos nossa cota de preguiçosos.

Foley concordou com a cabeça.

— Em Langley, nós os chamamos de Divisão de Inteligência.

— Isso. Chamamos por aqui de Palácio de Westminster — disse Haydock, manifestando seu preconceito preferido. — Acho que já testamos o encanamento o bastante.

Foley fechou a torneira e os dois voltaram à sala, onde Penny e Mary Pat estavam se conhecendo.

— Bem, temos água quente suficiente, amor.

— É bom saber disso — respondeu Mary Pat. Ela se voltou para a visita. — Onde vocês fazem compras por aqui?

Penny Haydock deu um sorriso.

— Posso levar você lá. No caso de itens especiais, podemos encomendar a uma agência de Helsinque, de alto nível. Coisas como sucos e comidas industrializadas da Inglaterra, França, Alemanha, até dos Estados Unidos. Os perecíveis são da Finlândia, e geralmente são muito bons, principalmente o cordeiro. Não é um dos melhores cordeiros do mundo, Nigel?

— Sem dúvida. Tão bom quanto o da Nova Zelândia — concordou o marido.

— Os bifes deixam algo a desejar — disse Mike Barnes. — Mas toda semana conseguimos bifes trazidos de Omaha por via aérea. Toneladas... distribuímos a todos os nossos amigos.

— É verdade — confirmou Nigel. — A carne de vaca alimentada a milho é excelente. Receio que todos nós sejamos viciados.

— Graças a Deus pela Força Aérea — continuou Barnes. — Eles trazem carne para todas as bases da Otan e estamos na lista de distribuição. Ela chega congelada. Não é tão boa quanto a do Delmonico, mas parecida o bastante para nos lembrar de casa. Espero que vocês tenham trazido uma grelha. Costumamos levar os bifes para assar no telhado. Importamos carvão também. Ivan não parece entender desse assunto.

O apartamento não tinha varanda, talvez para protegê-los do cheiro de óleo diesel que impregnava a cidade.

— E para ir trabalhar? — perguntou Foley.

— É melhor pegar o metrô. É realmente ótimo — disse Barnes.

— Vou ficar com o carro? — perguntou Mary Pat, com um sorriso esperançoso.

Aquele era exatamente o plano. Era esperado, mas qualquer coisa que funcionasse nesse negócio causava alguma surpresa, como ter os presentes certos na árvore de Natal. Sempre se esperava que o Papai Noel recebesse sua carta, mas era impossível ter certeza.

— Você pode até aprender a dirigir nesta cidade — disse Barnes. — Pelo menos vocês têm um belo carro.

O antigo morador do apartamento havia deixado para trás um Mercedes 280 branco que realmente era um belo carro. Na verdade, um pouco bom demais, e tinha apenas quatro anos. Não que houvesse muitos carros em Moscou. E as placas certamente indicavam que aquele pertencia a um diplomata americano, tornando-o um alvo certo para qualquer guarda de trânsito, bem como para o carro da KGB que o seguiria à maioria dos lugares. Mais uma vez, tratava-se de uma técnica inversa. Mary Pat teria de aprender a dirigir como um morador de Indianápolis em sua primeira viagem a Nova York.

— As ruas são bem conservadas e largas — contou Barnes —, e o posto de gasolina fica a apenas três quarteirões naquela direção. — Ele apontou. — É um posto imenso. Os russos gostam de construí-los desse jeito.

— Ótimo — disse Mary Pat, para satisfação de Barnes, já assumindo seu disfarce como loura bonitinha e desmiolada.

No mundo inteiro, as mulheres bonitas eram consideradas as mais burras, principalmente as louras. No fim, era mais fácil fingir ser burra do que esperta, se não fossem levados em conta os atores de Hollywood.

— E quanto à manutenção do carro? perguntou Ed.

— É um Mercedes, não dão muito problema — garantiu Barnes. — A embaixada da Alemanha tem um cara que pode consertar qualquer coisa que pare de funcionar. Temos relações cordiais com nossos aliados da Otan. Vocês gostam de futebol?

— É um jogo de garotinhas — respondeu Ed Foley imediatamente.

— Isso é meio grosseiro de sua parte — reagiu Nigel Haydock.

— Prefiro o futebol americano em qualquer situação — continuou Foley.

— Um jogo sem sentido, incivilizado, cheio de violência e reuniõezinhas — disse o britânico, com desprezo.

Foley deu um sorriso forçado.

— Vamos comer.

Eles se sentaram. Os móveis provisórios eram razoáveis, do tipo que se encontraria em um motel furtivo do Alabama. Dava para dormir na cama; e o inseticida provavelmente tinha cuidado de todos as criaturas rastejantes. Provavelmente.

Os sanduíches estavam gostosos. Mary Pat foi buscar copos e abriu a torneira...

— Eu não recomendaria fazer isso, Sra. Foley — alertou Nigel. — Algumas pessoas acabam com problemas de estômago depois de tomar água da torneira...

— É mesmo? — Ela fez uma pausa. — Ah, meu nome é Mary Pat, Nigel.

Agora tinham sido apresentados corretamente.

— Isso, Mary Pat. Preferimos beber água mineral. A água da torneira serve para tomar banho ou ferver para fazer um pouco de café ou chá. É pior ainda em Leningrado. Os nativos já estão razoavelmente imunes, pelo que dizem, mas nós, estrangeiros, podemos ter sérios problemas gastrointestinais por lá.

— E quanto às escolas? — Mary Pat estava preocupada em relação a isso.

— A escola britânico-americana cuida bem das crianças — garantiu Penny Haydock. — Eu mesma trabalho lá meio expediente. O programa acadêmico é de primeira classe.

— Eddie já está começando a ler, não é, querida? — disse o pai, orgulhoso.

— Só Peter Rabbit, histórias infantis. Mas ele está indo bem para quatro anos — confirmou a mãe, não menos orgulhosa.

Eddie tinha encontrado o prato de sanduíches e estava mordendo alguma coisa. Não era a salsicha que adorava, mas criança com fome nem sempre é muito seletiva. Também havia quatro potes de manteiga de amendoim Skippy’s escondidos em lugar seguro. Seus pais sabiam que poderiam achar geleia de uva de qualidade em qualquer parte, mas Skippy, provavelmente não. O pão do lugar, todos diziam, era satisfatório, embora não se comparasse ao Wonder Bread que as crianças americanas comiam. E Mary Pat tinha máquina de fazer pão, que naquele momento estaria em um caminhão ou trem, entre Moscou e Leningrado. Boa cozinheira, ela era uma verdadeira artista na fabricação de pão e esperava que aquela fosse sua porta de entrada para o círculo social da embaixada.

 

 

NÃO MUITO LONGE de onde estavam sentados, uma carta trocou de mãos. O entregador vinha de Varsóvia e havia sido enviado pelo seu governo — na verdade, por uma agência do seu governo para uma agência do governo recebedor. O mensageiro não estava exatamente satisfeito com a missão. Era um comunista — tinha de estar em ordem para ser encarregado de uma tarefa como essa —, mas, apesar disso, era um polonês, assim como o assunto da mensagem e da missão. E este era o conflito.

A mensagem era na realidade uma fotocópia do original, que chegara em mãos, a um escritório importante de Varsóvia, apenas três dias antes.

O mensageiro, um coronel do serviço de inteligência de seu país, era conhecido do destinatário — de vista e não necessariamente por amizade. Os russos usavam seus vizinhos do oeste em muitas tarefas. Os poloneses tinham um talento genuíno para operações de inteligência, pela mesma razão que os israelenses: estavam cercados de inimigos. A oeste situava-se a Alemanha, e a leste, a União Soviética. As infelizes circunstâncias envolvendo ambos haviam levado a Polônia a empregar seus melhores e mais brilhantes homens no serviço de inteligência.

O destinatário sabia de tudo aquilo. De fato, ele já sabia o conteúdo da mensagem palavra por palavra. Tivera conhecimento no dia anterior. Porém, não estava surpreso com o atraso. O governo polonês passara aquele dia avaliando o conteúdo e seu significado, antes de passá-la adiante, e o destinatário não demonstrou ressentimento.

Todos os governos do mundo precisavam de pelo menos um dia para analisar coisas daquele tipo. Era simplesmente a natureza dos homens em posição de poder para duvidar e vacilar, embora tivessem que saber que o atraso era um desperdício de tempo e fôlego. Nem mesmo o marxismo-leninismo era capaz de mudar a natureza humana. Deprimente, mas verdadeiro. O novo homem soviético, assim como o novo homem polonês, ainda era, afinal, um homem.

O balé que estava em cartaz agora era tão estilizado quanto qualquer outro representado pela trupe do Kirov, em Leningrado. O destinatário até imaginou ouvir a música tocando. Ele na realidade preferia o jazz à música clássica, mas de qualquer forma a música era apenas a decoração, o sistema que dizia aos dançarinos quando pular juntos como lindos cães amestrados. As bailarinas certamente eram esguias demais para o gosto russo, mas as mulheres reais eram muito pesadas para que os efeminados chamados de homens pudessem jogá-las para cima.

Por que estava divagando? Ele ocupou seu lugar, deixando-se cair lentamente no assento de couro, enquanto abria a carta. Estava escrita em polonês, e ele não falava ou entendia essa língua, mas havia uma tradução em russo inteligível anexada. É claro que ele pediria que seus próprios tradutores analisassem a carta e depois que dois ou três psiquiatras avaliassem o estado mental do autor do documento, para que pudessem elaborar uma análise de várias páginas, que ele teria de ler, apesar de ser uma perda de tempo. Depois, teria de fazer um relatório sobre a carta, para prover aos seus superiores políticos — não, seus parceiros políticos — todo um exame adicional, para que então pudessem perder o tempo deles analisando a mensagem e sua importância, antes de decidir o que fazer em relação a ela.

O diretor imaginava se aquele coronel polonês percebia quão fácil era para seus superiores políticos. No fim, tudo que tinham de fazer era repassar a mensagem a seus próprios dirigentes para a tomada de ação, empurrando a decisão pelo escalão de responsabilidade, como todos os funcionários públicos fazem, independentemente de lugar ou filosofia. Subordinados são subordinados no mundo inteiro.

O diretor o observou.

— Camarada coronel, obrigado por trazer isso à minha atenção. Por favor, leve meu agradecimento e respeito ao seu comandante. Dispensado.

O polonês ficou em posição de sentido, prestou continência à extravagante moda polonesa, deu meia-volta e depois se encaminhou para a porta.

Yuriy Andropov observou a porta se fechar antes de voltar sua atenção para a mensagem e sua tradução anexa.

— Então, Karol, você nos ameaça, hein? — Ele estalou a língua e balançou a cabeça antes de continuar tão silenciosamente como antes. — Você é corajoso, mas seu discernimento precisa de ajuste, meu camarada.

Ele levantou os olhos, ponderando sobre aquilo. O escritório era coberto pelos objetos usuais. Pela mesma razão de qualquer outro escritório: para evitar a monotonia. Dois dos objetos eram pinturas a óleo de mestres renascentistas, emprestadas da coleção de algum czar ou nobre morto havia muito tempo. Um terceiro retrato, excelente por sinal, era de Lenin, com sua compleição pálida e sua fronte arredondada conhecidas por milhões de pessoas ao redor do mundo. Uma bela fotografia colorida emoldurada de Leonid Brejnev, atual secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, estava pendurado ao lado. A foto era uma mentira: mostrava um homem jovem e vigoroso no lugar do senhor risível e senil que agora se sentava à cabeceira da mesa do Politburo.

Bem, todos os homens ficavam velhos, mas na maioria dos lugares deixavam seus postos em troca de aposentadorias honradas. Não em seu país, percebeu Andropov... e baixou a cabeça na direção da carta. Nem aquele homem. Aquele trabalho, também, era para a vida toda. Mas ele está ameaçando mudar essa parte da equação, pensou o diretor do Comitê de Segurança do Estado. E era ali que se encontrava o perigo.

Perigo?

As consequências eram inimagináveis, e isso representava perigo suficiente. Seus colegas do Politburo — homens velhos, cuidadosos e receosos — veriam a questão da mesma forma. Ele, então, não tinha apenas de relatar o perigo. Também devia apresentar um meio de lidar com ele de maneira efetiva.

Os retratos que estavam na sua parede naquele exato momento eram de dois homens semiesquecidos. Um era o Félix de Ferro — o próprio Dzerzhinskiy, fundador da Cheka, a antecessora da KGB. O outro era Josef Vissarionovich Stalin. O líder, certa vez, colocara uma questão relevante para a situação que Andropov encarava naquele momento. Já em 1944, era assim — e agora talvez fosse ainda mais relevante.

Isso ele teria de esperar para saber. E ele era o responsável por dar as ordens, disse Andropov a si mesmo. Todos os homens poderiam desaparecer. O pensamento deveria tê-lo surpreendido quando surgiu em sua mente, mas isso não aconteceu. Este edifício, construído oitenta anos antes para ser a sede palaciana da Companhia de Seguros Rossiya, tinha testemunhado muitos fatos do tipo, e seus ocupantes ditaram ordens que resultaram em muito mais mortes.

Eles costumavam realizar execuções no porão. A prática terminara poucos anos antes, quando a KGB crescera e passara a ocupar todo o espaço da gigantesca estrutura — e de outra no anel externo da cidade —, mas o pessoal da faxina ocasionalmente cochichava sobre os fantasmas vistos em noites silenciosas, que algumas vezes assustavam as mulheres que carregavam baldes e vassouras e tinham cabelo de bruxa.

O governo do país não acreditava em coisas como espíritos e fantasmas mais do que cria na alma imortal de um homem, mas se livrar das superstições de camponeses simples era uma tarefa mais difícil do que convencer a intelligentsia a levar a sério a obra volumosa de Vladimir Ilyich Lenin, Karl Marx e Friedrich Engels, sem contar a ampla prosa atribuída a Stalin (na verdade, produzida por um comitê de homens assustados, e, por essa mesma razão, pior ainda), que, graças aos céus, já não era mais muito procurada, a não ser pelos eruditos realmente masoquistas.

Não, disse Yuriy Vladimirovich a si mesmo, fazer as pessoas acreditarem no marxismo não era tão difícil. Primeiro, eles enfiavam aquilo na cabeça das crianças no ensino fundamental e médio, dos Jovens Pioneiros, dos membros da Liga Comunista Jovem. Depois, os mais inteligentes tornavam-se membros plenos do Partido Comunista, mantendo suas carteirinhas "perto do coração", no bolso onde ficavam os cigarros.

Mas nessa altura eles sabiam mais. Os membros com mais esclarecimento político professavam sua convicção nas reuniões do partido porque precisavam fazê-lo para seguir crescendo. Da mesma maneira, os cortesãos mais espertos no Egito dos faraós ajoelhavam-se e protegiam os olhos do rosto reluzente, temendo ficar cegos. Eles mantinham suas mãos erguidas porque, no Faraó, na pessoa de seu Deus Vivo, estavam o poder e a prosperidade pessoal. E, assim, ficavam de joelhos, em reverência, e negavam seus sentidos e sensibilidade — e cresciam. Era do mesmo jeito ali. Cinco mil anos, era isso? Ele podia verificar em um livro de história. A União Soviética revelou alguns dos principais historiadores medievais do mundo e, sem dúvida, também da Antiguidade, porque essa era uma área de estudos onde a política não importava muito. Os fatos do antigo Egito estavam muito distantes da realidade contemporânea para que tivesse interesse a especulação filosófica de Marx ou as intermináveis divagações de Lenin. E assim alguns bons estudiosos entraram nesse campo. Mas muitos mais entraram nas ciências puras, porque ciência pura era ciência pura e um átomo de hidrogênio não continha política.

A agricultura, no entanto, continha. Bem como a indústria. E, por isso, os melhores e mais brilhantes permaneceram longe dessas áreas, optando pelos estudos políticos, onde podiam alcançar o sucesso. Não era necessário acreditar naquilo mais do que na história de que Ramsés II era o filho do deus-sol na Terra, ou de qualquer outro deus do qual supostamente tenha nascido. Em vez disso, percebeu Yuriy Vladimirovich, os cortesãos notaram que Ramsés tinha muitas mulheres e um número maior ainda de descendentes — e esta, como um todo, não era uma vida ruim para um homem levar.

O equivalente clássico de uma datcha no Monte Lenin e verões na praia de Sochi. Afinal, havia o mundo realmente mudado?

Provavelmente não, concluiu o diretor do Comitê de Segurança do Estado. E sua tarefa era, em boa parte, garantir proteção contra as mudanças. Já acontecera antes. Podia acontecer de novo.

Andropov não viveria o bastante para descobrir que, ao considerar a possibilidade de realizar aquela ação, daria início à ruína de seu próprio país.

 

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1 Rodina = Pátria.


1

 


ESTRONDOS E SONHOS

 

— QUANDO VOCÊ COMEÇA, Jack? — perguntou Cathy, no silêncio da cama. Jack estava feliz por ser a cama deles. Por mais confortável que fosse o hotel de Nova York, não era a mesma coisa, e, além do mais, ele havia se cansado do sogro, com seu duplex na Park Avenue e aquela imensa presunção. Tudo bem, Joe Muller tinha pelo menos uns 90 milhões no banco e em sua carteira diversificada, que crescia a olhos vistos com o novo governo, mas Jack estava farto.

— Depois de amanhã — respondeu. — Acho que posso passar lá depois do almoço, apenas para dar uma olhada.

— Você deve estar com sono agora.

Jack se lembrava ocasionalmente que havia desvantagens em se casar com uma médica.

Não dava para esconder muita coisa dela. Um toque gentil e amoroso podia revelar sua temperatura, ritmo cardíaco e sabe-se lá que outras informações. E os médicos escondiam seus sentimentos em relação ao que encontravam com a habilidade de um jogador profissional de pôquer. Bem, quase sempre.

— É, foi um longo dia.

Ainda não eram cinco da tarde em Nova York, mas seu "dia" havia durado mais do que as 24 horas habituais. Ele realmente tinha que aprender a dormir em aviões. Fizera o upgrade das passagens do governo para a primeira classe pagando com seu próprio cartão American Express e logo acumularia tantas milhas que esse tipo de benefício se tornaria automático. É, ótimo, pensou. As pessoas os reconheceriam de vista em Heathrow e Dulles. Bem, pelo menos tinha um novo passaporte diplomático preto e não precisaria se preocupar com inspeções e problemas do gênero. Ryan estava tecnicamente destacado para a embaixada dos Estados Unidos, na Grosvenor Square, em Londres, de frente para o prédio que abrigara o escritório de Eisenhower durante a Segunda Guerra Mundial. Com a designação, viera o status diplomático que o transformara em um super-homem, livre dos inconvenientes da lei comum. Ele podia entrar na Inglaterra com um quilo de heroína e ninguém se atreveria a tocar suas malas sem autorização — que ele poderia negar sumariamente alegando privilégios diplomáticos e negócios urgentes. Era um segredo aberto que os diplomatas não se preocupavam com a alfândega em se tratando de perfumes para as esposas — ou outras pessoas importantes — e bebidas para si próprios. Contudo, para o padrão católico de conduta pessoal de Ryan, estes eram pecados perdoáveis, e não mortais.

Era a confusão normal em cérebros cansados, reconheceu Jack. Cathy nunca se permitiria funcionar em um estado mental como aquele. É verdade que, como residente, ela fora obrigada a trabalhar por horas a fio — com o intuito de acostumá-la a tomar decisões acertadas sob condições deploráveis —, mas parte do seu marido imaginava quantos pacientes tinham sido sacrificados no altar do campo de treinamento médico. Se os advogados conseguissem descobrir uma maneira de arrancar dinheiro daquilo...

Cathy — Dra. Caroline Ryan, médica e membro do Colégio Americano de Cirurgiões, anunciavam o jaleco branco e o crachá de plástico — havia sofrido naquela fase do treinamento e, mais de uma vez, o marido se preocupara com sua volta para casa a bordo do pequeno Porsche, depois de 36 horas seguidas de trabalho na obstetrícia, ou pediatria, ou cirurgia geral, campos em que ela não tinha interesse particular, mas que precisava conhecer minimamente para se tornar uma médica do hospital Johns Hopkins. Bem, ela sabia o suficiente para fazer um curativo no ombro de Jack, naquela tarde, em frente ao Palácio de Buckingham. Ele não sangrara até a morte diante da mulher e da filha, o que teria sido vergonhoso para todos os envolvidos, especialmente os britânicos. Será que eu receberia um título póstumo de cavaleiro?, perguntou-se Jack, com um riso contido. Depois, finalmente, seus olhos se fecharam pela primeira vez em 39 horas.

 

 

— ESPERO QUE ELE GOSTE DE LÁ — disse o juiz Moore, na reunião do fim de dia com o pessoal mais antigo.

— Arthur, nossos primos conhecem a hospitalidade deles — observou James Greer. — Basil deve ser um bom professor.

Ritter não disse nada. Aquele amador chamado Ryan tinha atraído muita publicidade — demais mesmo — para um empregado da CIA, principalmente por ser um agente da Divisão de Inteligência. No seu entendimento, a Divisão de Inteligência invadia as atribuições da Divisão de Operações. Tudo bem, Jim Greer era um espião bacana e um bom colega com quem trabalhar, mas não se tratava de um agente de campo, e, apesar da oposição do Congresso, era disso que a agência precisava. Pelo menos Arthur Moore entendia a questão. Mas, no Congresso, se alguém dissesse "oficial de inteligência de campo" aos deputados que controlavam o orçamento, eles agiriam como Drácula fugindo de um crucifixo dourado. E depois era hora de falar.

— No que você acha que eles vão colocá-lo? — questionou o vice-diretor de Operações (DDO).

— Basil vai considerá-lo meu representante pessoal — disse o juiz Moore, depois de pensar um instante. — Então, tudo o que eles compartilham conosco, compartilharão com ele.

— Eles vão cooptá-lo, Arthur — alertou Ritter. — Ele está envolvido em coisas que eles desconhecem. Eles tentarão arrancar informações de Ryan. Ele não sabe se defender disso.

— Bob, eu o instruí pessoalmente em relação a isso — ressaltou Greer. O vice-diretor de Operações já sabia daquilo, obviamente, mas Ritter tinha um talento genuíno para se tornar rabugento quando não conseguia as coisas de seu jeito. Greer imaginou como seria ser a mãe de Bob. — Não subestime esse garoto, Bob. Ele é esperto. Aposto um jantar como ele consegue arrancar mais dos britânicos do que o contrário.

— Aposta idiota — bufou o vice-diretor de Operações, o DDO.

— No Snyder — provocou o vice-diretor de Inteligência, o DDI. Era a steak house favorita de ambos, logo depois da Key Bridge, em Georgetown.

O juiz Arthur Moore, diretor da CIA, o DCI, divertia-se assistindo à discussão. Greer sabia como irritar Ritter, que nunca conseguia se defender. Talvez fosse o sotaque de Greer. Texanos como Bob Ritter (e o próprio Moore) se consideravam superiores a qualquer pessoa que falasse pelo nariz, certamente sobre um baralho de cartas ou ao redor de uma garrafa de bourbon. O juiz se achava acima dessas coisas, embora fossem divertidas de assistir.

— Então é isso, jantar no Snyder — disse Ritter, estendendo a mão. Era hora de o DCI retomar o controle da reunião.

— Agora que resolvemos isso, cavalheiros, o presidente quer que eu lhe conte o que vai acontecer na Polônia.

Ritter não parecia muito animado. Ele tinha um bom Station Chief em Varsóvia, mas o cara só contava com três oficiais de campo no departamento, e um deles era iniciante. Eles tinham, porém, uma boa fonte infiltrada na hierarquia política do governo em Varsóvia e várias no exército.

— Arthur, eles não sabem. Estão dançando ao ritmo desse negócio de Solidariedade dia a dia — disse o DDO. — E a música sempre muda para eles.

— Vai depender do que Moscou mandar que façam, Arthur — concordou Greer. — E Moscou também não sabe.

Moore tirou os óculos de leitura e esfregou os olhos.

— Certo. Eles não sabem o que fazer mesmo que alguém os desafie abertamente. Joe Stalin teria fuzilado todos à vista, mas essa turma atual não tem iniciativa para fazer isso, graças a Deus.

— O poder colegiado revela o covarde dentro de cada um, e Brejnev simplesmente não tem capacidade de liderar. Pelo que ouvi dizer, eles têm de conduzi-lo até para ir ao banheiro.

Era um pouco de exagero, mas agradava a Ritter que a liderança soviética estivesse perdendo a força.

— O que CARDEAL nos conta?

Moore referia-se ao principal agente infiltrado no Kremlin, o assistente pessoal do ministro da defesa Dmitriy Fedorovich Ustinov. Seu nome era Mikhail Semyonovich Filitov, mas para todos, exceto um pequeno grupo da ativa na CIA, ele era simplesmente CARDEAL.

— Ele diz que Ustinov não tem esperança de que qualquer coisa de útil saia do Politburo até que tenham um líder que possa realmente liderar. Leonid está perdendo as forças. Todos sabem disso, até os cidadãos comuns. Não se pode disfarçar uma imagem de TV, certo?

— Quanto tempo acha que ele ainda tem?

Várias sacudidas de ombros depois, Greer assumiu a fala.

— Os médicos que consultei dizem que ele tanto pode sucumbir amanhã quanto continuar se arrastando por mais alguns anos. Eles acham que se trata de Alzheimer, mas moderada. O quadro geral seria uma miopatia cardiovascular progressiva, provavelmente agravada por alcoolismo.

— Todos eles têm esse problema — observou Ritter. — CARDEAL confirma o problema de coração e também a vodca.

— Mas convencer um russo a parar de beber é tão difícil quanto convencer um urso pardo a não cagar na floresta. Sabem, se alguma coisa um dia conseguir derrubar esses caras, será sua inabilidade para gerir uma transição de poder ordenada.

— Bem, nossa, Vossa Excelência... — Bob Ritter olhou para cima com um sorriso malicioso. — Acho que eles simplesmente não têm advogados suficientes. Talvez possamos lhes mandar algumas centenas de milhares dos nossos.

— Eles não são tão estúpidos. É melhor lançarmos alguns mísseis Poseidon neles.

Menos estragos para a sociedade — disse o DDI — Por que as pessoas depreciam minha honrosa profissão? — perguntou Moore em direção ao teto. — Se alguém conseguir salvar o sistema deles, terá de ser um advogado, cavalheiros.

— Você acha, Arthur? — perguntou Greer.

— Não é possível uma sociedade racional sem a norma legal, e não se pode ter a norma legal sem advogados para conduzi-la. — Moore havia sido o presidente da Corte de Apelações do Estado do Texas. — Eles ainda não têm essas regras, não quando o Politburo pode esticar seus braços e executar qualquer pessoa de que não goste, sem qualquer coisa que se pareça com um procedimento de recurso. Deve ser como viver no inferno. Não se pode contar com nada. É como Roma sob o domínio de Calígula: se ele tinha uma vontade, essa vontade tinha força de lei. Caramba, até Roma tinha algumas leis às quais o imperador precisava se submeter. Mas não nossos amigos russos.

Os outros não conseguiam entender inteiramente quão horrível aquela ideia era para o diretor. Ele havia sido o melhor advogado em um estado conhecido pela qualidade de sua comunidade jurídica e, depois, um juiz sensato em uma bancada repleta de homens severos e justos. A maioria dos americanos estava tao acostumada ao império da lei quanto aos 27,4 metros entre as bases do campo de beisebol. Para Ritter e Greer, o mais importante era o fato de que, antes de sua carreira jurídica, Arthur Moore tinha sido um excelente agente de campo.

— Então, o que digo afinal ao presidente? — perguntou Moore.

— A verdade, Arthur — sugeriu Greer. — Que nós não sabemos porque eles não sabem.

Era a única coisa verdadeira e racional que ele poderia dizer, claro, mas...

— Maldição, Jim, eles nos pagam para saber!

— Vai depender de quão ameaçados os russos se sentem. A Polônia é apenas um instrumento para eles, um Estado submisso que pula quando eles dizem "pula" — disse Greer. — Os russos podem controlar o que seu próprio povo vê na TV e no Pravda.

— Mas eles não podem controlar os rumores que atravessam a fronteira — disse Ritter.

— E as histórias que os soldados contam quando voltam para casa depois de servir por lá e na Alemanha e na Checoslováquia e na Hungria e o que ouvem na Voz da América e na Radio Free Europe.

A CIA controlava a primeira emissora diretamente, e, embora a outra fosse teoricamente quase independente, esta era uma ficção em que ninguém acreditava. O próprio Ritter tinha uma boa dose de influencia em ambos os braços de propaganda do governo americano. Os russos entendiam e respeitavam a propaganda política de qualidade.

— Até que ponto vocês acham que eles se sentem pressionados? — perguntou Moore.

— Há apenas dois ou três anos, eles achavam que estavam na crista da onda — explicou Greer. — Nossa economia se encontrava na privada por causa da inflação e tínhamos filas para a gasolina e a confusão com o Irã. A Nicarágua caiu no colo deles. Nosso moral era péssimo e...

— Bem, isso está mudando, graças a Deus — continuou Moore, em seu lugar. — Estamos no caminho inverso agora?

Era muito para se desejar, mas no fundo Arthur Moore era um otimista; do contrário, como poderia ser o DCI?

— Estamos indo nessa direção, Arthur — respondeu Ritter. — Eles demoram a entender. Não têm um raciocínio dos mais rápidos. Essa é a grande fragilidade deles. Os mandachuvas são tão devotados à ideologia que não conseguem enxergar ao redor. Nós podemos machucar esses filhos da mãe, machucá-los muito, se conseguirmos analisar suas fraquezas meticulosamente e encontrarmos uma maneira de explorá-las.

— Você acredita realmente nisso? — perguntou o DDI.

— Eu não acredito nisso... eu sei! — rebateu o DDO. — Eles são vulneráveis e, melhor que isso, ainda não sabem. É hora de fazer algo. Neste momento, temos um presidente que apoiará nossas ações, se conseguirmos apresentar alguma coisa boa o bastante que lhe permita investir seu capital político. O Congresso tem tanto medo dele que não criará obstáculos.

— Robert — disse o DCI —, parece que você está escondendo algo sobre esse assunto.

Ritter pensou por alguns segundos antes de seguir em frente.

— Sim, Arthur, estou. Tenho pensado sobre isso desde que me tiraram das ações de campo há onze anos. Nunca relatei nada disso por escrito. — Ele não precisava explicar por quê. O Congresso podia solicitar todo pedaço de papel naquele prédio, ou quase todo, mas não algo que estivesse apenas na cabeça de um funcionário. Talvez fosse a hora de acertar as coisas. — Qual é o maior desejo dos soviéticos?

— Nos arruinar — respondeu Moore.

Não era preciso ter intelecto de prêmio Nobel para saber.

— Certo, e qual é o nosso maior desejo?

Greer respondeu desta vez.

— Não devemos pensar nesses termos. Queremos encontrar um modus vivendi com eles. — Pelo menos, era o que o New York Times dizia, e ele pretendia ser a voz da nação. — Certo, Bob. Diga logo.

— Como nós os atacamos? — perguntou Ritter. — Quero dizer, temos que pegar os desgraçados lá mesmo onde vivem, machucá-los...

— Destruí-los? — perguntou Moore.

— E por que não? — respondeu Ritter.

— É possível? — perguntou o DCI, interessado na maneira de pensar de Ritter.

— Bem, Arthur, se eles podem apontar uma arma deste tamanho na nossa direção, por que não podemos fazer o mesmo? — Ritter começou a tomar a iniciativa. — Eles mandam dinheiro para grupos políticos no nosso país para tentar dificultar o processo político. Promovem protestos antinucleares em toda a Europa, pedindo a eliminação do nosso arsenal nuclear, enquanto reconstroem seu próprio arsenal. Não podemos nem deixar vazar o que sabemos sobre isso para a imprensa...

— E se o fizéssemos, a imprensa não publicaria — observou Moore. Afinal, a mídia também não gostava de armas nucleares, embora estivesse disposta a tolerar as armas soviéticas porque elas, por uma razão ou outra, não eram desestabilizadoras. Moore temia que Ritter na verdade quisesse verificar se os soviéticos tinham influência sobre os meios de comunicação de massa americanos.

Porém, ainda que tivessem, uma investigação desse tipo só traria consequências negativas. A mídia tinha um apego tão forte à sua imagem de integridade e imparcialidade quanto o de um avarento em relação a dinheiro. Mas eles sabiam, sem dispor de evidências, que a KGB tinha mesmo algum poder sobre a mídia americana, porque isso era muito fácil de se estabelecer e exercer. Bastava agradá-la, dar-lhe acesso a supostos segredos e depois se tornar uma fonte confiável. Mas será que os soviéticos sabiam quão perigoso aquele jogo podia se tornar? Os meios de comunicação americanos tinham algumas convicções fundamentais, e se meter com elas era como mexer em uma bomba pronta para explodir. Uma jogada errada podia custar caro.

Ninguém naquele escritório no sétimo andar se iludia muito quanto à capacidade do serviço de inteligência russo. Claro que eles dispunham de pessoas talentosas, e os treinamentos eram intensos, mas a KGB tinha seus pontos fracos. A exemplo da sociedade à qual servia, a KGB aplicava um padrão político à realidade e ignorava em grande parte as informações que a ele não se encaixavam. E então, depois de meses, até anos, de exaustivo planejamento e preparação, com frequência as operações fracassavam porque os oficiais haviam concluído que a vida na terra do inimigo não era tão ruim quanto se imaginara. A solução para uma mentira era sempre a verdade. Ela funcionava como um tapa na cara, e quanto mais esperto se fosse, mais doía.

— Isso não importa — disse Ritter, surpreendendo os dois colegas.

— Certo, continue — determinou Moore.

— O que precisamos fazer é analisar as vulnerabilidades deles e atacá-las, com o objetivo de desestabilizar todo o país.

— Essa é uma pretensão muito grande, Robert — comentou Moore.

— Você tomou um comprimido de ambição, Bob? — perguntou Greer, intrigado com aquilo. — Nossos líderes políticos ficariam brancos com um objetivo desse porte.

— Oh, eu sei — disse Ritter, levantando as mãos para cima. — Ah, não, não devemos machucá-los. Eles podem nos atacar com armas nucleares. Deem um tempo! É muito menos provável que eles nos ataquem do que o contrário. Eles têm muito mais medo de nós do que nós, deles. Pelo amor de Deus, eles têm medo da Polônia. E por quê? Porque existe uma doença na Polônia que pode contaminar sua população: é chamada de aumento da expectativa. E expectativas maiores são a única coisa que eles não podem satisfazer. A economia deles está mais estagnada do que água empoçada. Se dermos apenas um empurrãozinho...

— Tudo o que precisamos fazer é derrubar a porta, e toda a estrutura podre entrará em colapso — citou Moore. — Isso já foi dito antes, mas o próprio Adolf teve uma surpresinha desagradável quando a neve começou a cair.

— Ele era um idiota que não leu Maquiavel — reagiu Ritter. — Primeiro, você os conquista, depois os mata. Para que mandar um aviso?

— Ao mesmo tempo, nossos atuais inimigos poderiam ter ensinado uma ou duas lições ao velho Nicolau — disse Greer. — Tudo bem, Bob, qual é exatamente sua proposta?

— Uma análise sistemática das fraquezas dos soviéticos com um olho na possibilidade de explorá-las. Em termos simples, podemos arquitetar um plano para provocar um grande incômodo em nossos inimigos.

— Nós devíamos fazer isso o tempo todo — disse Moore, concordando com a ideia. — James?

— Não faço nenhuma objeção. Posso reunir uma equipe no meu escritório para discutirmos algumas ideias.

— Não os mesmas caras de sempre — ressaltou o DDO. — Não vamos conseguir nada de útil do pessoal habitual. É hora de pensarmos de uma maneira totalmente diferente.

Greer pensou naquilo por um instante e depois assentiu.

— Tudo bem. Vou fazer a seleção. Projeto especial. Alguma sugestão de nome?

— Que tal INFECÇÃO? — perguntou Ritter.

— E se conseguirmos transformar em operação, chamamos de PRAGA? — disse o DDI, dando uma risada.

Moore entrou na brincadeira.

— Não, já sei. A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE. Uma obra de Poe soa adequada para mim.

— Isso na verdade soa como a Diretoria de Operações assumindo responsabilidade da Diretoria de Inteligência, não? — Greer pensou em voz alta.

Não era uma tarefa séria, apenas um exercício acadêmico interessante, assim como um empresário avalia qualidades e defeitos fundamentais de uma empresa que ele possa ter interesse em comprar... para, depois, se as circunstâncias o justificarem, desmembrá-la. Não, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era o centro de seu mundo profissional, o Bobby Lee do seu Exército do Potomac, o New York Yankees do seu Boston Red Sox. Derrotar os russos, por mais atraente que fosse este sonho, era pouco mais que isso, um sonho.

Mesmo assim, o juiz Arthur Moore aprovou aquele tipo de raciocínio. Se o homem não buscar além do que está a seu alcance, para que existe o Paraíso?

 

 

PERTO DE COMPLETAR 33 horas em Moscou, Andropov apreciava um cigarro — um Marlboro americano — e tomava sua vodca, tipo premium Starka, que era marrom como o bourbon americano. Na vitrola, havia outro produto americano, um LP de Louis Armstrong no trompete, tocando um soberbo jazz de Nova Orleans. Como muitos outros russos, o diretor da KGB considerava os negros pouco mais do que macacos canibais, mas os negros americanos tinham inventado sua própria forma refinada de arte. Ele sabia que devia ser um devoto de Borodin ou de outro compositor clássico russo, mas simplesmente havia uma vitalidade no jazz americano que evocava algo em sua mente.

A música, contudo, era meramente uma ajuda para pensar. Yuriy Vladimirovich Andropov tinha sobrancelhas grossas sobre os olhos castanhos e um queixo saliente que sugeria uma origem étnica distinta, mas seu cérebro era totalmente russo, o que significava que era uma mistura de bizantinos, tártaros, mongóis, todos concentrados em alcançar seus próprios objetivos. Ele tinha vários, mas um acima de todos: queria ser o líder de seu país. Alguém tinha de salvá-lo, e ele sabia exatamente o quanto o país precisava de um salvador. Uma das vantagens de ser o diretor do Comitê de Segurança do Estado era que havia poucos segredos para ele, e isso em uma sociedade repleta de mentiras, onde elas eram de fato uma das formas mais refinadas de arte. Isso era particularmente verdadeiro em relação à economia soviética.

A estrutura comandada pelas autoridades daquele colosso débil determinava que cada fábrica — e seu gerente — tinha uma meta de produção a ser cumprida. Esta meta podia ou não ser realista. Isso não importava. O que importava era que havia uma imposição draconiana. Não tão draconiana quanto já havia sido, claro. Nas décadas de 1930 e 1940, o fracasso em cumprir a meta estabelecida no Plano podia significar a morte, naquele mesmo prédio, porque os que não cumpriam o Plano eram considerados "destruidores", sabotadores, inimigos do Estado, traidores em uma nação na qual a traição ao Estado era um crime maior que qualquer outro e, portanto, exigia uma pena mais dura do que qualquer outra — normalmente uma bala calibre 44 de um dos antigos revólveres Smith & Wesson que os czares tinham comprado dos Estados Unidos.

Como resultado, os gerentes das fábricas haviam aprendido que, se não pudessem de fato atender às expectativas do Plano, teriam de fazê-lo pelo menos no papel, para prolongar tanto suas vidas quanto os privilégios dos seus cargos. A verdade sobre os fracassos normalmente se perdia na monstruosa burocracia herdada dos czares e depois fomentada para crescer mais ainda sob o marxismo-leninismo. Andropov sabia que sua própria agência tomava parte daquela tendência. Ele podia dizer algo, até bradar as palavras, mas isso não significava que haveria um resultado verdadeiro. Algumas vezes, acontecia. De fato, vinha acontecendo muitas vezes, ultimamente, porque Yuriy Vladimirovich mantinha anotações pessoais e acompanhava o andamento durante cerca de uma semana. E, gradualmente, sua agência estava aprendendo a mudar.

Mas não havia como mudar o fato de que a ofuscação contrastava até com seu próprio estilo de crueldade. Mesmo um Stalin renascido não poderia mudar isso — e ninguém queria que Stalin renascesse. A ofuscação institucional alcançara o topo da hierarquia do partido. O Politburo tinha o mesmo poder de decisão que a direção da fazenda estatal "Sunrise". Em sua ascensão, ele observara que ninguém aprendera a ser eficaz, e, como resultado, muita coisa acontecia com uma piscada de olhos e um sinal com a cabeça, deixando subentendido que aquilo não era tão importante.

E, como havia acontecido tão pouco progresso, foi delegada a ele e à KGB a responsabilidade de endireitar todas as coisas erradas. Se os órgãos do Estado não eram capazes de prover aquilo de que o Estado precisava, então a KGB tinha de roubar de quem o possuía. A agência de espionagem de Andropov e sua "irmã" militar, a GRU, roubavam todo tipo de projeto de armas do ocidente. Eles são tão eficientes, pensou com um grunhido, que os pilotos soviéticos por vezes morriam devido aos mesmos erros de projeto que haviam matado pilotos americanos anos antes.

E essa era a dificuldade. Por mais eficiente que a KGB fosse, suas realizações mais sensacionais garantiam apenas que o exército do seu país continuaria, na melhor das hipóteses, cinco anos atrasado em relação ao Ocidente. E a única coisa que ele e seus oficiais de campo não podiam roubar do Ocidente era o controle de qualidade das indústrias, que permitia a produção de armas avançadas. Quantas vezes, refletiu, seu pessoal conseguira projetos dos Estados Unidos e de outros lugares apenas para descobrir que seu país simplesmente não tinha como copiá-los?

Era isso que ele tinha de corrigir. Os míticos trabalhos de Hércules pareciam triviais por comparação, disse Andropov a si mesmo, batendo as cinzas do cigarro. Transformar a nação? Na Praça Vermelha, eles mantinham o corpo embalsamado de Lenin como uma espécie de deus comunista, a relíquia de um homem que transformara a Rússia de um Estado monárquico atrasado em um... Estado socialista atrasado. O governo de Moscou expressava desprezo diante de qualquer país que pretendesse aliar o socialismo ao capitalismo — apesar do fato de a KGB tentar roubar deles também. O Ocidente raramente desperdiçava sangue e dinheiro para obter informações sobre armas soviéticas, exceto para descobrir seus defeitos. Os serviços de inteligência ocidentais faziam o máximo para deixar seus governos assustados, proclamando cada nova arma soviética como um instrumento de destruição do próprio diabo, mas depois descobriam que o tigre soviético calçava botas de chumbo e era incapaz de capturar a presa, por mais assustadores que os dentes do tigre parecessem. Todas as ideias originais que os cientistas russos tinham — e havia muitas — eram impiedosamente roubadas e convertidas em instrumentos que funcionavam de verdade.

Os órgãos responsáveis pelos projetos faziam promessas aos militares e ao Politburo.

Falavam sobre como os novos sistemas seriam mais avançados, desde que houvesse um pouco mais de recursos... Ah! E, durante todo esse tempo, o novo presidente americano fazia o que seus antecessores não tinham feito: alimentava seu tigre. O colosso industrial americano comia carne vermelha e efetivamente produzia em grandes números as armas desenvolvidas durante a década anterior. Os oficiais de campo e agentes relatavam que o moral dos militares americanos estava subindo pela primeira vez em uma geração inteira. O Exército, em particular, treinava em ritmo mais intenso, e suas novas armas... Não que o Politburo acreditasse nele. Seus membros ficavam muito isolados, não eram expostos ao mundo real, para além das fronteiras soviéticas. Eles presumiam que o mundo todo era parecido com o que havia lá, de acordo com as teorias políticas de Lenin — escritas sessenta anos antes! Como se o mundo não tivesse mudado nada desde então! Yuriy Vladimirovich se enfurecia em silêncio. Gastava enormes somas para descobrir o que estava acontecendo no mundo, submetia os dados a especialistas qualificados e notavelmente treinados, apresentava relatórios esplendidamente organizados aos homens de idade sentados ao redor da mesa de carvalho... e, mesmo assim, eles não ouviam!

E ainda havia o problema atual.

É assim que vai começar, disse a si mesmo, dando outro longo gole na sua Starka. Uma única pessoa basta, caso seja a pessoa certa. Ser a pessoa certa significava que os outros a ouviam, prestavam atenção às suas palavras e atos. E algumas pessoas simplesmente atraíam esse tipo de atenção. E eram esses que se deviam temer...

Karol, Karol, por que você tem de criar um problema desse tipo? Haveria um problema se cumprisse a ameaça de realizar aquela ação. A carta que enviara a Varsóvia não fora apenas para os bajuladores que havia lá — ele sabia aonde ela ia chegar. Não era um idiota. Na verdade, era tão astuto quanto qualquer outra figura política que conhecera.

Era impossível ser um clérigo cristão em um país comunista e subir ao topo da maior igreja do mundo, para ser o secretário-geral, sem saber como operar as alavancas do poder. Mas seu cargo se originara dois mil anos antes, na hipótese de se acreditar em toda aquela tolice — bem, talvez. A idade da Igreja Romana era um fato objetivo, não? Fatos históricos eram fatos históricos, mas isso não tornava a estrutura de crença por baixo dela mais válida do que Marx havia dito que era — ou que não era, para ser mais preciso. Yuriy Vladimirovich nunca considerara que a fé em Deus fazia mais sentido do que a fé em Marx ou Engels. Ele sabia, porém, que todos tinham de acreditar em algo, não porque fosse verdade, mas porque isso por si era uma fonte de poder. As pessoas mais humildes, aquelas que tinham de ser orientadas sobre o que fazer, precisavam acreditar em algo maior do que elas próprias. Os seres primitivos que vivem nas selvas restantes do mundo ainda ouviam no trovão não apenas o choque de ar quente e frio, mas a voz de alguma coisa viva. E por quê? Porque sabiam que eram fracos num mundo poderoso. Pensavam que podiam influenciar as divindades que os controlassem através de sacrifícios de porcos ou até de crianças. E aqueles que controlavam essa influência acabavam conquistando o poder de moldar sua sociedade. Alguns grandes homens usavam isso para obter confortos ou mulheres. Um de seus antecessores na KGB empregara esse poder para conseguir mulheres, na verdade meninas, mas Yuriy Vladimirovich não compartilhava desse vício em particular. Não, o poder era suficiente em si. Um homem podia aproveitá-lo como um gato se esquenta diante do fogo, com o simples prazer de tê-lo por perto, sabendo que apreciava a faculdade de mandar nos outros, levar a morte ou o bem-estar àqueles que o serviam, que o agradavam com sua deferência e reconhecimento bajulador de que ele era maior que eles.

É claro que havia outras questões envolvidas. Era necessário fazer algo com aquele poder. Era preciso deixar pegadas nas areias do tempo. Boas ou más, não importava, desde que fossem grandes o suficiente para chamar atenção. Em seu caso, um país inteiro necessitava de sua orientação, porque, de todos os homens do Politburo, apenas ele conseguia vislumbrar o que precisava ser feito. Só ele podia indicar o caminho que sua nação tinha de seguir. E, se o fizesse corretamente, seria lembrado. Ele sabia que um dia sua vida chegaria ao fim. No caso de Andropov, havia uma doença de fígado.

Ele não devia beber vodca, mas, com o poder, vinha o poder absoluto de escolher o próprio caminho. Nenhum outro homem podia lhe dizer o que fazer. Sua inteligência interior sabia que aquela não era sempre a coisa mais inteligente a se fazer, mas grandes homens não ouviam homens mais fracos, e ele se considerava o mais importante dos primeiros. Seu ímpeto e desejo não eram fortes o bastante para definir o mundo em que vivia? Claro que sim; então ele tomava um ou dois drinques de vez em quando, algumas vezes três, à noite. Mais ainda em jantares oficiais. Seu país superara havia muito os tempos do governo de um único homem. Isso acabara trinta anos antes com a morte de "Koba", Josef Vissarionovich Stalin, que governara com uma crueldade de fazer Ivan, o Terrível, tremer nas bases. Não, esse tipo de poder era perigoso demais, para o soberano e para os súditos. Stalin havia cometido erros e acertos, e, por mais úteis que os últimos tivessem sido, os primeiros tinham quase condenado a União Soviética ao atraso perpétuo — e, de fato, ao criar a mais formidável burocracia do mundo, renegou o progresso para sua nação.

No entanto, um homem, o homem certo, poderia liderar e orientar seus aliados políticos do Politburo na direção correta e, depois, ajudando a selecionar os novos membros, alcançar os objetivos necessários pela influência em vez do terror. Talvez, então, ele pudesse fazer seu país caminhar novamente, mantendo o controle único de que todas as nações necessitam, mas acrescentando a flexibilidade igualmente indispensável para que novas coisas aconteçam — para se chegar ao verdadeiro comunismo, ver o futuro radiante que, segundo os escritos de Lenin, esperava os que tinham fé.

Andropov não conseguia perceber a contradição em sua própria mente. Como tantos outros grandes homens, era incapaz de enxergar as coisas que contradiziam seu enorme ego.

De qualquer maneira, tudo voltava à questão de Karol e ao perigo que representava.

Andropov fez uma anotação mental para a reunião com o pessoal da manhã. Precisava saber quais eram as possibilidades. O Politburo discutiria em voz alta como lidar com o problema trazido pela carta de Varsóvia. As atenções se voltariam ao seu posto, e ele precisaria ter algo para dizer. O truque era encontrar algo que não assustasse os colegas em sua postura conservadora. Aqueles homens, supostamente poderosos, eram muito medrosos.

Ele leu muitos relatórios de seus oficiais de campo, os talentosos espiões da Primeira Diretoria de Comando, sempre sondando os pensamentos de seus correspondentes. Era bastante estranho ver quanto temor havia no mundo e notar que os mais medrosos, frequentemente, eram aqueles que tinham o poder nas mãos.

Não, Andropov esvaziou seu copo e decidiu não tomar outra saideira. A razão por trás do medo deles era o temor de não possuírem realmente o poder. Não eram tão fortes.

Eram dominados pelas mulheres, exatamente como os operários e camponeses. Tinham pavor de perder o que possuíam de maneira tão gananciosa, então usavam seu poder em empreitadas ignóbeis com a finalidade de reduzir a pó aqueles que poderiam tomar seus bens. Até Stalin, o mais poderoso dos déspotas, usara sua força principalmente para eliminar aqueles que poderiam se sentar em sua cadeira alta. E, assim, o grande Koba gastara sua energia não olhando adiante, ou olhando para fora, mas olhando para baixo. Era como uma mulher na cozinha temendo ratos embaixo da saia, em vez de um homem com o poder e a vontade de matar um tigre em ascensão.

Mas ele poderá fazer de outro modo? Sim! Sim, pode olhar para a frente, ver o futuro e definir um caminho. Sim, pode apresentar sua visão aos homens menos capazes que se sentam ao redor da mesa no Kremlin, e liderá-los com a força de sua determinação. Sim, pode reencontrar e reajustar a visão de Lenin e de todos os pensadores da filosofia dominante do país. Sim, pode alterar o rumo da nação e ser lembrado para sempre como um grande homem.

Só que antes, ali e naquele exato momento, ele tinha que lidar com Karol e sua incômoda ameaça à União Soviética.


2

 


VISÕES E HORIZONTES

 

KATHY QUASE entrou em pânico só de pensar em levá-lo de carro até a estação de trem. Ao vê-lo caminhando para o lado esquerdo do carro, imaginara, como qualquer americano teria feito, que ele ia dirigir. Por isso, ficou visivelmente surpresa quando recebeu as chaves.

Descobriu que os pedais eram iguais aos de um carro americano, porque todas as pessoas do mundo usavam o pé direito para acelerar, até as da Inglaterra que dirigiam na mão invertida. Como a alavanca do câmbio ficava no console central, ela tinha que usar a mão esquerda para trocar a marcha. Chegar até a rua não foi muito diferente do normal. Ambos se perguntavam se os britânicos enfrentavam a mesma dificuldade para dirigir do lado direito da rua quando iam aos Estados Unidos ou pegavam um barco até a França. Jack decidiu que um dia perguntaria isso a alguém durante uma cerveja.

— Apenas se lembre: esquerda é direita, e direita é esquerda. E você tem que dirigir do lado errado da rua.

— Está bem — respondeu ela, incomodada.

Ela sabia que teria de aprender, e a parte racional de seu cérebro indicava que não haveria momento mais adequado, embora o agora tivesse o costume desagradável de aparecer repentinamente como um guerrilheiro saindo do esconderijo. Na saída do pequeno condomínio, eles passaram por um prédio de um andar que parecia abrigar um consultório médico, passando pelo parque com o balanço que tinha atraído Jack para esta casa em particular. Sally gostava de balanços, e ela certamente faria novos amigos aqui. E Little Jack também conseguiria um pouco de sol. No verão, pelo menos.

— Vire à esquerda, querida. Aqui, quando você vira à esquerda, é como se fosse uma curva à direita. Você não corta o tráfego.

— Eu sei — disse a Dra. Caroline Ryan, tentando entender por que Jack não chamara um táxi. Ela ainda tinha muito trabalho a fazer na casa e não precisava de uma aula de direção. Pelo menos o carro parecia ser ágil, com bom arranque e rápida aceleração. Mas não era seu velho Porsche.

— No fim da colina, vire à direita.

— Oh, não.

Seria simples. Ela teria que achar o caminho de volta e odiava pedir ajuda. Era consequência de ser cirurgiã, acostumada a estar no comando tanto quanto um piloto de caça dentro do cockpit, E, como cirurgiã, ela não tinha direito de entrar em pânico, certo?

— É aqui mesmo — disse Jack. — Lembre-se do trânsito.

Não havia trânsito naquele momento, mas aquilo mudaria, provavelmente assim que ele saísse do carro. Ele não invejava a experiência de aprender a se orientar por conta própria, mas, afinal, a maneira mais garantida de se aprender a nadar era pular na água.

Desde que não se afogasse. Os britânicos eram pessoas hospitaleiras, e, se necessário, um motorista gentil provavelmente mostraria o caminho de volta para casa.

A estação de trem era tão impressionante quanto uma plataforma elevada do metrô do Bronx: um pequeno prédio de pedra com degraus ou escadas rolantes que levavam até os trilhos. Ryan pagou a passagem com dinheiro e notou uma placa oferecendo blocos de bilhetes para uso diário. Comprou um exemplar do Daily Telegraph, o que o faria parecer conservador aos olhos dos locais. Os de tendência mais liberal escolhiam The Guardian. Dispensou os tabloides recheados de fotos de mulheres nuas — muito pesado para se ver logo depois do café da manhã.

Teve que esperar dez minutos pelo trem, que chegou fazendo pouco barulho, já que era um híbrido de trem elétrico americano e trem de metrô. Seu bilhete era de primeira classe, o que o deixou num pequeno compartimento. As janelas subiam ou desciam se se puxasse uma alça de couro, e a porta do compartimento se dobrava, em vez de atravancar o corredor. Depois de fazer essas descobertas, Ryan se sentou e passou os olhos pela primeira página do jornal. Como nos Estados Unidos, a política nacional ocupava metade do espaço. Ele leu duas matérias para tentar entender os costumes e queixas locais.

A tabela de horários indicava que levaria quarenta minutos até Victoria Station. Nada mau, e muito melhor do que dirigir, dissera-lhe Dan Murray. Além disso, estacionar o carro em Londres era mais difícil do que em Nova York, com a mão invertida e tudo mais.

A viagem de trem foi tranquila. Era claramente um monopólio estatal, e alguém havia feito investimento nas ferrovias. Um bilheteiro sorridente pegou sua passagem — percebendo, sem dúvida, que ele era ianque — e seguiu logo em frente, deixando Ryan com seu jornal. Contudo, a paisagem em movimento chamou sua atenção. A zona rural era verde e exuberante; os britânicos gostavam mesmo de seus campos. As casas eram menores que as de sua infância em Baltimore, com tetos de ardósia e margeadas por ruas muito estreitas. E, meu Jesus, era preciso tomar cuidado ao dirigir, para não acabar dentro da sala de estar de alguém. Não ficaria bem, nem estando os ingleses já acostumados aos defeitos dos visitantes americanos.

O dia estava claro, com poucas nuvens brancas no céu de um azul magnífico. Ele ainda não tinha encarado chuva por lá, mas uma em cada três pessoas nas ruas carregava um guarda-chuva fechado. E muitas usavam chapéu, o que Ryan não fazia desde que servira como fuzileiro naval. A Inglaterra era diferente o bastante dos Estados Unidos para ser perigosa, concluiu. Havia muitas semelhanças, mas as disparidades se revelavam e causavam problemas quando menos se esperava. Ele teria de prestar atenção quando Sally fosse atravessar a rua. Tendo apenas quatro anos e meio, ela podia olhar para o lado errado na hora errada. Jack já tinha visto sua menininha no hospital uma vez e tinha sido suficiente para o resto da vida.

Agora ele estava descobrindo uma cidade muito movimentada. O caminho do trem ficava em um elevado, e Jack tentou reconhecer algum ponto de referência da cidade.

Aquela à esquerda seria a catedral de St. Paul? Se fosse, logo estaria na Victoria. Ele dobrou o jornal. O trem desacelerou e finalmente... Victoria Station. Ele abriu a porta como um nativo e pisou na plataforma. A estação era formada por uma série de arcos de aço com painéis de vidro embutidos havia muito enegrecidos pela fumaça dos antigos trens. Mas ninguém tinha jamais limpado os vidros. Ou a causa seria a poluição do ar? N3o havia como saber. Jack seguiu as outras pessoas até a parede de tijolos que parecia indicar a área de embarque e desembarque. Pelo menos o amontoado de bancas de jornal e pequenas lojas estava lá. Ele conseguiu ver a saída e logo estava ao ar livre, procurando em seus bolsos pelo mapa de Londres. Westminster Bridge Road. Era muito longe para ir andando, então ele chamou um táxi.

De dentro do táxi, Ryan ficou observando ao redor, sua cabeça indo de um lado para o outro, como o turista que já não era mais. E lá estava.

A Century House, que recebera esse nome porque ficava no número 100 da Westminster Bridge Road, era uma estrutura que Jack considerava típica do período entre guerras, de altura respeitável e com uma fachada de pedras que estava... se decompondo? O edifício estava cercado por uma rede de plástico laranja cuja função era evitar que pedaços da fachada caíssem sobre os pedestres. Opa. Talvez alguém estivesse destruindo o prédio em busca de escutas dos russos. Ninguém o tinha avisado disso em Langley. Um pouco adiante, na mesma rua, estava a Westminster Bridge, e, do outro lado, o Parlamento. Bem, pelo menos ficava em uma região agradável. Jack subiu as escadas de pedra até a porta e caminhou três metros até se deparar com uma mesa de controle ocupada por um homem vestido como policial.

— Posso ajudar, Sir? — perguntou o guarda.

Os britânicos sempre diziam aquele tipo de coisa como se realmente quisessem ajudar.

Jack imaginou se haveria uma pistola fora de seu campo de visão. Se não ali mesmo, em algum lugar próximo. Tinha que haver segurança ali.

— Oi, sou Jack Ryan. Estou começando hoje aqui.

O guarda deu um sorriso imediatamente ao reconhecer o nome.

— Ah, Sir Jack. Bem-vindo à Century House. Por favor, aguarde enquanto ligo lá para cima. — Ele foi rápido. — Uma pessoa está descendo, senhor. Por favor, sente-se.

Jack mal se sentara, quando uma pessoa familiar passou pela porta giratória.

— Jack — disse.

— Sir Basil. — Jack se levantou para cumprimentá-lo.

— Só o esperava amanhã.

— Estou dando um tempo a Cathy para arrumar a mudança. Ela não confia em mim para isso.

— Sim, nós homens temos nossas limitações, não é mesmo?

Sir Basil Charleston estava chegando aos 50. Era alto e de uma magreza imperial, como um poeta havia definido. Os cabelos castanhos ainda não estavam rareando. Seus olhos eram castanho-claros e reluzentes. Ele vestia um terno fino — de algodão cinza e listras brancas — que o fazia parecer um próspero banqueiro de Londres. Na verdade, sua família havia atuado nesse ramo, mas ele o considerara limitante, preferindo empregar sua formação em Cambridge a serviço de seu país, primeiro como um oficial de inteligência de campo e depois como administrador. Jack sabia que James Greer gostava dele e o respeitava — e o juiz Moore também. Ele havia conhecido Charleston um ano antes, logo depois de levar o tiro, e descobrira que Sir Basil gostara da Armadilha do Canário, o que o levara a ser reconhecido nos círculos mais altos de Langley. Basil havia usado a armadilha para acabar com alguns desagradáveis vazamentos de informação.

— Venha, Jack. Precisamos vesti-lo de maneira adequada.

Ele não falava da roupa de Jack, que era da Savile Row e tão cara quanto a sua.

Não, aquilo significava uma ida ao departamento de pessoal.

A presença de C, por seu cargo, tornou tudo indolor. Eles já tinham registros das digitais de Ryan, provenientes de Langley, e bastava tirar uma foto para inserção no cartão de acesso, que lhe permitiria passar por todas as portas controladas eletronicamente, exatamente como as da CIA. O cartão foi verificado em uma porta falsa e funcionou. Estava na hora de pegar o elevador privativo até o espaçoso escritório de Sir Basil.

Era muito melhor que a sala longa e estreita do juiz Moore. Tinha uma vista razoável do rio e do Palácio de Westminster. O diretor-geral apontou uma cadeira de couro para Jack.

— Então, alguma impressão inicial? — perguntou Charleston.

— Tem sido bem tranquilo até agora. Cathy ainda não foi ao hospital, mas Bernie, o chefe dela no Johns Hopkins, disse que o diretor daqui é uma pessoa legal.

— Sim, o Hammersmith tem uma boa reputação, e o Dr. Byrd é considerado o melhor cirurgião oftálmico do Reino Unido. Não o conheço pessoalmente, mas ouvi dizer que é um cara bacana. Pescador, adora tirar uns salmões dos rios da Escócia, casado, três filhos, o mais velho tenente no regimento de Coldstream.

— Você mandou verificá-lo? — perguntou Jack, incrédulo.

— Nunca é demais tomar cuidado, Jack. Como sabe, alguns de seus primos distantes, além do Mar da Irlanda, não gostam muito de você.

— Isso é um problema?

Charleston balançou a cabeça.

— É quase certo que não. Ao ajudar a derrotar a ULA, você provavelmente salvou algumas vidas no regimento de paraquedistas. Isso ainda está sendo esclarecido, mas é basicamente um trabalho para o Serviço de Segurança. Não temos muito a ver com eles, pelo menos nada que diga respeito diretamente a você.

Isso levou à pergunta seguinte de Jack.

— Então, Sir Basil... qual é exatamente meu trabalho aqui?

— James não lhe contou? — perguntou Charleston.

— Não exatamente. Percebi que ele gosta de surpresas.

— Bem, a força-tarefa conjunta concentra-se principalmente nos nossos amigos soviéticos. Temos algumas boas fontes. E seus companheiros também. A ideia é compartilhar informações para melhorar nosso entendimento geral.

— Informações, e não fontes — comentou Ryan.

Charleston sorriu, demonstrando ter entendido a mensagem.

— Como você sabe, é necessário proteger as fontes.

Jack sabia bem disso. De fato, ele tinha pouquíssima informação sobre as fontes da CIA. Estas eram um dos segredos mais bem guardados na agência e, sem dúvida, por lá também. As fontes eram pessoas reais, e qualquer palavra a mais poderia levá-las à morte. Os serviços de inteligência as valorizavam mais por suas informações do que por suas vidas — era um negócio, afinal —, porém mais cedo ou mais tarde começava a haver uma preocupação com suas famílias e características pessoais.

Principalmente bebida, pensou Ryan. Especialmente no caso dos russos. O cidadão soviético comum bebia o suficiente para ser qualificado de alcoólatra nos Estados Unidos.

— Sem problema, senhor. Não sei o nome ou a identidade de fonte alguma da CIA. Nenhuma — salientou Ryan. Não era exatamente verdade. Não contaram a ele, mas era possível deduzir muita coisa do tipo de informação transmitida e da forma como ele ou ela citava as pessoas — normalmente era "ele", mas Ryan tinha dúvidas quando a algumas fontes. Era um jogo intrigante que a maioria dos analistas praticava, sempre dentro das fronteiras de suas mentes, embora Ryan já houvesse especulado algumas vezes com seu superior imediato, o almirante Jim Greer. Geralmente, o DDO alertava para que não raciocinasse muito alto, mas o modo como pestanejou em duas oportunidades revelou mais do que quis transmitir. Bem, Ryan sabia que eles o haviam contratado por sua capacidade analítica. Eles não queriam realmente que ignorasse essa vocação.

Quando a informação transmitida se tornava confusa, isso significava que algo tinha acontecido à fonte, sendo capturada ou ficado maluca.

— Mas o almirante está interessado em uma coisa — continuou Ryan.

— O que é? — perguntou o diretor-geral.

— A Polônia. As coisas parecem um pouco desconexas e queremos saber até onde, com que rapidez e o que exatamente vai fazer... quero dizer, os efeitos que terá.

— Também queremos isso, Jack. — Sir Basil fez um sinal com a cabeça, pensativo. As pessoas, principalmente os repórteres que se reuniam nos pubs da Fleet Street estavam especulando muito sobre aquilo. E os repórteres têm boas fontes, em algumas áreas até melhores. — O que James acha?

— Nós dois nos lembramos de algo que aconteceu nos anos 1930. — Ryan recostou-se na cadeira e relaxou. — O Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Automobilística. Quando os funcionários da Ford se organizaram, houve problemas. Grandes problemas. A Ford chegou até a contratar capangas para espancar os sindicalistas. Lembro de ter visto fotos de... quem era mesmo? — Jack parou por um momento para pensar. — Walter Reuther? Alguma coisa assim. Saiu na revista Life na época. Os capangas estavam conversando com ele e alguns de seus homens. As primeiras fotos mostravam todos rindo, como acontece quando uma briga está para começar. Então houve a pancadaria. O que a diretoria da Ford estava fazendo? Deixar algo daquele tipo acontecer na frente de repórteres já seria ruim, mas de repórteres com máquinas fotográficas? Uma estupidez sem tamanho.

— O tribunal da opinião pública. Sim — concordou Charleston. — É verdade. E a tecnologia moderna acentuou ainda mais isso, e, sim, isso preocupa nossos amigos do outro lado. Você sabe, essa rede da CNN no seu país pode acabar mudando o mundo. A informação tem um modo próprio de circular. Os rumores já são nocivos o bastante. Não se consegue controlá-los, e eles são capazes de adquirir vida própria...

— Mas uma imagem realmente vale mais que mil palavras, não é?

— Eu me pergunto quem disse isso pela primeira vez. Fosse quem fosse, não era bobo. Mais verdadeiro ainda no caso de uma imagem em movimento.

— Presumo que estejamos usando esse recurso...

— Seus amigos são reticentes em relação a isso. Eu não sou tanto. É fácil fazer com que um funcionário da embaixada vá tomar uma cerveja com um repórter e deixe escapar uma dica casual durante a conversa. Um fato em relação aos repórteres é que eles não são mal-agradecidos quando você lhes passa uma história razoável.

— Em Langley, eles odeiam a imprensa, Sir Basil. E eu quero dizer odeiam mesmo.

— É uma postura atrasada da parte deles. Mas suponho que possamos exercer maior controle sobre a imprensa aqui do que nos Estados Unidos. De qualquer maneira, não é tão difícil ser mais esperto do que eles, concorda?

— Nunca tentei. O almirante Greer diz que conversar com um repórter é como dançar com um rottweiler. Não há como saber se ele vai lamber seu rosto ou furar seu pescoço.

— Eles não são cachorros maus, sabia? Só é preciso treiná-los do modo certo.

Os britânicos e seus cães, pensou Ryan. Eles gostam mais dos seus bichos de estimação do que dos filhos. Ele não ligava muito para cachorros grandes. Um labrador, como Ernie, era diferente. Os labradores sabiam controlar a boca. Sally sentia mesmo a falta dele.

— Então, qual é sua opinião sobre a Polônia, Jack?

— Acho que a panela vai esquentar até a tampa pular, e quando tudo entrar em ebulição, haverá uma enorme confusão. Os poloneses não aderiram muito bem ao comunismo. Pelo amor de Deus, o Exército deles tem capelães. Muitos fazendeiros atuam com total liberdade, vendendo presunto e outros produtos. O programa de TV mais popular é Kojak, que passa até nas manhãs de domingo, para evitar que as pessoas vão à igreja. Isso mostra duas coisas: o povo de lá gosta da cultura americana, e o governo ainda teme a Igreja Católica. O governo polonês é instável e sabe disso. Deixar algum espaço para movimento é provavelmente uma decisão inteligente, pelo menos a curto prazo, mas o problema fundamental é que eles mantêm um regime basicamente injusto. Senhor, sistemas injustos não são estáveis. Por mais fortes que pareçam, estão podres por dentro.

Charleston mexeu a cabeça, pensativo.

— Fiz um relato completo para a primeira-ministra há três dias, em Chequers, e lhe contei praticamente a mesma coisa.

O diretor-geral parou por um instante até decidir. Pegou uma pasta de arquivo de cima de uma pilha sobre sua mesa e entregou-a a Jack.

A capa tinha uma inscrição de "ultrassecreto". Então, pensou Jack, é agora que começa.

Ele se perguntou se Basil aprendera a nadar pulando no rio Tâmisa e chegou à conclusão de que todo mundo devia aprender do mesmo jeito.

Depois de virar a capa, viu que a informação vinha de uma fonte chamada WREN.

Era obviamente polonês e, pela aparência do relatório, bem situado. E o que dizia...

— Caramba — disse Ryan. — Isso é confiável?

— Totalmente. É um 5-5, Jack. — Ele queria dizer que a fonte era classificada como cinco em uma escala que ia até cinco, em relação a confiabilidade, e a relevância da informação relatada era avaliada da mesma forma. — Você é católico, ao que parece. — Claro que ele já sabia. Era apenas a maneira inglesa de falar.

— Jesuítas na escola, no Boston College e em Georgetown, além das freiras em Saint Matthew's. É melhor que eu seja.

— O que acha do novo papa?

— Primeiro não-italiano em quatro séculos. Isso significa alguma coisa. Quando soube que o novo papa era polonês, esperei que fosse o cardeal Wiszynski, de Varsóvia. Ele tem o cérebro de um gênio e a astúcia de uma raposa. Já sobre esse outro cara, eu não sabia nada. Pelo que andei lendo desde então, é um sujeito com uma base muito sólida. Bom padre na paróquia, bom administrador, muito astuto do ponto de vista político...

Ryan fez uma pausa. Ele estava falando sobre o líder de sua igreja como se fosse um candidato a algum cargo. Mas com certeza havia mais naquela figura. Tinha de ser um homem de profunda devoção, com o tipo de convicção no coração que nem um terremoto seria capaz de mover ou rachar. Havia sido escolhido por outros como ele para ser líder e porta-voz da maior igreja do mundo que, por acaso, era a mesma de Ryan. Devia ser um homem sem grandes temores, um homem para o qual uma bala representava uma passagem para a liberdade, uma chave para chegar à presença de Deus. E um homem que sentia a presença de Deus em todos os seus atos. Não era alguém que se pudesse assustar ou desviar do que ele considerava a coisa certa.

— Se ele escreveu esta carta, Sir Basil, não é um blefe. Quando foi entregue?

— Há menos de quatro dias. Nosso homem quebrou uma regra ao nos encaminhá-la tão rápido, mas sua importância é bem evidente, não?

Bem-vindo a Londres, Jack, pensou Ryan. Ele acabara de cair na sopa. Um grande caldeirão, como os que serviam para cozinhar os missionários nos desenhos animados.

— Certo. E foi repassada a Moscou, correto?

— Foi o que o nosso homem disse. Então, Sir John, o que Ivan vai dizer sobre isso?

Com essa pergunta, Sir Basil Charleston acendeu o fogo embaixo do caldeirão pessoal de Jack.

— Essa é uma questão de vários ângulos — disse Ryan, esquivando-se da maneira mais hábil possível. Não adiantou muito.

— Ele dirá algo — comentou Charleston, colocando seus olhos castanho-claros na altura dos de Ryan.

— Tudo bem. Eles não vão gostar. Vão encarar como ameaça. As dúvidas são em relação ao nível de seriedade com que tratarão disso e quanto crédito darão. Stalin poderia ter descartado imediatamente... ou não. Foi Stalin quem definiu a paranoia, não foi? — Ryan parou um instante e olhou pela janela. Era uma nuvem de chuva se aproximando? — Não, Stalin teria agido de alguma forma.

— Você acha?

Jack sabia que Charleston o estava avaliando. Lembrava a defesa de sua tese de doutorado em Georgetown. O padre Tim Riley com sua perspicácia aguda e perguntas precisas. Sir Basil era mais civilizado do que o austero sacerdote, mas seu teste não seria fácil.

— Leon Trotsky não era uma ameaça para ele. O assassinato foi resultado da combinação de paranoia e pura crueldade. Era algo pessoal. Stalin fez inimigos, e nunca os esqueceu. Mas a atual liderança soviética não tem coragem de fazer as coisas que ele fez.

Churleston apontou para a janela de vidro reforçado que dava para a Westminster Bridge.

— Meu jovem, os russos tiveram a ousadia de matar um homem bem naquela ponte, menos de cinco anos atrás...

— E foram responsabilizados por isso... — lembrou Ryan.

A identificação fora possível graças à sorte e a um médico britânico muito inteligente. Mas não valera o esforço de salvar a vida do pobre desgraçado. Eles determinaram a causa da morte e concluíram que não tinha sido provocada por um criminoso de rua.

— Você acha que eles perderam o sono por causa desse incidente? Eu não — disse C.

— Isso é ruim. Eles não costumam fazer mais esse tipo de coisa, não que eu saiba.

— Só dentro do próprio quintal. Isso é verdade. Mas a Polônia é considerada parte do quintal por eles, está nos limites de sua esfera de influência.

— Mas o papa vive em Roma, e Roma não fica nessa área. Depende do quão assustados eles estão, senhor. O padre Tim Riley, da época do meu doutorado em Georgetown, me dizia para não esquecer que as guerras são iniciadas por homens apavorados. Eles temem a guerra; mais do que isso, porém, temem o que acontecerá se não começarem uma guerra... ou se não tomarem uma atitude equivalente, acredito. Então, as verdadeiras questões são, como disse antes, em relação ao nível de seriedade com que vão encarar isso e que gravidade vão atribuir ao caso. Sobre a primeira pergunta, não acho que seja um blefe. A personalidade do papa, seu passado e sua coragem... não são coisas que possam ser questionadas. Por isso, a ameaça é verdadeira. A pergunta mais importante é como avaliar a magnitude dessa ameaça para eles...

— Prossiga — disse o diretor-geral, gentilmente.

— Se eles forem espertos o bastante para reconhecer isso... sim, na posição deles, eu ficaria preocupado, talvez até um pouco assustado. Por mais que os soviéticos acreditem serem uma superpotência, no mesmo nível dos Estados Unidos e tudo mais, no fundo sabem que seu estado não é realmente legítimo. Kissinger nos deu uma palestra sobre isso em Georgetown. — Jack se recostou e fechou os olhos por um momento para rememorar a apresentação. Foi algo que ele disse no fim, falando sobre o caráter dos líderes russos. Brejnev estava a ele algo em torno de algum edifício qualquer no Kremlin, que Nixon visitaria em sua última reunião de cúpula. Ele levantava os panos que cobriam as estátuas, mostrando como haviam dedicado tempo a uma limpeza geral, em preparação para a visita. Na época, eu pensei: por que fazer aquilo? Quero dizer, tudo bem, eles tinham faxineiras e funcionários de manutenção, mas por que mostrar isso a Henry? Só podia ser um senso de inferioridade, uma insegurança fundamental. Sempre ouvimos que eles medem três metros de altura, mas não concordo com isso, e, quanto mais aprendo sobre eles, menos os considero formidáveis. O almirante e eu discutimos muitas vezes sobre isso nos últimos meses. Eles têm uma grande força militar. Seus serviços de inteligência são de primeiro nível. Eles são grandes. Grandes e feiosos ursos, como dizia Muhammad Ali, mas é bom lembrar que Ali derrotou o urso duas vezes, não foi? Essa é uma forma indireta de dizer que, sim, senhor, acho que a carta os assustará. A questão é: assustará a ponto de eles tomarem alguma atitude? — Ryan meneou a cabeça. — Provavelmente sim, mas não temos dados suficientes neste momento. Se eles decidirem seguir esse caminho específico, saberemos com antecedência?

Charleston estava esperando Ryan lhe passar a bola.

— Esperemos que sim, mas não é possível ter certeza.

— No ano que passei em Langley, a impressão que tive é de que nosso conhecimento sobre o alvo é profundo, porém restrito em algumas áreas, raso e amplo em outras. Ainda não encontrei quem demonstre segurança ao analisá-los... Bem, isso não é exatamente verdade. Alguns têm firmeza, mas suas análises muitas vezes não são confiáveis, pelo menos na minha opinião. Como o material que recebemos sobre sua economia...

— James passa informação sobre isso a você? — Basil pareceu surpreso.

— O almirante me fez passar por todas as áreas nos dois primeiros meses. Minha primeira graduação foi em economia no Boston College. Passei no exame de contador antes de entrar para os fuzileiros navais. Depois de deixar a corporação, tive uma boa passagem pelo mercado financeiro, antes de terminar o doutorado e seguir a carreira de professor.

— Quanto exatamente você ganhou em Wall Street?

— Quando estive na Merrill Lynch? Ah, entre seis e sete milhões. Grande parte disso graças à Chicago and Northwestern Railroad. Meu tio Mario, irmão da minha mãe, me contou que os empregados iam assumir o controle para tentar tornar a empresa lucrativa de novo. Dei uma analisada no cenário e gostei do que vi. Pagou 23 por um do que investi. Devia ter colocado mais dinheiro lá, mas me ensinaram a ser conservador na Merrill Lynch. Aliás, nunca trabalhei em Nova York. Ficava no escritório de Baltimore. De qualquer maneira, o dinheiro continua em ações, e o mercado parece bem saudável agora. Ainda acompanho de longe. Nunca se sabe quando se vai encontrar um papel vantajoso, e também é um passatempo interessante.

— Sem dúvida. Se souber de algo promissor, me avise.

— Sem comissões, mas sem garantias também — brincou Ryan.

— Não estou acostumado com garantias, Jack, não nesse tipo de negócio. Vou designá-lo para nosso grupo de trabalho da Rússia com Simon Harding. Ele se formou em Oxford e fez doutorado em literatura russa. Você terá acesso às mesmas coisas que ele, com exceção das informações sobre fontes.

Ryan levantou as mãos para interrompê-lo.

— Sir Basil, não quero saber desse tipo de coisa. Não preciso disso, e saber de algo me faria perder o sono à noite. Só quero poder ver o material bruto, porque prefiro fazer minha própria análise. Esse tal de Harding é um cara esperto? — perguntou Ryan, tentando soar sem malícia.

— Muito. Você provavelmente já viu o trabalho dele. Ele foi responsável pela avaliação de Yuriy Andropov que produzimos há dois anos.

— Eu li esse material. Era um bom trabalho. Imaginei que fosse um psicanalista.

— Ele já leu muito sobre psicologia, mas não o suficiente para obter um diploma. É um rapaz inteligente. A esposa é artista, pintora, uma mulher adorável.

— Vamos começar agora mesmo?

— Por que não? Preciso voltar ao trabalho. Venha, vou levá-lo até lá. Não fica longe.

Ryan logo soube que dividiria um escritório ali mesmo no andar mais alto. Foi uma surpresa: chegar ao sétimo andar em Langley levava anos e com frequência envolvia passar por montes de corpos ensanguentados. Alguém devia achar que ele era esperto.

O escritório de Simon Harding não causava muita impressão. As duas janelas davam para prédios de tijolos de dois ou três andares cujos ocupantes eram desconhecidos. Harding, quase aos 42 anos, era pálido, louro e tinha olhos azuis. Vestia um colete desabotoado e gravata marrom. Sua mesa estava coberta de pastas marcadas com fitas listradas, material secreto.

— Você deve ser Sir John — disse Harding, afastando o cachimbo de urze branca.

— O nome é Jack. Eu realmente não posso fingir que sou um cavaleiro. Além disso, não tenho um cavalo ou uma armadura.

Jack apertou a mão do colega. As mãos de Harding eram pequenas e ossudas, mas os olhos azuis indicavam inteligência.

— Cuide bem dele, Simon — disse Sir Basil, saindo em seguida.

Já havia uma cadeira giratória no lugar certo, diante de uma mesa estranhamente limpa.

Jack a experimentou. A sala ficaria um pouco apertada, mas nada muito grave. Embaixo do telefone havia um misturador de voz, para permitir ligações com total segurança. Jack imaginou se funcionaria tão bem quanto o aparelho protegido que usara em Langley. O Centro de Comunicações do Governo Britânico (GCHQ), em Cheltenham, tinha uma relação estreita com a Agência de Segurança Nacional americana, e talvez fossem telefones idênticos com carcaças de plástico diferentes. Ele precisava se lembrar de que estava em outro país e esperava que isso não fosse muito difícil. As pessoas falavam de um jeito engraçado, mas a influência dos filmes e da televisão estava degenerando a língua inglesa para a versão americana de maneira lenta e contínua.

— Bas falou com você sobre o papa?

— Sim. Essa carta pode ser uma bomba. Ele quer saber como Ivan vai reagir a isso.

— Todos queremos, Jack. Alguma ideia?

— Acabei de dizer a seu chefe que, se Stalin estivesse no poder, poderia pensar em encurtar a vida do papa, mas seria uma aposta muito arriscada.

— O problema, para mim, é que, embora eles sejam bem inseguros na tomada de decisões, Andropov está em ascensão e pode ser menos reticente do que os outros.

Jack ajeitou-se na cadeira.

— Sabe, uns amigos da minha mulher, do Hopkins, viajaram para lá alguns anos atrás. Mikhail Suslov sofria de retinopatia diabética. Também era muito míope, só enxergava bem de perto. Eles foram lá corrigir a doença e ensinar o procedimento a alguns médicos russos. Cathy não passava de uma residente na época, mas Bernie Katz, o diretor em Wilmer, estava na equipe. É um supercirurgião oftálmico e um ótimo cara. A agência os ouviu quando voltaram. Já viu esse documento?

Os olhos de Harding demonstravam interesse: — Não. Alguma coisa boa?

— Uma coisa que aprendi sendo casado com uma médica é ouvir o que ela diz sobre as pessoas. Com certeza, ouviria o que Bernie tinha a dizer. Vale a pena ler. Existe uma tendência universal nas pessoas de falar francamente com cirurgiões. E, como eu disse, os médicos são capazes de perceber o que a maioria de nós ignoraria. Eles disseram que Suslov era inteligente, cortês e muito centrado nos negócios, mas, por baixo disso, era o tipo de pessoa em quem não se pode confiar com uma arma na mão ou, mais provavelmente, uma faca. Ele não gostava do fato de precisar dos americanos para salvar sua visão. Por outro lado, os médicos disseram que a hospitalidade foi do nível de Olimpíadas, depois que fizeram seu trabalho. A conclusão foi de que não eram completos bárbaros, o que Bernie esperava... Ele é judeu, de família polonesa, da época em que o poder era do czar, eu acho. Quer que eu peça à agência para mandar uma cópia?

Harding levou o fósforo ao cachimbo.

— Sim, gostaria de dar uma olhada nisso. Os russos são meio esquisitos, sabe. Em certo sentido, têm uma cultura maravilhosa. A Rússia é o único lugar no mundo em que uma pessoa pode viver decentemente como poeta. Eles reverenciam os poetas, e eu os admiro muito por isso, mas ao mesmo tempo... o próprio Stalin hesitava em perseguir os artistas, os que escreviam pelo menos. Lembro de um cara que viveu muitos anos mais do que se esperava. Mesmo assim, acabou morrendo em um gulag. Ou seja, a civilização deles tem seu limite.

— Sabe falar russo? Eu nunca aprendi.

O analista britânico fez sinal positivo com a cabeça.

— Pode ser uma língua magnífica para a literatura, como o grego clássico. Ela serve à poesia, mas esconde uma aptidão para a barbárie de fazer o sangue gelar. Os russos são bem previsíveis em diversos sentidos, principalmente em relação às decisões políticas, dentro de um limite. Sua imprevisibilidade está em colocar em posições contrárias o conservadorismo inerente e a perspectiva política dogmática. Nosso amigo Suslov está gravemente doente, com problemas cardíacos decorrentes do diabetes, eu acho, mas quem vem atrás dele é Mikhail Yevgeniyevich Alexandrov, russo e marxista em partes iguais, dotado da moral de Lavrenti Beria. Ele odeia o Ocidente totalmente. Como são velhos, velhos amigos, acredito que ele tenha recomendado a Suslov que aceitasse a cegueira antes de recorrer a médicos americanos. E esse tal de Katz sendo judeu não deve ter ajudado. Ou seja, não é um cara muito agradável. Quando Suslov se for em poucos meses, ele será o novo ideólogo do Politburo. Dará apoio a Yuriy Vladimirovich em qualquer coisa que quiser, mesmo que seja um ataque físico a Sua Santidade.

— Acha mesmo que pode chegar tão longe? — perguntou Jack.

— Se pode? Provavelmente sim.

— Tudo bem. Essa carta já foi enviada a Langley?

Harding sinalizou que sim.

— O chefe do seu escritório veio pegá-la hoje. Acredito que seu pessoal tenha as próprias fontes, mas não há razão para arriscar.

— Concordo. Se Ivan fizer alguma coisa tão radical, haverá consequências terríveis.

— Talvez sim, mas eles não veem as coisas do mesmo jeito que nós, Jack.

— Sei disso. Acontece que é difícil imaginar tudo completamente ao contrário.

— Leva algum tempo — concordou Simon.

— Ler poesia russa ajuda? — perguntou Ryan.

Ele conhecia muito pouco daquilo, e apenas em traduções, que não é maneira certa de ler poesia. Harding balançou a cabeça.

— Na verdade, não. É assim que alguns deles protestam. E esses protestos precisam ser dissimulados, para que os leitores ignorantes possam apenas se deleitar com os tributos líricos à figura de uma jovem, sem notar o grito por liberdade de expressão. Deve existir um setor inteiro da KGB dedicado a analisar os poemas em busca de conteúdo político escondido, ao qual ninguém presta atenção específica, até que os membros do Politburo notam que o conteúdo sexual é um pouco explícito demais. Eles são um bando de pudicos, sabe... É bem curioso da parte deles ter esse tipo de moralidade e nenhuma outra.

— Bem, não se pode criticá-los por desaprovarem Debbie does Dallas1 — comentou Ryan.

Harding quase se engasgou com a fumaça do cachimbo.

— Claro. Não é exatamente um Rei Lear. Afinal, eles produziram Tolstoy, Chekhov e Pasternak.

Jack não tinha lido nenhum deles, mas não pareceu um bom momento para confessar.

 

 

— ELE DISSE O QUÊ? — perguntou Alexandrov.

A reação era previsível, mas incrivelmente controlada, pensou Andropov. Talvez ele só levantasse a voz diante de plateias maiores ou, mais provavelmente, de seus subordinados no prédio da secretaria do partido.

— Aqui estão a carta e a tradução — disse o diretor da KGB.

O principal candidato a ideólogo do Politburo pegou as mensagens e leu vagarosamente. Não queria que sua fúria perdesse qualquer nuance. Andropov acendeu um Marlboro enquanto esperava. Notou que o visitante não tocara na vodca que lhe servira.

— Este homem santo está se tornando ambicioso — afirmou Alexandrov, finalmente, colocando os papéis na mesa de café.

— Tenho de concordar com isso — disse Yuriy.

— Será que ele se sente invulnerável? Será que não sabe que tais ameaças trazem consequências? — continuou Alexandrov, com tom de estupefação.

— Meus especialistas acreditam que suas palavras são genuínas e acham que ele não teme as possíveis consequências.

— Se é o martírio que ele deseja, talvez devamos atendê-lo...

A maneira como sua voz se dissipou provocou um arrepio até no normalmente impassível Andropov. Era hora de alertá-lo. O problema dos ideólogos era que suas teorias nem sempre levavam a realidade devidamente em consideração, um fato para o qual permaneciam quase sempre cegos.

— Mikhail Yevgeniyevich, tais ações não devem ser empreendidas levianamente. Pode haver consequências políticas.

— Não, nenhuma muito grave, Yuriy. Nenhuma muito grave — respondeu Alexandrov.

— Mas, sim, concordo, a resposta que daremos deve ser pensada com cuidado antes de tomarmos as medidas necessárias.

— O que o camarada Suslov pensa? Já o consultou?

— Misha está muito doente — respondeu Alexandrov, sem demonstrar muito pesar.

Andropov ficou surpreso. Seu convidado devia muito ao superior enfermo. Mas aqueles ideólogos viviam em seus próprios mundinhos fechados. — Temo que sua vida esteja chegando ao fim.

A segunda parte não o surpreendeu. Bastava observá-lo nas reuniões do Politburo.

Suslov carregava uma expressão de desespero típica de quem sabe que seu tempo está acabando. Ele queria endireitar o mundo antes de partir, mas também sabia que esse feito estava além de sua capacidade, um fato de que tivera consciência com desagradável surpresa. Será que finalmente entendera que o marxismo-leninismo era um caminho equivocado? Andropov chegara àquela conclusão uns cinco anos antes. Mas aquele não era o tipo de assunto que se discutia no Kremlin. E muito menos com Alexandrov.

— Ele tem sido um bom camarada por todos estes anos. Se o que diz for verdade, sua falta será fortemente sentida — comentou o diretor da KGB, de maneira sensata, ajoelhando-se no altar da teoria marxista e de seu pregador à beira da morte.

— Isso é verdade — concordou Alexandrov, fazendo seu papel, a exemplo de seu anfitrião e de todos os membros do Politburo, porque era isso o que se esperava... Porque era necessário, e não porque fosse verdade, ou mesmo chegasse perto disso.

Como seu convidado, Yuriy Vladimirovich acreditava não por realmente acreditar, mas porque o que fingia acreditar era a fonte do que o interessava: o poder. O que diria aquele homem agora?, pensou o diretor. Andropov precisava dele, e era igualmente necessário a Alexandrov, talvez até mais. Mikhail Yevgeniyevich não possuía o poder pessoal indispensável para se tornar secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Era respeitado devido ao conhecimento teórico e à devoção ao estado religioso em que o marxismo-leninismo se transformara, mas ninguém que se sentava ao redor da mesa o considerava um candidato apropriado à liderança. Seu apoio, entretanto, seria vital para qualquer um que tivesse essa ambição. Como nos tempos medievais, quando o filho mais velho se tornava o senhor feudal e o segundo filho assumia a diocese local, Alexandrov, da mesma forma que Suslov em seu tempo, devia prover a justificativa espiritual — seria esta a palavra certa? — para sua ascensão ao poder. O sistema de equilíbrio de forças continuava existindo, só que mais perverso do que antes.

— É claro que você assumirá o lugar dele quando chegar a hora — disse Andropov, como se prometesse uma aliança.

Alexandrov, obviamente, opôs-se à sugestão... ou pelo menos fingiu.

— Há muitos homens de qualidade na secretaria do partido.

O diretor do Comitê de Segurança do Estado agitou as mãos em objeção.

— Você é o mais experiente e o que desfruta de maior confiança.

Coisa que Alexandrov sabia muito bem.

— Você é muito gentil por dizer isso, Yuriy. Então, o que faremos a respeito desse polonês estúpido?

Colocado de maneira tão grosseira, aquilo seria o preço da aliança. Para obter o apoio de Alexandrov para o secretariado geral, Andropov teria que fortalecer a redoma em volta do ideólogo... fazendo algo em que já estava pensando, de qualquer maneira. Seria indolor. O diretor da KGB adotou um tom de voz clínico e objetivo: — Misha, empreender uma operação desse tipo não é como realizar um exercício simples ou trivial. É preciso planejá-la meticulosamente, prepará-la com toda cautela e diligência. E o Politburo deve aprová-la de olhos abertos.

— Você já deve ter algo em mente...

— Já pensei em várias coisas, mas uma divagação não é um plano. Para seguir em frente, precisamos pensar e planejar com maior profundidade, somente para ver se algo desse tipo é possível. Um passo cuidadoso de cada vez — alertou Andropov. — Mesmo assim, não há garantias ou promessas. Não se trata de um plano para a produção de um filme. O mundo real, Misha, é complexo.

Era o mais perto que ele podia chegar de dizer a Alexandrov que não se afastasse muito de seu mundinho de teorias e brinquedos e entrasse no mundo real de sangue e consequências.

— Bem, você é um bom membro do partido. Sabe o que está em jogo. — Com essas palavras, Alexandrov dizia ao seu anfitrião o que a secretaria do partido esperava. Para Mikhail Yevgeniyevich, o partido e suas convicções eram o Estado — e a KGB era a espada e o escudo do partido. Curiosamente, percebeu Andropov, o papa polonês com certeza se sentia da mesma forma em relação a suas crenças e sua visão de mundo. Mas aquelas crenças, de maneira estrita, não eram uma ideologia, eram? Bem, para estes propósitos, talvez sejam, disse a si mesmo.

— Meu pessoal vai cuidar disso com muito cuidado. Não podemos fazer o impossível, Misha, mas...

— Mas o que seria impossível para esta agência do Estado soviético? — Era uma pergunta retórica com uma resposta perversa. E perigosa, muito perigosa, concluiu o acadêmico.

Como os dois eram parecidos, pensou o diretor da KGB. Aquele à sua frente, bebendo confortavelmente sua Starka, acreditava de modo inabalável em uma ideologia que não podia ser provada. E queria a morte de um homem que também acreditava em coisas que não podia provar. Que situação curiosa. Uma batalha de ideias, Uma batalha de ideias, os dois lados temendo um ao outro. Temendo? O que Karol temia? Certamente não a morte. Ele procurava o martírio. Varsóvia afirmava isso nas entrelinhas. Ele clamava em voz alta pela morte. Por que um homem buscaria aquilo?, perguntou-se o diretor. Para usar sua vida ou a morte contra os inimigos. Ele claramente considerava a Rússia e o comunismo inimigos, a primeira por razões nacionalistas e o segundo por suas convicções religiosas... Mas ele temia aquele inimigo?

Não, provavelmente não, admitiu Yuriy Vladimirovich a si mesmo. Isso tornava o trabalho mais difícil. A agência precisava do medo para alcançar seus objetivos. O medo era a fonte do poder, e um homem que não tinha medo era um homem que não podia ser manipulado... Mas os que não podiam ser manipulados sempre podiam ser mortos. Quem, afinal, lembrava de Leon Trotsky?

— Poucas coisas são verdadeiramente impossíveis. Algumas são apenas difíceis — concordou o diretor, finalmente.

— Então você vai estudar as possibilidades?

Ele assentiu com cautela.

— Sim, começaremos de manhã.

E então os procedimentos tiveram início.

 

_______________

1 Filme pornô.


3

 


INVESTIGAÇÕES

 

— BEM, JACK CONSEGUIU uma mesa em Londres — disse Greer aos companheiros do sétimo andar.

— Ótima notícia — comentou Bob Ritter. — Acha que ele sabe o que deve fazer com isso?

— Bob, qual é o problema entre você e Ryan? — perguntou o DDI.

— Seu menino louro está subindo muito rápido. Um dia vai acabar caindo e vai haver um grande estrago.

— Quer que eu o transforme em mais um burocrata sem importância?

James Greer tinha de suportar as frequentes queixas de Ritter sobre o tamanho e o consequente poder da Diretoria de Inteligência. — Você também conta com algumas estrelas em ascensão. Esse garoto tem potencial e vou deixá-lo correr até que encontre um muro.

— Claro, já posso até ouvir o barulho — resmungou o DDO. — Bem, qual das joias da coroa ele quer entregar aos nossos primos britânicos?

— Nada muito importante. A avaliação de Mikhail Suslov feita pelos médicos do Johns Hopkins quando foram lá consertar os olhos dele.

— Eles já não têm esse material? — perguntou o juiz Moore. Não era um documento ultraconfidencial.

— Acho que nunca pediram. Mas que se dane, Suslov não vai durar muito mesmo, pelo que temos visto.

A CIA dispunha de muitos meios para determinar a saúde de oficiais soviéticos de alta patente. O mais comum era obter fotografias ou, melhor ainda, vídeos da pessoa em questão. A agência empregava médicos, quase sempre professores de importantes escolas de medicina, para que analisassem as fotos e diagnosticassem as doenças a pelo menos cinco mil quilômetros de distância deles. Não era uma forma adequada de medicina, mas era melhor do que nada. Além disso, na volta de cada viagem ao Kremlin, o embaixador americano ditava suas impressões de tudo o que vira, por mais insignificantes que parecessem. Mais de uma vez, houve pressão para que se colocasse um médico no posto de embaixador, mas isso nunca aconteceu.

Frequentemente, operações diretas tinham como objetivo coletar amostras de urina de importantes estadistas estrangeiros, já que a urina era uma boa fonte de informação em termos de diagnóstico. Isso levou à realização de algumas modificações incomuns no encanamento da Blair House, logo em frente à Casa Branca, onde os dignitários estrangeiros ficavam normalmente alojados, e a tentativas singulares de invadir consultórios médicos no mundo todo. E havia as fofocas, sempre havia as fofocas, principalmente por lá. Tudo isso advinha do fato de que a saúde de uma pessoa exercia um papel relevante no raciocínio e na tomada de decisão. Os três homens que estavam naquele escritório já haviam sugerido, de brincadeira, a contratação de ciganas e suspeitavam que os resultados não seriam menos precisos do que os obtidos com profissionais de inteligência muito bem pagos. Em Fort Meade, Maryland, era mantida uma operação chamada STARGATE, na qual a agência empregava pessoas ainda mais de esquerda do que os ciganos. Ela tinha sido criada porque os soviéticos também empregavam esse tipo de gente.

— Qual é a gravidade da doença? — perguntou Moore.

— Pelo que vi há três dias, ele não chegará ao Natal. Dizem que é insuficiência coronária aguda. Temos uma foto dele tomando algo que parece ser um comprimido de nitroglicerina, o que não é um bom sinal para o Mike Vermelho — relatou James Greer, mencionando o apelido de Suslov na agência.

— E Alexandrov o substituirá? Um acordo? — comentou Ritter. — Acho que os ciganos o trocaram no nascimento... outro legítimo seguidor do Grande Deus Marx.

— Não podemos ser todos batistas, Robert — lembrou Arthur Moore.

— Isto chegou de Londres há duas horas pelo fax seguro — disse Greer, passando as folhas de papel. Ele guardara a melhor parte para o final. — Pode ser importante.

Bob Ritter era capaz de ler rápido em diversas línguas.

— Meu Deus!

O juiz Moore avaliou o material com calma. Como os juízes devem fazer, pensou.

Cerca de vinte segundos depois, disse: — Meu Deus. — Fez uma pausa. — Nossas fontes não têm nada sobre isso?

Ritter se mexeu na cadeira.

— Isso leva tempo, Arthur, e os Foley ainda estão se acomodando.

— Presumo que vamos receber algo sobre isso do CARDEAL.

Eles não se referiam ao codinome daquele agente com muita frequência. No panteão das joias da coroa da CIA, ele era o diamante Cullinan.

— Receberemos, se Ustinov falar sobre o assunto, como espero que faça. Se fizerem algo a respeito...

— E farão, cavalheiros?

— Com certeza pensarão no assunto — opinou Ritter, sem hesitar.

— É um grande passo a ser dado — disse Greer, mais ponderado. — Você acha que Sua Santidade está buscando isso? Poucos homens vão até o tigre, abrem a porta da jaula e fazem caretas para ele.

— Tenho que mostrar isso ao presidente amanhã. — Moore parou para pensar um instante. A reunião semanal na Casa Branca estava marcada para as dez da manhã seguinte. — O núncio papal está fora da cidade, não é?

Ninguém sabia responder. Ele teria que pedir que providenciassem a informação.

— De qualquer forma, o que diria a ele? — perguntou Ritter. — É de se imaginar que os outros caras em Roma tentaram convencê-lo a desistir disso.

— James?

— Isso parece nos levar a Nero, não acham? É quase como se ele estivesse ameaçando os russos com sua própria morte... Maldição, será que as pessoas realmente pensam assim?

— Quarenta anos atrás, colocava-se a vida em risco, James.

Greer havia servido em frotas navais na Segunda Guerra e costumava usar uma miniatura de seus golfinhos dourados na lapela do paletó.

— Arthur, eu arrisquei, junto com todo mundo no barco. Eu não disse a Tojo onde eu estava numa carta pessoal. ".

— O homem tem colhões, amigos — comentou Ritter. — Já vimos esse tipo de coisa antes. Dr. King nunca deu um passo atrás na vida, deu?

— E creio que a KKK era tão ameaçadora para ele quanto a KGB é para o papa — disse Moore, completando o raciocínio. — Os homens de batina veem o mundo de modo diferente. Acho que se chama virtude. — Ele se aproximou. — Tudo bem, quando o presidente me perguntar sobre isso, e podem ter certeza de que perguntará, o que digo a ele?

— Que nossos amigos russos podem simplesmente achar que Sua Santidade já viveu demais — respondeu Ritter.

— É uma medida perigosa e de proporções grandes demais — discordou Greer. — Não é o tipo de coisa que um comitê faça.

— Esse comitê pode muito bem fazer — disse o DDO ao DDI — O preço seria imensurável, Bob. Eles sabem disso. Esses homens são jogadores de xadrez, não apostadores.

— A carta os deixa encurralados — rebateu Ritter. — Juiz, acho que a vida do papa pode estar em perigo.

— É cedo demais para afirmar isso — disse Greer.

— Não se lembrarmos quem está no comando da KGB. Andropov é um homem do partido. Toda a sua lealdade é devotada à instituição, não a qualquer coisa que possa reconhecer como um princípio. Se isso os assustar, ou meramente deixá-los preocupados, pensarão na possibilidade. O papa lhes fez um desafio, cavalheiros — disse o diretor de Operações. — Eles podem muito bem aceitá-lo.

— Algum papa já fez isso? — perguntou Moore.

— Renunciar à função? Não que eu me lembre — disse Greer. — Nem sei se existe um mecanismo para isso. Mas tenho que admitir que é um gesto extraordinário. Devemos presumir que está disposto a concretizá-lo. Não vejo como blefe.

— Não, não pode ser um blefe — concordou o juiz Moore.

— Ele é leal a seu povo. Tem que ser. Ele já foi um padre de paróquia. Batizou bebês, realizou casamentos. Ele conhece essas pessoas. Não como uma massa disforme; ele esteve lá para batizar e enterrar essas pessoas. São seu povo. Provavelmente considera toda a Polônia sua paróquia. Se ele será leal a eles, mesmo com sua vida em risco? Como deixaria de ser? — Ritter se inclinou para a frente. — Não é só uma questão de coragem pessoal. Se ele não fizer, a Igreja Católica será humilhada. Não, gente, ele fala sério e não está blefando. A questão é: que diabos podemos fazer a respeito?

— Avisar aos russos? — cogitou Moore em voz alta.

— Impossível — respondeu Ritter. — Você sabe muito bem disso, Arthur. Se montarem uma operação, haverá mais agentes infiltrados do que qualquer coisa que a máfia já tenha feito. Como você acha que é a segurança em volta dele?

— Não faço ideia — admitiu o DCI. — Sei que existe a Guarda Suíça, em seus bonitos uniformes e lanças... Eles não tiveram que agir uma vez?

— Acho que sim — respondeu Greer. — Alguém tentou matá-lo e eles lutaram numa ação de retaguarda enquanto ele escapava. A maioria acabou morrendo.

— Agora eles basicamente posam para fotos e dizem às pessoas onde fica o banheiro — disse Ritter. — Mas deve haver algo que eles façam. O papa é uma pessoa muito proeminente para não atrair eventuais malucos. Teoricamente, o Vaticano é um Estado soberano. Deve haver alguns mecanismos país. Suponho que possamos alertá-los...

— Só quando houver algo a alertar. O que não temos, certo? — disse Greer. — Ao enviar isso, ele sabia que provocaria reações. Qualquer que seja a proteção que ele tenha já deve estar em alerta.

— Isso vai chamar a atenção do presidente. Ele vai querer saber E vai querer opções. Por Deus, desde que ele fez aquele discurso sobre o Império do Mal, há problemas por toda parte. Se eles realmente fizerem alguma coisa, mesmo que não possamos apontá-los como culpados, ele vai entrar em erupção como o monte Santa Helena. Há quase cem milhões de católicos aqui nos Estados Unidos e muitos votaram nele.

Greer imaginava o quanto aquilo podia ficar fora de controle.

— Senhores, tudo o que temos até aqui é este fax da cópia da carta entregue ao governo em Varsóvia. Não sabemos ao certo se já chegou a Moscou. Não temos qualquer sinal de reação por parte deles. Neste momento, não podemos mostrar aos russos que sabemos disso, e também não podemos alertá-los. Não podemos revelar nossas cartas de modo algum. Pela mesma razão, não podemos contar ao papa que estamos preocupados. Se Ivan tomar uma atitude, esperemos que o pessoal do Bob nos informe. Além disso, o Vaticano tem seu próprio serviço de inteligência, e sabemos que é bem razoável. Resumindo, tudo o que temos nesse instante é uma informação interessante, que provavelmente é verdadeira, mas nem isso foi confirmado ainda.

— Então, acha que, por enquanto, devemos apenas esperar e analisar tudo isso? — perguntou Moore.

— Não há nada mais que possamos fazer, Arthur. Ivan não vai agir tão rápido. Ele nunca faz isso... não com algo desse nível de importância política. Bob?

— Sim, você provavelmente tem razão — concordou o DDI. — Mesmo assim, o presidente precisa saber.

— O que temos é meio insignificante para tanto — ponderou Greer —, mas, sim, acho que é necessário. — Ele sabia que, se não contassem ao presidente e depois acontecesse algo catastrófico, todos eles estariam procurando emprego. — Se isso for adiante em Moscou, teremos mais informação antes que qualquer coisa drástica ocorra.

— Ótimo, posso dizer isso a ele — assentiu Moore. — Senhor presidente, estamos acompanhando a situação de perto. Aquele tipo de coisa normalmente funcionava. Moore chamou a secretária e pediu café. No dia seguinte, às 10, no Salão Oval, eles fariam o relatório ao presidente. E, depois do almoço, seria reunião semanal com os chefes dos outros serviços — a Agência de Inteligência de Defesa (DIA) e a Agência de Segurança Nacional (NSA) — para saberem o que tinha acontecido de interessante. A ordem deveria ser inversa, mas era assim que se programavam as coisas.

 

 

SEU PRIMEIRO DIA no trabalho se prolongara um pouco mais do que o esperado, até que pudesse ir embora. Ed Foley estava impressionado com o metrô de Moscou. O decorador devia ser o mesmo maluco que concebera a alvenaria em forma de bolo de casamento da Universidade Estadual de Moscou — obviamente querida por Joe Stalin, cujo senso pessoal de estética ia de A a Z. Lembrava estranhamente os palácios czaristas, reinterpretados por um alcoólatra em estado terminal. Fora aquilo, o metrô era uma obra soberba de engenharia, embora um pouco tosca. Mais importante que isso, a aglomeração de pessoas agradava muito ao espião. Entregar ou receber alguma coisa de um agente não seria excessivamente complicado, desde que se ativesse ao treinamento, e Edward Francis Foley era bom nisso. Agora ele tinha certeza de que Mary Pat ia adorar o lugar. O ambiente seria para ela como a Disney World para o pequeno Eddie. A multidão toda falando russo. Embora seu russo fosse razoável, o dela era literário, aprendido no colo do avô. Mas ela teria que ajustá-lo para não ser notada como uma pessoa cujos talentos linguísticos eram um pouco bons demais para a esposa de um assessor secundário da embaixada.

O metrô funcionava a contento para ele. Com uma estação a poucos quarteirões da embaixada e outra praticamente na porta do seu apartamento, nem o mais paranoico dos espiões da Segunda Diretoria consideraria suspeito o fato de usar o transporte público, mesmo levando-se em conta a notória paixão dos americanos por carros. Ele não circulava mais do que um turista comum, mas havia alguém o seguindo. Provavelmente mais de um naquele momento. Tratava-se de um novo funcionário da embaixada, e os russos iam querer saber se seu comportamento era de espião. Então decidira se portar como um americano inocente no exterior — o que poderia ser ou não a mesma coisa para eles. Dependia da experiência do espião que estava atrás dele, e não havia como saber isso. Certamente, alguém o estava seguindo há algumas semanas.

Era um incômodo esperado. Aconteceria o mesmo a Mary Pat e, provavelmente, até a Eddie. Os soviéticos eram paranoicos, mas ele não podia reclamar. Não mesmo.

Afinal, sua tarefa era penetrar nos mais profundos segredos do país. Era o novo Station Chief, o chefe do escritório da CIA, mas devia agir de maneira furtiva. Aquela era uma das novas e mais criativas ideias de Bob Ritter. Normalmente, não se esperava que a identidade do chefe da espionagem em uma embaixada fosse um segredo. Cedo ou tarde, todos acabavam desmascarados, de uma maneira ou de outra, quer atraídos por uma isca falsa ou como resultado de um erro operacional. Era como perder a virgindade: uma vez perdida, nunca haveria volta. No entanto, a agência só raramente usava um casal em ações de campo, e ele levara anos construindo seu disfarce. Formado na Fordham University, Ed Foley fora recrutado ainda jovem. Passara por uma verificação de antecedentes feita pelo FBI e depois trabalhara como repórter no New York Times. Fizera algumas matérias interessantes, mas não muitas, e acabara recebendo o conselho de que, embora o Times não tivesse intenção de demiti-lo, talvez fosse melhor procurar emprego em jornal menor, onde pudesse crescer por conta própria. Ele aceitara a sugestão e conseguira uma posição no Departamento de Estado como adido de imprensa, um trabalho que garantia salário decente de burocrata, ainda que sem um futuro muito promissor. Sua função oficial na embaixada seria se aproximar dos principais correspondentes estrangeiros dos grandes jornais e redes de TV americanos, dando-lhes acesso ao embaixador e outras autoridades da embaixada e depois manter-se fora do caminho enquanto eles enviavam suas importantes matérias.

Sua tarefa mais importante era parecer competente, porém pouco mais que isso. O correspondente do Times já estava espalhando aos colegas que Foley não demonstrara o necessário para se destacar como jornalista no "principal jornal americano" e, como ainda não tinha idade para dar aulas — o outro destino tranquilo para repórteres incompetentes —, estava fazendo a segunda pior coisa possível: ser escória do governo. Ele tinha que incentivar essa arrogância, consciente de que a KGB consultaria o corpo de imprensa americano para conhecer sua avaliação do pessoal da embaixada. O melhor disfarce para um espião era ser considerado apático e obtuso, porque pessoas apáticas e obtusas não eram capazes de ser espiãs. Por isso era grato a Ian Fleming e aos filmes que inspirou. James Bond era um rapaz inteligente; Ed Foley, não. Ed Foley era um funcionário. O curioso é que os soviéticos, cujo país inteiro era governado por funcionários apáticos, quase sempre caíam naquela história tão facilmente quanto alguém que tivesse acabado de sair de uma fazenda de criação de porcos no Iowa.

Não há nada previsível no negócio da espionagem... exceto aqui, pensou Foley consigo mesmo. A única coisa que se podia ter certeza em relação aos russos era a previsibilidade. Tudo era escrito em um grande livro e todos jogavam de acordo com aquele livro.

Foley entrou no vagão, observando os outros passageiros, analisando seus olhares. A roupa o caracterizava como estrangeiro como a auréola cintilante sobre a cabeça de um santo num quadro renascentista.

— Quem é você? — perguntou uma voz neutra, para surpresa de Foley.

— Perdão? — respondeu ele, em russo, mas com o sotaque carregado.

— Ah, americano.

— Da, isso mesmo. Trabalho na embaixada americana. Este é meu primeiro dia. Sou novo em Moscou.

Espião ou não, Foley sabia que a única coisa sensata a fazer era conduzir aquilo de maneira objetiva.

— Está gostando daqui? — perguntou o inquiridor.

Ele parecia um burocrata, talvez um agente de contraespionagem da KGB ou um freelancer. Ou apenas um funcionário de uma empresa estatal que sofria de curiosidade. Havia alguns assim. Será que um cidadão comum o abordaria? Foley concluiu que provavelmente não. A atmosfera tendia a limitar a curiosidade ao espaço entre os ouvidos das pessoas... embora os russos fossem muito curiosos em relação a americanos de todo tipo. Orientados a desprezá-los ou até odiá-los, os russos frequentemente os encaravam da mesma forma que Eva em relação à maçã.

— O metrô é bem impressionante — respondeu Foley, olhando ao redor tão naturalmente quanto possível.

— De onde é, nos Estados Unidos?

— Nova York.

— Você joga hóquei no gelo em seu país?

— Ah, claro! Sou torcedor dos New York Rangers desde criança. Quero assistir ao hóquei daqui. — Era tudo verdade. O jogo de passes dos russos era a coisa mais próxima de Mozart no mundo dos esportes. — O pessoal da embaixada me disse hoje que tem ingressos para bons jogos. Do Exército Central.

— Bah! — desdenhou o moscovita. — Sou fã dos Wings.

O cara talvez seja autêntico, pensou Foley, surpreso. Os russos eram tão inflexíveis em relação a suas equipes de hóquei quanto os fãs americanos de beisebol em relação a seus times. Mas a Segunda Diretoria, por outro lado, provavelmente também tinha fãs de hóquei trabalhando lá. Ele não admitia o conceito de "cuidadoso demais", principalmente naquele lugar.

— O Exército Central é o campeão, não é?

— Eles são muito metidos. Veja o que houve com eles nos Estados Unidos.

— Lá nos Estados Unidos temos um jogo mais físico. É essa a palavra correta? Para vocês, devemos parecer hooligans, certo?

Foley tinha ido de trem a Filadélfia ver aquele jogo. Os Flyers, mais conhecidos como Valentões da Broad Street, tinham batido muito nos arrogantes visitantes russos, o que em grande parte o agradou. A equipe de Filadélfia havia até apelado para sua arma secreta, a decadente Kate Smith cantando God Bless America — o que, para aquele time, era como comer criancinhas no café da manhã. Caramba, que jogo tinha sido.

— Eles jogam duro, sim, mas não são frescos. O Exército Central pensa que é o Bolshoi, com aquele jeitinho de patinar e passar. É bom vê-los engolir a humilhação de vez em quando.

— Bem, lembro das Olimpíadas de Inverno de 1980, mas, para ser honesto, derrotar o ótimo time de vocês foi um milagre.

— Milagre! Bah! Nosso técnico estava dormindo. Nossos heróis estavam dormindo. Seus garotos jogaram com energia e venceram honestamente. Nosso técnico devia ter sido executado.

Sem dúvida, aquele cara falava como um torcedor.

— De qualquer forma, quero que meu filho aprenda a jogar hóquei aqui.

— Quantos anos ele tem?

Havia um interesse sincero nos olhos do homem.

— Quatro e meio — respondeu Foley.

— É uma boa idade para aprender a patinar. Temos muitas opções para crianças esquiarem em Moscou, não é, Vanya? — Ele olhou para o homem a seu lado, que acompanhara a conversa com uma mistura de curiosidade e desconforto.

— Preste atenção para que ele tenha bons patins — disse o outro homem. — Os de má qualidade podem causar contusões nos tornozelos.

Uma resposta tipicamente russa. Naquele país austero, o zelo pelas crianças era de uma ternura autêntica. O urso russo tinha um coração mole para as crianças, mas de granito gelado para os adultos.

— Obrigado. Certamente farei isso.

— Você vive no conjunto dos estrangeiros?

— Correto — confirmou Foley.

— Sua parada é a próxima.

— Ah, spaciba, e bom dia para vocês.

Ele abriu caminho até a porta, virando para se despedir de seus novos amigos russos.

KGB?, perguntou-se. Talvez, mas não com certeza. Ele ficaria sabendo a resposta se os visse de novo — ou não — no trem dali a um mês.

O que Ed Foley ignorava é que toda a conversa tinha sido observada por um homem a apenas dois metros de distância, segurando um exemplar do Sovietskiy Sport. Seu nome era Oleg Zaitzev, e Oleg era da KGB.

Foley saiu do vagão e seguiu a turba até a escada rolante. Em outra época, ela o levaria até um retrato de Stalin, mas este desaparecera e não fora substituído. O ar externo estava começando a refletir o frio do outono, o suficiente para proporcionar uma boa sensação depois da aglomeração dentro do metrô. Ao seu redor, pelo menos dez pessoas acenderam seus cigarros fedorentos e saíram andando em direções diferentes. Estava a apenas meio quarteirão do conjunto cercado de quadras residenciais, com a guarita de segurança e o porteiro uniformizado, que observou Foley de alto a baixo e concluiu que era americano pela qualidade do sobretudo. Como reação à chegada do morador, nem um aceno, muito menos um sorriso. Os russos não eram de sorrir. Era algo que chamava atenção de todos os visitantes americanos; a natureza aparentemente severa do povo russo parecia quase inexplicável aos estrangeiros.

 

 

A DUAS ESTAÇÕES DALI, Oleg Zaitzev pensava se deveria redigir um relatório de contato. Os oficiais da KGB eram encorajados a fazê-lo, parte como sinal de lealdade, parte para demonstrar vigilância permanente sobre o Inimigo Principal, como os Estados Unidos eram conhecidos em sua comunidade profissional. O maior objetivo era mostrar sua paranoia institucional, uma característica fomentada abertamente pela KGB.

Entretanto, Zaitzev era um burocrata por profissão e não via necessidade de gerar mais papelada irrelevante. Aquilo seria olhado, lido apressadamente, se tanto, e jogado em um arquivo qualquer por outro burocrata do escritório lá em cima, para nunca mais ser visto. Seu tempo era muito precioso para aquela coisa sem sentido. Além disso, ele sequer tinha falado com o estrangeiro. Saiu do trem na estação certa, subiu a escada rolante e enfrentou o ar gelado da noite, acendendo um cigarro Trud. Era um ato mesquinho: ele tinha acesso às lojas "fechadas" e poderia ter comprado cigarros franceses, britânicos e até americanos, mas estes eram muito caros, e seus recursos não eram tão ilimitados quanto as suas opções. Então, ele fumava os conhecidos Labor, como milhões de compatriotas anônimos. Suas roupas eram de qualidade um pouco superior à daquelas vestidas pela maioria dos camaradas, mas não muito — não a ponto de se destacar na multidão. Faltavam dois quarteirões até o prédio.

Seu apartamento era o de número 3, no primeiro andar — os americanos considerariam como segundo —, o que lhe era conveniente, já que não corria o risco de sofrer um ataque cardíaco caso o elevador estivesse parado, contratempo que acontecia ao menos uma vez por mês. Mas agora estava funcionando. A senhora que ocupava o apartamento do zelador no térreo fechara a porta, em vez de deixá-la aberta para alertá-lo sobre algum problema mecânico. Portanto, não havia nada quebrado no prédio. O que não chegava a ser razão para festa; apenas uma das pequenas coisas na vida pelas quais se devia agradecer a Deus ou a quem quer que determinasse os caprichos do destino. O cigarro apagou enquanto ele passava pela porta principal.

Zaitzev jogou a guimba na lixeira e caminhou até o elevador, que, incrivelmente, estava esperando de portas abertas.

— Boa noite, camarada Zaitzev — cumprimentou o ascensorista.

— Boa noite, camarada Glenko.

O sujeito era um aleijado, veterano da Grande Guerra Patriótica, com as medalhas para provar. Da artilharia, dizia. Provavelmente era o informante no prédio, aquele que relatava ocorrências não-usuais a outro agente da KGB, serviço pelo qual recebia uma mísera remuneração para complementar o que ganhava do Exército Vermelho como pensão. A conversa acabou ali. Glenko girou a manivela, levou o elevador suavemente até o andar de Zaitzev e abriu a porta. Dali, eram apenas cinco metros até sua casa.

Ao abrir a porta do apartamento, foi saudado pelo cheiro de repolho fervendo — então o jantar seria sopa de repolho. Nenhuma surpresa. Era um prato básico da dieta russa, ao lado do pão preto.

— Papai!

Oleg Ivanovich abaixou-se para pegar a pequena Svetlana. Ela era a luz da sua vida, com seu rosto de anjo e sorriso acolhedor.

— Como está minha pequena zaichik hoje?

Ele a segurou nos braços e aceitou seu beijo delicado.

De dia, Svetlana frequentava um centro cheio de crianças de sua idade — não era exatamente pré-escola ou creche. Sua roupa incluía as únicas peças muito coloridas que podiam ser vistas no país: um pulôver verde e calça cinza com sapatinhos vermelhos de couro. Se o acesso às lojas "fechadas" oferecia uma vantagem era pelo que Zaitzev conseguia para sua garotinha. A União Soviética sequer tinha fraldas de pano para as crianças — as mães tinham de produzi-las usando lençóis —, muito menos as descartáveis preferidas no Ocidente. Como resultado, existia uma vantagem adicional em ensinar as crianças a ir ao banheiro, o que Svetlana aprendera havia algum tempo, para alívio da mãe. Oleg seguiu o cheiro do repolho até a esposa na cozinha.

— Oi, querido — disse Irina Bogdanova, da frente do fogão. Repolho, batata e o que ele esperava ser um pouco de presunto estavam no fogo. Chá e pão. Nenhuma vodca ainda.

Os Zaitzev bebiam, mas não em excesso. Normalmente esperavam Svetlana ir para a cama. Irina trabalhava como contadora na loja de departamentos do governo. Dona de um diploma da Universidade Estadual de Moscou, era liberada no sentido ocidental, mas não emancipada. Pendurada ao lado da mesa da cozinha estava a sacola que levava dentro da bolsa, para todo lugar que fosse, sempre atenta a algo que pudesse comprar para comer ou enfeitar o apartamento sem graça. Não ser emancipada significava ficar nas filas, uma tarefa feminina na União Soviética, bem como fazer o jantar para o marido, independentemente do status profissional de um ou de outro. Ela sabia que ele trabalhava na Segurança do Estado, mas não conhecia sua função específica, apenas que esta proporcionava um salário razoavelmente adequado, um uniforme que Oleg raramente usava e uma patente que subiria em breve. Por isso, para ela, fosse o que fosse, ele fazia bem, e isso bastava. Filha de um soldado de artilharia na Guerra Patriótica, ela frequentara escolas do Estado e conseguira notas acima da média, mas não alcançara tudo que desejara. Demonstrara certo talento ao piano, porém não o bastante para ser aceita em um conservatório do Estado. Também havia tentado a literatura, mas igualmente não apresentara o talento necessário para ser publicada.

Bastante atraente, era magra para os padrões russos. Seu cabelo castanho ia até os ombros e estava habitualmente escovado. Ela lia bastante, quaisquer livros que valessem o tempo despendido, e gostava de ouvir música clássica. Ao lado do marido, ia ocasionalmente a concertos no Tchaikovsky. Oleg preferia o balé, então também iam aos espetáculos, com a ajuda, pelo que presumia Irina, de seu cargo no número 2 da Praça Dzerzhinskiy. Ele ainda não tinha um cargo tão alto para beber com os oficiais mais antigos da Segurança do Estado em festas reservadas. Talvez, esperava Irina, quando se tornasse coronel. Por enquanto, levavam a vida de classe média dos burocratas do Estado, sobrevivendo graças aos salários de ambos. Um ponto positivo era ter acesso, eventualmente, às lojas "fechadas" da KGB, onde pelo menos podia comprar coisas interessantes para ela e Svetlana. E, quem sabe, talvez pudessem ter outra criança no tempo devido. Os dois ainda eram jovens, e um menino alegraria a casa.

— Alguma novidade hoje? — perguntou Irina. Era praticamente uma piada.

— Nunca acontece nada de interessante no escritório — respondeu Oleg. Não, apenas as mensagens de sempre, de e para agentes de campo, que ele encaminhava através dos escaninhos apropriados aos entregadores internos. Estes, por sua vez, levavam o material às salas dos oficiais de controle dos andares superiores, que realmente decidiam as coisas na KGB. Um coronel muito experiente descera para conferir a operação na semana anterior, sem dar um sorriso ou pronunciar uma palavra amigável ou qualquer pergunta, durante vinte minutos, antes de desaparecer pela área dos elevadores. Oleg só percebera o status daquele homem pela pessoa que o acompanhava: o coronel responsável pelo setor. Quaisquer palavras que houvessem sido trocadas, o foram longe demais para que pudessem ser ouvidas — as pessoas tinham uma tendência a conversar sussurrando, se tanto, naquele departamento. E ele fora treinado para não demonstrar muito interesse.

Mas o treinamento tinha um limite. O major Oleg Ivanovich Zaitzev era muito perspicaz para ignorar totalmente as coisas. De fato, seu trabalho exigia algo próximo a uma capacidade crítica para ser bem-feito, mas isso tinha de ser exercido com a mesma cautela de um rato atravessando uma sala cheia de gatos. Ele sempre recorria ao superior imediato e começava com as perguntas mais simples antes de receber a aprovação. Na verdade, seus questionamentos críticos eram sempre aceitos. Oleg possuía um talento para aquilo e estava começando a obter reconhecimento. Sua promoção não estava longe. Mais dinheiro, maior acesso às lojas "fechadas" e, gradualmente, maior independência — não, isso seria demais. Talvez um limite um pouco menos rígido para o que estava autorizado a fazer. Um dia poderia até perguntar se uma mensagem para encaminhamento fazia sentido. Realmente queremos fazer isso, camarada?, quisera perguntar em inúmeras oportunidades. Decisões operacionais não eram sua responsabilidade, claro, mas ele poderia — ou viria a poder no futuro — questionar o conteúdo de uma diretiva nos termos mais oblíquos. Com frequência, vira alguma coisa sendo enviada ao oficial 457, em Roma, por exemplo, e pensara se seu país realmente estava disposto a correr o risco de a ordem de missão dar errado. E, algumas vezes, isso acontecia. Apenas dois meses antes, ele lera uma mensagem de Bonn, alertando que algo saíra errado com o serviço de contrainteligência na Alemanha Ocidental. O oficial de campo solicitara instruções com urgência — e estas foram no sentido de que continuasse a missão sem questionar a inteligência de seus superiores. Pouco depois, aquele oficial saíra do ar. Preso e executado, imaginava Oleg. Ele conhecia os nomes de alguns oficiais de campo, os de quase todas as operações e grande parte dos alvos e objetivos das ações. Mais do que isso, sabia os codinomes de centenas de estrangeiros que atuavam como agentes da KGB. Nos casos mais interessantes, era como ler um romance de espionagem. Alguns oficiais de campo tinham uma veia literária. Seus informes não eram como os comunicados concisos das autoridades militares. Não, eles gostavam de relatar o estado psicológico de seus agentes, bem como as impressões sobre as informações e a missão designada. Poderiam ser autores de diários de viagem descrevendo a situação para um público pagante. Não se esperava que Zaitzev digerisse tais informações, mas ele era um homem inteligente, e, além disso, havia códigos indicativos escondidos em cada relatório. A terceira palavra, escrita de maneira errada, poderia ser um alerta de que o oficial fora exposto.

Todo oficial tinha um sistema de códigos diferentes, e Zaitzev possuía uma lista de todos eles. Em apenas duas ocasiões, ele descobrira irregularidades, e em uma delas seus supervisores o mandaram ignorar, como se fosse um erro de digitação — algo que ainda lhe causava estranhamento. Mas o erro nunca acontecera de novo e talvez realmente tivesse sido uma falha de encriptação do oficial em questão. Afinal, como lhe dissera o superior, homens treinados no Centro não costumavam ser apanhados em campo. Eram os melhores do mundo, e os inimigos ocidentais não eram tão inteligentes, certo? Na época, o major Zaitzev aceitara aquilo, registrando seu alerta por escrito e tomando cuidado para que o registro fosse para os arquivos permanentes, desta forma se isentando de responsabilidade, como qualquer bom burocrata.

E se seu superior imediato estivesse seguindo ordens de alguma agência de espionagem ocidental? Ele pensava nisso naquele e em outros momentos, normalmente depois de tomar uns drinques diante da TV. Um comprometimento desse tipo seria perfeito. Não havia uma lista por escrito dos oficiais e agentes em qualquer parte da KGB. A "compartimentação" era um conceito inventado ali, nos anos 1920, ou até antes.

Nem o diretor Andropov tinha autorização para possuir um material desse tipo, para o caso de desertar e ir para o lado ocidental, levando a lista consigo. A KGB não confiava em ninguém, a começar pelo seu próprio diretor. Assim, curiosamente, apenas pessoas do departamento de Zaitzev tinham acesso a informações tão abrangentes. Contudo, não eram agentes operacionais, eram apenas comunicadores.

Mas o responsável pelos códigos não era sempre a primeira pessoa que a KGB tentava corromper nas embaixadas estrangeiras? Justamente porque costumava ser o funcionário que, embora incapaz de exercer qualquer função mais relevante, recebia tal incumbência? Com frequência, eram mulheres, e os oficiais da KGB recebiam treinamento para seduzi-las. Ele havia lido relatórios de casos desse tipo, alguns descrevendo a sedução explicitamente, talvez para impressionar os homens dos andares de cima com sua habilidade masculina e a extensão de sua devoção ao Estado. Ser pago para trepar com mulheres não era visto por Zaitzev como um ato particularmente heroico, mas talvez as mulheres fossem extraordinariamente feias, e realizar os deveres masculinos em tais circunstâncias podia ser difícil.

O que importava, pensou Oleg Ivanovich, era que segredos com tamanhas implicações fossem confiados a alguns funcionários — e ele era um deles. Não era divertido?

Certamente mais divertido do que a sopa de repolho, por mais nutritiva que fosse.

Então, até o Estado soviético confiava em algumas pessoas, apesar de o conceito de "confiança" ser tão distante do conceito de pensamento coletivo quanto um homem de Marte. E ele era um desses homens. Um dos resultados daquela ironia era o belo pulôver verde que sua filha usava. Ele colocou alguns livros na cadeira e pôs Svetlana sobre o topo da pilha para que ela pudesse jantar. As mãos de Svetlana eram um pouco pequenas para os talheres de alumínio-zinco, mas pelo menos estes não eram muito pesados. Ele ainda tinha de passar a manteiga no pão para ela. Era bom poder comprar manteiga de verdade.

— Vi uma coisa muito bonita na loja especial quando voltava para casa — comentou Irina, como as mulheres fazem durante o jantar, para aproveitar o bom humor dos maridos.

O repolho estava especialmente gostoso, e o presunto era polonês. Ela obviamente fizera compras na loja "fechada". Havia adquirido o hábito apenas nove meses antes, e agora pensava consigo mesma como tinha vivido sem aquilo.

— O que você comprou? — perguntou Oleg, sorvendo seu chá da Geórgia.

— Sutiãs. Suecos.

Oleg sorriu. Os sutiãs soviéticos pareciam desenhados para jovens camponesas que amamentavam bezerros em vez de crianças, ou seja, grandes demais para uma mulher de proporções mais humanas, como sua esposa.

— Quanto custaram? — perguntou, sem levantar os olhos.

— Só dezessete rublos cada.

Dezessete rublos certificados, pensou Oleg, sem corrigi-la. Rublos certificados tinham valor de fato. Em teoria, podiam ser trocados até por moeda estrangeira. Não eram como o papel sem utilidade usado para pagar operários, de valor totalmente simbólico... como tudo em seu país, na realidade.

— De que cor?

— Brancos. — Talvez a loja tivesse modelos pretos ou vermelhos, mas era raro uma mulher soviética usar peças dessas cores. As pessoas tinham hábitos muito conservadores.

Acabado o jantar, Oleg deixou a cozinha a cargo da mulher e levou sua filhinha à sala de estar e à TV. O telejornal anunciou que a colheita estava em andamento, como acontecia todo ano, com os heroicos trabalhadores das fazendas coletivas trabalhando na primeira produção de trigo do verão nas áreas do Norte, onde era preciso plantar e colher rapidamente. A safra, segundo a TV, seria boa. Ótimo, não teremos falta de pão neste inverno... provavelmente , pensou Oleg. Nunca se podia acreditar completamente no que se dizia na TV Em seguida, a cobertura das críticas à instalação de armas nucleares americanas nos países da Otan, apesar dos pedidos soviéticos de que o Ocidente desistisse dessa ação desnecessária, desestabilizadora e ofensiva. Zaitzev sabia que os SS-20 soviéticos estavam sendo instalados em outros lugares, mas estes não eram, de forma alguma, desestabilizadores. A grande atração na TV, naquela noite, era Nós servimos à União Soviética, sobre operações militares e bravos jovens soviéticos servindo à pátria. Haveria uma rara cobertura de homens cumprindo seu "dever internacional" no Afeganistão. Os meios de comunicação soviéticos não costumavam cobrir o assunto, e Oleg estava curioso para ver o que mostrariam. Ocasionalmente, havia discussões durante o almoço, no trabalho, em relação à guerra no Afeganistão. Ele preferia ouvir falar, já que fora dispensado do serviço militar, algo pelo qual não se lamentava nem um pouco. Ouvira muitas histórias sobre a brutalidade eventual nas unidades de infantaria, e, além disso, os uniformes não eram nada atraentes. Seu uniforme da KGB, raramente usado, bastava. Mesmo assim, imagens contavam histórias que meras palavras não conseguiam contar, e ele tinha um olho aguçado para perceber detalhes, como sua função exigia.

 

 

— SABE, TODO ANO SE COLHE TRIGO no Kansas, e isso nunca aparece no telejornal da noite na ABC — disse Ed Foley à mulher.

— Suponho que conseguir se alimentar seja um grande feito para eles — comentou Mary Pat. — Como estão as coisas no escritório?

— Devagar.

Foley balançou os braços, dando a entender que nada de interessante acontecera.

Em breve, ela teria que dirigir pela cidade procurando sinais de alerta. Eles estavam trabalhando com o agente CARDEAL em Moscou; ele era sua atribuição mais importante. O coronel sabia que ele teria novos operadores. Acertar aquela missão seria uma tarefa delicada, mas Mary Pat estava acostumada a cuidar das tarefas complicadas.


4

 


APRESENTAÇÕES

 

ERAM CINCO DA TARDE em Londres, meio-dia em Langley, quando Ryan acionou o telefone seguro e ligou para os Estados Unidos. Ele teria que se acostumar ao fuso horário. Como muitas pessoas, descobrira que seus períodos criativos tendiam a se dividir em duas partes. As manhãs eram melhores para digerir informações, enquanto os fins de tarde favoreciam a contemplação. O almirante Greer tinha uma propensão parecida, e, desta forma, Jack ficaria desajustado em relação à rotina de trabalho do chefe, o que não seria bom. Ele também precisaria se adaptar à mecânica do manuseio de documentos. Estava no serviço público havia tempo suficiente para saber que nunca seria tão fácil quanto desejava — ou tão simples quanto devia ser.

— Greer — atendeu uma voz, depois de estabelecida a conexão segura.

— É Ryan, senhor.

— Como estão as coisas na Inglaterra, Jack?

— Ainda não vi a chuva. Cathy vai começar no novo emprego amanhã de manhã.

— E Basil, como está?

— Não posso me queixar da hospitalidade, senhor.

— Onde você está agora?

— Na Century House. Me deram um escritório no andar superior com um cara do grupo de trabalho da Rússia.

— Aposto que gostaria de ter um aparelho seguro em casa.

— Boa lembrança, senhor.

O desgraçado era muito bom em ler mentes.

— Do que mais precisa?

— Nada me vem à cabeça neste momento, almirante.

— Já viu algo interessante?

— Ainda estou me ajeitando. O grupo da Rússia parece bom. O cara com quem estou trabalhando, Simon Harding, sabe ler as cartas da mesa muito bem — disse Ryan, satisfeito por Simon estar longe dali no momento. Claro que o telefone podia estar grampeado... não, não fariam isso com um Cavaleiro Comendador da Ordem Vitoriana... ou fariam?

— As crianças estão bem?

— Sim, senhor. Sally está tentando entender a TV local.

— Crianças costumam se adaptar muito bem.

Melhor do que os adultos.

— Vou mantê-lo informado, almirante.

— O documento de Hopkins deve estar em sua mesa amanhã.

— Obrigado. Acho que vão gostar disso. Bernie disse algumas coisas interessantes. Quanto à questão do papa...

— O que nossos primos estão dizendo?

— Estão preocupados. Eu também estou. Acho que Sua Santidade balançou a jaula bem forte. Acredito que Ivan notará.

— O que Basil diz?

— Pouca coisa. Não sei que recursos eles têm no local. Imagino que estejam esperando para ver o que conseguem descobrir. — Jack fez uma pausa. — Alguma coisa do nosso lado?

— Ainda não — respondeu Greer. Nada ainda era um avanço em relação a Nada de que eu possa falar com você. Será que o almirante Greer confia realmente em mim agora?, pensou Jack. Certamente Greer gostava dele, mas acreditava mesmo que ele era um bom analista? Talvez aquela estada em Londres fosse, se não um treinamento, uma segunda passagem pelo ciclo básico, onde os fuzileiros navais comprovavam se jovens com divisas de tenente tinham o necessário para liderar homens no campo de batalha. Era considerada a escola mais rigorosa para fuzileiros. Não fora fácil para Ryan, mas ele conseguira se formar entre os melhores da turma. Talvez tivesse sido apenas sorte... Ele não servira tempo suficiente para descobrir, graças a um CH-46 avariado sobre a Ilha de Creta, um episódio que ainda o atormentava em pesadelos ocasionais. Felizmente, seu sargento de artilharia e um oficial médico da Marinha conseguiram estabilizá-lo, mas Jack ainda sentia um frio na espinha ao pensar em helicópteros. — Me diga o que acha, Jack.

— Se meu trabalho fosse manter o papa vivo, estaria um pouco apreensivo. Os russos sabem jogar duro quando querem. O que não sou capaz de avaliar é como o Politburo reagiria. Quero dizer, até onde iria sua determinação. Quando conversei com Basil, ele disse que tudo depende do quanto eles estão com essa ameaça, se quiser chamar de ameaça.

— Do que você chamaria, Jack? — perguntou o DDI, a 5.400 quilômetros dali.

— Agora o senhor me pegou. Suponho que seja uma espécie de ameaça à maneira de pensar deles.

— Uma espécie? Qual é a opinião deles?

Jim Greer teria sido um professor bem duro se desse aula de história ou ciências políticas a universitários. No mesmo nível do Padre Tim em Georgetown.

— É clara, almirante. É uma ameaça e eles a verão como tal. Não estou certo, porém, da gravidade que lhe atribuirão. Não é como se acreditassem em Deus. Para eles, Deus é apenas política, e a política não passa de um processo; não é um sistema de crenças do modo que entendemos.

— Jack, você tem de aprender a ver a realidade com os olhos do adversário. Sua capacidade analítica é de primeiro nível, mas você precisa trabalhar na percepção. Não estamos no mercado de ações e títulos, onde você lidava com números frios, e não com a percepção desses números. Dizem que El Greco tinha um astigmatismo que deixava tudo com uma inclinação visual. Eles também veem a realidade com lentes diferentes. Se for capaz de reproduzir isso, será um dos melhores, mas é necessário que faça essa transição em sua imaginação. Harding é muito bom nisso. Aprenda com ele a ver o interior da mente deles.

— Conhece Simon? — perguntou Jack.

— Leio seus pareceres há anos.

Nada disso é coincidência, disse Jack a si mesmo, mais surpreso do que deveria. Era a segunda lição importante do dia.

— Entendido, senhor.

— Não pareça tão surpreso, garoto.

— Aye-aye, sir — respondeu Ryan, soando como um segundo-tenente novato. Não cometerei esse erro de novo, almirante. E, naquele momento, John Patrick Ryan tornou-se um verdadeiro analista de inteligência.

— Pedirei à embaixada que lhe forneça o telefone. Você sabe como mantê-lo seguro — alertou o DDI.

— Sim, senhor. Posso fazer isso.

— Ótimo. É hora do almoço por aqui.

— Sim, senhor. Nos falamos amanhã.

Ryan colocou o fone de volta na base e depois retirou a chave de plástico da entrada do aparelho, guardando-a no bolso. Verificou o relógio: hora de ir embora. As pastas com material confidencial já haviam sido retiradas da mesa. Uma mulher passara às 4h30 com um carrinho para levá-las de volta ao arquivo central. Na hora exata, Simon apareceu.

— A que horas sai seu trem?

— Às seis e dez.

— Dá tempo para tomar uma cerveja, Jack. Pode ser?

— Parece uma boa ideia para mim. — Ele se levantou e saiu, atrás do colega.

A caminhada até o Fox and Cock, um pub muito tradicional a um quarteirão da Century House, levou apenas quatro minutos. O lugar era tradicional até demais: parecia uma relíquia dos tempos de Shakespeare, com enormes vigas de madeira e paredes de estuque. Só podia ser um estilo de arquitetura; nenhuma construção original teria resistido por tanto tempo. No interior, havia uma nuvem de fumaça de cigarro e muitas pessoas usando paletó e gravata. Era claramente um pub para pessoas de alto poder aquisitivo, e vários clientes vinham provavelmente da Century House. Harding confirmou a impressão.

— É nosso ponto de encontro. O dono trabalhava conosco. Deve ganhar mais aqui do que jamais conseguiu na agência.

Sem ter recebido muita atenção, Harding pediu duas cervejas Tetley, amargas, que chegaram rápido. Depois, levou Jack até um lugar no canto.

— Então, Sir John, o que está achando daqui?

— Nenhuma reclamação até agora. — Ele tomou um gole da cerveja. — O almirante Greer o considera muito esperto.

— E Basil acha que Greer também é bem inteligente. É bom trabalhar para ele? — perguntou Harding.

— Sim, é ótimo. Ele é capaz de ouvir e de ajudá-lo a pensar. Também não exagera quando você comete um erro. Prefere ensinar a humilhar alguém. Pelo menos, tem sido assim comigo. Alguns analistas mais experientes sofreram na mão dele, mas acho que ainda não tenho quilometragem para isso. — Ryan fez uma pausa. — Você é meu tutor aqui, Simon?

A pergunta direta surpreendeu o anfitrião.

— Não creio que seja a palavra apropriada. Sou especialista em União Soviética. Acredito que você seja mais um generalista, certo?

— Prefira aprendiz — sugeriu Ryan.

— Muito bem. E o que quer saber?

— Como pensar como um russo.

Harding riu, tomando outro gole de cerveja.

— Isso é algo que todos nós aprendemos diariamente. O ponto-chave é lembrar que, para eles, tudo é política. E política, lembre-se, tem tudo a ver com ideias nebulosas e estética. Principalmente na Rússia, Jack. Eles não podem oferecer produtos reais, como automóveis ou aparelhos de TV, então são obrigados a se concentrar em tudo que se encaixe na teoria política deles, nas palavras de Marx e Lenin. E, como se sabe, Marx e Lenin tinham conhecimento zero sobre coisas reais do mundo real. É como uma religião em fúria, só que, em vez de trovoadas ou pragas bíblicas, eles matam os apóstatas com grupos de extermínio. Em sua visão de mundo, tudo que dá errado é resultado de uma apostasia política. Sua teoria política ignora a natureza humana, e como ela é equivalente à Sagrada Escritura, impassível de erro, é a natureza humana que deve estar errada. Como pode ver, não há uma consistência lógica. Já estudou metafísica?

— No segundo ano do Boston College. Os jesuítas fazem os alunos passar um semestre estudando isso — confirmou Ryan, tomando um gole longo. — Mesmo que seja contra a vontade deles.

— Bem, o comunismo é a metafísica aplicada de forma implacável ao mundo real. Quando as coisas não funcionam, é culpa das bestas quadradas, que não cabem em seus buracos redondos. Por isso, Joe Stalin assassinou uns vinte milhões deles, em parte por causa da teoria política, em parte por causa de seus distúrbios e sua mente sanguinária. Aquele camarada insano definiu o conceito de paranoia. Quem é governado por um louco com um livro de regras distorcido acaba pagando um preço.

— Mas até que ponto a atual liderança política é fiel à teoria marxista?

Harding assumiu uma expressão pensativa.

— É essa a questão, Jack. E a resposta é que não sabemos. Todos eles afirmam acreditar, mas será que é verdade? — Ele parou por um instante, bebendo de maneira contemplativa. — Acho que só quando lhes convém. Mas isso depende de sobre quem estivermos falando. Suslov, por exemplo, acredita incondicionalmente... Mas o resto deles? Em diferentes níveis, eles acreditam e não acreditam. Creio que possamos descrevê-los como pessoas que costumavam ir à igreja todo domingo e depois perderam o hábito. Parte deles ainda acredita, porém uma parte deixou de acreditar. Eles acreditam mesmo é que a religião do Estado é fonte de poder e status. Então, diante de todos os cidadãos comuns, eles têm que parecer acreditar, porque isso é a única coisa que lhes garante poder e status.

— Inércia intelectual? — pensou Ryan, em voz alta.

— Exatamente, Jack. Primeira lei de Newton.

Uma parte de Ryan queria discordar daquele discurso. O mundo devia ter mais sentido que aquilo. Mas será que tinha? Que lei dizia isso?, perguntou a si mesmo. E quem zelava pelo cumprimento de tal lei? Era possível expressá-la de modo tão simples? O que Simon havia acabado de explicar em menos de duzentas palavras se propunha a justificar centenas de bilhões de dólares em orçamento, armamento estratégico de poder indescritível e milhões de pessoas cujos uniformes denotavam um antagonismo que exigia agressão e morte em tempo de guerra ou iminência de guerra.

Mas o mundo se baseia em ideias, boas e más, e o conflito entre aquela e a sua própria definia a realidade em que Ryan trabalhava; definia o sistema de crenças das pessoas que haviam tentado matar a ele e a sua família. E aquilo era bastante real, não? Não, não havia uma regra que forçasse o mundo a fazer sentido. As pessoas decidiam por si o que fazia sentido ou não. Então, tudo no mundo seria uma questão de percepção? Tudo seria uma questão mental? O que era a realidade?

Aquela era a questão por trás de toda a metafísica. Quando Ryan estava no Boston College, a abordagem era tão estritamente teórica que parecia não ter qualquer ligação com a realidade. Era demais para Ryan absorver aos 19 anos e, percebia agora, continuava sendo aos 32. A diferença é que as notas passaram a ser dadas em sangue humano, não em boletim escolar.

— Meu Deus, Simon. Sabe, seria muito mais fácil se eles acreditassem em Deus.

— Nesse caso, Jack, seria apenas mais uma guerra religiosa. E você deve se lembrar que estas também são situações sangrentas. Pense nisso como as Cruzadas: uma versão de Deus contra outra. Aquelas guerras já foram bastante violentas. Aqueles que realmente acreditam, em Moscou, pensam que estão seguindo a maré da história, que estão trazendo perfeição à natureza humana. Eles devem ficar loucos quando veem que seu país mal consegue se alimentar, por isso tentam ignorar o fato. Mas é difícil ignorar um estômago vazio, concorda? Então tentam colocar a culpa em nós e nos "destruidores", os traidores e sabotadores, de seu próprio país. Estas são as pessoas que acabam presas ou mortas. — Harding encolheu os ombros. — Pessoalmente os vejo como infiéis, seguidores de um falso deus. É mais fácil assim. Estudei a teologia política deles, mas isso tem valor limitado, porque, como disse antes, uma parcela muito grande não acredita verdadeiramente na solidez de seu sistema. Por vezes, eles pensam como russos tribais, cuja perspectiva de mundo sempre pareceu deturpada, pelos nossos padrões. A história russa é tão confusa que estudá-la é uma atividade limitada em termos na nossa lógica ocidental. Eles s5o xenófobos dos mais radicais, mas por razões históricas consideráveis. Sempre enfrentaram ameaças tanto do Oriente quando do Ocidente. Os mongóis, por exemplo, chegaram até o Báltico, enquanto os alemães e ingleses bateram às portas de Moscou. Como dizemos, são tipos estranhos. O que posso afirmar é que nenhum ser humano em sã consciência os quer como mestres. Uma pena. Eles têm muitos poetas e compositores primorosos.

— Flores em um jardim abandonado — comparou Ryan.

— Exato, Jack. Isso mesmo — Harding procurou o cachimbo e o acendeu com um fósforo. — E então, o que achou da cerveja?

— Excelente, muito melhor que a nossa.

— Não sei como vocês aguentam aquilo. Mas a carne americana é melhor que a da Inglaterra.

— Alimentação à base de milho. Garante uma carne melhor do que com grama. — Ryan suspirou. — Ainda estou me acostumando à vida por aqui. Toda vez que começo a me sentir aconchegado, algo me surpreende, como uma cobra escondida no meio à grama alta.

— Calma, você teve menos de uma semana para se acostumar a nós.

— Meus filhos vão começar a falar com sotaque engraçado.

— Civilizado, Jack, civilizado — corrigiu Harding, dando uma risada. — Vocês, ianques, destroem de verdade a nossa língua, sabia?

— Ah, claro. — Logo ele começaria a se referir ao beisebol como rounders, um esporte feminino aqui. Eles não entendiam nada de bolas rápidas.

 

 

DE SUA PARTE, ED FOLEY sentia-se ultrajado pelas escutas que sabia existirem em seu apartamento. Toda vez que fazia sexo com a esposa, algum estúpido da KGB estava ouvindo. Era provavelmente um passatempo perverso para os espiões inimigos, mas, pelo amor de Deus, tratava se de sua vida amorosa; não havia mais nada sagrado no mundo? Ele e Mary Pat tinham sido avisados sobre o que deveriam esperar. Sua esposa chegara até a brincar, durante a viagem, que não era possível colocar escutas em aviões.

Ela considerava aquilo uma oportunidade de mostrar aos bárbaros como as pessoas de verdade viviam. Foley até achara engraçado, só que naquele exato momento não parecia ser tão divertido. Sentia-se um animal em um maldito zoológico, com pessoas observando, rindo e apontando. Será que a KGB manteria registros da frequência com que ele e a esposa se relacionavam? É possível, pensou ele, considerando a existência de complicações matrimoniais como um pretexto para seu recrutamento ou o de Mary Pat.

Todo mundo fazia aquilo. Então, ele teria de fazer sexo regularmente somente para afastar essa possibilidade, embora dar um sinal às avessas tivesse possibilidades teóricas interessantes... O chefe do escritório decidiu, no entanto, que seria um fator complicador desnecessário durante sua estada em Moscou — e sua função já era bastante complexa.

Apenas o embaixador, o adido de defesa e seus próprios agentes conheciam a identidade de Foley. Publicamente, Ron Fielding era o chefe do escritório, assumindo a tarefa de fazer tudo para atrair as atenções. Ao estacionar o carro, ele casualmente deixava o para-sol abaixado ou virado em noventa graus; por vezes, colocava uma flor no paletó, retirando-a depois de percorrer metade do quarteirão, como se estivesse dando um sinal para alguém; ou, a melhor de todas, esbarrava nas pessoas, simulando uma entrega de documentos. Esse tipo de coisa deixava os agentes da Segunda Diretoria loucos: eles corriam atrás de moscovitas inocentes, detinham alguns para interrogatório ou colocavam uma equipe inteira no encalço de um coitado, para monitorar tudo que fazia.

A estratégia, pelo menos, obrigava a KGB a desperdiçar recursos em missões sem sentido, correndo atrás de fantasmas idiotas. Mais do que isso, convencia os russos de que Fielding era um Station Chief incapaz, o que costumava fazer o outro lado se sentir bem — e esta era sempre uma artimanha engenhosa para a CIA. Diante de seus lances, outros artifícios pareciam saídos de um jogo de damas.

Mas o fato de provavelmente haver escutas em seu quarto o deixava furioso. E ele não podia usar nenhum dos recursos para evitá-las, como ligar o rádio ou falar em pontos fora de seu alcance. Não, não podia agir como um espião treinado. Tinha de ser estúpido, e parecer estúpido exigia inteligência, disciplina e o máximo de cuidado. Nem um único erro era admissível — este erro podia levar à morte de alguém, e Ed Foley tinha uma consciência. Era perigoso, para um espião, ter consciência, mas ele não conseguia ignorá-la. Precisava se importar com seus agentes, os estrangeiros que trabalhavam para ele e lhe repassavam informações. Todos, ou quase todos, enfrentavam problemas. O principal naquele lugar era o alcoolismo. Ele já esperava de antemão que todo agente que encontrava fosse um alcoólatra. Alguns eram meio perturbados. A maioria queria apenas acertar as contas — com os chefes, o sistema, o país, o comunismo, as pessoas ou o mundo perverso inteiro. Algumas, bem poucas, poderiam ser pessoas realmente atraentes, mas Foley não as escolhia; elas o escolhiam.

E ele tinha de jogar com as cartas que recebia. As regras do jogo eram rigorosas e implacáveis. Sua vida, pelo menos, estava segura. Ah, claro, ele e Mary Pat podiam ser assediados, mas ambos portavam passaportes diplomáticos, e causar problemas sérios a eles significava que, em algum lugar dos Estados Unidos, um diplomata soviético de alto escalão poderia ter uma experiência desagradável nas mãos de bandidos de rua — que poderiam ou não ser policiais treinados. Os diplomatas não apreciavam esse tipo de coisa, e, por isso, o recurso era evitado; na verdade, os russos eram mais fiéis às regras que os americanos. Assim, ele e a esposa estavam seguros, mas seus agentes, se e quando fossem expostos, seriam tratados de forma mais impiedosa do que um rato capturado por um gato particularmente sádico. Naquele lugar, ainda existia tortura, interrogatórios que duravam longas horas. O devido processo legal consistia em qualquer coisa que apetecesse ao governo da época. E o direito à apelação dependia de a pistola do atirador estar ou não carregada. Então ele tinha de tratar seus agentes, ainda que fossem bêbados, prostitutas ou criminosos, como filhos, trocando as fraldas, oferecendo-lhes um copo d'água antes de dormir e limpando seus narizes.

Levando-se tudo em conta, pensou Ed Foley, era um jogo e tanto, que não o deixava dormir à noite. Será que os russos sabiam daquilo? Será que havia câmeras nas paredes? Isso não seria uma perversidade? Mas, se nem a tecnologia americana era tão avançada, estava certo de que a dos russos também não seria. Provavelmente. Foley tentava não esquecer que havia pessoas espertas por lá — e muitas delas trabalhavam para a KGB. O que o impressionava é que sua mulher dormia o sono dos justos, bem ali ao lado. Ela era claramente melhor agente de campo que ele; comportava-se como uma foca atrás de peixes no mar. Mas e os tubarões? Ele achava normal um homem se preocupar com a esposa, a despeito de seu talento como espiã. Os homens eram programados dessa forma, assim como ela era programada para ser mãe. Mary Pat parecia um anjo, sob a luz fraca, com o sorriso encantador que mantinha enquanto dormia e os cabelos de bebê que se desarrumavam no instante em que colocava a cabeça no travesseiro. Para os russos, era uma possível espiã, mas para Edward Foley era sua esposa amada, parceira e mãe de seu filho. Ele achava estranho como as pessoas podiam ser tantas coisas diferentes, dependendo de quem as observava, e todas estavam corretas. Depois desse pensamento filosófico — por Deus, ele precisava mesmo dormir —, Ed Foley fechou os olhos.

 

 

— ENTÃO, O QUE ELE DISSE? — perguntou Bob Ritter.

— Não ficou muito satisfeito — respondeu o juiz Moore, sem causar surpresa. — Mas ele entende que não há muita coisa que possamos fazer. Provavelmente fará um discurso na semana que vem sobre a nobreza dos trabalhadores, principalmente dos sindicalizados.

— Ótimo — comentou Ritter. — Deixe que ele conte aos controladores de tráfego aéreo. — O DDO era especialista em fazer comentários maldosos, mas tinha o bom senso de não dizer coisas desse tipo em companhia errada.

— Onde será o discurso? — perguntou o DDI.

— Em Chicago, na próxima semana. Há uma grande colônia polonesa lá — explicou Moore. — Ele falará dos trabalhadores do estaleiro, obviamente, e lembrará que já foi diretor de sindicato. Não tive acesso ao discurso ainda, mas deve ser a mesma conversa de sempre, com uma ou outra diferença.

— E os jornais dirão que ele está tentando atrair o voto do proletariado — observou Jim Greer. Por mais sofisticados que se considerassem, os jornais não conseguiam entender muita coisa, a não ser que o assunto fosse servido com batatas fritas à sua frente. Eram mestres do discurso político, porém não sabiam nada sobre como se manipulava aquele jogo, até serem informados do assunto, de preferência com monossílabos. — Nossos amigos russos vão perceber?

— Talvez. Eles têm gente de alto nível acompanhando as coisas no Instituto Estados Unidos-Canadá. Talvez alguém deixe escapar en passant, durante uma conversa casual em Foggy Bottom, que vemos a situação na Polônia com um certo grau de preocupação, por termos tantos cidadãos americanos de ascendência polonesa. Não podem ir muito além disso por enquanto — explicou Moore.

— Então, neste momento estamos preocupados com a Polônia, mas não com o papa — tentou esclarecer Ritter.

— Não temos certeza ainda, ou temos? — perguntou o DCI, retoricamente.

— Eles não vão querer saber por que o papa não nos informou de sua ameaça?

— Provavelmente não. O estilo da carta sugere uma comunicação reservada.

— Não tão reservada a ponto de impedir Varsóvia de encaminhá-la a Moscou — discordou Ritter.

— Como minha esposa costuma dizer, isso é algo diferente — ressaltou Moore.

— Sabe, Arthur, esse negócio de esquemas funcionando dentro de outros esquemas me dá dor de cabeça — disse Greer.

— Este jogo tem suas regras, James.

— O boxe também tem regras, mas são bem mais diretas.

— Proteja-se o tempo todo — citou Ritter. — Essa é a regra número um aqui também. Nós ainda não temos um alerta específico, temos? — Todos fizeram que não com a cabeça, sem dizer uma palavra. Não, eles não tinham. — O que mais ele disse, Arthur?

— Ele quer que descubramos se Sua Santidade corre perigo. Se algo lhe acontecer, nosso presidente ficará enfurecido.

— Ele e um bilhão de católicos — reforçou Greer.

— Você acredita que os russos possam contratar os protestantes da Irlanda do Norte para o serviço? — perguntou Ritter, com um sorriso malicioso. — Não se esqueça de que eles também não gostam do cara. É algo que Basil pode investigar.

— Robert, isso me parece um pouco exagerado demais — opinou Greer.

— Eles odeiam o comunismo quase tanto quanto o catolicismo.

— Andropov não pensaria de uma maneira tão fora do convencional — concluiu Moore. — Ninguém naquele lugar pensa. Se ele decidir eliminar o papa, usará seus próprios meios, da forma mais inteligente que puder. É assim que saberemos, que Deus não permita, se a situação chegará tão longe. E se parecer que ele está inclinado a isso, teremos de convencê-lo a desistir de seu objetivo.

— Não chegará a tanto. O Politburo é muito prudente — disse o DDI — E isso seria óbvio demais. Não é o tipo de coisa que um jogador de xadrez faria... E o xadrez continua sendo o esporte nacional deles.

— Diga isso a Leon Trotsky — disse Ritter, asperamente.

— Aquilo foi pessoal. Stalin queria comer o fígado dele. Com um molho bem acebolado — respondeu Greer. — Foi puro ódio pessoal, algo que não levou a lugar algum no nível político.

— Nosso tio Joe não pensava assim. Ele tinha um medo autêntico de Trotsky.

— Não, não tinha. Tudo bem, podemos dizer que era um canalha paranoico, só que até ele sabia a diferença entre a paranoia e o medo autêntico. — Greer percebeu que sua afirmação havia sido um erro no momento que as palavras deixaram sua boca. Ele tentou contornar a situação. — E mesmo que estivesse com medo do bode velho, a turma de agora não é desse tipo. Eles carecem da paranoia de Stalin e, mais precisamente, de sua decisão.

— Jim, você está errado. A carta de Varsóvia é uma ameaça potencialmente perigosa à estabilidade política deles. E eles vão levar isso a sério.

— Robert, não sabia que era tão religioso — brincou Moore.

— Não sou, e nem eles, mas sei que vão ficar preocupados com isso. Acho que vão ficar muito preocupados. O bastante para tomar uma atitude direta? Disso não tenho certeza, mas sei que vão pensar na possibilidade.

— Isso é o que veremos — reagiu Moore.

— Arthur, essa é minha análise — respondeu o DDO.

Expressado daquela forma, o assunto se tornava sério, pelo menos dentro dos limites da CIA.

— O que o fez mudar de ideia tão rápido, Bob? — perguntou o juiz.

— Quanto mais penso no assunto pelo ponto de vista deles, mais séria a situação me parece.

— Tem algum plano?

A pergunta deixou Ritter um pouco incomodado.

— É muito cedo para delegar uma tarefa desse nível aos Foley, mas vou enviar um aviso para que fiquem atentos, pelo menos para que comecem a pensar no assunto.

Era um assunto operacional, tema normalmente deixado pelos outros a cargo de Bob Ritter e seu instinto de agente de campo. Obter informações de um agente era quase sempre mais fácil e comum do que passar instruções a um agente. Como se pressupunha que todos os funcionários da embaixada em Moscou eram seguidos com maior ou menor regularidade, seria um risco lhes solicitar que realizassem qualquer coisa que sugerisse espionagem. A regra valia mais ainda para os Foley; como recém-chegados, receberiam atenção redobrada. Ritter não queria que fossem desmascarados, pelas razões óbvias e por outra: escolher um casal fora uma jogada arriscada, e, se não funcionasse, ele teria de responder por aquilo. Um jogador audacioso de pôquer, Ritter não gostava de perder suas fichas. Tinha planos ambiciosos para os Foley e não queria abrir mão daquele potencial apenas duas semanas depois de iniciada a missão em Moscou.

Os outros dois não fizeram comentários, o que permitiu que continuasse com seus planos, administrando a situação da maneira que considerasse mais adequada.

— Vejam, aqui estamos nós, os melhores e mais inteligentes, as pessoas mais bem informadas da administração federal, e não sabemos droga nenhuma sobre um assunto que pode se tornar de grande importância — comentou Moore, recostando-se na cadeira.

— É verdade, Arthur — assentiu Greer. — Mas pelo menos não sabemos com alguma autoridade. É mais do que outras pessoas podem dizer, não é?

— Era isso que eu precisava ouvir, James.

Aquilo significava que as pessoas fora do prédio podiam afirmar qualquer coisa de maneira categórica, mas aqueles três não. Não, eles tinham obrigação de ser cautelosos em tudo que diziam, porque suas opiniões eram consideradas fatos — o que, como se aprendia no sétimo andar, quase nunca ? R eram. Se eles fossem realmente tão bons, estariam se dedicando a algo mais lucrativo, como atuar no mercado de ações.

 

 

RYAN ACOMODOU-SE em sua poltrona segurando o Financial Times. A maioria das pessoas o lia de manhã, mas não era o caso de Jack. As manhãs eram dedicadas às notícias gerais, como preparação para o dia de trabalho na Century House; no caminho de volta para casa, durante a viagem de mais ou menos uma hora, ouvia o noticiário do rádio, já que a inteligência frequentemente monitorava as notícias. Então, naquele lugar e momento, ele podia relaxar com o mundo das finanças. O jornal inglês não se comparava ao Wall Street Journal, mas o ângulo diferente que dava às coisas era interessante. Ele garantia uma opinião diversa sobre problemas abstratos, aos quais Ryan podia posteriormente aplicar sua habilidade americana. Além disso, o jornal o ajudava a se manter atualizado. Haveria oportunidades de negócios ali, esperando alguém que as aproveitasse. Encontrar algumas delas faria toda aquela aventura europeia valer a pena. Ele ainda via a temporada na CIA como um desvio em sua vida, cujo destino final permanecia muito distante, perdido na névoa. Ele jogaria uma carta de cada vez.

— Papai ligou hoje — disse Cathy, examinando o New England Journal of Medicine, uma das seis publicações médicas que assinava.

— O que Joe queria?

— Só perguntou como estávamos, como estavam as crianças, essas coisas — respondeu Cathy.

Ele não gastou palavras comigo, gastou?, Ryan não se deu ao trabalho de perguntar. Joe Muller, vice-presidente sênior da Merrill Lynch, não aprovava o modo como o genro deixara o mercado, depois da infelicidade de fugir com sua filha, primeiro para dar aulas e mais tarde para brincar de polícia-e-ladrão com espiões e outros funcionários do governo. Joe não se importava muito com o governo e seus lacaios — considerava-os aproveitadores do que ele e outros produziam. Jack concordava, só que alguém tinha que lidar com as raposas do mundo, e uma dessas pessoas era John Patrick Ryan. Ryan gostava de dinheiro tanto quanto qualquer pessoa, mas para ele dinheiro era uma ferramenta e não um fim em si. Era como um bom carro: podia levá-lo a destinos maravilhosos, mas, chegando lá, ainda se precisava de um lugar para dormir. Joe não via as coisas assim e sequer tentava entender os que pensavam de forma distinta. Por outro lado, amava a filha e nunca cobrara dela o fato de ter se tornado cirurgiã. Talvez acreditasse que cuidar de pessoas doentes fosse normal para meninas, enquanto ganhar dinheiro era tarefa para os homens.

— Ótimo, querida — disse Ryan, encoberto pelo Financial Times. A economia japonesa começava a parecer frágil, embora o conselho editorial do jornal não concordasse. Bem, eles já haviam errado antes.

 

 

FOI UMA NOITE PASSADA em claro em Moscou. Yuriy Andropov fumara mais que a cota normal de Marlboros, mas conseguira tomar apenas uma vodca depois de voltar de uma recepção diplomática para o embaixador espanhol — uma perda total de tempo. A Espanha se aliara à Otan e o serviço de contrainteligência do país demonstrara uma eficácia irritante para evitar a presença de agentes infiltrados no governo. Ele provavelmente teria mais chances se tentasse a corte real. Afinal, os cortesãos eram faladores notórios, e o governo eleito provavelmente manteria atualizado o monarca recém-restituído, apenas pelo desejo de bajulá-lo. Então ele tinha bebido o vinho, beliscado os aperitivos e participado das conversas triviais. Tem sido um verão muito agradável, não acha? Algumas vezes, pensava se sua ascensão ao Politburo valia o tempo que perdia. Quase não conseguia ler mais — dedicava-se apenas ao trabalho e às missões diplomáticas e políticas, que pareciam não ter fim. Agora sabia como era a vida de mulher. Era natural que todas elas resmungassem e reclamassem com os maridos.

Mas o assunto que não saía de sua mente era a carta de Varsóvia. Se o governo de Varsóvia insistir na repressão imotivada ao povo, serei forçado a renunciar ao meu papado e voltarei para estar lado dos meus irmãos, nestes tempos de dificuldade. Desgraçado! Ameaçando a paz mundial. Estariam os americanos por trás daquilo? Nenhum de seus agentes de campo obtivera informações nesse sentido, mas nunca se podia ter certeza. O presidente dos Estados Unidos claramente não era um amigo de seu país; estava sempre à procura de uma forma de atingir Moscou. Que petulância daquele sujeito irrelevante, acusar a União Soviética de ser o centro do mal no mundo. Aquele maldito ator dizendo coisas desse tipo! Nem os brados de protesto dos meios de comunicação e dos acadêmicos americanos arrefeceram os ataques. Os europeus perceberam a situação, e, a pior parte, a intelligentsia do Leste Europeu apoiou a ideia, criando todo tipo de problema para seus subordinados da contrainteligência através do Pacto de Varsóvia.

Como se eles já não tivessem suficientes preocupações, resmungou Yuriy Vladimirovich, enquanto tirava outro cigarro da caixa vermelha e branca e o acendia.

Com o cérebro remoendo a informação, mal ouvia a música que tocava.

Varsóvia tinha de reprimir aqueles contrarrevolucionários criadores de caso em Danzig — estranhamente, Andropov sempre se lembrava da cidade portuária pelo antigo nome alemão — antes que seu governo perdesse totalmente o controle. Moscou havia orientado que resolvessem os problemas da forma mais direta, e os poloneses sabiam seguir ordens. A presença de tanques do Exército soviético em seu território os ajudaria a entender o que era necessário ou não. Se aquela tolice polonesa de "Solidariedade" fosse muito adiante, a infecção começaria a se espalhar — a oeste para a Alemanha, ao sul para a Checoslováquia... e a leste para a União Soviética? Não podiam permitir aquilo. Por outro lado, se o governo polonês conseguisse conter o problema, as coisas voltariam a ficar calmas. Só até a próxima vez, pensou Andropov.

Caso seu ponto de vista tivesse sido só um pouco mais amplo, ele talvez houvesse captado a questão fundamental. Como membro do Politburo, estava isolado dos aspectos mais desagradáveis da vida em seu país. Não passava por privação alguma.

Para conseguir boa comida, bastava pegar o telefone. O apartamento luxuoso era bem decorado e aparelhado com eletrodomésticos alemães. Os móveis eram confortáveis, e o elevador do prédio nunca estava com defeito. Dispunha de um motorista para levá-lo e trazê-lo de volta do escritório. Uma pequena escolta garantia que não fosse incomodado por arruaceiros. Contava com uma segurança igual à de Nicolau II e, como uma pessoa comum, achava que suas condições de vida eram normais, embora intelectualmente soubesse que podiam ser qualquer coisa menos isso. As pessoas além de suas janelas tinham comida, programas de TV e filmes para assistir, times para torcer e a chance de possuir um automóvel, não tinham? Por lhes proporcionar todas essas coisas, ele desfrutava de um estilo de vida um pouco melhor; era bastante razoável, não era? Ele não trabalhava mais do que os outros? O que mais aquelas pessoas queriam?

E agora aquele padre polonês estava tentando abalar todo o sistema.

E pode até conseguir, pensou Andropov. Stalin, uma vez, perguntara quantas divisões o papa tinha sob seu comando, mas até ele devia saber que nem todo o poder do mundo provinha do cano de uma arma. Se Karol realmente renunciasse ao papado, o que aconteceria? Ele tentaria retornar à Polônia. Será que os poloneses não permitiriam, revogando sua cidadania, por exemplo? Não, de alguma maneira ele conseguiria voltar à Polônia. Andropov e os poloneses tinham agentes na Igreja, claro, mas sua margem de ação era limitada. Até que ponto a Igreja poderia ter se infiltrado em suas próprias agências? Não havia como saber. Portanto, qualquer tentativa de mantê-lo longe da Polônia estava provavelmente condenada ao fracasso. E, se arriscassem e o papa conseguisse entrar no país, isso seria um desastre de proporções épicas.

Eles também podiam tentar contatos diplomáticos. Um representante do Ministério das Relações Exteriores voaria até Roma e se encontraria clandestinamente com Karol para tentar dissuadi-lo de levar a cabo a ameaça. Mas que cartas teria a seu dispor? Uma ameaça explícita à vida do papa... não funcionaria. Aquele tipo de desafio seria como um convite ao martírio e n santificação, o que apenas o encorajaria a fazer a viagem.

Para um fiel, seria como um passe para o Céu, mesmo que enviado pelo próprio diabo, e ele aceitaria o desafio com satisfação. Não, não era aconselhável ameaçar de morte um homem como aquele. Mesmo ameaçar seu povo com medidas mais severas apenas o encorajaria mais — ia querer voltar para casa o quanto antes para protegê-los e, assim, parecer mais heroico aos olhos do mundo.

A sofisticação da ameaça enviada a Varsóvia é algo que cresce em proporção quanto mais se reflete sobre o assunto, reconhecia Andropov. Mas havia uma única resposta absoluta: Karol teria que descobrir por conta própria se realmente havia um Deus.

Existe um Deus?, perguntou-se Andropov. Uma questão que atravessava gerações, respondida de muitas maneiras por muitas pessoas, até que Karl Marx e Vladimir Lenin encerraram o debate — pelo menos no que dizia respeito à União Soviética. Não, Yuriy Vladimirovich disse a si mesmo, era muito tarde para reconsiderar sua própria resposta àquela pergunta. Não, não existe um Deus. A vida consistia do aqui e agora. E quando acabava, acabava, por isso devia se fazer o melhor possível, viver a vida da maneira mais plena possível, pegando os frutos que estavam ao alcance e construindo uma escada para apanhar os outros.

Mas Karol estava tentando mudar a equação. Estava tentando balançar a escada — ou talvez a árvore. Aquela questão era um pouco profunda demais.

Andropov virou-se na cadeira, serviu um pouco de vodca e tomou um gole contemplativo. Karol queria impor suas falsas crenças por conta própria, buscando abalar as estruturas da União Soviética e de suas vastas alianças, tentando dizer às pessoas que havia algo melhor em que se acreditar. Nesse processo, estava a ponto de perturbar o trabalho de gerações, e ele e seu país não podiam permitir aquilo. No entanto, ele não podia deter o empenho de Karol. Não podia persuadi-lo a desistir. Não, Karol teria de ser parado de um modo que o deixasse fora de ação completa e definitivamente.

Não seria fácil, nem totalmente seguro. Mas não fazer nada era menos seguro ainda para ele, seus colegas e seu país.

Portanto, Karol tinha que morrer. Primeiramente, Andropov precisaria elaborar um plano; depois, levá-lo ao Politburo. Antes de propor uma ação, teria que delinear toda a estratégia, oferecendo garantia de sucesso. Bem, era para isso que existia a KGB, não?


5

 


CHEGANDO PERTO

 

TÍPICO MADRUGADOR, Yuriy Vladimirovich estava de banho tomado, barbeado, vestido e degustando o café da manhã antes das sete. Para ele, havia bacon, três ovos mexidos e fatias grossas de pão russo com manteiga dinamarquesa. O café era de origem alemã, a exemplo dos eletrodomésticos que se destacavam no apartamento.

Tinha a edição matinal do Pravda, um resumo de material dos principais jornais ocidentais, traduzido por linguistas da KGB, e relatórios preparados de madrugada no Centro e entregues em mãos em seu apartamento, todas as manhãs, às seis. Percebeu que não havia nada de importante naquele dia. Acendeu o terceiro cigarro e tomou a segunda xícara de café. Rotina. O presidente americano não brandira sua espada na noite anterior, o que era uma surpresa agradável. Talvez tivesse cochilado diante da TV, como Brejnev costumava fazer.

Por quanto tempo Leonid permaneceria à frente do Politburo?, questionou-se Andropov.

Evidentemente não se aposentaria. Seus filhos sofreriam se o fizesse, e eles adoravam demais ser a família real da União Soviética para permitir a retirada ao pai. A corrupção nunca fora algo admirável. Andropov não sofria desse mal pessoalmente — era uma de suas principais convicções. Por isso, a situação em curso era tão frustrante.

Queria salvar — tinha que salvar — seu país do caos em que estava mergulhando. Se eu viver o tempo necessário, e se Brejnev morrer logo, claro. Leonid Ilyich tinha a saúde claramente debilitada. Conseguira parar de fumar — aos 76 anos, o que Yuriy Vladimirovich reconhecia ser algo bem impressionante —, mas estava senil. Sua mente divagava. Tinha problemas de memória. Ocasionalmente, dormia em encontros importantes, para aflição dos companheiros. Seu apego ao poder, porém, era de uma firmeza mortal. Ele havia engendrado a queda de Nikita Sergeievich Kruchev numa série genial de manobras políticas, e ninguém em Moscou se esquecia daquele capítulo da história — um artifício desse tipo dificilmente funcionaria contra a própria pessoa que o inventara. Ninguém havia sequer sugerido a Leonid que reduzisse o ritmo — se não para se colocar um pouco de lado, pelo menos para que outros assumissem parte das funções de ordem administrativa, permitindo que concentrasse sua capacidade nas grandes questões. O presidente americano não era muito mais jovem que Brejnev, mas teve uma vida mais saudável, ou talvez viesse de uma família camponesa mais resistente.

Nos momentos de reflexão, Andropov estranhava sua objeção àquele tipo de corrupção.

Sua opinião sobre o tema era exatamente aquela, mas apenas raramente se perguntava por que pensava assim. Nesses momentos, chegava a retornar a suas convicções marxistas, as mesmas que rejeitara anos antes, porque até ele precisava se apoiar em algum tipo de ethos — e este era tudo que tinha. Mais estranhamente ainda, tratava-se de uma área em que Marx e o cristianismo, na verdade, sobrepunham-se em suas crenças. Devia ter sido por acaso. Afinal, Karl Marx fora um judeu, não um cristão, e qualquer religião que rejeitasse ou abraçasse tinha de ser sua própria religião, não uma estranha a si e à sua herança. O diretor da KGB afastou toda aquela linha de raciocínio com um movimento da cabeça. Ele já tinha o suficiente para digerir profissionalmente.

Ouviu uma discreta batida na porta.

— Entre — disse Andropov, adivinhando quem era pelo som.

— O carro está pronto, camarada diretor — informou o chefe de sua comitiva.

— Obrigado, Vladimir Stepanovich.

Ele se levantou da mesa, tirou o paletó da cadeira e vestiu-o para ir trabalhar.

Era um trajeto rotineiro de catorze minutos através do centro de Moscou. O automóvel ZIL, fabricado artesanalmente, era bem parecido com os táxis Checker americanos. O carro percorreu as ricas avenidas centrais, usando a faixa larga mantida livre por oficiais da milícia de Moscou, de uso exclusivo de autoridades políticas. Eles ficavam ali o dia inteiro, sob o sol do verão e o frio intenso do inverno, um guarda a cada três quarteirões, para garantir que ninguém obstruísse a via por um tempo maior que o necessário para atravessar a avenida. Aquilo tornava a viagem de carro para o trabalho tão cômoda quanto pegar um helicóptero — e muito menos preocupante.

O Centro Moscou, como a KGB era conhecida no mundo da inteligência, ficava no antigo escritório da Companhia de Seguros Rossiya. Devia ter sido uma companhia poderosa para construir um edifício daquele porte. O carro passou pelo portão e chegou ao jardim interno, diante das portas de bronze. A porta do automóvel foi aberta, e ele desceu, ante as saudações oficiais de homens uniformizados da Oitava Diretoria. Já no interior do prédio, caminhou até o elevador, que obviamente estava à sua espera, e foi até o último andar. Os membros da comitiva examinaram seu rosto para avaliar seu humor — algo que aquele tipo de gente fazia no mundo inteiro — e, como de hábito, não perceberam nada. Ele escondia as emoções tão bem quanto um jogador profissional de pôquer. No último andar, era preciso caminhar cerca de 15 metros até a porta da sala da secretária — o escritório de Andropov em si não tinha portas. Em vez disso, havia um armário na antessala, e a entrada do escritório ficava ali. O ardil fora criado na época de Lavrenti Beria, chefe de serviços clandestinos do próprio Stalin e vítima de um grande e bastante justificado temor de ser assassinado; ele concebera a medida de segurança para o caso de um comando conseguir invadir o quartel-general do Comissariado Nacional de Afazeres Internos, NKVD. Andropov a considerava muito teatral, mas era uma espécie de tradição da KGB e, à sua maneira, entretinha os visitantes. De qualquer modo, já existia desde muito tempo para fugir ao conhecimento de quem quer que conseguisse chegar tão longe.

A agenda previa quinze minutos no início da manhã para a análise dos papéis em sua mesa, antes de receber os relatórios diários, seguidos por reuniões marcadas com dias ou mesmo semanas de antecedência. Hoje a maioria trataria de questões de segurança interna, embora uma pessoa da secretaria do partido tivesse audiência, antes do almoço, para discutir temas estritamente políticos, Ah, claro, aquele assunto de Kiev, lembrou Andropov. Assim que se tornara diretor da KGB, percebera que os assuntos do partido tinham pequena importância diante do cenário agradavelmente amplo do número 2 da Praça Dzerzhinskiy. A missão da KGB, aceitando-se que houvesse tal limitação, era ser "a espada e o escudo" do partido. Portanto, sua tarefa primordial, em tese, era ficar atenta a cidadãos soviéticos que não parecessem muito entusiasmados com o governo do país.

Aquele pessoal dos direitos humanos em Helsinque estava se tornando um grande incômodo. A União Soviética havia feito um acordo na capital finlandesa, sete anos antes, a respeito do acompanhamento dos direitos humanos, e eles cuidavam daquilo com seriedade. Pior ainda, haviam atraído a atenção intermitente dos meios de comunicação ocidentais. Os jornalistas às vezes eram bastante inconvenientes, e não se podia intimidá-los como antes, não todos pelo menos. O mundo capitalista tratava-os como semideuses e esperava que todos fizessem o mesmo, quando se sabia que não passavam de espiões de algum tipo. Era divertido notar a proibição expressa do governo americano à adoção de disfarces de jornalista por seus serviços de inteligência.

Todos os outros órgãos de espionagem do mundo utilizavam o recurso. Como se os americanos fossem seguir suas próprias regras bem-intencionadas, estabelecidas apenas para que os outros países não reclamassem do New York Times bisbilhotando em seu território. Não valia sequer um gesto de reprovação. Ridículo. Todos os estrangeiros na União Soviética eram espiões. Era de conhecimento geral. E, por isso, a Segunda Diretoria, encarregada da contraespionagem, constituía uma parte tão importante da KGB.

O problema que o fizera perder uma hora de sono na noite anterior, em essência, não era muito diferente. Yuriy Vladimirovich apertou uma tecla do interfone.

— Sim, camarada diretor? — respondeu, imediatamente, o secretário. Um homem, claro.

— Diga a Aleksey Nikolaievich que preciso vê-lo.

— Imediatamente, camarada.

Levou quatro minutos, pelo relógio de mesa de Andropov.

— Pois não, camarada diretor?

Aleksey Nikolaievich Rozhdestvenskiy era um coronel veterano da Primeira Diretoria, um oficial de campo muito experiente que servira por um longo período na Europa Ocidental, mas não em outro continente. Talentoso e com liderança sobre os outros agentes, fora transferido para o Centro por sua vivência prática e para ser uma espécie de especialista interno a quem Andropov pudesse recorrer quando precisasse de informações sobre operações de campo. Por não ser alto, nem particularmente bonito, era o tipo de homem que passava despercebido nas ruas de qualquer cidade do mundo, o que explicava em parte o sucesso em missões de campo.

— Aleksey, tenho um problema teórico. Pelo que me lembro, você atuou na Itália.

— Sim, três anos no escritório de Roma, camarada diretor. Sob as ordens do coronel Goderenko. Ele continua lá como rezident.

— É um bom homem? — perguntou Andropov.

A resposta positiva, com um movimento de cabeça, foi enfática.

— É um ótimo oficial sênior, camarada diretor, e dirige um excelente escritório. Aprendi muito com ele.

— Qual é o nível de conhecimento dele sobre o Vaticano?

A pergunta fez Rozhdestvenskiy piscar.

— Não há muito a descobrir. Temos alguns contatos, claro, mas nunca foi um ponto de grande ênfase. A Igreja Católica é um alvo difícil para infiltração, por razões óbvias.

— E quanto à Igreja Ortodoxa? — perguntou Andropov.

— Sim, temos contatos que nos passam uma ou outra informação, mas raramente é relevante. A maior parte se enquadra na categoria de rumor e, mesmo assim, não é nada que não possamos obter por outros canais.

— Como é a segurança em torno do papa?

— A segurança física? — perguntou Rozhdestvenskiy, imaginando aonde aquilo chegaria.

— Exatamente.

Rozhdestvenskiy sentiu a temperatura do sangue cair.

— Camarada diretor, o papa tem certa proteção em volta, a maioria do tipo passivo. Os guarda-costas são suíços e andam à paisana. Aquela trupe de ópera-bufa que desfila em roupas listradas é só um espetáculo. De vez em quando, eles têm que deter um fiel que se deixa empolgar pela proximidade do Santo Padre ou algo parecido. Não tenho nem certeza se portam armas, embora deva presumir que sim.

— Muito bem. Quero saber qual seria o nível de dificuldade para se chegar perto, fisicamente, do papa. Você tem ideia?

Ah, pensou Rozhdestvenskiy.

— Conhecimento pessoal? Não, camarada. Visitei a Cidade do Vaticano muitas vezes quando estava em Roma. O acervo de arte, como o senhor pode imaginar, é impressionante, e minha esposa tem interesse no assunto. Levei-a ao Vaticano pelo menos umas cinco vezes. O lugar é cheio de freiras e padres. Confesso que nunca reparei na estrutura de segurança, mas lembro que não havia nada ostensivo, fora do previsível: medidas contra furtos, vandalismo e coisas desse tipo. Há ainda os guardas do museu, cuja principal função parece ser indicar aos turistas onde ficam os banheiros. O papa vive nos aposentos papais, vizinhos à igreja de São Pedro. Nunca estive lá. Não era um lugar que despertasse meu interesse profissional. Sei que nosso embaixador vai ali ocasionalmente em compromissos diplomáticos, mas eu não costumava ser convidado. Meu cargo era de assistente do adido comercial, camarada diretor, e eu era novato. O senhor quer saber sobre chegar perto do papa. Isso quer dizer...

— Cinco metros. Menos, se possível, mas no mínimo cinco metros.

Ao alcance de uma pistola, compreendeu Rozhdestvenskiy imediatamente.

— Não tenho como dar essa informação. Seria um trabalho para o coronel Goderenko e seu pessoal. O papa concede audiências aos fiéis, mas não sei como participar delas. Ele também aparece em público em diversas ocasiões. Não sei como são definidas as datas.

— Vamos descobrir — sugeriu Andropov de forma amena. — Dirija-se diretamente a mim. Não discuta o assunto com qualquer outra pessoa.

— Sim, camarada diretor — disse o coronel, entendendo a situação ao receber a ordem. — Qual é a prioridade?

— Imediata — respondeu Andropov, em um tom totalmente casual.

— Vou cuidar disso pessoalmente, camarada diretor — garantiu o coronel Rozhdestvenskiy.

Seu rosto não revelava qualquer sentimento; na verdade, ele tinha poucos. Oficiais da KGB não eram treinados para demonstrar escrúpulos, ao menos fora da política, única área em que deviam manifestar uma boa dose de fé. Ordens superiores correspondiam a vontades divinas. A única preocupação de Aleksey Nikolaievich dizia respeito à repercussão política daquela verdadeira bomba nuclear. Roma ficava a mais de mil quilômetros de Moscou, mas a distância provavelmente não seria suficiente para evitar os efeitos. Entretanto, como questões políticas estavam fora de sua alçada, tirou o assunto da mente. Pelo menos temporariamente. O interfone sobre a mesa do diretor tocou. Andropov acionou o botão superior.

— Sim?

— Sua primeira visita está aqui, camarada diretor — informou o secretário.

— Quanto tempo acredita que será necessário, Aleksey?

— Alguns dias, provavelmente. Suponho que o senhor deseje uma avaliação imediata, primeiro, seguida de dados mais específicos.

— Correto. Por enquanto, apenas uma avaliação geral — disse Yuriy Vladimirovich. — Ainda não estamos planejando qualquer tipo de operação.

— Às suas ordens, camarada diretor. Vou até o centro de comunicações imediatamente.

— Ótimo. Obrigado, Aleksey.

— Sirvo à União Soviética — respondeu de modo automático.

O coronel Rozhdestvenskiy prestou continência novamente, girou 90 graus à esquerda e seguiu em direção à porta. Teve que baixar a cabeça ao sair, como acontecia com a maioria dos homens, e dali virou à direita, chegando ao corredor.

Então, como se pode chegar perto do papa, esse padre polonês?, pensou Rozhdestvenskiy. Era, no mínimo, uma questão teórica instigante. Havia na KGB inúmeros teóricos e acadêmicos que analisavam todo tipo de questão, de como assassinar líderes de outros países — útil no caso de uma grande guerra estar prestes a começar — à melhor maneira de roubar e interpretar relatórios médicos de hospitais. O amplo foco das operações de campo da KGB tinha poucas limitações. O rosto do coronel não revelava muita coisa enquanto ele caminhava até o saguão dos elevadores. Apertou o botão e esperou quarenta segundos até que as portas se abrissem.

— Subsolo — disse ao ascensorista.

Todos os elevadores tinham ascensoristas. Eram pontos visados para passagem de informações e, portanto, não deviam ficar sem supervisão. Mesmo assim, os ascensoristas recebiam treinamento para perceber eventuais trocas de documentos.

Ninguém era confiável naquele prédio; havia muitos segredos. Se existisse um único lugar em que o inimigo quisesse infiltrar um agente, seria aquele prédio, então todos olhavam uns para os outros como em um tipo de jogo secreto, sempre observando, analisando cada conversa em busca de uma mensagem oculta. As pessoas faziam amigos ali como em qualquer atividade. Conversavam sobre as mulheres e os filhos, esportes e o tempo, a compra de um novo carro ou de uma casa de campo, no caso dos oficiais mais antigos. Mas raramente se falava de trabalho, exceto com colegas diretos, e mesmo assim somente em salas de conferência apropriadas a tais discussões.

Rozhdestvenskiy nunca percebera como essas restrições institucionais reduziam a produtividade e talvez até impedissem a eficácia da agência. A circunscrição era apenas parte da religião institucional do Comitê de Segurança do Estado.

Ele precisava passar por um posto de controle para entrar na sala de comunicações. O oficial de guarda verificou a credencial com fotografia e o deixou avançar sem demonstrar muita deferência.

Rozhdestvenskiy já estivera ali, é claro, com regularidade suficiente para ser reconhecido pela aparência e pelo nome por todos os operadores mais antigos e vice-versa. Havia um espaço considerável entre as mesas, e o barulho das impressoras dos telégrafos não permitia escutar qualquer conversa a uma distância superior a três ou quatro metros, mesmo aos ouvidos mais sensíveis. Isso e praticamente todo o resto relativo à organização da sala haviam evoluído ao longo dos anos até que as provisões de segurança estivessem o mais perto da perfeição que qualquer pessoa fosse capaz de imaginar — o que não impedia os especialistas em eficiência do terceiro andar de vagar, com ar de reprovação, sempre em busca de falhas. Ele seguiu até a mesa do oficial sênior de comunicações encarregado das operações.

— Oleg Ivanovich — disse, saudando-o.

Zaitzev ergueu os olhos para observar o quinto visitante do começo do dia — o quinto visitante e a quinta interrupção. Com frequência, ser o oficial encarregado naquele setor era um fardo, principalmente no turno da manhã. O serviço à noite era entediante, mas pelo menos se podia trabalhar sem interferências.

— Sim, coronel, o que posso fazer pelo senhor? — perguntou de forma cortês, respeitando a hierarquia.

— Uma mensagem especial particular para o escritório de Roma, para o rezident. Creio que possa usar um código único. Prefiro que cuide disso pessoalmente. — Em vez de pedir a um funcionário de criptografia que faça a codificação, não chegou a completar. O pedido incomum despertou a curiosidade de Zaitzev. Ele teria de ler o conteúdo de qualquer maneira. Eliminar o funcionário de criptografia apenas reduzia à metade o número de pessoas com acesso à mensagem.

— Muito bem. — Zaitzev pegou o bloco de códigos e o lápis. — Continue.

— Confidencial. IMEDIATO E URGENTE. DO CENTRO MOSCOU, ESCRITÓRIO do Diretor. Para o Coronel Ruslan Borissovich Goderenko, Rezident, Roma. A mensagem se segue: INVESTIGUE E RELATE MEIOS PARA APROXIMAÇÃO FÍSICA DO PAPA. FIM.

— Isso é tudo? — perguntou Zaitzev, surpreso. — E se ele pedir uma explicação? O propósito não é muito claro.

— Ruslan Borissovich entenderá — garantiu Rozhdestvenskiy.

Ele sabia que a pergunta de Zaitzev era apropriada. Usar códigos únicos era um inconveniente. As mensagens enviadas dessa forma deviam ser explícitas em todos os detalhes, para que o vaivém subsequente de mensagens de esclarecimento não comprometesse as comunicações. Como o recado de Rozhdestvenskiy seguiria por telex, certamente seria interceptado e também reconhecido pela formatação como criptografado com código exclusivo, o que levaria à conclusão de que era algo importante. Os decifradores americanos e britânicos provavelmente tentariam quebrar o código, e todos estariam atentos a seus truques. As malditas agências de inteligência ocidentais trabalhavam sempre juntas.

— Se está dizendo, camarada coronel. Enviarei a mensagem em menos de uma hora. — Zaitzev verificou o relógio de parede para se assegurar de que poderia cumprir o prazo.

— Deve estar na mesa dele quando chegar ao escritório.

Ruslan precisará de vinte minutos para decodificá-la, estimou Rozhdestvenskiy. Depois, será que terá perguntas, como prevê Zaitzev? Provavelmente. Goderenko é um homem cuidadoso e meticuloso. E politicamente astuto. Mesmo com o nome de Andropov no alto da mensagem, Ruslan Borissovich ficará curioso o bastante para pedir um esclarecimento.

— Se houver resposta, me chame assim que tiver o texto limpo.

— O senhor é o contato para essa comunicação? — perguntou Zaitzev, só para garantir que distribuiria as coisas corretamente. Afinal, o cabeçalho, como o coronel havia ditado, dizia apenas "Escritório do Diretor".

— Correto, major.

Zaitzev assentiu e pediu que o coronel Rozhdestvenskiy assinasse o protocolo de confirmação. Tudo na KGB precisava de um rastro de papel. Zaitzev observou a lista de conferência: mensagem, remetente, destinatário, método de encriptação, contato... sim, estava tudo lá, e todos os espaços estavam corretamente assinados. Ele olhou pura cima.

— Coronel, a mensagem seguirá em breve. Ligarei para confirmar o horário de transmissão. — Mais tarde ele enviaria um registro de papel para os arquivos permanentes de operações. Fez uma última anotação e entregou a cópia. — Aqui está o número de expedição. Também será o número de referência da operação até que o senhor decida mudá-lo.

— Obrigado, major — disse o coronel, saindo em seguida.

Oleg Ivanovich verificou novamente o relógio de parede. O fuso horário de Roma era de menos três horas em relação a Moscou. Seriam necessários de dez a quinze minutos para o rezident obter o texto limpo — ele sabia que o pessoal de operações era desajeitado com aquele tipo de coisa — e depois pensar no assunto e depois... Zaitzev fez uma pequena aposta consigo mesmo. O rezident de Roma mandaria um pedido de esclarecimento. Sem dúvida. O major enviava mensagens e recebia respostas daquele homem havia alguns anos. Goderenko era uma pessoa cuidadosa, que gostava de tudo bem claro. Diante disso, decidiu deixar o bloco de códigos em sua gaveta, pronto para decodificar a resposta. Contou: 209 caracteres, incluindo espaços e pontuação.

Lamentava que não pudessem realizar a tarefa em um dos novos computadores americanos com que os funcionários dos andares superiores brincavam. Mas não havia sentido em fazer pedidos. Zaitzev tirou o bloco da gaveta e, desnecessariamente, anotou o número, antes de se encaminhar para a área esquerda da ampla sala. Ele conhecia todos os blocos de cor, resultado da prática de xadrez, acreditava.

— Bloco 1-1-5-8-9-0 — disse ao funcionário por trás da divisória de metal, entregando o pedaço de papel.

O funcionário, um homem de 57 longos anos, a maioria passada ali, caminhou alguns metros para buscar o livro de cifras correspondente. Era um caderno de 10x25 cm, cheio de folhas perfuradas, cerca de 500 ou mais. A página atual estava marcada com uma etiqueta plástica.

As páginas se pareciam com as de um catálogo telefônico, porém uma análise mais cuidadosa revelava que as letras não formavam nomes em qualquer língua conhecida, a não ser por acaso. Havia duas ou três ocorrências desse tipo por página. Fora de Moscou, no anel externo da cidade, ficava o quartel-general da diretoria de Zaitzev, a oitava, o setor da KGB responsável por elaborar e decifrar códigos. No topo do edifício, havia uma antena altamente sensível, que levava a uma máquina de teletipo. O receptor situado entre a antena e o teletipo captava ruídos atmosféricos aleatórios. Este último interpretava os "sinais" como pontos e traços, que a máquina adjacente imprimia imediatamente. Na verdade, várias dessas máquinas eram interconectadas, de modo que a aleatoriedade dos ruídos atmosféricos acabava retransformada em um palavreado totalmente imprevisível. Do resultado, nasciam os códigos de uso único, criados como transposições absolutamente randômicas, que nenhuma fórmula matemática seria capaz de entender e, consequentemente, decifrar. O bloco de cifras únicas era considerado, no mundo todo, o mais seguro dos sistemas de encriptação. Isso era importante, já que os americanos lideravam a arte de quebrar códigos. O projeto Venona conseguira expor as cifras soviéticas das décadas de 1940 e 1950, para incômodo da agência-mãe de Zaitzev. Os blocos mais seguros eram também os mais incômodos e cansativos, mesmo para mãos habituadas como as do major. Mas não havia alternativa. E Andropov queria saber como chegar perto do papa.

Foi quando Zaitzev se deu conta. Aproximação física do papa. Por que alguém teria interesse nisso? Certamente Yuriy Vladimirovich não queria uma pessoa para ouvir sua confissão.

O que estavam pedindo que transmitisse?

O rezident em Roma, Goderenko, era um oficial de campo de grande experiência, cuja rezidentura comandava muitos italianos e pessoas de outras nacionalidades a serviço da KGB. Ele encaminhava todo tipo de informação, algumas claramente importantes, outras apenas divertidas, embora potencialmente úteis para expor indivíduos respeitáveis com pontos fracos embaraçosos. Será que somente os figurões tinham fraquezas ou eram justamente suas posições que lhes permitiam se divertir como todos sonhavam, mas poucos podiam se dar ao luxo? Qualquer que fosse a resposta, Roma devia ser uma boa cidade para aquilo. Como a Cidade dos Césares, pensou Zaitzev, tinha de ser. Pensou nos livros de viagem e história que havia lido sobre a cidade e sua era — a história clássica na União Soviética não continha muitos comentários políticos.

A interpretação política dada a todos os aspectos da vida era a característica intelectual mais cansativa da vida em seu país — com frequência suficiente para levar um homem ao vício do álcool. Mas ele precisava voltar ao trabalho. Retirou um disco de cifras da primeira gaveta. Era como uma peça de telefone: ajustava-se a letra a ser transposta sobre um dos discos e depois girava-se o outro até a letra indicada na página do bloco de códigos. Nesse caso, ele começara pela décima segunda linha da página 284. A referência seria incluída na primeira linha da transmissão, para que o destinatário soubesse como obter um texto legível do emaranhado recebido.

Era uma tarefa trabalhosa, mesmo com o disco de cifras. Ele tinha de ajustar a letra correta escrita no formulário de mensagem, depois discar a letra de transposição conforme a página impressa do livro de códigos e, finalmente, anotar um resultado por vez. Cada operação exigia que largasse o lápis, discasse, pegasse o lápis de volta, conferisse os resultados — neste caso, duas vezes — e começasse tudo de novo. (Os especialistas em cifras, que só faziam aquilo usavam as duas mãos, um talento que Zaitzev não adquirira.) Era muito mais que tedioso; um tipo de trabalho que não fora feito para uma pessoa com formação em matemática. Zaitzev resmungava como se corrigisse ditados de escola primária. Levou mais de seis minutos naquilo. Teria sido mais rápido se pudesse contar com um auxiliar, mas isso violaria as regras, e as regras eram inflexíveis.

Depois, com a tarefa completa, tinha de repetir tudo para se assegurar de que não havia transmitido trechos truncados que arruinavam o processo inteiro em ambas as pontas do sistema. Com esse cuidado, se acontecesse um problema, ele poderia colocar a culpa no operador de teletipos — o que todos faziam de qualquer maneira. Mais quatro minutos e meio confirmaram que não havia erros. Ótimo.

Zaitzev levantou-se, caminhou até o outro lado da sala e, passando pela porta, chegou à sala de transmissão. O barulho ali poderia levar uma pessoa à loucura. Os teletipos eram antigos — um deles havia sido roubado da Alemanha, em 1930 — e soavam como metralhadoras, embora sem o som dos cartuchos se deflagrando. Diante de cada máquina, havia um datilografo uniformizado. Eram todos homens, sentados em posição completamente ereta, como estátuas, as mãos aparentemente conectadas aos teclados.

Usavam protetores de ouvido para que o barulho não acabasse os levando ao hospital psiquiátrico. Zaitzev entregou o formulário de mensagem ao supervisor da sala, que recebeu a folha sem dizer uma palavra — também tinha protetores nos ouvidos — e a repassou ao datilografo da extremidade esquerda da última fileira. Ele fixou-a a uma prancheta presa acima do teclado. No alto do formulário, estava o identificador correspondente ao destinatário. O operador discou o número apropriado e aguardou o trinado da impressora do outro lado — o equipamento fora desenvolvido para atravessar os protetores de ouvido e também acendia uma luz amarela na máquina de teletipos. Em seguida, o operador transcreveu a mensagem cifrada.

Zaitzev não acreditava que conseguissem executar aquele trabalho sem ficar loucos. A mente humana clama por padrões e bom senso, mas digitar TKALNNETPTN requeria uma atenção robótica a detalhes e uma negação completa da humanidade. Dizia-se que os datilógrafos eram todos grandes pianistas, porém Zaitzev sabia que não era verdade. Mesmo a mais destoante peça de piano tinha alguma harmonia unificadora. Um bloco de cifras únicas, não.

O encarregado ergueu os olhos após poucos segundos.

— Transmissão concluída, camarada.

Zaitzev assentiu com a cabeça e voltou à mesa do supervisor.

— Se chegar alguma coisa com o número de referência dessa operação, leve a mim imediatamente.

— Positivo, camarada major — respondeu o supervisor, fazendo uma anotação em sua lista de números "quentes".

Cumprida a tarefa, Zaitzev voltou a sua mesa, onde a pilha de afazeres já estava bem alta — apenas um pouco menos estupidificadora que as dos robôs da sala ao lado. Talvez tenha sido por isso que começou a ouvir um sussurro: aproximação física do papa... por quê?

 

 

O ALARME TOCOU ÀS QUINZE PARA AS SEIS. Era um horário desumano. Em sua cidade, era uma e quinze, mas o raciocínio não adiantou muito. Ele afastou as cobertas, levantou-se e cambaleou até o banheiro. Ainda precisava se acostumar a muita coisa ali. Embora a descarga fosse bem parecida, as torneiras... Por que, pensava Ryan, são necessárias duas torneiras para jogar água na pia, uma quente e outra fria? Em casa, bastava colocar as mãos sob a torneira; ali, a água tinha de se misturar primeiro, ou seja, uma perda de tempo. A primeira olhada no espelho pela manhã também era difícil. Eu realmente pareço isso?, perguntava enquanto voltava à cama para dar um tapinha no traseiro da mulher.

— Está na hora, querida.

Um grunhido feminino pouco usual. — Eu sei.

— Quer que eu acorde Jack?

— Deixe-o dormir — respondeu Cathy.

O bebê não havia dormido direito na noite anterior. Portanto, não ia querer acordar agora.

— Tudo bem.

Jack foi até a cozinha. Para ligar a cafeteira, bastava apertar um botão, e ele era capaz de realizar a tarefa sozinho. Pouco antes de viajar, ele acompanhara a oferta pública de ações de uma nova companhia americana, que vendia café premium. Como Jack sempre fora um tanto esnobe em relação ao café, investira cem mil dólares e recebera uma amostra do produto — por melhor que fosse, a Inglaterra não era um país que se visitasse pelo café. Pelo menos conseguia Maxwell House com a Força Aérea e talvez pudesse pedir àquela nova unidade do Starbucks que enviasse parte de sua bebida. Mais um lembrete para memorizar. Depois disso, imaginou o que Cathy faria para o café da manhã. Cirurgiã ou não, ela considerava a cozinha seu domínio. O marido só tinha autorização para fazer sanduíches e preparar drinques. A determinação convinha a Jack, para quem um fogão representava uma terra desconhecida. O fogão da casa era a gás, como o que sua mãe usava, mas de uma marca diferente. Ele se arrastou até a porta, na esperança de encontrar um jornal.

Estava lá. Ryan fizera uma assinatura do Times, para complementar a leitura do International Herald Tribune que comprava na estação de trem em Londres. Em seguida, ligou a TV. Notavelmente, uma versão incipiente de TV a cabo atendia à vizinhança e, mais impressionante, incluía o novo canal americano CNN — bem na hora dos resultados do beisebol. No fim das contas, a Inglaterra parecia civilizada. Os Orioles haviam derrotado o Cleveland na noite anterior por 5 a 4 em onze innings. Os jogadores certamente estavam na cama àquela hora, derrubados pelas cervejas entornadas depois da partida, no bar do hotel. Era de dar inveja: eles tinham pelo menos oito horas de sono pela frente. Na hora cheia, a equipe da CNN em Atlanta resumiu os acontecimentos do dia anterior. Nenhum grande destaque. A economia permanecia um pouco instável. O índice Dow Jones se recuperara bem, mas as taxas de desemprego não o haviam acompanhado, o que afetava os eleitores das classes trabalhadoras. Bem, aquilo era a democracia. Ryan tinha que se lembrar de que provavelmente via a economia de forma diferente dos caras que fabricavam aço e montavam Chevys. Seu pai participara de um sindicato, embora fosse um tenente da polícia e, portanto, estivesse na chefia e não entre os empregados comuns. Quase sempre votava nos democratas. Ryan, por sua vez, não aderira a nenhum partido, preferindo ser independente. Isso o ajudava a controlar a quantidade de correspondência indesejada. E, afinal, quem se importa com as eleições primárias?

— Bom dia, Jack — disse Cathy, entrando na cozinha.

Estava metida em seu roupão rosa — um tanto surrado para uma pessoa extremamente criteriosa com as roupas. Ele nunca perguntava, mas supunha que tinha valor sentimental para ela.

— Oi, amor. — Jack se levantou e deu o primeiro beijo do dia na esposa, seguido de um abraço meio desajeitado. — Jornal?

— Não, vou deixar para ler no trem.

Ela abriu a porta da geladeira e tirou algumas coisas. Jack não olhou.

— Vai tomar café hoje?

— Claro. Não tenho nenhuma operação marcada. — Quando havia uma cirurgia prevista, ela evitava café por causa dos pequenos tremores nas mãos. Não se pode tremer quando se está colocando um globo ocular no lugar. Bem, aquele era o dia de conhecer melhor o professor Byrd. Bernie Katz o conhecia e o considerava um amigo, o que era um bom sinal. Além disso, Cathy estava entre os melhores cirurgiões oftálmicos; não havia razão para se preocupar com o novo hospital ou o novo chefe. Mas as preocupações eram humanas, ainda que Cathy fosse muito durona para demonstrá-las. — Que tal ovos com bacon}

— Tenho permissão para ingerir um pouco de colesterol? — perguntou o marido, surpreso.

— Uma vez por semana — respondeu a doutora Ryan, com autoridade; no dia seguinte, ele teria que comer aveia.

— Para mim, está ótimo — disse Ryan, satisfeito.

— Sei que vai comer alguma besteira no trabalho mesmo.

— Moi?

— É, um croissant com manteiga, provavelmente. Você sabe que eles são praticamente manteiga pura.

— Pão sem manteiga é como tomar banho sem sabonete.

— Repita isso quando tiver seu primeiro ataque cardíaco.

— No último exame, meu colesterol estava em... quanto?

— Cento e cinquenta e dois — respondeu Cathy, dando um bocejo de impaciência.

— E isso não é bom? — insistiu o marido.

— É razoável — admitiu. O dela, porém, era 146.

— Obrigado, querida — disse Ryan, voltando a atenção para a página de opinião do Times.

As cartas dos leitores eram muito interessantes, e a qualidade do texto em todo o jornal superava qualquer exemplo da mídia impressa americana. Ryan lembrou-se de que o inglês nascera ali e nada seria mais natural. A inversão da ordem nas frases tinha com frequência a elegância da poesia e, por vezes, era sutil demais para a apreciação de seu olhar americano. Mas ele concluiu que acabaria se acostumando.

O som familiar e o cheiro agradável do bacon fritando logo tomaram conta do ambiente.

O café — com um toque de leite em vez de creme — estava delicioso, e as notícias não eram do tipo que estragavam uma refeição. Fora o tempo terrível, as coisas não pareciam tão más. E a parte mais difícil, acordar, já estava superada.

— Cathy?

— Sim, Jack?

— Eu já disse que a amo?

Ela verificou as horas de maneira exagerada.

— Você está um pouco atrasado, mas vou desconsiderar isso porque acordamos muito cedo.

— Como vai ser seu dia, querida?

— Ah, vou encontrar as pessoas, tentar observar como as coisas são feitas. Quero principalmente conhecer minhas enfermeiras. Espero que sejam boas.

— Isso é importante?

— Não existe coisa mais capaz de arruinar uma cirurgia do que uma enfermeira desajeitada e incompetente. Mas o pessoal do Hammersmith parece ser bom, e Bernie garante que o professor Byrd talvez seja o melhor por aqui. Eles se conhecem há vinte anos. Byrd vai muito ao Hopkins, apesar de eu nunca ter esbarrado nele. Quer que frite dos dois lados?

— Por favor.

Barulho de casca de ovo quebrando. Como Jack, Cathy gostava de usar a frigideira de ferro fundido. Talvez fosse mais difícil de limpar, mas os ovos ficavam muito mais gostosos. Finalmente, o som do botão da torradeira sendo baixado.

A página de esportes — que ali se chamava apenas "esporte", no singular — revelou a Jack tudo o que ele precisava saber sobre futebol, o que não era muito.

— Como foram os Yankees ontem à noite? — perguntou Cathy.

— Quem se importa? — respondeu o marido.

Ele crescera torcendo por Brooks Robinson, Milt Papas e os Orioles. A esposa era torcedora dos Yankees. Aquilo atrapalhava o casamento. Claro que Mickey Mantle havia sido um bom jogador, e também devia amar a mãe, mas jogava com o uniforme listrado. Bastava. Ryan se levantou e preparou um café para a mulher, entregando a xícara com um beijo.

— Obrigada, amor.

Cathy serviu a comida ao marido. Os ovos pareciam um pouco diferentes, como se a galinha tivesse sido alimentada com milho laranja, só para as gemas saírem com uma cor tão viva. Mas o sabor era ótimo. Cinco minutos de deleite depois, Ryan foi para o chuveiro, dando espaço à mulher.

Dez minutos mais tarde, estava escolhendo a roupa: camisa de algodão branco, gravata listrada e alfinete dos fuzileiros navais. As 6h40, ouviu uma batida na porta.

— Bom dia.

Era Margaret van der Beek, a babá-governanta. Ela morava a pouco mais de um quilômetro e ia de carro. Recomendada por uma agência aprovada pelo SIS, era sul-africana, filha de uma pastora, magra, bonita e aparentemente uma pessoa agradável. Carregava uma enorme bolsa. Seu cabelo era de um ruivo intenso, o que sugeria ascendência irlandesa, mas ela aparentemente descendia apenas de sul-africanos e holandeses. O sotaque distinguia-se do local, mas soava bem aos ouvidos de Jack.

— Bom dia, Srta. Margaret — disse Ryan, indicando com as mãos que entrasse. — As crianças ainda estão dormindo, mas acho que vão acordar a qualquer momento.

— O pequeno Jack dorme bem para um bebê de cinco meses.

— Talvez ainda seja a viagem de avião — pensou Ryan, em voz alta, embora Cathy já houvesse dito que crianças não sofriam desse problema. Jack não conseguia acreditar.

Em todo caso, o diabinho, um termo que Cathy odiava, só tinha ido dormir às dez e meia na noite anterior. Aquilo era mais difícil para a mãe: Jack conseguia dormir com o barulho; ela, não.

— Está quase na hora, querida — gritou.

— Já sei, Jack — retorquiu Cathy.

Em seguida, ela apareceu, carregando o filho, com Sally vindo atrás em seu pijama de coelhinho.

— Oi, gracinha.

Ryan aproximou-se para erguer a filha e lhe dar um abraço e um beijo. Sally devolveu o sorriso e premiou o pai com um abraço caprichado. Como as crianças conseguiam acordar com tamanho bom humor era um mistério para ele. Talvez fosse um instinto de ligação, para garantir os cuidados por parte dos pais, a mesma razão pela qual sorriam para a mamãe e o papai praticamente desde o primeiro momento. Criaturinhas inteligentes, as crianças.

— Jack, traga uma mamadeira — disse Cathy, levando o bebê para a mesinha de trocar fraldas.

— Positivo, doutora — respondeu o analista de inteligência, obediente, voltando à cozinha para pegar uma mamadeira com a mistura que havia preparado na noite anterior.

Cathy deixara claro, desde a tenra infância de Sally, que aquilo era trabalho de homem. Tanto quanto trocar os móveis de lugar e levar o lixo para fora — as tarefas domésticas para as quais os homens haviam sido preparados geneticamente. Era como a limpeza de um fuzil para um soldado: tirar a tampa, inverter o bico, colocar a mamadeira na panela com dez centímetros de água, acender o fogo e esperar alguns minutos.

Essa parte da tarefa, no entanto, ficaria a cargo da Srta. Margaret. Pela janela, Jack viu o táxi chegando.

— O carro chegou, amor.

— Tudo bem — respondeu, resignada.

Cathy não gostava de deixar as crianças para ir trabalhar. Bem, provavelmente nenhuma mãe gostava. Jack observou-a entrar no banheiro para lavar as mãos, depois sair para vestir seu terninho, que combinava com o conjunto cinza — até os sapatos baixos eram cobertos de tecido da mesma cor. Ela queria deixar uma primeira impressão positiva. Depois de dar um beijo em Sally e outro no bebê, caminhou até a porta, que Jack segurava para ela.

O táxi era um sedã comum da Land Rover. Só Londres exigia os clássicos táxis ingleses para manter a tradição — embora alguns modelos mais antigos acabassem no interior. Ryan havia agendado o serviço no dia anterior.

O motorista chamava-se Edward Beaverton e parecia animado demais para uma pessoa que tinha de trabalhar antes das sete.

— Olá. Ed, esta é minha esposa. A encantadora Dra. Ryan.

— Bom dia, madame — disse o motorista. — Soube que a senhora é cirurgiã.

— Isso mesmo. Oftalm...

O marido interrompeu.

— Ela faz cortes em globos oculares e depois costura de novo. Você precisa assistir, Eddie, é fascinante como ela faz isso.

O motorista deu de ombros.

— Obrigado, senhor, mas não... obrigado.

— Jack só diz isso para deixar as pessoas com o estômago virado — disse Cathy. — Além do mais, ele é muito medroso para acompanhar uma cirurgia de verdade.

— E ele tem toda razão, madame. É bem melhor provocar uma cirurgia do que assistir a uma.

— Como?

— Você foi fuzileiro naval?

— Isso. E você?

— Eu era do regimento de paraquedistas. Foi o que nos ensinaram: é melhor causar um ferimento no inimigo do que ser vítima de um.

— A maioria dos fuzileiros concordaria com isso, amigo — disse Ryan, com um sorriso.

— Não foi isso que nos ensinaram no Hopkins — disse Cathy, com desdém.

 

 

ERA UMA HORA MAIS TARDE em Roma. O coronel Goderenko, oficialmente segundo-secretário da embaixada soviética, tinha cerca de duas horas de compromissos diplomáticos por dia, mas a maior parte do tempo era tomada pelas exigências da função de rezident — ou Station Chief da KGB. Era uma função desgastante. Roma era um grande centro de informações para a Otan, uma cidade em que se podia obter todo tipo de material de inteligência política ou militar. E esta era sua principal preocupação profissional. Ele e seus seis oficiais, de dedicação exclusiva ou parcial, comandavam um total de 23 agentes italianos e um alemão que entregavam informações por razões políticas ou pecuniárias. Seria melhor se todos tivessem motivação essencialmente ideológica, mas isso estava se tornando, rapidamente, coisa do passado. A rezidentura em Bonn oferecia condições de trabalho mais favoráveis. Alemães são alemães. Muitos deles podiam ser convencidos de que ajudar os coirmãos da Alemanha Oriental era preferível a colaborar com os americanos, britânicos e franceses, que se consideravam aliados da pátria-mãe. Para Goderenko e seus compatriotas, os alemães nunca seriam aliados, a despeito dos supostos interesses políticos que tivessem, embora a aura do marxismo-leninismo por vezes fosse um disfarce útil. Na Itália, as coisas eram diferentes. A duradoura memória de Benito Mussolini já estava enfraquecida, e os comunistas autênticos tinham maior interesse por vinho e macarrão do que pelo marxismo revolucionário. Os bandoleiros das Brigadas Vermelhas eram uma exceção, embora estivessem mais para um bando de arruaceiros perigosos do que para colaboradores politicamente confiáveis — diletantes corruptos em essência que, entretanto, podiam ser úteis. Ocasionalmente, ele acompanhava suas viagens à Rússia, onde estudavam teoria política e, mais importante, aprendiam técnicas de campo que pelo menos tinham proveito tático.

Em cima da mesa, havia uma pilha de despachos noturnos. O primeiro era uma mensagem do Centro Moscou. O cabeçalho indicava que se tratava de algo importante e trazia o número do livro de cifras: 115890. Estava no cofre de seu escritório, mais exatamente no aparador atrás da mesa. Tinha que girar a cadeira e quase se ajoelhar para efetuar a combinação que abria a porta — isso depois de desativar o alarme eletrônico ligado ao disco. O processo levou alguns segundos. Em cima do livro, estava o disco de cifras. Goderenko polidamente odiava usar discos únicos, mas estes faziam parte de sua vida tanto quanto ir ao banheiro. Desagradável, porém necessário.

Precisou de dez minutos para decodificar o despacho. Só com o trabalho completo captou o conteúdo da mensagem. Do próprio diretor?, surpreendeu-se. Para qualquer oficial de médio escalão do governo, aquilo correspondia a ser chamado à sala do diretor no colégio. O papa? Por que maldita razão Yuriy Vladimirovich está interessado em chegar perto do papa? Então ele refletiu por um segundo. Ah, claro. Não tem nada a ver com o chefe da Igreja Católica. A questão é a Polônia. Você pode tirar os polacos da Polônia, mas não pode tirar a Polônia dos polacos. É uma questão política. Isso a tornava importante.

Goderenko, contudo, não ficou satisfeito.

INVESTIGUE E RELATE MEIOS PARA APROXIMAÇÃO FÍSICA DO PAPA, releu Goderenko. No jargão da KGB, só havia um significado para aquilo.

Matar o papa?, pensou Goderenko. Seria um desastre político. Por mais que a Itália fosse católica, os italianos não eram um povo notadamente religioso. La dolce vita — esta, sim, era a religião do país. Os italianos formavam o povo mais desorganizado do mundo. Que um dia houvessem sido aliados dos hitleristas desafiava a lógica. Para os alemães, tudo devia estar in Ordnung, em seu devido lugar, limpo e pronto para ser usado a qualquer momento. As únicas coisas que os italianos mantinham em ordem eram a cozinha e, talvez, a adega. Fora isso, tudo parecia um tanto fortuito naquele lugar. Para um russo, ir à Itália representava um choque cultural, equivalente a levar um golpe de baioneta no peito. Os italianos não tinham senso de disciplina. Bastava observar o trânsito para confirmar: dirigir ali devia ser parecido com pilotar um avião de caça.

Todos os italianos, no entanto, nasciam com senso de estilo e propriedade. Havia coisas que não podiam ser feitas ali. Eles tinham um senso coletivo de beleza que era difícil de censurar — e violar tal código podia ter sérias consequências. Por exemplo, expor suas fontes de inteligência. Mercenários ou não... Nem mercenários trabalhariam contra sua própria religião, certo? Todo homem tinha escrúpulos, até — não, corrigiu-se, principalmente — naquele país. Portanto, as consequências políticas de algo como aquela missão em potencial poderiam afetar negativamente a produtividade de sua rezidentura e influenciariam seriamente o recrutamento de agentes.

Então, o que faço agora?, perguntou-se. Como um coronel experiente da Primeira Diretoria da KGB, além de um rezident muito bem-sucedido, ele tinha um certo grau de flexibilidade. Também integrava uma enorme burocracia. E a coisa mais fácil seria repetir o que todos os burocratas faziam. Ele iria atrasar, confundir e obstruir.

Para tanto, seria necessário ter um certo grau de habilidade, mas Ruslan Borissovich Goderenko sabia tudo de que precisava sobre o assunto.


6

 


MAS NÃO PERTO DEMAIS

 

NOVIDADES SÃO SEMPRE interessantes, e isso também vale para os cirurgiões.

Enquanto Ryan lia o jornal, Cathy observava pela janela do trem. Era mais um dia claro, com o céu tão azul quanto os belos olhos da esposa. Jack já havia memorizado o caminho, e o tédio invariavelmente o deixava sonolento. À medida que afundava no canto da poltrona, sentia as pálpebras ficando pesadas.

— Jack, você vai dormir? E se perder a parada?

— É na estação terminal — explicou. — O trem não para apenas; a viagem acaba lá. Além disso, nunca fique em pé quando puder se sentar e nunca se sente quando puder se deitar.

— Quem lhe ensinou isso?

— Meu artilheiro — disse Jack com os olhos fechados.

— Quem?

— Sargento de artilharia Phillip Tate, Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Ele comandou meu pelotão até eu ser morto naquele acidente de helicóptero. Suponho que tenha permanecido no comando depois que parti.

Ryan ainda mandava cartões de Natal ao sargento. Se Tate tivesse falhado, o "morto" não seria apenas uma piada sem graça. Tate e um oficial médico de segunda classe chamado Michael Burns estabilizaram a coluna de Ryan, no mínimo evitando uma lesão permanente. Burns também recebia cartões de Natal.

Faltando dez minutos para chegar à Victoria Station, Ryan esfregou os olhos e ajeitou-se na poltrona.

— Bem-vindo de volta — comentou Cathy secamente.

— Você vai fazer o mesmo lá pela meio da semana que vem.

Ela bufou.

— Para um ex-fuzileiro, você é bem preguiçoso.

— Querida, se não há nada para fazer, você pode usar o tempo de modo produtivo.

— Eu faço isso.

Ela mostrou o exemplar da The Lancet.

— Sobre o que está lendo?

— Você não entenderia — disse ela.

Era verdade. O conhecimento de Ryan sobre biologia limitava-se à dissecação de um sapo na escola. Cathy também fizera aquilo, mas provavelmente colocara tudo no lugar e observara o sapo pular de volta para sua folhinha. Ela também dava cartas como um trapaceiro de Las Vegas, um talento que deixava o marido impressionado a cada demonstração. Em compensação, era um fracasso com uma pistola. Isso provavelmente valia para a maioria dos médicos, e naquele país as armas eram vistas como objetos sujos, mesmo pelos policiais, alguns dos quais tinham permissão para carregá-las. País engraçado.

— Como eu chego ao hospital? — perguntou Cathy, enquanto o trem freava para a última parada.

— Por ser a primeira vez, pegue um táxi. Também pode pegar o metrô — sugeriu Jack. — É uma cidade nova, leva um tempo para se aprender a andar por aí.

— Como é a vizinhança? — perguntou.

A precaução vinha da infância em Nova York e de haver trabalhado em áreas pobres de Baltimore, onde era aconselhável manter os olhos bem abertos.

— A vista é melhor que a do Hopkins. Você não verá muitos casos de trauma por arma de fogo na emergência. E as pessoas são muito agradáveis. Quando perceberem que você é americana, logo vão se aproximar.

— É, eles foram legais conosco no mercadinho, ontem — reconheceu Cathy. — Mas, você sabe, eles não têm suco de uva por aqui.

— Meu Deus, que falta de civilidade! — exagerou Jack. — Então dê um pouco dessa bebida amarga daqui a Sally.

— Idiota! — disse ela, rindo. — Sally gosta de suco de uva e, não se esqueça, de suco de cereja Hi-C. Aqui eles só têm suco de groselha. Fiquei com medo de comprar.

— Sei. Ela também vai aprender a soletrar de um jeito esquisito. — Jack não se preocupava com a pequena Sally. As crianças, afinal, eram as criaturas mais adaptáveis do mundo. Talvez ela até entendesse as regras do críquete; se conseguisse, poderia explicar aquele jogo incompreensível ao pai.

— Meu Deus, todo mundo fuma aqui — comentou Cathy, quando chegavam à Victoria Station.

— Querida, pense nisso como uma futura fonte de renda para os médicos.

— É um modo horrível e idiota de morrer.

— Eu sei, meu amor.

Sempre que Jack fumava, a casa dos Ryan virava um inferno — outro custo adicional de se viver com uma médica. Ela estava certa, e Jack sabia, mas todos tinham direito a pelo menos um vício. À exceção de Cathy. Se ela tinha algum, escondia muito bem. O trem foi parando, permitindo que se levantassem e abrissem a porta do compartimento.

Eles saíram no meio da multidão de funcionários de escritórios que chegavam para trabalhar. Exatamente igual ao terminal Grand Central, em Nova York, pensou Jack, mas não tão movimentado. Londres tinha um monte de estações, dispostas como as pernas de um polvo. A plataforma era confortavelmente ampla, e a turba, mais educada do que em Nova York. Embora a hora do rush fosse igual em qualquer lugar, a cidade inglesa tinha um ar de cortesia de que era difícil não gostar. Até Cathy logo admiraria aquilo. Ryan levou a esposa até o lado de fora, onde uma fila de táxis aguardava. Ele a conduziu ao primeiro.

— Hospital Hammersmith — disse ao motorista, despedindo-se em seguida da mulher com um beijo.

— Nos vemos à noite, Jack.

Ela sempre tinha um sorriso para cie.

— Espero que tenha um bom dia, querida.

Depois disso, Ryan seguiu para o outro lado. Uma parte dele odiava o fato de Cathy ter que trabalhar — a mãe dele nunca precisou. Seu pai, como todos os homens da mesma geração, entendia que era obrigação do homem colocar comida na mesa. Emmet Ryan gostou do casamento do filho com uma médica, mas a postura chauvinista em relação ao lugar da mulher de algum modo o contaminara, apesar de Cathy ganhar muito mais do que Jack — provavelmente porque oftalmologistas eram mais valiosos à sociedade do que analistas de inteligência. Ou o mercado de trabalho pensava assim. Bem, ela não seria capaz de fazer o que ele fazia e vice-versa, e isso era tudo.

Na Century House, o segurança uniformizado mostrou que o reconhecera, dando um aceno e um sorriso.

— Bom dia, Sir John.

— Oi, Bert. — Ryan passou o crachá no leitor. A luz ficou verde, e Jack atravessou a porta de segurança. De lá até o elevador, eram poucos passos.

Simon Harding, que também estava chegando, cumprimentou-o do modo habitual: — Bom dia, Jack.

A caminho de sua mesa, Jack grunhiu alguma coisa em resposta. Havia um envelope esperando por ele. A etiqueta dizia que tinha sido enviado pela embaixada dos Estados Unidos na Grosvenor Square. Depois de rasgar a ponta, descobriu que era o relatório do Hopkins sobre Mikhail Suslov. Jack passou os olhos pelas páginas e viu algo que havia esquecido. Bernie Katz, um médico sempre muito cuidadoso, diagnosticara o diabetes de Suslov como em estágio avançado e previra que ele teria uma sobrevida limitada.

— Veja, Simon. Diz que o líder dos comunistas está mais doente do que parece.

— Que pena — comentou Harding, pegando o papel, enquanto se atrapalhava com o cachimbo. — Ele não é um cara muito legal, sabia?

— Ouvi dizer.

Os papéis seguintes da pilha de Ryan eram os relatórios da manhã. Tinham uma etiqueta de SIGILOSO, o que significava apenas que o conteúdo provavelmente não apareceria nos jornais por um ou dois dias. Mesmo assim, os documentos eram interessantes, porque, ocasionalmente, indicavam as fontes — e estas poderiam indicar se a informação era boa ou ruim. Incrivelmente, nem todos os dados recebidos pelos serviços de inteligência eram confiáveis. Grande parte podia ser classificada como disse-me-disse, já que até pessoas importantes dos círculos de governo do mundo tinham esse hábito. Não passavam de filhos da mãe invejosos e traiçoeiros, como todos os outros. Principalmente em Washington. — Talvez mais ainda em Moscou?, Ryan perguntou a Harding.

— Sim, é bem por aí. A sociedade soviética se apoia muito no status, e, por isso, a traição pode ser... bem, Jack, pode-se dizer que é o esporte nacional deles. Quer dizer, isso acontece aqui também, mas lá chega ao extremo. Acredito que tenha sido assim nas cortes medievais: pessoas se digladiando por uma posição todo santo dia. Os conflitos internos nas grandes burocracias devem ser terríveis.

— E como isso afeta esse tipo de informação?

— Vivo pensando que deveria ter lido mais psicologia em Oxford. Há vários psiquiatras na nossa equipe aqui. E estou certo de que vocês também têm em Langley.

— Claro. Conheço alguns deles. A maioria na minha divisão, mas em outras também. Não somos tão bons nessa área quanto deveríamos.

— Como assim, Jack?

Ryan espreguiçou-se na cadeira.

— Alguns meses atrás, falei com um dos colegas de Cathy no Hopkins, um neuropsiquiatra chamado Solomon. Você tinha que conhecer Sol. Ele é muito esperto. Chefe de departamento e tudo mais. Não acredita em colocar os pacientes no divã para conversar. Para ele, a maioria das doenças mentais é resultado de desequilíbrios químicos no cérebro. Quase foi afastado da profissão por causa disso, mas, vinte anos depois, chegaram à conclusão de que ele estava certo. Enfim, Sol me explicou que a maior parte dos políticos é como astros de cinema. Eles se cercam de bajuladores, pessoas que só dizem sim e gente para sussurrar coisas legais em seus ouvidos. E muitos começam a acreditar nisso tudo. Porque querem acreditar. Tudo não passa de um grande jogo para eles, mas um jogo em que tudo é um processo e pouquíssima coisa é produto. Não são pessoas de verdade. Não fazem qualquer trabalho real; só parecem fazer. Gosto de uma frase do filme Tempestade sobre Washington: Washington é uma cidade em que se lida com as pessoas não como elas são, mas como suas reputações indicam que sejam. Se isso é verdade em Washington, em que grau maior deve ser em Moscou? Lá, tudo é política. É tudo uma questão de símbolos, certo? Então, os conflitos internos e as traições devem ser realmente barra-pesada por lá. Acho que isso nos afeta de duas formas. Primeiro, significa que uma parte considerável dos dados que conseguimos é imprecisa, porque as fontes ou não percebem os fatos mesmo quando eles pulam na sua frente ou adulteram as informações para seus próprios objetivos à medida que as processam e passam adiante. Consciente ou inconscientemente. Segundo, significa que até nossos inimigos que precisam dos dados não sabem diferenciar o bom do ruim. Assim, mesmo que entendamos o conteúdo, não podemos adivinhar o que significa, porque eles mesmos não sabem que diabo fazer com os dados... supondo-se que saibam do que se trata, para começo de conversa. Somos obrigados a analisar informações deficientes, que provavelmente serão levadas a cabo equivocadamente pelos destinatários legítimos. Então como é que podemos prever o que vão fazer, se eles mesmos não sabem a coisa certa a fazer?

A pergunta provocou um sorriso por trás do cachimbo.

— Muito bom, Jack. Você está começando a entender. Para ser objetivo, muito pouco do que eles fazem tem sentido. No entanto, não é tão difícil prever seu comportamento. É só pensar qual seria a atitude mais inteligente e invertê-la. Sempre funciona — disse Harding, rindo.

— Mas a outra coisa que Sol disse e me preocupa é que pessoas desse tipo, que gostam de ter o poder nas mãos, podem ser muito perigosas. Elas não sabem quando parar ou como usar o poder de forma inteligente. Acho que foi assim que começou o problema no Afeganistão.

— Correto — concordou Simon, com uma expressão séria. — Eles são aprisionados por suas próprias ilusões ideológicas. Não são capazes de ver um caminho sem essa interferência. E o grande problema é que controlam um poder grande demais.

— Não estou entendendo alguma coisa nessa equação.

— Todos temos a mesma dificuldade, Jack. Faz parte do trabalho.

Era hora de mudar de assunto.

— Alguma novidade do papa?

— Nada por hoje, até agora. Se Basil tiver conseguido algo, devo ficar sabendo antes do almoço. Está preocupado com isso?

Jack fez um sinal afirmativo.

— Sim. O problema é o seguinte: se virmos uma ameaça real, o que podemos fazer a respeito? Não podemos colocar um pelotão de marines em volta dele, certo? Com toda a exposição... quero dizer, ele passa tanto tempo em público que não é possível protegê-lo.

— E pessoas como ele não se encolhem diante do perigo, não é mesmo?

— Lembro de quando Martin Luther King foi assassinado. Por Deus, ele sabia, tinha que saber, que havia armas por lá com seu nome escrito. Mas não recuou. Não fazia parte de sua natureza fugir e se esconder. Não será diferente em Roma, meu amigo, ou em qualquer lugar aonde o papa vá.

— Alvos móveis são, supostamente, mais difíceis de acertar — observou Simon, sem muito entusiasmo.

— Não quando se sabe aonde ele vai com um ou dois meses de antecedência. Se a KGB decidir eliminá-lo, não vejo que possamos fazer muita coisa.

— Exceto avisá-lo, talvez.

— Claro, assim ele pode rir do assunto. Você sabe que ele provavelmente faria isso. Ele lidou com nazistas e comunistas nos últimos quarenta anos. O que mais pode assustar esse cara? — Ryan parou por um instante. — Se decidirem fazer isso, quem dará a ordem?

— Acredito que teria que ser votado pelo próprio Politburo em sessão plenária. As implicações políticas são muito graves para um membro, por mais experiente, tentar levar isso adiante apenas com sua própria autoridade. E lembre-se de como eles são colegiais: ninguém toma uma decisão sozinho, nem Andropov, o mais independente do grupo.

— Bem, isso significa que são... quantos? Quinze pessoas têm que votar contra ou a favor. Quinze bocas, mais assessores e parentes para falar do assunto. Qual é o nível de nossas fontes? Ficaremos sabendo de algo?

— É uma questão delicada, Jack. Temo que não possa responder.

— Não pode no sentido de não poder ou no sentido de não ter permissão? — perguntou Jack incisivamente.

— Jack, sim, temos fontes das quais tenho conhecimento, mas que não posso discutir com você.

Harding parecia realmente incomodado por ter que admitir aquilo.

— Ei, entendo sua posição, Simon.

Jack também tinha suas restrições. Por exemplo, sequer podia pronunciar as palavras TALENT KEYHOLE, para as quais tinha autorização, mas que eram NOFORN, ou seja, não deviam ser comentadas com estrangeiros — ainda que Simon e, certamente, Sir Basil soubessem um pouco do assunto. Era algo sem sentido porque se negava informação a pessoas que poderiam fazer bom proveito dela. Se Wall Street agisse dessa forma, os Estados Unidos estariam abaixo da linha da pobreza, resmungou Jack. As pessoas eram confiáveis ou não. Entretanto, o jogo tinha suas regras, e Jack as respeitava. Era o preço para se entrar naquele clube.

— Esse material é muito bom — disse Harding, virando à página três do relatório de Bernie Katz.

— Bernie é esperto — concordou Ryan. — É por isso que Cathy gosta de trabalhar para ele.

— Mas ele é oftalmologista, e não psiquiatra, certo?

— Simon, nesse nível da medicina, sabe-se um pouco de todas as especialidades. Perguntei a Cathy: a retinopatia diabética de Suslov indica um problema grave de saúde. O diabetes prejudica os pequenos vasos sanguíneos atrás dos olhos. É possível confirmar através de exames. Bernie e sua equipe corrigiram o problema parcialmente, já que não é possível consertar totalmente, e lhe devolveram de 75 a 80 por cento da visão. É o bastante para dirigir um carro de dia, mas o problema latente persiste. Não se trata apenas dos pequenos vasos sanguíneos nos olhos. Ele tem a doença no corpo inteiro. Parece que Mike Vermelho vai morrer de insuficiência renal ou doença cardíaca nos próximos dois anos, no máximo.

— Nossos amigos acham que ele ainda tem uns cinco anos.

— Bem, não sou médico. Você pode pedir a seu pessoal que converse com Bernie sobre isso, se quiser, mas todos os sinais estão lá. Cathy diz que é possível descobrir várias coisas sobre o diabetes observando o globo ocular.

— Suslov sabe disso?

Ryan deu de ombros.

— É uma boa pergunta, Simon. Os médicos nem sempre contam tudo aos pacientes, provavelmente menos ainda por lá. Acredito que Suslov esteja sendo tratado por um médico confiável, do ponto de vista político, e de alto nível acadêmico. Corresponderia, aqui, a um cara de excelente gabarito que realmente entende de sua área. Lá...

Harding concordou com um gesto.

— Correto. Pode ser que ele entenda mais de Lenin do que de Pasteur. Já ouviu falar de Sergei Koroiev, o principal projetista de foguetes deles? Houve um incidente especificamente repugnante. O pobre sujeito foi praticamente morto na mesa de operações porque dois cirurgiões experientes não gostavam um do outro e nenhum deles queria ajudar o companheiro a escapar quando começou a entrar água na embarcação. O resultado talvez tenha sido positivo para o Ocidente, mas ele era um engenheiro muito bom, morto por incompetência médica.

— Alguém pagou por isso? — perguntou Ryan.

— Ah, não. Ambos tinham muita importância política, muitos padrinhos em altos postos. Estão seguros, a não ser que matem um amigo deles, o que não vai acontecer. Tenho certeza que contam com jovens competentes para cobrir sua retaguarda.

— Sabe do que eles precisam na Rússia? Advogados. Não gosto de oportunistas, mas acredito que ajudam a manter as pessoas atentas.

— De qualquer maneira, não, Suslov não sabe da gravidade de sua condição. Pelo menos é o que nossos consultores médicos pensam. Segundo os relatórios de inteligência, ele ainda toma sua vodca, o que certamente é contraindicado — disse Harding, com uma careta. — E seu substituto será Alexandrov, tão desagradável quanto o mentor. Terei que providenciar a atualização do dossiê dele.

Ele fez uma anotação.

Ryan, por sua vez, voltou a atenção aos relatórios da manhã antes de começar em seu projeto oficial. Greer queria que ele trabalhasse em um estudo sobre práticas de administração na indústria bélica soviética, para descobrir como, e se, aquele segmento da economia soviética funcionava. Ryan e Harding teriam que cooperar no estudo, que usaria dados britânicos e americanos. Era algo compatível com a formação acadêmica de Ryan. Poderia até fazer com que fosse notado no alto escalão.

 

 

A MENSAGEM DE RESPOSTA chegou às 11h32. Trabalho rápido de Roma, pensou Zaitzev, enquanto começava a decodificação. Comunicaria ao coronel Rozhdestvenskiy assim que acabasse, mas levaria algum tempo. O major verificou o relógio de parede.

Também atrasaria seu almoço, mas a prioridade o condenava a ouvir o estômago roncar. A única boa notícia era que o coronel Goderenko começara a sequência de encriptação pelo alto da página 285.

 

Confidencial Imediato e Urgente

De: Rezident em Roma

Para: Escritório do Diretor, Centro Moscou

Referência: seu despacho operacional 15-8-82-666


A APROXIMAÇÃO FÍSICA DO PAPA NÃO É DIFÍCIL SE NÃO HOUVER LIMITAÇÕES DE HORÁRIO. SERÁ NECESSÁRIA ORIENTAÇÃO PARA UMA AVALIAÇÃO COMPLETA DA SUA REQUISIÇÃO. O PADRE PARTICIPA DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E FAZ APARIÇÕES QUE SÃO DIVULGADAS COM MUITA ANTECEDÊNCIA. APROVEITAR ESSAS OPORTUNIDADES NÃO SERÁ FÁCIL DEVIDO ÀS GRANDES MULTIDÕES QUE COMPARECEM ÀS CERIMÔNIAS. OS CUIDADOS DE SEGURANÇA AO SEU REDOR SÃO DIFÍCEIS DE ESTIMAR SEM ORIENTAÇÃO ADICIONAL. RECOMENDAÇÃO CONTRÁRIA À REALIZAÇÃO DE AÇÃO FÍSICA CONTRA O PADRE DEVIDO ÀS PREVISÍVEIS CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS ADVERSAS. DIFICULDADE PARA ESCONDER A ORIGEM DE UMA OPERAÇÃO CONTRA O PADRE.

 

Bem, pensou Zaitzev, o rezident não gostou muito da ideia. Yuriy Vladimirovich ouviria o conselho do oficial de campo? Zaitzev sabia que aquela questão estava muito acima de seu posto. Ele pegou o telefone e discou.

— Coronel Rozhdestvenskiy — respondeu uma voz áspera.

— Major Zaitzev, do centro de comunicações. Tenho uma resposta para o seu meia-meia-meia, camarada coronel.

— Estou a caminho — respondeu Rozhdestvenskiy.

O coronel cumpriu o que dissera, e, três minutos depois, passava pelo posto de controle.

Nesse intervalo, Zaitzev retornara o livro de cifras ao arquivo central e colocara o formulário de mensagem e a tradução em um envelope marrom, que foi entregue ao coronel.

— Alguém viu isso? — perguntou Rozhdestvenskiy.

— Decerto que não — respondeu Zaitzev.

— Muito bem.

O coronel Rozhdestvenskiy afastou-se sem dizer outra palavra. Zaitzev saiu de sua mesa de trabalho e se encaminhou ao refeitório para o almoço. A comida era a melhor razão para se trabalhar no Centro.

Ao parar no banheiro para lavar as mãos, Zaitzev não conseguira esquecer a troca de mensagens. Yuriy Andropov queria matar o papa, e o rezident em Roma não gostara da ideia. Zaitzev não devia ter qualquer tipo de opinião — apenas fazia parte do sistema de comunicações. A alta hierarquia do Comitê de Segurança do Estado raramente se lembrava de que seus funcionários tinham cérebros...

... e até consciência.

Zaitzev entrou na fila e pegou a bandeja e os talheres de metal. Escolheu o cozido de carne, com quatro fatias grossas de pão, além de um copo grande de chá. A caixa cobrou 55 copeques. Seus habituais companheiros de almoço já haviam estado ali e ido embora, então ele acabou ocupando um lugar na ponta de uma mesa repleta de gente que não conhecia. Falavam de futebol, e ele preferiu não participar, ficando sozinho com seus pensamentos. O cozido estava muito bom, assim como o pão, recém-saído do forno. A única coisa que faltava ali eram os talheres de prata, como havia nas salas de jantar dos andares superiores. Usavam os mesmos utensílios de alumínio-zinco superleves que os demais cidadãos soviéticos. Funcionavam bem, mas, devido à excessiva leveza, causavam uma sensação estranha nas mãos.

Então, pensou ele, eu estava certo. O diretor está pensando em assassinar o papa.

Zaitzev não era um homem religioso. Nunca estivera em uma igreja na vida — à exceção daqueles prédios enormes transformados em museus depois da revolução. Tudo que sabia a respeito de religião era a propaganda feita por razões óbvias no ensino público soviético. Mesmo assim, algumas crianças que conhecera na escola falavam em acreditar em Deus, mas ele não as denunciara porque a delação não era do seu feitio.

Zaitzev não pensava muito nas grandes questões da vida. Na maior parte do tempo, a vida na União Soviética limitava-se a ontem, hoje e amanhã. Os aspectos econômicos não permitiam que as pessoas fizessem planos de longo prazo. Não havia casas de campo para comprar, carros de luxo para desejar ou férias refinadas para as quais fosse necessário economizar. Ao submeter as pessoas ao que chamava de socialismo, o governo do país permitia — forçava — todos a aspirar basicamente às mesmas coisas, a despeito de preferências individuais, o que significava esperar em uma lista interminável e ser notificado quando um nome aparecia. E perder o lugar, sem saber a razão, para aqueles com mais tempo de partido. Ou não, porque algumas pessoas tinham acesso a lugares melhores. Sua vida, como a de todos os outros, parecia com a de um bezerro na engorda. Ele recebia uma assistência razoável e a mesma comida sem graça, no mesmo horário, em incontáveis dias idênticos. Havia um tom cinzento, um tédio pairante, em todos os aspectos da vida — no seu caso, aliviado apenas pelo conteúdo das mensagens que processava e encaminhava. Ele não devia pensar sobre as mensagens, muito menos lembrar de seu teor, mas, sem ter com quem conversar, tudo que podia fazer era deter-se nelas, na privacidade de sua mente. Naquele dia, sua mente estava ocupada por uma única coisa, que não se calaria. Corria como um hamster em sua roda de exercício, girando, girando, e sempre voltando ao mesmo lugar.

Andropov quer matar o papa.

Ele já havia processado mensagens sobre assassinatos antes. Não muitas. A KGB estava gradualmente se afastando desse método. Muitas coisas saíam errado. Apesar do talento profissional e da inteligência dos oficiais de campo, os policiais de outros países eram espertos e tinham a paciência impressionante de uma aranha em sua teia. Antes que a KGB pudesse desejar que uma pessoa morresse e tomasse providências para tanto, já havia testemunhas e evidências; capas de invisibilidade só existiam em histórias infantis.

Com maior frequência, ele processava mensagens sobre desertores ou supostos desertores em potencial — ou, em casos igualmente graves, oficiais e agentes suspeitos de agir em duas frentes, servindo também ao inimigo. Ele chegara a ver evidências transmitidas em forma de mensagens, que convocavam oficiais de volta para "reuniões", das quais raramente retornavam a suas rezidenturas. O que, exatamente, acontecia a eles era apenas tema de rumores, sempre desagradáveis. Uma das histórias falava de um oficial que agira mal e acabara sendo colocado vivo em um crematório — ao estilo das SS alemãs. Ele ouvira que havia um filme do episódio e conversara com pessoas que conheciam outras pessoas que o viram. Mas nunca vira as imagens pessoalmente ou encontrara alguém que as tivesse visto. Algumas coisas, pensou Oleg Ivanovich, eram inverossímeis demais até para a KGB. Não, a maioria das histórias falava de pelotões de fuzilamento — que frequentemente estragavam tudo — ou uma única bala de pistola na cabeça, como o próprio Lavrenti Beria fizera. Nestas histórias, todos acreditavam. Ele vira fotos de Beria que pareciam pingar sangue. E o Félix de Ferro sem dúvida teria feito o mesmo entre mordidas em seu sanduíche. Ele era o tipo de pessoa que dava à crueldade um nome nefasto.

Mas havia um sentimento geral, ainda que não amplamente declarado, de que a KGB estava se tornando mais kulturniy em suas relações com o mundo. Mais refinada. Mais civilizada. Mais afável e gentil. Os traidores, logicamente, eram executados, porém só depois de um julgamento em que 13B pelo menos recebiam uma oportunidade pro forma de explicar seus atos e, caso fossem inocentes, provar as alegações. Quase nunca acontecia, mas porque o Estado só acusava os realmente culpados. Os investigadores da Segunda Diretoria estavam entre as pessoas mais temidas e bem preparadas de todo o país. Dizia-se que eles nunca erravam e nunca se deixavam enganar, como deuses de alguma espécie.

Embora o Estado dissesse que não havia deuses. Homens — e mulheres. Todos conheciam a Escola de Pardais, sobre a qual os homens costumavam falar com sorrisos largos e piscando os olhos. Ah, ser um instrutor ou, melhor ainda, um oficial de garantia de qualidade lá!, sonhavam. E serem pagos por isso. Como sua Irina costumava observar, os homens não passavam de porcos. Mas podia ser divertido ser um porco, refletia Zaitzev.

Matar o papa... por quê? Ele não é uma ameaça a este país. O próprio Stalin brincara uma vez: “Quantas divisões o papa comanda?” Então, por que matá-lo? Até o rezident era contrário à ideia. Goderenko temia as repercussões políticas. Stalin ordenara a morte de Trotsky e destacara um oficial da KGB para a missão, que sabia que receberia uma longa condenação por aquilo. Mas obedecera assim mesmo, fiel à vontade do partido, em um gesto profissional de que se falava durante o treinamento na academia — com o conselho mais eventual de que na verdade não fazemos mais esse tipo de coisa. Embora os instrutores não mencionassem, não era kulturniy. Então, sim, a KGB estava se afastando desse tipo de comportamento.

Até agora. Até aquele dia. E mesmo o experiente rezident era contra. Por quê? Talvez porque não quisesse que ele próprio e a agência — e seu país! — fossem tão nekulturniy.

Ou porque fazer aquilo seria mais do que estúpido? Seria errado... "Errado" era um conceito estranho aos cidadãos da União Soviética. Pelo menos, em relação às coisas percebidas como moralmente erradas. A moralidade em seu país havia sido substituída pelo politicamente correto ou incorreto. Tudo que servisse aos interesses do sistema político do país merecia elogios. O que não servisse merecia... a morte?

E quem decidia aquele tipo de coisa?

Os homens.

Os homens decidiam porque não havia moralidade, como o mundo entendia o termo.

Não havia Deui para declarar o que era bom e o que era mau.

E ainda assim...

Ainda assim, no coração de todo homem havia uma consciência inata do certo e do errado. Matar outro homem era errado. Para tirar a vida de um homem era preciso ter uma causa justa. Mas também eram os homens que decidiam o que constituía esta causa. Os homens devidos, nos lugares devidos, com a autoridade devida, tinham a capacidade e o direito de matar porque... por quê?

Porque Marx e Lenin assim o disseram.

O governo de seu país decidira dessa maneira muito tempo atrás.

Zaitzev passou manteiga no último pedaço de pão e o mergulhou no resto de molho em sua tigela antes de comê-lo. Ele sabia que seus pensamentos eram muito profundos, até perigosos. Sua pátria não encorajava, ou sequer permitia, o pensamento independente.

Não se devia questionar o partido e sua sabedoria. Não ali. No refeitório da KGB, nunca, nem uma única vez se ouvira alguém pensar alto se o partido e a pátria-mãe à qual servia e protegia eram capazes de um ato incorreto. Talvez, esporadicamente, as pessoas especulassem sobre táticas, mas mesmo nestes casos as conversas respeitavam limites que eram mais altos e rígidos do que os muros do Kremlin.

A moralidade de seu país, pensou Zaitzev, havia sido predeterminada por um judeu alemão vivendo em Londres e o filho de um burocrata czarista que não gostava muito do czar e cujo irmão excessivamente audacioso fora executado depois de participar de um plano para matá-lo. Este homem encontrou refúgio na mais capitalista das nações, a Suíça, e depois acabou devolvido pelos alemães à mãe Rússia, na esperança de que pudesse derrubar o governo do czar, permitindo que a Alemanha derrotasse as demais nações ocidentais na frente ocidental da Primeira Guerra Mundial. No final das contas, isso não se parecia com a ordem de uma divindade, como parte de um grande plano para o progresso da humanidade. Tudo que Lenin usara como modelo para mudar seu país — e, por seu intermédio, o mundo inteiro — viera de um livro de Karl Marx, de outros escritos de Friedrich Engels e de sua própria visão de se tornar o líder de um novo tipo de nação.

A única coisa que distinguia o marxismo-leninismo de uma religião era a ausência de uma divindade. Ambos os sistemas se arrogavam autoridade absoluta sobre as questões dos homens e ambos afirmavam estar certos a priori. A diferença era que o sistema dó seu país escolhera assegurar tal autoridade pelo exercício do poder da vida e da morte.

O país alegava que aquilo funcionava a favor da justiça e do bem dos trabalhadores e camponeses no mundo todo. Mas outros homens, no topo da hierarquia, decidiam quem seriam os trabalhadores e camponeses. E eles próprios viviam em datchas decoradas e apartamentos com vários quartos e tinham automóveis e motoristas... e privilégios.

E que privilégios! Zaitzev também despachara mensagens sobre meias-calças e perfumes que homens do seu prédio queriam dar às suas mulheres. Estes itens eram muitas vezes entregues nas malas postais diplomáticas de embaixadas no Ocidente.

Coisas que seu próprio país não podia produzir, mas que a nomenklatura desejava, assim como as geladeiras e fogões da Alemanha Ocidental. Quando via os figurões percorrendo as ruas centrais de Moscou em automóveis ZIL com chofer. Zaitzev entendia como Lenin se sentira a respeito dos czares. O czar servia-se do direito divino como um atestado pessoal ao poder. Os líderes do partido justificavam suas posições pelo desejo do povo.

Mas o povo nunca concedera qualquer coisa a eles por aclamação pública. As democracias ocidentais realizavam eleições. O Pravda as achincalhava de tempos em tempos, porém eram eleições de verdade. A Inglaterra era comandada por uma mulher com cara de má, e os Estados Unidos, por um ator burlesco e envelhecido; no entanto, ambos foram escolhidos pelo povo de seus países, e os governantes anteriores, destituídos também pelo desejo popular. Nenhum dos dois era bem visto na União Soviética, e Zaitzev já tivera acesso a diversas mensagens pedindo a verificação de seu estado mental e convicções políticas mais íntimas. A preocupação nas mensagens era evidente, e Zaitzev pessoalmente tinha suas inquietações; entretanto, por mais detestáveis e instáveis que fossem, estes líderes haviam sido escolhidos pelos seus povos. O povo soviético com certeza não escolhera a atual leva de príncipes no Politburo.

E agora os novos príncipes comunistas estavam pensando em assassinar um padre polonês em Roma. Mas como ele ameaçava a Rodina} O papa não tinha formações militares à sua disposição. Uma ameaça política, então? Mas como? O Vaticano supostamente possuía identidade diplomática, porém soberania sem poder militar era... o quê? Se não existia um Deus, qualquer poder exercido pelo papa não passava de ilusão, com a mesma substância de uma baforada de fumaça de cigarro. O país de Zaitzev tinha o maior Exército da Terra, um fato proclamado regularmente pelo Nós servimos à União Soviética, o programa de TV a que todos assistiam.

Então, por que querem matar um homem que não representa ameaça? Ele iria dividir os oceanos com um movimento de seu cajado ou lançar pragas sobre o país? Claro que não.

E matar um homem inofensivo é um crime, disse Zaitzev a si mesmo, exercitando o raciocínio pela primeira vez em sua passagem pelo número 2 da praça Dzerzhinskiy e, assim, afirmando silenciosamente seu livre-arbítrio. Ele fizera uma pergunta e obtivera uma resposta.

Teria sido positivo se pudesse falar sobre aquilo com alguém, mas isso estava fora de cogitação. Isso deixava Zaitzev sem uma válvula de segurança — uma maneira de processar seus sentimentos e chegar a algum tipo de resolução. As leis e os costumes de sua nação forçavam-no a reciclar os pensamentos continuamente, e, no fim, tudo levava a uma única direção. O fato de ser uma direção que o Estado não aprovaria era resultado de suas próprias ações.

Depois de terminar o almoço, tomou um gole de chá e acendeu um cigarro, mas esse ato contemplativo não melhorou seu estado mental. O hamster continuava correndo na rodinha. Ninguém no imenso refeitório percebeu: para os que viam Zaitzev, aquele era apenas um sujeito aproveitando seu cigarro depois do almoço, sozinho. Como todos os cidadãos soviéticos, Zaitzev sabia esconder os sentimentos, por isso seu rosto não revelava nada. Ele só acompanhava o relógio de parede, para não se atrasar para o turno da tarde, mais um burocrata em um prédio cheio deles.

 

 

EM UM ANDAR SUPERIOR, a situação era um pouco diferente. O coronel Rozhdestvenskiy não quisera interromper o almoço do diretor e, por isso, ficara em seu escritório, esperando os ponteiros do relógio se moverem, dando mordidas no sanduíche, mas ignorando a tigela de sopa que o acompanhava. Como o diretor, fumava cigarros Marlboro americanos, mais suaves e bem-feitos que os correspondentes soviéticos. Era um refinamento que adquirira em missão no exterior, porém, como oficial de alto escalão da Primeira Diretoria, podia fazer compras na loja especial do Centro Moscou. Os cigarros eram caros, mesmo para quem recebia em rublos certificados, mas ele só bebia vodca barata, então as coisas se equilibravam. Imaginava como Yuriy Vladimirovich reagiria à mensagem de Goderenko. Ruslan Borissovich era um rezident muito qualificado, cuidadoso e conservador, e tinha experiência suficiente para poder argumentar. Seu trabalho, afinal, era alimentar o Centro Moscou com informações de valor, e se achava que algo r poderia comprometer essa missão, era seu dever alertá-los. Além disso, o despacho original não continha uma diretiva obrigatória, apenas instruções para verificar uma situação. Deste modo, Ruslan Borissovich provavelmente não teria problemas por causa de sua resposta. Mas Andropov poderia vociferar, e, neste caso, ele, coronel A.N. Rozhdestvenskiy, teria de suportar o barulho, o que nunca era agradável. Seu posto era invejável sob um ponto de vista e assustador sob outro. Ele estava perto dos ouvidos do diretor, mas a proximidade significava que também estava perto dos dentes. Na história da KGB, havia casos de pessoas que pagaram pelas ações de outras. Isso, contudo, seria improvável naquele caso. Embora fosse inegavelmente duro, Andropov também era bastante justo. De qualquer maneira, não compensava permanecer próximo de um vulcão em erupção. O telefone sobre a mesa tocou. Era o secretário particular do diretor.

— O diretor o receberá agora, camarada coronel.

— Spaciba.

Ele se levantou e percorreu o corredor.

— Temos uma resposta do coronel Goderenko — relatou Rozhdestvenskiy, entregando a mensagem.

Andropov não demonstrou surpresa, e, para o alívio invisível do coronel Rozhdestvenskiy, também não perdeu o controle.

— Esperava por isso. Nosso pessoal perdeu a ousadia, não acha, Aleksey Nikolaievich?

— Camarada diretor, o rezident está transmitindo sua avaliação profissional do problema — respondeu o oficial de campo.

— Continue — ordenou o diretor.

— Camarada diretor — respondeu Rozhdestvenskiy, escolhendo as palavras com o maior cuidado —, não se pode empreender uma operação como a que o senhor está considerando sem correr riscos políticos. Esse padre tem muita influência, por mais ilusória que seja. Ruslan Borissovich está convencido de que um ataque contra ele poderia afetar sua capacidade de obter informações, e esta, camarada, é sua tarefa principal.

— A avaliação do risco político é um trabalho meu, não dele.

— Isso é verdade, camarada diretor, mas é o território dele. E faz parte do seu trabalho lhe dizer o que acredita ser necessário chegar ao seu conhecimento. A perda dos serviços de parte de seus agentes poderia ser custosa para nós tanto em termos diretos quanto indiretos.

— Em que dimensão?

— É impossível prever. A rezidentura em Roma tem um grupo de agentes altamente produtivos no tocante a informações militares da Otan e de inteligência política. Podemos viver sem essas informações? Sim, acredito que sim, mas seria melhor viver com elas. Os fatores humanos envolvidos tornam uma estimativa difícil. Comandar agentes é uma arte, não uma ciência, como o senhor pode ver.

— Você já me disse isso antes, Aleksey.

Andropov esfregou os olhos, demonstrando cansaço. Rozhdestvenskiy notou que sua pele estava um pouco amarelada. Seu problema de fígado estaria se manifestando de novo?

— Nossos agentes são seres humanos, e cada ser humano tem suas peculiaridades. Não há como evitar — explicou Rozhdestvenskiy, talvez pela centésima oportunidade.

Poderia ser pior: Andropov realmente escutava algumas vezes. Nem todos os seus antecessores haviam sido tão esclarecidos. Talvez fosse consequência da inteligência de Yuriy Vladimirovich.

— É por isso que gosto da espionagem de sinais — resmungou o diretor da KGB.

O coronel Rozhdestvenskiy lembrou que todos que atuavam naquela área diziam o mesmo. O problema era obter informações a partir de sinais. O Ocidente era melhor naquilo do que seu país, apesar dos agentes infiltrados nas agências especializadas. A Agência de Segurança Nacional Americana, NSA e a Agência Britânica de Comunicações Governamentais, GCHQ, particularmente, empenhavam-se ininterruptamente para vencer a segurança das comunicações soviéticas e ocasionalmente conseguiam. Por isso a KGB dependia tanto dos blocos de uso único. Não podiam confiar em nada mais.

 

 

— ISSO É CONFIÁVEL? — perguntou Ryan.

— Acreditamos que seja o artigo autêntico, Jack. Parte vem de fontes de livre acesso, mas o grosso vem de documentos preparados para o Conselho de Ministros. Nesse nível, eles não mentem muito entre si.

— Por que não? — perguntou Jack oportunamente. — Todos os outros mentem.

— Mas neste caso há algo concreto, produtos que devem ser entregues ao exército deles. Se não aparecerem, isso será percebido, e haverá investigações. De qualquer maneira, o material mais importante aqui tem a ver com questões políticas, e, nessa circunstância, não há nada a se ganhar com mentiras — explicou Harding cuidadosamente.

— Creio que sim. Provoquei um pequeno alvoroço em Langley, no mês passado, quando arrasei um relatório econômico que seguiria para o escritório do presidente. Disse que não havia como ser verdadeiro, e o cara responsável alegou que era exatamente o que o Politburo analisava em suas reuniões.

— E o que você disse então, Jack? — interrompeu Harding.

— Simon, eu disse que não importava se os figurões viam aquilo ou não, simplesmente não podia ser verdade. O relatório era pura mentira, o que me deixa pensando como o Politburo estabelecia políticas, se os dados em que se baseavam eram tão verdadeiros quanto Alice no país das maravilhas. Sabe, quando eu estava com os fuzileiros navais, temíamos que Ivan Ivanovich, o soldado russo, tivesse três metros de altura. Mas não tinha. Pode haver muitos soldados, mas na realidade são menores que os nossos, porque eles não se alimentam tão bem na infância, e suas armas são umas porcarias. O AK-47 é um bom fuzil, mas prefiro o M-16 em qualquer situação, e um fuzil é muito mais simples que um rádio portátil. Entrei na CIA e descobri que os rádios táticos que o exército deles usa são umas merdas. Então, estava certo quando ainda era segundo-tenente. O que eu quero dizer, Simon, é que eles mentem para o Politburo sobre questões que deveriam ser realidades econômicas. E se mentem para aqueles caras podem mentir sobre qualquer coisa.

— E o que aconteceu com o relatório do presidente?

— Mandaram para ele, mas com um anexo de cinco páginas feito por mim no final. Espero que tenha chegado a ele. Dizem que ele lê muito. Enfim, o que quero dizer é que eles baseiam suas políticas em mentiras, e talvez possamos estabelecer políticas melhores se analisarmos a realidade um pouco melhor. Acho que a economia deles está no fundo do poço, Simon. Não pode estar tão bem quanto os dados indicam. Se estivesse, veríamos os resultados positivos nos produtos que fabricam, mas não vemos, certo?

— Por que temer um país que sequer consegue se alimentar?

— Isso — concordou Ryan.

— Na Segunda Guerra Mundial...

— Em 1941, a Rússia foi invadida por um país de que nunca gostara muito, mas Hitler era estúpido demais para fazer com que a antipatia do povo pelo próprio governo trabalhasse a seu favor. Então implementou políticas racistas que pareciam planejadas para levar o povo russo de volta aos braços de Joe Stalin. Portanto, essa comparação é falsa, Simon. A União Soviética é fundamentalmente instável. Por quê? Porque é uma sociedade injusta, e não existem sociedades injustas estáveis. A economia deles... — Ryan parou por um instante. — Tem de haver uma forma de usá-la a nosso favor.

— E o que podemos fazer?

— Abalar um pouco suas estruturas. Talvez um terremoto de grau moderado — sugeriu Ryan.

— E fazê-los entrar em colapso? — perguntou Harding, com as sobrancelhas erguidas. — Não se esqueça de que eles têm um monte de armas nucleares.

— Certo, tudo bem, vamos tentar garantir que a queda seja amortecida.

— Que legal da sua parte, Jack.


7

 


EBULIÇÃO

 

O TRABALHO DE ED FOLEY como adido de imprensa não era muito exigente em termos do tempo necessário para agradar os correspondentes americanos e, ocasionalmente, outras pessoas. Esta categoria incluía repórteres supostamente do Pravda e de outras publicações. Foley presumia que todos eram oficiais da KGB ou freelancers — não havia diferença, já que os agentes de campo da KGB, rotineiramente, usavam disfarce de jornalista. Como resultado, a maioria dos repórteres soviéticos nos Estados Unidos era seguida de perto por um ou dois agentes do FBI, pelo menos quando o FBI tinha agentes à disposição para fazer o trabalho, o que não era tão comum.

Repórteres e agentes de inteligência de campo cumpriam funções praticamente idênticas. Ele acabara de ser contactado por um sujeito do Pravda chamado Pavel Kuritsyn, que, se não era um espião profissional, certamente lera muitos romances de espionagem. Como era mais fácil se fingir de idiota do que de esperto, ele conversara desajeitadamente em russo, sorrindo com aparente orgulho de como havia dominado uma língua tão complexa. Kuritsyn aconselhara o americano a assistir à TV russa, para aprender mais rápido a língua do país. Foley então esboçara um relatório de contato para os arquivos da CIA, destacando que o tal Pavel Yevgeniyevich Kuritsyn parecia um garoto da Segunda Diretoria com a missão de checá-lo, opinando que acreditava haver passado no teste. É claro que não se podia ter certeza. Pelo que sabia, os russos empregavam pessoas que liam mentes. Foley tinha conhecimento de que eles haviam experimentado de tudo, até algo chamado visão remota, o que, em sua análise profissional, estava um degrau abaixo das videntes ciganas — mas, para seu desgosto, levara a agência a criar seu próprio programa. Na opinião de Ed Foley, tudo que não se podia pegar não era real. Mas não havia como adivinhar o que os frescos da Divisão de Inteligência tentariam, apenas para se desviar do que o pessoal de Operações — os verdadeiros espiões da CIA — tinha que fazer todo santo dia.

Bastava que Ivan tivesse olhos e sabe-se lá quantos ouvidos na embaixada, ainda que o prédio fosse regularmente varrido por especialistas em eletrônica. (Uma vez, os russos conseguiram colocar uma escuta no escritório do próprio embaixador.) Bem do outro lado da rua havia uma igreja usada pela KGB. Na embaixada americana, era conhecida como Nossa Senhora dos Microchips, porque a estrutura era repleta de transmissores de micro-ondas apontados para a embaixada, com a função de interferir em todos os equipamentos de escuta usados para interceptar sistemas de rádio e telefone soviéticos. Como a quantidade de radiação emitida chegava perto de níveis perigosos para a saúde, a embaixada contava com a proteção de placas de metal nas paredes, que refletiam grande parte de volta às pessoas do outro lado da rua. O jogo tinha regras, e os russos quase sempre as respeitavam, mas nem sempre elas faziam sentido. Houve protestos discretos aos nativos sobre as micro-ondas, porém as queixas eram invariavelmente recebidas com um "Quem, nós?" e as coisas costumavam parar por aí.

O médico da embaixada afirmava não estar preocupado — mas a sala dele ficava no subsolo, protegida da radiação por pedras e entulho. Dizia-se que era possível preparar um cachorro-quente nos parapeitos da face leste.

Duas pessoas que sabiam sobre Ed Foley eram o embaixador e o adido militar. O primeiro era Ernest Fuller. Ele se parecia com uma ilustração de um livro sobre a aristocracia: alto, magro, uma cabeleira branca de realeza. Na verdade, crescera em uma fazenda de porcos no Iowa, conseguira uma bolsa de estudos para a Northwestern University e depois um diploma de direito, que o levara a salas de diretoria em empresas, alcançando em seguida o cargo de executivo-chefe de uma grande montadora de automóveis. No caminho, servira três anos na Marinha americana, durante a Segunda Guerra Mundial, a bordo do cruzador leve USS Boise na Batalha de Guadalcanal. Era considerado peça importante e amador talentoso pelos assessores diplomáticos da embaixada. O adido militar era o brigadeiro-general George Dalton. Artilheiro de profissão, ele se dava bem com os colegas russos. Do tamanho de um urso e de cabelos pretos encaracolados, Dalton tinha sido zagueiro na Academia Militar de West Point, mais de vinte anos antes.

Foley tinha uma reunião com os dois — formalmente, para discutir as relações com os correspondentes de imprensa americanos. Até questões internas na embaixada precisavam de disfarce naquele lugar.

— Como seu filho está se adaptando? — perguntou Fuller.

— Ele sente falta dos desenhos animados. Antes de virmos para cá, comprei uma dessas máquinas gravadoras, sabe, esse negócio de Betamax, e algumas fitas, mas elas duraram pouco tempo e custam os olhos da cara.

— Existe uma versão local do Papa-Léguas — disse o general Dalton. — Chama-se "Espere um instante" ou qualquer coisa parecida. Não é tão bom quanto os desenhos da Warner Brothers, mas é melhor que o programa de ginástica que passa de manhã. Aquela mulher pode destruir um sargento-major no comando.

— Percebi isso ontem de manhã. Ela faz parte da equipe de halterofilismo deles? — brincou Foley. — Enfim...

— E as primeiras impressões, alguma surpresa? — perguntou Fuller.

Foley fez um sinal negativo com a cabeça.

— É mais ou menos o que me disseram para esperar. Parece que a todo lugar que vou há alguém me seguindo. Quanto tempo acha que isso vai durar?

— Talvez uma semana. Dê uma volta por aí. Ou melhor: observe Ron Fielding quando ele for dar uma volta. Ele faz o trabalho dele muito bem.

— Alguma coisa importante acontecendo? — perguntou o embaixador Fuller.

— Não, senhor, só operações de rotina por enquanto. Mas os russos têm algo bem grande em andamento em nosso país.

— E do que se trata? — perguntou Fuller.

— Eles chamam de Operação RYAN. É um acrônimo, na língua deles, para Ataque Nuclear Surpresa à Pátria-Mãe. Eles temem que o presidente queira atacá-los com armas nucleares, e, por isso, há oficiais se movimentando nos Estados Unidos para tentar avaliar seu estado mental.

— Está falando sério? — perguntou Fuller.

— Sério como um ataque cardíaco. Acho que eles levaram a retórica de campanha um pouco a sério demais.

— O Ministro das Relações Exteriores deles andou me fazendo umas perguntas estranhas — disse o embaixador. — Mas achei que fosse apenas conversa fiada.

— Senhor, estamos investindo muito dinheiro na área militar, e isso os deixa nervosos.

— E quando eles compram dez mil tanques novos é normal? — observou o general Dalton.

— Exatamente — concordou Foley. — Uma arma na minha mão é um instrumento de defesa, mas na sua mão é um instrumento de ataque. Suponho que seja uma questão de perspectiva.

— Já viu isso? — perguntou Fuller, entregando-lhe um fax de Foggy Bottom.

Foley passou os olhos no papel.

— Essa não.

— Disse a Washington que isso deixaria os soviéticos bem preocupados. O que acha?

— Concordo, senhor. De várias formas, a mais importante seria a potencial inquietação na Polônia, que poderia se espalhar por todo o império. É uma das áreas em que eles pensam a longo prazo. A estabilidade política é o sine qua non deles. O que disseram em Washington?

— A agência acabou de mostrar ao presidente, que enviou ao secretário de Estado. Ele, por sua vez, me repassou por fax, pedindo comentários. Pode verificar se eles estão falando sobre isso no Politburo?

Foley pensou por um momento e respondeu afirmativamente.

— Posso tentar. — Aquilo o deixava levemente incomodado, mas era seu trabalho, não era? Significava que precisaria enviar mensagem a um ou mais de seus agentes, e, afinal, era para isso que eles existiam. A parte problemática é que também implicava expor sua esposa. Mary Pat não se oporia; na verdade, ela adorava o jogo de espionagem em campo, mas expô-la ao perigo sempre o incomodava. Devia ser chauvinismo. — Qual é a prioridade disso?

— Washington tem muito interesse no assunto — respondeu Fuller.

A resposta tornava a questão importante, mas não uma tarefa emergencial.

— Certo, vou cuidar disso, senhor.

— Não sei que ativos você tem aqui em Moscou e nem quero saber. É perigoso para eles?

— Eles atiram nos traidores por aqui, senhor.

— Tenho consciência de que isso é mais violento que o negócio de automóveis, Foley.

— Diabos, não era tão violento assim no planalto central do Vietnã — comentou o general Dalton. — Ivan é muito perverso. Eu também fui perguntado sobre o presidente, a maioria das vezes em drinques com oficiais experientes. Estão mesmo preocupados com ele, não?

— Pelo menos, tudo indica que sim — confirmou Foley.

— Ótimo. Sempre é bom abalar um pouco a confiança do adversário, obrigá-lo a olhar sobre o ombro.

— Desde que não vá longe demais — lembrou o embaixador Fuller. Ele era relativamente novo na diplomacia, mas respeitava o sistema. — Bem, alguma coisa que eu deva saber?

— Da minha parte, não — disse Foley. — Ainda estou me acostumando às coisas. Recebi um repórter russo hoje, talvez um contraespião me checando, um cara chamado Kuritsyn.

— Acho que está no jogo — disse o general Dalton, imediatamente.

— Senti cheiro disso. Creio que ele vai me checar com o correspondente do Times.

— Você o conhece?

— Anthony Prince — respondeu Foley. — E isso basicamente o resume. Groton e Yale. Encontrei com ele algumas vezes em Nova York quando trabalhava no jornal. É muito esperto, porém não tanto quanto acredita ser.

— Como está seu russo?

— Pareço um nativo. Mas minha mulher é capaz de se passar por poetisa. Ela é boa mesmo nisso. Ah, mais uma coisa. Tenho vizinhos no condomínio, os Haydock. Nigel é o marido, Penelope é a mulher. Creio que também sejam agentes.

— De primeira — respondeu o general Dalton. — São excelentes.

Foley já desconfiava, mas nunca era demais ter certeza. Ele não demonstrou perturbação.

— Bem, então vou fazer meu trabalho.

— Seja bem-vindo, Ed — disse o embaixador. — O serviço aqui não é tão ruim depois que nos acostumamos. Conseguimos ingressos para todos os espetáculos de teatro e dança que queiramos assistir por intermédio do Ministério das Relações Exteriores deles.

— Prefiro hóquei no gelo.

— Também é fácil arranjar — disse o general Dalton.

— Bons lugares? — perguntou o espião.

— Primeira fila.

Foley sorriu. — Maravilha.

 

 

ENQUANTO ISSO, MARY PAT passeava com o filho. Eddie já estava muito grande para um carrinho, o que era péssimo. Podiam fazer várias coisas interessantes com um carrinho e ela acreditava que os russos hesitariam em importuná-la ao lado de uma criança e um pacote de fraldas — especialmente quando os dois tinham a companhia de um passaporte diplomático. Naquele momento, porém, estava apenas caminhando, acostumando-se ao ambiente, as paisagens e os odores. Aquele era o estômago da besta, e lá estava ela, como um vírus — letal, esperava. Ela nascera como Mary Kaminsky, neta de escudeiro da dinastia Romanov. O vovô Vanya tinha sido figura fundamental em sua infância. Com ele, aprendera russo ainda dando os primeiros passos, não o russo elementar atual, mas o russo elegante e literário de um tempo passado. Ela podia chorar lendo a poesia de Pushkin e, neste momento, era mais russa que americana, porque os russos haviam venerado seus poetas por séculos, enquanto nos Estados Unidos eles eram relegados a compor música pop. Existia muita coisa para se admirar e amar no país.

Mas não o governo. Ela tinha doze anos, contemplando com entusiasmo a chegada da adolescência, quando o vovô Vanya lhe contara a história de Aleksey, o herdeiro da coroa russa — ótimo menino, porém infortunado, acometido de hemofilia e, por isso, uma criança frágil. O coronel Vanya Borissovich Kaminsky, nobre de classe inferior que servia na Guarda Montada Imperial, ensinara o garoto a cavalgar, pois era uma habilidade indispensável a um príncipe de sua idade. Ele precisava ser cuidadoso ao extremo — Aleksey frequentemente era carregado por um marinheiro imperial para que não tropeçasse e sangrasse —, mas cumprira a tarefa, obtendo a gratidão de Nicolau II e da czarina Alexandra. Os dois também haviam se tornado muito próximos, se não como pai e filho, ao menos como tio e sobrinho. O vovô Vanya esteve no front para lutar contra os alemães, mas logo no início da guerra, na Batalha de Tannenberg, tinha sido capturado. Em um campo alemão para prisioneiros de guerra, aprendeu sobre a revolução. Conseguiu voltar à Mãe Rússia e lutar ao lado da Guarda Branca no fracassado movimento contrarrevolucionário, mas descobriu que o czar e toda a família haviam sido assassinados pelos usurpadores em Ekaterinburg. Percebeu, então, que a guerra estava perdida e fugiu para os Estados Unidos, onde iniciara vida nova, ainda que em luto eterno pelos mortos.

Mary Pat lembrou das lágrimas em seus olhos quando ele contara a história, e elas lhe transferiram seu ódio visceral pelos bolcheviques. O sentimento, porém, havia amortecido um pouco. Não era fanática, mas quando via um russo de uniforme ou dentro de um ZIL em alta velocidade a caminho de alguma reunião do partido, enxergava o rosto do inimigo, um inimigo que tinha que ser derrotado. O comunismo ser o adversário de seu país era apenas um tempero adicional. Se pudesse encontrar um botão para destruir aquele sistema político odioso, não hesitaria em apertá-lo.

Assim, a designação para Moscou havia sido a melhor com que podia sonhar. Ao lhe contar sua antiga e triste história, Vanya Borissovich Kaminsky lhe dera uma missão para toda a vida — e a paixão para sua realização. A decisão de entrar para a CIA tinha sido natural como escovar seu cabelo louro.

E agora, caminhando tranquilamente, pela primeira vez na vida ela realmente entendia o amor passional de seu avô pelas coisas antigas. Tudo se distinguia do que conhecia nos Estados Unidos, do piche dos telhados à cor do asfalto na rua, passando pelo vazio das expressões nos rostos das pessoas. Elas a fitavam ao passar porque, em suas roupas americanas, ela se destacava como um pavão no meio de corvos. Alguns chegavam a sorrir para Eddie, já que, por mais melancólicos que fossem, os russos eram infalivelmente carinhosos com as crianças. Por diversão, ela pediu orientação a um miliciano, como a polícia local era conhecida, e ele foi educado, corrigindo sua pronúncia e indicando a direção certa. Era pelo menos um ponto positivo. Ela já havia notado que tinha uma sombra, um oficial da KGB de uns 35 anos, que se mantinha uns cinquenta metros atrás, fazendo o possível para permanecer invisível. Seu erro era desviar o olhar quando ela se virava. Provavelmente aprendera aquilo no treinamento, para que seu rosto não se tornasse muito familiar ao alvo da espionagem.

As ruas e calçadas eram largas, mas não excessivamente movimentadas. A maioria dos russos estava no trabalho e não havia mulheres livres, fazendo compras, dirigindo-se a eventos sociais ou a reuniões de golfe — talvez só as esposas dos membros realmente importantes do partido. Algo como os ricos ociosos em nosso país, refletiu Mary Pat, se é que ainda existia esse tipo de gente. Pelo que se lembrava, sua mãe sempre trabalhara; na verdade, continuava na ativa. Mas naquele lugar as mulheres que trabalhavam usavam pás, enquanto os homens dirigiam caminhões basculantes. Estavam sempre tapando buracos nas ruas, embora nunca muito bem. Exatamente como em Washington e Nova York, pensou.

No entanto, havia vendedores de rua oferecendo sorvete, e ela comprou um para o pequeno Eddie, que já estava comendo com os olhos. Pesava em sua consciência submeter o filho àquele lugar e àquela missão, mas ele tinha apenas quatro anos, e seria uma boa experiência de aprendizado. Pelo menos cresceria falando duas línguas. Também aprenderia a valorizar seu país mais do que a maioria das crianças americanas, e isso, para ela, era um dado positivo. Mas, então, ela tinha uma sombra. Ele seria bom até que ponto? Talvez fosse hora de descobrir. Ela enfiou a mão na bolsa e, furtivamente, retirou uma fita de papel. Era de um vermelho intenso. Ao virar a esquina, ela a prendeu num poste, com um movimento tão casual que foi quase imperceptível, e seguiu em frente. Depois de percorrer cinquenta metros no novo quarteirão, olhou para trás como se estivesse perdida... e o viu passando diante do poste.

Então ele não percebeu que ela deixara o sinal. Se tivesse percebido, teria pelo menos olhado... e ele era o único atrás dela. O trajeto tinha sido escolhido de forma tão aleatória que não podia haver mais ninguém em seu encalço, a não ser que tivesse sido montado um grande esquema de espionagem para ela, o que parecia improvável. Nunca tinha sido descoberta em suas missões de campo. Lembrava de cada instante do treinamento na Fazenda, em Tidewater, Virginia. Foi a melhor da turma e sabia que era boa — e, mais do que isso, sabia que nunca se era tão bom a ponto de negligenciar os cuidados. Mas, observada essa regra, podia montar qualquer cavalo. O vovô Vanya também a ensinara a montar.

Ela e o pequeno Eddie viveriam muitas aventuras naquela cidade, pensou Mary Pat. Esperaria até que a KGB cansasse de manter uma sombra em seu rastro e então poderia agir com liberdade. Imaginava quem tentaria convencer a trabalhar para a CIA — além de comandar os agentes já estabelecidos. Ela estava mesmo no estômago da besta, e seu trabalho era deixar a maldita com uma úlcera hemorrágica.

 

 

— MUITO BEM, ALEKSEI Nikolaievich, você conhece o homem. O que digo a ele agora? — perguntou Andropov.

Era um sinal da inteligência do diretor não ter vociferado uma resposta ríspida para colocar o rezident de Roma em seu lugar. Somente os tolos pisavam em seus subordinados mais graduados.

— Ele está pedindo orientação: o escopo da operação e coisas do gênero. Devemos fornecer essas informações. Isso suscita a questão do que o senhor está contemplando, camarada diretor. O senhor já pensou no assunto até esse ponto?

— Muito bem, coronel, o que você acha que devemos fazer?

— Camarada diretor, os americanos usam uma expressão que aprendi a respeitar: eu não ganho o bastante para isso.

— Está me dizendo que nunca pensa no que faria como diretor, na sua imaginação? — perguntou Yuriy Vladimirovich, de maneira mordaz.

— Honestamente, não. Limito meus pensamentos àquilo que entendo: questões operacionais. Não tenho competência para adentrar temas políticos de alto nível, camarada.

Uma resposta inteligente, mesmo que não seja verdadeira, avaliou Andropov.

Rozhdestvenskiy, porém, não poderia discutir qualquer opinião que tivesse sobre assuntos mais importantes, pelo simples fato de que ninguém na KGB tinha autorização para isso. Talvez ele fosse inquirido a respeito por um membro muito graduado do comitê central do partido, cumprindo ordens do Politburo, mas uma determinação do gênero teria de partir praticamente do próprio Brejnev. E tal coisa, pensou Yuriy Vladimirovich, era improvável naquele momento. Portanto, de fato o coronel pensaria no assunto na privacidade de sua imaginação, como todos os subordinados faziam; entretanto, como um oficial da KGB, e não como porta-voz do partido, por ora deixaria suas reflexões de lado.

— Muito bem, vamos esquecer as considerações políticas. Encare isso como uma questão teórica: como alguém poderia matar o papa? — Rozhdestvenskiy demonstrou desconforto. — Sente-se — sugeriu o diretor ao subordinado. — Você já planejou operações complexas antes. Avalie essa situação com calma.

Aleksey Rozhdestvenskiy se sentou antes de falar.

— Em primeiro lugar, pediria o auxílio de alguém com mais conhecimento desse tipo de coisa. Temos vários oficiais com esse perfil aqui no Centro. Mas... como está me pedindo para pensar em termos teóricos... — A voz do coronel perdeu o rumo, e seus olhos moveram-se para cima e para a esquerda. Quando retomou a fala, suas palavras saíam lentamente. — Em primeiro lugar, usaríamos a base de Goderenko só para obter informações, tarefas como reconhecimento do alvo. Não usaríamos pessoal da base de Roma em qualquer função ativa... Para dizer a verdade, evitaria usar até agentes soviéticos nas partes ativas da operação.

— Por quê? — perguntou Andropov.

— A polícia italiana recebe treinamento profissional, e, para uma investigação desse porte, alocaria um contingente considerável, destacaria seus melhores homens. Em qualquer episódio desse gênero, há testemunhas. Todas as pessoas têm dois olhos e memória. Algumas também têm inteligência. Não se pode prever esse tipo de coisa. Se, por um lado, isso sugeriria, digamos, um atirador e um disparo de longa distância, esta metodologia também revelaria uma operação de nível de Estado. O atirador teria que ser bem treinado e apropriadamente equipado. Significaria um soldado, e um soldado significaria um exército. Um exército significa uma nação, e que nação estaria interessada em matar o papa? — perguntou o coronel Rozhdestvenskiy. — Em uma operação verdadeiramente clandestina, não há como se identificar o ponto de origem.

Andropov acendeu um cigarro e fez um gesto de anuência. Ele escolhera bem. O coronel não era tolo.

— Continue.

— Idealmente, o atirador não teria qualquer ligação com a União Soviética. Temos de nos assegurar disso, porque não podemos ignorar a possibilidade de uma prisão. A maioria dos homens revela informações quando interrogado, seja por razões psicológicas ou físicas. — Rozhdestvenskiy enfiou a mão no bolso e tirou um cigarro para si. — Lembro de ter lido sobre um assassinato da máfia nos Estados Unidos...

Mais uma vez a voz se perdeu, e seus olhos se fixaram na parede oposta enquanto ele analisava algum acontecimento do passado.

— E então? — interrompeu o diretor.

— Um assassinato em Nova York. Um dos integrantes mais antigos tinha alguns problemas com seus companheiros, e estes decidiram não apenas matá-lo, mas fazê-lo com certo grau de infâmia. Encomendaram o crime a um negro. Para a máfia, essa é uma forma particularmente desonrosa de se morrer — explicou Rozhdestvenskiy. — De qualquer forma, o atirador foi morto logo em seguida por outro homem, presumivelmente um assassino da máfia, que conseguiu escapar. Com certeza, ele recebeu ajuda, o que mostra que foi uma tarefa cuidadosamente planejada. O crime nunca foi solucionado. Um trabalho técnico perfeito. O alvo foi eliminado, e o assassino também. Os verdadeiros responsáveis, que planejaram tudo, obtiveram sucesso e ganharam prestígio na organização. E nunca foram punidos por isso.

— Bandidos criminosos — desdenhou Andropov.

— Sim, camarada diretor, mas, mesmo assim, uma missão realizada da maneira correta merece ser estudada. Não se aplica totalmente à tarefa em questão, porque naquele caso esperava-se que parecesse um serviço bem-feito da máfia. Mas o atirador conseguiu se aproximar do alvo porque claramente não era um membro da máfia. E, mais tarde, ele não poderia envolver ou identificar as pessoas que pagaram pelo ato. Isso é exatamente o que queremos. É claro que não podemos copiar essa operação por inteiro; por exemplo, eliminar o atirador traria tudo diretamente a nós. Não pode ser como o assassinato de Leon Trotsky. Naquele caso, a origem da operação não foi realmente ocultada. Como no caso da máfia que citei, esperava-se que fosse um tipo de declaração pública. — Na opinião de Rozhdestvenskiy, o paralelo direto entre uma ação do Estado soviético e um assassinato de gângsteres perpetrado pela máfia não precisava de muito detalhamento. Mas, para seu cérebro operacional, os assassinatos de Trotsky e o da máfia representavam uma interessante confluência de táticas e objetivos. — Camarada, preciso de algum tempo para analisar isso melhor.

— Posso lhe dar duas horas — respondeu o diretor Andropov, generosamente.

Rozhdestvenskiy se levantou, prestou continência e atravessou o closet até a sala da secretária.

Ele tinha um escritório pequeno, obviamente, mas era exclusivo e ficava no mesmo andar da sala do diretor. Uma janela dava para a Praça Dzerzhinskiy, com o tráfego intenso e a estátua Félix de Ferro. A cadeira giratória era confortável, e a mesa tinha três telefones — a União Soviética não conseguira dominar a tecnologia dos aparelhos multilinha. Ele dispunha de uma máquina de escrever, que ele próprio raramente utilizava, preferindo solicitar uma das secretárias que ficavam à disposição dos dirigentes. Havia rumores de que Yuriy Vladimirovich fazia outro uso de uma dessas secretárias, que não anotar ditados, porém Rozhdestvenskiy não acreditava. O diretor era esteta demais para aquilo. A corrupção simplesmente não era do seu feitio, o que agradava ao coronel. Era difícil ser leal a um homem como Brejnev. Rozhdestvenskiy levava a sério o lema da espada e do escudo. Era sua obrigação proteger seu país e seu povo, e eles precisavam de proteção — algumas vezes contra os membros do próprio Politburo.

Mas por que precisam de proteção contra esse padre?, perguntou a si mesmo.

Ele sacudiu a cabeça e direcionou sua mente para a tarefa. Tinha uma tendência a raciocinar de olhos abertos, analisando seus pensamentos como se fossem um filme em uma tela invisível.

A primeira questão era a natureza do alvo. O papa parecia ser um homem alto, pelas fotos, e quase sempre se vestia de branco. Não se podia querer um alvo mais oportuno do que aquele. Ele desfilava em carro aberto, o que o transformava em um alvo melhor ainda, porque se movia lentamente para que os fiéis conseguissem vê-lo direito.

Mas quem poderia ser o atirador? Um oficial da KGB, não. Nem qualquer cidadão soviético. Talvez um exilado russo. A KGB tinha vários deles espalhados pelo Ocidente, grande parte formada por agentes inativos, tocando a vida à espera de um chamado... O problema é que muitos se tornavam nativos e ignoravam as convocações ou contactavam o serviço de contrainteligência do país onde moravam.

Rozhdestvenskiy não gostava daquele tipo de designação de longo prazo. Era fácil demais um oficial esquecer sua identidade e virar aquilo que seu disfarce determinava.

Não, o atirador tinha de ser um forasteiro; não um cidadão russo, nem um ex-cidadão soviético, nem mesmo um estrangeiro treinado pela KGB. O ideal seria contar com um padre ou freira renegada, mas esse tipo de gente não caía simplesmente no colo, exceto em filmes de espionagem e séries de TV O mundo real das operações de inteligência raramente se mostrava tão conveniente.

Então de que tipo de atirador precisava? Um não-cristão? Um judeu? Um muçulmano?

Um ateu seria facilmente relacionado à União Soviética, portanto estava fora de cogitação. Arranjar um judeu para realizar a tarefa seria excelente! Alguém do povo escolhido. Melhor ainda: um israelense. Israel tinha um contingente considerável de fanáticos religiosos. Era possível... embora improvável. A KGB dispunha de ativos em Israel — muitos dos cidadãos soviéticos que migraram para lá eram agentes não-operacionais —, mas a contrainteligência israelense era reconhecidamente eficiente. A possibilidade de uma operação do tipo ser descoberta era muito alta — e aquela era uma operação que não podia ser denunciada. Isso excluía os judeus.

Talvez um desequilibrado da Irlanda do Norte. Obviamente, os protestantes de lá odiavam a Igreja Católica, e um dos líderes — Rozhdestvenskiy não se recordava do nome, mas sua aparência lembrava um anúncio de cervejaria — declarara que desejava ver o papa morto. E isso porque ele próprio era supostamente um clérigo. Infelizmente, aquelas pessoas odiavam a União Soviética ainda mais, porque seus adversários do IRA se denominavam marxistas — algo que o coronel Rozhdestvenskiy tinha dificuldade para aceitar. Se fossem realmente marxistas, poderia recorrer à disciplina partidária para levar um deles a realizar a operação... mas não. O pouco que sabia sobre terroristas irlandeses lhe sugeria que era esperar demais que colocassem a disciplina do partido acima de suas crenças étnicas. Por mais atraente que a ideia fosse no sentido teórico, seria muito difícil efetivá-la.

Assim, só restavam os muçulmanos. Muitos deles eram fanáticos, com uma ligação tão tênue com as crenças fundamentais de sua religião quanto a do papa com Karl Marx. O Islã era grande demais e sofria da doença da grandeza. Mas, se desejasse um muçulmano, onde encontraria um? A KGB estava presente em vários países de população islâmica, a exemplo de outras nações marxistas. Hummm, essa é uma boa ideia, pensou. A maior parte dos aliados soviéticos dispunha de serviços de inteligência, e a maioria destes estava sob o controle da KGB.

A Alemanha Oriental tinha o melhor serviço, a Stasi, comandada soberbamente pelo diretor Markus Wolf. Mas havia poucos muçulmanos lá. Os poloneses também eram bons, porém não havia possibilidade de usá-los na operação: estavam infiltrados pelos católicos e, portanto, pelo Ocidente, mesmo que por tabela. A Hungria... não, outro país muito católico, e os únicos muçulmanos eram estrangeiros em campos de treinamento ideológicos para grupos terroristas, o que os tornava não recomendados. O mesmo se aplicava aos checos. A Romênia não era vista como uma verdadeira aliada dos soviéticos. Seu governante, embora um comunista rígido, agia de maneira muito similar à dos gangsteres ciganos nativos. Restava... a Bulgária.

Claro. Vizinha da Turquia — um país muçulmano, porém de cultura secularizada e com vasto material criminoso. E os búlgaros tinham muitos contatos além da fronteira, sob disfarce de atividade de contrabando, que usavam para obter informações sobre a Otan, assim como Goderenko fazia em Roma. Então orientariam o rezident de Sofia a convocar os búlgaros para fazer o trabalho sujo. Afinal, eles tinham uma antiga dívida com a KGB. O Centro Moscou os ajudara a se livrar de um líder teimoso na Westminster Bridge, uma operação muito engenhosa parcialmente denunciada por um caso extremo de má sorte.

Mas há uma lição nisso, lembrou-se o coronel Rozhdestvenskiy. Como no caso da máfia, a operação não podia levar diretamente à KGB. Não, a execução tinha que sugerir um trabalho de gângsteres. E, mesmo assim, haveria riscos. Os governos ocidentais manteriam suspeitas. No entanto, sem uma conexão direta ou indireta com a Praça Dzerzhinskiy, não poderiam falar do assunto em público...

Isso seria suficiente?, perguntou-se.

Italianos, americanos e britânicos ficariam cismados. Especulariam. E talvez estas especulações chegassem à imprensa. Isso importava?

Tudo dependia da relevância da operação para Andropov e o Politburo. Haveria riscos, mas, na grande conjectura política, pesavam-se os riscos em relação à importância da missão.

A base de Roma ficaria encarregada do reconhecimento. O escritório em Sofia contataria os búlgaros para que contratassem o atirador — provavelmente teria de ser feito com uma pistola. Chegar perto o bastante para usar uma faca era uma tarefa muito difícil até para entrar em consideração, e fuzis não podiam ser escondidos com facilidade, embora um semiautomático fosse perfeito para uma ação desse tipo. E o atirador sequer seria cidadão de um país socialista. Não, eles encontrariam um de uma nação da Otan. Havia uma certa complexidade na questão, mas nada demais.

Rozhdestvenskiy acendeu outro cigarro e percorreu seus raciocínios mentalmente, procurando erros e buscando pontos fracos. Havia alguns; sempre havia alguns. O verdadeiro problema era encontrar o turco adequado para executar a missão. Para isso, dependeriam dos búlgaros. Qual seria a qualidade de seus serviços clandestinos?

Rozhdestvenskiy nunca trabalhara diretamente com eles. Só os conhecia por reputação, e esta não era inteiramente positiva. Eles refletiam seu governo, que era mais grosseiro e violento que o de Moscou, não muito kulturniy. Mas desconfiava que a percepção fosse em parte consequência do nacionalismo russo. A Bulgária era o irmão mais novo de Moscou, política e culturalmente, e pensar em termos dessa relação fraternal era inevitável. Eles só precisavam ser bons o suficiente para ter contatos decentes na Turquia, e isso significava um único oficial de inteligência capaz, de preferência um treinado em Moscou. Haveria muitos à disposição, e a própria academia da KGB forneceria os registros necessários. Talvez o rezident de Sofia conhecesse um pessoalmente.

O coronel Rozhdestvenskiy percebeu, com certo orgulho, que aquele exercício teórico estava se desenvolvendo. Ele ainda sabia como preparar uma operação de campo, mesmo havendo se tornado um burocrata do quartel-general. Sorriu enquanto apagava o cigarro. Pegou o telefone branco e discou 111 para o escritório do diretor.


8

 


O PRATO

 

— OBRIGADO, ALEKSEI NIKOLAIEVICH. É um esquema muito interessante. Então qual é o próximo passo?

— Camarada diretor, é preciso que Roma nos mantenha informados da agenda do papa com o máximo de antecedência possível. Não podemos deixar que saibam da existência de qualquer operação. São apenas uma fonte de informação. Quando chegar a hora, podemos querer que um de seus oficiais esteja na área somente para observar, mas é melhor para todos os envolvidos que Goderenko saiba o menos possível.

— Não confia nele?

— Não é isso, camarada diretor, me desculpe, não quis passar essa impressão. É que, quanto menos ele souber, menor a chance de fazer perguntas ou questionar seu pessoal de modo a revelar informações, mesmo que involuntariamente. Escolhemos os chefes de escritório com base em sua inteligência, sua capacidade de perceber coisas que outros não percebem. Se ele sentir que há algo acontecendo, seu conhecimento poderá levá-lo a ficar atento, e isso pode impedir a operação.

— Livres-pensadores — desdenhou Andropov.

— Existe alternativa? — reagiu Rozhdestvenskiy com bom senso. — É o preço a pagar ao se contratar homens inteligentes.

Andropov fez um gesto de concordância. Não era tolo a ponto de ignorar a lição.

— Bom trabalho, coronel. Alguma outra coisa?

— Controlar o tempo é essencial, camarada diretor.

— Quanto tempo levará para preparar algo desse tipo? — perguntou Andropov.

— Um mês, no mínimo. Provavelmente mais. A não ser que já tenhamos pessoas a postos, essas coisas sempre demoram mais do que o desejado ou esperado — explicou Rozhdestvenskiy.

— Devo precisar desse mesmo tempo para conseguir a aprovação. Mas vamos seguir com o planejamento operacional, de forma que, quando tivermos a aprovação, possamos executá-lo o mais rápido possível.

Executar é a palavra certa, pensou Rozhdestvenskiy, mas até ele achou o termo frio. E Andropov dissera quando tivermos a aprovação, e não se. Bem, Yuriy Vladimirovich supostamente se tornara o homem mais poderoso no Politburo, e aquilo era oportuno para Aleksey Nikolaievich. O que era bom para sua agência também era bom para ele, principalmente em sua nova função. Poderia haver estrelas de general ao fim daquele arco-íris profissional — e a possibilidade lhe agradava muito.

— O que pretende fazer? — perguntou o diretor.

— Telegrafar a Roma para aplacar o receio de Goderenko e informá-lo de que sua tarefa no momento é confirmar a agenda do papa em relação a viagens, aparições públicas e assim por diante. Depois, entrarei em contato com Ilya Bubovoy. É nosso rezident em Sofia. Já o conhece, camarada diretor?

Andropov procurou em sua memória.

— Sim, encontrei-o em uma recepção. Ele é um pouco obeso, não?

Rozhdestvenskiy sorriu.

— Sim. Ilya Fedorovich tem lutado contra isso, mas é um bom oficial. Está lá há quatro anos e mantém boas relações com o Dirjavna Sugurnost.

— Deixou crescer o bigode? — perguntou Andropov, em uma rara demonstração de bom humor.

Os russos costumavam reprovar seus vizinhos pela presença de pelos faciais, o que parecia ser uma característica nacional dos búlgaros.

— Isso eu não sei — respondeu o coronel.

Ele não foi tão obsequioso a ponto de prometer descobrir.

— O que dirá seu telegrama a Sofia?

— Que temos uma requisição operacional para...

O diretor o interrompeu.

— Não use o telégrafo. Mande-o vir aqui. Quero uma segurança rígida nessa missão, e trazê-lo de Sofia não chamará muita atenção.

— Como preferir. Imediatamente? — perguntou Rozhdestvenskiy.

— Da. Imediatamente.

O coronel se levantou.

— Agora mesmo, camarada diretor. Vou diretamente ao centro de comunicações.

O diretor observou-o deixando a sala. Um dos pontos positivos da KGB, pensou Yuriy Vladimirovich, era que, quando se davam ordens, as coisas realmente aconteciam.

Muito diferente da secretaria do partido.

O coronel Rozhdestvenskiy pegou o elevador de volta ao subsolo e se encaminhou à sala de comunicações. O major Zaitzev já se estava na mesa, mexendo em sua papelada, como sempre — era tudo que tinha —, e o coronel foi direto a ele.

— Tenho mais dois despachos para você.

— Tudo bem, coronel.

Oleg Ivanovich estendeu a mão.

— Ainda tenho que escrevê-los — esclareceu Rozhdestvenskiy.

— Pode usar aquela mesa ali, camarada — indicou Zaitzev. — Mesmo nível de segurança do anterior?

— Sim, bloco de uso único para os dois. Mais um para Roma e outro para a base de Sofia. Prioridade imediata — acrescentou.

— Entendido.

Zaitzev entregou os formulários de mensagem em branco e voltou ao trabalho, torcendo para que os despachos não fossem longos. Deviam ser muito importantes para o coronel ter descido antes mesmo de escrevê-los. Havia alguma coisa perturbando Andropov. O coronel Rozhdestvenskiy atuava como mensageiro particular do diretor — certamente algo depreciativo para uma pessoa dotada de capacidade para ser rezident em um lugar interessante. Viajar, no fim das contas, era o único benefício real que a KGB oferecia aos funcionários.

Não que Zaitzev viajasse. Oleg Ivanovich sabia demais para ser autorizado a entrar em um país ocidental. Ele podia não retornar — uma preocupação permanente da KGB.

E, pela primeira vez, o major se perguntou por quê. Isso mostrava como o dia fora ruim.

Mas por que a KGB se preocupava tanto com possíveis deserções? Ele vira despachos discutindo abertamente a incômoda possibilidade e oficiais trazidos de volta para "conversar" sobre o assunto, ali mesmo no Centro, que nunca retornaram a campo.

Sempre soube de tudo aquilo, mas nunca pensou de fato no tema por mais de trinta segundos.

Eles desertavam porque... porque achavam que seu país estava errado? Acreditariam mesmo que a situação era tão ruim que não restava opção além de fazer algo tão drástico quanto trair a pátria-mãe? Zaitzev percebeu, surpreso, que aquele era um raciocínio muito delicado.

Mas o que era a KGB, se não uma agência que vivia em meio à traição? Quantas centenas — milhares — de despachos ele havia lido sobre isso? Eram ocidentais — americanos, britânicos, alemães, franceses — usados pela KGB para obter informações de que seu país precisava. Eram todos traidores de suas pátrias, não eram?

Faziam aquilo basicamente por dinheiro. Ele também vira muitas mensagens desse tipo: discussões entre o Centro e as rezidenturas sobre valores de pagamentos. Sabia que o Centro era avarento em relação ao dinheiro pago, algo previsível. Os agentes queriam dólares americanos, libras esterlinas, francos suíços. E dinheiro de verdade, papel-moeda. Sempre queriam o pagamento em dinheiro vivo, nunca em rublos ou mesmo rublos certificados. Estava claro que não confiavam em outra coisa. Eles haviam traído seus países por dinheiro, mas apenas pelo próprio dinheiro. Alguns chegavam a pedir milhões de dólares — não que conseguissem. O máximo que havia visto autorizado fora cinquenta mil libras, por informações a respeito de códigos navais britânicos e americanos. Quanto as potências ocidentais não pagariam pelas informações de comunicações na minha cabeça?, pensou Zaitzev. Era uma pergunta sem resposta. Ele não tinha sequer como colocar aquela pergunta do modo apropriado, muito menos considerar a resposta seriamente.

— Aqui estão — disse Rozhdestvenskiy, entregando-lhe os formulários. — Envie-os imediatamente.

— Assim que codificá-los — assegurou o funcionário das comunicações.

— E com o mesmo nível de segurança — acrescentou o coronel.

— Entendido. O mesmo identificador nos dois? — perguntou Oleg Ivanovich.

— Correto, ambos com este número — respondeu Rozhdestvenskiy, indicando o 666 no canto direito superior.

— Positivo, camarada coronel. Vou providenciar imediatamente.

— Ligue quando tiverem sido transmitidos.

— Sim, camarada coronel. Tenho o número do seu escritório.

Oleg sabia que havia mais naquelas mensagens do que meras palavras. O tom da voz do coronel revelara. Estavam sendo enviadas por ordens diretas do diretor, e toda aquela atenção indicava que era uma questão da mais alta prioridade, não apenas algo de interesse trivial para um homem importante. Não era um simples pedido de meias-calças para a filha adolescente de um figurão.

Ele foi até a sala onde ficavam os livros de códigos para buscar os referentes a Roma e Sofia. Depois pegou seu disco de cifras e, arduamente, criptografou as duas mensagens.

Levou quarenta minutos. A mensagem para o coronel Bubovoy, em Sofia, era simples: Voe imediatamente a Moscou para reunião. Zaitzev imaginou se aquilo não faria as pernas do rezident tremerem um pouco. O coronel Bubovoy não tinha como saber o significado do identificador numérico. Mas tomaria conhecimento logo.

O resto do dia de Zaitzev transcorreu do modo rotineiro. Ele conseguiu guardar seus papéis confidenciais e deixar o prédio antes das dezoito horas.

 

 

O ALMOÇO NA CENTURY HOUSE era bom, mas concentrado na cozinha britânica.

Ryan aprendera a apreciar o Ploughman's Lunch, prato típico britânico, essencialmente porque o pão era excelente.

— Então sua mulher é cirurgiã?

Jack confirmou.

— Sim, cortadora de olhos. Na verdade, ela já começou a usar laser em alguns casos. Espera ser uma pioneira nisso.

— Lasers? Para quê?

— Em parte, é como soldagem. Usam o laser para cauterizar um vaso sanguíneo rompido, por exemplo. Fizeram isso no Suslov. O sangue estava se espalhando dentro do globo ocular, então eles o perfuraram e drenaram todo o fluido. Acho que chamam de humor aquoso. Depois usaram lasers para fechar os vasos rompidos. Soa bem nojento, não é?

Harding se arrepiou ao imaginar a cena.

— Deve ser melhor do que ficar cego.

— Claro. Entendo seu ponto de vista. É como quando Sally estava em choque. A ideia de uma pessoa cortando minha garotinha não era exatamente animadora.

Ryan lembrou-se de como aquilo fora terrível na verdade. Sally continuava com as cicatrizes no peito e no abdome, mas já estavam desaparecendo.

— E você, Jack? Você também já passou por cirurgias — observou Simon.

— Eu estava inconsciente, e eles não fizeram vídeos das operações. Mas, sabe, Cathy provavelmente gostaria de ver todas as três.

— Três?

— É, duas quando eu estava com os fuzileiros. Eles me estabilizaram no navio, depois me mandaram de avião para Bethesda para completar o serviço. Fiquei inconsciente praticamente o tempo todo, graças a Deus, mas os neurocirurgiões de lá não eram muito bons. Isso me deixou com um problema nas costas. Depois, quando estava namorando a Cathy... não, já éramos noivos... minhas costas foram para o espaço de novo durante um jantar em Little Italy. Ela me levou para o Hopkins e pediu a Sam Rosen que desse uma olhada em mim. Sam deu um jeito em tudo. Um cara legal e um médico incrível. Sabe, algumas vezes é bom ser casado com uma médica. Ela conhece alguns dos melhores do mundo. — Ryan deu uma grande mordida no sanduíche de peru na baguete. Era melhor do que os hambúrgueres da lanchonete da CIA. — Mas essa é só a versão resumida da aventura de três anos que começou com um acidente de helicóptero em Creta. Acabou no meu casamento, então acho que deu tudo certo.

Harding encheu o cachimbo com o tabaco que tirara de uma bolsinha e o acendeu.

— Então, como anda seu relatório sobre as práticas de administração dos soviéticos?

Jack colocou a cerveja na mesa.

— É impressionante como são atrasados, principalmente quando comparamos os documentos internos com as informações que obtemos quando nossos rapazes lidam diretamente com o equipamento deles. O que eles chamam de controle de qualidade, nós chamamos de trabalho de porco. Em Langley, vi um material sobre os caças deles obtido pela Força Aérea, quase todo através dos israelenses. As porcarias das peças nem se encaixam! Eles sequer conseguem cortar folhas de alumínio em formatos regulares. Quero dizer, um garoto nas aulas práticas da escola tem que fazer melhor para não ser reprovado. Sabemos que eles dispõem de engenheiros competentes, principalmente os caras que trabalham com estudos teóricos, mas as técnicas de fabricação são tão primitivas que crianças da terceira série fariam melhor.

— Não em todas as áreas, Jack — alertou Harding.

— Simon, nem todo o Oceano Pacífico é azul. Há ilhas e vulcões também. Eu sei disso. Mas a regra é que o oceano é azul, e a regra na União Soviética é um trabalho de péssima qualidade. O problema é que o sistema econômico deles não recompensa as pessoas que fazem um bom trabalho. Existe um ditado na economia: "O mau dinheiro afasta o bom." Significa que o mau desempenho prevalece se o bom desempenho não é reconhecido. Lá, na maioria dos casos, não é, e isso é como um câncer para a economia deles. O que acontece em uma área gradualmente se espalha para o sistema inteiro.

— Eles são muito bons em algumas coisas — insistiu Harding.

— Simon, o Balé Bolshoi não vai atacar a Alemanha Ocidental. Nem a delegação olímpica — retrucou Jack. — Os militares podem ter uma liderança competente nos níveis mais altos, mas o equipamento que usam é de péssima qualidade, e a administração de nível intermediário praticamente não existe. Sem meu sargento de artilharia e meus líderes de esquadrão eu não poderia ter usado meu pelotão de fuzileiros eficientemente, mas o Exército Vermelho não tem sargentos da forma como entendemos. Eles dispõem de oficiais competentes, e, repito, alguns dos teóricos são de primeiro nível, mas, sem treinamento tático apropriado, são como carros lindos com pneus vazios. O motor pode ligar, e a pintura ser reluzente, mas o carro não sai do lugar.

Harding deu umas baforadas contemplativas.

— Então, com que estamos preocupados?

Jack deu de ombros.

— Com muita coisa. E a quantidade tem uma qualidade própria. No entanto, se continuarmos fortalecendo nossa defesa, poderemos deter qualquer coisa que eles venham a tentar. Um regimento de tanques russo não passa de um conjunto de alvos se tivermos o equipamento correto e nossos homens forem treinados e liderados adequadamente. Enfim, é isso que meu relatório provavelmente dirá.

— É um pouco cedo para uma conclusão — disse Simon ao novo amigo americano.

Ryan ainda não aprendera como funcionava uma burocracia.

— Simon, eu costumava ganhar dinheiro no mercado. Nesse negócio, você ganha dinheiro vendo as coisas um pouco antes dos outros, e isso significa que não pode esperar até dispor de cada pedacinho de informação. Vejo para onde essa informação está apontando. A situação é ruim por lá e está piorando. As Forças Armadas deles são uma destilação do que há de bom e mau na sociedade. Veja como estão se saindo no Afeganistão. Ainda não vi seus dados, mas já vi os de Langley, e a situação não é boa. Os militares estão se saindo muito mal naquela pedreira.

— Acho que vão acabar vencendo.

— É possível — reconheceu Jack —, mas será uma vitória sofrida. Fizemos muito melhor no Vietnã. — Ele parou por um instante. — Vocês não têm boas memórias do Afeganistão, não é?

— Meu tio-avô esteve lá em 1919. Disse que foi pior que a Batalha do Somme. Kipling escreveu um poema que termina com uma ordem para que um soldado estoure os miolos para não ser capturado. Acho que alguns russos aprenderam essa lição, para azar deles.

— É, os afegãos são destemidos, porém não muito civilizados — concordou Jack. — Mas acho que vencerão. Há boatos nos Estados Unidos sobre fornecer mísseis terra-ar Stinger a eles. Isso neutralizaria os helicópteros usados pelos russos. E, sem eles, Ivan terá problemas.

— Os Stinger são tão bons assim?

— Nunca os usei pessoalmente, mas ouvi elogios.

— E o SAM-7 russo?

— Eles meio que inventaram o conceito de um míssil terra-ar portátil, não foi? Mas conseguimos um lote através dos israelenses, em 1973, e nossos homens não ficaram muito impressionados. Como sempre, Ivan teve uma grande ideia, só que depois não conseguiu executá-la da maneira apropriada. Essa é a maldição deles, Simon.

— Então me explique a KGB — desafiou Harding.

— É o mesmo caso do Balé Bolshoi e das equipes de hóquei no gelo. Eles dispensam muito talento e dinheiro àquela agência, e conseguem um retorno razoável... mas muitos espiões acabam atravessando o muro, não é?

— É verdade — admitiu Simon.

— E por que isso acontece, Simon? — perguntou Jack. — Porque eles são convencidos de como somos corruptos e confusos, mas quando chegam aqui e olham ao redor, percebem que as coisas não são tão ruins. Caramba, há casas bem seguras em todos os Estados Unidos com homens da KGB dentro, assistindo TV. Não são muitos os que decidem voltar para casa. Nunca conheci um desertor, mas li muitas transcrições, e eles dizem praticamente a mesma coisa. Nosso sistema é melhor, e eles são espertos o bastante para perceber.

— Também temos alguns vivendo aqui — disse Harding. Ele não quis admitir que havia britânicos vivendo na Rússia. Não tantos quanto na situação inversa, porém o suficiente para constituir um embaraço considerável para a Century House. — É difícil discutir com você, Jack.

— Só digo a verdade, parceiro. Estamos aqui para isso, não é?

— Em tese — respondeu Harding. Ele percebeu que Ryan nunca seria um burocrata e tentou avaliar se isso era bom ou ruim. Os americanos viam as coisas de maneira diferente, e o contraste com o ponto de vista de sua própria organização era curioso, no mínimo. Harding concluiu que Ryan tinha muito a aprender... mas algo a ensinar também. — Como anda seu livro?

A expressão no rosto de Ryan mudou.

— Não tenho trabalhado muito nele ultimamente. O computador está pronto, só que é difícil me concentrar depois de um dia inteiro de trabalho aqui. O problema é que, se eu não arranjar tempo, nunca ficará pronto. No fundo, sou preguiçoso — disse Ryan.

— Então, como ficou rico? — questionou Harding.

A resposta inicial foi um sorriso.

— Também sou ambicioso. Gertrude Stein disse: "Já fui rica e já fui pobre. Ser rica é melhor." Não há palavras mais verdadeiras.

— Preciso descobrir isso por conta própria um dia — comentou o funcionário público britânico.

Ops, pensou Ryan. Mas não era culpa dele, era? Simon era bem inteligente para ganhar dinheiro no mundo real, mas não parecia pensar nesses termos. Fazia sentido ter um cara esperto entre os analistas da Century House, mesmo que significasse sacrificar o bem-estar pessoal pelo país. Isso não era uma coisa negativa, e Ryan percebeu que estava fazendo o mesmo. Sua vantagem era haver juntado dinheiro antes. Agora, podia dar adeus ao trabalho e voltar à sala de aula assim que tivesse vontade. Era um tipo de autonomia que a maioria dos funcionários públicos nunca conheceria. E o trabalho deles provavelmente é prejudicado por isso, refletiu.

 

 

ZAITZEV SAIU DO PRÉDIO depois de passar por vários postos de segurança. Algumas pessoas eram revistadas ao acaso pelos guardas para garantir que não levavam nada. Mas as checagens — ele já passara por um número considerável — eram muito superficiais para serem eficazes. Suficientes para serem um incômodo e esparsas demais para serem uma ameaça real — uma vez por mês talvez. Além disso, quem era revistado sabia que estava livre por pelo menos cinco dias, porque os guardas lembravam dos rostos das pessoas verificadas. E mesmo ali havia contato humano e relações de amizade entre os funcionários, principalmente nos níveis mais baixos, uma espécie de solidariedade entre os assalariados que não deixava de ser surpreendente em determinados aspectos. Desta forma, Zaitzev pôde passar sem inspeção e chegou à ampla praça, seguindo até a estação de metrô.

Ele não costumava vestir seu uniforme paramilitar. A maioria dos funcionários da KGB preferia não fazê-lo, como se seu emprego os tornasse maculados aos olhos dos outros cidadãos. Ele também não escondia sua condição. Se alguém perguntava, dava uma resposta honesta, e a curiosidade acabava por ali, porque todos sabiam que não se faziam perguntas a respeito do Comitê de Segurança do Estado. De vez em quando, passavam filmes e programas de TV sobre a KGB. Alguns até eram razoavelmente fiéis à realidade, embora revelassem pouco dos métodos e fontes, fora da imaginação dos autores, nem sempre muito precisa. Um pequeno departamento do Centro prestava consultoria nesses temas, normalmente retirando e raramente acrescentando informações, já que era do interesse da agência parecer perigosa e ameaçadora aos cidadãos soviéticos e aos estrangeiros. Quantos cidadãos comuns complementavam sua renda como informantes?, pensou Zaitzev. Quase não via despachos sobre o assunto — era o tipo de coisa que não chegava ao exterior.

As coisas que eram relatadas no exterior já eram suficientemente problemáticas. O coronel Bubovoy provavelmente estaria em Moscou no dia seguinte. Havia voos regulares entre Sofia e Moscou através da Aeroflot. O coronel Goderenko, em Roma, recebera ordens para ficar quieto e se calar, além de encaminhar ao Centro toda a agenda do papa por prazo indeterminado. Andropov não perdera o interesse por aquelas informações.

E agora os búlgaros seriam envolvidos. Zaitzev estava preocupado, mas não precisava pensar muito no assunto. Havia lido despachos como aqueles antes. Sabia que o Serviço de Segurança do Estado búlgaro era um servo leal à KGB. Já tinha visto mensagens suficientes para Sofia, algumas vezes através de Bubovoy, outras diretamente, e muitas com o propósito de acabar com a vida de alguém. A KGB deixara aquilo um pouco de lado, mas o Dirjavna Sugurnost não. Zaitzev imaginava que havia uma pequena subunidade do DS treinada e preparada para aquela tarefa específica. E, como o identificador da mensagem continha o sufixo 666, o despacho estava relacionado ao mesmo tipo de assunto sobre o qual Roma havia sido questionada inicialmente. Aquilo seguiria adiante.

Sua agência — seu país — queria matar esse padre polonês, e aquilo, para Zaitzev, era provavelmente uma péssima ideia.

Ele pegou a escada rolante até a estação subterrânea em meio à multidão típica de fim de expediente. Normalmente, achava a profusão de pessoas reconfortante. Significava que estava em seu ambiente, cercado por compatriotas, gente exatamente como ele, servindo uns aos outros e ao Estado. Mas seria verdade? O que aquelas pessoas achariam da missão de Andropov? Era difícil avaliar. A viagem de metrô costumava ser calma.

Algumas pessoas conversavam com amigos, mas discussões em grupo eram raras, exceto talvez no caso de lances esportivos incomuns, como um erro de arbitragem em uma partida de futebol ou um lance particularmente espetacular no rinque de hóquei.

Fora isso, as pessoas ficavam sozinhas em seus pensamentos.

O trem parou, e Zaitzev se espremeu para entrar. Como de hábito, não havia assentos vagos. Ele se segurou à barra acima da cabeça e continuou pensando.

Será que os outros no trem também estão pensando? Em caso afirmativo, sobre o quê? Trabalho? Crianças? Esposas? Amantes? Comida? Era impossível adivinhar. E ele encontrava aquelas pessoas — aquelas mesmas pessoas — no metrô havia anos. Sabia apenas alguns nomes, na maior parte ouvidos por acaso. Não, conhecia aquela gente só pelos seus times favoritos...

Ele teve uma sensação repentina e intensa de que estava sozinho em sua própria sociedade. Quantos amigos de verdade tenho?, perguntou a si mesmo. A resposta, para sua perplexidade, era: muito poucos. Claro, havia pessoas com quem conversava no trabalho; conhecia até os detalhes mais íntimos de suas esposas e crianças. Mas amigos em quem pudesse confiar, com que pudesse conversar sobre algum desdobramento problemático, aos quais pudesse pedir conselhos em situações difíceis... Não, não tinha nenhum. Isso o tornava raro em Moscou. Os russos normalmente estabeleciam amizades próximas e profundas e, com frequência, consagravam-nas com os segredos mais pessoais e por vezes sombrios, quase desafiando-os a serem informantes da KGB, como se estivessem buscando uma viagem para um gulag. Contudo, seu trabalho não lhe permitia aquilo. Nunca teria coragem de falar sobre o que fazia no trabalho, nem mesmo com seus colegas.

Qualquer problema que tivesse com a série de mensagens 666 precisaria ser resolvido por ele mesmo. Nem sua Irina podia saber. Talvez ela falasse com as amigas da loja de departamentos, e isso certamente significaria a morte do marido. Ele suspirou e olhou ao redor... Lá estava ele novamente, o oficial da embaixada americana, lendo o Sovietskiy Sport e cuidando de sua própria vida. Vestia uma capa de chuva — a previsão de chuva não se materializara —, mas não usava chapéu. O casaco estava aberto, sem botões ou cintos. Ele estava a uma distância de menos de dois metros...

Num impulso, Zaitzev passou de um lado ao outro do carro, trocando as mãos nas barras superiores, como se estivesse esticando um músculo enrijecido. O movimento colocou-o ao lado do americano. Em outro impulso, meteu a mão no bolso da capa. Não havia nada ali, nem uma chave ou trocado, apenas pano. Mas ele determinara que podia mexer no bolso do americano e tirar a mão sem ser percebido. Afastou-se, correndo os olhos pelo vagão para verificar se alguém percebera ou mesmo olhara em sua direção. Não, era quase certo que não. Sua manobra não fora notada, nem mesmo pelo americano.

 

 

FOLEY SEQUER MEXEU OS OLHOS enquanto lia o noticiário do hóquei até o fim. Se estivesse em Nova York ou qualquer cidade ocidental, pensaria que alguém tentara levar alguma coisa do seu bolso. Estranhamente, não esperava aquele tipo de coisa ali.

Os cidadãos soviéticos não eram autorizados a possuir moeda ocidental, portanto roubá-lo na rua, ou bater sua carteira, só traria problemas. E a KGB, que provavelmente ainda o seguia, dificilmente faria algo naquele estilo. Se quisessem subtrair sua carteira, usariam uma dupla, como os punguistas profissionais americanos: um para atrapalhar e distrair a vítima, outro para pegar o objeto. Era possível enganar praticamente qualquer um dessa forma, a não ser que o alvo estivesse alerta, e permanecer alerta por tanto tempo era pedir demais, mesmo de um espião profissional. Então a saída era empregar defesas passivas, como prender a carteira com um ou dois elásticos. Simples, porém muito eficaz; um dos truques que ensinavam na Fazenda, o tipo de método básico que não anunciava "espião!" a todos. A polícia de Nova York aconselhava as pessoas a fazer o mesmo nas ruas de Manhattan, e ele devia parecer um americano. Como tinha um passaporte diplomático e um disfarce "legal", em tese, era inviolável. Mas não para um bandido de rua. A KGB e o FBI não estavam livres da possibilidade de um bandido agir com violência, mesmo que dentro de parâmetros cuidadosamente calculados, para que as coisas não saíssem do controle. Todas aquelas circunstâncias tornavam a Corte Imperial bizantina simples, por comparação, mas Ed Foley não estabelecia as regras.

As regras não permitiam que verificasse o bolso ou desse o mais sutil sinal de que sabia que a mão de alguém estivera ali. Talvez tivessem deixado um recado — até mesmo um relato de seu desejo de desertar. Mas por que ele? Seu disfarce devia ser mais sólido do que um título do tesouro americano. A não ser que alguém da embaixada houvesse feito uma suposição muito astuta e entregado a informação... Mesmo assim, a KGB não jogaria suas cartas tão rapidamente. Eles o acompanhariam pelo menos algumas semanas, só para perceber aonde podia levá-los. A capacidade da KGB era incompatível com aquela jogada, logo não havia muita chance de a pessoa que mexera em seu bolso ser um homem da Segunda Diretoria. Nem um batedor de carteiras. Então o quê?, pensou Foley. Precisaria de paciência para descobrir — e ele entendia tudo de paciência. Continuou lendo o jornal. Se fosse alguém interessado em fazer negócios, por que assustá-lo? Pelo menos, deixaria que se sentisse inteligente. Era sempre útil ajudar outras pessoas a se acharem espertas. Assim, continuariam cometendo os mesmos erros.

Faltavam três paradas para chegar. Foley soube desde o início que seria mais produtivo usar o metrô do que ir de carro. A Mercedes era muito chamativa naquele lugar. Teria o mesmo efeito sobre Mary Pat, mas, no raciocínio dela, aquilo funcionava a favor, e não contra. Sua esposa possuía instintos brilhantes de campo, melhores que os seus, mas aquele destemor frequentemente o deixava assustado. Não significava que Mary Pat corresse riscos demais. Todos na Divisão de Operações corriam riscos. Era seu gosto pelo perigo que o preocupava de vez em quando. Para ele, jogar com os russos era parte do trabalho. Eram negócios, como diria Don Vito Corleone; nada pessoal.

Mas, para Mary Patricia, era muito pessoal, por causa do avô.

Ela ansiava ser parte da CIA antes de os dois se encontrarem no centro acadêmico da Fordham e novamente no balcão de recrutamento da CIA. Começaram a se aproximar logo depois. Ela já dominava o russo e podia se passar por nativa. Era capaz de imitar o sotaque de qualquer região do país. Podia se fingir de professora de poesia na Universidade Estadual de Moscou. Era bonita — e mulheres bonitas tinham vantagem sobre as outras pessoas. O mais antigo dos preconceitos: os atraentes tinham que ser pessoas boas, enquanto as pessoas más só podiam ser feias, porque, afinal, faziam coisas más. Os homens eram particularmente complacentes com mulheres bonitas; as mulheres nem tanto, devido à inveja, mas mesmo assim acabavam sendo simpáticas por instinto. Por isso, Mary Pat podia ser ousada em muitas situações, porque era apenas uma bela mulher americana, uma loura desmiolada — as louras eram consideradas burras universalmente, até na Rússia, onde estavam longe de serem incomuns. E deviam ser louras naturais, já que a indústria local de cosméticos parecia tão desenvolvida quanto na Hungria do século XII e não havia muitas tinturas da moda nas farmácias. Não, a União Soviética dava pouca atenção às necessidades de suas mulheres, o que levou Foley a outra questão: por que os russos pararam na primeira revolução? Nos Estados Unidos, aquela falta de opções em roupas e cosméticos provocaria uma reação extremamente violenta...

O trem parou na estação. Foley abriu caminho até a porta e subiu as escadas rolantes.

No meio da subida, sua curiosidade falou mais alto. Ele esfregou o nariz, como se estivesse resfriado, e procurou um lenço no bolso. Limpou o nariz com ele e depois o enfiou no bolso da capa. Estava vazio. O que acontecera então? Não havia como saber.

Só mais uma obra do acaso em uma vida repleta delas?

Mas Edward Foley não tinha sido treinado para pensar em termos de acaso.

Ele manteria o horário, assegurando-se de pegar o mesmo trem do metrô todos os dias, por cerca de uma semana, só para ver se aquilo se repetiria.

 

 

ALBERT BYRD PARECIA ser um cirurgião de olhos competente. Era mais baixo e mais velho que Jack. Mantinha uma barba preta, com os primeiros sinais de branco, o que era comum na Inglaterra. Também tinha tatuagens; mais do que ela já vira antes. Byrd era um clínico talentoso, amável com seus pacientes, e um cirurgião muito competente, que tinha a simpatia e a confiança de sua equipe de enfermeiras — sempre indicação de um médico capaz para Cathy. Parecia ser um bom professor, mas ela já sabia a maior parte do que ele tinha a ensinar, e conhecia mais sobre lasers do que ele. O laser de argônio de lá era novo, mas não tão novo quanto o do Hopkins, e demoraria duas semanas para receberem um aparelho de arco de xenônio. Cathy era a melhor operadora desse tipo de equipamento no Instituto Wilmer, do Hopkins.

As instalações físicas eram o ponto negativo. A saúde na Grã-Bretanha, na prática, era um monopólio do governo. Tudo era gratuito — e, como em qualquer lugar do mundo, recebia-se pelo que se pagava. A conservação das salas de espera estava muito abaixo daquilo a que Cathy se acostumara, e ela comentou o assunto com seu chefe.

— Eu sei — respondeu o professor Byrd, desanimado. — Não é uma prioridade.

— O terceiro caso que atendi esta manhã, a Sra. Dover, estava na lista de espera havia onze meses. Para uma avaliação de catarata que fiz em vinte minutos. Meu Deus, Albert, lá nos Estados Unidos o médico da família liga para minha secretária e eu a vejo em três ou quatro dias. Trabalho duro no Hopkins, mas não assim.

— Quanto cobraria?

— Pelo quê? Ah... duzentos dólares. Como sou professora assistente no Wilmer, cobro um pouco mais do que um residente novato. — Ela não acrescentou que era muito mais esperta, mais experiente e mais rápida do que o residente mediano. — A Sra. Dover precisará de cirurgia para corrigir o problema. Quer que eu faça?

— É complicada? — perguntou Byrd.

Ela fez que não com a cabeça. — Procedimento de rotina. Deve demorar uns noventa minutos, devido à idade dela, mas nada indica que haverá complicações.

— Bem, a Sra. Dover entrará na lista.

— Quanto tempo?

— Não é um procedimento de emergência... de nove a dez meses — estimou Byrd.

— Você está brincando. Tudo isso?

— É o prazo normal.

— Serão nove ou dez meses em que ela não verá bem o bastante para dirigir um carro!

— Ela nunca receberá uma conta — ressaltou Byrd.

— Ótimo. Ela não pode sequer ler o jornal por quase um ano. Albert, isso é horrível!

— É nosso sistema nacional de saúde — explicou Byrd.

— Entendo — disse Cathy.

No entanto, ela não entendia realmente. Os cirurgiões eram competentes, mas realizavam pouco mais da metade dos procedimentos que Cathy e seus colegas faziam no Hopkins — e ela nunca se sentira exaurida no edifício Maumenee. Sim, eles trabalhavam duro, mas as pessoas precisavam de ajuda, e sua tarefa era restabelecer e melhorar a visão daqueles que precisavam de cuidado médico especializado. Para Caroline Ryan, médica e membro do Colégio Americano de Cirurgiões, era como um chamado religioso. Não que os médicos locais fossem preguiçosos; o problema era que o sistema permitia — não, incentivava — que tivessem uma atitude de não-intromissão em relação a seu trabalho. Ela havia chegado a um novo mundo médico, e este não era muito admirável.

Ela também não vira nenhum tomógrafo computadorizado. O equipamento tinha sido inventado na Grã-Bretanha pela EMI, mas um burocrata do governo — do Ministério do Interior, pelo que ficara sabendo — decidira que o país só precisava de algumas unidades, e assim a maioria dos hospitais perdera a loteria. O tomógrafo aparecera poucos anos antes de Cathy ingressar na escola de medicina da Johns Hopkins University, e, em uma década, se tornara tão presente na medicina quanto o estetoscópio.

Quase todos os hospitais americanos tinham um. Custava US$ 1 milhão, mas o paciente pagava para usar, portanto o investimento era recuperado rapidamente. Ela raramente precisava de um — para examinar tumores em torno do olho, por exemplo —, mas, quando precisava, tinha que ser logo!

Além disso, no Johns Hopkins, o chão era esfregado todos os dias.

Contudo, as pessoas tinham as mesmas necessidades, e, como ela era médica, isso bastava. Um de seus colegas da escola de medicina fora para o Paquistão e voltara com o tipo de experiência em patologias oculares que não se obteria durante uma vida inteira em hospitais americanos. Claro, ele também retornara com disenteria amebiana, o que certamente reduziria o entusiasmo de qualquer um por viagens ao exterior. Pelo menos aquilo não aconteceria ali. A não ser que fosse contaminada em uma sala de espera.


9

 


ESPÍRITOS

 

ATÉ ENTÃO, RYAN NÃO conseguira pegar o mesmo trem de volta que sua mulher, chegando sempre mais tarde. Quando finalmente estivesse em casa, podia pensar em trabalhar um pouco no livro sobre o almirante Halsey. Terminara cerca de 70 por cento, e a pesquisa mais complicada já ficara para trás. Só precisava acabar de escrever. O que as pessoas não entendiam é que aquela era a parte mais custosa; pesquisar resumia-se a localizar e gravar fatos. Ligar os fatos em uma história coerente era o trabalho difícil, porque as vidas humanas nunca eram coerentes, principalmente a de um guerreiro beberrão como William Frederick Halsey Jr. Escrever uma biografia era acima de tudo um exercício de psicologia amadora. Assimilavam-se episódios que haviam acontecido durante sua existência, em idades e níveis educacionais selecionados aleatoriamente, mas nunca se tinha conhecimento das pequenas e essenciais memórias que definiam uma vida — a briga na terceira série ou as reprimendas da tia solteirona Helen que ressoavam na mente até os últimos dias, porque homens raramente revelavam esse tipo de coisa a outros. Ryan tinha memórias similares, e algumas apareciam e desapareciam em sua consciência em intervalos aparentemente randômicos, a exemplo de quando a mensagem da irmã Frances Mary, na segunda série da Saint Matthew's, irrompera em sua memória como se tivesse sete anos novamente.

Um biógrafo talentoso devia ter a capacidade de simular essas coisas, mas algumas vezes se tratava de inventar fatos, aplicar experiências pessoais à vida de outra pessoa. E isso era... ficção. E a história não devia ser reduzida a ficção. As reportagens de jornal também não, porém Ryan sabia por experiência própria que muitas das supostas "notícias" não passavam de imaginação. Ninguém lhe dissera, contudo, que escrever uma biografia seria fácil. Em retrospecto, seu primeiro livro, Águias condenadas, fora um projeto muito mais simples. Bill Halsey, almirante de frota da marinha americana, fascinava-o desde que lera sua autobiografia, quando criança. Ele comandara forças navais em batalhas, e, embora aquilo houvesse parecido empolgante para um garoto de 10 anos, era extremamente assustador para um homem de 32, pois agora entendia os aspectos de que Halsey não falava abertamente — a incógnita de precisar confiar em informações de inteligência sem saber de onde vinham, como eram obtidas, analisadas, processadas e transmitidas ou se havia uma interceptação inimiga. Ryan agora integrava aquele meio, e aterrorizava-o ter que arriscar a vida no trabalho que fazia — e, pior, arriscar as vidas de outros que talvez conhecesse ou, mais provavelmente, não.

Enquanto os verdejantes campos ingleses passavam pela janela, Ryan lembrou de uma piada da época em que estava com os marines. O lema dos serviços de inteligência era: "Nós apostamos sua vida." Agora aquela era sua profissão. Tinha de arriscar a vida dos outros. Em tese, podia até produzir um estudo de inteligência que viesse a colocar em risco o destino de seu país. Era preciso confiar de forma absoluta em si mesmo e nos dados...

Mas nunca se podia ter certeza. Ele desdenhara de várias estimativas oficiais da CIA que chegaram ao seu conhecimento em Langley, porém era muito mais fácil cuspir no trabalho dos outros do que produzir algo melhor. Seu livro sobre Halsey, provisoriamente chamado Marinheiro lutador, abalaria muitos lugares-comuns — e propositadamente. Ryan acreditava que o pensamento convencional, em algumas áreas, não só era incorreto, mas também algo que nunca poderia ser verdadeiro. Halsey agira bem em certos casos nos quais o olho atento da percepção tardia o culpara por estar errado. E aquilo fora injusto. Halsey só poderia ser julgado responsável pela informação que estava à sua disposição. Qualquer afirmação diferente seria como criticar os médicos por não conseguirem curar o câncer. Eram pessoas espertas dando o máximo, mas desconheciam algumas coisas — estavam trabalhando arduamente para desvendá-las, porém o processo de descoberta levava tempo à época, e continuava levando agora. Chegaria o dia? Bill Halsey só poderia saber o que recebia, ou o que um homem razoavelmente inteligente seria capaz de deduzir das informações, diante de uma vida inteira de experiência e do que conhecia da psicologia do inimigo. E, mesmo assim, o inimigo não colaboraria para sua própria destruição, certo?

Esse é o meu trabalho, pensou Ryan, sem expressão nos olhos. Era uma busca pela verdade, porém mais do que isso. Ele tinha de reproduzir aos seus próprios mestres os processos de raciocínio dos outros, explicá-los aos seus próprios superiores, para que eles, seus chefes, pudessem entender melhor os adversários. Estava brincando de psicólogo sem diploma. Se, de certa forma, era divertido, perdia a graça quando se consideravam a magnitude da missão e as potenciais consequências de um fracasso. Resumia-se a duas palavras: gente morta. Na escola básica dos Fuzileiros em Quantico, haviam martelado a mesma lição: cometa um erro ao liderar seu pelotão, e alguns fuzileiros não voltarão para as mães e as esposas, e isso seria um grande peso na consciência para o resto da vida. O ofício das armas implicava alto preço a pagar em caso de erro. Ryan não servira por tempo suficiente para aprender a lição pessoalmente, mas ela o perturbava em noites tranquilas, quando ele sentia o balanço do navio através do Oceano Atlântico. Conversara sobre aquilo com o artilheiro Tate, mas o sargento — na época um "senhor" de 34 anos — sugerira apenas que lembrasse do treinamento, confiasse nos instintos e pensasse antes de agir, se tivesse tempo. E alertara que nem sempre se dispunha do luxo do tempo. E dissera ao jovem superior que não se preocupasse, porque parecia bem esperto para um segundo-tenente. Ryan nunca se esqueceria daquilo. O respeito de um sargento de artilharia dos fuzileiros não vinha de graça.

Portanto, ele tinha capacidade para produzir boas avaliações de inteligência e coragem para colocar seu nome nelas, mas precisava ter certeza absoluta de que o material era bom antes de liberá-lo. Porque estava apostando as vidas de outras pessoas, não estava?

O trem parou. Ele subiu as escadas e encontrou alguns táxis. Concluiu que os motoristas haviam memorizado os horários dos trens.

— Boa noite, Sir John.

Jack percebeu que era Ed Beaverton, que o havia buscado de manhã.

— Oi, Ed — disse Ryan, sentando-se no banco da frente, para variar. O espaço para as pernas era maior. — Sabe, meu nome, na verdade, é Jack.

— Não posso chamá-lo assim — opôs-se Beaverton. — O senhor é um cavaleiro.

— Apenas honorário, não um legítimo. Nem tenho uma espada... bem, só a dos fuzileiros navais, e isso é lá nos Estados Unidos.

— Mas o senhor foi tenente, e eu apenas um cabo.

— E você pulava de aviões. Nunca fiz uma coisa tão estúpida, Eddie.

— Só 28 vezes. Nunca quebrei qualquer parte do corpo — contou o motorista de táxi, já subindo a ladeira.

— Nem um tornozelo?

— Só uma ou outra torção. As botas ajudam — explicou.

— Ainda não aprendi a gostar de voar. Com certeza, nunca vou pular de um avião.

Jack nunca optaria por integrar as forças de reconhecimento. Ele aprendera, da maneira mais difícil, que sobrevoar uma praia a bordo de um helicóptero era assustador o suficiente. Ainda sonhava com aquilo — a sensação repentina de estar em queda e ver o solo se aproximando —, mas sempre acordava pouco antes do impacto, normalmente se sentando na cama e olhando ao redor, no quarto escuro, para se assegurar de que não estava a bordo do CH-46 com um rotor traseiro avariado, caindo sobre as rochas de Creta. Fora um milagre que ele e vários fuzileiros não tivessem sido mortos. Seu ferimento fora o único mais grave. O resto do pelotão escapara no máximo com algumas torções.

Por que está pensando nisso agora?, questionou-se. Fazia mais de oito anos.

Estavam em frente à casa de Grizedale Close.

— Aqui estamos, sir.

Ryan pagou a corrida e deixou uma generosa gorjeta.

— O nome é Jack, Eddie.

— Entendido, sir. Nos vemos de manhã.

— Positivo.

Ryan afastou-se sabendo que nunca venceria aquela batalha. A porta da frente estava destrancada a sua espera. A gravata entrava primeiro enquanto se dirigia à cozinha.

— Papai! — gritou Sally, carinhosamente, pulando em seus braços. Jack segurou-a e os dois se abraçaram.

— Como está minha garotona?

— Tudo bem.

Cathy estava no fogão, preparando o jantar. Ryan colocou a filha no chão e foi até a esposa para lhe dar um beijo.

— Como você sempre chega antes? Lá em casa costuma ser o contrário.

— Sindicato — respondeu ela. — Aqui todo mundo sai do trabalho na hora certa, e isso normalmente quer dizer bem cedo. É diferente do Hopkins.

Ela não precisou completar que, no Hopkins, quase todos da equipe ficavam além do horário.

— Deve ser bom trabalhar em horário bancário.

— Nem o papai sai do escritório tão cedo, mas aqui todo mundo sai. E o almoço leva uma hora inteira, metade do tempo fora do hospital. Bem, a comida fica um pouco mais gostosa assim — reconheceu.

— O que temos para jantar?

— Espaguete.

Jack percebeu que a panela estava cheia de seu molho de carne preferido. Também viu uma baguete na bancada.

— Onde está nosso homenzinho?

— Na sala.

— Certo.

Ryan foi até a sala. O pequeno Jack estava no cercadinho. Acabara de aprender a se sentar — era um pouco cedo para aquilo, mas Jack não se importava. Ao seu redor, havia uma coleção de brinquedos, que invariavelmente acabavam em sua boca. Ele olhou para cima para ver o pai e deu um sorriso desdentado. É claro que aquilo merecia um colo. A fralda parecia seca e limpa. Certamente a Srta. Margaret a havia trocado antes de partir — como sempre antes de Jack chegar. Ela estava se saindo muito bem. Sally gostava dela, e isso era o mais importante. Jack colocou o filho de volta no chão, e ele voltou a brincar com o chocalho de plástico e a assistir TV, principalmente os comerciais. Foi até o quarto pôr roupas mais confortáveis e depois voltou à cozinha. Para surpresa de todos, a campainha tocou. Jack foi atender.

— Dr. Ryan? — perguntou a voz, com sotaque americano.

Era um homem com altura e aparência geral semelhantes às de Ryan, de paletó e gravata, segurando uma caixa grande.

— Sou eu.

— Trouxe seu telefone seguro, senhor. Trabalho com comunicações na embaixada — explicou o homem. — O Sr. Murray pediu que trouxesse imediatamente.

Era uma caixa de papelão de oitenta centímetros de largura, sem nada escrito. Ryan deixou o homem entrar e o levou até seu escritório. Precisaram de três minutos para retirar o telefone, maior do que o normal, da caixa. Foi colocado ao lado do Apple IIe de Ryan.

— Você é da NSA?

— Sim, senhor. Civil. Fui da Agência de Segurança do Exército. Sargento. Saí e consegui um salário melhor como civil. Estou aqui há dois anos. Bem, aqui está sua chave de criptografia. — Ele entregou o dispositivo de plástico. — Sabe como funciona, não?

— Claro. Tenho uma na minha mesa no trabalho.

— Então conhece as regras. Se alguma coisa quebrar, me chame. — Ele entregou um cartão. — Ninguém à exceção de mim e do meu pessoal pode mexer no interior. Se isso acontecer, o sistema se autodestruirá, claro. Não vai causar um incêndio, nem nada parecido, mas vai cheirar mal, por causa do plástico. É isso.

Ele desmontou a caixa.

— Quer uma Coca ou alguma outra coisa?

— Não, obrigado. Preciso ir para casa.

Dito isso, o especialista em comunicações saiu pela porta e se encaminhou ao carro.

— O que era, Jack? — perguntou Cathy, da cozinha.

— Meu telefone seguro — explicou Jack, voltando para perto da mulher.

— Para que serve?

— Para eu poder falar com meu chefe nos Estados Unidos.

— Não pode fazer isso do escritório?

— Há a questão do fuso horário e, bem, não posso falar sobre algumas coisas lá.

— Coisas de agente secreto — debochou.

— Isso mesmo.

Exatamente como a pistola que ele mantinha no armário. Cathy aceitava a presença da espingarda Remington, que Jack usava para caçar, com certa serenidade. Tolerava porque, afinal, podiam cozinhar e comer os pássaros. E a arma permanecia descarregada. Mas não se sentia tão sossegada em relação à pistola. Assim, como pessoas casadas civilizadas, eles não falavam sobre o assunto, desde que a pistola permanecesse longe do alcance de Sally — e ela sabia que o armário do pai estava fora dos limites. Jack apegara-se à sua Browning Hi-Power 9 mm automática, que estava sempre carregada com quatorze balas hollowpoint e mais duas na agulha, além de ter mira de trítio e empunhadura feita sob medida. Se um dia precisasse usar uma pistola novamente, seria aquela. Precisava de um lugar para praticar, lembrou-se. Talvez houvesse um estande na base próxima da Marinha Real. Sir Basil provavelmente poderia dar um telefonema e arranjar tudo. Como cavaleiro, ele não tinha uma espada, mas uma pistola era o equivalente moderno e podia ser uma ferramenta útil em algumas ocasiões.

Um saca-rolhas também. — Chianti? — perguntou Ryan.

Cathy se virou.

— Tudo bem, não tenho nada marcado para amanhã.

— Cathy, nunca entendi a relação entre uma ou duas taças de vinho hoje e uma cirurgia amanhã. São de dez a doze horas de diferença.

— Jack, não se mistura álcool com cirurgia — explicou ela, com paciência. — Não se bebe e dirige. Também não se bebe e realiza uma cirurgia. Nunca. Nem uma vez.

— Sim, doutora. Então amanhã você só vai passar prescrições de óculos para as pessoas?

— Isso, dia simples. E você?

— Nada de importante. Dia diferente, mas a mesma porcaria.

— Não sei como aguenta.

— Bem, é interessante, é uma porcaria secreta. É preciso ser um espião para entender.

— Certo. — Ela derramou o molho do espaguete em uma tigela. — Aqui está.

— Ainda não abri o vinho.

— Então trabalhe mais rápido.

— Sim, professora Lady Ryan — respondeu Jack, pegando a tigela e colocando-a na mesa. Depois abriu a garrafa de Chianti.

Sally era grande demais para uma cadeira alta, mas pequena demais para uma almofada extra, que ela carregava sozinha até seu lugar. Como o jantar era "paguete", Jack prendeu um guardanapo de pano na sua gola. O molho provavelmente cairia na calça, de qualquer maneira, mas pelo menos a pequenina aprenderia sobre guardanapos — e isso, para Cathy, era importante. Depois Jack serviu o vinho. Sally não pediu. O pai lhe dera um pouco uma vez — diante das objeções de Cathy —, e só. Sally ficou com a Coca-Cola mesmo.

 

 

SVETLANA FINALMENTE DORMIU. Ela gostava de ficar acordada enquanto aguentasse, toda noite, ou pelo menos assim parecia, até finalmente baixar a cabeça. O pai percebeu que ela dormia com um sorriso, como um pequeno anjo, do tipo que decorava as catedrais italianas dos livros de viagem que costumava ler. O televisor estava ligado. Parecia um filme sobre a Segunda Guerra. Eram todos iguais. Os alemães atacavam de modo cruel — bem, eventualmente havia um personagem alemão dotado de algo parecido com humanidade, que ao longo da narrativa se revelaria um comunista, angustiado pelo conflito entre ser leal à sua classe (proletária, é claro) e ao seu país — e os soviéticos resistiam bravamente, perdendo muitos valentes homens no início, até inverterem o jogo, na maioria das vezes perto de Moscou em dezembro de 1941, em Stalingrado em janeiro de 1943 ou em Kursk no verão de 1943. Sempre havia uma heroica autoridade política, um corajoso soldado, um sábio sargento mais velho e um brilhante oficial inexperiente. Além deles, um general grisalho que chorava por seus homens silenciosamente, sozinho, e depois precisava esquecer os sentimentos e realizar o trabalho. Havia umas cinco fórmulas, todas variações do mesmo tema. A única diferença era se Stalin aparecia como um soberano sábio e quase divino ou sequer recebia menção. Isso dependia de quando o filme fora rodado. Stalin saíra de moda na indústria soviética de cinema por volta de 1956, pouco depois de Nikita Sergeievich Kruchev fazer o famoso, mas na época secreto, discurso revelando o monstro que o ex-ditador tinha sido — algo que os cidadãos soviéticos ainda tinham dificuldade de aceitar, principalmente os motoristas de táxi. A verdade em seu país era um artigo raro e quase sempre difícil de engolir.

Mas Zaitzev não estava mais assistindo ao filme. Bebericava sua vodca, os olhos focalizados na tela do televisor, sem nada ver. Acabava de tomar consciência do grande passo que dera naquela tarde no metrô. No momento, foi como uma travessura, uma brincadeira de criança, enfiar a mão no bolso daquele americano como um pivete, só para saber que podia. Ninguém percebeu. Foi esperto e cuidadoso. Nem o americano devia ter percebido ou teria reagido.

Havia acabado de provar que era capaz de... de quê? perguntou-se com uma veemência inesperada. O que fez no vagão do metrô? No que estava pensando? Na realidade, sequer pensara no assunto. Fora apenas algum tipo de impulso tolo... ou não?

Balançou a cabeça e tomou mais um gole da bebida. Era inteligente. Tinha um diploma universitário. Era excelente jogador de xadrez. Tinha um emprego que exigia verificação máxima de segurança, que pagava bem e que o colocara no nível de entrada para a nomenklatura. Era uma pessoa de importância — não muita, mas alguma. A KGB lhe confiava informações sobre diversos assuntos. A KBG confiava nele, mas...

Mas o quê?, perguntou-se. O que vinha depois? Seu pensamento vagava em direções que ele não entendia e que só percebia com dificuldade...

O padre. Tudo tinha a ver com o padre. Ou não? No que estava pensando? Ele sequer sabia se estava pensando sobre algo. Era como se sua mão houvesse desenvolvido consciência própria, entrando em ação sem permissão do cérebro ou da mente, seguindo por uma direção que ele não compreendia.

Claro, tinha que ser o maldito padre. Estaria enfeitiçado? Estaria uma força estranha tomando conta de seu corpo?

Não! Isso não é possível!, disse a si mesmo. Aquilo era coisa de lendas antigas, um assunto que as velhas discutiam, ou melhor, tagarelavam, diante de uma panela.

Mas então por que pus a mão no bolso do americano?, cobrou sua mente. Não houve resposta imediata.

Você quer fazer parte de um assassinato?, perguntou uma voz interior. Quer ajudar na morte de um homem inocente?

Ele é inocente?, perguntou-se, dando mais um gole. Nenhum despacho que passara por sua mesa sugeria o contrário. De fato, praticamente não se lembrava de qualquer menção ao padre Karol, em mensagens da KGB, nos últimos anos. Sim, eles haviam registrado a viagem à Polônia logo depois de ele ter sido eleito papa, mas que ser humano não voltaria para casa depois de uma promoção para ver os amigos e buscar apoio antes de ocupar seu novo lugar no mundo?

O partido também era formado por seres humanos. E seres humanos cometem erros. Ele via erros diariamente, até de oficiais capazes e altamente treinados da KGB, que acabavam punidos, repreendidos ou apenas criticados por seus superiores no Centro.

Leonid Ilyich também cometia erros. As pessoas com frequência riam dele no almoço. Também falavam discretamente das coisas que seus filhos gananciosos faziam — em especial a filha. Ela praticava uma corrupção mesquinha, e, quando as pessoas abordavam o assunto, falavam bem baixo. Mas ele estava pensando em um tipo muito maior e mais perigoso de corrupção.

De onde vinha a legitimidade do Estado? De forma abstrata, vinha do povo, mas as pessoas não tinham poder de decisão. O partido, sim, tinha. Porém, apenas uma minoria do povo estava no partido, e, desta, só uma minoria ainda mais reduzida alcançava algo que se assemelhasse ao poder. Assim, a legitimidade do Estado situava-se sobre um elemento que, por qualquer critério lógico, era... uma ficção.

Era uma conclusão importante. Outros países eram comandados por ditadores, frequentemente fascistas da extrema direita. Um número menor era liderado por homens da extrema esquerda. Hitler era o representante mais poderoso e perigoso do primeiro grupo, mas havia sido derrubado pela União Soviética e por Stalin, de um lado, e pelos países ocidentais, do outro. Dois aliados improváveis haviam se unido para destruir a ameaça germânica. E o que eram esses aliados? Diziam ser democracias, e, embora a alegação fosse constantemente desacreditada por seu próprio país, as eleições nestas nações eram reais. Tinham de ser, ou seu país e sua agência, a KGB, não gastariam tempo e dinheiro tentando influenciá-las. Então, lá, o conceito de vontade do povo tinha um fundo de verdade; se não porque a KGB se intrometeria? Mas Zaitzev não sabia o quanto. Não havia como deduzir das informações disponíveis em seu país, e ele não se dava ao trabalho de ouvir a Voz da América e outras propagandas descaradas das nações ocidentais.

Portanto, não era o povo que desejava matar o padre. Eram Andropov, por certo, e o Politburo, possivelmente. Nem seus colegas do Centro tinham queixas em relação ao padre Karol. Não se falava de inimizade à União Soviética. A TV e a rádio estatais não conclamaram as massas a hostilizá-lo, como faziam no caso de outros inimigos. Pelo que acompanhara, não houvera artigos pejorativos sobre ele no Pravda, só algumas críticas aos problemas trabalhistas na Polônia. Contudo, nada muito veemente; somente o tipo de consideração que um vizinho poderia fazer sobre o mau comportamento de uma criança da casa ao lado.

Mas tinha de haver alguma relação com isso. Karol era polonês, um grande orgulho para o povo de lá, e os poloneses enfrentavam problemas políticos devido às disputas trabalhistas. Karol queria usar seu poder político ou espiritual para proteger seu povo. Era compreensível, não?

E matá-lo, também era compreensível?

Quem se levantaria para declarar "Não, vocês não podem matar esse homem só porque não gostam de seu comportamento político"? O Politburo? Não, eles seguiriam Andropov. Ele era o herdeiro legítimo. Quando Leonid Ilyich morresse, ocuparia seu lugar na cabeceira da mesa. Mais um homem do partido. Bem, o que mais ele poderia ser? Como se dizia, o partido era a alma do povo — a única referência a "alma" que o partido permitia.

Alguma parte do homem continuava vivendo após a morte? Seria o caso da alma, mas ali o partido era a alma, e o partido era uma coisa do homem e pouco mais que isso. Do homem corrupto naquele caso.

E eles queriam matar o padre.

Ele viu os despachos. De maneira muito limitada, ele, Oleg Ivanovich Zaitzev, tinha participação. Isso o incomodava por dentro. Seria sua consciência? Ele teria uma? Consciência era algo que confrontava um conjunto de fatos ou ideias com outro e ficava satisfeito ou não. Se a resposta fosse não, se ela considerasse uma ação transgressora, então começava a reclamar. Sussurrava. Forçava-o a observar até que a questão estivesse resolvida, até que a ação indevida fosse detida, ou revertida, ou reparada...

Mas como impedir o partido ou a KGB de fazer algo?

Zaitzev sabia que, para consegui-lo, era preciso no mínimo demonstrar que a ação proposta contrariava a teoria política ou que teria consequências políticas adversas.

Porque a política era a medida do certo e do errado. Mas a política não seria efêmera demais para tanto? O "certo" e o "errado" não deveriam depender de algo mais sólido que a simples política? Não haveria um sistema mais alto de valores? Afinal, a política consistia em meras táticas, não? E, embora as táticas fossem importantes, a estratégia estava um patamar acima, porque a estratégia era a medida daquilo para o que se usavam as táticas. A estratégia, naquele caso, devia corresponder ao que era certo — transcendentalmente certo. Não certo em apenas um momento, mas em todos; algo que os historiadores pudessem analisar em cem ou mil anos e julgar como a ação correta.

Pensaria o partido nesses mesmos termos? Como, exatamente, o Partido Comunista da União Soviética tomava suas decisões? Baseado no que era bom para as pessoas? Mus quem definia isso? Pessoas. Brejnev, Andropov, Suslov e os demais membros votantes do Politburo, aconselhados pelos membros candidatos sem direito a voto, pelo conselho de ministros, pelo comitê central do partido, enfim, todos os membros mais antigos da nomenklatura — aqueles aos quais o rezident de Paris enviava perfumes e meias-calças nas malas postais diplomáticas.

Zaitzev vira vários desses despachos. E ouvira histórias. Eram eles que esbanjavam presentes e status diante de seus filhos e percorriam a faixa central dos largos bulevares de Moscou em alta velocidade; os príncipes marxistas corruptos que governavam o país com mão de ferro.

Pensariam aqueles príncipes com base no que era melhor para a narod — as massas, como eram chamadas —, os incontáveis trabalhadores e camponeses que governavam, por cujo bem deviam zelar?

Mas provavelmente os príncipes menores sob a autoridade de Nicolau Romanov haviam pensado e discursado da mesma forma. E Lenin determinara que fossem executados como inimigos do povo. Assim como os filmes modernos falavam da Grande Guerra Patriótica, os filmes antigos retratavam-nos, para audiências menos sofisticadas, como fanfarrões perversos, sem seriedade, que se podia odiar e matar com facilidade, caricaturas de pessoas verdadeiras muito distintas dos homens que os substituiriam, claro...

A exemplo dos antigos príncipes que haviam passado com seus trenós puxados por cavalos sobre os corpos dos camponeses a caminho da corte real, os oficiais da milícia de Moscou mantinham a pista central livre para os membros da nomenklatura, que não podiam perder tempo com o trânsito.

Nada havia mudado realmente...

Exceto pelo fato de que os czares do passado pelo menos fingiam respeitar uma autoridade superior. Eles financiaram a catedral de São Basílio em Moscou, e outros nobres financiaram inúmeras outras igrejas em cidades menores, porque até os Romanov reconheciam a existência de um poder maior. Mas o partido não admitia nenhuma ordem superior.

Deste modo, podia matar sem remorso, porque os assassinatos quase sempre eram uma necessidade política, uma vantagem tática a ser usada quando e onde fosse conveniente.

É só isso?, perguntou-se Zaitzev. Eles vão matar o papa só porque é mais conveniente?

Oleg Ivanovich serviu outra dose de vodca da garrafa que estava perto e tomou mais um gole.

Havia muitas coisas inconvenientes em sua vida. A distância de sua mesa até o bebedouro era muito grande. Ele não gostava de algumas pessoas no trabalho — Stefan Yevgeniyevich Ivanov, um oficial mais antigo de comunicações, por exemplo. Como acabara promovido, quatro anos antes, era um mistério para todos na seção. Era considerado pelo pessoal mais experiente um burocrata incapaz de realizar qualquer tarefa útil. Zaitzev supunha que toda área tinha uma pessoa daquele tipo, uma vergonha para o departamento, que, porém, não podia ser facilmente afastada porque... porque simplesmente estava lá e isso era tudo. Se Ivanov não permanecesse no caminho, Oleg poderia ser promovido, se não de patente, ao menos em status, como chefe de seção. A simples respiração de Ivanov constituía um inconveniente para Oleg Ivanovich, mas isso não lhe dava o direito de matar seu colega mais antigo, dava?

Não, ele seria detido e processado, talvez até executado por assassinato. Porque a lei proibia. Porque era errado. A lei, o partido e sua própria consciência diziam aquilo.

Mas Andropov queria matar o padre Karol, e sua consciência não demonstrava objeção.

A consciência de alguma outra pessoa faria isso? Outro gole de vodca. Uma consciência? No Politburo?

Mesmo na KGB, não havia ponderações. Não havia debates. Não havia discussões abertas. Apenas mensagens solicitando ação e avisos de conclusão ou fracasso. E avaliações de estrangeiros, logicamente, discussões sobre o pensamento de estrangeiros, agentes verdadeiros ou meros agentes de influência — chamados de "inocentes úteis" o vocabulário da KGB. Um oficial de campo nunca respondera uma ordem dizendo "Não, camarada, não devemos fazer isso porque seria moralmente errado". Goderenko chegara o mais perto, observando que matar Karol poderia causar consequências adversas às operações. Aquilo significaria que Ruslan Borissovich também estava com a consciência perturbada? Não. Goderenko tinha três filhos: um na Marinha soviética; um, pelo que ouvira, na academia da KGB no anel externo da cidade; e o último na Universidade Estadual de Moscou. Se Ruslan Borissovich entrasse em desacordo com a KGB, qualquer ação poderia significar, se não a morte, pelo menos sérios constrangimentos para seus filhos, e poucos homens tomavam esse tipo de atitude.

Seria ele, então, a única consciência na KGB? Zaitzev deu uma tragada para pensar naquilo. Provavelmente não. Havia milhares de homens no Centro e milhares mais em outros lugares. As leis da estatística já tornariam provável que existissem muitos homens "bons" — por qualquer definição. Mas como se podia identificá-los? Tentar encontrá-los significaria morte certa ou um longo período de encarceramento. Aquele era o problema fundamental que enfrentava. Não havia a quem pudesse confidenciar suas dúvidas. Ninguém com quem pudesse discutir suas preocupações. Nem um médico ou um padre... nem mesmo sua esposa, Irina...

Não, tinha apenas a garrafa de vodca, que, embora auxiliasse de certo modo, não chegava a ser uma companhia. Os homens russos não eram avessos às lágrimas, mas estas também não ajudariam. Irina poderia fazer perguntas, e ele não conseguiria dar respostas satisfatórias. Tudo com que contava era o sono. Mas Zaitzev tinha convicção de que não ajudaria — e nisso estava certo.

Mais uma hora e dois goles de vodca finalmente o deixaram sonolento. Sua mulher cochilava diante da TV — o Exército Vermelho vencera a Batalha de Kursk, mais uma vez, e o filme terminara no início de uma longa marcha que levaria ao Reichstag, em Berlim, repleta de esperança e entusiasmo para a tarefa sangrenta. Zaitzev riu sozinho.

Era mais do que tinha naquele momento. Levou o copo vazio até a cozinha, depois acordou a esposa para a caminhada até o quarto. Esperava que o sono viesse rápido. O quarto de litro de álcool em seu estômago deveria ajudar. E assim foi.

 

 

— SABE, ARTHUR, HÁ VÁRIAS COISAS que não sabemos sobre ele — disse Jim Greer.

— Está falando de Andropov?

— Não sabemos nem se o maldito é casado — continuou o DDI.

— Bem, Robert, esse é o seu departamento — observou o DCI, olhando para Bob Ritter.

— Achamos que é casado, mas ele nunca levou a esposa, se houver uma, a uma cerimônia oficial. Geralmente é assim que descobrimos — admitiu o DDO. — Eles costumam esconder as famílias, como os capos da máfia. São muito exagerados em esconder tudo por lá. E, sim, não somos tão bons em desencavar as informações, porque não é tão importante do ponto de vista operacional.

— Como ele trata a mulher e os filhos, se existirem — ponderou Greer —, pode ser útil para se traçar um perfil do sujeito.

— Quer que eu coloque o CARDEAL em uma tarefa desse tipo? Tenho certeza de que ele conseguiria, mas por que desperdiçar o tempo dele com isso?

— Será que é desperdício? Se ele agride a mulher, isso nos diz algo. Se é um pai superprotetor, isso nos diz algo diferente — insistiu o DDI — Ele é um facínora. Basta olhar para sua foto e notar. Vejam como o pessoal dele se comporta. Estão sempre tensos, como se esperaria dos subordinados de Hitler.

Meses antes, uma comitiva de governadores de estado americanos havia voado até Moscou para um encontro diplomático sigiloso. O governador de Maryland, democrata liberal, relatou que, quando Andropov entrara na sala de recepção, percebera logo que se tratava de um facínora. Depois fora informado de que era o próprio diretor do Comitê de Segurança do Estado. O governador tinha um olho clínico para analisar as pessoas, e aquela avaliação havia sido incluída no arquivo sobre Andropov em Langley.

— Bem, não iria longe como juiz — disse Moore. Ele também tinha lido o arquivo. — Pelo menos, não na corte de apelações. Muito concentrado em enforcar os coitados só para ver se a corda aguenta. — Não que o Texas não tivesse juízes daquele tipo em sua história, mas o quadro estava muito mais civilizado. Havia menos cavalos a serem roubados do que homens a serem mortos. — Então, Robert, o que podemos fazer para obter mais informações? Afinal, tudo indica que ele será o próximo secretário-geral. Parece uma boa ideia.

— Posso tentar algumas coisas. Por que não perguntamos a Sir Basil o que pode fazer? Eles são melhores em aspectos sociais do que nós, e isso tiraria a pressão do nosso pessoal.

— Gosto de Bas, mas não quero que ele tenha tanta informação — respondeu o juiz Moore.

— Bem, James, seu protegido está lá. Peça que faça a pergunta. Já arranjou um telefone seguro para a casa dele?

— Sim, deve ter chegado hoje.

— Então ligue para seu garoto e diga para perguntar, de forma discreta e casual.

Os olhos de Greer viraram-se para o juiz.

— Arthur?

— Aprovado. Mas minimize o assunto. Diga a Ryan que é seu interesse pessoal, não do nono.

O almirante verificou a hora. — Certo, posso fazer isso antes de ir para casa. — Bem, Bob, algum progresso na MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE? — perguntou o DCI com bom humor, antes de encerrar a reunião da tarde. — A ideia era divertida, mas não muito séria.

— Arthur, não a menospreze tanto. Eles são vulneráveis ao tipo exato de bala, basta a colocarmos na arma.

— Não fale assim diante do Congresso. Eles podem borrar as calças — alertou Greer, rindo. — Afinal, devemos desfrutar de uma coexistência pacífica com eles.

— Isso não funcionou muito bem com Hitler. Stalin e Chamberlain tentaram manter relações cordiais com o filho da mãe e vejam aonde chegaram. Eles são nossos inimigos, cavalheiros, e a triste realidade é que não podemos viver em paz verdadeira com eles, gostem ou não. As ideias deles e as nossas estão muito fora de sincronia. — Ele ergueu as mãos. — Eu sei que não devíamos pensar assim, mas, graças a Deus, o presidente concorda. E ainda trabalhamos para ele.

Ninguém precisou fazer comentários. Os três haviam votado no atual presidente, apesar da piada interna de que as duas coisas que não existiam em Langley eram comunistas e... republicanos. Mas o novo presidente tinha ferro na espinha e um instinto de raposa para oportunidades. Aquilo agradava principalmente a Ritter, que era o caubói do grupo, embora um pouco impetuoso demais.

— Certo. Preciso trabalhar no orçamento para uma audiência no Senado depois de amanhã — disse Moore, encerrando a reunião.

 

 

RYAN ESTAVA NO COMPUTADOR, pensando sobre a Batalha do Golfo de Leyte, quando o telefone tocou. Era a primeira vez que ouvia aquele estranho trilado.

Procurou a chave de plástico no bolso, inseriu-a na entrada apropriada e levantou o fone.

"AGUARDE", disse uma voz mecânica, "SINCRONIZANDO A LINHA; AGUARDE, SINCRONIZANDO A LINHA; AGUARDE, SINCRONIZANDO A LINHA... A LINHA ESTÁ SEGURA".

— Alô — disse Ryan, tentando adivinhar quem teria um telefone seguro e ligaria para ele tão tarde. A resposta era óbvia.

— Oi, Jack — respondeu uma voz familiar.

Uma qualidade positiva do aparelho: a tecnologia digital deixava as vozes claras, como se o interlocutor estivesse sentado na mesma sala. Ryan olhou para o relógio em sua mesa.

— É um pouco tarde, senhor.

— Não tão tarde quanto na velha Inglaterra. Como estão todos?

— A maior parte dormindo. Cathy provavelmente está lendo alguma revista médica. — Era o que ela fazia em vez de assistir a TV — Do que precisa, almirante?

— Tenho um pequeno serviço para você.

— Sem problemas.

— Pergunte por aí, casualmente, sobre Yuriy Andropov. Há coisas sobre ele que não sabemos. Talvez Basil tenha as informações que queremos.

— O que exatamente, senhor? — perguntou Jack.

— Se é casado e se tem filhos.

— Não sabemos se ele é casado?

Ryan se deu conta de que não lera aquela informação no dossiê. Ele deduzira que devia estar em outro lugar e não dera muita importância.

— Exatamente. O juiz quer verificar se Basil sabe.

— Certo, posso perguntar ao Simon. Qual é o nível de importância disso?

— Como eu disse, aja naturalmente, como se fosse interesse pessoal. Quando souber, entre em contato. De casa.

— Farei isso, senhor. Sabemos idade, data de nascimento, formação e tudo mais, mas não se é casado ou tem filhos?

— Algumas vezes, é assim que funciona.

— Certo, senhor. — Aquilo fez Jack parar para pensar. Eles sabiam tudo de Brejnev, com exceção do tamanho do pênis. Sabiam até o tamanho das roupas da filha, 44, que alguém considerou importante obter do costureiro belga que vendera um vestido de casamento de seda ao pai afetuoso através do embaixador. Mas não sabiam se o provável secretário-geral na União Soviética era casado. Meu Deus, o cara está chegando aos 60, e eles não sabem? Que porcaria é essa? — Sem problemas, posso perguntar. Não deve ser difícil.

— Mudando de assunto, como está Londres?

— Gosto daqui. Cathy também, mas ela está um pouco incomodada com o sistema público de saúde.

— Medicina socializada? Não a recrimino. Eu ainda consigo resolver tudo em Bethesda, mas ajuda um pouco o fato de ter o "almirante" antes do nome. Não é tão rápido para a mulher de um contramestre aposentado.

— Imagino.

No caso de Ryan, ajudava muito sua esposa integrar o corpo docente do Johns Hopkins.

Ele não falava com pessoas de jaleco que não tivessem um "professor" na identificação.

Aprendera que no campo da medicina, diferentemente do resto da sociedade, os realmente espertos eram os professores.

 

 

OS SONHOS COMEÇARAM depois da meia-noite, embora ele não tivesse como saber disso. Era um dia claro de verão em Moscou, e um homem de branco atravessava a Praça Vermelha. Com a catedral de São Basílio atrás de si, caminhava no sentido contrário do tráfego, passando pelo mausoléu de Lenin. Algumas pessoas o acompanhavam, e ele conversava com elas de modo amável, como um tio querido faria... ou o padre da paróquia. Então Oleg percebeu que era isso: um padre de paróquia.

Mas por que vestido de branco? Havia até brocados dourados. As crianças, quatro ou cinco meninos e a mesma quantidade de meninas, seguravam suas mãos e olhavam para ele com sorrisos inocentes. Oleg virou a cabeça. Em cima da tumba, onde as autoridades se perfilavam nas paradas do primeiro dia de maio, estavam os membros do Politburo: Brejnev, Suslov, Ustinov e Andropov. Andropov segurava um fuzil e o apontava na direção da pequena procissão. Havia outras pessoas por perto: pessoas sem rosto andando sem rumo, cuidando de seus afazeres. Depois Oleg já estava ao lado de Andropov, ouvindo suas palavras. Ele defendia seu direito de atirar no homem. Cuide das crianças, Yuriy Vladimirovich, avisou Suslov. Sim, tenha cuidado, reforçou Brejnev. Ustinov aproximou-se para ajustar a mira do fuzil. Todos ignoravam Zaitzev, que se agitava entre eles, tentando atrair suas atenções.

Mas por quê?, perguntou Zaitzev. Por que estão fazendo isso?

Quem é esse?, perguntou Brejnev a Andropov.

Não se importe com ele, rosnou Suslov. Atire logo no filho da mãe!

Muito bem, disse Andropov. Ele mirou cuidadosamente, e Zaitzev não pôde intervir, mesmo estando ali. Então o diretor pressionou o gatilho.

Zaitzev havia voltado para a rua. A primeira bala atingiu uma criança, um menino ao lado do padre, que caiu silenciosamente.

Ele não, seu idiota! O padre!, gritou Mikhail Suslov, como um cão raivoso.

Andropov atirou de novo, desta vez acertando uma menininha loura do lado esquerdo do padre. Sua cabeça explodiu em vermelho. Zaitzev curvou-se para ajudá-la, mas ela disse que estava tudo bem; ele a deixou e se virou para o padre.

Pode prestar mais atenção?

Prestar atenção no quê, meu jovem camarada?, perguntou o padre amavelmente, virando-se em seguida. Vamos, crianças, estamos indo encontrar Deus.

Andropov atirou novamente. Desta vez a bala atingiu o padre em cheio no peito. Deixou uma mancha de sangue do tamanho e da cor de uma rosa. O padre fez uma careta, mas continuou em frente, com as sorridentes crianças atrás.

Outro tiro, outra rosa no peito, à esquerda da primeira. Contudo, ele seguiu adiante, andando lentamente.

Está ferido?, perguntou Zaitzev.

Não é nada, respondeu o padre. Mas por que não o deteve?

Eu tentei!, reiterou Zaitzev.

O padre parou de andar, virando-se para mirá-lo diretamente nos olhos. Tentou mesmo?

Foi quando a terceira bala o atingiu bem no coração.

Tentou mesmo?, perguntou o padre outra vez. Agora as crianças olhavam para Zaitzev, e não para o padre.

Zaitzev percebeu que estava sentado na cama. Pelo relógio, eram quase quatro da manhã. Ele suava em abundância. Só havia uma coisa a fazer. Levantou da cama e foi até o banheiro. Lá, urinou, depois tomou um copo d'água e caminhou até a cozinha.

Sentado perto da pia, acendeu um cigarro. Antes de voltar a dormir, queria ficar plenamente acordado. Não queria voltar para aquele sonho.

Do lado de fora, Moscou estava quieta, as ruas completamente vazias — não havia sequer um bêbado cambaleando para casa. Era bom. Nenhum elevador estaria funcionando àquela hora. Não havia carros à vista, o que era um pouco estranho, embora não tanto quanto em uma cidade do Ocidente.

O cigarro cumpriu sua função. Ele estava bem acordado para voltar a dormir refeito.

Mas, mesmo assim, sabia que a visão não sumiria. A maioria dos sonhos se desfazia, como a fumaça do cigarro, porém não seria o caso daquele. Zaitzev estava certo disso.


10

 


FATO INESPERADO

 

PRECISAVA PENSAR em muitas coisas. Era como se a decisão tivesse nascido sozinha, como se uma força alienígena tivesse assumido o controle de sua mente e, através dela, também de seu corpo, transformando-o em mero espectador. A exemplo da maioria dos russos, ele não tomava banho, mas lavava o rosto e fazia a barba com a navalha, cortando-se três vezes durante o processo. Bastava papel higiênico para resolver o problema; se não a causa, pelo menos os efeitos. As imagens do sonho ainda desfilavam diante de seus olhos como o filme de guerra na televisão. E permaneceram durante o café da manhã, deixando-o com um olhar distante, que sua mulher notou mas preferiu não comentar. Percorreu o caminho como um autômato, tomando o rumo certo até a estação do metrô por puro hábito, seu cérebro simultaneamente inerte e furiosamente ativo, como se de repente houvesse se dividido em duas pessoas distintas, porém conectadas a distância, deslocando-se por vias paralelas para um destino que ele não podia ver nem entender. Estava sendo carregado até lá como um pedaço de madeira descendo as cachoeiras das montanhas, as paredes rochosas passando ao seu lado tão rápido, que mal podia vê-las. Foi quase uma surpresa quando se percebeu a bordo do vagão do metrô, viajando através dos túneis escuros escavados pelos prisioneiros políticos de Stalin sob as ordens de Nikita Sergeievich Kruchev, cercado pelos corpos silenciosos e praticamente sem rosto de outros cidadãos soviéticos também a caminho de empregos pelos quais tinham pouco amor e senso de dever. Eles iam trabalhar porque era como conseguiam o dinheiro com o qual compravam comida para suas famílias — minúsculas engrenagens na gigantesca máquina que era o Estado soviético, a que todos fingiam servir e que fingia servir a todos eles e a suas famílias.

Mas era tudo uma mentira, não era?, perguntou Zaitzev a si mesmo. Não era? Como o assassinato de um padre servia ao Estado soviético? Como servia a todas aquelas pessoas? Como servia a ele, sua esposa e sua pequena filha? Alimentando-os? Permitindo-lhe que fizesse compras nas lojas "fechadas" e adquirisse coisas que os outros trabalhadores não podiam sequer pensar em ter para si próprios?

Mas Oleg Ivanovich lembrou-se de que tinha uma condição melhor do que quase todos os outros no vagão do metrô. Não devia estar agradecido por aquilo? Não comia melhor, bebia um café melhor, assistia TV em um aparelho melhor, dormia em lençóis melhores? Não possuía todos os bens materiais que aquelas pessoas gostariam de ter? Por que de repente estou tão aflito?, perguntou-se. A resposta era tão óbvia que ele levou quase um minuto para captá-la. Era porque sua posição, que lhe dava todos os confortos de que desfrutava, também lhe dava conhecimento — e agora, pela primeira vez na vida, o conhecimento se apresentava como uma maldição. Ele sabia os pensamentos dos homens que determinavam a direção que o país tomaria e percebia que aquela era a direção errada... uma direção maligna. Dentro de sua mente havia uma força que observava aquele conhecimento e o reprovava, e com este julgamento vinha a necessidade de fazer algo para mudar aquilo. Não podia se opor e esperar manter a falsa liberdade de seu país. Não havia meio a que tivesse acesso para transmitir seu juízo a outros, mesmo que eles talvez concordassem e pedissem aos governantes a correção das injustiças. Não, não havia maneira de agir dentro daquele sistema. Para fazer aquilo, era necessário ser de um escalão muito alto e, mesmo assim, antes de externar seus questionamentos, teria de pensar cuidadosamente, a não ser que desejasse perder os privilégios. Qualquer consciência que existisse era contida pela covardia decorrente de haver tanto a perder. Ele nunca ouvira falar de uma figura política importante de seu país se opondo daquela maneira, por uma questão de princípio, e dizendo a seus pares que estavam fazendo algo errado. Não, o sistema evitava aquilo através do tipo de pessoas que selecionava. Homens corruptos só escolhiam outros homens corruptos para suas fileiras, para que não tivessem de questionar as coisas que lhes garantiam seus vastos privilégios. Assim como, na época dos czares, os príncipes raramente consideravam os efeitos que seu poder tinha sobre os servos, os novos príncipes do marxismo nunca questionavam o sistema que lhes havia proporcionado seu lugar no mundo. Por quê? Porque o mundo não mudara de forma — só de cor, do branco czarista para o vermelho socialista —, e, mantendo esta forma, mantinha também o método de trabalho. E, em um mundo vermelho, um pouco mais de sangue derramado era difícil de se notar.

A composição do metrô parou na sua estação, e Zaitzev foi abrindo caminho pela porta deslizante de metal, a plataforma e a escada rolante à direita. Chegou à rua em um dia claro e agradável de fim de verão, novamente como parte de uma multidão, que se dispersava à medida que se movia. Um grupo de tamanho médio andava a passos constantes na direção do edifício de pedras do Centro, passando pelas portas de bronze e pelo primeiro posto de segurança. Zaitzev mostrou sua credencial ao guarda uniformizado, que conferiu a foto com seu rosto e apontou a cabeça para a direita, sinalizando que ele podia entrar no vasto prédio de escritórios. Demonstrando a apatia de qualquer dia comum, ele desceu os degraus de pedra até o subsolo, passando por outro posto de segurança para chegar à área de trabalho aberta do centro de comunicações.

O pessoal da noite encerrava o serviço. Na mesa de Zaitzev, estava o homem que trabalhava no turno da meia-noite às oito, Nikolay Konstantinovich Dobrik, recém-promovido, como ele, a major.

— Bom dia, Oleg — disse Dobrik, em uma saudação camaradesca, acompanhada de uma esticada na cadeira giratória.

— Bom dia, Kolya. Como foi o trabalho à noite?

— Tráfego intenso de Washington. Aquele presidente demente de novo. Sabia que somos "o foco do mal no mundo moderno"?

— Ele disse isso? — perguntou Zaitzev, incrédulo.

Dobrik confirmou.

— Disse. A rezidentura em Washington nos enviou o texto do discurso. Era para agradar os seguidores do seu partido, mas mesmo assim foi inflamado. Acredito que o embaixador receberá instruções do Ministério das Relações Exteriores a respeito, e o Politburo certamente terá algo a declarar. Pelo menos, ler o texto inteiro animou meu turno.

— Espero que não tenham usado o bloco de cifras.

Uma transmissão completa com o bloco de cifras únicas teria sido um pesadelo para os funcionários.

— Não, foi feito por máquina, graças a Deus — respondeu Dobrik. A escolha das palavras não era somente irônica. Aquele eufemismo tornara-se comum até no Centro. — Nossos oficiais estão tentando compreender as palavras até agora. O departamento de política vai analisar o discurso por horas... ou mais provavelmente dias, com ajuda dos psicólogos, posso apostar.

Zaitzev conseguiu sorrir. O vaivém entre os médicos-chefes e os oficiais de campo seria, sem dúvida, uma leitura divertida — e, como bons funcionários, eles costumavam ler todos os despachos divertidos.

— É de se espantar que homens como esse consigam chegar à liderança de grandes países — comentou Dobrik, levantando-se e acendendo um cigarro.

— Acho que é o que chamam de processo democrático — disse Zaitzev.

— Bem, nesse caso, agradeço pelo desejo coletivo do povo, expressado através do nosso amado partido.

Apesar da ironia deliberada do comentário, Dobrik era um bom membro do partido, como todos os outros na sala, obviamente.

— Claro, Kolya. De qualquer maneira — Zaitzev olhou para o relógio de parede e viu que estava seis minutos adiantado —, estou assumindo agora, camarada major.

— Obrigado, camarada major — disse Dobrik, encaminhando-se para a saída.

Zaitzev tomou o lugar, ainda quente do traseiro de Dobrik, e assinou a folha de ponto, registrando o horário. Depois jogou o conteúdo do cinzeiro de mesa na lata de lixo — Dobrik parecia nunca fazer aquilo — e começou mais um dia no escritório. Render o colega se tornara um processo mecânico, ainda que agradável. Ele mal conhecia Dobrik, exceto por aqueles momentos no início do dia. Por que alguém se oferecia voluntariamente para um serviço noturno contínuo era um mistério para ele. Ao menos, Dobrik sempre deixava a mesa livre, sem pilhas de trabalho inacabado, o que dava a Zaitzev alguns minutos para se preparar e se organizar mentalmente.

Naquele dia, todavia, aqueles poucos minutos só serviram para trazer de volta as imagens que, aparentemente, não iriam embora tão cedo. Assim, Oleg Ivanovich acendeu o primeiro cigarro do dia de serviço e remexeu os papéis sobre a mesa de metal, enquanto sua mente se encontrava em outro lugar, fazendo coisas sobre as quais ele mesmo não desejava pensar ainda. Eram 8h15 quando um funcionário de cifras se aproximou com uma pasta.

— É do escritório de Washington, camarada major — informou.

— Obrigado, camarada — respondeu Zaitzev.

Ele pegou a pasta, abriu-a e começou a folhear os despachos.

Ah, o tal de CASSIUS relatou mais... sim, informações sobre política. Ele não conhecia o nome ou o rosto de CASSIUS, mas só podia ser assessor de um parlamentar experiente, talvez até um senador. Enviava relatórios de alto nível sobre política que sugeriam acesso em primeira mão a material de inteligência... Então, um funcionário de um importante político americano também trabalhava para a União Soviética. Não recebia pagamento, portanto era um agente com motivações ideológicas, o melhor tipo.

Ele leu o despacho até o fim e depois buscou na memória o destinatário correto... coronel Anatoliy Gregorovich Fokin, no Departamento de Política, cujo endereço era Setor de Washington, Inteligência Política, Primeiro Departamento, Primeira Diretoria, no quarto andar.

 

 

FORA DA CIDADE, O CORONEL Ilya Fedorovich Bubovoy desembarcou do voo matutino vindo de Sofia. Para pegá-lo, tivera de acordar às três da manhã, com um carro da embaixada levando-o ao aeroporto. A convocação viera de Aleksey Rozhdestvenskiy, a quem conhecera anos antes e que fizera a gentileza de ligar no dia anterior para assegurar que não havia nada negativo no chamado ao Centro. A consciência de Bubovoy estava limpa, mas, mesmo assim, era reconfortante saber daquilo. Nunca se podia ter certeza quando a situação envolvia a KGB. Como crianças chamadas à sala do diretor, os oficiais costumavam sentir um frio no estômago no caminho até o quartel-general. Mas lá estava ele, com um nó bem dado na gravata e os sapatos lustrados. Não usava o uniforme, porque, tecnicamente, sua identidade como rezident em Sofia era secreta.

Um sargento uniformizado do Exército Vermelho encontrou-o no portão e levou-o a um carro. Na verdade, o sargento pertencia à KGB, mas isso não devia ser assumido em público. Quem garantiria que a CIA e outros serviços ocidentais não tinham observadores no aeroporto? Bubovoy comprou um exemplar do Sovietskiy Sport no caminho até o carro — a viagem levaria 35 minutos. O time de futebol de Sofia havia derrotado o Dínamo de Moscou por 3 a 2, dias antes. O coronel queria saber se a imprensa esportiva local pediria a cabeça de jogadores da equipe de Moscou, com base em uma retórica marxista apropriada, é claro. Os bons socialistas sempre venciam, mas os cronistas ficavam confusos quando um time socialista derrotava outro.

 

 

FOLEY TAMBÉM ESTAVA NO METRÔ, um pouco atrasado naquela manhã. Uma falta de luz desligara o despertador sem dar aviso e ele acabara acordando com a claridade do sol em vez do habitual alarme metálico. Como sempre, tentava não olhar muito ao redor, porém não conseguia deixar de procurar o dono da mão que mexera em seu bolso. Mas nenhum dos rostos olhou de volta para ele. Tentaria novamente à tarde, no trem que deixava a estação às 17h41, só para o caso de... Para o caso de quê? Foley não sabia, mas aquela era uma das características instigantes da área de atuação que escolhera. Se tivesse sido apenas um acaso, tudo bem, mas nos dias seguintes ele estaria sempre no mesmo trem, no mesmo vagão, em pé no mesmo lugar. Se houvesse uma sombra, não repararia em nada. Na realidade, os russos até consideravam um alívio seguir alguém com uma rotina — a aleatoriedade dos americanos acabava deixando-os distraídos. Então, Foley seria um "bom" americano e mostraria o que eles queriam ver, e ninguém acharia estranho. O chefe do escritório em Moscou balançou a cabeça, demonstrando assombro com aquilo.

Ao chegar sua parada, ele pegou a escada rolante até o nível da rua. De lá, era uma caminhada curta até a embaixada, o maior forno de micro-ondas do mundo, logo em frente à Nossa Senhora dos Microchips. Foley gostava de ver a bandeira no mastro e os fuzileiros no interior, sinal de que estava no lugar certo. Eles estavam sempre bem apresentados, com camisa caqui sobre calça azul, pistola no coldre e quepe branco.

Seu escritório estava, como sempre, desarrumado. Era parte de seu disfarce parecer um pouco desorganizado. Mas o disfarce não incluía o departamento de comunicações. Não seria possível. À frente das comunicações na embaixada estava Mike Russell, ex-tenente-coronel na Agência de Segurança do Exército — braço de segurança em comunicações do Exército — e agora um civil a serviço da NSA, que oficialmente fazia o mesmo para todos os órgãos do governo. Moscou representava um período de provação para Russell. Negro e divorciado, não atraía muita a atenção das mulheres, já que os russos tinham uma desconfiança notória em relação a pessoas de pele negra. A batida na porta era característica.

— Entre, Mike — disse Foley.

— Bom dia, Ed. — Russell media l,80m e, pelo tamanho da cintura, precisava controlar a alimentação. Mas era competente com códigos e comunicações, o que bastava no momento. — Noite calma para você.

— Hein?

— Sim, só isso. — Ele tirou um envelope do bolso e o entregou. — Não parece ser nada importante.

Ele também havia decodificado o despacho. Nem o embaixador tinha acesso tão irrestrito quanto o chefe das comunicações. Foley subitamente se sentiu satisfeito com o racismo russo, por tornar menos provável o assédio a Mike. Era uma possibilidade assustadora. Das pessoas no prédio, Mike Russell era o que podia entregar todos os outros, razão pela qual os serviços de inteligência sempre tentavam corromper os funcionários de códigos, as pessoas mal pagas e desprezadas que controlavam um poder enorme em qualquer embaixada.

Foley pegou o envelope e o abriu. O despacho estava abaixo do rotineiro, prova cabal de que a CIA não passava de mais uma burocracia governamental, por mais importante que fosse seu trabalho. Ele resmungou e passou a folha pelo cortador de papel. As lâminas rotativas de aço reduziram o relatório a fragmentos de dois centímetros.

— Deve ser bom fazer todo o trabalho do dia em dez segundos — comentou Russell, dando uma risada.

— Aposto que não era assim no Vietnã.

— Não mesmo. Lembro de uma vez em que uma das minhas tropas descobriu a origem dos sinais de um transmissor vietcongue no quartel-general do comando militar. Foi uma noite bem movimentada.

— Pegaram-no?

— Claro — respondeu Russell. — Os nativos ficaram furiosos com ele. Fiquei sabendo que seu destino não foi muito prazeroso.

Na época, Russell era primeiro-tenente. Nascido em Detroit, seu pai construíra bombardeiros B-24 durante a Segunda Guerra Mundial, sempre dizendo ao filho como aquilo era mais recompensador do que montar Fords. Russell detestava tudo nesse país (eles nem gostavam de música soul), mas o dinheiro extra garantido pelo serviço ali — Moscou era oficialmente um trabalho incômodo — permitiria que um dia comprasse uma bela casa na península superior de Michigan, onde poderia se divertir caçando pássaros e cervos.

— Alguma coisa para enviar, Ed?

— Não, hoje não. Quer dizer, por enquanto, não.

— Positivo. Tenha um bom dia.

Russell desapareceu por trás da porta.

Não era nada parecido com os romances de espionagem. O trabalho de um agente da CIA se compunha muito mais de marasmo do que de atividade. Como oficial de campo, Foley gastava pelo menos dois terços do tempo escrevendo relatórios que poderiam ou não ser lidos por alguém em Langley ou esperando reuniões que poderiam ou não acontecer. Ele contava com agentes para realizar a maior parte do serviço externo, pois sua identidade era muito sigilosa para ser exposta — algo que, ocasionalmente, precisava lembrar à mulher. Mary Pat simplesmente gostava demais de ação. Era preocupante, ainda que nenhum dos dois estivesse realmente exposto a ameaças físicas.

Ambos tinham imunidade diplomática, e os russos respeitavam aquilo com diligência, na maioria das vezes. Mesmo que as coisas se tornassem um pouco violentas, nunca ficariam realmente violentas. Ou pelo menos era o que ele dizia a si mesmo.

 

 

— BOM DIA, CORONEL BUBOVOY — disse Andropov, cordialmente, sem se levantar.

— Bom dia, camarada diretor — respondeu o rezident em Sofia, engolindo o alívio por Rozhdestvenskiy não ter mentido. Nunca era demais ser cuidadoso. Ou paranoico.

— Como estão as coisas em Sofia?

Andropov apontou uma poltrona de couro diante da grande mesa de carvalho.

— Bem, camarada diretor, nossos fraternais colegas socialistas continuam cooperativos, principalmente com as questões turcas.

— Muito bom. Temos uma missão a ser realizada e quero sua opinião sobre a viabilidade.

A voz permanecia completamente cordial.

— E o que seria? — perguntou Bubovoy.

Andropov descreveu os planos, observando atentamente o rosto do visitante, para perceber as reações.

Não houve nenhuma. O coronel era muito experiente para tanto e, além disso, notara a atenção que estava recebendo. — Quando?

— Com que rapidez poderia arranjar as coisas?

— Preciso obter a cooperação de nossos amigos búlgaros. Sei a quem recorrer: coronel Boris Strokov, um membro muito capacitado do DS. Ele é responsável pelas operações na Turquia. Contrabando e coisas do tipo. Isso lhe dá acesso a organizações criminosas turcas. Os contatos são muito úteis, principalmente quando precisamos de um assassinato.

— Continue — determinou o diretor serenamente.

— Camarada diretor, uma operação desse gênero não será simples. Sem uma maneira de infiltrar um atirador na residência privada do alvo, será necessário realizar a tentativa durante uma aparição pública, quando obrigatoriamente haverá muitas gente. Podemos dizer ao atirador que temos como tirá-lo do local, mas isso será uma mentira, obviamente. De um ponto de vista tático, seria melhor ter um segundo homem presente, para matá-lo assim que ele fizer o disparo, usando uma arma com silenciador. A fuga é muito mais fácil para o segundo assassino, já que a atenção da multidão está no primeiro. Isso também reduz o possível inconveniente de o nosso homem revelar informações à polícia. A polícia italiana não tem uma reputação boa, mas, objetivamente, isso não é verdade. Como nosso rezident em Roma pode confirmar, os braços investigativos são bem organizados e profissionais. Desta forma, é interessante que o atirador seja logo eliminado.

— Mas isso não vai sugerir o envolvimento de um serviço de inteligência? — perguntou Andropov. — Não é muito requintado?

Bubovoy reclinou-se e falou ponderadamente. Ele sabia o que Andropov queria ouvir e estava pronto para dizê-lo.

— Camarada diretor, é preciso pesar um risco contra o outro. O maior perigo é nosso assassino falar sobre como chegou a Roma. Como dizem, um homem morto não conta histórias. E uma voz silenciada não pode fornecer informações. O outro lado pode até especular, mas continua sendo apenas especulação. De nossa parte, podemos divulgar relatos, através das fontes de imprensa que controlamos, sobre a animosidade dos muçulmanos contra o chefe da Igreja Romana. As agências de notícia ocidentais aceitarão e, com a orientação adequada, poderemos ajudar a formar o entendimento público sobre o que terá acontecido. Como sabe, o Instituto Estados Unidos-Canadá tem excelentes acadêmicos para esse propósito. Podemos usá-los para formular a black propaganda, e depois usar gente da Primeira Diretoria para divulgar. Esta operação não é isenta de riscos, claro, mas, embora complexa, não é tão difícil do ponto de vista conceitual. Os verdadeiros problemas estão na execução e na segurança operacional. É por isso que é fundamental eliminar o assassino imediatamente. A coisa mais importante é a negação da informação ao outro lado. Deixe-os especulando o quanto quiserem, mas sem informações para valer de nada saberão. Esta operação será muito restrita, suponho.

— Menos de cinco pessoas no momento. Quantas mais? — Andropov perguntou, impressionado com a experiência e o sangue frio de Bubovoy.

— Pelo menos três búlgaros. Então eles escolherão o turco — ele tem que ser turco, sabe...

— Por quê? — Embora Andropov achasse que sabia a resposta.

— A Turquia é um país muçulmano, e há uma antiga antipatia entre as igrejas cristãs e o Islã. Dessa forma, a operação gerará discórdia adicional entre os dois grupos religiosos. Considere um bônus —, sugeriu o representante de Sofia.

— E como você escolheria o assassino?

— Vou deixar isso para o coronel Strokov — a ascendência dele é russa, a propósito. A família se instalou em Sofia na virada do século, mas ele pensa como um de nós. Ele é nashi, nosso —, garantiu Bubovoy ao chefe —, formado em nossa própria academia e experiente operador de campo.

— Quanto tempo para configurar isso?

— Depende mais de Moscou do que de Sofia. Strokov precisa da aprovação de seu próprio comando, mas essa é uma questão política, não operacional. Depois ele recebe suas ordens... Duas semanas, talvez até quatro.

— E as chances de sucesso? — perguntou Andropov.

— Média para alta, eu pensaria. O oficial de campo do DS conduzirá o assassino ao lugar apropriado e o matará um momento depois que a missão for cumprida, antes que escape. Isso é mais perigoso do que parece. O assassino provavelmente terá uma pistola. Então a multidão será atraída pelo som. A maioria das pessoas vai recuar, mas alguns vão ignorar o perigo na esperança de deter o atirador. Se ele cair de uma bala silenciosa nas costas, eles ainda se aproximarão, enquanto nosso homem, com outros na multidão, recua. Como ondas na praia —, explicou Bubovoy. — Ele podia ver tudo acontecendo em sua mente. — Disparar uma pistola não é tão fácil como o cinema nos faz acreditar, no entanto. Lembre-se, em um campo de batalha, para cada homem morto, dois ou três são feridos e sobrevivem. Nosso pistoleiro não ficará mais perto do que quatro ou cinco metros. Isso é suficientemente perto para um especialista, mas nosso homem não será um especialista. E, em seguida, há o fator complicador de cuidados médicos. A menos que você seja baleado no coração ou no cérebro, cirurgiões qualificados podem muitas vezes chegar ao túmulo e levantar um homem ferido. Então, realisticamente, é uma operação de cinquenta por cento. Assim, as consequências do fracasso devem ser levadas em conta. Essa é uma questão política, camarada presidente —, concluiu Bubovoy, querendo dizer que não era exatamente seu traseiro que estava na reta. Ao mesmo tempo, sabia que o sucesso da missão significava estrelas de general, o que, para o coronel, era uma aposta aceitável com uma enorme vantagem e um pouco de desvantagem. Aquilo falava a seu carreirismo e a seu patriotismo.

— Muito bem. O que precisa ser feito?

— Em primeiro lugar, o DS opera sob orientação política. A seção que o coronel Strokov comanda opera com poucos registros escritos, mas é controlada diretamente pelo Politburo búlgaro. Por isso teríamos que obter autorização política, o que necessariamente significa a aprovação da nossa própria liderança. Os búlgaros não autorizarão a cooperação sem um pedido oficial do nosso governo. Depois disso, é realmente uma operação direta.

Andropov ficou em silêncio meio minuto. Haveria um encontro do Politburo depois de amanhã. Era cedo para falar da missão?, ele se perguntou. O quanto seria difícil vender seu caso? Ele teria que lhes mostrar a Carta de Varsóvia, e eles não ficariam nem um pouco satisfeitos. Precisava apresentar tudo de forma a tornar clara a urgência do assunto. Eles ficariam muito assustados? Bem, ele poderia ajudá-los nesse caminho. Andropov analisou a questão mais alguns segundos e chegou a uma decisão favorável.

— Mais alguma coisa, coronel?

— Creio que não preciso lembrar que a segurança operacional deve ser rigorosa. O Vaticano tem um serviço de inteligência próprio eficiente. Seria um erro subestimar sua capacidade — alertou Bubovoy. — Diante disso, nosso Politburo e os búlgaros precisam estar cientes de que o assunto não pode ser discutido fora de seus círculos. E, no nosso caso, isso quer dizer ninguém, mesmo que seja do comitê central da secretaria do partido. O menor vazamento seria desastroso para a missão. Ao mesmo tempo, temos muito a nosso favor. O papa não pode se isolar, nem se proteger, como aconteceria em outras nações no caso de uma ameaça desse tipo ao chefe de Estado. De um ponto de vista operacional, na verdade, ele é um alvo fácil. Isto, claro, se conseguirmos um assassino disposto a arriscar a vida para chegar a uma distância de tiro.

— Então, se eu obtiver autorização do Politburo, e depois fizermos o pedido de auxílio a nossos irmãos búlgaros, e depois você conseguir a cooperação desse coronel Strokov, quanto tempo levará até que aconteça de fato?

— Acredito que um mês, talvez dois, porém não mais do que isso. Precisaremos de ajuda do escritório em Roma, para definirmos o momento certo e outros aspectos, e é tudo. Nossas mãos permaneceriam limpas, especialmente se Strokov eliminar o assassino logo depois da consecução da missão.

— Você espera que esse Strokov aja pessoalmente?

— Da — confirmou Bubovoy. — Boris Andreievich não é avesso a sujar as mãos. Ele já fez isso antes.

— Muito bem. — Andropov levou o olhar à sua mesa. — Não haverá registros escritos dessa operação. Quando eu tiver a devida autorização, você receberá uma notificação do meu escritório para prosseguir, mas apenas por um código operacional: 15-8-82-666. Qualquer informação mais complexa será repassada por mensageiro ou através de contato cara a cara. Está claro?

— Sim, camarada diretor. Não se escreverá nada, exceto o número operacional. Terei que viajar com frequência entre Sofia e Moscou, mas isso não é problema.

— Os búlgaros são confiáveis? — perguntou Andropov, com uma súbita preocupação.

— Sim, camarada diretor. Mantemos uma relação operacional antiga, e eles são especialistas em ações desse gênero. Na realidade, mais do que nós. Eles têm mais prática. Quando alguém deve morrer, geralmente são os búlgaros que cuidam do assunto.

— O coronel Rozhdestvenskiy me deixou a par disso. Mas não tenho conhecimento pessoal.

— É claro que o senhor poderia se encontrar a qualquer momento com o coronel Strokov — sugeriu Bubovoy.

Andropov fez um sinal negativo.

— Creio que não seja necessário.

— Como preferir, camarada diretor.

É óbvio que não, pensou Bubovoy. Andropov era um homem do partido e não estava acostumado a sujar as mãos. Os políticos eram todos iguais: tinham sede de sangue, mas gostavam de se manter limpos, dependendo de terceiros para realizar seus desejos obscenos. O coronel lembrou-se que aquele era seu trabalho e que, como os políticos controlavam os aspectos positivos de sua sociedade, precisava agradá-los para tirar o mel da colmeia — ele apreciava se lambuzar tanto quanto qualquer outra pessoa na União Soviética. No fim da missão, poderia haver estrelas de general, um confortável apartamento em Moscou, talvez até uma modesta datcha no Monte Lenin. Ele e sua esposa gostariam de voltar a Moscou. Se o preço fosse a morte de um estrangeiro que representava um inconveniente político para seu país, só podia lamentar. O papa devia tomar mais cuidado com suas posições.

— Obrigado por ter vindo e contribuir com sua experiência, camarada coronel. Entrarei em contato.

Bubovoy se levantou.

— Sirvo à União Soviética — disse e se encaminhou em seguida à porta escondida.

Rozhdestvenskiy esperava-o na sala da secretária.

— Como foi, Ilya?

— Não sei se estou autorizado a dizer — respondeu com cautela.

— Se for sobre a operação 666, tem autorização, Ilya Fedorovich — garantiu Rozhdestvenskiy, levando-o em direção ao corredor.

— Nesse caso, o encontro foi bom, Aleksey Nikolaievich. Mais do que isso, só posso contar com a aprovação do diretor.

Por maior que fosse a amizade de Rozhdestvenskiy, havia a possibilidade de se tratar de um teste.

— Disse a ele que você era confiável, Ilya. Isto pode ser positivo para nós dois.

— Nós apenas servimos, Aleksey, como todos os outros neste prédio.

— Deixe-me levá-lo até o carro. Você pode pegar o voo do meio-dia.

Minutos depois, estava de volta ao escritório de Andropov.

— E então? — perguntou o diretor.

— Disse que a reunião foi boa, mas se recusou a dar mais informações sem sua autorização. Ilya Fedorovich é um profissional sério, camarada diretor. Eu serei seu contato na missão?

— Sim, Aleksey — confirmou Andropov. — Enviarei um recado nesse sentido. — Andropov não achava necessário comandar a operação pessoalmente. Ele preferia pensar nos grandes cenários. — O que acha desse coronel Boris Strokov?

— Ele é búlgaro? O nome me parece familiar. É um oficial sênior de inteligência que, no passado, se especializou em operações de assassinato. Tem muita experiência. E, obviamente, Ilya o conhece bem.

— Como alguém se especializa em assassinatos? — perguntou o diretor. Aquele era um aspecto da KGB sobre o qual não recebera informações.

— Sua função oficial, logicamente, é outra, mas o DS mantém um pequeno grupo de oficiais com experiência nessa área. Ele é o mais experiente. Seu histórico operacional é impecável. Se o passado tiver algum valor, ele eliminou pessoalmente sete ou oito pessoas cujas mortes eram necessárias. Creio que, na maioria, búlgaros. Provavelmente um ou dois turcos, mas nenhum ocidental.

— É muito difícil? — perguntou Yuriy Vladimirovich.

— Não tenho experiência nisso — admitiu Rozhdestvenskiy, sem acrescentar que nem era do seu interesse ter. — Aqueles que atuam na área dizem que a preocupação não é tanto cumprir a missão e sim completá-la. Ou seja, evitar a investigação policial subsequente. As agências de polícia modernas são muito eficientes na investigação de assassinatos. Neste caso, podemos esperar uma investigação das mais rigorosas.

— Bubovoy quer que esse tal de Strokov partícipe da missão para eliminar o assassino imediatamente depois.

Rozhdestvenskiy concordou, pensativo.

— Faz sentido. Lembro que nós mesmos discutimos essa opção.

— Sim. — Andropov fechou os olhos por um momento. Mais uma vez, a imagem passeou em sua mente. Com certeza, aquilo resolveria diversos problemas políticos. — Sim, minha próxima tarefa será obter a aprovação do Politburo para a missão.

— Rapidamente, camarada diretor? — perguntou o coronel Rozhdestvenskiy, sem conseguir conter a curiosidade.

— Acho que amanhã à tarde.

 

 

NO CENTRO DE COMUNICAÇÕES, Zaitzev permitiu que a rotina diária absorvesse sua consciência. De repente, percebeu como seu trabalho era mecânico. Eles queriam que o trabalho fosse feito por máquinas, e ele se tornara uma máquina. Mantinha tudo na memória: que designador operacional referia-se a que oficial dos andares superiores, bem como os assuntos das operações. A quantidade de informações que entrava em sua mente no caminho o impressionava. Acontecera de maneira tão gradativa que, até ali, sequer notara. Mas agora sim. Entretanto, era o código 15-8-82-666 que não saía de sua cabeça.

— Zaitzev? — perguntou uma voz.

O oficial de comunicações virou-se e se deparou com o coronel Rozhdestvenskiy.

— Pois não, camarada coronel?

— Um despacho para o rezident em Sofia.

Ele entregou o formulário de mensagem devidamente preenchido.

— Com a máquina ou com o bloco, camarada?

O coronel pensou por um instante, analisando as duas opções. Preferiu a coerência.

— Acho que o bloco.

— Como desejar, camarada coronel. Será transmitido em alguns minutos.

— Excelente. Estará à espera de Bubovoy quando voltar a sua mesa. Rozhdestvenskiy fez o comentário sem pensar. Pessoas falavam demais no mundo inteiro, e nenhum treinamento era suficiente para impedir aquilo inteiramente.

Então o rezident em Sofia acabou de passar por aqui?, concluiu Zaitzev.

— Sim, coronel. Devo ligar para confirmar o despacho?

— Sim, obrigado, camarada major.

— A serviço da União Soviética — disse Zaitzev. Rozhdestvenskiy subiu pela escada, enquanto Zaitzev dava início à rotina habitual e enervante da encriptação.

 

Confidencial Imediato e Urgente

De: Escritório do Diretor, Centro Moscou

para: rezident em Sofia

referência: designador operacional 15-8-82-666

Em todas as comunicações futuras, seu contato operacional será o coronel Rozhdestvenskiy. Por ordem do diretor.

 

A mensagem era apenas organizacional, mas dizia "imediato e urgente". Significava que tinha importância para o diretor Andropov. E a referência indicava uma operação, não uma simples consulta ao rezident.

Eles realmente pretendem levar isso adiante, concluiu Zaitzev.

O que podia fazer a respeito? Ninguém naquela sala — no prédio inteiro — seria capaz de impedir a operação. Talvez fora do prédio...

Zaitzev acendeu um cigarro. Ele pegaria o metrô para ir embora, como sempre. O americano estaria lá de novo?

Percebeu, com apreensão, que estava contemplando a possibilidade de traição. O crime soava de modo assustador, e a realidade era ainda mais assustadora. Mas a outra opção era ficar sentado, lendo os despachos, enquanto um homem inocente era assassinado... e, não, ele não seria capaz de fazer aquilo.

Zaitzev pegou uma folha de mensagem em branco de um bloco de um centímetro de grossura. Ajeitou o papel na mesa e escreveu em inglês, com um lápis número 1:

 

SE ACHAR ISTO INTERESSANTE, USE UMA GRAVATA VERDE AMANHÃ.

 

Era o mais longe que sua coragem iria naquela tarde. Dobrou a folha e a enfiou no maço de cigarros, tomando cuidado para fazer movimentos naturais, porque qualquer coisa minimamente incomum acabava sendo notada naquela sala. Em seguida, rabiscou algo em outra folha em branco, amassou-a, jogou-a na lata de lixo e retornou ao trabalho usual. Nas três horas seguintes, Oleg Ivanovich repensaria sua atitude a cada vez que buscasse um cigarro no bolso. Invariavelmente, consideraria pegar a folha dobrada e rasgá-la em pedaços minúsculos antes de relegá-la à lata de lixo e, posteriormente, ao monte destinado à incineração. Mas cada vez a deixaria lá, dizendo a si mesmo que ainda não fizera nada.

Acima de tudo, tentava libertar sua mente, cumprir seu trabalho normal, colocando-se deliberadamente em piloto automático para que o dia passasse. Por fim, disse a si próprio que seu destino não estava em suas mãos. Se chegasse em casa sem que nada de estranho acontecesse no caminho, tiraria o papel dobrado do maço de cigarros e o queimaria na cozinha — e seria o fim de tudo. Por volta das quatro da tarde, Zaitzev olhou para o teto da sala, manchado por infiltrações, e murmurou algo semelhante a uma oração.

Finalmente o expediente acabou. Ele pegou o caminho habitual, no ritmo habitual, até a estação de metrô habitual, desceu a escada rolante e chegou à plataforma. O horário era tão previsível quanto o ir-e-vir das ondas. Entrou no vagão com outra centena de pessoas.

Então seu coração quase congelou no peito: lá estava o americano, parado no mesmo lugar, segurando um jornal com a mão direita e a barra superior com a esquerda, a capa de chuva aberta e folgada em seu corpo esguio. O bolso exposto acenava para ele como as sereias para Ulisses. Zaitzev abriu caminho até o meio do vagão. Com a mão direita, pegou o maço de cigarros no bolso da camisa. Habilmente, tirou a folha e a segurou, trocando de posição à medida que o trem freava para a parada seguinte, abrindo espaço para outro passageiro. Funcionou perfeitamente. Ele esbarrou no americano, fez a transferência e se afastou.

Zaitzev respirou profundamente. Estava feito. O que aconteceria em seguida estava, sem dúvida, em outras mãos.

Seria aquele homem realmente americano — ou uma isca da Segunda Diretoria? O "americano" teria visto seu rosto? Aquilo importava? Suas impressões digitais não estavam no formulário de mensagem?

Zaitzev não fazia ideia. Ele tomara cuidado ao rasgar o papel e, se fosse interrogado, poderia dizer que o bloco ficava em sua mesa e qualquer um poderia ter tirado uma folha — até pedido uma a ele! Se sustentasse ” a história, seria o suficiente para enganar uma investigação da KGB. Pouco depois, estava fora do metrô, andando ao ar livre. Torceu para ninguém notar suas mãos trêmulas enquanto acendia um cigarro.

 

 

OS SENTIDOS ALTAMENTE treinados de Foley o haviam traído. Com o casaco folgado, não percebeu toque algum, exceto alguns esbarrões, que eram típicos do metrô, em Moscou ou Nova York. Ao sair do vagão, pôs a mão esquerda no bolso e encontrou algo. Sabia que não tinha sido posto ali por ele mesmo. Seu semblante ficou confuso, mas a reação foi logo apagada pelo condicionamento. Ainda sucumbiu à tentação de olhar em volta em busca de uma sombra, mas imediatamente se deu conta de que, devido ao seu horário regular, haveria uma nova pessoa para segui-lo na rua ou, mais provavelmente, câmeras em cima dos prédios da região. Os rolos de filme custavam o mesmo ali que no resto do mundo. Assim, caminhou para casa, como num dia normal, acenou para o guarda no portão, pegou o elevador e chegou a sua porta.

— Querida, estou em casa — anunciou Ed Foley, tirando o papel do bolso só depois de a porta se fechar. Tinha quase certeza de que não havia câmeras no apartamento. Nem a tecnologia americana ia tão longe, e ele já conhecia Moscou o bastante para não se deixar impressionar por sua capacidade técnica. Seus dedos desdobraram o papel, e ele congelou. — O que temos para jantar? — gritou.

— Venha ver, Ed — respondeu Mary Pat, da cozinha. Hambúrgueres fritando no fogão, purê de batata e molho, além de feijões assados — um jantar típico da classe trabalhadora. Porém, havia pão russo, o que não era mau. O pequeno Eddie estava diante da TV, assistindo a uma fita dos Transformers, o que o manteria distraído pelos vinte minutos seguintes.

— Aconteceu algo interessante hoje? — perguntou Mary Pat, diante do fogão.

Ela se virou para receber um beijo, e o marido respondeu com o código que usavam para um fato incomum.

— Absolutamente nada, meu bem.

Aquilo despertou seu interesse. Quando Ed estendeu a folha de papel, ela a tomou de sua mão e, logo depois, seus olhos se arregalaram.

Não era a mensagem escrita a mão. Mas o cabeçalho impresso:

COMUNICAÇÃO OFICIAL DE SEGURANÇA DO ESTADO.

— Droga — balbuciou Mary Pat.

Ed Foley assentiu, pensativo.

— Pode dar uma olhada nos hambúrgueres, querido? Preciso pegar uma coisa.

Ed segurou a espátula e virou um hambúrguer. Sua esposa voltou rapidamente, trazendo uma gravata verde-abacate.


11

 


DANÇA DAS MÃOS

 

NÃO HAVIA MUITO A SER feito no momento. O jantar foi servido e comido, e Eddie voltou para as fitas de desenho animado. Era fácil agradar crianças de quatro anos, mesmo em Moscou. Seus pais foram tratar de trabalho. Anos antes, eles haviam visto O milagre de Anne Sullivan na TV, filme em que Anne Sullivan (Anne Bancroft) ensina a linguagem de sinais a Helen Keller (Patty Duke), e decidiram que aquele seria um conhecimento útil como meio de comunicação — não tão rápido, porém silencioso e em versão simplificada própria.

B[em], o que vo[cê] acha?, perguntou Ed.

Pode s[er] algo q[uente], respondeu a esposa.

S[im].

Ed, esse cara trabalha no MERCÚRIO, no correspondente de[les]! Uau!

É mais provável que apenas tenha acesso aos formulários de mens[agem], observou lentamente o Station Chief. Mas usarei a gravata verde e pegarei o mesmo trem do metrô na próxima s[emana].

MBC, disse Mary Pat, usando a forma simplificada de "Muito bom, cara".

Espero que não seja uma armadilha ou um falso sinal, ponderou Ed.

É parte do jo[go], querido], respondeu Mary Pat.

A possibilidade de ser enganada não a intimidava, embora preferisse não passar pelo embaraço. Ela procurava oportunidades mais que o marido — ele se preocupava mais.

Estranhamente, porém, não naquela ocasião. Se os russos o tivessem "nomeado" chefe em Moscou ou mesmo um espião comum — por mais improvável que fosse tal hipótese —, seriam idiotas em desmascará-lo de modo tão apressado e amador. Exceto se houvesse um significado político, mas ele não conseguia perceber a lógica daquilo — e a KGB era tão friamente lógica quanto o Sr. Spock no planeta Vulcano. Nem o FBI jogaria de uma forma tão frouxa. Portanto, a oportunidade só podia ser real, a não ser que a KGB estivesse chacoalhando todos os funcionários da embaixada para ver o que cairia da árvore. Era possível, mas altamente improvável; ou seja, valia a pena apostar.

Ele usaria a gravata verde e pagaria para ver, tomando o cuidado de verificar cada rosto no vagão do metrô.

Informará L[angley]?, perguntou Mary Pat.

Ele apenas balançou a cabeça.

Muito cedo para isso.

Ela concordou. Em seguida, gesticulou como se estivesse montando a cavalo.

Significava que havia uma perseguição e que eles finalmente estavam no jogo de verdade. Era como se temesse ficar enferrujada. Muito improvável, pensou o marido.

Ele seria capaz de apostar que a mulher passara toda a escola paroquial sem ser castigada uma única vez, porque as irmãs nunca a flagraram se comportando mal...

Aliás, também nunca havia acontecido com ele.

B[em], am[anhã] s[erá] um dia interessante], disse à esposa, recebendo um gesto sensual como resposta.

A parte mais difícil era não ficar remoendo a oportunidade. Mesmo com o treinamento, seus pensamentos voltavam sempre à ideia de cooptar um agente do MERCÚRIO russo.

Era um home run conceitual no final do nono inning do sétimo jogo da World Series — Reggie Jackson Foley como Mister October. Droga.

 

 

— ENTÃO, SlMON, O QUE SABEMOS de fato sobre o cara?

— No nível pessoal, pouca coisa — admitiu Harding. — Ele é um homem do partido em primeiro lugar, no último e sempre. Creio que seus horizontes foram ampliados com a diretoria da KGB. Há boatos de que prefere bebidas ocidentais a vodca e de que aprecia o jazz americano, mas podem ser histórias espalhadas pelo próprio Centro para ajudá-lo a parecer mais palatável ao Ocidente. Na minha modesta opinião, é uma hipótese pouco provável. O homem é um facínora. Seu histórico no partido não é de gentilezas. Ninguém sobe naquela organização se não demonstrar dureza, e com notável frequência os mais ambiciosos destroem seus mentores pelo caminho. Jack, é uma organização darwiniana que perdeu a razão. Os mais capacitados sobrevivem, porém eles provam ser os mais capacitados aniquilando aqueles que representam ameaça ou qualquer pessoa só para provar sua impiedade na arena que escolheram.

— O quanto é esperto? — perguntou Jack em seguida.

Outra pitada no cachimbo de urze branca.

— Ele não é tolo. Tem uma percepção muito desenvolvida da natureza humana. É provavelmente um bom psicólogo amador. Talvez até brilhante.

— Você não o comparou a algum personagem de Tolstoy ou Tchekhov — observou Jack.

Simon havia se formado em literatura, mas descartou a analogia.

— Seria muito fácil. Pessoas como ele quase nunca aparecem na literatura, porque os novelistas não têm a imaginação necessária. Não houve um sinal de Hitler na literatura alemã, Jack. Sei que Stalin claramente se achava um novo Ivan, o Terrível, e Sergei Eisenstein colaborou, com seu filme épico sobre o sujeito, mas esse tipo de coisa é só para quem não dispõe da imaginação para ver as pessoas como elas são em vez de alguém que sejam capazes de entender. Não, Stalin foi um monstro complexo e fundamentalmente incompreensível, salvo para quem tem credenciais de psiquiatra. Eu não tenho — lembrou Harding. — Não é preciso entender essas pessoas completamente para prever seus atos, porque elas são racionais dentro de seu próprio contexto. Basta entender isso. Pelo menos é no que sempre acreditei.

— Algumas vezes acho que deveria envolver Cathy nesse trabalho.

— Por ela ser médica? — perguntou Harding.

Ryan sinalizou positivamente.

— Sim, ela é muito boa em entender as pessoas. Por isso pedimos os relatórios dos médicos sobre Mikhail Suslov. Nenhum deles era psiquiatra — ressaltou Jack.

— Mas, voltando assunto, sabemos muito pouco sobre a vida pessoal de Andropov — disse Harding. — Nunca foi destacado um agente para analisar esse aspecto profundamente. Se ele for alçado à secretaria-geral, aí presumo que a esposa se tornará uma pessoa semipública. De qualquer maneira, não há razão para crer que ele seja homossexual ou algo parecido. Eles são bem intolerantes em relação a isso por lá. Com certeza, algum colega já teria usado a informação e destruído a carreira dele. O armário em que vivem na União Soviética é bem fundo. O celibato seria melhor — concluiu o analista.

Certo, ligarei para o almirante esta noite e direi que os britânicos também não sabem, antecipou Ryan. Estranhamente, era algo decepcionante, porém previsível. Apesar de toda a informação de posse dos serviços de inteligência, a frequência dos buracos em seu conhecimento costumava surpreender quem estava de fora — mas nem tanto quem estava dentro. Ryan ainda era novo o suficiente para se sentir surpreso e desapontado.

Um homem casado estaria acostumado a ceder, a permitir que a esposa fizesse as coisas a seu modo em todo tipo de assunto, porque todo homem é dominado de uma forma ou de outra, exceto os cafetões, e poucos se enquadram nesta categoria. Mais difícil ainda seria subir na hierarquia dessa maneira, porque em qualquer organização era preciso se submeter para se manter. Tinha a ver com a natureza humana, e nem o Partido Comunista da União Soviética podia rechaçar isso, apesar da conversa sobre o novo homem soviético que tentavam empurrar. Sim, claro, pensou Ryan. — Bem — disse Ryan, conferindo a hora —, acho que já servimos a Sua Majestade o bastante por hoje.

— Concordo.

Ryan levantou-se e pegou o paletó no cabideiro. Ele pegaria o metrô até a Victoria Station e depois o trem Lionel para casa. A rotina começava a incomodá-lo. Seria melhor arranjar um lugar na cidade e evitar as baldeações, mas Sally ficaria sem áreas verdes para brincar, e Cathy tinha sido inflexível quanto àquilo. Mais uma prova de que era dominado pela mulher, pensou Jack a caminho do elevador. Podia ser pior. Ele, pelo menos, tinha uma boa esposa para dominá-lo.

 

 

O CORONEL BUBOVOY FOI DIRETO do aeroporto para a embaixada. À sua espera, havia um breve despacho, rapidamente decodificado: ele passaria a se reportar ao coronel Rozhdestvenskiy. Nenhuma surpresa. Aleksey Nikolaievich era o cachorrinho de Andropov. Provavelmente um bom trabalho, pensou o rezident. Bastava manter o chefe satisfeito, e Yuriy Vladimirovich não devia ser tão exigente quanto Beria havia sido. Os membros do partido podiam ser exageradamente precisos em suas solicitações, mas qualquer um que tivesse trabalhado na secretaria do partido seguramente sabia como lidar com as pessoas. Os tempos de Stalin sem dúvida haviam passado.

Desta forma, Bubovoy concluiu que tinha mesmo um assassinato a planejar. Pensou em como Boris Strokov reagiria. Strokov era profissional, sem emoções em excesso, e certamente sem uma consciência de ofício. Para ele, trabalho era trabalho. Mas a magnitude daquilo superava qualquer coisa com que tivesse lidado servindo na Dirjavna Sugurnost. Ficaria assustado ou motivado? Bubovoy estava ansioso por saber. Havia uma frieza no colega búlgaro que o deixava ao mesmo tempo alarmado e impressionado. Seria útil contar com suas habilidades específicas. Se o Politburo precisava daquele polonês inoportuno morto, então ele simplesmente teria que morrer.

Uma pena, mas se tudo aquilo em que acreditava fosse mesmo verdade, ele estaria apenas sendo mandado para o céu como um santo mártir. Decerto era a ambição secreta de todo padre.

A única preocupação de Bubovoy era a repercussão política, que seria extraordinária.

Por isso, era positivo que fosse somente um intermediário na operação. Se desse errado... bem, não seria culpa sua. Que Strokov era o homem mais indicado para o serviço, com base em seu currículo, ninguém podia negar — e uma comissão de inquérito poderia confirmar. Ele havia alertado o diretor de que um tiro, por mais próximo, não seria necessariamente fatal. Teria de incluir aquilo em um memorando para assegurar que o escasso rastro de papel sobre a operação 15-8-82-666 contivesse sua avaliação formal. Faria uma minuta por conta própria e a enviaria ao Centro pela mala diplomática. E manteria uma cópia de segurança em seu escritório para garantir a integridade de sua retaguarda.

Por enquanto, teria de esperar a autorização do Politburo. As velhas senhoras decidiriam seguir adiante com aquilo? Era a questão principal — e ele não faria qualquer aposta.

Brejnev estava senil. Isso o deixaria mais sedento de sangue ou mais cauteloso? Uma pergunta muito difícil para o coronel fazer cogitações. Dizia-se que Yuriy Vladimirovich era o herdeiro. Se fosse verdade, era sua chance de garantir seu reconhecimento.

 

 

— ENTÃO, MlKHAIL YEVGENIYEVICH, terei seu apoio amanhã? — perguntou Andropov, entre drinques, em seu apartamento.

Alexandrov fez a cara vodca marrom girar no copo.

— Suslov não participará amanhã. Dizem que teve insuficiência renal e não aguentará mais que duas semanas — disse o candidato a ideólogo, esquivando-se da questão por um instante. — Terei seu apoio para o posto?

— Precisa perguntar, Misha? — respondeu o diretor do Comitê de Segurança do Estado. — É claro que lhe darei meu apoio.

— Excelente. Então, quais são as chances de sucesso da operação?

— Meu pessoal estima que sejam de meio a meio. Usaremos um oficial búlgaro para arranjar tudo, mas por questão de segurança o assassino terá que ser um turco...

— Um maldito muçulmano?

— Misha, qualquer um que seja certamente acabará preso. Ou morto, de acordo com nosso plano. É impossível esperar uma fuga sem rastro em uma missão como essa. Por isso não podemos usar um dos nossos. A natureza da missão nos impõe restrições. Idealmente, empregaríamos um atirador treinado a trezentos metros, das Spetsnaz, por exemplo, mas isso indicaria um assassinato realizado por um estado-nação. Tem de parecer uma ação de um único homem enlouquecido, como acontece com os americanos. Veja, mesmo com todas as evidências que eles tinham, alguns idiotas de lá ainda colocaram a culpa pela morte do Kennedy em nós ou Fidel Castro. Não, a evidência que deixarmos deve prover um sinal claro de que não estivemos envolvidos. Isso limita os métodos operacionais. Acredito que este seja o melhor plano que podemos produzir.

— Com que detalhamento estudou o plano? — perguntou Alexandrov, tomando um gole.

— Tenho acompanhado tudo de perto. É necessário em operações como essa. A segurança deve ser rigorosa, Mikhail Yevgeniyevich.

O homem do partido concordou.

— Suponho que sim, Yuriy. Mas o risco de insucesso...

— Misha, há riscos em todos os aspectos da vida. O importante é que a operação não seja associada a nós. Isso podemos afirmar com certeza. No mínimo, um ferimento grave conterá o ardor de Karol em criar problemas para nós, não acha?

— Deveria...

— E 50% de chance de fracasso representam 50% de chances de sucesso completo — lembrou Andropov ao convidado.

— Então lhe darei meu apoio. Leonid Ilyich também ficará a favor. Isso garante o sucesso. De quanto tempo precisa para pôr o plano em ação?

— Um mês, talvez seis semanas.

— Tão rápido?

Assuntos do partido raramente eram tratados com tanta celeridade.

— Se for para demorar muito, qual o sentido de realizar uma... ação executiva, não é assim que os americanos chamam? Se devemos fazer isso, é melhor que seja rápido, para impedir outras intrigas políticas por parte desse homem.

— Quem o substituirá?

— Suponho que um italiano. A escolha dele foi uma enorme aberração. Talvez a morte incentive os romanos a voltar aos antigos hábitos — insinuou Andropov.

O convidado deu uma risada.

— Esses fanáticos religiosos são tão previsíveis.

— Então amanhã vou propor a missão. Você me dará apoio?

Andropov queria ter certeza.

— Sim, Yuriy Vladimirovich. Terá meu apoio. E me apoiará para o lugar com voto pleno de Suslov na mesa.

— Amanhã, camarada — prometeu Andropov.

 

 

 

 

C O N T I N U A