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COELHO VERMELHO
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12

 


PASSE

 

DESTA VEZ, O ALARME funcionou e acordou ambos. Ed Foley se levantou, foi ao banheiro rapidamente para dar lugar à mulher e seguiu até o quarto de Eddie para acordá-lo, enquanto Mary Pat começava a preparar o café da manhã. O menino ligou a TV imediatamente e colocou no programa matutino de ginástica que parecia existir em toda cidade do mundo, estrelado, como em todo lugar, por uma mulher de físico impressionante — ela parecia capaz de encarar sem dificuldade a Escola de Formação de Soldados do Exército, em Fort Benning, Georgia. Por ter visto o seriado com Lynda Carter na TV a cabo, em casa, Eddie a chamava de Professora-Maravilhaaaaaa! Mary Pat achava que os cabelos louros da russa eram tingidos, e Ed sentia dor só de assistir às coisas que ela fazia. Sem um jornal decente ou uma página de esportes para ler, ele tinha pouca escolha, permanecendo em estado semivegetativo enquanto o filho ria até o fim do programa do gênero acorde-e-sue. Dava para notar que era ao vivo. Portanto, quem quer que aquela mulher fosse, precisava acordar às quatro da manha, e aquele seria seu exercício também. Pelo menos, era algo honesto. Seu marido devia ser um paraquedista do Exército Vermelho que talvez até apanhasse dela, pensou Ed Foley, aguardando o noticiário da manhã.

O noticiário começava às 6h30. O truque era vê-lo e, depois, tentar deduzir o que estava realmente acontecendo no mundo. Exatamente como nos Estados Unidos, pensou o oficial da CIA, resmungando já de manhã cedo. Bem, para tanto, ele receberia na embaixada o Early Bird, informativo das forças americanas, enviado por fax seguro de Washington aos funcionários mais graduados. Para um cidadão americano, viver em Moscou era como estar em uma ilha deserta. Pelo menos dispunham de uma antena parabólica na embaixada para receber a CNN e outras programações. Aquilo os fazia se sentirem pessoas de verdade — ou quase.

O café da manhã era sempre o café da manhã. O pequeno Eddie gostava de Frosted Flakes. O leite vinha da Finlândia, porque a mãe não confiava na mercearia local, e a loja exclusiva para estrangeiros ficava perto do condomínio. Ed e Mary Pat não conversavam muito em consideração às escutas espalhadas pelas paredes. Nunca falavam de assuntos importantes em casa, a não ser por linguagem de sinais — e nunca na frente do filho, porque crianças pequenas não conseguem guardar segredo. De todo modo, naquela altura, os responsáveis pela monitoração deviam estar entediados com os Foley, uma situação para a qual ambos haviam dado duro, incluindo a medida exata de aleatoriedade em seu comportamento para parecerem americanos. Tudo calculado, sem exagero. Planejado cuidadosa e criteriosamente em Langley, com ajuda de um amigável desertor da Segunda Diretoria da KGB.

Mary Pat colocara as roupas do marido na cama, incluindo a gravata verde, combinando com o terno marrom. Para a esposa, a exemplo do presidente, Ed ficava bem de marrom. Ed vestiria uma capa de chuva novamente e a manteria desabotoada e folgada em seu corpo, para o caso de receber outra mensagem. Seus sentidos seriam postos à prova o dia inteiro.

— Quais são seus planos para hoje? — perguntou a Mary Pat, que estava na sala de estar.

— O mesmo de sempre. Talvez encontre Penny depois do almoço.

— Ah, é? Mande um abraço para ela. Quem sabe podemos jantar juntos mais para o fim da semana.

— Boa ideia. Espero que possam me explicar o rúgbi.

— Querida, é como o futebol americano, só que com regras mais tolas. Bem, hora de sair para manter os repórteres satisfeitos.

— Certo! — disse Mary Pat, rindo, observando as paredes. — Aquele cara do Boston Globe é um idiota.

A manhã estava razoavelmente agradável, com um toque de ar frio indicando a proximidade do outono. Foley iniciou a caminhada até a estação, acenando para o guarda do portão. O empregado da manhã até sorria de vez em quando. Claramente, tinha contato intenso com estrangeiros ou havia sido treinado pela KGB para se comportar assim. Usava uniforme da milícia de Moscou — a polícia municipal —, mas Foley achava que parecia inteligente demais para a função. Os moscovitas consideravam seus policiais como uma forma inferior de vida, e um órgão desse tipo não atrairia as pessoas mais brilhantes.

Os poucos quarteirões até a estação do metrô passaram rapidamente. Atravessar a rua era seguro — muito mais que em Nova York —, porque automóveis particulares eram raros. Um aspecto positivo. Os motoristas russos faziam os italianos parecerem cuidadosos e ordeiros. Os sujeitos que dirigiam os onipresentes caminhões-caçamba, a se julgar pelo comportamento no trânsito, deviam todos ter integrado guarnições de tanque. Foley comprou seu exemplar do Pravda na banca e pegou a escada rolante até a plataforma. De hábitos rigorosos, chegava à estação exatamente no mesmo horário toda manhã, verificando o relógio pendurado no teto para confirmar. As composições cumpriam o horário com precisão inumana; ele entrou no vagão exatamente às 7h43.

Não olhara por cima do ombro. Já estava em Moscou havia muito tempo para ficar examinando as coisas como um turista, e isso, a seu ver, faria o agente da KGB que o seguia achá-lo tão interessante quanto a kasha que os russos gostavam de comer de manhã com o tenebroso café local. Controle de qualidade era algo que os soviéticos reservavam às armas nucleares e ao programa espacial, embora Foley duvidasse até deles, pelo que vira da cidade, onde apenas o metrô parecia funcionar apropriadamente.

Os russos eram uma estranha combinação de precisão e falta de jeito. Era possível saber como as coisas funcionavam pela sua destinação, e as operações de inteligência tinham prioridade máxima — para impedir que os inimigos descobrissem não o que eles possuíam, mas o que não possuíam. Foley contava com o agente CARDEAL para informá-lo do que a União Soviética dispunha no âmbito militar. Era um material bom de se estudar, porque, quanto mais se estudava, menos era necessário se preocupar. A inteligência política contava mais por lá. Por mais atrasados que fossem, ainda eram bastante grandes para causar problemas, caso não houvesse uma resposta imediata.

Langley estava muito preocupada com o papa. Ele, evidentemente, fizera algo que poderia embaraçar os russos. E Ivan abominava ser embaraçado tanto quanto os políticos americanos. A diferença é que os russos não saíam correndo atrás do Washington Post para acertar a situação. Ritter e Moore temiam o que os soviéticos — principalmente Andropov — poderiam fazer. Ed Foley não tinha opinião em relação a Andropov. Como a maioria na CIA, conhecia o sujeito apenas pela aparência, nome e os evidentes problemas hepáticos — informação que vazara por uma via que ignorava. Talvez os britânicos... se os britânicos forem confiáveis, ponderou Ed. Precisava confiar neles, mas algo deixava os pelos de seu pescoço arrepiados. Eles também deviam alimentar desconfianças em relação à CIA. Era um jogo esquisito. Ed passou os olhos pela primeira página.

Nenhuma surpresa, embora a matéria sobre o Pacto de Varsóvia fosse interessante; ainda se preocupavam com a Otan. Talvez temessem que o exército alemão se virasse para o leste novamente. A paranoia — provavelmente uma invenção russa — era suficiente para tanto. É possível que Freud a tenha descoberto em uma viagem para cá, divertiu-se, erguendo os olhos na direção de alguém que o acompanhava... não, não havia nada. Seria possível que a KGB não estivesse no seu encalço? Possivelmente, sim, mas, provavelmente, não. Se mantivessem uma pessoa — mais provavelmente uma equipe — atrás dele, seria uma ação de alto nível. Mas por que colocar gente de alto nível atrás de um adido de imprensa?, perguntou-se. Estaria se preocupando em excesso ou lhe faltaria um pouco de paranoia? Como saber a diferença? Teria caído em uma armadilha ao usar uma gravata verde? Como perceberia f Se fosse desmascarado, sua esposa também seria, e isso interromperia duas carreiras muito promissoras na CIA. Ele e Mary Pat formavam a dupla de cabelos claros de Bob Ritter, a equipe principal de Langley. Era uma reputação que tinha de ser protegida e ampliada. O próprio presidente dos Estados Unidos leria sua avaliação e talvez tomasse decisões com base nas informações que trouxesse. Decisões importantes que poderiam afetar a política do seu país. Não se devia pensar muito na responsabilidade: ela podia enlouquecer ou levar a uma cautela excessiva, que impediria as conquistas. O maior desafio na inteligência era perceber o limite entre a ponderação e a eficiência. Se pendesse demais para um lado, nunca haveria uma realização útil; se pendesse demais no sentido oposto, sua própria identidade e a de seus agentes seriam expostas — o que significava morte quase certa para pessoas cujas vidas eram de sua responsabilidade. O dilema era perfeito para levar um homem ao álcool.

A composição parou na estação, ele desceu e seguiu até a escada rolante. Estava convicto de que ninguém havia mexido no seu bolso. Ao chegar à rua, decidiu verificar.

Nada. Quem quer que fosse, só costumava andar no trem da tarde. Ou o chefe do escritório em Moscou havia sido descoberto. Era o suficiente para passar o dia inteiro preocupado.

 

 

— ESTA AQUI É PARA VOCÊ. De Sofia — disse Dobrik, entregando o papel.

— Ahn? — perguntou Zaitzev.

— Está no livro. É só para seus olhos, Oleg Ivanovich — disse o oficial da noite. — Pelo menos, é curta.

— Ah — respondeu Zaitzev, pegando a mensagem e notando o número no cabeçalho: 15-8-82-666. Eles haviam concluído que, com um número no lugar de um nome, o cabeçalho não precisava ser codificado. Zaitzev não demonstrou reação e manteve silêncio. Simplesmente não tinha sido feito. Com certeza, Kolya imaginara coisas. Era o esporte preferido nas comunicações: pensar a respeito do que não se podia ler. A mensagem chegara apenas quarenta minutos depois de sua saída.

— Bem, algo para eu começar meu turno. Mais alguma coisa, Nikolay Konstantinovich ?

— Não, fora isso, sua mesa está limpa. — Defeitos à parte, Dobrik era um funcionário eficiente. — Agora estou oficialmente dispensado. Há uma garrafa inteira de vodca me esperando em casa.

— É melhor comer antes, Kolya — aconselhou Zaitzev.

— É isso que minha mãe vive dizendo, Oleg. Talvez eu coma um sanduíche no café da manhã — brincou.

— Durma bem, camarada major, está dispensado — disse Zaitzev, sentando-se na cadeira.

Dez minutos depois, o breve despacho estava decodificado. O rezident de Sofia declarava-se ciente de que o coronel Rozhdestvenskiy era seu contato para a operação 15-8-82-666. Portanto, aquele item estava riscado, e a operação 15-8-82-666 se tornara plena. Ele colocou a mensagem em um envelope manilha, selou-o e pingou cera quente para cobri-lo.

Eles vão mesmo levar isso adiante, disse a si próprio, franzindo a testa. O que faço agora? Trabalhar normalmente e, depois, procurar uma gravata verde no metrô. E rezar para encontrá-la? Ou para não encontrá-la?

Zaitzev afastou o pensamento e chamou um mensageiro para levar o despacho em mãos ao andar superior. Pouco depois, uma cesta cheia de mensagens chegava a sua mesa para processamento.

 

 

— CARAMBA — DISSE ED FOLEY, em voz alta. A mensagem — uma bem longa — vinha de Ritter e Moore, em nome do presidente. Ele teria que tomar algumas providências para cumprir a ordem.

A base em Moscou não dispunha de uma lista de agentes por escrito, nem por codinome, e nem mesmo no cofre do escritório de Foley, que além da combinação contava com um alarme de duas fases embutido, um teclado na parte externa e outro interno com um código diferente, escolhido pelo próprio chefe. Os fuzileiros da embaixada tinham ordem para sacar as armas caso ouvissem qualquer alarme, pois o conteúdo daquele cofre eram os documentos mais sensíveis do prédio inteiro.

Mas Foley mantinha os nomes de todos os cidadãos russos que trabalhavam para a agência, bem como as respectivas especialidades, gravados na memória. Doze deles estavam em operação. Um foi perdido — exposto — na semana anterior a sua chegada a Moscou. Ninguém sabia como, embora Foley desconfiasse de que os russos tinham um agente infiltrado em Langley. Era uma heresia cogitar isso, mas a CIA tentava fazer o mesmo na KGB, portanto o inverso também acontecia, e não havia um árbitro em campo para informar o placar aos jogadores. O agente desmascarado, de codinome SOUSA, era um tenente-coronel da GRU, Inteligência Militar Russa, e ajudara a identificar vazamentos no Ministério da Defesa da Alemanha e em outras fontes ligadas à Otan, através dos quais a KGB obtivera informações político-militares de alto nível. Mas aquele cara estava morto — talvez respirando, porém morto de qualquer forma. Foley esperava que não o colocassem vivo em uma fornalha, como fizeram com outra fonte da GRU, nos anos 1950. Um método extremamente cruel, até para o padrão russo da época de Kruchev, e que certamente mantivera seu oficial sem sono por muito tempo.

Seria necessário colocar dois, talvez três agentes naquela missão. Havia um sujeito competente na KGB e outro no comitê central do partido. Talvez um deles tivesse ouvido falar de uma possível operação contra o papa.

Droga, será que eles são loucos a esse ponto?, pensou Foley. Aquilo levava sua imaginação ao extremo. De ascendência irlandesa e católico romano por educação e afiliação religiosa, Ed Foley era obrigado a empreender um esforço mental para deixar suas considerações pessoais de lado. O plano ia além do absurdo, mas ele estava lidando com pessoas incapazes de reconhecer o conceito de limite, especialmente o de uma agência estrangeira. Para eles, Deus não passava de política, e uma ameaça ao seu mundo político correspondia a Lúcifer em pessoa desafiando a ordem do céu. A comparação, no entanto, acabava ali. A situação lembrava mais São Miguel Arcanjo desafiando a ordem do inferno. Mary Pat chamava aquilo de estômago da besta — e aquela era uma besta das mais terríveis.

 

 

— PAPAI! — EXCLAMOU SALLY, acordando com o sorriso de sempre. Jack a levou até o banheiro e depois para baixo, onde os cereais a aguardavam. Ela ainda usava o macacão de coelhinho, que ia até os pés. Era amarelo e do maior tamanho, mas seus pés já o esticavam. Teria que escolher outra roupa para dormir em breve, mas aquilo era responsabilidade de Cathy.

Era a mesma rotina. Cathy dava comida ao pequeno Jack e, na metade do prato, o marido baixava o jornal e subia para se barbear. Quando ele acabava de se vestir, ela havia terminado sua tarefa e estava pronta para se limpar e se arrumar. Enquanto isso, Jack colocava o filho para arrotar e calçava meias nele para manter seus pés aquecidos. E também para lhe dar algo que pudesse tirar antes de colocar os pés na boca e conferir se eles tinham o mesmo sabor do dia anterior, habilidade recém-adquirida.

Logo a campainha tocou. Era Margaret van der Beek. Em seguida, chegou Ed Beaverton, e os pais puderam escapar para o trabalho. Na Victoria Station, Cathy se despediu do marido e seguiu até o metrô, pegando a direção Moorfields, enquanto Jack trocou de trem para chegar à Century House. O dia estava começando de verdade.

— Bom dia, Sir John.

— Olá, Bert. — Ryan parou. Bert Canderton era obviamente militar. — Em que regimento serviu?

— Era sargento-major dos Royal Green Jackets, senhor.

— Infantaria?

— Correto, senhor.

— Pensei que vestissem casacos vermelhos — comentou Ryan.

— É culpa de vocês, digo, de vocês americanos. Na sua guerra revolucionária, meu regimento registrou tantas baixas causadas por seus atiradores, que o coronel decidiu que uma túnica verde seria mais segura. É assim desde então.

— Como veio parar aqui?

— Estou esperando uma vaga de sentinela na Torre. Devo estar de casaco vermelho em um mês, pelo que me disseram.

A túnica de Canderton tinha algumas condecorações, que provavelmente não haviam sido concedidas por escovar bem os dentes. Além disso, um sargento-major de regimento era alguém, como um sargento-chefe de artilharia nos fuzileiros navais.

— Já estive lá no clube deles — disse Ryan. — Bom grupo de soldados.

— Com certeza. Tenho um amigo lá, Mick Truelove. Ele era do regimento da rainha.

— Bem, sargento-major, mantenha os caras maus longe daqui — disse Ryan, enquanto passava o cartão pela catraca eletrônica que controlava a entrada no portão.

— Pode deixar, senhor — assegurou Canderton.

Harding estava em sua mesa quando Ryan entrou. Jack pendurou o paletó no cabideiro.

— Chegou cedo, Simon?

— Seu amigo juiz Moore mandou um fax para Bas na noite passada. Mais exatamente, pouco depois da meia-noite. Está aqui.

Harding entregou a folha, e Ryan a leu rapidamente.

— O papa, hein?

— Seu presidente está interessado, e nossa primeira-ministra também — disse Harding, reacendendo o cachimbo. — Basil pediu que viéssemos cedo para analisar os dados que temos.

— Certo, mas que dados temos}

— Não muitos — admitiu Harding. — Não estou autorizado a falar com você sobre nossas fontes...

— Simon, não sou idiota. Vocês têm alguém muito perto: um confidente de um membro do Politburo ou alguém na secretaria do partido. Ele não disse nada?

Ryan havia visto análises muito interessantes que só podiam ter vindo de uma fonte no interior da grande tenda vermelha.

— Não posso confirmar sua suspeita — ressaltou Harding —, mas não, nenhuma de nossas fontes revelou nada, nem mesmo que a carta de Varsóvia tenha chegado a Moscou, embora acreditemos que esteja lá.

— Então não sabemos absolutamente nada?

Simon confirmou sobriamente.

— Correto.

— Incrível como isso é comum.

— É parte do trabalho, Jack.

— E a primeira-ministra está soltando fogo pelas ventas?

Harding nunca ouvira aquela expressão. Ele hesitou antes de responder: — Parece que sim.

— E o que devemos lhe dizer? Ela certamente não quer ouvir que não sabemos de nada.

— Não, nossos líderes políticos não gostam de ouvir esse tipo de coisa.

Nem os nossos, pensou Ryan.

— Então, qual é o nível de Basil na arte da enrolação?

— Ele é muito bom, na verdade. Nesse caso específico, pode alegar que seu pessoal também não tem muita coisa.

— Podemos perguntar a outros serviços de inteligência da Otan?

Harding fez um gesto negativo com a cabeça.

— Não. Poderia vazar para o inimigo. Primeiro, que estamos interessados. Segundo, que não sabemos o suficiente.

— Como avalia nossos amigos?

— Depende. O SDECE, serviço de espionagem francês, ocasionalmente, obtém informações úteis, mas eles não gostam de compartilhá-las. É o mesmo caso dos nossos colegas israelenses. Os alemães estão completamente comprometidos. O tal de Markus Wolf, na Alemanha Oriental, é um maldito gênio nesse negócio. Talvez seja o melhor do mundo, e está sob controle russo. Os italianos dispõem de pessoal talentoso, mas também enfrentam problemas de penetração. Sabe, o melhor serviço no continente pode ser o do Vaticano. Todavia, se Ivan tiver algo em andamento neste momento, está acobertando muito bem. Eles são bons nisso.

— Ouvi algo nesse sentido — concordou Ryan. — Quando Basil irá a Downing Street?

— Depois do almoço. Às três da tarde, pelo que sei.

— E o que poderemos oferecer a ele?

— Temo que muito pouco. O pior é que Basil pode querer que eu o acompanhe.

Ryan sorriu.

— Deve ser engraçado. Já a conhece?

— Não, mas a primeira-ministra já leu minhas análises. Bas diz que ela quer me conhecer. — Harding sentiu um arrepio. — Seria muito melhor se tivesse algo mais substancial para contar a ela.

— Bem, vamos ver se conseguimos elaborar uma análise do nível de ameaça, está bem? — Jack se sentou. — O que exatamente sabemos?

Harding lhe entregou uma pilha de documentos. Ryan recostou-se na cadeira para selecioná-los.

— Conseguiu a carta de Varsóvia através de uma fonte polonesa, certo?

Harding hesitou, mas estava claro que não podia deixar de responder. — Certo.

— Nada diretamente de Moscou? — perguntou Jack.

O colega balançou a cabeça.

— Não. Sabemos que a carta foi encaminhada a Moscou. Só isso.

— Estamos mesmo no escuro, então. Talvez seja o caso de tomar uma cerveja antes de atravessar o rio.

Harding ergueu os olhos de suas anotações.

— Claro, obrigado, Jack. Precisava justamente desse encorajamento. Permaneceram em silêncio por um instante.

— Trabalho melhor com um computador — disse Ryan. — É muito difícil conseguir um por aqui?

— Não é fácil. Eles têm que passar por testes de segurança para que se assegure que alguém de fora não conseguirá monitorar a digitação eletronicamente. Pode consultar a administração a respeito.

Mas não hoje, decidiu Ryan, em voz baixa. Ele percebera que a burocracia na Century House era no mínimo tão penosa quanto em Langley. Depois de alguns anos trabalhando no setor privado, aquilo podia se tornar uma grande distração. Certo, ele tentaria pensar em ideias para evitar que Simon ficasse em má situação. A primeira-ministra era uma dama, mas, em termos de exigência, o padre Tim, de Georgetown, ficava muito atrás.

 

 

OLEG IVANOVICH voltou do almoço no refeitório da KGB e teve que enfrentar os fatos. Logo seria obrigado a decidir o que — e como — dizer ao americano.

Se fosse um funcionário normal, teria entregado o primeiro recado ao chefe da CIA na embaixada. Tinha que existir um; um rezident americano cuja tarefa fosse espionar a União Soviética, exatamente como os russos faziam em relação ao mundo todo. A grande dúvida era se também o estavam espionando. Teria sido manipulado pela Segunda Diretoria, que possuía uma reputação capaz de aterrorizar o próprio diabo no inferno? Ou seria aquele americano exagerado, na realidade, um russo disfarçado?

Portanto, em primeiro lugar, Oleg precisava estar totalmente certo de que lidava com um contato verdadeiro. Como fazê-lo? De repente, a resposta apareceu. Claro, pensou. Era algo que a KGB nunca poderia imaginar e garantiria que estava trabalhando com alguém capacitado a fazer o que devia ser feito. Ninguém podia simular aquilo. Para comemorar, Zaitzev acendeu outro cigarro e voltou aos despachos matutinos da rezidentura de Washington.

 

 

ERA CUSTOSO GOSTAR de Tony Prince. O correspondente do New York Times em Moscou era bem visto pelos russos e, sob o ponto de vista de Ed Foley, isso comprovava uma fraqueza de caráter.

— E então, Ed, está gostando do novo trabalho? — perguntou Prince.

— Ainda estou me acostumando. Lidar com a imprensa russa é interessante. São previsíveis, mas de uma forma imprevisível.

— Como alguém pode ser imprevisivelmente previsível? — perguntou o correspondente do Times, com um sorriso intrigado.

— Bem, Tony, sabemos o que eles perguntarão, só não sabemos como. E metade deles é de espiões, ou pelo menos freelancers, caso não tenha notado.

Prince deu uma risada forçada. Ele se considerava intelectualmente superior. Foley fracassara na tentativa de ser repórter em Nova York, enquanto Prince explorara seu talento político para chegar a um dos principais postos no jornalismo americano. Tinha bons contatos no governo soviético e os cultivava de modo diligente, frequentemente se solidarizando nas críticas ao comportamento tosco e nekulturniy do regime atual em Washington, o qual eventualmente tentava explicar aos amigos russos. Chegava a destacar que não votara no maldito ator — nem seus colegas da redação em Nova York.

— Já conheceu o novo cara, o Alexandrov? — perguntou Ed.

— Não, mas um dos meus contatos o conhece. Diz que é sensato e fala como se fosse a favor de uma coexistência pacífica. Mais liberal que Suslov. Soube que ele está muito doente.

— Ouvi isso também, mas não sei o que ele tem exatamente.

— É diabético, não ficou sabendo? É por isso que os médicos de Baltimore vieram aqui para tratar de seus olhos. Retinopatia diabética — explicou Prince, pronunciando a palavra devagar para que Foley entendesse.

— Terei que perguntar o que significa isso ao médico da embaixada — disse Foley, fazendo uma anotação exagerada no bloco. — Então, esse tal de Alexandrov é mais liberal?

"Liberal" era sinônimo de "cara legal" para Prince.

— Bem, não o conheci pessoalmente, mas essa é a avaliação das minhas fontes. Eles também acreditam que ele só tem mais alguns meses de vida.

— Sério? Preciso contar isso ao embaixador.

— E o chefe do escritório?

— Você sabe quem é? Eu não — disse Foley.

Olhos rolando em reprovação.

— Ron Fielding. Caramba, todo mundo sabe disso.

— Não, não é ele — desmentiu Ed, com tanta convicção quanto seu talento teatral permitia. — Ele é o oficial consular mais antigo, mas não é espião.

Você nunca vai conseguir entender as coisas, não é?, pensou Prince, sorrindo. Seus contatos russos haviam apontado Fielding, e ele estava certo de que não mentiriam.

— Bem, é só um palpite, claro — prosseguiu o repórter.

Se soubesse que sou eu, revelaria o segredo imediatamente, não é mesmo?, pensou Foley. Seu intrometido desprezível.

— Como sabe, tenho acesso a algumas informações, mas não a essa.

— Sei quem sabe — disse Prince.

— Sim, mas não vou perguntar isso ao embaixador, Tony. Ele acabaria comigo.

— Ele é apenas uma nomeação política, Ed. Nada de especial. Esse posto devia ser dado a alguém com conhecimento diplomático. Mas o presidente não pediu meu conselho.

Graças a Deus, comentou o Station Chief para si mesmo.

— Fielding é muito próximo a ele, não? — continuou Prince.

— Um oficial consular trabalha diretamente com o embaixador, Tony, você sabe disso.

— Sim. É bem conveniente. Qual seu nível de contato com ele?

— Com o figurão? Uma vez por dia, normalmente — respondeu Foley.

— E com Fielding?

— Mais vezes. Talvez duas ou três por dia.

— Exatamente — concluiu Prince grandiosamente. — É fácil perceber.

— Você anda lendo muitos livros de James Bond — disse Foley, descartando a hipótese. — Ou talvez Matt Helm.

— Caia na real, Ed — eriçou-se Prince, porém com uma gentileza elegante.

— Se Fielding for o chefe da espionagem, quem são seus subordinados? Não faço ideia.

— Bem, esses são sempre bem acobertados — reconheceu Prince. — Não, não tenho suspeitas quanto a isso.

— Que pena. Esse é um dos jogos mais populares na embaixada: quem são os espiões?

— Bem, não posso ajudá-lo.

— De qualquer forma, não é algo que eu precise saber, acho — concluiu Foley.

Você nunca foi curioso o bastante para ser um bom repórter, pensou Prince, dando um sorriso casual e simpático. — Isso o mantém ocupado?

— Não, não é nada que exija demais. Mas, mudando de assunto, podemos fazer um acordo?

— Claro — respondeu Prince. — O que é?

— Se souber de algo interessante, poderia nos manter informados?

— Você pode ler tudo no Times, geralmente na primeira página, acima da dobra — disse o repórter, para assegurar que Foley compreendesse sua importância, bem como a de suas análises aprofundadas.

— Bem, é que, em algumas questões, o embaixador gosta de estar sempre atualizado. Ele me pediu para perguntar, em off.

— É uma questão ética, Ed.

— Se eu disser isso a Ernie, ele não ficará muito satisfeito.

— Bem, você trabalha para ele. Eu não.

— Você é um cidadão americano, não é?

— Não venha tremular a bandeira para cima de mim, certo? — respondeu Prince, cansado daquilo. — Tudo bem. Se eu descobrir que eles estão prestes a lançar armas nucleares, avisarei. Mas me parece que há um risco maior de nós fazermos algo estúpido assim do que da parte deles.

— Tony, dá um tempo.

— Essa lengalenga de "foco do mal no mundo" não é exatamente um discurso de Abe Lincoln, é?

— Quer dizer que o presidente estava errado? — perguntou Foley, imaginando a que nível podia chegar sua opinião em relação àquele idiota.

— Sei a respeito dos gulags, mas são coisa do passado. Os russos se acalmaram desde a morte de Stalin, mas nossa nova administração ainda não percebeu isso, não é?

— Olhe, Tony, sou apenas um funcionário sem importância aqui. O embaixador me pediu que lhe transmitisse seu pedido. Posso considerar sua resposta um "não"?

— Correto.

— Bem, não espere um cartão de Natal de Ernie Fuller.

— Ed, meu compromisso é com o New York Times e com meus leitores. Ponto.

— Tudo bem, ótimo. Eu tinha que perguntar — disse Foley, na defensiva. Ele não esperava nada melhor daquele sujeito, mas havia sugerido aquilo ao embaixador para sentir a postura de Prince, e Fuller aprovara a iniciativa.

— Entendo. — Prince olhou para o relógio. — Ei, tenho uma reunião marcada no prédio do comitê central do Partido Comunista.

— Algo que eu deva saber?

— Como já disse, você pode ler no Times. Eles enviam o Early Bird por fax, de Washington, certo?

— É, acaba chegando aqui.

— Então, depois de amanhã, já pode ler a respeito — sugeriu Prince, levantando-se para ir embora. — Diga a Ernie.

— Farei isso — disse Foley, esticando o braço para um cumprimento. Ele decidiu acompanhar Prince até o elevador. Na volta, entraria no banheiro masculino para lavar as mãos. Em seguida, iria ao escritório do embaixador.

— Oi, Ed. Encontrou o tal de Prince?

Foley confirmou com a cabeça.

— Acabei de me livrar dele.

— Ele mordeu sua isca?

— Não. Cuspiu de volta.

Fuller sorriu com malícia.

— O que eu lhe disse? Havia repórteres patriotas quando eu tinha sua idade, mas a maioria se desligou nos últimos anos.

— Não fiquei surpreso. Quando Tony era um iniciante em Nova York, não gostava muito dos policiais, mas conseguia fazê-los passar informações. É um sacana convincente quando quer ser.

— Ele tentou enrolá-lo?

— Não, senhor. Não sou suficientemente importante para isso.

— O que acha do pedido de Washington em relação ao papa? — perguntou Fuller, mudando de assunto.

— Terei que colocar algumas pessoas para analisar isso.

— Sei disso, Ed. Não quero saber o que exatamente está fazendo. Se descobrir algo, pode me contar?

— Vai depender — respondeu Foley, querendo dizer provavelmente não.

Fuller aceitou o fato.

— Certo. Mais alguma coisa no ar?

— Prince tem algo. Deve sair nos jornais depois de amanhã. Ele foi para o comitê central. Pelo menos foi o que me disse. Confirmou que Alexandrov substituirá Mikhail Suslov quando Mike Vermelho deixar o cargo. Se estão lhe dizendo, deve ser oficial. Creio que podemos acreditar. Tony tem bons contatos entre os políticos, e a informação combina com o que nossos outros amigos nos contaram sobre Suslov.

— Nunca encontrei esse cara. Como ele é?

— É um dos últimos que acreditam sinceramente. Alexandrov é outro. Marx é o único deus verdadeiro, e Lenin, seu profeta. E o sistema político e econômico deles realmente funciona.

— Sério? Há pessoas que nunca aprendem.

— Isso. Pode ter certeza. Ainda existem alguns, mas Leonid Ilyich não é um deles, nem seu herdeiro, Yuriy Vladimirovich. Mas Alexandrov é aliado de Andropov. Haverá uma reunião do Politburo hoje mais tarde.

— Quando saberemos o que discutiram?

— Em alguns dias, provavelmente.

Mas como descobriremos você não precisa saber, omitiu Foley.

Ele não precisava dizer. Ernie Fuller conhecia as regras do jogo. Os embaixadores dos Estados Unidos em todos os países recebiam informações detalhadas sobre o posto antes de assumir. Para chegar a Moscou, era necessário passar voluntariamente por lavagens cerebrais em Foggy Bottom e Langley. Na verdade, o embaixador em Moscou era o diretor de inteligência na União Soviética, e o tio Ernie era muito bom, na opinião de Foley.

— Certo, mantenha-me a par, se puder.

— Farei isso, senhor — garantiu o Station Chief.


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COLEGIALIDADE

 

ANDROPOV CHEGOU ao Kremlin às 12h45 para a reunião das 13h. O motorista atravessou a grandiosa estrutura de tijolos do portão Spasskiy, passando pelos postos de controle e pelas saudações dos soldados do cerimonial da Divisão de Guarda Tamanskiy, estacionada nos arredores de Moscou e usada principalmente em paradas e outras tarefas que exigiam boa apresentação. Os soldados prestavam continência elegantemente, mas o gesto não era notado pelas pessoas no interior do carro. Foram mais 150 metros até o destino, onde outro soldado abriu a porta. Andropov reparou na saudação e assentiu distraidamente para que o sargento graduado percebesse que havia sido visto. Depois, entrou no prédio de cor creme. Em vez de usar as escadas de pedra, Andropov virou à direita para subir de elevador até o segundo andar, seguido pelo seu assistente, o coronel Rozhdestvenskiy, que vivia a mais interessante e iminentemente intimidante experiência de seu serviço oficial desde que se juntara à KGB.

Havia ainda mais segurança no andar superior: oficiais uniformizados do Exército Vermelho com armas nos coldres para o caso de problemas. Mas não haveria obstáculos à sua ascensão ao secretariado geral, pensou Andropov. Não seria um golpe palaciano.

Ele seria eleito pelos pares políticos da maneira habitual com que a União Soviética realizava a transição do poder — de um modo desajeitado e impróprio, porém previsível. Aquele com maior capital político chefiaria o conselho de iguais, porque confiariam nele não para governar pela força de vontade, mas pelo consenso colegial. Ninguém desejava outro Stalin, ou mesmo outro Kruchev, que poderia conduzi-los a aventuras. Todos haviam aprendido, com a história, que apostar implicava a possibilidade de perder, e nenhum deles chegara tão longe para perder qualquer coisa. Eram os líderes de uma nação de jogadores de xadrez, para os quais a vitória era determinada por manobras habilidosas, pensadas paciente e progressivamente ao longo de horas e cuja conclusão pareceria tão predeterminada quanto o pôr-do-sol.

Aquele era um dos problemas atuais, pensou Andropov, ocupando seu lugar, ao lado do ministro da Defesa, Ustinov. Os dois sentaram-se perto da cabeceira da mesa, nas cadeiras reservadas aos membros do Conselho de Defesa ou Soviet Orborony, formado pelos cinco oficiais mais antigos do governo soviético, incluído o secretário de Assuntos Ideológicos, Suslov. Ustinov levantou os olhos dos relatórios.

— Yuriy — saudou o ministro.

— Bom dia, Dmitriy.

Andropov havia estabelecido uma relação cômoda com o marechal da União Soviética.

Ele nunca obstruíra seus pedidos de financiamento para as inchadas e desorientadas forças militares soviéticas, que se debatiam no Afeganistão como baleias encalhadas.

Todos achavam que acabariam vencendo no final. Afinal, o Exército Vermelho nunca fracassara... a menos que se lembrassem do primeiro ataque de Lenin à Polônia, em 1919, que terminou em uma derrota fragorosa. Não, preferiam lembrar da vitória sobre Hitler, depois que os alemães chegaram a ter o Kremlin à vista, detendo-se apenas sob o ataque do mais confiável aliado russo da história, o general Inverno. Andropov não era um devoto do exército russo, mas este continuava sendo uma proteção para o resto do Politburo, por garantir que o país fizesse aquilo que lhe ordenavam. Isso não acontecia por amor, mas porque o Exército Vermelho possuía armas em grande número. O mesmo valia para a KGB e para o Ministério do Interior, que funcionavam como um controle do Exército Vermelho — não fazia sentido deixar que tivessem ideias. Para garantir, a KGB dispunha da Terceira Diretoria, cuja tarefa era fiscalizar todas as companhias armadas do Exército Vermelho. Em outros países, denominava-se verificação e controle. Ali era o controle do terror.

Leonid Ilyich Brejnev foi o último a entrar, caminhando como o camponês envelhecido que se tornara, a pele flácida no seu rosto outrora viril. Estava perto dos oitenta anos, um marco que, por sua aparência, talvez alcançasse, porém dificilmente superaria. Era uma notícia ao mesmo tempo positiva e negativa. Não havia como adivinhar os pensamentos que percorriam o interior de seu cérebro senil. Fora um homem de grande poder, Andropov lembrava-se com clareza. Um homem vigoroso que gostava de caminhar pelas florestas para matar alces e até ursos — o poderoso caçador de animais selvagens. Agora era diferente. Não atirava em nada havia anos — exceto, indiretamente, em pessoas. Isso, contudo, não fizera Leonid Ilyich amolecer com a idade. Pelo contrário. Os olhos castanhos permaneciam astutos, à procura de traidores, e muitas vezes os encontravam onde não existia nada. Sob o comando de Stalin, isso frequentemente representava uma sentença de morte. Mas não agora. Agora, o castigo era ser arruinado, destituído do poder e relegado a um cargo provincial, onde o destino era a morte pelo tédio.

— Boa tarde, camaradas — disse o secretário-geral, com toda a cortesia que a voz sussurrante permitia.

Pelo menos, não havia mais a bajulação ostensiva, com os aduladores comunistas se digladiando para agradar o imperador marxista. Perdia-se facilmente metade do encontro com aquela tolice, e Andropov tinha assuntos importantes a examinar.

Leonid Ilyich já havia recebido um informe preliminar. Depois de tomar um gole de seu chá digestivo, o secretário-geral virou-se para o diretor da KGB.

— Yuriy Vladimirovich, há algo que queira discutir conosco?

— Obrigado, camarada secretário-geral. Camaradas — começou ele —, há um fato novo que merece nossa atenção.

Ele fez um sinal para o coronel Rozhdestvenskiy, que rapidamente percorreu a mesa, distribuindo cópias da carta de Varsóvia.

— O que estão vendo é uma carta enviada a Varsóvia, na semana passada, pelo papa de Roma.

Cada presente tinha uma fotocópia do original — alguns dominavam o polonês — e uma tradução exata para a forma culta do idioma russo, acompanhada de notas de rodapé.

— Sinto que esta é uma ameaça política em potencial contra nós.

— Eu já li essa carta — disse Alexandrov, de sua distante cadeira de "candidato".

Em respeito à antiguidade do gravemente doente Mikhail Suslov, seu lugar, à esquerda de Brejnev e ao lado de Andropov, estava vazio, embora tivesse o mesmo conjunto de documentos dos outros. Talvez houvesse lido os papéis no leito de morte e estivesse pronto para fazer um derradeiro discurso inflamado da sepultura que o esperava na muralha do Kremlin.

— Isto é ultrajante — disse imediatamente o marechal Ustinov. Ele também passava dos setenta. — Quem esse padre pensa que é?

— Bem, ele é polonês — lembrou Andropov aos colegas. — E acredita que tem uma espécie de dever de garantir proteção política a seus compatriotas.

— Proteção do quê? — questionou o ministro do Interior. — A ameaça à Polônia vem de seus próprios contrarrevolucionários.

— E o governo polonês carece da coragem para enfrentá-los. Eu lhes disse no ano passado que devíamos invadi-la — lembrou o primeiro-secretário do partido.

— E se eles resistirem? — perguntou o ministro da Agricultura, do extremo oposto da mesa.

— Podem estar certos disso — observou o ministro das Relações Exteriores. — Ao menos politicamente, eles resistirão.

— Dmitriy Fedorovich?

A pergunta de Alexandrov dirigia-se ao marechal Ustinov, que vestia seu uniforme militar completo, com pelo menos trinta centímetros de condecorações e duas medalhas douradas de Herói da União Soviética. Recebera ambas por bravura política, e não no campo de batalha, mas era um dos mais argutos na sala, tendo ganhado distinções como Comissário de Armamentos durante a Grande Guerra Patriótica e por ajudar a conduzir a União Soviética à era espacial. Embora previsível, sua opinião era respeitada pela sagacidade.

— A questão, camaradas, é saber se os poloneses se engajariam em uma resistência armada. Isso não seria uma ameaça, do ponto de vista militar, mas representaria um grande embaraço político, tanto aqui quanto no exterior. Quero dizer, eles não conseguiriam deter o Exército Vermelho no campo de batalha, porém, se tentassem, a repercussão política teria gravidade. Foi por isso que apoiei nossa decisão, no ano passado, de exercer pressão política sobre Varsóvia. E, como se lembram, ela foi bem-sucedida.

Aos 74 anos, Dmitriy Fedorovich aprendera a agir com cautela, pelo menos no nível da política internacional. A preocupação implícita dizia respeito ao efeito que tal resistência provocaria nos Estados Unidos da América, que gostavam de enfiar o nariz onde não eram chamados.

— Bem, isso pode incitar uma maior inquietação política na Polônia. É o que meus assessores dizem — informou Andropov, provocando um desconforto na sala.

— Qual é a gravidade disso, Yuriy Vladimirovich? A que nível de seriedade pode chegar?

Era a primeira vez que Brejnev falava, debaixo das grossas sobrancelhas.

— A Polônia continua instável devido aos elementos contrarrevolucionários de sua sociedade. Os trabalhadores, em particular, estão inquietos. Nossas fontes entre os conspiradores do Solidariedade dizem que o clima ainda é quente. O problema em relação ao papa é que, se ele cumprir a ameaça e for à Polônia, o povo polonês terá um ponto de agrupamento. E, se um número considerável de pessoas se envolver, o país poderá até tentar mudar sua forma de governo — disse o diretor da KGB, com cautela.

— Isso é inaceitável — comentou Leonid Ilyich, em tom moderado. — Naquela mesa, a voz alta significava apenas um homem liberando seu nervosismo; a voz baixa era muito mais perigosa. — Se a Polônia cair, a Alemanha também cairá.

E, depois, todo o Pacto de Varsóvia, o que deixaria a União Soviética sem sua zona de resguardo em relação ao Ocidente. A Otan era forte e se tornaria mais ainda à medida que o novo reforço da defesa americana começasse a ter resultados. Eles já haviam sido informados do incômodo tema. Os primeiros carros de combate novos haviam chegado às unidades de frente, uma medida preparatória para seu envio à Alemanha Ocidental. O mesmo valia para os aviões. O mais assustador era a forte ampliação do regime de treinamento dos soldados americanos. Era como se estivessem realmente se preparando para um ataque em direção ao leste.

A queda da Polônia e da Alemanha representaria um encurtamento de mais de mil quilômetros da distância até o território soviético. Nenhum dos homens naquela mesa se esquecera da última vez que os alemães entraram na União Soviética. Apesar de todas as afirmações solenes de que a Otan não passava de uma aliança de defesa com objetivo único de impedir a chegada do Exército Vermelho aos Champs Élysées, para Moscou, aquele e todos os demais pactos americanos pareciam um enorme laço feito sob medida para seu pescoço coletivo. Todos já haviam pensado longamente naquilo e não precisavam acrescentar a instabilidade política à sua lista de problemas. Os comunistas — embora nem sempre tão fervorosos quanto Suslov e seu herdeiro Alexandrov — temiam o afastamento das pessoas da "verdadeira fé", que era a fonte de seu confortável poder pessoal. Eles chegaram ao poder por intermédio de uma revolta camponesa que derrubara a dinastia Romanov — ao menos era o que diziam, a despeito dos relatos da história — e não se iludiam quanto às consequências de uma revolta em seu caso.

Brejnev ajeitou-se na cadeira.

— Portanto, esse padre polonês é uma ameaça.

— Sim, camaradas, ele é mesmo uma ameaça — disse Andropov. — A carta é uma investida genuína e sincera contra a estabilidade política da Polônia e de todo o Pacto de Varsóvia. A Igreja Católica mantém grande poderio político em toda a Europa, inclusive em nossos fraternais aliados socialistas. A renúncia ao papado e a volta à terra natal seriam uma extraordinária declaração política.

— Josef Vissarionovich Stalin perguntou uma vez quantas divisões o papa comandava. A resposta, obviamente, é nenhuma, mas não podemos menosprezar seu poder. Suponho que possamos tentar contatos diplomáticos para dissuadi-lo de seguir esse caminho...

— Uma completa perda de tempo — interveio o ministro das Relações Exteriores imediatamente. — Mantivemos contatos diplomáticos ocasionais no próprio Vaticano. Eles nos ouvem educadamente, falam com aparente sensatez e depois fazem o que têm vontade. Não, não podemos influenciá-los nem com ameaças diretas à igreja. Eles veem ameaças como simples desafios.

O comentário colocou a questão de maneira clara sobre a mesa. Andropov era grato ao ministro das Relações Exteriores, que também estava a seu lado na sucessão. Ele se perguntava, sem ansiedade, se Brejnev sabia ou mesmo se importava com o que aconteceria depois de sua morte. Logicamente se importaria com o futuro e a proteção de seus filhos, mas isso seria facilmente arranjado. Seria simples conseguir cargos de baixo escalão no partido e não haveria futuros casamentos que exigissem a porcelana e a louça do Hermitage.

— Yuriy Vladimirovich, o que a KGB pode fazer em relação a essa ameaça? — perguntou Brejnev em seguida.

É tão fácil lidar com ele, pensou Andropov por um segundo, agradecendo a oportunidade.

— Há a possibilidade de eliminar a ameaça eliminando o homem por trás dela — respondeu o diretor, com uma voz equilibrada e desprovida de emoção.

— Matá-lo? — perguntou Ustinov.

— Exato, Dmitriy.

— Que risco isso envolve? — perguntou o ministro das Relações Exteriores.

Os diplomatas sempre se preocupavam com ações daquele tipo.

— Não podemos eliminá-lo por completo, mas podemos controlá-lo. Meu pessoal elaborou um plano operacional que prevê um ataque ao papa em uma de suas aparições públicas. Trouxe meu assessor, coronel Rozhdestvenskiy, para nos explicar. Se me permitem, camaradas. — Todos assentiram. — Aleksey Nikolaievich?

— Camaradas. — O coronel se levantou e se dirigiu ao leitoril, tentando controlar as pernas, que tremiam. — A operação não tem nome e permanecerá assim por razões de segurança. O papa aparece em público toda quarta-feira à tarde. Geralmente, desfila pela praça de São Pedro em um veículo motorizado, que não oferece qualquer proteção contra ataques e chega a três ou quatro metros da multidão. — Rozhdestvenskiy escolhera as palavras com cuidado. Todos naquela mesa conheciam os assuntos e a terminologia bíblica. Não se crescia, nem mesmo ali, sem adquirir conhecimento sobre o cristianismo, ainda que exclusivamente para desprezar tudo a seu respeito. — A questão, então, é como colocar um homem com uma pistola entre os espectadores da frente, de forma que possa ficar perto o suficiente para dar um tiro potencialmente bem-sucedido.

— Potencialmente? — perguntou o ministro do Interior, com dureza.

Rozhdestvenskiy esforçou-se para não se intimidar.

— Camarada ministro, raramente podemos agir com total certeza. Nem um atirador altamente preparado pode garantir um disparo perfeito contra um alvo em movimento, e as circunstâncias táticas nesse caso não permitirão que faça pontaria com cuidado. O assassino terá de sacar a arma rapidamente e atirar. Vai conseguir disparar duas ou três vezes antes que a multidão invista contra ele. Nesse momento, um segundo oficial o mataria, por trás, com uma pistola com silenciador. E foge. Isso não deixa ninguém para a polícia italiana interrogar. Nossos aliados socialistas da Bulgária vão escolher o assassino, levá-lo ao local e depois o eliminam.

— Como nosso amigo búlgaro escaparia nessas circunstâncias? — perguntou Brejnev.

Andropov percebeu que, devido ao seu conhecimento sobre armas de fogo, o secretário-geral deixaria as questões técnicas de lado.

— É provável que a multidão volte toda a atenção ao assassino e não perceba o tiro dado pelo oficial de inteligência. Será silencioso e haverá muito barulho no momento. Depois, ele simplesmente se afasta e foge — explicou Rozhdestvenskiy. — O oficial que desejamos tem muita experiência em operações desse tipo.

— Ele tem um nome? — perguntou Alexandrov.

— Sim, camarada. Posso fornecê-lo, se for de seu desejo, mas, por motivos de segurança...

— Correto, coronel — interferiu Ustinov. — Não precisamos saber o nome dele, precisamos, camaradas?

As respostas foram negativas. Para aqueles homens, o segredo era algo tão natural quanto urinar.

— Não vamos usar um atirador? — perguntou o ministro do Interior.

— Isso poderia nos expor. Os prédios próximos à praça são vigiados pela força de segurança do Vaticano, por mercenários suíços e...

— Qual é o nível desses milicianos suíços? — perguntou outra voz.

— Que nível precisam ter para avistar um homem com um fuzil e dar o alarme? — perguntou Rozhdestvenskiy. — Camaradas, quando se planeja uma operação como essa, tentamos manter as variáveis sob controle rigoroso. A complexidade é um inimigo perigoso em qualquer ação desse gênero. Da forma como foi planejada, tudo que precisamos fazer é infiltrar dois homens em uma multidão de milhares e possibilitar que cheguem perto. Depois, é só uma questão de dar o tiro. Uma pistola é fácil de se esconder em roupas largas. As pessoas não são selecionadas ou revistadas. Camaradas, esse plano é o melhor que podemos elaborar. A não ser que desejem enviar um pelotão de soldados das Spetsnaz para invadir os aposentos do Vaticano. Isso obviamente funcionaria, mas seria impossível ocultar a origem da operação. Se a missão for levada adiante, dependerá de apenas duas pessoas. E só uma, que provavelmente escapará sem problemas, sobreviverá.

— Qual é o grau de confiabilidade dos participantes? — perguntou o diretor da comissão de controle do partido.

— O oficial búlgaro já matou oito pessoas e mantém bons contatos com o crime organizado turco, de onde escolherá o assassino.

— Um turco? — perguntou o homem do partido.

— Sim, um muçulmano — confirmou Andropov. — Se a ação puder ser atribuída a um turco seguidor de Maomé, melhor para nós. Certo?

— Não seria prejudicial aos nossos propósitos — admitiu o ministro das Relações Exteriores. — Na verdade, pode fazer com que o Islã pareça mais bárbaro para o Ocidente. Isso levaria os Estados Unidos a ampliar o apoio a Israel, o que desagradaria os países muçulmanos dos quais eles compram petróleo. Há um toque de elegância nisso tudo que me agrada, Yuriy.

— Então a complexidade da operação está limitada às consequências — comentou Ustinov — e não à realização em si.

— Correto, Dmitriy — respondeu Andropov.

— Quais são as chances de essa operação ser relacionada a nós? — perguntou o secretário do partido na Ucrânia.

— Se deixarmos para trás somente um turco morto, será muito difícil estabelecer conexões — respondeu o diretor da KGB. — A operação não tem nome. O número de pessoas envolvidas é inferior a vinte, e a maioria está bem aqui, nesta sala. Não haverá registros por escrito. Camaradas, a segurança da operação será absoluta. Devo insistir em que não se comente o assunto com pessoa alguma. Nem esposas, secretários particulares ou assessores políticos. Assim, garantimos que não haverá vazamento. Devo lembrar que os serviços de inteligência do Ocidente estão sempre tentando descobrir nossos segredos. Neste caso, é inadmissível que aconteça.

— Devia ter limitado essa discussão ao Conselho de Defesa — pensou Brejnev em voz alta.

— Leonid Ilyich, pensei nessa hipótese — respondeu Andropov. — Mas as implicações políticas desse assunto exigem a atenção de todo o Politburo.

— Sim, percebo — concordou o secretário-geral. O que ele não notou foi que Andropov escolhera cuidadosamente aquela trilha para que não fosse visto como um aventureiro pelas pessoas que um dia o elegeriam para a mesma cadeira. — Muito bem, Yuriy. Não faço objeções — concluiu Brejnev, pensativo.

— Continuo achando algo muito perigoso para se considerar — disse o secretário da URSS. — Devo dizer que não estou completamente satisfeito com esse plano.

— Gregoriy Vasilievich — disse o secretário da Ucrânia —, se o governo da Polônia cair, haverá consequências que não julgo positivas. E você deveria pensar da mesma forma. Se esse polonês voltar para casa, os resultados podem ser desastrosos para todos nós.

— Entendo isso, mas o assassinato de um chefe de Estado não deve ser encarado levianamente. Acho que devemos avisá-lo antes. Há meios para chamar sua atenção.

O chanceler mexeu a cabeça em desaprovação.

— Já disse: é perda de tempo. Homens como ele não entendem o que representa a morte. Poderíamos ameaçar os membros de sua igreja no Pacto de Varsóvia, porém isso provavelmente teria efeito contrário ao que desejamos. Traria os piores resultados possíveis: as consequências de atacar a Igreja Romana, sem a opção de eliminar esse religioso inconveniente. Não. — Ele voltou a balançar a cabeça. — Se for para ser feito, deve ser feito da maneira apropriada, com decisão, e rapidamente. Yuriy Vladimirovich, quanto tempo levará para completar a missão?

— Coronel Rozhdestvenskiy? — perguntou o diretor da KGB. Todos se viraram para o coronel.

Ele fez o máximo para manter o tom de voz. Era um assunto muito delicado para um mero coronel. Agora, a operação inteira estava sob sua responsabilidade, uma possibilidade que, por algum motivo, nunca vislumbrara. Mas, se quisesse receber estrelas de general, teria que assumir a incumbência.

— Camarada ministro, estimo de quatro a seis semanas, se o senhor autorizar a operação hoje e notificar o Politburo búlgaro. Como usaremos um de seus agentes, a autorização é necessária.

— Andrei Andreievich? — interpelou Brejnev. — Eles serão cooperativos em Sofia?

O chanceler pensou por um momento antes de responder.

— Depende do que e de como pedirmos. Se conhecerem o propósito da operação, podem nos atrasar um pouco.

— Podemos pedir sua cooperação sem informar o objetivo? — perguntou Ustinov.

— Sim, creio que sim. Podemos simplesmente oferecer uma centena de tanques novos ou alguns caças, como um gesto de solidariedade socialista — sugeriu o ministro das Relações Exteriores.

— Seja generoso — concordou Brejnev. — Estou certo de que há algum pedido em andamento no Ministério da Defesa, não, Dmitriy?

— Sempre! — confirmou o marechal Ustinov. — É só o que pedem: mais tanques e mais MiGs!

— Então coloque os tanques em um trem e envie-os para Sofia. Camaradas, precisamos realizar uma votação — disse o secretário-geral ao Politburo.

Os onze membros votantes sentiram-se um pouco pressionados. Os sete membros "candidatos", sem direito a voto, apenas observaram e consentiram.

Como de hábito, a decisão foi unânime. Nenhum dos presentes disse não, embora alguns tivessem dúvidas dissimuladas em seu silêncio. Naquela sala, ninguém desejava se afastar em excesso do desejo kollectiv. O poder ali era tão restrito quanto em qualquer lugar do mundo, um fato sobre o qual eles raramente refletiam e que nunca tentavam mudar.

— Muito bem. — Brejnev virou-se para Andropov. — A KGB está autorizada a realizar a operação. Que Deus tenha piedade de sua alma polonesa — acrescentou, com um toque de leviandade camponesa. — E, então, o que temos agora?

— Camarada, se me permite... — disse Andropov, recebendo consentimento. — Nosso irmão e amigo Mikhail Andreievich Suslov em breve deixará este mundo, depois de prestar um longo e devotado serviço ao partido que tanto amamos. Sua cadeira já se encontra vazia devido à doença e precisa ser ocupada. Proponho o nome de Mikhail Yevgeniyevich Alexandrov como o próximo secretário de Assuntos Ideológicos, com pleno direito a voto no Politburo.

Alexandrov demonstrou até certo embaraço. Ele levantou as mãos e falou, aparentando extrema sinceridade.

— Camaradas, o meu... o nosso... amigo ainda está vivo. Não posso ocupar seu lugar enquanto ele viver.

— Admiro que coloque as coisas desse modo, Misha — disse o secretário-geral, usando a forma carinhosa do nome de batismo do colega. — Mas Mikhail Andreievich está gravemente doente e não viverá por muito tempo. Sugiro que apresentemos a moção de Yuriy. É claro que a indicação deverá ser ratificada por todo o comitê central.

Todos sabiam, porém, que aquilo era simples formalidade. Brejnev acabara de dar sua aprovação à promoção de Alexandrov, e isso era tudo de que ele precisava.

— Obrigado, camarada secretário-geral.

Agora Alexandrov podia olhar para a cadeira vazia à esquerda de Brejnev sabendo que, em poucas semanas, seria oficialmente sua. Ele choraria como todos os outros quando Suslov morresse — e as lágrimas seriam igualmente geladas. Mikhail Andreievich até entenderia. Seu maior problema, naquele momento, era encarar a morte, o maior mistério da vida, e imaginar o que havia do outro lado. Era algo que todos à mesa teriam de enfrentar, mas, para estes, a distância permitia que fosse ignorado... por enquanto.

Para Yuriy Andropov, aquela era uma das diferenças entre eles e o papa, que em breve morreria em suas mãos.

O encontro acabou pouco após as quatro da tarde. Como sempre, os membros despediram-se com palavras amigáveis e apertos de mão, antes de seguir caminhos distintos. Andropov, acompanhado pelo coronel Rozhdestvenskiy, só saiu no final.

Logo passaria a ser sempre o último a deixar o recinto — uma prerrogativa do secretário-geral.

— Camarada diretor, um momento, se me permite — disse Rozhdestvenskiy, dirigindo-se ao banheiro masculino.

Ele voltou um minuto e meio depois, com passos mais relaxados.

— Você se saiu bem, Aleksey — disse Andropov, voltando a andar. O diretor pegou a escada em vez do elevador. — Então, o que achou?

— O camarada Brejnev está mais frágil do que eu esperava.

— Sim, está. Não adiantou muito parar de fumar. — Andropov procurou o maço de Marlboro no bolso. Evitava-se fumar nas reuniões do Politburo, em respeito a Leonid Ilyich. Por isso, o diretor da KGB precisava de um cigarro imediatamente. — O que mais?

— Foi bem colegial. Esperava mais discordâncias, mais argumentação. As controvérsias entre os espiões no número 2 da Praça Dzerzhinskiy eram muito mais animadas, principalmente quando havia operações em questão.

— São todos jogadores muito cautelosos, Aleksey. Aqueles que têm tanto poder na ponta dos dedos sempre agem dessa forma. É o que devem fazer. Mas, frequentemente, acabam deixando de agir por medo do que é novo e diferente.

Andropov julgava que seu país precisava de coisas novas e diferentes e tentava antever que dificuldade teria para implementá-las.

— Mas, camarada diretor, nossa operação...

— Esse caso é diferente, coronel. Quando se sentem ameaçados, eles se tornam capazes de agir. Eles temem o papa. Provavelmente com razão. Não concorda?

— Camarada diretor, sou apenas um coronel. Limito-me a servir. Não tomo decisões.

— Mantenha-se assim, Aleksey. É mais seguro.

Andropov entrou no carro, sentou-se e logo se perdeu em seus pensamentos.

 

 

UMA HORA MAIS TARDE, Zaitzev encerrava o dia, à espera do momento de ir embora.

Foi quando o coronel Rozhdestvenskiy apareceu, sem dar aviso.

— Major, preciso que envie isso a Sofia imediatamente. — Fez uma pausa. — Mais alguém vê essas mensagens?

— Não, camarada coronel. A identificação da mensagem indica que é algo que deve ser encaminhado exclusivamente a mim. Está no livro de regras.

— Bom. Que continue assim.

Ele entregou o formulário.

— Às ordens, camarada coronel.

Zaitzev observou-o saindo. O tempo que ainda tinha mal daria para enviar a mensagem.

 

Confidencial Imediato e Urgente

De: Escritório do Diretor, Centro Moscou

para: rezident em Sofia

referência: identificação operacional 15-8-82-666

Operação aprovada. Próximo passo intermediar aprovação do politburo búlgaro. Deve acontecer em dez dias ou menos.

Continue planejando a operação.

 

Zaitzev acompanhou o envio pelo telégrafo e depois passou a cópia a um mensageiro para ser entregue em mãos no andar superior. Finalmente, conseguiu deixar o escritório, andando um pouco mais rápido que de costume. Na rua, buscou o maço de cigarros, para fumar um Trud antes de descer de escada rolante até a plataforma do metrô. Lá, verificou o relógio de teto. Havia se adiantado e, por isso, deixou o trem partir, fingindo ter se atrapalhado com o maço, para o caso de alguém estar observando.

Na verdade, se alguém o estivesse observando, ele já seria um homem morto. A dedução fez suas mãos tremerem, porém era tarde demais para aquilo. O trem seguinte saiu do túnel na hora exata, e ele entrou no vagão, misturando-se a cerca de 15 outros trabalhadores... E lá estava ele. Lendo o jornal, vestindo uma capa de chuva desabotoada, a mão direita na barra cromada superior.

Zaitzev afastou-se. Na mão direita, estava o segundo bilhete, que acabara de tirar do maço de cigarros. Ele percebeu, surpreso, que o homem usava uma gravata de um verde intenso, mantida no lugar por um prendedor dourado. Terno marrom, camisa branca que parecia cara e o rosto ocupado com o jornal. O homem não olhava ao redor. Zaitzev se aproximou.

 

 

UMA DAS LIÇÕES QUE ED FOLEY aprendera na Fazenda tinha sido como aperfeiçoar a visão periférica. Com treinamento e prática, os olhos podiam alcançar um campo de visão maior do que os leigos imaginavam. Nos exercícios da CIA, percorria uma rua, observando os números das casas sem virar a cabeça. Era como andar de bicicleta: depois de aprender, a habilidade sempre estaria lá, desde que se concentrasse quando preciso. Assim, percebeu que alguém se movia lentamente para perto de si. Homem branco, l,75m, porte médio, olhos e cabelos castanhos, roupas de cor neutra, precisando ir ao barbeiro. Não observara o rosto com clareza suficiente para se lembrar dele ou identificá-lo entre outros. Notara apenas que os traços eram eslavos. Sem expressão. E os olhos, sem dúvida, apontavam em sua direção. Foley controlou a respiração, mas sua frequência cardíaca se elevou em alguns batimentos.

Vamos lá, Ivan. Estou usando a maldita gravata, como você pediu. Ele havia entrado na parada certa. O quartel-general da KGB ficava a apenas um bloco da escada rolante. O cara só podia ser um espião, e não um chamariz. Se fosse um agente da Segunda Diretoria, a encenação seria diferente. Aquilo era muito óbvio, muito amador, não seguia o estilo da KGB. Eles escolheriam outra estação do metrô.

Esse cara é mesmo real, disse Foley a si mesmo. Forçou-se a manter a paciência, o que não era fácil, mesmo para um agente de campo experiente.

Respirou fundo de modo imperceptível e aguardou, orientando as terminações nervosas de sua pele a relatar a menor mudança no peso da capa sobre seus ombros...

 

 

ZAITZEV PERCORREU O VAGÃO com os olhos da maneira mais casual possível.

Ninguém o observava. Sequer havia alguém virado em sua direção. Deixou a mão direita escorregar para dentro do bolso aberto. Rápido, mas não rápido demais. Depois, tirou-a.

 

 

ISSO!, PENSOU FOLEY, com o coração pulando duas ou três batidas. OK, Ivan, qual é a mensagem desta vez?

Precisava conservar a paciência. Não havia sentido em causar a morte daquele homem.

Se fosse realmente do MERCÚRIO russo, não tinha como saber a importância daquilo.

Era como o primeiro belisco em um barco de pesca no mar aberto: seria um marlim, um tubarão ou uma bota perdida? Se fosse um marlim azul, qual o tamanho? Mas ele ainda não podia sequer puxar para ver o que havia no anzol. Não, isso viria mais tarde, se viesse. A fase de recrutamento em operações de campo — transformar um inocente cidadão soviético em agente, um trunfo para busca de informações para a CIA, um espião — era mais difícil do que ir a um baile da juventude católica e acabar a noite na cama. O maior segredo era não engravidar a garota — ou provocar a morte do agente.

Não, o jogo funcionava assim: primeiro, uma dança rápida, depois uma mais demorada, depois o primeiro beijo e, finalmente, o primeiro amasso. E, depois, se desse sorte, poderia desabotoar a blusa... e depois...

O devaneio parou no mesmo instante que o trem. Foley soltou a barra superior e olhou ao redor...

E lá estava ele, olhando em sua direção. O rosto foi instantaneamente arquivado no álbum de fotos.

Esse é um comportamento perigoso, parceiro. Pode levá-lo à morte. Nunca olhe diretamente para seu contato em público, pensou Foley. Seu olhar passou diretamente por ele. O rosto não tinha expressão no momento em que cruzou com o homem, depois de pegar propositadamente o caminho mais longo.

 

 

ZAITZEV FICOU IMPRESSIONADO com o americano. Ele havia olhado para o novo contato russo, mas os olhos não revelaram nada, nem mesmo se fixaram nele, apenas planaram em direção ao fim do vagão. E, com rapidez semelhante, ele se afastara.

Tomara que você seja o que espero, pensou Oleg Ivanovich.

 

 

DEPOIS DE PERCORRER CINQUENTA metros, Foley ainda evitava mexer no bolso.

Estava certo de que uma mão passara ali. Tinha sentido. E Ivan Sei-Lá-Quem não o fizera atrás de uns trocados.

Foley passou pelo guarda do portão, entrou no prédio e pegou o elevador. Colocou a chave na tranca e a porta se abriu. Só depois de ouvi-la bater enfiou a mão no bolso.

Mary Pat estava lá, observando seu rosto, e reconheceu o sorriso de satisfação e curiosidade.

Ed pegou o bilhete. Era o mesmo formulário da primeira vez e, como antes, tinha algo escrito. Foley leu uma vez, releu e conferiu uma terceira vez antes de entregá-lo à esposa.

Os olhos de Mary Pat também brilharam.

Era um peixe mesmo, pensou Foley. Talvez um bem grande. E ele fazia um apelo considerável. Quem quer que fosse, não era estúpido. Não seria fácil providenciar o que desejava, mas Foley conseguiria. Significava apenas deixar o sargento de artilharia contrariado, e, mais importante, visivelmente irritado, porque a embaixada estava sob vigilância permanente. Algo daquele tipo não podia parecer rotina ou ação deliberada, mas também não precisava ser uma atuação merecedora do Oscar. Tinha certeza de que os fuzileiros seriam capazes de realizar a tarefa. Então sentiu a mão de Mary Pat encostar na sua.

— Ei, doçura — disse para os microfones.

— Oi, Ed.

Sua mão se escondeu atrás da do marido.

Esse cara é para va[ler], disse com as mãos.

Ele respondeu com a cabeça.

Am[anhã] de m[anhã]?, perguntou ela, recebendo outro sinal afirmativo.

— Querida, tenho que voltar correndo à embaixada. Deixei uma coisa em cima da mesa, droga.

Ela fez que sim com o polegar.

— Não demore. O jantar está pronto. Comprei um belo assado na loja finlandesa. Com batatas e milho.

— Parece gostoso — disse o marido. — Meia hora, no máximo.

— Bem, não se atrase.

— Onde está a chave do carro?

— Na cozinha.

Os dois foram juntos até lá.

— Vou embora sem ganhar um beijo? — disse Ed, com a voz mais submissa.

— Acho que não — respondeu a esposa, divertindo-se. — Algo interessante no trabalho hoje?

— Só aquele Prince, do Times.

— Ele é um idiota.

— E como! Até daqui a pouco, querida.

Foley seguiu para a porta, ainda vestindo a capa de chuva.

Acenou para o guarda, ao voltar ao portão, exibindo uma expressão de frustração no rosto para um efeito mais teatral. Os vigias provavelmente registrariam sua passagem — talvez até comunicassem a alguém — e, com sorte, a ida à embaixada seria cruzada com as fitas do apartamento. Os idiotas da Segunda Diretoria fariam um monte de xis em seus formulários de monitoramento e concluiriam que Ed Foley tinha mesmo deixado algo no escritório. Precisava se lembrar de voltar com um envelope no banco da frente do Mercedes. Os agentes garantiam o sustento basicamente lembrando de tudo e não se esquecendo de nada.

Naquele horário, a ida de carro até a embaixada foi mais rápida do que de metrô, mas isso fazia parte da rotina de trabalho. Em poucos minutos, encostou no portão da embaixada, passando pelo fuzileiro de sentinela e parando em uma vaga para visitantes.

Entrou no prédio, deixando mais alguns fuzileiros para trás, e subiu até sua sala. Pegou um envelope com lacre e colocou um exemplar do International Herald Tribune dentro.

— Pois não, Ed.

A voz pertencia a Dominic Corso, um dos agentes de campo de Foley. Mais velho que o chefe, vivia sob o disfarce de adido comercial. Estava em Moscou havia três anos e merecia o respeito de Foley. Também de Nova York, nascera no bairro de Richmond, Staten Island, filho de um detetive de polícia. Sua aparência era de carcamano, mas possuía uma inteligência muito superior à que os preconceituosos gostariam de admitir.

Corso tinha olhos castanhos astutos, como os de uma velha raposa vermelha, porém mantinha a inteligência mascarada.

— Preciso que faça algo.

— Pode dizer.

Foley contou.

— Está falando sério?

O pedido não era exatamente normal.

— Sim.

— Tudo bem, passo as instruções ao artilheiro. Ele vai querer saber por quê.

O sargento de artilharia Tom Drake, o oficial não-comissionado responsável pelo destacamento dos fuzileiros na embaixada, sabia para quem Corso trabalhava.

— Diga que é uma brincadeira. Mas uma muito importante.

— Certo — disse Corso. — Preciso saber mais alguma coisa?

— Agora não.

Corso piscou. Bem, se o chefe não quer compartilhar informações, deve ser algo importante. Mas não chega a ser incomum, refletiu. Na CIA, era normal não saber o que sua equipe estava fazendo. Ele não conhecia Foley muito bem, apenas o bastante para respeitá-lo.

— Certo, vou falar com ele agora.

— Obrigado, Dom.

— Como o garoto está se saindo em Moscou? — perguntou o oficial, de saída.

— Está se adaptando. Será melhor quando puder patinar um pouco. Ele gosta muito de hóquei.

— Bem, ele está na cidade certa para isso.

— É verdade. — Foley juntou os papéis e se levantou. — Vamos andar com isso, Dom.

— Agora mesmo, Ed. Até amanhã.


14

 


SINAL DE PERIGO

 

UMA DAS CONSTANTES no negócio da espionagem é a insistente falta de sono para os jogadores. É resultado do estresse, e o estresse é o companheiro dos espiões. Quando o sono demorava a chegar para Ed e Mary Pat Foley, eles ao menos podiam conversar com as mãos, deitados na cama.

Ele é mesmo para va[ler], que[rida], disse Foley à esposa, embaixo das cobertas.

É mesmo, concordou ela. Já ti[vemos] al[guêm] com tanto ac[esso] assim?, perguntou.

N[unca], respondeu ele.

O pes[soal] em L[angley] vai ficar lou[co].

Tot[almente], concordou o marido.

Final do nono inning, todas as bases ocupadas, dois batedores fora, última chance, e o lançador arremessa uma bola curva. Ele, pronto para rebatê-la por cima do placar eletrônico. Isso se não estragarmos tudo, ponderou Foley. “

Quer que eu me en[volva]?, perguntou em seguida.

Temos que esperar para v[er].

Ela suspirou, como se dissesse: É, eu sei. Mesmo para eles, era difícil manter a paciência. Foley já podia ver a bola curva, suspensa no meio da base, na altura da cintura, o taco Louisville Slugger firme em suas mãos. Os olhos tão atentos à bola que podia ver a costura girando à medida que ela se aproximava. Aquela sairia do estádio, iria até o centro da cidade. Mostraria a Reggie Jackson quem era o verdadeiro batedor por ali...

Se não estragasse tudo, lembrou-se novamente. Mas Ed Foley realizara uma missão similar em Teerã, recrutando um agente na comunidade revolucionária. Tinha sido o único oficial local a perceber como a situação do xá era complicada. A série de relatórios elevara seu prestígio em Langley e o transformara em um dos preferidos de Ritter.

Ele também exploraria aquela oportunidade até o fim.

 

 

EM LANGLEY, O MERCÚRIO era o lugar temido por todos — todos sabiam que um funcionário dali, sob controle estrangeiro, podia derrubar o prédio inteiro. Por isso, sem exceção, eram submetidos duas vezes por ano ao polígrafo, pelos melhores examinadores do FBI. Não confiavam sequer nos especialistas da própria CIA para a tarefa. Um mau oficial de campo ou analista podia expor agentes e missões; seria um transtorno para todos os envolvidos. Mas um informante no MERCÚRIO correspondia a soltar uma oficial feminina da KGB na Quinta Avenida com um cartão American Express Gold: ela compraria tudo que seu coração desejasse. A KGB seria capaz de pagar um milhão de dólares por uma fonte desse nível. Faria um rombo no tesouro russo, mas bastaria vender um dos ovos Fabergé de Nicolau II — e eles ficariam muito satisfeitos. Todos sabiam que devia existir um equivalente do MERCÚRIO na KGB, porém nunca um serviço de inteligência conseguira atrair um cidadão russo de lá.

Foley imaginava como seria esse departamento, como seria o escritório. Em Langley, era imenso, do tamanho de um estacionamento, sem paredes ou divisórias internas, para que todos pudessem se ver. Havia sete estruturas na forma de tambores para armazenar cassetes, batizadas com os nomes dos sete anões; tinham até câmeras de TV no interior, para o caso de um lunático entrar nelas, embora fosse mais provável que acabasse morto, pois os mecanismos motorizados se moviam com potência e sem aviso. Além disso, só os grandes mainframes — o maior fora fabricado pela Cray Research — sabiam o que cada cassete continha e onde se encaixava. A segurança, dividida em vários níveis e verificada diariamente, talvez de hora em hora, era inacreditável.

Ocasionalmente, as pessoas que trabalhavam ali eram seguidas até suas casas, provavelmente pelo FBI, que até executava bem o trabalho, para um bando de investigadores. Devia ser um ambiente opressivo, mas, se alguém um dia reclamara daquilo, os relatórios nunca haviam chegado a Ed Foley. Enquanto os fuzileiros eram obrigados a correr cinco quilômetros por dia e passar por inspeções, os empregados da CIA tinham que lidar com a insuportável paranoia institucional. Era a vida. O polígrafo enchia o saco. E, pior, a agência dispunha até de psicólogos que ensinavam os funcionários a enganá-lo. Ele e a mulher passaram por esse treinamento e, mesmo assim, a CIA os submetia ao exame pelo menos uma vez por ano. Para testar sua lealdade ou para averiguar se ainda lembravam do treinamento? Quem podia dizer?

A KGB faria o mesmo? Eles seriam loucos, se não fizessem, mas Ed não estava certo de que dominavam a tecnologia do polígrafo, então... talvez sim, talvez não. Ele e a CIA ignoravam inúmeros fatos sobre a KGB. Em Langley, havia muitos PEDs — palpites estúpidos e disparatados —, na maioria dos casos, provenientes de pessoas que diziam "Bem, se nós fazemos assim, eles também devem fazer", o que não passava de idiotice. Duas pessoas — e, certamente, dois países — nunca faziam algo exatamente da mesma forma e, por isso, Ed Foley se considerava um dos melhores em seu insano ramo de atividade. Ele entendia. Nunca parava de investigar. Nunca realizava uma coisa do mesmo modo duas vezes, a não ser como artimanha, para passar uma impressão falsa a alguém — particularmente aos russos, que provavelmente, ou quase com certeza para ele, também sofriam da doença burocrática que limitava os cérebros na CIA.

E se esse cara qui[ser] sair do p[aís]?, perguntou Mary Pat.

Primeira classe na Pan Am, respondeu o marido, o mais rápido que seus dedos permitiam. E com direito a transar com a aeromoça.

Você é um mau garoto, respondeu Mary Patricia, com o som de uma risada contida. Ela sabia que ele estava certo. Se o cara queria brincar de espião, podia ser mais inteligente tirá-lo da Rússia, despachá-lo para Washington e lhe oferecer entrada vitalícia na Disney World após o interrogatório. Um russo teria uma sobrecarga sensorial no Magic Kingdom, sem falar do recém-inaugurado Epcot Center. Depois de andar na Space Mountain, Ed sugerira que a CIA tinha que alugar o parque inteiro por um dia e passear com o Politburo soviético; deixar que andassem em todos os brinquedos, devorassem hambúrgueres e bebessem Coca-Colas e, na saída, lhes dizer: "É assim que os americanos se divertem. Infelizmente, não podemos mostrar as coisas que fazemos quando estamos trabalhando." Se aquilo não os deixasse assustados, nada o conseguiria.

Mas Foley tinha convicção de que os assustaria. Eles — mesmo os mais importantes com acesso a tudo que a KGB obtinha sobre o Inimigo Principal — formavam o povo mais isolado e provinciano do mundo. A maioria realmente acreditava na propaganda porque não dispunha de parâmetros. Eram tão vítimas do sistema quanto os pobres mujiks, os camponeses, dirigindo seus caminhões-caçamba.

Mas os Foley não viviam no mundo da fantasia.

Então, far[emos] o que q[uer], e depois?, perguntou ela.

Um passo de cada vez, respondeu o marido. Ela concordou. Era como ter um filho: não se podia ter pressa, a não ser que se quisesse uma criança meio estranha. No entanto, aquilo mostrava que o marido não era um rabugento total, o que ensejou um beijo no escuro.

 

 

ZAITZEV NÃO CONVERSAVA mais com a mulher. Naquele momento, nem meio litro de vodca conseguia fazê-lo dormir. Fizera seu pedido. Só no dia seguinte saberia se estava lidando com alguém capaz de ajudá-lo. O que queria não era exatamente razoável, mas não tinha tempo ou segurança para ser razoável. Estava convicto de que nem a KGB seria capaz de falsificar o que especificara. Poderiam solicitar aos poloneses ou aos romenos que o fizessem, mas não aos americanos. Existiam limites até para a KGB.

Portanto, mais uma vez, tinha que esperar. Porém, o sono não vinha. No dia seguinte, não seria um camarada muito bem-humorado. Já sentia a ressaca se aproximando, como um terremoto preso e contido pelo seu crânio...

 

 

— COMO FOI, SIMON? — perguntou Ryan.

— Podia ter sido pior. A primeira-ministra não arrancou minha cabeça. Relatei que só temos o que temos, e Basil me deu apoio. Ela quer mais. Disse isso na minha frente.

— Não me surpreende. Já ouviu falar de um presidente que queira menos informações, parceiro?

— Não recentemente — reconheceu Harding.

Ryan podia sentir o estresse que emanava do colega de trabalho. Com certeza, ele tomaria uma cerveja no pub antes de ir para casa. O analista britânico colocou fumo no cachimbo e o acendeu, dando uma longa tragada.

— Se servir de consolo, Langley não tem mais informações do que vocês.

— Eu sei. Ela perguntou, e foi isso que Basil respondeu. É evidente que ele conversou com seu juiz Moore no caminho.

— Então estamos juntos na ignorância.

— Muito reconfortante — disse Harding, rindo.

Já passava muito da hora de ir embora. Ryan esperara para ver o que Simon diria sobre a reunião no número 10 da Downing Street, porque sua missão incluía obter informações sobre os britânicos. Eles compreenderiam; afinal, todos estavam no mesmo jogo. Ryan checou a hora.

— Bem, preciso ir para casa. Vejo você amanhã.

— Durma bem — disse Simon, enquanto Ryan ia em direção à porta. Jack suspeitava que o próprio Simon não conseguiria dormir muito bem.

Ele sabia quanto Harding ganhava, como funcionário público de médio escalão, e aquilo não pagava um dia tão estressante. Mas aquela era a vida na cidade grande, refletiu, chegando à rua.

 

 

— O QUE DISSE AO SEU pessoal, Bob? — perguntou o juiz Moore.

— Apenas o que me contou, Arthur. Que o presidente quer saber. Não houve resposta ainda. Diga ao chefe que ele terá que ser paciente.

— Já disse isso. Ele não ficou muito satisfeito — respondeu o DCI.

— Bem, juiz, não posso controlar o universo. Não temos poder sobre diversas coisas, e o tempo é uma delas. Ele é um adulto, pode entender isso, não?

— Sim, Robert, mas ele gosta de ter o que precisa. Está preocupado com Sua Santidade, agora que o papa chutou o formigueiro...

— Bem, isso é o que achamos. Os russos podem ser espertos o bastante para buscar vias diplomáticas: dizer a ele que se acalme e deixe as coisas se resolverem...

— Bob, isso não funcionaria — observou o almirante Greer. — Ele não é o tipo de cara que se assusta com conversa de advogado.

— É, ele não é — admitiu Ritter.

O papa não era de fazer concessões em questões de grande importância. Ele havia lidado com todo tipo de aborrecimento, dos nazistas de Hitler à NKVD de Stalin, e mantivera a igreja unida cercando as carroças, como os colonos se defendiam de ataques índios nos antigos filmes de faroeste. Não teria ajudado a Igreja a sobreviver na Polônia se houvesse cedido em temas importantes, teria? E, mantendo-se firme, mantinha suficiente força moral e política para ameaçar a outra superpotência do mundo. Não, esse cara não ia se dobrar sob pressão. A maioria das pessoas temia a morte e a ruína. Esse era diferente. Os russos nunca compreenderiam o porquê, mas compreenderiam o respeito que merecia. Ficou claro para Bob Ritter e os outros oficiais de inteligência nesta sala que a única resposta que teria sentido para o Politburo era um ataque ao Papa. E o Politburo tinha se reunido hoje, embora o que eles tinham discutido e concluído eram frustrantemente desconhecido.

— Bob, temos algum agente que possa descobrir o que eles falaram no Kremlin hoje?

— Temos alguns. Eles serão alertados nos próximos dois dias. Ou se surgir algo importante, podem tentar obter a informação por seus meios. Se esbarrarem em algo dessa magnitude, esperamos que enviem informações aos seus contatos — disse Ritter ao DCI. — Ei, Arthur, não gosto de esperar e ficar desinformado mais do que você, mas precisamos deixar as coisas fluírem naturalmente. Conhece tão bem quanto eu o risco de se enviar um alerta generalizado aos nossos agentes.

Os três conheciam. Um procedimento do gênero causara a morte de Oleg Penkovskiy. A informação repassada provavelmente evitara uma guerra nuclear — e ajudara no recrutamento do mais antigo agente da CIA no local, o CARDEAL —, mas não fora muito benéfica para o próprio. Depois de descoberto, ninguém menos que Kruchev em pessoa exigira seu sangue — e fora atendido.

— Sim — concordou Greer. — E isso não é tão importante no cenário mais amplo, certo?

— De fato — admitiu o juiz Moore, embora não estivesse muito animado com ter de explicar aquilo ao presidente.

O novo chefão era capaz de entender as coisas quando explicadas com clareza. A parte mais assustadora era pensar no que o presidente poderia fazer se o papa morresse repentinamente. Ele era um homem de princípios, mas também um homem emotivo.

Ficaria tão enfurecido quanto um touro diante de uma bandeira soviética balançando.

Não se podia deixar a emoção atrapalhar a arte de governar: acabava trazendo mais emoção, frequentemente o luto pelos que acabaram de morrer. E o milagre da tecnologia só fazia o número de pessoas daquele tipo crescer. O DCI se repreendeu pelo pensamento. O novo presidente era um homem ponderado. Suas emoções serviam ao intelecto, e seu intelecto era muito superior ao que se acreditava, principalmente na mídia, que enxergava apenas o sorriso e a personalidade teatral. Mas os meios de comunicação, a exemplo dos políticos, lidavam muito melhor com aparências do que com a realidade. Afinal, isso exigia menor esforço intelectual. O juiz Moore olhou para seus principais subordinados.

— Tudo bem. Mas não se esqueçam do quanto é desagradável encará-lo no Salão Oval quando não se tem o que ele deseja.

— Imagino como deve ser, Arthur — solidarizou-se Ritter.

 

 

AINDA PODIA VOLTAR ATRÁS, pensou Zaitzev, que continuava esperando o sono chegar. A seu lado, Irina respirava suavemente. Era o conhecido sono dos justos, não a insônia do traidor.

Bastava parar. Era tudo. Dera dois pequenos passos, nada mais. O americano conhecia seu rosto, mas aquilo podia ser contornado, pegando um trem diferente, entrando em outro vagão. Nunca o veria novamente. O contato seria despedaçado como um copo d'água que cai no chão. E sua vida voltaria ao normal, e sua consciência...

... nunca mais o perturbaria? Ele riu. Sua consciência o pusera naquela confusão. Não, não havia como escapar.

Do outro lado da moeda, havia a preocupação perpétua, a insônia e o medo. Na verdade, ainda não experimentara o medo, mas este surgiria, com certeza. À traição, cabia uma única punição. Morte para o traidor e desgraça para seus entes queridos. Seriam mandados para a Sibéria — para contar árvores, como se dizia de modo eufemístico.

Era a versão soviética do inferno, um lugar de danação eterna, do qual só se escapava com a morte.

Zaitzev percebeu, no entanto, que sua consciência lhe faria exatamente o mesmo, caso não levasse aquilo adiante. Finalmente cedeu e mergulhou no sono.

 

 

UM SEGUNDO DEPOIS — na sua percepção —, o alarme tocou. Pelo menos, não tinha sido atormentado por sonhos. Era a única boa notícia daquela manhã. Sua cabeça latejava, ameaçando empurrar os olhos para fora das cavidades.

Ele cambaleou até o banheiro, onde molhou o rosto e tomou três aspirinas, desejando desesperadamente que aliviassem sua dor de cabeça em poucas horas. Como não conseguiria comer salsichas no café da manhã, pois o estômago também doía, decidiu-se por cereal, leite e um pouco de pão com manteiga. Pensou em tomar café, mas concluiu que um copo de leite seria mais adequado.

— Você bebeu muito na noite passada — disse Irina.

— Sim, querida, estou sentindo isso agora — disse, evitando soar aborrecido.

Seu estado não era culpa dela. Irina era uma boa esposa para ele e boa mãe para Svetlana, sua pequena zaichik. Zaitzev sabia que sobreviveria àquele dia; só não seria nada agradável. Para piorar, tinha de sair cedo, o que conseguiu fazendo a barba às pressas e vestindo uma camisa limpa e uma gravata para ficar mais apresentável. Pôs mais quatro aspirinas no bolso do casaco antes de passar pela porta e, para ajudar o sangue a circular, usou a escada em vez do elevador. Havia uma leve friagem no ar matutino, o que facilitou a caminhada até o metrô. Ele comprou um exemplar do Izvestia e fumou um Trud — mais um estímulo para se mexer.

Se alguém o reconhecesse... bem, poucos reconheceriam. Não estava no vagão ou sequer no trem habitual. Normalmente só apareceria ali 15 minutos depois. Era apenas mais um rosto anônimo em um trem do metrô repleto de pessoas anônimas.

Assim, ninguém notaria que estava descendo na estação errada. Encaminhou-se para a embaixada dos Estados Unidos, que ficava a poucos quarteirões, e conferiu o relógio.

Ele sabia o horário certo porque estivera ali antes, como cadete da academia da KGB, levado de manhã cedo por um ônibus, na companhia de outros 45 membros da sua turma. Até foram usados uniformes oficiais na excursão, provavelmente para os alunos se lembrarem de sua identidade profissional. Mesmo assim, parecia uma perda de tempo sem sentido, mas o comandante da academia à época era linha-dura. Agora, a viagem servia a um propósito que deixaria o sujeito enfurecido. Ao avistar o prédio, Zaitzev acendeu outro cigarro.

Voltou a checar o relógio. Precisamente às 7h30, todos os dias, eles hasteavam a bandeira. O comandante da academia, dez anos antes, apontara e dissera: "Vejam, camaradas, aquele é o inimigo! É onde ele vive na nossa bela cidade de Moscou. Naquele prédio, vivem espiões que aqueles de vocês que entrarem para a Segunda Diretoria se empenharão em identificar e expulsar da nossa pátria justa. Ali vivem e trabalham aqueles que espionam nosso país e nosso povo. Aquela é a bandeira deles. Lembrem-se sempre disso." Então, na hora exata, a bandeira foi elevada até o alto do mastro branco com uma águia de bronze no topo, puxada por membros do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, em seus uniformes impecáveis. Zaitzev havia verificado o relógio na estação do metrô. Devia acontecer... naquele instante.

 

 

UMA CORNETA TOCOU uma melodia desconhecida. Ele só conseguia distinguir os quepes dos fuzileiros, que mal apareciam acima do parapeito de pedra no teto plano do prédio. Estava do outro lado da rua, perto da antiga igreja, que a KGB havia enchido de dispositivos eletrônicos.

Bem ali, pensou, enquanto observava, ladeado por pedestres que passavam pela calçada rachada de cimento.

Sim. Ele viu. A parte superior da bandeira que aparecia era formada por listras horizontais vermelhas e brancas, e não pelo retângulo azul com suas cinquenta estrelas brancas. A bandeira estava sendo hasteada de cabeça para baixo! Não havia dúvida. E ela foi erguida até a extremidade do mastro daquele jeito.

Eles fizeram mesmo como eu pedi. Rapidamente, Zaitzev seguiu até o fim do quarteirão e virou à direita duas vezes, até a estação de metrô de onde saíra havia pouco. Pagou com uma moeda grande de cinco copeques, feita de cobre, e entrou em outro vagão, para chegar à Praça Dzerzhinskiy. Subitamente, a ressaca havia desaparecido, como em um passe de mágica. Ele mal notara até pegar a escada rolante para alcançar o nível da rua. Os americanos querem me ajudar, disse o oficial de comunicações a si mesmo. Eles vão me ajudar. Talvez, no fim das contas, eu possa salvar a vida daquele padre polonês. Havia um impulso adicional em sua passada ao entrar no Centro.

 

 

— SENHOR, PARA QUE FIZEMOS tudo isso, afinal? — perguntou o sargento de artilharia Drake a Dominic Corso.

Eles haviam acabado de corrigir a posição da bandeira no alto do mastro.

— Não posso explicar.

Foi o máximo que Corso conseguiu dizer, embora seus olhos revelassem um pouco mais.

— Sim, senhor. Como faço o registro disso?

— Não faça. Alguém cometeu um erro estúpido, e você consertou.

— Como quiser, senhor Corso.

O sargento teria que explicar aos seus fuzileiros. E o faria praticamente do mesmo modo que lhe haviam explicado; mas, no seu caso, usaria uma linguagem mais chula. Se alguém no regimento de fuzileiros perguntasse, diria apenas que recebera ordens da embaixada, e o coronel d'Amici seria obrigado a resolver o problema. Diabos, podia simplesmente encaminhar o coronel a Corso. Os dois eram italianos, talvez se entendessem, concluiu o sargento, nativo de Helena, Montana. Do contrário, o coronel d'Amici acabaria com ele e seus fuzileiros.

 

 

ZAITZEV OCUPOU SEU LUGAR depois de dispensar o major Dobrik. O movimento naquela manhã estava um pouco menor do que o normal, e ele iniciou sua rotina.

Quarenta minutos depois, a situação mudou.

— Camarada major — anunciou uma voz que começava a se tornar familiar.

Zaitzev se virou e se deparou com o coronel Rozhdestvenskiy.

— Bom dia, camarada coronel. Algo para mim?

— Isto. — Rozhdestvenskiy lhe entregou o formulário. — Por favor, envie imediatamente, usando o bloco.

— Como quiser. A notificação segue para o senhor?

— Correto — confirmou Rozhdestvenskiy. — Presumo que seja permitido usar um mensageiro interno para levá-la ao senhor.

— Sim.

— Muito bem. Encaminharei em alguns minutos.

— Ótimo.

Rozhdestvenskiy se retirou.

Zaitzev analisou o despacho. Era agradavelmente curto. A encriptação e a transmissão levaram apenas 15 minutos.

 

Confidencial Imediato e Urgente.

de: Escritório do Diretor, Centro Moscou

para Rezident em Sofia

referência: identificação operacional 15-8-82-666

APROVAÇÃO OPERACIONAL ESPERADA PARA HOJE, ATRAVÉS DOS CANAIS DISCUTIDOS EM NOSSO ENCONTRO. RELATE QUANDO OS CONTATOS APROPRIADOS FOREM ESTABELECIDOS.

 

Aquilo significava que a operação 666 seguiria em frente. No dia anterior, a notícia havia deixado Zaitzev arrepiado, mas hoje não. Sabia que faria alguma coisa para evitar o desfecho. Se algo ruim acontecesse agora, seria culpa dos americanos. Era uma diferença considerável. Agora, só precisava descobrir como estabelecer um contato regular com eles...

 

 

NO ANDAR SUPERIOR, ANDROPOV recebia o chanceler em seu gabinete.

— E, então, Andrei, como faremos?

— Normalmente, nosso embaixador se encontraria com o primeiro-secretário deles, mas, no interesse da segurança, podemos preferir tentar outro método de abordagem.

— Que nível de autoridade executiva tem o primeiro-secretário? — perguntou o diretor.

— Mais ou menos o mesmo que Koba há trinta anos. A Bulgária é administrada de maneira muito rígida. Os membros do Politburo representam vários eleitorados, mas apenas o primeiro-secretário do partido possui verdadeiro poder de decisão.

— Ah. — Era uma boa notícia para Yuriy Vladimirovich. Ele pegou o telefone. — Mande o coronel Rozhdestvenskiy entrar — disse à secretária.

O coronel atravessou a porta do armário dois minutos depois.

— Pois não, camarada diretor.

— Andrei, este é o coronel Rozhdestvenskiy, meu assistente. Coronel, nosso rezident em Sofia tem contato direto com o chefe de governo búlgaro?

— Raramente, camarada, mas houve conversas ocasionais entre os dois no passado.

Rozhdestvenskiy ficou surpreso com o fato de o diretor não saber daquilo, mas ele ainda estava aprendendo como as operações de campo funcionavam. Pelo menos, tinha bom senso para fazer perguntas e não se envergonhava disso.

— Muito bem. Por razões de segurança, preferimos que o Politburo búlgaro como um todo não saiba do escopo da operação 666. Acredita que o coronel Bubovoy possa apresentar um relatório ao líder do partido para obter aprovação por uma via mais direta?

— Nesse caso, provavelmente seria necessária uma carta do camarada Brejnev — respondeu Rozhdestvenskiy.

— Sim, essa seria a melhor forma — concordou o chanceler imediatamente. — Boa colocação, coronel — acrescentou, em aprovação.

Andropov assentiu.

— Muito bem. Providenciaremos isso hoje. Leonid Ilyich estará em seu gabinete, Andrei?

— Sim, Yuriy. Ligarei antes e direi o que for preciso. Posso redigir uma minuta no meu escritório, se quiser. Ou prefere que seja feito aqui?

— Com todo respeito, Andrei — disse Andropov amavelmente —, preferimos nos encarregar disso. Providenciaremos que seja encaminhada a Sofia para entrega amanhã ou no dia seguinte.

— É melhor dar alguns dias ao nosso camarada búlgaro, Yuriy. Eles são aliados, mas é bom lembrar que continuam um país soberano.

— É verdade, Andrei.

Todos os países do mundo tinham uma burocracia cujo único propósito era adiar a realização de coisas relevantes.

— E não queremos que o mundo saiba que nosso rezident está fazendo um pedido importante ao sujeito — reforçou o chanceler, dando pequena lição sobre segurança operacional ao diretor da KGB, aos olhos do coronel Rozhdestvenskiy.

— Quanto tempo levará depois disso, Aleksey Nikolaievich? — perguntou Andropov ao assessor.

— Algumas semanas, pelo menos. — Percebendo a contrariedade nos olhos do chefe, ele decidiu explicar. — Camarada diretor, a escolha do assassino não será feita com uma simples ligação. Strokov terá que ser, necessariamente, cuidadoso na seleção. Afinal, as pessoas não são tão previsíveis quanto as máquinas, e este é o aspecto mais essencial e delicado da operação.

— Sim, imagino que sim, Aleksey. Muito bem. Notifique Bubovoy de que há uma mensagem a ser entregue em mãos a caminho.

— Agora, camarada diretor, ou depois que estiver assinada e pronta para ser despachada?

Rozhdestvenskiy formulou a pergunta como um habilidoso burocrata, permitindo que o chefe percebesse a melhor opção sem que a indicasse de maneira explícita.

Esse coronel vai longe, pensou o chanceler, registrando seu nome pela primeira vez.

— Bem lembrado, coronel. Muito bem, mandarei avisá-lo quando a carta estiver pronta.

— A seu dispor, camarada diretor. Ainda precisa de mim?

— Não, é tudo por enquanto — respondeu Andropov, dispensando o coronel.

— Yuriy Vladimirovich, você tem um ótimo assistente.

— Sim. Tenho muito a aprender aqui — reconheceu Andropov. — E ele me ensina algo todos os dias.

— Tem sorte em contar com tantas pessoas capacitadas.

— É verdade, Andrei Andreievich. É verdade.

 

 

NO MESMO ANDAR, EM SEU ESCRITÓRIO, Rozhdestvenskiy redigiu o breve despacho para Bubovoy. O plano caminhava rapidamente, mas não o suficiente para o diretor da KGB. Ele realmente queria aquele padre morto. O Politburo parecia sinceramente assustado com a possibilidade de terremotos políticos, porém o próprio Rozhdestvenskiy duvidava da hipótese. O papa, pensando bem, era apenas uma pessoa, mas o coronel adaptara seus conselhos ao que seu chefe queria ouvir, agindo como um bom funcionário; por outro lado, garantira que o diretor tomasse conhecimento de tudo que era indispensável. Seu trabalho abarcava um grande poder. Rozhdestvenskiy sabia que podia interromper as carreiras de oficiais de que não gostava e influenciar operações em um grau elevado. Se a CIA tentasse recrutá-lo um dia, seria um agente de considerável valor. Mas o coronel era um patriota, e, além disso, os americanos provavelmente não tinham ideia de quem se tratava ou de que função exercia. O temor em relação à CIA era maior do que o merecido. Os americanos não possuíam tino para a espionagem. Os ingleses, sim, porém, também nesse caso, a KGB e suas antecessoras obtiveram sucesso em infiltrar agentes no passado. Infelizmente, não era mais tão comum. Os jovens comunistas de Cambridge, na década de 1930, haviam envelhecido. Estavam todos em prisões britânicas ou recebendo pensões do governo sem serem incomodados ou ainda levando a vida em Moscou, como Kim Philby, considerado um bêbado até pelos moscovitas. Bebia por sentir falta de seu país — o lugar onde crescera; a comida, a bebida e os jogos de futebol; os jornais dos quais sempre discordava filosoficamente, mas dos quais sentia falta assim mesmo. Como deve ser terrível ser um desertor, pensou Rozhdestvenskiy.

 

 

O QUE VOU FAZER?, perguntou-se Zaitzev. O que vou pedir?

Dinheiro? A CIA devia pagar muito bem aos seus espiões — mais do que ele seria capaz de gastar. Luxos que iam além de sua imaginação. Um videocassete! Eles ainda estavam começando a ser vendidos na Rússia, a maioria fabricada na Hungria, copiada dos modelos ocidentais. A maior dificuldade era conseguir fitas — as pornográficas tinham demanda particularmente elevada. Alguns de seus colegas na KGB conversavam sobre o assunto. Zaitzev nunca assistira a um filme do tipo, mas sentia curiosidade, como qualquer homem. A União Soviética era comandada por conservadores. Talvez os membros do Politburo fossem velhos demais para apreciar o sexo e, como consequência, não viam razão para os cidadãos jovens satisfazerem seus desejos.

Ele balançou a cabeça. Basta! Tinha que decidir o que contaria ao americano no metrô. Decidiu digerir a tarefa com o almoço no refeitório da KGB.


15

 


PONTO DE ENCONTRO

 

MARY PAT COSTUMAVA aparecer na embaixada algumas vezes, supostamente para conversar com o marido sobre questões familiares ou comprar itens especiais de alimentação no armazém militar. Nessas ocasiões, sempre se vestia bem — melhor do que quando saía às ruas de Moscou —, com o cabelo bem escovado, preso com uma faixa jovial, e maquiada. Assim, ao chegar ao estacionamento do complexo, parecia uma típica loura alienada americana. Ela sorria para si mesma. Gostava de ser naturalmente loura, e qualquer coisa que a fizesse parecer burra ajudava no disfarce.

Ela entrou rapidamente pela porta da frente, acenando gentilmente aos sempre educados fuzileiros, e chegou ao elevador. Encontrou o marido sozinho no escritório.

— Ei, baby. — Ed levantou-se para beijá-la, depois se afastou para ter uma visão geral. — Está bonita.

— Bem, é um disfarce eficiente.

Também funcionara a contento no Irã, principalmente quando estava grávida. O país não tratava as mulheres particularmente bem, mas lhes reservava um estranho respeito, especialmente quando esperavam um bebê. Mary Pat descobrira aquilo quando estava prestes a partir em definitivo. Não sentia a mínima saudade daquela base.

— É mesmo, baby. Só precisamos arrumar uma prancha e uma bela praia para você, quem sabe Banzai Pipeline?

— Ah, Ed, isso é tão tubular. E a praia de Banzai fica no Havaí, tolinho. — Uma mudança brusca de assunto. — A bandeira subiu de cabeça para baixo?

— Sim. As câmeras de TV não flagraram ninguém na rua prestando atenção excessiva. Mas dava para ver de um quarteirão de distância, e as câmeras de segurança não têm um alcance tão longo. Vamos ver se nosso amigo deixa uma mensagem no meu bolso na volta para casa hoje à noite.

— O que os fuzileiros disseram? — perguntou ela.

— Eles quiseram saber por que, mas Dom não contou nada. Na verdade, ele também não sabe de nada, acho.

— Dominic é um bom espião — opinou Mary Pat.

— Ritter gosta dele. Ah! — lembrou-se Foley, de repente. Tirou uma mensagem da gaveta e entregou-a à esposa.

— Merda — disse ela, passando os olhos no texto. — O papai desses filhos da mãe querem matar o papa?

Mary Pat não costumava falar como uma loura da Califórnia.

— Bem, não há informações que indiquem isso diretamente, mas, se querem, temos que descobrir.

— Parece um trabalho para o LENHADOR.

Era o agente na secretaria do partido.

— Talvez o CARDEAL — cogitou Ed.

— Não o avisamos ainda — lembrou Mary Pat. Mas em breve seria hora de contactá-lo.

Toda noite eles verificavam a combinação da luz e da persiana na sua sala de estar. O apartamento do agente e o dos Foley ficavam convenientemente próximos. A comunicação estava bem estabelecida, começando com um pedaço de fita de papel em um poste. Acertar a sinalização de contato era tarefa de Mary Pat. Já passara por ela uma dezena de vezes caminhando com o pequeno Eddie. — É um trabalho para ele?

— É o presidente que quer saber — lembrou o marido.

— Boa colocação. — CARDEAL, no entanto, era o melhor agente no lugar e só devia ser acionado em situações realmente críticas. Ele também teria tomado a iniciativa de passar informações por conta própria se estivesse ciente. — Eu esperaria até Ritter dar uma ordem direta.

— Concordo — disse Ed Foley. Se Mary Pat aconselhava que fosse cauteloso, então a cautela estaria justificada. Afinal, era ela que gostava de correr risco e apostar em seu talento contra a banca. Mas aquilo não significava que fosse uma jogadora inconsequente. — Vou aguardar um pouco neste caso.

— Seja bonzinho para saber o que seu novo contato fará agora.

— Pode apostar. Quer ver o embaixador?

— Acho que está na hora — concordou.

 

 

— E ENTÃO, RECUPEROU-SE DE ONTEM? — perguntou Ryan a Harding. Era a primeira vez que chegava antes do colega ao escritório.

— É, acho que sim.

— Se servir de consolo, nunca encontrei o presidente pessoalmente. E não estou exatamente ansioso por isso. Como disse Mark Twain sobre o cara que foi coberto de alcatrão e penas, se não fosse a glória do momento, não teria reparado.

Harding conseguiu sorrir por um instante.

— Isso mesmo, Jack. As pernas tremem um pouco.

— Ela é tão durona quanto dizem?

— Não sei se gostaria de jogar rúgbi contra ela. E ela também é muito, muito inteligente. Não deixa escapar nada e faz perguntas muito boas.

— Bem, eles nos pagam para respondê-las, Simon — lembrou Ryan. Não havia razão para temer pessoas que só estavam fazendo seu trabalho e que precisavam de informações seguras para isso.

— E a ela também, Jack. Ela tem que responder perguntas do Parlamento.

— Sobre esse tipo de assunto? — perguntou Jack, surpreso.

— Não, isso não. É discutido, eventualmente, com a oposição, mas sob regras bem rígidas.

— Vocês se preocupam com vazamentos? — perguntou Jack, desta vez curioso.

Nos Estados Unidos, havia comissões selecionadas cujos membros eram exaustivamente treinados para aprender o que podiam dizer ou não. A agência se preocupava com vazamentos — afinal, eram políticos —, mas ele nunca ouvira falar de um caso mais sério no Congresso. Os problemas mais graves geralmente vinham de dentro da própria agência. E, principalmente, do sétimo andar... ou da ala leste da Casa Branca. Não significava que a CIA se acomodava com os vazamentos, mas pelo menos as punições eram frequentes, e muitas vezes se tratava na verdade de fornecer informações erradas com objetivos políticos. Provavelmente, acontecia o mesmo por lá, especialmente considerando-se que os meios de comunicação locais funcionavam sob um controle que provocaria ataques histéricos no New York Times.

— Eles são sempre razão de preocupação, Jack. Mas, então, alguma novidade na noite passada?

— Nada de novo sobre o papa — relatou Ryan. — Nossas fontes, na situação atual, chegaram a um beco sem saída. Vocês vão pôr seus agentes de campo para trabalhar?

— Sim, a primeira-ministra deixou claro a Basil que quer mais informação. Se algo acontecer a Sua Santidade, bem...

— .. ela solta os cachorros, certo?

— Vocês, americanos, têm mesmo jeito com as palavras, Jack. E seu presidente?

— Ele ficaria alucinado. E não estou me referindo a drogas. O pai dele era católico. A mãe o criou como protestante, mas ele não ficaria muito feliz nem se o papa pegasse um resfriado.

— Sabe, mesmo se conseguirmos alguma informação, não quer dizer que possamos tomar alguma providência.

— Também pensei nisso. Pelo menos podemos alertar o pessoal responsável pela proteção dele. Podemos fazer isso. E talvez ele possa mudar a agenda... não, ele não fará isso. Preferiria levar um tiro como homem. Talvez possamos interferir de alguma forma nos planos dos caras maus. Não dá para saber antes de dispor de fatos para analisar. Mas esse não é nosso trabalho, certo?

Harding fez um sinal negativo enquanto mexia o chá.

— Certo. Os agentes de campo nos fornecem os dados e nós tentamos determinar o que significam.

— Não é frustrante? — perguntou Ryan.

Harding estava naquele negócio havia muito mais tempo.

— Com frequência. Sei que os agentes de campo dão o sangue para fazer seu trabalho, e que os que não têm um disfarce legítimo podem colocar sua integridade física em risco, mas nós, os usuários das informações, não podemos ver as coisas sempre da perspectiva deles. Por isso, eles nem sempre têm tanta consideração por nós quanto temos por eles. Conheci alguns ao longo dos anos. São gente boa, mas é um choque de culturas, Jack.

Pensando bem, os agentes também devem ser muito bons em análise, refletiu Ryan. Duvido que os analistas apreciem isso. Era algo que Ryan precisava guardar em seu arquivo de pontos a lembrar. A verdade é que a agência devia ser uma equipe unida e feliz, mas claro que não acontecia assim, nem no sétimo andar.

— Mudando de assunto, recebemos isso da Alemanha Oriental. — Jack passou a pasta ao colega. — Alguns rumores na hierarquia política local, na semana passada.

— Malditos prussianos — soltou Harding, enquanto virava as páginas.

— Anime-se. Os russos também não gostam muito deles.

— Não os culpo por isso.

 

 

EM SUA MESA, ZAITZEV estava quebrando a cabeça, com o cérebro trabalhando em piloto automático. Teria que encontrar o novo amigo americano. Seria perigoso, a não ser que descobrisse um local agradável e anônimo. A boa notícia era que Moscou estava repleta de lugares desse tipo. A má era que a Segunda Diretoria provavelmente conhecia todos eles. Contudo, se estivesse lotado, não faria diferença.

O que diria?

O que pediria?

O que lhes ofereceria?

Eram todas boas perguntas. O perigo apenas aumentaria. O melhor resultado possível seria deixar a União Soviética definitivamente com mulher e filha.

Sim, pediria aquilo. E, se eles dissessem não, simplesmente mergulharia de volta em sua realidade costumeira, sabendo que havia tentado. Tinha algo do interesse deles e deixaria claro que o preço da informação era sua fuga.

A vida no Ocidente, pensou. Todas as coisas decadentes que o Estado pregava a quem era capaz de ler um jornal ou de assistir à TV, todas as coisas horríveis de que falavam. A maneira como os Estados Unidos tratavam as minorias. Na TV, chegavam a mostrar imagens de áreas tomadas por favelas... mas também mostravam carros. Se os Estados Unidos oprimiam os negros, por que, então, permitiam que comprassem tantos carros? Por que permitiam que protestassem nas ruas? Se aquilo acontecesse na União Soviética, o governo teria convocado tropas armadas. Portanto, a propaganda estatal não podia ser inteiramente verdadeira, podia? E, além disso, ele não era branco? Por que se preocupar com alguns negros descontentes que podiam comprar qualquer carro que desejassem? Como a maioria dos russos, ele só conhecia pessoas negras da TV. Sua primeira reação foi se perguntar se realmente havia uma espécie de homem de chocolate, mas, sim, havia. A KGB realizava operações na África. Neste momento, perguntou a si mesmo: conseguia se lembrar de alguma operação nos Estados Unidos que tivesse usado um agente negro? Poucas, talvez uma ou duas, e em ambos os casos foram sargentos do Exército. Se os negros eram oprimidos, como conseguiam se tornar sargentos? No Exército Vermelho, só os politicamente confiáveis eram aceitos na escola de formação de sargentos. Pronto, descobrira mais uma mentira — e só porque trabalhava para a KGB. Que outras mentiras lhe contavam? Por que não partir? Por que não pedir isso aos americanos?

Mas será que me atenderão?, indagou-se.

Com certeza. Ele poderia lhes passar informações sobre todo tipo de operação da KGB no Ocidente. Sabia os nomes dos oficiais e os codinomes dos agentes — traidores dos governos ocidentais, pessoas que eles certamente desejariam eliminar. Isso corresponde a ser cúmplice de assassinatos?, perguntou-se. Não, não correspondia. Afinal, aqueles eram traidores. E um traidor não passa de um traidor... E isso tudo faz de você o que, Oleg Ivanovich?, perguntou a voz baixinha em sua cabeça, só para atormentá-lo.

Entretanto, agora, ele tinha determinação suficiente para se livrar daquilo apenas balançando a cabeça para um lado e para o outro. Traidor? Não, estava somente evitando um assassinato — um ato honroso. E ele era um homem honrado. Mas ainda precisava definir uma maneira de fazê-lo. Tinha de se encontrar com o espião americano e dizer o que queria.

Onde e como?

Teria de ser um lugar lotado, onde as pessoas se esbarrassem tão naturalmente, que nem um contraespião da Segunda Diretoria conseguiria ver o que acontecia ou ouvir o que se dizia.

De repente, lembrou-se: sua própria esposa trabalhava num lugar assim. Ele colocaria tudo em outro formulário e o entregaria no metrô, como já havia feito duas vezes. Depois, saberia se os americanos realmente queriam entrar no jogo. Estava na cadeira do diretor agora, não estava? Possuía algo que queriam e controlava como eles poderiam obtê-lo. E ele estabeleceria as regras do jogo. E os outros teriam de jogar de acordo com elas. Era muito simples, não era?

Sim, disse a si mesmo. Não era incrível? Estaria fazendo algo que a KGB sempre quis: ditar as regras para a CIA.

Diretor por um dia, disse. As palavras tinham um sabor delicioso.

 

 

EM LONDRES, CATHY acompanhava o trabalho de dois cirurgiões oftálmicos locais em um tal de Ronald Smithson, um pedreiro com um tumor atrás do olho direito.

Os raios X revelaram uma massa do tamanho de meia bola de golfe, tão preocupante que o paciente aguardara apenas cinco semanas até a realização do procedimento. Eram 33 dias a mais do que no Hopkins, porém muito mais rápido do que o padrão ali.

Os dois cirurgiões do Moorfields eram Clive Hood e Geoffrey Phillips, ambos residentes experientes. O procedimento era rotineiro. Depois de expor o tumor, retirava-se um fragmento para congelamento e envio à patologia. Havia um bom histopatologista de serviço que determinaria se o crescimento era benigno ou maligno. Cathy torcia pela primeira opção, pois a variedade maligna daquele tipo de tumor causava sérios problemas às vítimas. Ela acreditava, contudo, que a probabilidade estava do lado do paciente. Na análise visual, não parecera muito agressivo, e o olho se comportava normalmente em cerca de 85 por cento do tempo. Porém, cientificamente, não fazia sentido pensar naquilo, e ela sabia. Era quase uma superstição, mas os cirurgiões, a exemplo dos jogadores de beisebol, entendiam tudo de superstição. Por isso, calçavam as meias — meias-calças no seu caso — do mesmo jeito, todas as manhãs. Porque acabavam se enquadrando em um padrão de vida, e os cirurgiões eram criaturas cheias de hábitos, tendendo a deixar costumes pessoais tolos interferirem no resultado de suas intervenções. Então, com o pedaço congelado a caminho da patologia, bastava extrair a massa encapsulada de cor rosa-acinzentado.

— Que horas são, Geoffrey? — perguntou o Dr. Hood.

— Quinze para uma, Clive — respondeu o Dr. Phillips, verificando o relógio de parede.

— Que tal uma pausa para o almoço?

— Tudo bem. Estou precisando comer algo mesmo. Precisamos chamar outro anestesista para manter o Sr. Smithson inconsciente — disse, observado pelo anestesista de serviço.

— Owen, pode solicitar um? — perguntou Hood.

— Agora mesmo — concordou o Dr. Ellis. Ele se levantou da cadeira, ao lado da cabeça do paciente, e foi até o telefone de parede. Voltou em poucos segundos. — Dois minutos.

— Excelente. Aonde vamos, Geoffrey? — perguntou Hood.

— Que tal no Frog and Toad? Eles servem um belo bacon com alface, tomate e batatas fritas.

— Perfeito — disse Hood.

Cathy Ryan, de pé atrás do Dr. Phillips, manteve a boca fechada, encoberta pela máscara cirúrgica, mas seus olhos azuis estavam arregalados. Eles iam deixar um paciente inconsciente na mesa enquanto saíam para almoçar? Quem eram aqueles caras, curandeiros?

O anestesista reserva chegou naquele exato momento, todo paramentado e pronto para assumir.

— Algo de que eu precise saber, Owen? — perguntou a Ellis.

— Pura rotina — respondeu o anestesista titular.

Ele apontou para os vários instrumentos que monitoravam os sinais vitais do paciente.

Cathy percebeu que estavam todos bem no meio dos valores normais. Mesmo assim...

Hood saiu na frente, na direção do vestiário, onde os quatro médicos se livraram das roupas verdes e pegaram seus casacos. Depois, saíram para o corredor e pegaram a escada até o andar da rua. Cathy simplesmente os seguiu, sem saber o que mais poderia fazer.

— Então, Caroline, o que está achando de Londres? — perguntou Hood, com simpatia.

— Estamos gostando muito — respondeu ela, ainda um pouco chocada.

— E as crianças?

— Bem, temos uma ótima babá, uma jovem da África do Sul.

— Um dos nossos costumes mais civilizados — comentou Phillips, em tom de aprovação.

O pub ficava a menos de um quarteirão, à esquerda da City Road. Logo acharam uma mesa; Hood imediatamente pegou um cigarro e o acendeu. Ele percebeu o olhar de reprovação de Cathy.

— Sra. Ryan, sei que não é saudável e é um mau hábito para um médico, mas todos temos direito a uma fraqueza humana, não temos?

— Está procurando a aprovação da pessoa errada — respondeu ela.

— Ah, bem, então vou jogar a fumaça para longe. — Hood deu um risinho contido enquanto o garçom chegava para atendê-los. — Que tipo de cerveja vocês têm?

Cathy começou a achar bom que ele fumasse. Ela tinha dificuldade em lidar com muitas surpresas negativas ao mesmo tempo, mas pelo menos aquilo a deixara de sobreaviso.

Hood e Phillips pediram a John Courage. Ellis preferiu a Tetley's. Cathy pediu uma Coca-Cola. Os doutores falaram, basicamente, de trabalho, como os médicos costumam fazer.

Caroline Ryan recostou-se na cadeira e ficou no seu canto, observando os três médicos bebendo e, no caso de um, fumando, enquanto um paciente inconsciente recebia óxido nitroso na sala número 3.

— E então, acha que fazemos as coisas de um modo muito diferente do Johns Hopkins? — perguntou Hood, livrando-se da guimba do cigarro.

Cathy quase engasgou, mas acabou decidindo não fazer os comentários que passavam por sua cabeça.

— Bem, cirurgia é cirurgia. Fiquei surpresa que vocês não tenham muitos aparelhos de tomografia computadorizada. Ou de ressonância magnética e emissão positrônica. Como conseguem se virar sem eles? Lá no Hopkins, no caso do Sr. Smithson, nem pensaria em intervenção sem um conjunto de imagens do tumor.

— Sabem, ela está certa — disse Hood, depois de pensar um instante. — Nosso amigo pedreiro podia esperar mais alguns meses, se tivéssemos ideia melhor da extensão do crescimento.

— Vocês esperam tanto no caso de um hemangioma? — deixou escapar Cathy. — Nos Estados Unidos, levamos para cirurgia imediatamente.

Ela não precisou acrescentar que doía ter uma coisa daquelas dentro do crânio. Provocava uma protuberância no próprio globo ocular, eventualmente causando vista embaçada, o que levara o Sr. Smithson a procurar um médico no início de tudo. Ele também relatara dor de cabeça insuportável, que provavelmente o deixara ensandecido até lhe darem um analgésico à base de codeína.

— Pois é, as coisas funcionam um pouco diferente por aqui.

Oh-oh. Deve ser uma boa forma de praticar a medicina por hora e não por paciente. A comida chegou. O sanduíche estava gostoso — melhor do que a comida de hospital à qual se acostumara —, mas ela permanecia incomodada com aqueles sujeitos bebendo cerveja. A cerveja dali tinha quase o dobro do teor alcoólico da americana, e eles estavam tomando uma garrafa inteira. Mais de meio litro! Que brincadeira é essa?

— Quer ketchup nas batatas, Cathy? — Ellis lhe passou o frasco. — Ou devo dizer Lady Caroline? Ouvi dizer que Sua Alteza é padrinho de seu filho.

— Mais ou menos. Ele concordou... Jack fez o pedido no calor da hora, no hospital da Academia Naval. Os verdadeiros padrinhos são Robby e Sissy Jackson. Robby é piloto de caça da Marinha. Sissy é pianista.

— É aquele cara negro que saiu nos jornais?

— Isso mesmo. Jack o conheceu quando os dois davam aula na Academia Naval. Eram grandes amigos.

— Parece que sim. Mas as notícias estavam corretas? Quero dizer...

— Tento não pensar nisso. A única coisa boa que aconteceu naquela noite foi o nascimento do pequeno Jack.

— Posso entender, Cathy — disse Ellis, enquanto devorava o sanduíche. — A se confiar na exatidão do noticiário, deve ter sido uma noite terrível.

— Não foi nada divertida. — Ela conseguiu dar um sorriso. — O trabalho de parto e o nascimento foram a melhor parte.

Os três britânicos riram. Todos tinham filhos, e todos estiveram presentes aos nascimentos, que não eram mais prazerosos para as mulheres britânicas do que para as americanas. Meia hora depois, eles voltaram para o Moorfields. Hood fumou outro cigarro no caminho, mas demonstrou educação, evitando que o vento levasse a fumaça na direção da colega. Em dez minutos, estavam de volta à sala de cirurgia. O anestesista substituto relatou que não havia acontecido nada de anormal e, assim, continuaram.

— Quer que eu ajude agora? — perguntou Cathy, esperançosa.

— Não, obrigado, Cathy — respondeu Hood. — Está tudo bem — completou, inclinando-se sobre o paciente, que, em sono profundo, não sentia o bafo de cerveja.

Caroline Ryan, Médica e membro do Colégio Americano de Cirurgiões, pensou em se cumprimentar por não gritar como louca, mas no fim se limitou a chegar o mais perto possível, para garantir que os dois ingleses não fizessem besteira e, por engano, retirassem a orelha do paciente. Talvez o álcool dê mais firmeza às mãos deles, disse a si mesma. Mas ela precisava se concentrar para evitar que suas próprias mãos tremessem.

 

 

O CROWN AND CUSHION ERA UM AGRADÁVEL, embora típico, pub londrino. O sanduíche estava muito bom, e Ryan apreciava uma garrafa de cerveja John Smith, enquanto conversava sobre trabalho com Simon. Pensou por um instante na possibilidade de servirem cerveja na lanchonete da CIA, mas a ideia nunca seria autorizada. Alguém no Congresso descobriria e faria um escândalo diante das câmeras do canal público de TV — degustando uma taça de Chardonnay com o almoço no Capitólio, ou algo mais forte no gabinete. A cultura era diferente ali. Vive la difference, pensou, atravessando a Westminster Bridge Road na direção do Big Ben — o sino, e não a torre do sino, que, na verdade, apesar do engano dos turistas, era a Torre de St Mary. Ryan tinha certeza de que, ali, os parlamentares dispunham de três ou quatro pubs dentro do prédio. E não deviam ficar mais bêbados do que seus colegas americanos.

— Sabe, Simon, acho que estão todos preocupados com isso.

— É lamentável que ele tenha enviado a carta a Varsóvia, não acha?

— E havia como esperar que não enviasse? — contestou Ryan. — Eles são o povo dele. É a nação dele, afinal de contas, não é? É da paróquia dele que os russos estão querendo passar por cima.

— Esse é o problema — concordou Harding. — Mas os russos não vão mudar. Eis o impasse.

Ryan assentiu.

— É verdade. Quais são as chances de recuarem?

— Na falta de algum motivo mais forte, são pequenas. Seu presidente tentará alertá-los?

— Mesmo que pudesse não o faria. Não num assunto como esse, amigo.

— Portanto, temos dois lados. Um, guiado pelo que acredita ser o caminho moral apropriado. O outro, por necessidade política. Por receio de não agir. Como disse, Jack, é um maldito impasse.

— O padre Tim, em Georgetown, dizia que as guerras eram iniciadas por homens assustados. Eles ficam assustados com as consequências da guerra, e mais ainda com se abster da luta. Um modo genial de administrar o mundo — pensou Ryan, em voz alta, abrindo a porta para o colega.

— Espero que tendo agosto de 1914 como modelo.

— Certo. Mas pelo menos aqueles caras acreditavam em Deus. A segunda vez foi um pouco diferente quanto a isso. Os participantes, quero dizer, os vilões, não viviam sob esse tipo de restrição. E nem os sujeitos de Moscou agora. Entende? É preciso impor limites às nossas ações, senão podemos virar monstros.

— Diga isso ao Politburo, Jack — sugeriu Harding, bem-humorado.

— Sim, Simon, claro.

Ryan foi até o banheiro dos homens para se aliviar de parte da bebida do almoço.

 

 

A NOITE NÃO VEIO RÁPIDO o suficiente para nenhum dos jogadores. Ed Foley tentava antever o que aconteceria. Não havia garantia de que aquele cara levaria adiante o que começara. Sempre existia o risco de que perdesse a coragem. De fato, seria uma demonstração de bom senso: a traição era perigosa fora da embaixada americana.

Ele estava usando uma gravata verde de novo — a única outra que tinha — para atrair sorte. Àquela altura, até a sorte contava. Quem quer que fosse o cara, não podia se deixar levar pelo medo. Vamos lá, Ivan, continue e nós lhe daremos o que quiser, pensou Foley, tentando se comunicar mentalmente. Entrada vitalícia na Disneylândia, todos os jogos de futebol que conseguir assistir. Oleg Penkovskiy queria encontrar Kennedy; provavelmente podemos arranjar algo parecido com o novo presidente. Ei, vamos até exibir um filme no cinema da Casa Branca.

 

 

DO OUTRO LADO DA CIDADE, Mary Pat pensava exatamente na mesma coisa. Se aquilo seguisse em frente, ela participaria da abertura da peça. Se aquele cara trabalhasse na versão russa do MERCÚRIO, e se quisesse sair da Mãe-Rússia, ela e Ed teriam que achar uma maneira de realizar seu desejo. Havia caminhos que já haviam sido usados antes, mas não se podia chamá-los de "rotina". O controle de fronteiras soviético não era exatamente perfeito, mas era bastante rígido, ao menos para fazer qualquer um suar para burlá-lo. Embora ela possuísse o tipo de postura que funcionava em jogos importantes, isso não bastava para deixá-la tranquila. Ela começou a pensar em algumas ideias enquanto realizava tarefas domésticas no apartamento e Eddie tirava seu cochilo vespertino. As horas se arrastavam, um interminável segundo após o outro.

Ed Foley ainda não enviara mensagem alguma a Langley. Não estava na hora. Não tinha nada significativo a relatar e não havia sentido em deixar Bob Ritter agitado por algo que, até aquele momento, não se desenrolara. Ocorria com frequência: pessoas se aproximavam da CIA, mas depois sentiam um frio na espinha e se afastavam. Sequer havia como ir atrás delas. Na maioria das vezes, não se sabia quem eram. E, mesmo que se soubesse, caso não quisessem participar do jogo, a medida mais sensata para elas era relatar tudo à KGB. Assim, o contato americano acabava exposto como espião, tornando-se praticamente sem valor, e elas se resguardavam como cidadãs soviéticas leais e vigilantes, cumpridores do dever diante da pátria-mãe. As pessoas não se davam conta de que a CIA quase nunca recrutava seus agentes. Não, eles simplesmente se aproximavam; algumas vezes de maneira inteligente, outras, não.

Isso criava a possibilidade de se cair em uma armadilha. O FBI tinha um talento especial para esse tipo de jogada, e a Segunda Diretoria da KGB também se arriscava, só para identificar espiões entre o pessoal da embaixada, o que sempre valia a pena. Ao saber quem eram, tornava-se possível segui-los, observá-los deixando documentos em um lugar e depois montar guarda para ver quem mais passaria no local. Assim, desmascarava-se o traidor, que podia levar a outros traidores. Com sorte, descobria-se uma rede inteira de espiões, o que garantia uma medalha dourada — ou uma bela estrela vermelha — na caderneta. Oficiais de contraespionagem podiam garantir uma carreira com um caso desse tipo, tanto na Rússia quanto nos Estados Unidos, e por isso esforçavam-se bastante. O quadro da Segunda Diretoria era numeroso: supostamente metade do pessoal da KGB estava alocado lá. Espiões profissionais com toda espécie de recursos e a paciência de um abutre sobrevoando o deserto do Arizona, farejando no ar o cheiro de uma lebre morta e, em seguida, descendo com precisão para se esbaldar na carcaça.

A KGB, porém, era mais perigosa do que um abutre. Um abutre não caçava ativamente.

Ed Foley nunca tinha certeza se havia uma sombra atrás dele ao andar por Moscou. Claro que sempre suspeitava de alguém, mas podia ser apenas uma ação deliberada colocar um agente desastrado — ou excessivamente astuto — em sua cola só para verificar se tentaria despistá-lo. Todos os oficiais de inteligência recebiam treinamento em espionagem e contraespionagem, e as técnicas eram universalmente válidas e reconhecidas; por isso, Foley nunca as utilizava. Nunca, Nem uma única vez. Naquele jogo, era muito perigoso ser inteligente, porque era impossível ser Inteligente o bastante. Existiam outros ardis que podiam ser empregados quando necessário, como entregar o material em um encontro casual. A técnica era conhecida por todos os espiões do mundo, mas, mesmo assim, era muito difícil de perceber, devido à sua extrema simplicidade. Não, quando dava errado, normalmente o agente havia ficado nervoso. Era muito mais difícil ser um agente do que um oficial de campo. Foley contava com cobertura diplomática.

Os russos podiam filmá-lo sodomizando o bode de estimação de Andropov e continuariam incapazes de tomar qualquer medida contra ele. Tecnicamente, era um diplomata, protegido pela Convenção de Viena, que o considerava inviolável — mesmo em época de guerra, embora, neste caso, a situação se tornasse mais arriscada. Mas aquilo não era um problema para Foley. Ele seria executado como todos que estivessem em Moscou e, portanto, não se sentiria sozinho fosse qual fosse o destino dos espiões após a morte.

Ele se esforçou para afastar a mente das irrelevâncias, por mais divertidas que pudessem ser. Só uma coisa importava: seu amigo Ivan daria o passo seguinte ou simplesmente voltaria para a escuridão, contentando-se com ter feito a embaixada americana dançar ao ritmo de sua música em uma manhã fria de Moscou? Para descobrir, tinha de mostrar as cartas. Seria um vinte-e-um ou apenas um par de quatros?

Foi por isso que entrou nesse negócio, Ed, lembrou-se. A emoção da caçada. Sem dúvida, era emocionante, até quando a presa desaparecia na névoa da floresta. Era mais divertido enganar o urso do que descobri-lo pelo cheiro. Por que aquele sujeito estava fazendo aquilo? Dinheiro? Ideologia? Consciência? Ego? Eram as quatro razões clássicas, sintetizadas no acrônimo DCIE. Alguns espiões só queriam encher o cofrinho com notas de cem dólares. Outros passavam a acreditar na política dos países estrangeiros a que serviam com o fervor religioso dos recém-convertidos. Outros se incomodavam porque sua pátria-mãe estava fazendo algo que não podiam tolerar. Outros simplesmente tinham convicção de que eram melhores do que seus superiores e de que aquela era uma maneira de ajustar as contas com os filhos da mãe.

Historicamente, os espiões com razões ideológicas eram os mais produtivos. Homens colocavam as vidas na mesa de apostas em nome de suas crenças, razão pela qual as guerras religiosas eram tão sangrentas. Foley preferia os que tinham motivações financeiras. Eram sempre racionais e estavam dispostos a correr riscos; afinal, quanto maior o risco, maior a recompensa.

Agentes movidos pelo ego eram delicados e problemáticos. A vingança nunca era um motivo adequado para qualquer coisa, e pessoas com esse perfil costumavam ser instáveis. A consciência era quase tão boa quanto a ideologia. Pelo menos, eram movidos por alguma espécie de princípio. A verdade era que a CIA pagava bem aos seus agentes, nem que fosse com intuito de ser justa com eles. Além disso, não atrapalhava ganhar reconhecimento nas ruas. A certeza de receber uma recompensa justa era um excelente argumento para aqueles que não conseguiam se decidir. Qualquer que fosse a motivação básica, ser pago sempre tornava a coisa mais atraente. Os espiões ideológicos também precisavam comer, bem como os levados pela consciência. E os que possuíam razões pessoais percebiam que viver bem era uma ótima forma de vingança.

Qual é o seu caso, Ivan?, perguntou-se Foley. O que o leva a trair seu país? Os russos formavam um povo intensamente patriótico. Quando Stephen Decatur disse "Nosso país, certo ou errado", poderia muito bem estar falando como um cidadão russo. Mas o lugar era pessimamente administrado — tragicamente. A Rússia devia ser a nação mais azarada do mundo: primeiro, muito grande para ser governada de modo eficiente; depois, comandada pelos totalmente incapazes Romanov; finalmente, quando mal conseguiam manter a vitalidade, lançadas aos gritos no precipício da Primeira Guerra Mundial, sofrendo perdas tão consideráveis, que Vladimir Ilyich Ulyanov — Lenin — conseguiu subir ao poder e estabelecer um regime planejado para causar destruição a si mesmo. Entregando depois o país ferido ao maior psicopata desde Calígula, Josef Stalin. A repetição daquele tipo de abuso começava a abalar a fé das pessoas dali...

Você está claramente divagando, Foley, observou o Station Chief. Mais meia hora.

Ele deixaria a embaixada pontualmente e pegaria o metrô, com a capa aberta e folgada, e esperaria. Foi até o banheiro masculino. Algumas vezes, sua bexiga ficava tão agitada quanto seu cérebro.

 

 

NO OUTRO LADO DA CIDADE, Zaitzev tentava não se afobar. Só poderia usar um formulário: jogar algum fora às vistas de todos era muito perigoso. O saco para incineração não era confiável, e dificilmente ele poderia queimar um no cinzeiro. Por isso, redigiu a mensagem mentalmente, em seguida repensou as palavras, depois repensou mais uma vez — e mais uma, e mais uma e mais uma.

O processo levou mais de uma hora. Finalmente conseguiu escrevê-la discretamente, dobrar o papel e guardá-lo no maço de cigarros.

 

 

O PEQUENO EDDIE COLOCOU SUA FITA favorita dos Transformers no videocassete. Mary Pat observava preguiçosamente, em contraste com o embevecimento do filho, no chão da sala de estar. De repente, veio a luz.

É isso que sou. Eu me transformo de uma dona de casa loura e desmiolada em uma espiã da CIA. E faço isso sem dificuldade. O pensamento era agradável. Ela estava causando uma úlcera no urso soviético do tipo hemorrágica, que não podia ser curada com leite ou Rolaids. Em quarenta minutos, Ed saberá se seu novo amigo realmente quer jogar; se quiser, terei que lidar com ele. Pegarei sua mão e o conduzirei Receberei as informações e as enviarei a Langley.

O que ele nos dará?, perguntou-se. Alguma coisa interessante e substancial? Será que ele trabalha no centro de comunicações ou apenas tem acesso ao bloco de formulários? Provavelmente, muitos no Centro... bem, talvez, dependendo dos procedimentos de segurança. Tinham de ser bem restritos. Poucas pessoas seriam confiáveis nas comunicações da KGB.

E aquela também era a minhoca pendurada no anzol, lembrou-se, enquanto contemplava um trator Kenworth a diesel se transformar em um robô de duas pernas. No Natal, teriam de começar a comprar aqueles brinquedos. Ela se perguntava se Eddie precisaria de ajuda para transformá-los.

 

 

A HORA CHEGOU. ED SAIRIA pontualmente pela porta da embaixada, o que seria conveniente para sua sombra, se houvesse uma. Neste caso, ela notaria a repetição da gravata verde e pensaria que a primeira vez não fora tão incomum — não o bastante para ser um tipo de sinal para um agente sob seu controle. Nem a KGB pode achar que todo empregado da embaixada é um espião, pensou Foley. Apesar da paranoia pandêmica na União Soviética, até eles conheciam as regras do jogo, e seu amigo do New York Times provavelmente contara aos seus próprios contatos que Foley não passava de um idiota total que sequer conseguira se estabelecer como repórter de polícia na Big Apple, onde a movimentação da polícia tornava o trabalho tão complicado quanto assistir TV no fim de semana. O melhor disfarce para um espião era parecer imbecil, e quem seria melhor para garantir sua má reputação do que aquele babaca arrogante, Anthony — nunca apenas Tony — Prince?

Na rua, o ar estava frio, devido à proximidade do outono. Ed imaginou se o inverno russo era tudo o que se dizia. Se fosse, sempre havia a opção de se vestir para o tempo frio; era o calor que Foley detestava, embora se lembrasse de jogar beisebol na vizinhança com os jatos d'água saindo dos hidrantes. A inocência da juventude ficara para trás. Havia muito tempo, refletiu o Station Chief, checando o relógio de pulso enquanto entrava na estação do metrô. Como antes, a eficiência do metrô o ajudou, e ele entrou no mesmo vagão de sempre.

 

 

AU, PENSOU ZAITZEV, movendo-se naquela direção. Seu amigo americano estava exatamente como antes, lendo o jornal, a mão direita na barra superior, o casaco folgado em seus ombros... em um ou dois minutos, estava a seu lado.

 

 

A VISÃO PERIFÉRICA de Foley ainda funcionava. A forma estava lá, vestida exatamente como antes. Certo, Ivan, faça a transferência... Tome cuidado, garoto, tome muito cuidado, disse mentalmente, ciente de que seria muito perigoso sustentar aquele tipo de coisa por muito tempo. Não, eles teriam que combinar um lugar para a entrega das mensagens, um lugar mais conveniente. Mas, primeiro, precisariam se encontrar, e ele provavelmente deixaria Mary Pat se encarregar daquilo. Ela simplesmente dissimulava melhor...

 

 

ZAITZEV ESPEROU O TREM FREAR. Corpos mudaram de lugar e, então, ele rapidamente pôs a mão no bolso aberto e retirou-a. Depois, afastou-se lentamente. Não em excesso, para não parecer óbvio; apenas um movimento natural facilmente explicável pelo movimento do vagão.

 

 

ISSO! MUITO BEM, IVAN. Todos os músculos do corpo de Foley queriam se virar e encarar o sujeito, mas as regras não permitiam. Se houvesse uma sombra no vagão, as pessoas perceberiam aquilo, e o trabalho de Foley não incluía ser percebido. Então, ele esperou pacientemente sua parada. Desta vez, saiu pela direita, para longe de Ivan, e deixou o vagão, chegando à plataforma e subindo até o ar frio da rua.

Não pôs a mão no bolso. Em vez disso, andou até em casa, com a normalidade do pôr-do-sol em dia claro. Nem depois de entrar no elevador procurou o papel, porque podia muito bem haver uma câmera de vídeo no teto.

Não retirou a mensagem do bolso até entrar no apartamento. Desta vez, o papel estava todo coberto por letras em tinta preta, como antes, em inglês. Quem quer que fosse, pensou Foley, era alguém bem-educado, o que era uma ótima notícia.

— Oi, Ed. — Um beijo para os microfones. — Alguma coisa interessante no trabalho?

— As mesmas besteiras de sempre... O que temos para jantar?

— Peixe — respondeu ela, observando o papel nas mãos do marido e, imediatamente, fazendo um sinal de positivo com o polegar.

Bingo!, pensaram os dois. Tinham um agente infiltrado. Um espião na KGB.

Trabalhando para eles.


16

 


UM CHAPÉU DE PELE PARA O INVERNO

 

— ELES FIZERAM O QUÊ? — perguntou Jack.

— Pararam a cirurgia no meio para almoçar, foram a um pub e tomaram uma cerveja cada um! — repetiu Cathy. — É, eu também.

— Você não estava realizando uma cirurgia! O que aconteceria se fizessem isso lá nos Estados Unidos?

— Ah, nada demais — disse Cathy. — Provavelmente perderiam a licença para exercer a medicina... depois que Bernie amputasse as mãos deles com uma serra!

Aquilo atraiu a atenção de Jack. Cathy não costumava falar daquele jeito.

— Sem brincadeira?

— Pedi um sanduíche de bacon, alface e tomate com chips, ou melhor, batatas fritas, como nós, colonizados estúpidos, dizemos. Por falar nisso, eu tomei uma Coca.

— É bom saber, doutora.

Ryan se aproximou para dar um beijo na mulher. Ela parecia precisar.

— Nunca vi algo parecido — continuou. — Ah, talvez em Cudomundo, Montana, eles façam coisas assim, mas não num hospital de verdade.

— Cathy, acalme-se. Você está falando como um estivador.

— Ou talvez como um fuzileiro desbocado. — Ela finalmente conseguiu sorrir. — Jack, eu fiquei calada. Não sabia o que dizer. Aqueles dois cirurgiões são teoricamente mais experientes do que eu, mas, se tentassem o que fizeram uma única vez no nosso país, estariam acabados. Não os deixariam trabalhar sequer em cachorros.

— O paciente está bem?

— Ah, sim. O pedaço congelado voltou como uma pedra de gelo. Totalmente benigno. Retiramos a parte que havia crescido e o costuramos. Ele ficará bem. Apenas quatro ou cinco dias para a recuperação. Nenhum prejuízo à visão, nem dor de cabeça, mas aqueles dois palhaços o operaram com álcool no organismo!

— Sem danos, sem problema, querida.

— Jack, não devia funcionar assim.

— Então denuncie ao seu amigo Byrd.

— É o que eu devia fazer. É o que eu devia fazer mesmo.

— E o que aconteceria?

Aquilo a deixou nervosa novamente.

— Não sei!

— É muito complicado querer mudar as coisas na casa dos outros. E você acabaria marcada como criadora de caso — alertou Jack.

— Jack, no Hopkins, eu teria chamado a atenção deles naquele exato momento e lugar, e haveria a maior confusão, mas aqui... aqui sou apenas uma convidada.

— E os costumes são diferentes.

— Nem tão diferentes. Jack. É uma falta de profissionalismo grosseira. É potencialmente perigoso para o paciente, e esta é uma linha que nunca se deve cruzar. No Hopkins, se você tem um paciente em recuperação ou se tem cirurgia no dia seguinte, não bebe sequer uma taça de vinho no jantar, entendeu? Isso porque o bem do paciente vem antes de todo o resto. Claro, se você está voltando de carro para casa e vê uma pessoa ferida no acostamento, e é o único por perto, deve fazer o que for possível e depois encaminhá-lo a um médico preparado para atendê-lo. E, de preferência, dizer a esse médico que bebeu um pouco antes de se deparar com a emergência. Durante a residência, eles nos obrigam a trabalhar em turnos insuportáveis, como treinamento para tomar decisões acertadas mesmo quando não estamos totalmente funcionais. Mas sempre há alguém na retaguarda e se espera que você diga quando não estiver em condições. Entendeu? Aconteceu comigo uma vez na pediatria. Fiquei apavorada quando aquela criança parou de respirar, mas havia uma enfermeira competente me ajudando e conseguimos chamar um residente mais experiente, que veio correndo. Graças a Deus, trouxemos a criança de volta sem qualquer sequela permanente. Jack, não podemos produzir uma situação que não seja a ideal, não procuramos uma situação desse tipo. Você lida com ela quando acontece, mas não a busca voluntariamente, entendeu?

— Certo, Cath, então, o que vai fazer?

— Eu não sei. No Hopkins, procuraria o Bernie, mas não estou lá...

— E quer meu conselho?

Seus olhos azuis fixaram-se nos do marido.

— Sim. O que acha?

Jack sabia que o que achava não importava. Era somente uma questão de guiá-la até sua própria decisão.

— Se não fizer nada, como se sentirá na semana que vem?

— Horrível. Jack, eu testemunhei algo que...

— Cathy. — Ele a abraçou. — Você não precisa de mim. Vá em frente e faça o que acha correto. Ou isso vai corroer você por dentro. Nunca nos arrependemos por fazer a coisa certa, seja qual for a consequência. O certo é o certo, minha lady.

— Eles também me chamaram assim. Não me sinto bem...

— Eu sei, querida. De vez em quando me chamam de Sir John no trabalho. Você se acostuma. Não chega a ser um insulto.

— Aqui eles chamam um cirurgião de senhor ou senhora Jones, e não de doutor ou doutora Jones. Que palhaçada é essa?

— Um costume local. Remonta à Marinha Real, no século XVIII. Geralmente, o médico do navio era um jovem tenente, e, a bordo, alguém nesse posto é tratado de senhor. Por alguma razão, acabou se estabelecendo na vida civil também.

— Como sabe disso? — perguntou Cathy.

— Cathy, você é doutora em medicina. E eu sou doutor em história, lembra? Sei várias coisas, como botar um curativo na ferida, depois de passar aquela porcaria de mercurocromo. Meu conhecimento de medicina acaba aí. Aprendi um pouco na escola, mas não pretendo cuidar de um ferimento a bala, por exemplo. Isso eu deixo por sua conta. Você sabe fazer?

— Fiz isso em você no inverno — lembrou ela.

— Já lhe agradeci por isso? — perguntou. Depois, deu um beijo nela. — Obrigado, amor.

— Preciso conversar com o professor Byrd sobre isso.

— Querida, quando estiver em dúvida, faça o que achar correto. É para isso que temos uma consciência: para nos lembrar do que é correto.

— Eles não vão gostar muito do que vou fazer.

— E? Cathy, você deve gostar de você mesma. E ninguém mais. Quero dizer, eu também, claro — corrigiu Jack.

— E você gosta?

Um sorriso de apoio.

— Lady Ryan, eu venero até suas roupas sujas.

Ela finalmente relaxou.

— Bem, muito obrigada, Sir John.

— Vou subir para trocar de roupa. — Ele parou no vão da porta. — Devo usar minha espada de gala no jantar?

— Não, a normal basta. — Ela já estava conseguindo sorrir. — Então, o que tem acontecido no escritório?

— Estamos descobrindo coisas que não sabemos.

— Quer dizer descobrindo novas coisas?

— Não, quero dizer, nos dando conta de tudo que não sabemos, mas que deveríamos saber. Nunca acaba.

— Não se sinta mal. Na minha área acontece o mesmo.

Jack percebeu que a semelhança entre as duas atividades era que, se houvesse um erro, alguém podia morrer. E aquilo não tinha a menor graça.

Pouco depois, ele reapareceu, na cozinha. Cathy dava comida ao pequeno Jack. Sally assistia TV, aquele excelente calmante infantil; desta vez, era um programa local em vez da fita com o Papa-Léguas e o Coiote. O jantar estava cozinhando. Por que uma professora-assistente de oftalmologia preparava o jantar como se fosse um motorista de caminhão fugia à compreensão de Jack, mas ele não fazia objeção — ela era boa naquilo. Talvez houvesse recebido lições de cozinha em Bennington. Ele pegou uma cadeira e se serviu uma taça de vinho branco.

— Espero que a professora não veja problema nisso.

— Não tem nenhuma cirurgia amanhã, tem?

— Nada marcado, Lady Ryan.

— Então tudo bem.

Colocou o menino no ombro para arrotar, o que fez com grande satisfação.

— O que é isso, Júnior? Seu pai ficou impressionado.

— É mesmo.

Ela puxou a ponta da toalha de pano do ombro para limpar a boca da criança.

— Que tal mais um?

John Patrick Ryan Jr. não fez objeção.

— O que vocês ainda não sabem? Ainda preocupado com a mulher daquele cara? — perguntou Cathy, mais calma.

— Nada sobre isso — admitiu Jack. — Estamos preocupados com o que podem fazer em relação a uma coisa.

— Não pode dizer o que é? — perguntou.

— Não, não posso — confirmou ele. — Os russos, como diz meu colega Simon, são uma turma estranha.

— Os britânicos também — comentou Cathy.

— Meu Deus, parece que me casei com a Carrie Nation1.

Jack tomou um gole. Era um Pinot Grigio, um branco italiano bem agradável vendido nas lojas inglesas.

— Só quando corto alguém ao meio com uma faca.

Ela gostava de falar daquele jeito porque sempre provocava um arrepio no marido. Jack levantou a taça.

— Quer um pouco?

— Talvez quando eu acabar. — Fez uma pausa. — Não há nada de que possa falar?

— Desculpe, querida, são as regras.

— E você nunca as viola?

— Seria um mau hábito. É melhor nem experimentar.

— E quando um russo resolve trabalhar para nós?

— É diferente. Nesse caso, ele estaria trabalhando para as forças da verdade e da beleza no mundo. Nós somos os mocinhos — ressaltou Ryan.

— E o que eles pensam disso?

— Acham que são eles os mocinhos. Mas um sujeito chamado Adolf também achava — lembrou. — E ele não teria gostado muito de Bernie.

— Ele está morto há muito tempo.

— Nem todas as pessoas parecidas com ele estão, querida. Acredite em mim.

— Você está preocupado com algo. Posso ver, Jack. Não pode contar mesmo?

— Sim. E não, não posso.

— Tudo bem — concordou. As informações secretas não a interessavam além do seu desejo abstrato de querer saber o que acontecia no mundo. Mas, como médica, havia muitas coisas que desejava saber, como a cura do câncer, e não sabia. E, relutantemente, aprendera a aceitar aquilo. A medicina, porém, não dava muita margem a segredos.

Quando se descobria algo que pode vir a ajudar pacientes, publicava-se a pesquisa em sua revista médica preferida, para que o mundo todo pudesse tomar conhecimento imediatamente. Com certeza, a CIA não tinha aquele hábito, e em parte aquilo a incomodava. Era hora de outra tentativa.

— Bem, quando você descobre algo importante, o que acontece?

— Mandamos para o alto escalão. Aqui, vai tudo para Sir Basil, e eu informo ao almirante Greer. Normalmente ligo pelo telefone seguro.

— Como aquele lá em cima?

— Isso. Depois enviamos tudo pelo fax seguro. Se for mesmo quente, vai pela mala postal diplomática da embaixada, porque não confiamos nos sistemas de encriptação.

— E isso ocorre com frequência?

— Não desde que estou aqui, mas não sou eu que tomo essas decisões. De qualquer maneira, a mala diplomática chega em oito ou nove horas. Muito mais rápido do que antigamente.

— Pensei que aquele telefone lá em cima fosse impenetrável.

— Algumas coisas que você faz também são quase perfeitas, mas você ainda toma precauções adicionais, não é? Conosco é a mesma coisa.

— Em que casos seriam tomadas essas precauções? Teoricamente, claro.

Ela sorriu com a própria astúcia.

— Baby, você sabe formular uma pergunta. Digamos que venhamos a obter algo sobre, ahn, o arsenal nuclear deles. Algo trazido por um agente com muito acesso, algo muito bom, mas que, se fosse perdido, revelaria a identidade do informante aos inimigos. É esse tipo de material que segue pelo malote. O nome da brincadeira é proteger a fonte.

— Porque se identificarem o sujeito...

— Ele acaba morto, possivelmente de um jeito bem desagradável... Dizem que, uma vez, puseram um cara vivo no crematório e ligaram o gás. E registraram tudo em vídeo.

Pour encourager les autres, como diria Voltaire.

— Ninguém faz mais isso — contestou Cathy imediatamente.

— Há um cara em Langley que garante ter visto o filme. O nome do pobre infeliz era Popov, um oficial da GRU que trabalhava para nós. Os chefes ficaram muito decepcionados com ele.

— Está falando sério? — insistiu Cathy.

— Sério como um ataque cardíaco. Eles supostamente costumavam exibir o filme na academia da GRU, como um alerta, para que não passassem para o outro lado. Não creio que seja um método psicológico bom, mas, como disse, conheci um cara que garante ter assistido ao filme. Enfim, essa é uma das razões pelas quais tentamos proteger nossas fontes.

— É meio difícil de acreditar.

— Ah, é mesmo? Quer dizer, como um cirurgião parando uma cirurgia para almoçar e tomando uma cerveja?

— É... sim.

— Vivemos em um mundo imperfeito, querida.

Jack deixaria as coisas seguirem seu caminho naturalmente. Cathy teria tempo para pensar, e ele poderia trabalhar no livro sobre Halsey.

 

 

EM MOSCOU, OS DEDOS voavam.

Como contará a L[angley]?, perguntou ela.

N[ão] tenho cer[teza], respondeu ele.

M[ala] pos[tal], sugeriu ela. Isso pode ser real[mente] qu[ente].

Ed fez um gesto de concordância.

Rit[ter] ficará agi[tado].

Na h[ora], concordou ela. Quer que eu cui[de] do enc[ontro]?, perguntou.

S[eu] ru[sso] é m[uito] bom, disse ele.

Ela reconheceu que era verdade. Ed sabia que ela falava um russo elegante e literário, reservado aos bem educados do país. O soviético mediano não acreditava que um estrangeiro tivesse domínio do russo naquele nível. Quando andava na rua ou conversava com um vendedor, ela nunca dava sinal daquele talento, preferindo demonstrar dificuldade com estruturas mais complexas. De outra forma, seria notada imediatamente, e evitar isso era uma parte importante do seu disfarce — mais do que o cabelo louro e os maneirismos americanos. Qualquer deslize a exporia ao agente encarregado de segui-la.

Quando?, perguntou.

Iv[an] quer am[anhã]. Está pronta?

Ela deu um tapinha na cintura do marido e sorriu de modo sedutor e travesso, querendo dizer pode apostar.

Foley amava a esposa tanto quanto um homem podia amar uma mulher. E parte disso se devia ao respeito pela dedicação dela ao jogo do qual os dois participavam.

Os diretores de elenco da Paramount não seriam capazes de encontrar uma esposa melhor para ele. Os dois fariam amor naquela noite. No boxe, a regra era "sem sexo antes de uma luta", mas Mary Pat pensava ao contrário. E se os microfones nas paredes registrassem algo, pensou o chefe da base com um sorriso malicioso, que se danassem.

 

 

— QUANDO VOCÊ PARTE, Bob? — perguntou Greer ao DDO.

— Domingo. Vou pela All Nippon Airways até Tóquio, e de lá para Seul.

— Antes você do que eu. Odeio esses voos longos — comentou o DDI.

— O jeito é tentar dormir metade do tempo. — Ritter era bom naquilo. Tinha uma reunião marcada com a CIA sobre questões envolvendo a Coreia do Norte e a China. Ambas o preocupavam. E aos coreanos também. — Não há muito acontecendo na minha área mesmo.

— É bem esperto de sua parte deixar a cidade quando temos o presidente fungando no meu cangote por causa do papa — pensou o juiz Moore, em voz alta.

— Bem, me desculpe por isso, Arthur — respondeu Ritter, dando um sorriso irônico. — Mike Bostock cuidará das coisas na minha ausência.

Os dois conheciam e apreciavam Bostock, um espião de carreira e especialista na União Soviética e no Leste Europeu. No entanto, intrépido demais para ser aceito no Capitólio, o que era uma pena. Pessoas daquele tipo podiam ser úteis — como Mary Pat Foley, por exemplo.

— Nada sobre a reunião do Politburo ainda?

— Até agora, não, Arthur. Talvez só tenham discutido assuntos de rotina. Sabe como é, eles não se sentam lá sempre para planejar a próxima guerra nuclear...

— Não — disse Greer, rindo. — Eles acham que nós é que estamos sempre pensando nisso. Meu Deus, não passam de um bando de paranoicos.

— Lembre-se do que Henry disse: Até os paranoicos têm inimigos. E esse é o nosso trabalho — observou Ritter.

— Ainda pensando na MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE, Robert? — perguntou Moore.

— Nada específico. As pessoas com as quais conversei sobre isso... Maldição, Arthur, você diz para nosso pessoal tentar sair do nosso mundinho, e o que eles fazem? Constroem um mundinho mais fechado ainda!

— Não temos muita gente com espírito empreendedor aqui, não se esqueça. Agência do governo. Limite salarial. Isso tende a atuar contra o pensamento criativo. É para isso que estamos aqui — explicou o juiz Moore. — Como podemos mudar isso?

— Temos algumas pessoas do mundo real — disse Greer. — Tenho um na minha própria equipe. Ele não sabe pensar dentro do nosso mundinho.

— Ryan? — perguntou Ritter.

— Sim, é um deles — confirmou Jim Greer.

— Ele não é um dos nossos — retrucou o DDO imediatamente.

— Bom, você não pode querer ter tudo ao mesmo tempo — reagiu o DDI. — Ou você quer um cara que pensa como um dos nossos burocratas ou um cara que raciocina de modo criativo. Além de conhecer as regras, é um ex-fuzileiro capaz de agir com rapidez e logo será um analista de primeira. — Greer parou por um momento. — É o melhor jovem oficial que vi por aqui nos últimos anos, e não consigo entender qual é seu problema com ele, Robert.

— Basil gosta dele — acrescentou Moore. — E Basil é um homem difícil de se enganar.

— Da próxima vez que encontrar Jack, quero deixá-lo a par da MORTE ESCARLATE.

— Está falando sério? — perguntou Moore. — Vai muito além da posição dele.

— Arthur, ele entende mais de economia do que qualquer um na Divisão de Inteligência. Só não o coloquei no setor de economia porque ele é muito esperto para ficar limitado dessa forma. Bob, se você quer aniquilar a União Soviética sem uma guerra, a única alternativa é comprometer a economia deles. Ryan faturou uma montanha de dinheiro porque conhece todos esses assuntos. Acredite em mim, ele sabe separar o joio do trigo. Talvez consiga até achar uma maneira de destruir um campo de trigo. De qualquer modo, que mal pode haver? Seu projeto é totalmente teórico, não é?

— E então? — perguntou o DCI, virando-se para Ritter. Greer estava certo, no fim das contas.

— Ah, diabos, tudo bem — cedeu o DDO. — Desde que ele não fale sobre isso com o Washington Post. Não precisamos que essa ideia venha a público. O Congresso e a imprensa ficariam loucos.

— Jack conversar com a imprensa? — disse Greer. — Improvável. Ele não negocia favores com ninguém. E isso nos inclui. Acho que é alguém em quem podemos confiar. A KGB inteira não teria dinheiro vivo suficiente para comprá-lo. É mais do que posso dizer de mim mesmo — brincou.

— Vou me lembrar de tudo que está dizendo, James — prometeu Ritter, com um meio sorriso.

Piadas como aquela, em Langley, normalmente eram exclusividade do sétimo andar.

 

 

UMA LOJA DE DEPARTAMENTOS era uma loja de departamentos em qualquer lugar do mundo. E a GUM era, supostamente, a correspondente da Macy nova-iorquina em Moscou. Teoricamente, pensou Ed Foley, passando pela entrada principal — assim como, teoricamente, a União Soviética era formada por repúblicas reunidas voluntariamente e, também teoricamente, a Rússia possuía uma Constituição que estava acima da vontade do Partido Comunista. E, teoricamente, existia um coelhinho da páscoa, acrescentou Foley, olhando ao redor.

Eles pegaram a escada rolante até o segundo piso. Era de um tipo antigo, com estrutura de madeira, em vez do metal que havia muito tempo se tornara regra no Ocidente. A seção de peles ficava à direita, na direção dos fundos. À primeira vista, a qualidade dos produtos não parecia tão baixa quanto o previsto.

A melhor parte era que Ivan também estava ali, vestindo a mesma roupa do metrô.

Talvez seja seu melhor terno, pensou Foley. Se fosse o caso, era melhor levar aquele traseiro dele para um país ocidental o mais rapidamente possível.

Fora a qualidade no máximo medíocre dos produtos vendidos, uma loja de departamentos era uma loja de departamentos, embora ali a organização estivesse mais próxima de lojas semi-independentes. Ivan era esperto. Sugerira o encontro em uma área onde certamente haveria itens de alta qualidade.

Por milênios, a Rússia tinha sido marcada por invernos muito frios; um lugar onde até os elefantes haviam usado casacos de pele. E, como 25 por cento do sangue humano vai para o cérebro, os homens precisavam de chapéus. Os chapéus de pele mais decentes eram chamados shapkas, proteções vagamente tubulares que passavam longe de um formato preciso, mas serviam para evitar que o cérebro congelasse. Os melhores eram feitos com pele de rato almiscarado. O visom e a zibeline iam apenas para as lojas mais sofisticadas, sempre reservados para mulheres de posse, ou seja, esposas e amantes de ministros e autoridades do partido. O nobre rato almiscarado era uma criatura fedorenta do pântano, mas de algum modo eles conseguiam tirar o cheiro da pele para que o usuário não fosse confundido com um aterro sanitário. O animal, contudo, tinha um bom pelo, cabelo ou o que fosse, e funcionava como isolante eficaz. Ótimo, um rato com avaliação positiva. Mas esta não era a parte importante.

Ed e Mary Pat conseguiam se comunicar com os olhos, embora o método impusesse um limite à quantidade de informações. O horário ajudava. Os chapéus de inverno tinham acabado de chegar, e o clima de outono ainda não incentivava as pessoas a correr para comprá-los. Havia apenas um homem, vestindo um paletó marrom. Mary Pat andou em sua direção, depois de se afastar do marido, como se pretendesse lhe comprar um presente-surpresa.

O homem fazia compras, assim como ela, e estava na seção de chapéus. Ele não é uma fraude, seja quem for, pensou.

— Com licença — disse ela, em russo.

— Sim? — Ele virou a cabeça. Mary Pat o analisou: tinha trinta e poucos anos, mas parecia mais velho. A vida na Rússia favorecia o envelhecimento precoce, mais até do que em Nova York. Cabelos e olhos castanhos, olhar astuto. Era um bom sinal.

— Estou procurando um chapéu de inverno para meu marido, como você sugeriu — continuou ela, em um russo perfeito. — No metrô.

Ela percebeu imediatamente que ele não esperava uma mulher. O homem piscou excessivamente e observou-a, tentando entender a origem daquele russo perfeito, considerando o fato de que só podia ser uma americana.

— No metrô?

— Isso. Meu marido imaginou que seria melhor que eu o encontrasse, em vez dele mesmo. Então... — Ela pegou um chapéu e passou a mão sobre os pelos. Depois, virou-se para o novo amigo, como se estivesse pedindo sua opinião. — Então, o que deseja de nós?

— O que quer dizer? — respondeu imediatamente.

— Você se aproximou de um americano e solicitou um encontro. Quer me ajudar a comprar um chapéu para meu marido? — perguntou com toda a calma.

— Você é da CIA? — perguntou ele, recuperando algum controle sobre seus pensamentos.

— Sim, meu marido e eu trabalhamos para o governo dos Estados Unidos, e você, para a KGB.

— Sim, comunicações. Centro de comunicações.

— Sério? — Ela se virou para o suporte e pegou outra shapka. Caramba, pensou. Mas ele estaria dizendo a verdade ou apenas queria uma passagem grátis para Nova York?

— E como posso ter certeza disso?

— Estou dizendo — respondeu ele, surpreso e um pouco ofendido com o questionamento de sua honestidade. Aquela mulher pensaria que ele estava arriscando a vida por uma brincadeira? — Por que está falando comigo?

— Os formulários entregues no metrô realmente atraíram minha atenção — disse ela, segurando um chapéu marrom e assumindo um semblante de desaprovação, como se fosse muito escuro.

— Senhora, eu trabalho na Oitava Diretoria.

— Em que departamento?

— Processamento de comunicações. Não integro o serviço de inteligência de sinais. Sou um oficial de comunicações. Transmito mensagens para várias rezidenturas e, quando chegam mensagens de outros lugares à minha mesa, encaminho-as aos destinatários apropriados. Por isso, acabo vendo muito material operacional. É suficiente para seu propósito?

Pelo menos estava representando corretamente, apontando para a shapka e balançando a cabeça, depois indicando outro modelo com pelo marrom mais claro, quase louro.

— Acredito que sim. O que quer de nós?

— Tenho informações de grande relevância. Enorme relevância. Em troca dessas informações, peço transferência para o Ocidente, levando minha esposa e minha filha.

— Qual é a idade da sua filha?

— Três anos e sete meses. Você pode atender minhas exigências?

A pergunta lançou um jato de adrenalina no sangue de Mary Pat. Ela precisava tomar a decisão quase imediatamente e, com ela, estaria comprometendo todo o poder da CIA em um único caso. Tirar três pessoas da União Soviética não seria uma tarefa trivial. Mas esse cara trabalha no MERCÚRIO, lembrou Mary Pat. Ele sabia de coisas que nem uma centena de agentes bem encaixados seria capaz de descobrir. Ivan era responsável pela proteção das joias da coroa russa, mais valiosas do que os bagos de Brejnev. Portanto...

— Sim, podemos tirar você e sua família daqui. Quando seria?

— Assim que for possível. A informação que tenho é muito delicada em termos de tempo. Não revelo nada até estar no Ocidente, mas asseguro que se trata de algo de extrema importância. É importante o bastante para me forçar a fazer isso — acrescentou, como uma isca a mais.

Não se empolgue com suas cartas, Ivan, pensou ela. Um agente movido pelo ego diria ter os códigos de disparo dos mísseis estratégicos russos, quando na verdade seria apenas da receita de borscht de sua mãe. Tirar o sujeito dali seria um gasto de recursos que precisavam ser usados com o máximo de cuidado. Mas, para descartar aquela possibilidade, Mary Pat confiava em seus olhos. Ela contemplava a alma do homem e percebia que "mentir" provavelmente não era uma de suas características.

— Sim, podemos realizar isso rapidamente, se necessário. Precisamos discutir locais e métodos. Não devemos mais conversar aqui. Sugiro um lugar para falarmos dos detalhes.

— Isso é simples — respondeu Zaitzev, definindo o ponto de encontro para a manhã seguinte.

Você está com pressa.

— Como o chamarei? — perguntou ela.

— Oleg Ivanovich — respondeu ele, automaticamente, percebendo logo em seguida que acabava de dizer a verdade em uma situação em que a dissimulação talvez lhe servisse melhor.

— Muito bem. Meu nome é Maria — respondeu ela. — Mas, então, que shapka me recomenda?

— Para seu marido? Este aqui, com certeza — disse Zaitzev, entregando-lhe uma marrom-escuro.

— Então vou comprar. Obrigada, camarada. — Ela mexeu um pouco no chapéu e depois se afastou, verificando a etiqueta de preço: 180 rublos, mais do que o salário de um mês inteiro de um trabalhador de Moscou. Para concretizar a compra, teve que entregar a shapka a uma funcionária, depois ir até a caixa registradora e fazer o pagamento em dinheiro — os soviéticos ainda não haviam descoberto o cartão de crédito. Pegou o recibo, repassou-o à primeira funcionária e, finalmente, recebeu o produto.

Era verdade então: os russos realmente eram mais ineficientes do que seu governo. Por mais inacreditável que parecesse, bastava ver para crer. Ela agarrou a sacola de papel marrom e encontrou o marido, conduzindo-o rapidamente para fora.

— O que comprou para mim?

— Algo de que vai gostar — prometeu ela, erguendo a sacola.

Seus olhos azuis revelavam tudo. Ela verificou o relógio. Ainda eram três da manhã em Washington: muito cedo para ligar e informar o que acontecera. Não era assunto para o pessoal da noite, nem para os mais confiáveis do MERCÚRIO. Aprendera aquilo do modo mais difícil. Não, colocaria tudo no papel, codificaria e enviaria no malote diplomático. Depois, seria uma questão de obter a autorização de Langley.

 

 

UM MECÂNICO DA EMBAIXADA fizera uma limpeza no carro deles no dia anterior — todos na embaixada cumpriam esse procedimento rotineiramente, portanto, aquilo não os denunciava como espiões. Não houve interferência nos dispositivos das portas e do capô na noite anterior. O Mercedes 280 também tinha alarme bem sofisticado.

Diante disso, Ed Foley apenas aumentou o volume do toca-fitas. Era uma fita dos Bee Gees, que certamente perturbaria qualquer pessoa operando uma escuta. A altura do som também seria suficiente para inutilizá-la. No banco do carona, Mary Pat dançava ao som da música, como uma garota da Califórnia.

— Nosso amigo precisa de um passeio — disse ela, alto, para que o marido a ouvisse. — Ele, a esposa e a filha de três anos e meio.

— Quando? — quis saber Ed.

— Logo.

— Como?

— Isso é conosco.

— Ele é "quente"? — perguntou Ed, querendo dizer "Vale o nosso tempo?".

— Acho que sim.

Não havia como ter certeza, mas Mary Pat tinha talento para entender as pessoas, e Ed estava disposto a apostar naquelas cartas. Fez um gesto de anuência.

— Certo.

— Temos companhia? — perguntou ela.

Os olhos de Foley dividiam-se entre as ruas e os espelhos. Se estivessem sendo seguidos, era pelo homem invisível.

— Não.

— Ótimo. — Ela baixou um pouco o volume. — Sabe que também gosto disso, mas não abuse dos ouvidos.

— Tudo bem, querida. Preciso voltar ao escritório à tarde.

— Para quê? — perguntou, no tom meio irritado que todos os maridos do mundo conhecem.

— Tenho de cuidar de uma papelada de ontem...

— E conferir os resultados do beisebol — completou ela. — Ed, por que não podemos instalar TV via satélite no nosso apartamento?

— Eles estão providenciando, mas os russos criaram alguns obstáculos, por temerem que seja usado como instrumento de espionagem — disse, contrariado.

— Claro. Ah, dá um tempo — disse ela, para o caso de haver algum espertinho da KGB à espreita no estacionamento à noite.

Talvez o FBI pudesse fazer aquilo, mas, embora eles tivessem que se precaver contra a possibilidade, duvidava que os russos dispusessem de alguém tão inteligente. Seus rádios eram aparelhos imensos. Certo, eles eram paranoicos, mas até que ponto?

 

 

CATHY LEVOU SALLY e o pequeno Jack para fora. Havia um parque a um quarteirão e meio, perto da Fristow Way, com balanços para Sally e grama para o garotinho pegar e tentar comer. Ele acabara de aprender a usar as mãos, desajeitadamente, mas tudo que cabia em suas pequenas garras imediatamente ia parar na boca — um hábito conhecido por todos os pais do mundo. Apesar disso, era uma forma de as crianças pegarem um pouco de sol — o inverno seria longo e escuro por lá — e deixar a casa silenciosa para Jack trabalhar em seu livro sobre Halsey.

Ele já se apoderara de um dos livros médicos de Cathy, Elementos de medicina interna, para pesquisar sobre o herpes-zoster, doença de pele que afligira o almirante em uma época muito imprópria. Só de ler o subcapítulo da doença — relacionado à catapora —, imaginou que devia ter sido como tortura medieval para o veterano aviador naval. Para piorar, sua amada esquadra de porta-aviões, Enterprise e Yorktown, teria que participar de uma importante missão sem ele. No entanto, enfrentou tudo como homem — a única maneira que William Frederick Halsey Jr. conhecia — e indicou o amigo Raymond Spruance para seu lugar. Os dois não podiam ser mais diferentes. Halsey, o ex-jogador de futebol, profano, bebedor contumaz e fumante inveterado. Spruance, o intelectual avesso ao fumo, abstêmio, que nunca teria erguido a voz em um momento de raiva. Mas haviam se tornado grandes amigos e, posteriormente, na guerra, se alternariam no comando da frota do Pacífico, mudando o nome de Terceira Frota para Quinta Frota e de volta ao normal quando o comando fora trocado. Essa era a indicação mais clara de que Halsey também era cerebral e não apenas o raivoso agressor que os jornais contemporâneos proclamavam, pensou Ryan. Spruance, o intelectual, não teria se aproximado de um bárbaro. Mas seus comandados costumavam se estranhar como gatos disputando uma fêmea no cio. Provavelmente, o equivalente militar do "meu pai pode bater no seu pai", comum entre crianças de sete anos — e com o mesmo nível intelectual.

Ele conhecia as palavras do próprio Halsey sobre a doença, porém talvez tivessem sido amenizadas pelo editor e o coautor, já que o almirante realmente falava como um subordinado de contramestre depois de tomar uns tragos — o que provavelmente explicava por que os repórteres gostavam tanto dele. Halsey rendia um texto excelente.

As anotações de Jack e alguns documentos formavam uma pilha ao lado do seu Apple IIe. Ele usava o editor de texto WordStar; um pouco complicado, mas muito melhor do que uma máquina de escrever. Imaginava qual seria a melhor editora para o livro. O Instituto Naval estava interessado, mas ele pensava em buscar uma editora de primeira linha. Só precisava acabar o maldito livro primeiro. Retornou à complexa mente de Halsey.

Estava inseguro, o que não era comum. A digitação — com três dedos e um polegar (dois polegares nos dias bons) — estava normal, mas a mente não se concentrava, como se quisesse se dedicar a outro assunto. Era uma das pragas do trabalho como analista da CIA. Era simplesmente impossível esquecer algumas questões, forçando o cérebro a investigar o mesmo material, repetidas vezes, até esbarrar na resposta para a pergunta que, frequentemente, parecia não fazer muito sentido. O mesmo acontecera ocasionalmente em sua passagem pela Merrill Lynch, quando analisava ações, procurando pontos fortes ou riscos escondidos nas operações e nas finanças de companhias de capital aberto. Eventualmente, aquilo o deixava em conflito com os figurões do escritório de Nova York, mas Ryan nunca foi de fazer algo só porque eram as ordens. Mesmo nos marines, esperava-se que um oficial, por mais inexperiente, fosse capaz de raciocinar. E um corretor de ações devia cuidar do dinheiro dos clientes como se fosse seu. Na maioria dos casos, foi bem-sucedido. Depois de colocar seus próprios recursos na Chicago and Northwestern Railroad, tinha sido duramente criticado pelos supervisores, mas mantivera a convicção. Os clientes que confiaram nele receberam um belo dinheiro — e acabaram lhe garantindo inúmeros outros clientes.

Assim, Ryan aprendeu a ouvir seus instintos para aplacar as coceiras que não podia ver e mal sentia. O papa era um desses casos. As informações de que dispunha não formavam um cenário completo, mas ele estava acostumado àquilo. No mercado de ações, aprendera como e quando apostar seu dinheiro em cenários incompletos. Em dez vezes, acertava nove.

Naquele caso em particular, não tinha nada a apostar, a não ser sua curiosidade. Havia algo acontecendo. Ele só não sabia o quê. Vira apenas a cópia de uma carta de aviso enviada a Varsóvia e certamente reencaminhada a Moscou, onde um bando de senhores de idade a tomariam como ameaça. Ryan disse a si mesmo que não era um grande ponto de partida. Percebeu que desejava um cigarro. Esse tipo de coisa, às vezes, ajudava em seu processo criativo, mas ele teria que enfrentar a fúria de Cathy se ela sentisse cheiro de fumaça na casa. Mascar chiclete simplesmente não funcionava em situações como aquela.

Ele precisava da presença de Jim Greer. O almirante costumava tratá-lo como filho adotivo — Ryan soube que seu filho verdadeiro havia sido morto como tenente dos fuzileiros no Vietnã —, e aquilo lhe dava oportunidade de conversar sobre os problemas. Onde estava, não tinha intimidade com Sir Basil Charleston, e Simon era quase da sua idade, embora mais experiente. E aquele não era um problema para se analisar sozinho. Queria poder discuti-lo com a mulher, pois conhecia a inteligência dos médicos, mas não era permitido. E, de qualquer forma, Cathy não dominava a situação a ponto de entender as ameaças. Não, ela crescera em ambiente privilegiado, filha de um milionário negociante de ações e títulos, morando em um amplo apartamento na Park Avenue, frequentando as melhores escolas, ganhando um carro novo no aniversário de dezesseis anos, protegida de todos os perigos da vida. Não era o caso de Jack. Seu pai tinha sido policial, investigador de homicídios e, embora não levasse trabalho para casa, Jack fazia perguntas suficientes para entender que o mundo real podia ser um lugar de perigos imprevisíveis e que algumas pessoas não pensavam como pessoas de verdade. Eram conhecidos como os caras maus — e podiam ser bem maus. Ele nunca vivera sem a sombra da consciência. Se aprendera na infância distante ou na escola católica ou se simplesmente estava em seu código genético, Jack não sabia. Sabia, porém, que quebrar as regras raramente era bom. E também que as regras eram produto da razão e, sendo a razão absoluta, podiam ser quebradas se houvesse uma boa razão para tanto. Isso se chamava juízo e, estranhamente, o período nos marines o ajudara a desenvolvê-lo. Fazia-se uma avaliação da situação e se analisavam as opções; depois, agia-se. Por vezes, tudo acontecia muito rápido, razão pela qual oficiais ganhavam mais do que sargentos, embora sempre fosse aconselhável ouvir os artilheiros, se houvesse tempo.

Mas Ryan não podia contar com nada daquilo. Essa era a má notícia. Por outro lado, não havia uma ameaça identificável à vista, e essa era a boa notícia. No entanto, agora ele estava em um ambiente em que as ameaças não eram imediatamente visíveis. Era seu trabalho encontrá-las, juntando as informações disponíveis, também escassas. Só havia possibilidades, que ele tinha que aplicar às mentes de pessoas que não conhecia e nunca encontraria, exceto como parte de documentos escritos por outras pessoas que não conhecia. Era como ser o navegador de um navio da pequena frota de Cristóvão Colombo, acreditando que havia terras além do horizonte, mas sem saber onde ou quando apareceriam — e rezando a Deus que não fosse à noite, no meio de uma tempestade, e que a terra não surgisse sob a forma de um recife de corais, que destruiria o casco da embarcação. Sua vida não estava em perigo, mas, assim como fora compelido por obrigação profissional a cuidar do dinheiro dos clientes como se fosse seu, também cuidava das vidas de homens em perigo potencial como se fossem as vidas de seus próprios filhos.

E era dali que vinha a coceira. Ryan pensou que podia ligar para o almirante Greer, mas ainda não eram sete da manhã em Washington, e não estaria prestando um favor ao chefe acordando-o com o trinado do telefone protegido de sua casa. Principalmente porque não tinha nada a contar, só perguntas a fazer. Diante disso, recostou-se na cadeira e ficou olhando para a tela verde do monitor do Apple, procurando algo que simplesmente não estava ali.

 

_______________

1 Carrie Amelia Moore Nation (1846-1911) era líder do movimento americano Temperance, de combate à bebida alcoólica, anterior à Lei Seca.


17

 


TROCA DE MENSAGENS

 

NO ESCRITÓRIO, ED FOLEY escreveu:

 

PRIORIDADE: Flash

PARA:DDO/CIA

CC: DCI, DDI

DE: ESCRITÓRIO DE MOSCOU

ASSUNTO: Coelho

O TEXTO SE SEGUE: TEMOS UM COELHO, UM DESERTOR BEM POSICIONADO, QUE GARANTE SER UM OFICIAL DE COMUNICAÇÕES NO CENTRO MOSCOU, COM INFORMAÇÕES DO INTERESSE DO NOSSO GOVERNO. AVALIAÇÃO: CONFIÁVEL. 5/5. PEÇO AUTORIZAÇÃO URGENTE PARA REMOÇÃO IMEDIATA DA TERRA VERMELHA. O PACOTE INCLUI A MULHER E A FILHA DO COELHO (3).

REQUERIDA PRIORIDADE 5/5.

FIM.

 

OK, agora está suficientemente conciso, pensou Foley. Para aquele tipo de mensagem, quanto mais breve, melhor. Dava menos chance ao inimigo de trabalhar no texto e quebrar o código, caso conseguissem interceptá-la.

Mas só as mãos da CIA tocariam a mensagem. Havia muito em jogo naquele despacho operacional. Os números 5/5 representavam a importância estimada da informação em questão, bem como sua precisão presumida e a prioridade da ação proposta. A classe 5 era a mais alta. Ele fez uma avaliação idêntica da exatidão do tema. Quatro ases.

Não era o tipo de despacho que se faz todo dia. Era a classificação dada a mensagens de Oleg Penkovskiy ou do próprio agente CARDEAL, ou seja, o mais quente possível.

Ele parou para pensar um pouco, imaginando se suas suposições eram corretas, mas, ao longo da carreira, Ed Foley aprendeu a acreditar no instinto. Também comparou seus pensamentos aos da mulher, e os instintos dela se mostraram igualmente afinados.

Aquele Coelho — jargão da CIA para os que precisavam de uma passagem rápida para fora de algum lugar — alegava ser muita coisa. Mas também mostrava sinais de que era exatamente o que alegava: dono de informações muito quentes. Aquilo o tornava um desertor por crise de consciência e, portanto, confiável. Se fosse um truque, uma isca, teria pedido dinheiro, porque a KGB imaginava que desertores pensavam dessa forma — e a CIA nunca fez nada para desfazer esse equívoco.

Então, simplesmente parecia certo, embora algo que "parece certo" não deva ser enviado por malote diplomático ao sétimo andar da agência. Teriam que aceitar aquilo.

Precisavam confiar nele. Era o chefe da base em Moscou, o principal posto de campo da CIA, e isso lhe garantia um caminhão de credibilidade. Precisariam pesar isso contra os eventuais receios que estivessem sentindo. Se houvesse uma reunião de cúpula marcada, a transação podia ser arruinada, mas o presidente não parecia ter planos nesse sentido, nem o secretário de Estado. Portanto, não havia obstáculos que impedissem Langley de aprovar alguma forma de ação — se considerasse a decisão adequada... Foley sequer sabia por que estava se questionando. Ele era "o homem" em Moscou, e isso bastava.

Levantou o fone e apertou três botões.

— Russell — disse uma voz.

— Mike, é o Ed. Preciso de você aqui.

— Certo.

Um minuto e meio depois, a porta se abriu.

— Diga, Ed.

— Tenho algo para o malote.

Russell olhou o relógio.

— Não há muito tempo, cara.

— É curto. Terei que descer com você.

— Bem, então vamos lá, irmão.

Russell passou pela porta, seguido imediatamente por Foley. Felizmente, o corredor estava vazio, e seu escritório não ficava longe.

O responsável pelas comunicações sentou na cadeira giratória e ligou a máquina de cifras. Foley entregou a folha. Russell prendeu-a a um suporte bem ao lado do teclado.

— Bem curto mesmo — disse em aprovação, antes de começar a digitar.

Ele era quase tão bom naquilo quanto a secretária do embaixador. Acabou a tarefa em um minuto, incluindo o tempo necessário para acrescentar dezesseis sobrenomes escolhidos aleatoriamente no catálogo telefônico de Praga. Quando a nova página saiu da máquina, Foley pegou-a, dobrou-a e colocou-a em um envelope com lacre. Selou o envelope e pingou cera antes de devolvê-lo a Russell.

— Volto em cinco minutos, Ed — disse o oficial de comunicações enquanto saía.

Ele pegou o elevador até o primeiro andar. O entregador do malote estava lá. Seu nome era Tommy Cox, ex-subtenente e piloto de helicóptero do Exército, alvejado quatro vezes no planalto central do Vietnã como integrante da Primeira Divisão de Cavalaria e tinha os sentimentos mais negativos pelos inimigos de seu país. A mala diplomática era feita de lona e podia ser presa ao pulso com algemas durante os deslocamentos.

Tinha reserva em um 747 da Pan Am que iria sem escalas até o aeroporto internacional Kennedy, em Nova York. Um voo de onze horas, durante as quais ele não beberia ou dormiria, embora levasse três livros de bolso para ler no caminho. Deixaria a embaixada a bordo de um carro oficial em dez minutos, e suas credenciais diplomáticas garantiam que não seria incomodado com procedimentos de segurança ou migração. Na verdade, os russos eram bem cordiais em relação àquilo, ainda que sonhassem com a oportunidade de ver o que havia no interior da sacola de lona. Certamente, não eram perfumes ou meias-calças russas para uma amiga de Nova York ou Washington.

— Bom voo, Tommy.

— Positivo, Mike.

Russell retornou ao escritório de Foley no último andar.

— Pronto, está no malote. O voo sai em um hora e dez minutos, cara.

— Muito bom.

— Coelho é o que estou pensando?

— Não posso dizer, Mike — respondeu Foley.

— É, eu sei, Ed. Me desculpe pela pergunta.

Russell não costumava quebrar as regras, embora fosse tão curioso quanto qualquer pessoa normal. E ele, obviamente, sabia o que era um Coelho. Passara a vida inteira no mundo da espionagem, em diferentes funções, e o jargão não era tão difícil de entender. Mas aquele mundo tinha muros, e lá estava um deles.

Foley recolheu sua cópia da mensagem, guardou-a no cofre de sua sala e ativou a combinação e o alarme. Depois, encaminhou-se para a lanchonete da embaixada, onde um aparelho de TV sintonizava a ESPN. Ficou sabendo que os Yankees haviam perdido mais uma — três seguidas na corrida pelo título! Não há justiça no mundo?, reclamou.

 

 

MARY PAT ESTAVA cuidando das tarefas domésticas, que eram monótonas mas lhe davam uma boa oportunidade para pôr o cérebro em modo neutro enquanto sua imaginação andava a mil. Certo: encontraria Oleg Ivanovich novamente. Caberia a ela planejar uma maneira de levar o "pacote" — outro termo da CIA, que significava material ou pessoa que precisava ser retirada do país — a um local seguro. Havia muitas formas de realizar aquilo; todas perigosas. Entretanto, ela, Ed e outros agentes de campo da CIA recebiam treinamento para fazer coisas perigosas. Moscou tinha milhões de moradores e, em um ambiente desse tipo, três pessoas em trânsito acabavam em segundo plano — como uma folha solitária caindo na floresta durante o outono, ou mais um búfalo no rebanho do parque nacional Yellowstone, ou mais um carro nas vias expressas de Los Angeles na hora do rush. Não podia ser tão difícil, podia?

Bem, na realidade, podia. Na União Soviética, todos os aspectos da vida pessoal estavam sujeitos ao controle oficial. Sim, no caso dos Estados Unidos, o pacote representava apenas mais um carro em uma via expressa de Los Angeles, mas para ir até Las Vegas era preciso atravessar os limites de um estado. E dar uma razão para aquilo.

Nada era tão fácil ali quanto nos Estados Unidos.

E havia mais uma coisa...

Seria melhor que os russos não percebessem sua partida, pensou Mary Pat. Afinal, não se tratava de um assassinato, até que houvesse um corpo para indicar a todos que alguém tinha morrido. E não se tratava de um desertor, até que soubessem que um de seus cidadãos havia aparecido em outro país — onde não devia estar. Como seria melhor... será possível?, pensou ela.

Não seria um golpe humilhante? Mas como fazer aquilo acontecer? Era algo para pensar enquanto passava o aspirador de pó no tapete da sala. Ah, e por falar nisso, passar o aspirador tornava inútil qualquer escuta que os russos tivessem colocado nas paredes... Então ela parou tudo. Por que desperdiçar aquele recurso? Ela e Ed podiam se comunicar com as mãos, mas uma opção que permitisse maior volume de dados seria bem-vinda.

Ela imaginava se Ed iria com tudo naquela oportunidade. É possível, pensou. Não era o tipo de coisa que ele planejaria. Apesar de todo o seu talento, Ed não era audacioso. Tinha habilidades, excelentes por sinal, mas atuava melhor no comando de um bombardeiro do que como piloto de caça. Mary Pat, por sua vez, pensava como Chuck Yeager no X-l ou Pete Conrad no módulo lunar. Ela era simplesmente melhor em assumir riscos.

Também havia implicações estratégicas na ideia. Se removessem o Coelho sem o conhecimento dos inimigos, poderiam fazer uso de todas as suas informações indefinidamente; uma alternativa muito tentadora, caso conseguissem descobrir uma maneira de transformá-la em realidade. Não seria fácil e talvez se tornasse uma complicação desnecessária. Neste caso, poderia ser descartada, mas valia a pena pensar naquilo, se contasse com a colaboração de Ed. Ela precisaria de sua capacidade de planejamento e senso de realidade. O conceito inicial já deixava sua mente agitada. No fim, dependeria dos recursos disponíveis... e aquela seria a parte mais difícil. Porém, "difícil" não significava "impossível". E, para Mary Pat, "impossível" também não significava "impossível".

Claro que não.

 

 

O AVIÃO DA PAN AM partiu no horário, superando os solavancos das pistas de manobra do aeroporto Sheremetyevo, famoso no mundo da aviação por seu pavimento irregular. Entretanto, as pistas de decolagem eram razoáveis, e as imensas turbinas Pratt & Whitney JT-9D puseram a aeronave na velocidade adequada para levantar voo.

Tommy Cox, no assento 3-A, notou com um sorriso a reação comum quando um avião americano deixava Moscou: todos os passageiros comemoravam e aplaudiam.

Não havia recomendação ou encorajamento da tripularão, acontecia espontaneamente. Aquilo mostrava o apreço dos americanos pela hospitalidade soviética e agradava a Cox, que não tinha qualquer carinho pelo povo que fornecera as metralhadoras que haviam atingido seu Huey quatro vezes — e, por sinal, lhe garantiram três Purple Heart. Uma fita em miniatura de uma dessas condecorações enfeitava a lapela de todos os seus paletós, ao lado das estrelas. Ele olhou pela janela, observando a terra se afastando à esquerda. Assim que ouviu o agradável sinal, pegou um Winston e acendeu-o com seu Zippo. Era uma pena não poder beber ou dormir naqueles voos, mas, pelo menos, não tinha visto o filme programado. Naquele negócio, aprendia-se a apreciar as pequenas coisas. Um voo direto de doze horas até Nova York ainda era melhor do que fazer escala em Frankfurt ou Heathrow. As paradas só serviam para ter que arrastar a sacola de lona para lá e para cá, por vezes sem ajuda de um carrinho. Bem, ele levava um pacote inteiro de cigarros, e o cardápio do jantar não parecia ruim. E o governo ainda lhe pagava para ficar sentado por doze horas, servindo de babá para uma bagagem barata. Era melhor do que pilotar seu Huey no planalto central do Vietnã. Havia muito tempo que Cox deixara de imaginar que tipo de informação importante transportava na sacola. Se outras pessoas estavam muito interessadas, o problema não era dele.

 

 

RYAN CONSEGUIU TERMINAR três páginas: um dia nada produtivo. E ele sequer podia alegar que o refinamento de sua prosa exigia um ritmo lento de escrita. Sua linguagem era correta — aprendera gramática essencialmente com padres e freiras, e sua escolha de palavras era satisfatória —, mas não particularmente elegante. Em seu primeiro livro, Águias condenadas, todos os pequenos toques artísticos que tentara incluir no manuscrito acabaram cortados pelos editores, para sua silenciosa e submissa fúria. Por isso, os poucos críticos que leram e comentaram o épico histórico elogiaram a qualidade da análise, porém ressaltaram de modo seco que podia servir de leitura para estudantes de história, mas não valia o dinheiro de um leitor casual. O livro acabou vendendo 7.865 cópias — nada excepcional para um trabalho de dois anos e meio. Jack, porém, vivia se lembrando de que era apenas sua primeira obra. Talvez uma nova editora colocasse um editor que fosse mais um aliado do que um inimigo para cuidar dele. Precisava ter esperança.

No entanto, nada aconteceria até acabar o trabalho, e três páginas não correspondiam a uma produção digna de um dia inteiro em seu refúgio. Ele dividia seus pensamentos entre aquilo e outro problema, o que não era uma ferramenta de produtividade muito útil.

— Como está indo? — perguntou Cathy, aparecendo repentinamente acima do seu ombro.

— Nada mau — mentiu.

— Em que parte está?

— Maio. Halsey está lutando contra a doença de pele.

— Dermatite? Pode ser bem desagradável, até hoje — comentou Cathy. — Pode deixar os pobres pacientes loucos.

— Desde quando você é dermatologista?

— Sou médica, Jack, lembra? Posso não saber tudo, mas conheço a maior parte.

— Tudo isso e ainda por cima modesta — disse ele, fazendo uma careta.

— Ei, quando fica resfriado, não cuido bem de você?

— Acho que sim. — Era verdade. — Como estão as crianças?

— Bem. Sally se divertiu muito no balanço e fez um novo amigo, Geoffrey Froggatt. O pai dele é procurador.

— Legal. Não há nada além de advogados por aqui?

— Há também uma médica e um espião — lembrou Cathy. — O problema é que não posso contar às pessoas o que você faz, não é?

— Então, o que você diz} — perguntou Jack.

— Que trabalha para a embaixada.

Era quase verdade.

— Mais um burocrata que passa o dia atrás da mesa — resmungou.

— Quer voltar para a Merrill Lynch?

— Não! Não nesta vida.

— Algumas pessoas gostam de ganhar montanhas de dinheiro — comentou Cathy.

— Só como hobby, querida. — Se voltasse ao mercado financeiro, o sogro tripudiaria dele durante um ano, pelo menos. Não, naquela vida, nunca mais. Já cumprira seu tempo no inferno, como um bom fuzileiro naval. — Tenho coisas mais importantes a fazer.

— Por exemplo?

— Não posso contar — respondeu.

— Sei disso — disse a esposa, com um sorriso alegre. — Bem, pelo menos não são transações com informações privilegiadas.

Ryan não pôde dizer que, na realidade, era algo parecido. E da pior espécie. Milhares de pessoas trabalhando diariamente para descobrir coisas que não deveriam saber e depois tomando providências que não deveriam tomar. Mas os dois lados participavam do jogo. E com dedicação. Porque não tinha a ver com o dinheiro, e, sim, com a vida e a morte. Não havia jogo mais perigoso do que aquele. Por outro lado, Cathy também não se recriminaria por lançar tecido canceroso no incinerador, e provavelmente aquelas células também queriam permanecer vivas. O problema é que eram muito malvadas, certo?

 

 

O CORONEL BUBOVOY leu o despacho que estava na mesa. Suas mãos não tremeram, mas ele acendeu um cigarro para ajudar na reflexão. O Politburo queria mesmo levar aquilo adiante. Leonid Ilyich assinara pessoalmente a carta ao diretor do partido búlgaro. Ele pediria ao embaixador que ligasse na segunda-feira para marcar a reunião, o que não levaria muito tempo. Os búlgaros não passavam de cachorrinhos da União Soviética, mas algumas vezes cachorrinhos úteis. Os soviéticos haviam colaborado no assassinato de Georgiy Markov, na Westminster Bridge, em Londres. A KGB fornecera a arma, se pudesse ser chamada dessa forma: um guarda-chuva para lançar um projétil de metal cheio de ricinina, com o objetivo de silenciar o inoportuno desertor que falara demais ao serviço de notícias da BBC. Mesmo tendo acontecido há muito tempo, aquele tipo de dívida não expirava nunca. Não naquele nível de estatística. Portanto, Moscou estava cobrando a dívida. Além disso, havia o acordo de 1964, quando ficou combinado que a DS cuidaria das atividades clandestinas da KGB no Ocidente. Leonid Ilyich também prometia transferir um batalhão inteiro da nova versão do tanque de guerra 1-72, o que sempre ajudava um chefe de Estado a se sentir mais tranquilo em relação a sua segurança política. E eram mais baratos do que os MiG-29 que os búlgaros estavam pedindo — como se um piloto búlgaro fosse capaz de manejar um avião daqueles. A piada entre os russos, lembrou Bubovoy, dizia que os búlgaros tinham que empurrar o bigode para dentro do capacete antes de baixar a viseira. De uma maneira ou outra, eles eram considerados filhos da Rússia, uma relação que remontava à época dos czares. E, geralmente, agiam como filhos obedientes, embora, a exemplo destes, demonstrassem pouco apreço pelo certo e o errado, desde que não fossem pegos em flagrante. Bubovoy manifestaria grande respeito pelo chefe de Estado e seria recebido cordialmente como mensageiro de um poder maior. O diretor hesitaria um pouco e acabaria concordando. Seria tão estilizado quanto uma apresentação do bailarino Aleksander Gudonov. E igualmente previsível em sua conclusão.

Depois, encontraria Boris Strokov para obter uma estimativa do tempo necessário para a continuidade da operação. Boris Andreievich ficaria animado com as perspectivas. Seria a maior missão de sua vida, como participar das Olimpíadas, embora não tão assustador e estimulante. E certamente haveria uma promoção à espera caso fosse bem-sucedido — talvez um carro novo para Strokov ou uma datcha nas proximidades de Sofia. Ou ambos. E para mim?, pensou o oficial da KGB. Uma promoção, sem dúvida. Estrelas de general e retorno garantido a Moscou, uma sala luxuosa no Centro, um apartamento confortável no Kutusovskiy Prospekt. Voltar a Moscou interessava ao rezident, que passara muitos anos fora das fronteiras da Rodina.

É o bastante, pensou. Mais do que o bastante.

 

 

— ONDE ESTÁ O ENTREGADOR? — perguntou Mary Pat, passando o aspirador no tapete da sala de estar.

— Neste momento, sobrevoando a Noruega — respondeu o marido.

— Tive uma ideia.

— É mesmo? — reagiu Ed, sem esconder certo receio.

— E se conseguíssemos tirar o Coelho daqui sem que eles soubessem?

— E como vamos fazer isso? — perguntou o marido, surpreso, imaginando o que se passava na cabeça da esposa desta vez. — Tirar ele e a família já não será uma tarefa exatamente simples, para começar.

Ela lhe contou o plano que elaborara em sua mente engenhosa. E era muito original.

Sempre espero que você tenha ideias como essa, pensou Ed, sem mudar a expressão no rosto. Mas, então, começou a pensar mais a fundo naquilo.

— É complicado — observou o Station Chief em Moscou, lacônico.

— Mas é factível — replicou a esposa.

— Querida, é um plano muito ambicioso.

Apesar da resposta, Mary Pat podia ver nos olhos do marido que ele estava pensando no assunto.

— Eu sei, mas se conseguirmos será um golpe e tanto — disse, enfiando o aspirador embaixo do sofá.

O pequeno Eddie teve que chegar mais perto da TV para ouvir o que os Transformers diziam. Bom sinal. Se Eddie não conseguia escutar, os microfones da KGB também não.

— Vale a pena pensar nisso — admitiu Ed. — Mas colocar em prática... caramba.

— Eles nos pagam para sermos criativos, não?

— Não há nenhuma chance de conseguirmos fazer isso aqui.

Não sem envolver muitos recursos, alguns dos quais poderiam não ser totalmente confiáveis, o que obviamente era um de seus maiores temores — e do qual não conseguiriam se defender facilmente. Aquilo representava uma das maiores dificuldades no negócio da espionagem. Quando os contraespiões da KGB identificavam um dos seus, geralmente agiam com muita inteligência. Às vezes, por exemplo, conversavam com o sujeito e o convenciam de que, se continuasse agindo normalmente, talvez vivesse até o fim do ano. Os agentes eram treinados para dar sinais em caso de perigo, mas quem podia garantir? Dependia de uma suposta dedicação que alguns — muitos — homens simplesmente não possuíam.

— Há outros lugares para onde podem ir. O Leste Europeu, por exemplo. Podemos retirá-los por lá — sugeriu ela.

— Suponho que seja possível — admitiu Ed, novamente. — Mas a missão é tirá-los daqui, não marcar pontos por estilo com o juiz da Alemanha Oriental.

— Eu sei, mas pense nisso. Se pudermos afastá-lo de Moscou, garantiremos mais flexibilidade em nossas opções, não é?

— Sim, querida. Só que também significa que teremos problemas de comunicação.

E aquilo significava um risco de estragar tudo. O princípio POSE — "prefira as opções simples, estúpido" — era uma parte tão importante do comportamento da CIA quanto a combinação de capa de chuva e chapéu nos filmes B. Muita gente opinando acabava arruinando os planos.

Entretanto, a sugestão de Mary Pat tinha seus méritos. Remover o Coelho de modo que os soviéticos o considerassem morto faria com que não tomassem precauções. Seria como mandar o capitão Kirk para dentro do quartel-general da KGB por teletransporte, invisível, e tirá-lo de lá com toneladas de informações sigilosas sem que ninguém reparasse. Aquilo chegaria mais perto de uma jogada perfeita do que qualquer coisa tentada anteriormente. Uma jogada tão perfeita nunca acontecera no mundo real. Por um momento, Ed sentiu-se abençoado por ter uma esposa tão criativa no trabalho quanto na cama.

E aquilo era muito bom.

Mary Pat sabia ler a mente do marido e logo notou a expressão em seu rosto. Ed era um jogador cauteloso, mas ela pressionara nos pontos certos, e ele tinha capacidade para perceber seus méritos. A ideia criava uma complicação... mas talvez não fosse tão grande. Retirar o pacote de Moscou, mesmo na melhor das circunstâncias, não seria como um passeio ao sol. Contudo, a parte mais difícil seria atravessar a fronteira finlandesa. Afinal, todos sabiam que a Finlândia era a Finlândia. A maioria das opções para realizar aquilo envolvia carros modificados com espaços ocultos para passageiros.

Os russos tinham dificuldade para lidar com a tática porque, se o motorista tivesse credenciais diplomáticas, as convenções internacionais limitavam as possibilidades de revista. Qualquer diplomata interessado em dinheiro rápido podia conseguir uma bolada traficando drogas. Alguns experimentavam e poucos eram pegos. Com um cartão de saída da prisão, podia-se fazer muita coisa. Isso, porém, não correspondia a passe livre. Se os soviéticos soubessem que o homem estava desaparecido, haveria uma brecha para se quebrarem as regras, devido ao valor dos dados contidos em sua cabeça.

O outro lado da violação das regras diplomáticas previa que tudo resultaria em um mero protesto, encoberto pela revelação de que um diplomata estrangeiro autorizado atuava como espião. Se a ação resultasse em seus próprios diplomatas sofrendo represálias, os soviéticos não teriam problema em sacrificar grandes contingentes militares com finalidade política, considerando tudo apenas como o preço de fazer negócios. Pela informação que o Coelho detinha, eles derramariam sangue com satisfação, inclusive o seu próprio. Mary Pat imaginava até que ponto aquele cara compreendia o perigo em que se metera e o tamanho das forças contrárias a ele. No final, o que importava era se os soviéticos sabiam ou não que havia algo em andamento. Se a resposta fosse não, seus procedimentos rotineiros de vigilância, por mais rígidos, eram previsíveis. Do contrário, poderiam colocar a cidade de Moscou inteira sob estado de sítio. No entanto, tudo nos serviços clandestinos da CIA era feito com cuidado. E havia procedimentos de segurança para o caso de as coisas darem errado, bem como outras medidas, algumas de último caso, que já tinham provado sua eficiência em jogo. Mas eram evitadas.

— Estou acabando — avisou ao marido.

— Tudo bem, Mary Pat, você conseguiu me fazer pensar no assunto. A mente formidável de Ed começou a examinar as ideias. Algumas vezes ele precisa de um empurrão, pensou Mary Pat. Mas, uma vez na direção correta, era como George Patton com a faca entre os dentes. Ela pensou em quantas horas Ed conseguiria dormir à noite.

Bem, acabaria sabendo, certo?

 

 

— BASIL GOSTA DE VOCÊ — disse Murray.

As mulheres estavam na cozinha, e Jack e Dan, no jardim, fingindo inspecionar as rosas.

— Sério?

— É, e muito.

— Não consigo imaginar por que — disse Ryan. — Não entreguei muito material ainda.

— Seu colega faz relatórios sobre você todos os dias. Simon Harding é um funcionário promissor, caso ninguém tenha lhe contado. Por isso foi com Bas ao número 10.

— Dan, pensei que você fosse do FBI, não da agência — comentou Jack, pensando até onde iam os tentáculos do adido jurídico.

— Os caras no fim do corredor são companheiros e interajo um pouco com os espiões locais.

Os caras no fim do corredor era como Dan se referia ao pessoal da CIA. Jack ainda queria saber a que divisão do governo Murray pertencia de fato. O problema é que, para alguém que sabia o que estava fazendo, todos os sinais indicavam "policial". Seria um disfarce elaborado? Não, impossível. Dan solucionava problemas para Emil Jacobs, o pacato e competente diretor do FBI, e aquele seria um disfarce muito elaborado para alguém do governo. Além disso, Murray não controlava agentes em Londres, controlava?

Seria possível? Nada era o que parecia ser. Ryan odiava aquele aspecto do trabalho na CIA, mas reconhecia que mantinha sua mente completamente atenta. Mesmo enquanto tomava uma cerveja no jardim.

— É bom saber disso, eu acho.

— É difícil impressionar Basil, garoto. Mas ele e o juiz Moore gostam um do outro. E de Jim Greer também. Basil adora a capacidade analítica dele.

— É muito esperto — confirmou Ryan. — Aprendi muito com ele.

— Ele o está transformando em uma de suas estrelas.

— É mesmo?

Nem sempre parecia ser daquela forma para Ryan.

— Não reparou a velocidade com que o está promovendo? Como se você fosse um professor de Harvard ou coisa parecida.

— Boston College e Georgetown, esqueceu?

— É, nós, produtos dos jesuítas, comandamos o mundo. A diferença é que nos mantemos humildes. Eles não ensinam humildade em Harvard.

Com certeza, não encorajam seus formandos a atuar em algo tão plebeu quanto trabalho policial, pensou Ryan. Lembrou-se dos garotos de Harvard em Boston, muitos dos quais acreditavam ser os donos do mundo, porque seus papais o haviam comprado para eles.

Ryan preferia fazer a aquisição por conta própria, uma consequência de sua formação proletária, sem dúvida. Mas Cathy não se parecia com aqueles idiotas de classe alta — e ela tinha nascido em berço de ouro. É claro que ninguém se envergonhava de dizer que o filho ou a filha era médico, especialmente sendo formado em Johns Hopkins. Talvez, no fim das contas, Joe Muller não seja um sujeito tão mau, pensou Ryan, de passagem. Ele ajudara a criar uma filha muito boa. Era uma pena que fosse um babaca autoritário com o genro.

— Está gostando da Century House?

— Melhor do que Langley. Aquilo lá parece um mosteiro. Pelo menos, em Londres, vive-se em uma cidade. Pode-se sair para tomar uma cerveja ou fazer compras no almoço.

— É uma pena que o prédio esteja caindo aos pedaços. É o mesmo defeito registrado em outros edifícios de Londres: o emboço ou reboco, não sei como se chama, foi malfeito. Por isso, a fachada está descascando. É vergonhoso, mas o responsável pela obra deve ter morrido há muito tempo. Não podemos levar um cadáver ao tribunal.

— Nunca fez isso? — perguntou Jack, bem-humorado. Murray sacudiu a cabeça.

— Não, nunca atirei em ninguém. Cheguei perto uma vez, mas não precisei ir até o fim.

Ainda bem, porque o safado não estava armado. Seria embaraçoso explicar ao juiz — contou, tomando um gole de cerveja.

— Como está a situação dos policiais daqui?

O trabalho de Murray era justamente lidar com eles.

— Eles são muito bons. De verdade. Organizados e investigadores competentes nos casos mais sérios. Não há muitos crimes de rua para se preocupar.

— Nada parecido com Nova York e Washington.

— Não mesmo. E, então, alguma coisa interessante acontecendo na Century House? — perguntou ele.

— Não. Estou principalmente analisando material velho, comparando análises antigas a dados mais recentes. Nada que valha um relatório para casa. Porém, mesmo assim, tenho de fazer isso. O almirante mantém a rédea frouxa, mas ainda é uma rédea.

— O que acha dos nossos primos?

— Basil é bem esperto — observou Ryan. — Ele toma muito cuidado com o que me mostra. Acho que é justo. Ele sabe que faço relatórios a Langley e, afinal, não preciso mesmo saber a fundo a respeito de fontes... Mas tenho meus palpites. O "Seis" deve dispor de um pessoal de primeira em Moscou. — Ryan fez uma pausa. — Eu nunca participaria desse jogo. Nossas prisões já são bem desconfortáveis, nem quero pensar como são as russas.

— Você não viveria o bastante para descobrir, Jack. Eles não são muito de perdoar, principalmente quando se trata de espionagem. É muito mais seguro dar um soco em um policial na frente da delegacia do que brincar de espião.

— E no nosso caso?

— É impressionante como os condenados são patrióticos. Espiões passam longos e duros anos nas prisões federais. Eles e os pedófilos. Recebem atenção especial dos "irmãos" e dos assaltantes. Sabe, os bandidos honestos.

— Meu pai costumava falar dessa hierarquia da cadeia. Ninguém quer ficar no nível mais baixo.

— É melhor ser um arremessador do que um receptor — disse Murray, rindo.

Era hora de uma pergunta de verdade.

— Dan, qual é sua proximidade dos órgãos de espionagem?

Murray contemplou o horizonte.

— Nos damos muito bem — foi tudo que disse.

— Dan, uma coisa com a qual aprendi a me preocupar são as respostas curtas.

Murray gostou do comentário.

— Então você está no lugar errado, garoto. Todos falam assim por aqui.

— É, principalmente nas agências de espionagem.

— Bem, se falássemos como os outros, perderíamos a aura mítica, e todos perceberiam que está tudo errado. — Murray tomou um gole e abriu um sorriso largo. — Não conseguiríamos manter a confiança das pessoas. Aposto que acontece o mesmo com médicos e corretores de ações — arriscou o representante do FBI.

— Todo negócio tem uma linguagem própria.

A explicação oficial era que os jargões permitiam uma comunicação mais rápida e eficiente aos de dentro, mas, na verdade, o propósito era negar conhecimento e acesso aos de fora. Nenhum problema nisso. Para quem está dentro.

 

 

AS MÁS NOTÍCIAS vinham de Budapeste e eram resultado de um mero lance de azar.

O agente sequer tinha muita importância. Fornecia informações sobre a Força Aérea húngara, uma organização que ninguém levava a sério, a exemplo do resto das forças militares do país, que raramente se destacava no campo de batalha. O marxismo-leninismo nunca se estabelecera profundamente ali, mas o Estado possuía um serviço de inteligência/contrainteligência muito empenhado, ainda que não necessariamente competente. E nem todos os espiões eram estúpidos. Alguns haviam recebido treinamento da KGB, e, se os soviéticos entendiam de algo, era de inteligência e contrainteligência. O oficial em questão, Andreas Morrisay, estava sentado, tomando o café da manhã em um estabelecimento na Andrassy Utca, quando viu alguém cometer um erro. Se não estivesse entediado com o jornal, nem teria percebido. Mas aconteceu. Um cidadão húngaro — podia-se deduzir pelas roupas — deixou cair alguma coisa. Tinha o tamanho de uma latinha de fumo para cachimbo. Ele rapidamente se abaixou para pegar o objeto e, claramente, o prendeu à parte inferior da mesa. E Andreas notou que ele não voltara a cair; devia haver alguma espécie de adesivo. Aquilo não era apenas incomum, mas também muito parecido com algo a que assistira em um filme de treinamento na academia da KGB. Uma forma muito simples e obsoleta de entrega, um método usado por espiões inimigos para transferir informações. Para Andreas, era como entrar de repente em um cinema, ver um filme de espionagem e saber o que estava acontecendo com base em puro instinto. Sua reação imediata foi ir até o banheiro masculino, onde havia um telefone público. Ligou para o escritório e falou por menos de trinta segundos. Depois, aproveitou para usar o banheiro, porque aquilo podia levar algum tempo, e ele estava subitamente animado. Não houve problema. O escritório central da agência ficava a poucos quarteirões dali, e logo dois de seus colegas apareceram, sentaram-se a uma mesa e pediram café, conversando animadamente sobre algum assunto. Andreas tinha pouca experiência — apenas dois anos — e nunca pegara alguém em flagrante. Mas sabia que aquele era seu dia. Estava olhando para o espião. Um cidadão húngaro a serviço de um poder estrangeiro. Mesmo que estivesse passando informações à KGB, era um crime pelo qual podia ser preso — embora, neste caso, tudo fosse resolvido rapidamente pelo contato soviético. Passados dez minutos, o húngaro se levantou e foi embora, seguido por um dos dois colegas.

Por mais de uma hora, nada aconteceu. Andreas pediu um strudel — tão saboroso quanto o de Viena, a trezentos quilômetros de distância. E isso a despeito do governo comunista. Os húngaros amavam sua comida, e a Hungria tinha uma agricultura produtiva, apesar da economia centralizada imposta aos fazendeiros do Leste.

Andreas acendeu uma sequência de cigarros, leu o jornal e simplesmente esperou algo acontecer.

E aconteceu. Um homem bem vestido demais para um cidadão húngaro sentou-se à mesa ao lado, acendeu um cigarro e começou a ler seu próprio jornal.

Andreas foi favorecido pelo fato de ser míope. As lentes dos seus óculos eram tão grossas que qualquer um precisava de alguns segundos para notar para onde seus olhos apontavam. Ele se lembrou do treinamento para não permitir que se fixassem em um ponto por mais do que poucos instantes. Parecia estar lendo o jornal, como outros no pequeno e elegante café, que notavelmente sobrevivera à Segunda Guerra Mundial.

Andreas observou o americano — convencera-se de que tinha de ser um — beber o café e ler o jornal, até que ele pousou a xícara no pires, pegou um lenço no bolso da calça, assoou o nariz e depois o recolocou no bolso...

Mas antes retirou a lata de fumo de sob a mesa. O movimento foi executado com tamanha habilidade que só um oficial de contrainteligência bem treinado teria notado.

Andreas percebeu que era exatamente isso. E foi seu orgulho que provocou o primeiro e mais custoso erro do dia.

O americano acabou o café e partiu, com Andreas em seu encalço. O estrangeiro caminhou na direção da estação de metrô, a um quarteirão, e quase chegou lá. Quase.

Virou-se para trás, surpreso, ao sentir uma mão tocando seu ombro.

— Pois não? — disse o estrangeiro, com um sotaque que o identificava como americano ou britânico.

— Posso ver o objeto no bolso de sua calça? — pediu Andreas, educadamente, pois estava falando com um possível diplomata.

— Não sei do que está falando e tenho mais o que fazer. — O homem começou a se afastar.

Ele não foi longe. Andreas sacou a pistola. A Agrozet modelo 50 encerrou a conversa.

Ou quase.

— O que é isso? Quem é você?

— Documentos. — Andreas estendeu a mão, mantendo a pistola apontada. — Já pegamos seu contato. Está preso.

Nos filmes, o americano sacaria uma arma escondida e tentaria escapar, descendo os 28 degraus até o velho metrô. Seu medo, porém, era de que aquele sujeito também tivesse assistido a filmes demais. Podia ficar nervoso a ponto de apertar o gatilho de sua pistola checa de merda. Diante disso, colocou a mão no bolso do paletó, vagarosamente para não assustar o imbecil, e apresentou o passaporte. Era preto, do tipo concedido a diplomatas, e rapidamente reconhecido por matutos estúpidos como aquele. O nome do americano era James Szell, descendente de húngaros, uma das muitas minorias recebidas pelos Estados Unidos no século anterior.

— Sou diplomata americano, devidamente reconhecido pelo seu governo. Exijo que me leve à minha embaixada imediatamente.

Por dentro, Szell estava desnorteado. Seu rosto não demonstrava, obviamente, mas seus cinco anos em ações de campo haviam acabado de acabar. Tudo por culpa de um agente iniciante de segunda classe fornecendo informações de segunda classe sobre uma força aérea comunista de terceira classe. Maldição!

— Primeiro, você vem comigo — disse Andreas, fazendo um gesto com a pistola. — Por aqui.

 

 

O 747 DA PAN AM POUSOU no Kennedy meia hora antes do previsto, graças a ventos favoráveis. Cox guardou os livros na pasta e se levantou, conseguindo ser o primeiro passageiro a sair, com uma pequena ajuda da aeromoça. De lá, passou rapidamente pela alfândega — a sacola de lona mostrou a todos quem era e o que fazia — e seguiu para pegar a ponte aérea seguinte até o aeroporto de Washington. Noventa minutos depois, estava em um táxi, rumo ao Departamento de Estado, em Foggy Bottom. No interior do imenso prédio, abriu a mala diplomática e separou o conteúdo.

O envelope de Foley foi dado a um entregador, que dirigiu pela George Washington Parkway até Langley, onde as coisas também aconteciam rapidamente.

A mensagem foi levada em mãos ao MERCÚRIO, o centro de comunicações da CIA, e, depois de decodificada e impressa, encaminhada ao sétimo andar, O original foi colocado na sacola para incineração. Não se guardavam cópias em papel, embora uma reprodução eletrônica tenha sido feita em uma fita de vídeo, que acabou num disco do Atchim1.

Mike Bostock estava em sua sala e, ao ver o envelope de Moscou, decidiu que todo o resto podia esperar. Claro que podia. Só que, ao verificar o relógio, lembrou-se de que Bob Ritter devia estar sobrevoando Ohio naquele momento, em direção ao Oeste, a bordo de um 747 da All Nippon Airlines. Então ligou para a casa do juiz Moore e pediu que fosse ao escritório. Murmurando, o DCI concordou e orientou Bostock a ligar também para Jim Greer. Ambos moravam perto do quartel-general da CIA e saíram do elevador executivo com apenas oito minutos de diferença.

— O que temos, Mike? — perguntou Moore, assim que chegou.

— É do Foley. Parece que conseguiu algo interessante.

Audacioso ou não, Bostock tinha o hábito de medir as palavras.

— Caramba — disse o DCI. — Bob já foi embora?

— Sim, senhor, há uma hora.

— O que é, Arthur? — perguntou o almirante Greer, vestindo uma camisa polo.

— Conseguimos um Coelho.

Moore entregou a mensagem ao DDI. Greer passou algum tempo analisando o texto.

— Isso pode ser bem interessante — disse, depois de pensar no assunto.

— Sim, pode mesmo. — Moore virou-se para o DDO interino. — Mike, diga algo.

— Foley acredita que é quente. É um oficial de campo muito bom. E a mulher dele também. Ele quer expatriar o cara e família o quanto antes. Basicamente, temos que confiar em seus instintos neste caso.

— Problemas?

— A questão é: como realizar a missão? Normalmente, deixamos a cargo do pessoal de campo, a não ser que tentem fazer algo imprudente. Mas Ed e Mary são muito espertos para isso. — Bostock respirou fundo e olhou, através das janelas que se espalhavam pelo andar inteiro, para o vale do Potomac e o estacionamento exclusivo. — Juiz, Ed parece acreditar que esse cara tem informações muito valiosas. Não podemos duvidar dele quanto a isso. A suposição óbvia é que o Coelho ocupa um cargo com acesso considerável e que deseja sair do inferno. Colocar a esposa e a filha no pacote torna tudo bem mais complicado. Mesmo assim, precisamos seguir os instintos do nosso pessoal de campo. Seria positivo se pudéssemos usar o sujeito como agente, fornecendo informações de modo contínuo, mas ou isso não é possível ou Ed acha que ele já tem o que queremos.

— Por que não nos passou mais detalhes? — questionou Greer, ainda com o despacho nas mãos.

— É possível que estivesse com o prazo apertado para enviar isso através do mensageiro ou talvez não confiasse no sistema de entregas para transporte de informações que poderiam ajudar os inimigos a identificar o homem. O que quer que esse cara saiba, Ed não confiou nos canais convencionais de comunicação, e isso, por si só, é outra mensagem.

— Então você aprova a requisição? — perguntou Moore.

— Não há muitas outras coisas que possamos fazer — ressaltou Bostock.

— Muito bem. Aprovado — disse o DCI, oficialmente. — Informe-o imediatamente.

— Sim, senhor.

Bostock deixou a sala.

Greer não conteve uma risada.

— Bob vai ficar possesso.

— O que pode ser tão importante para que Foley passe por cima dos procedimentos dessa maneira abrupta? — pensou Moore, em voz alta.

— Temos que esperar para descobrir.

— Imagino que sim. Mas você sabe que a paciência nunca foi meu forte.

— Bem, pense nisso como uma oportunidade de adquirir uma virtude, Arthur.

— Ótimo.

Moore se levantou. Ele podia ir para casa e ficar resmungando o dia inteiro como criança na noite de Natal, curiosa para saber o que havia debaixo da árvore. Se é que haveria realmente Natal naquele ano.

 

___________

1 O sete supercomputadores da CIA em Langley têm os nomes dos Sete Anões (Doc, Dopey, Grumpy, Sleepy, Happy, Bashful and Sneezy). Sneezy é Atchim.


18

 


MUSICA CLÁSSICA

 

UM SINAL DE CONFIRMAÇÃO chegou depois da meia-noite a Moscou, onde foi impresso e levado à mesa de Mike Russell pelo oficial de comunicações da noite, que rapidamente tratou de esquecê-lo. Devido à diferença de oito horas em relação a Washington, aquele era normalmente o horário de maior tráfego de mensagens recebidas. Para ele, era apenas mais um pedaço de papel de teor incompreensível, que não tinha autorização para decodificar.

 

 

COMO MARY PAT esperava, Ed não conseguiu dormir, mas ao menos fizera o máximo para não rolar demais na cama, o que incomodaria a mulher. As dúvidas também eram parte do jogo da espionagem. Seria Oleg Ivanovich uma isca, um artifício da KGB, diante do qual ele teria se deixado enganar de modo precipitado e impetuoso? Teriam os soviéticos saído para pescar sem grandes expectativas e acabado com um grande marlim azul no anzol logo na primeira tentativa? A KGB participaria de jogos como aquele? De acordo com sua preparação anterior à missão, em Langley, não. Os russos haviam se engajado em atividades similares no passado, mas sempre direcionadas a pessoas cujo envolvimento era certo; pessoas das quais podiam obter informações sobre outros agentes simplesmente seguindo-as e verificando os locais de entrega... Mas o jogo não funcionava daquele jeito. Não se pedia um bilhete só de ida na primeira rodada, a não ser que se desejasse algo específico, como a neutralização de um alvo em particular. Não podia ser o caso. Ele e Mary Pat não haviam feito quase nada até ali.

Somente um punhado de pessoas na embaixada conhecia sua identidade e sua função. Não tinha recrutado novos agentes ou contactado os existentes. Aquela, em tese, nem era sua responsabilidade. Não se esperava que o Station Chief agisse no campo. Devia somente orientar e supervisionar os que o faziam, como Dom Corso, Mary Pat e outros membros de sua pequena porém talentosa equipe. Se Ivan soubesse quem ele era, por que denunciar suas intenções tão rapidamente? Apenas revelaria à CIA mais do que sabia naquele momento ou poderia descobrir em pouco tempo. Naquele jogo, não se arriscava daquela forma.

E se o Coelho fosse um chamariz, com a missão de identificar Foley e depois oferecer informações inúteis ou falsas? E se todo o seu trabalho tivesse o objetivo único de desmascarar o chefe da base em Moscou? Mas eles não podiam ir atrás dele sem saber de antemão quem era, podiam? Nem a KGB dispunha dos recursos para realizar uma missão do gênero, testando cada funcionário da embaixada. Além disso, seria um plano muito tosco, que certamente alertaria o pessoal da embaixada de que algo estranho estava acontecendo.

Não, a KGB era profissional demais para isso.

Portanto, eles não podiam tê-lo como alvo sem conhecer sua identidade e, se a conhecessem, tentariam esconder a informação, para não revelar uma fonte ou método que seria importante manter sob sigilo.

Portanto, Oleg Ivanovich não podia ser uma armadilha. E ponto final.

Ele tinha que ser "quente". Certo?

Apesar de toda a sua inteligência e experiência, Foley não conseguia pensar em um cenário em que o Coelho não fosse autêntico. O problema é que aquilo não fazia muito sentido. Mas o que fazia sentido no ramo da espionagem? O que fazia sentido era a necessidade de tirar aquele homem dali. Eles tinham um Coelho, e o Coelho precisava fugir do Urso.

 

 

— NÃO PODE ME CONTAR o que está incomodando você? — perguntou Cathy.

— Não.

— É importante?

— Sim. Sim, claro que é, o problema é que não sabemos o nível de importância.

— Algo com que eu deva me preocupar?

— Acho que não. Não é a Terceira Guerra Mundial ou coisa parecida. Só não posso conversar sobre o assunto.

— Por quê?

— Você sabe por quê. É confidencial. Você não me conta sobre seus pacientes, não é? Isso porque existem normas éticas. Eu obedeço a normas de confidencialidade.

Por mais inteligente que fosse, Cathy ainda não entendia aquilo direito.

— Não existe uma forma de eu ajudar?

— Cathy, se você tivesse autorização para saber, talvez pudesse me dar opiniões. Mas talvez não. Você não é psicóloga, e esta é a especialidade médica que melhor se aplica ao assunto. Como as pessoas reagem a ameaças, quais são suas motivações, como percebem a realidade e como estas percepções determinam seus atos. Tenho tentado compreender a mente de pessoas que não conheço para descobrir o que farão em seguida a respeito de certas coisas. Venho estudando como pensam há muito tempo, desde antes de entrar na agência, mas, você sabe...

— Sei, é difícil analisar a mente de uma pessoa por dentro. E sabe o que mais?

— O quê?

— É mais difícil com as pessoas sãs do que com as malucas. As pessoas podem pensar racionalmente e, mesmo assim, fazer coisas loucas.

— Por causa da percepção delas?

Ela fez um gesto positivo.

— Em parte, sim. Mas em parte porque escolheram acreditar em coisas totalmente falsas. Por razões inteiramente racionais, só que isso não muda o fato de que essas coisas continuam sendo falsas.

Ryan começou a achar que valia a pena seguir aquele raciocínio.

— Muito bem. Fale sobre... Josef Stalin, por exemplo. Ele matou um monte de gente. Por quê?

— Foi em parte racional e em parte fruto de uma paranoia completa. Quando percebeu uma ameaça, lidou com ela de maneira decidida. O problema é que ele via ameaças que não existiam ou que não eram sérias a ponto de exigir um impulso mortal. Stalin vivia na fronteira entre a loucura e a normalidade, como uma pessoa numa ponte tem que conseguir se lembrar de que lado mora. Em questões internacionais, ele devia ser tão racional quanto qualquer outro, mas tinha um temperamento implacável e jamais lhe disseram não. Um médico do Johns Hopkins escreveu um livro sobre o sujeito. Eu li quando estava na faculdade.

— E o que dizia?

A Dra. Ryan deu de ombros.

— Não era tão bom. O pensamento atual é de que são os desequilíbrios químicos no cérebro que provocam as doenças mentais, e não o fato de seu pai tê-lo espancado ou você ter visto sua mãe na cama com um bode. Só que não temos como avaliar a composição química do sangue de Stalin agora, não é?

— Seria meio difícil. Parece que finalmente o cremaram e o colocaram... onde? Não consigo lembrar — admitiu Jack.

Teria sido na muralha do Kremlin? Ou teriam simplesmente enterrado o caixão de pinho, sem deixá-lo queimar? Não valia o esforço de descobrir.

— É engraçado. Muitas figuras históricas fizeram o que fizeram devido a um desequilíbrio mental. Hoje, poderíamos curá-las com lítio e outras substâncias sobre as quais aprendemos, principalmente nos últimos trinta anos. Mas, naquela época, eles só tinham álcool e iodo. E o exorcismo — acrescentou, imaginando se isso foi usado para valer.

— E Rasputin? Ele também tinha um desequilíbrio químico grave? — perguntou Jack.

— Talvez. Não entendo muito do assunto, só sei que era algum tipo de padre perturbado, não era?

— Não era um padre, era uma espécie de civil místico. Acho que hoje seria um evangélico com programa de TV. Seja qual for a resposta, ele derrubou a dinastia dos Romanov. Mas eles já eram quase insignificantes.

— E então Stalin assumiu?

— Primeiro Lenin, depois Stalin. Vladimir Ilyich morreu de derrame.

— Provavelmente hipertenso. Ou talvez acúmulo de colesterol, que acabou num coágulo no cérebro, provocando a morte. Com Stalin foi pior, certo?

— O caso de Lenin não foi moleza, mas o de Stalin foi impressionante. Um Tamerlão do século XX. Ou talvez um dos césares. Quando os romanos reconquistavam uma cidade rebelde, matavam tudo o que encontravam pela frente, até os cachorros.

— Verdade?

— Sim. Mas os britânicos sempre poupavam os cães. Eram muito sentimentais em relação a eles — acrescentou Jack.

— Sally sente falta de Ernie — lembrou Cathy, de modo tipicamente feminino.

Um fato quase, porém não totalmente, irrelevante à conversa. Ernie era o cachorro dos Ryan que ficara nos Estados Unidos.

— Também sinto. Mas ele vai se divertir muito nesta primavera. A temporada de caça aos patos começa em breve. Ele vai poder buscar todos os patos mortos na água.

Cathy sentiu um arrepio. A coisa mais viva que havia caçado tinha sido um hambúrguer no supermercado — embora destrinchasse seres humanos com uma faca. Como se isso fizesse sentido, pensou Ryan, abrindo um sorriso. Contudo, o planeta não tinha uma regra exigindo lógica na superfície. Não da última vez que verificou.

— Não se preocupe, querida. Ernie vai gostar. Confie em mim.

— É, claro.

— Ele adora nadar — lembrou Jack. — E no hospital? Que problemas interessantes nos olhos temos para a próxima semana?

— Só procedimentos de rotina. Examinar olhos e prescrever óculos a semana inteira.

— Nada divertido, como cortar o olho esquerdo de um coitado no meio e depois costurar de volta?

— Esse procedimento não existe — observou ela.

— Querida, eu nunca conseguiria passar a faca no olho de uma pessoa sem colocar o almoço para fora ou, talvez, desmaiar.

O mero pensamento lhe deu um calafrio.

"Covarde" era o único comentário que ela tinha a fazer sobre a confissão. Não entendia como aquela habilidade não era cobrada na escola de formação de fuzileiros, em Quantico, Virginia.

 

 

MARY PAT SENTIA que o marido continuava acordado, mas não era hora de conversar, mesmo dispondo da técnica de comunicação com os dedos. Em vez disso, pensava em operações: como tirar o pacote de lá. Por Moscou seria muito difícil. Outras partes da União Soviética não ofereceriam maior facilidade, porque a CIA não tinha recursos que pudessem ser usados nas demais regiões do vasto país. As operações de inteligência tendiam a ser centralizadas nas capitais, onde havia oportunidade para alocar "diplomatas", que na verdade eram lobos em pele de cordeiro. A solução óbvia seria usar a capital apenas para serviços estritamente ligados ao governo, longe das forças militares e de outras áreas sensíveis. Mas ninguém queria aquilo, pelo simples fato de que os figurões do governo desejavam manter todos os funcionários ao alcance da mão, para que eles — os figurões — desfrutassem ao máximo o exercício do poder. E era para isso que viviam. Em Moscou, na Berlim de Hitler ou em Washington.

Se não por Moscou, então por onde? Não havia muitos lugares aos quais o Coelho podia ir livremente. Nenhum destino a oeste do arame farpado, como se referia à cortina de ferro que caíra sobre a Europa em 1945. E poucos lugares aonde um homem como aquele desejaria ir por conta própria eram convenientes para a CIA. Talvez as praias de Sochi. Teoricamente, a Marinha podia levar um submarino até lá e fazer a coleta, mas não se chamava um submarino como um táxi. E a marinha ficaria possessa com uma simples consulta.

Com isso, só restavam os fraternais Estados socialistas do Leste Europeu, que eram tão empolgantes como atrações turísticas quanto a região central do Mississippi no verão: um bom lugar para quem aprecia plantações de algodão e um calor infernal; caso contrário, para que perder tempo? A Polônia estava fora de cogitação. Varsóvia havia sido reconstruída depois da cruel renovação urbana empreendida pela Wehrmacht, mas o país se tornara muito rígido em decorrência da agitação política interna. O ponto de fuga mais fácil, Gdansk, passara a ser vigiado tão rigorosamente quanto a fronteira com a Rússia. E não ajudava que os britânicos tivessem providenciado o extravio de um tanque T-72 novo exatamente lá. Mary Pat esperava que o tanque roubado fosse útil para alguém, mas um idiota qualquer de Londres decidiu contar vantagem sobre o fato aos jornais e a história acabou vazando, o que pôs um fim ao uso de Gdansk como porta de saída nos anos seguintes. A Alemanha Oriental talvez? Mas poucos russos ligavam para a Alemanha, e não havia muito que pudesse atraí-los. A Checoslováquia? Uma cidade interessante, Praga, marcada pela arquitetura imperial e uma vida cultural rica. As sinfonias e os balés situavam-se quase no mesmo nível dos apresentados pelos russos, e as galerias de arte tinham fama de serem excelentes. No entanto, a fronteira com a Áustria também era muito bem vigiada.

Restava... a Hungria.

A Hungria, pensou. Budapeste também era uma antiga cidade imperial que fora governada com austeridade pela dinastia austríaca dos Habsburg e mais tarde conquistada pelos russos, em 1945, depois de uma longa e violenta batalha com as SS alemãs. Provavelmente, acabara reconstruída, para retornar à glória de um século antes. O país não demonstrava entusiasmo pelo comunismo, como os cidadãos deixaram claro em 1956, antes de serem duramente reprimidos pelos russos por ordens diretas de Kruchev. Posteriormente, com a nomeação de Andropov para o posto de embaixador da União Soviética, restabeleceu-se como uma feliz nação socialista, embora sob um governo mais fraco depois da breve e sangrenta rebelião. Todos os líderes rebeldes foram enforcados, fuzilados ou eliminados de outra maneira. O perdão não era uma virtude marxista-leninista.

Apesar de tudo, muitos russos pegavam o trem até Budapeste. O país era vizinho à Iugoslávia, a San Francisco comunista, um lugar aonde os russos não podiam ir sem autorização. Entretanto, como a Hungria mantinha livre comércio com a Iugoslávia, os cidadãos soviéticos tinham oportunidade de adquirir videocassetes, tênis de corrida Reebok e meias-calças Fogal. Geralmente, os russos viajavam para lá com uma mala cheia e duas ou três vazias — e uma lista de encomendas para todos os amigos. Os soviéticos podiam ir à Hungria com relativa liberdade porque tinham rublos do Comecon, moeda que todos os países socialistas eram obrigados a aceitar em nome do Grande Irmão de Moscou. Na realidade, Budapeste era a butique do bloco oriental. Podiam-se comprar até fitas pornográficas para usar nos aparelhos produzidos lá — cópias de projetos japoneses que passavam por engenharia reversa, feitas em suas próprias fábricas socialistas. As fitas eram contrabandeadas da Iugoslávia e copiadas. Por todos os lados, as opções iam de A noviça rebelde a Debbie does Dallas. Budapeste também tinha boas galerias de arte, pontos históricos, orquestras competentes e uma cozinha com certa fama. Um lugar convincente para o Coelho visitar, com a clara intenção de voltar a sua amada Rodina.

Este é o começo de um plano, pensou Mary Pat. E também sono perdido o suficiente por uma noite.

 

 

— ENTÃO, O QUE ACONTECEU? — perguntou o embaixador.

— Um espião da AVH estava tomando café na mesa ao lado de onde meu agente fez a entrega — explicou Szell, no escritório privativo do embaixador.

A sala ficava no andar superior, no canto. Na verdade, eram as dependências ocupadas por Josef Cardinal Mindszenty durante sua longa permanência no posto de embaixador dos Estados Unidos. Uma figura admirada tanto pelo pessoal americano quanto pelo povo húngaro, havia sido preso pelos nazistas, libertado com a chegada do Exército Vermelho e rapidamente encarcerado novamente por não demonstrar entusiasmo pelo advento da nova fé russa. Tecnicamente, no entanto, tinha sido detido sob a falsa acusação de ser monarquista apaixonado que desejava a volta da Casa dos Habsburg ao poder imperial. Os comunistas locais não demonstravam muito talento para criação literária. Mesmo no início do século XX, os Habsburg eram tão populares quanto um carregamento de ratos portadores da peste.

— Por que estava fazendo isso, Jim? — perguntou o embaixador Peter "Spike" Ericsson.

Ele precisava responder ao comunicado venenoso, porém totalmente previsível, que chegara com o chefe da base e agora repousava no centro de sua mesa.

— A mulher de Bob Taylor, aquela que está grávida, teve um problema de intestino. Os dois foram levados de avião ao Segundo Hospital Geral do Exército, em Kaiserslauten, para exames.

— Sei, eu tinha esquecido.

— Enfim, a versão resumida é a seguinte: eu estraguei tudo — admitiu Szell.

Não era do seu feitio acobertar as coisas. Aquilo provocaria um grande retrocesso em sua carreira, mas não havia nada a ser feito. Com certeza, a situação devia estar bem pior para o pobre desastrado que comprometera a entrega. Os oficiais da Autoridade Húngara para Segurança do Estado — Allamvedelmi Hatosag ou AVH — que o interrogaram obviamente não gozavam de um triunfo há muito tempo e tentaram convencê-lo de como tinha sido fácil pegá-lo. Malditos amadores, pensou Szell, com raiva.

Mas o resultado era que ele se tornara persona non grata ao governo húngaro e deveria deixar o país em 48 horas — de preferência com o rabo bem preso entre as pernas.

— É uma pena perdê-lo, mas não posso fazer muita coisa.

— Não sou de muita utilidade para a equipe agora. Tenho consciência disso.

Szell respirou fundo, demonstrando frustração. Estava ali há tempo suficiente para montar um bom centro de espionagem, que fornecia informações políticas e militares interessantes. Nenhuma de extrema importância, porque a Hungria não era um país extremamente importante, mas não se sabia quando algo relevante podia acontecer, nem mesmo em Lesoto. Que, aliás, podia ser seu destino seguinte, pensou Szell. Teria que comprar protetor solar e algumas roupas... Mas, pelo menos, acompanharia a World Series. Por enquanto, a base de Budapeste estava fora de atividade. Não que Langley fosse sentir sua falta, conformou-se Szell.

A mensagem sobre o incidente seria enviada a Foggy Bottom pelo telex da embaixada — encriptada, é claro. O embaixador Ericsson preparou um esboço da resposta que mandaria ao chanceler húngaro, refutando diretamente a alegação absurda de que James Szell, segundo-secretário da embaixada dos Estados Unidos da América, se envolvera em qualquer atividade incompatível com seu status diplomático e apresentando um protesto oficial em nome do Departamento de Estado americano. Talvez, na semana seguinte, Washington expulsasse um diplomata húngaro — caberia a Washington decidir se seria alguém irrelevante ou um agente. Ericsson acreditava que seria alguém irrelevante. Afinal, para que revelar que o FBI havia identificado um espião? Era melhor deixá-lo circular, sob rígida vigilância. E, assim, o jogo continuaria. O embaixador achava aquele jogo estúpido, mas todos os integrantes de seu pessoal participavam, com maior ou menor entusiasmo.

 

 

NO FINAL, A MENSAGEM sobre Szell mostrou-se irrelevante. Quando chegou ao quartel-general da CIA, acabou colocada no tráfego normal, que não exigia interromper o fim de semana do DCI. De qualquer maneira, o juiz Moore recebia um relatório matutino todos os dias, e os oficiais de plantão decidiram que o assunto podia esperar até as oito de domingo. Os juízes gostavam de uma vida organizada. E Budapeste não era tão importante no conjunto dos acontecimentos, correto?

 

 

AS MANHÃS DE DOMINGO em Moscou eram como em qualquer lugar do mundo, apenas com menos pessoas se arrumando para a igreja. O mesmo valia para Ed e Mary Pat. Um padre católico celebrava a missa na embaixada dos Estados Unidos nas manhãs de domingo, mas eles quase nunca participavam, embora fossem suficientemente católicos para se sentirem culpados por suas transgressões indolentes. Os dois tentavam se convencer de que a culpa era atenuada pelo fato de estarem realizando o próprio trabalho de Deus bem no meio da terra dos pagãos. Assim, o plano para aquele dia incluía levar Eddie a um passeio no parque, onde talvez encontrasse outras crianças para brincar. Pelo menos, aquelas eram as instruções de missão de Eddie. Não havia jornal matutino, e a programação dominical da TV era tão ruim quanto a do resto da semana. Por isso, só lhes restava conversar enquanto tomavam o café da manhã, um desafio para muitos americanos. O filho deles ainda era jovem e impressionável o bastante para achar Moscou interessante, mesmo que quase todos os seus amigos fossem americanos ou britânicos: presos, a exemplo de suas famílias inteiras, no condomínio-gueto, vigiados pela MGB ou pela KGB — as opiniões divergiam, mas todo mundo sabia que fazia pouca diferença.

O encontro foi marcado para as onze horas. Oleg Ivanovich seria fácil de localizar. E Mary Pat sabia que ela também. O marido gostava de dizer que ela parecia um pavão entre corvos, ainda que a metáfora valesse apenas para o pavão macho. Ela decidiu ficar mais discreta naquele dia. Sem maquiagem, cabelo penteado casualmente, jeans e pulôver. Não podia mudar muito a aparência — a estética local preferia que as mulheres de sua altura tivessem dez quilos a mais. Ela supôs que fosse a dieta. Ou o simples fato de que, quando se dispunha de comida em um país largamente assolado pela fome, não restava opção além de comer. Talvez a camada de gordura adquirida tornasse os invernos mais confortáveis. Não importava: o nível do vestuário das russas correspondia a algo saído dos filmes estrelados pelos Dead End Kids. Era fácil identificar as mulheres de gente importante, porque suas roupas pareciam quase de classe média, diferentemente das mais comuns, no nível das usadas em Appalachia. Mas, aos olhos de Mary Pat, aquilo era uma injustiça grosseira com as pessoas de Appalachia.

— Você vem, Ed? — perguntou ela, depois do café da manhã.

— Não, querida. Vou limpar a cozinha e começar a ler aquele livro que comprei na semana passada.

— Foi o motorista do caminhão — adiantou. — Já li esse autor antes.

— Obrigado, viu? — reclamou o marido.

Mary Pat conferiu a hora e saiu. O parque ficava a apenas três quarteirões para a direita. Ela acenou para o guarda — tinha certeza de que era da KGB — e seguiu pela esquerda, segurando a mão de Eddie. Na rua, havia um trânsito insignificante para os padrões americanos. Estava ficando frio. Uma volta para olhar o filho serviu para notar que ninguém a seguia. Obviamente, podia haver binóculos nos apartamentos do outro lado da rua, mas por algum motivo ela achava que não. Tinha se estabelecido como uma loura burra americana, e quase todo mundo acreditava. Até os contatos de Ed na imprensa a consideravam mais burra que ele — um feito e tanto —, o que era muito conveniente a Mary Pat. Os melros tagarelas repetiam tudo que os dois diziam um ao outro, até que as palavras fossem espalhadas uniformemente, como a cobertura de um bolo. O conteúdo chegava à KGB tão rapidamente quanto qualquer rumor.

Naquele meio, aproximava-se da velocidade da luz, porque os repórteres cometiam incesto intelectual como parte de seu estilo de vida. Os russos os ouviam e passavam tudo para dossiês volumosos, até que se tornava algo que "todo mundo já sabe". Um bom oficial de campo sempre manipulava os outros para construir um disfarce. O disfarce parecia fruto do acaso — exatamente como a vida —, e isso o tornava plausível, até para um espião profissional.

O parque era tão sem vida quanto todo o restante de Moscou: algumas árvores e grama impiedosamente pisoteada. Parecia que a KGB arrumava todos os parques para torná-los pouco favoráveis a contatos clandestinos. O fato de aquilo reduzir os locais onde os jovens moscovitas podiam se encontrar e trocar alguns beijos provavelmente não incomodava as consciências no Centro, que estariam no nível da de Pôncio Pilatos em dia de reflexão.

E lá estava o Coelho, a uns cem metros, um ponto excelente, perto de brinquedos que atrairiam uma criança de três anos — ou quatro. Ao se aproximar, ela pôde confirmar que os russos eram loucos por suas crianças. Aquele caso era mais notável porque o Coelho trabalhava na KGB e, por isso, diferentemente das pessoas comuns, tinha acesso a produtos — e, como faria um bom pai em qualquer lugar, esbanjava com a menina. Mary Pat concluiu que era um indicador positivo de seu caráter. Talvez pudesse até gostar daquele sujeito, um privilégio inesperado para um oficial de campo. Alguns agentes eram tão ferrados quanto um vagabundo do Bronx.

Ele não reparou na chegada dela, virando-se e observando a área ao redor indiferentemente, como faziam homens que levavam os filhos para passear.

Os dois americanos caminharam em sua direção de forma a parecer um movimento aleatório.

— Eddie, por que não diz "oi" para aquela menina russa? Você pode testar seu russo com ela — sugeriu a mãe.

— Tá bom — respondeu o garoto, correndo desajeitadamente. Ele foi direto até a menina e disse: — Oi.

— Oi.

— Meu nome é Eddie.

— O meu é Svetlana Olegovna. Onde você mora?

— Para lá — respondeu Eddie, apontando para a área dos estrangeiros.

— É seu filho? — perguntou o Coelho.

— Sim, Eddie Jr. Edward Edwardovich para vocês.

— Então ele também é da CIA? — perguntou Oleg Ivanovich, sem ter achado muita graça.

— Não exatamente. — Com um gesto quase teatral, ela lhe estendeu a mão. Era preciso protegê-lo, para o caso de haver câmeras por perto. — Sou Mary Patricia Foley.

— Estou vendo. Seu marido gostou da shapka?

— Para dizer a verdade, gostou. Você tem bom gosto para peles.

— É comum entre os russos. — Ele mudou de assunto em seguida. Era hora de tratar de negócios. — Vocês decidiram que podem me ajudar ou não?

— Sim, Oleg Ivanovich, podemos. Sua filha é encantadora. O nome dela é Svetlana?

O oficial de comunicações confirmou.

— Sim, é minha pequena zaichik.

Era uma estranha coincidência. O Coelho havia chamado sua filha de coelhinha. Aquilo provocou um sorriso reluzente em Mary Pat.

— Me diga, Oleg, como podemos levá-lo para os Estados Unidos?

— Está perguntando a mim? — reagiu em tom de incredulidade.

— Bem, precisamos de algumas informações. Seus passatempos e interesses, por exemplo. E os de sua esposa.

— Jogo xadrez. Minha principal distração é ler livros sobre antigas partidas de xadrez. Minha esposa teve uma educação mais clássica. Adora música. Música clássica, não aquele lixo que vocês produzem em seu país.

— Algum compositor em particular?

Ele sacudiu a cabeça.

— Qualquer um dos clássicos. Bach, Mozart, Brahms. Não sei todos os nomes. É a paixão de Irina. Ela estudou piano quando era criança, mas não tinha talento suficiente para receber formação oficial do Estado. É sua maior decepção. E nem temos um piano para que possa praticar — disse, consciente de que precisava fornecer aquele tipo de informação para que pudessem salvá-lo e a sua família. — De que mais precisa saber?

— Algum de vocês tem problemas de saúde? Tomam algum medicamento, por exemplo?

Haviam voltado a conversar em russo, e Oleg notou seu domínio elegante da língua.

— Não, somos todos bem saudáveis. Minha Svetlana já teve todas as doenças comuns da infância, mas não houve complicação.

— Ótimo. — Isso facilita muitas coisas, pensou Mary Pat. — Ela é uma menininha adorável. Deve ter muito orgulho dela.

— Mas será que ela vai gostar da vida no Ocidente? — indagou, demonstrando preocupação.

— Oleg Ivanovich, nenhuma criança, até agora, teve motivos para não gostar da vida nos Estados Unidos.

— E como seu pequeno Edward está se adaptando à vida na União Soviética?

— Sente falta dos amigos, claro, mas o levamos à Disney antes de virmos para cá. Ele ainda fala muito do assunto.

Logo em seguida, a surpresa: — Disney? O que é isso?

— É um grande empreendimento comercial feito para o lazer das crianças. E para os adultos lembrarem da infância. Fica na Flórida — explicou.

— Nunca ouvi falar.

— Você vai achar impressionante e muito divertido. E sua filha mais ainda. — Ela fez uma pausa. — O que sua esposa acha de seus planos?

— Ela não sabe de nada — disse Zaitzev, provocando enorme surpresa na interlocutora americana.

— O que foi que disse?

Está ficando maluco?, pensou Mary Pat no mesmo instante.

— Irina é uma boa esposa. Ela fará o que eu disser.

O machismo russo era do tipo agressivo.

— Oleg Ivanovich, isso é muito perigoso para você. Deve ter consciência disso.

— Perigoso para mim é ser descoberto pela KGB. Se isso acontecer, sou um homem morto. Eu e mais alguém — acrescentou, achando que uma provocação adicional lhe favoreceria.

— Por que quer sair daqui? O que o convenceu de que isso é necessário? — obrigou-se a perguntar Mary Pat.

— A KGB está planejando matar um homem que não merece morrer.

— Quem?

Ela tinha de fazer aquela pergunta também.

— Isso eu só digo quando estiver no Ocidente.

— Resposta justa — comentou. Estamos jogando com cautela, não é mesmo? — Mais uma coisa — continuou ele.

— Sim?

— Tome cuidado com as informações que envia a seu quartel-general. Há razão para acreditar que suas comunicações estão comprometidas. Vocês devem usar códigos únicos, como fazemos no Centro. Entende o que estou dizendo?

— Todas as mensagens a seu respeito foram encriptadas e despachadas pelo malote diplomático para Washington. — Depois daquelas palavras, o alívio no rosto de Zaitzev era nítido, embora ele tentasse escondê-lo. E o Coelho havia acabado de revelar algo de extrema importância. — Há espiões entre nós?

— Também só falo desse assunto no Ocidente.

Ai, merda, pensou Mary Pat. Eles têm um espião em algum lugar, e ele pode estar até no jardim da Casa Branca. Merda.

— Muito bem, trataremos de seu caso com a máxima segurança — prometeu ela. Mas aquilo significava que haveria um tempo de espera mínimo de dois dias para mensagens importantes. Naquela situação, teriam que voltar a procedimentos da Primeira Guerra Mundial. Ritter adoraria. — Pode me dizer que métodos seriam seguros?

— Os britânicos trocaram as máquinas de codificação deles há uns quatro meses. Posso adiantar que ainda não conseguimos decifrá-las. Quais comunicações de vocês estão comprometidas, não sei dizer. Mas posso garantir que algumas estão totalmente expostas. Não se esqueça disso.

— Pode ter certeza, Oleg Ivanovich.

Aquele cara tinha informações de que a CIA precisava — com urgência. Comunicações comprometidas eram a maior ameaça a uma agência secreta. Guerras haviam sido vencidas e perdidas por causa daquele tipo de coisa. Os russos não dispunham da tecnologia de computação dos americanos, mas contavam com alguns dos maiores matemáticos do mundo, e o cérebro entre as orelhas das pessoas representava o instrumento mais perigoso de todos; muito mais valioso do que máquinas que ficavam numa mesa ou no chão. Mike Russell ainda teria um dos antigos blocos de uso único na embaixada? A CIA os usara muito tempo atrás, mas a complicação envolvida acabava levando-os à aposentadoria. A NSA dissera a todos que, mesmo em seus melhores dias, Seymour Cray não podia violar as cifras, nem com seu novíssimo supercomputador Cray-2 turbinado. Se estivesse errada, aquilo podia prejudicar os Estados Unidos em proporções incalculáveis. No entanto, existiam muitos sistemas de cifras, e quem conseguia quebrar um não necessariamente quebraria outro. Ao menos era o que se dizia... mas segurança de comunicações não era sua especialidade.

Até ela precisava confiar em alguém ou alguma coisa de vez em quando. O problema é que aquilo era como ser atingido pela pistola na largada de uma prova de cem metros e, ainda assim, ter que correr para a vitória. Maldição.

— É um inconveniente, mas faremos o que for necessário para protegê-lo. Você quer sair logo, não?

— Ainda nesta semana seria excelente. Não para atender às minhas necessidades, mas às necessidades de um homem cuja vida está em perigo.

— Entendo — disse ela, sem entender muito bem. Aquele sujeito podia estar tentando enganá-la, mas, se fosse o caso, agia como um verdadeiro profissional. E ela não percebia indicações disso. Não, ele não parecia um agente de campo experiente. Era um jogador, porém não do mesmo tipo que ela. — Muito bem. Quando chegar ao trabalho amanhã, faça um relatório de contato — disse.

Ele se surpreendeu.

— Está falando sério?

— Claro. Diga ao seu supervisor que conheceu uma americana, a mulher de um oficial de segundo escalão da embaixada. Descreva a mim e ao meu filho...

— E digo que você é uma mulher americana, bonita, porém fútil, que tem um belo e educado filho — antecipou-se. — E que seu russo precisa melhorar um pouco, certo?

— Você aprende rápido, Oleg Ivanovich. Aposto que é bom no xadrez.

— Não o bastante. Nunca serei um grande mestre.

— Todos temos nossos limites. Só que nos Estados Unidos você perceberá que ficam bem mais longe do que na União Soviética.

— Até o fim da semana?

— Quando meu marido usar uma gravata vermelha, você deve combinar o horário e o local para um encontro. Possivelmente até amanhã à tarde receberá um sinal, e podemos fazer os arranjos.

— Então até logo. Onde aprendeu russo?

— Meu avô foi escudeiro de Aleksey Nikolaievich Romanov — disse. — Na minha infância, ele contou muitas histórias sobre o jovem e sua morte prematura.

— Então seu ódio pela União Soviética é profundo, hein?

— Apenas pelo seu governo, Oleg. Não pelo povo deste país. Quero vê-los livres.

— Um dia, talvez, mas não tão cedo.

— A história, Oleg, não é feita de poucos grandes feitos, mas de muitos pequenos.

Aquela era uma de suas principais convicções. Mais uma vez para as câmeras que podiam ou não existir, ela apertou a mão de Zaitzev e depois chamou o filho. Passearam mais uma hora no parque antes de voltar para casa para o almoço.

Em vez de um almoço caseiro, foram todos até a embaixada, conversando sobre temas amenos, como o tempo incrivelmente claro. Chegando lá, comeram cachorro-quente na cantina, e Eddie foi deixado na salinha para crianças. Ed e Mary Pat foram até o escritório dele.

— Ele disse o quê? — reagiu Ed.

— Disse que a mulher, que se chama Irina, não sabe dos planos — repetiu Mary Pat.

— Filho da mãe!

— Bem, pelo menos reduz nossa exposição. Afinal, ela não pode deixar nada escapar.

Ed lembrou que sua esposa era sempre a otimista.

— É claro, querida. Até tentarmos realizar a expatriação, e ela decidir que não quer ir a lugar algum.

— Ele garante que ela fará o que ele quiser. Você sabe, os homens daqui gostam de mandar no galinheiro.

— Isso não funcionaria com você — destacou o Station Chief de Moscou.

Por várias razões, sendo uma delas que Mary Pat era tão destemida quanto ele.

— Eu não sou russa, Eddie.

— Certo, o que mais ele disse?

— Ele não confia nas nossas comunicações. Acha que alguns dos nossos sistemas estão comprometidos.

— Meu Deus! — Ele parou por um instante. — Mais alguma boa notícia?

— Quer sair daqui porque a KGB planeja matar alguém que, segundo ele, não merece morrer.

— Ele disse quem?

— Não vai dizer até respirar os ares da liberdade. Mas há boas notícias. A mulher dele é aficionada por música clássica. Precisamos descobrir um bom maestro na Hungria.

— Hungria?

— Estive pensando nisso na noite passada. É o melhor caminho para tirá-lo daqui. É a base de Jimmy Szell, não é?

— É. — Os dois conheciam Szell dos tempos na Fazenda, o centro de treinamento da CIA, em Tidewater, Virginia, na saída da interestadual 64 e a poucos quilômetros de Colonial Williamsburg. — Sempre achei que ele merecia ir para algum lugar mais importante. — Ed refletiu mais um pouco. — Então está pensando em sair pela Hungria, através da Iugoslávia?

— Sempre soube que você era esperto.

— Muito bem... — Seus olhos fixaram-se em um pedaço vazio da parede enquanto seu cérebro trabalhava. — Muito bem, talvez possamos fazer esse plano funcionar.

— Seu sinal é uma gravata vermelha no metrô. Ele passará os detalhes pura um encontro, nós faremos isso, e o Coelho sairá da cidade com a senhora Coelho e a Coelhinha. Você vai adorar essa: ele já chama a filha de zaichik.

— Flopsy, Mopsy e Cotton-tail? — disse Ed, exercitando o bom humor.

— Gostei. Vamos chamar de Operação BEATRIX — sugeriu ela.

Ambos haviam lido As aventuras de Pedro, o coelho, de Beatrix Potter, quando crianças. E quem não leu?

— O problema será conseguir a aprovação de Langley. Se não pudermos usar os canais de comunicação usuais, coordenar tudo isso será um saco.

— Na Fazenda, nunca prometeram que seria fácil. Lembre-se do que John Clark nos disse: sejam flexíveis.

— É, como linguini. — Ele suspirou. — Com as limitações nas comunicações, quer dizer basicamente que planejaremos e coordenaremos tudo daqui, sem ajuda do escritório central.

— Ed, de qualquer maneira, é assim que deve ser. Tudo que Langley faz é dizer que não podemos fazer o que queremos fazer.

Aquela era a função de todo escritório central em todos os negócios do mundo.

— Em que comunicações podemos confiar?

— O Coelho disse que os britânicos acabaram de colocar em operação um novo sistema que eles não são capazes de invadir. Por enquanto. Ainda temos blocos de uso único por aqui?

Ed balançou a cabeça, negativamente.

— Não que eu saiba. — Ele tirou o fone do gancho e apertou alguns botões. — Mike? Está de serviço hoje? Pode dar um pulo aqui? Obrigado.

Russell apareceu em alguns minutos.

— Oi, Ed. Oi, Mary Pat. O que estão fazendo no trabalho hoje?

— Tenho uma pergunta.

— Chute.

— Ainda temos blocos de uso único?

— Por que a pergunta?

— Queremos segurança extra — respondeu ela. A resposta calculadamente casual não funcionou.

— Está dizendo que meus sistemas não são seguros? — perguntou Russell, com uma preocupação bem disfarçada.

— Temos razão para acreditar que alguns dos nossos sistemas de encriptação não são totalmente seguros, Mike — disse Ed ao oficial de comunicações da embaixada.

— Merda — deixou escapar, virando-se em seguida, constrangido. — Ah, me desculpe, Mary Pat.

Ela sorriu.

— Tudo bem, Mike. Não sei o que quer dizer essa palavra, mas já a ouvi antes.

A piada não fez muito efeito em Russell. A revelação anterior o havia abalado demais para que pudesse ver graça em qualquer coisa naquele momento.

— O que pode me contar a respeito?

— Nada, Mike — disse o chefe da base.

— Mas acha que é informação confiável?

— Infelizmente, sim.

— Certo. Lá no meu cofre tenho alguns blocos antigos, de oito ou nove anos atrás. Nunca me livrei deles porque nunca se sabe, não é?

— Michael, você é um ótimo cara — disse Ed, em aprovação.

— Darão para uns dez despachos, cada um com umas cem palavras. Isso presumindo que eles terão os blocos correspondentes em Fort Meade, mas os caras com os quais falo não costumam jogar nada fora. Só terão que vasculhar alguns arquivos.

— É muito difícil usá-los?

— Odeio essas coisas. Você sabe por quê. A cifra STRIPE (listra) só tem um ano, e o novo sistema britânico é uma adaptação dela. Conheço o pessoal da Divisão-Z que o desenvolveu. Estou falando de criptografia de 128 bits, com chave diária exclusiva para cada máquina. É impossível quebrar um negócio desses.

— A não ser que tenham um agente infiltrado em Fort Meade, Mike — lembrou Ed.

— Se eu botar as mãos nesse cara, vou escalpelar o filho da mãe vivo com meu facão Buck. — O simples pensamento fez sua pressão subir o bastante para que esquecesse de pedir desculpas à senhora presente. Aquele homem já havia matado e tirado a pele de muitos cervos de rabo branco, mas ainda queria transformar um urso em tapete. E um grande urso pardo russo serviria direitinho. — Certo, posso avisar Forte Meade disso?

— Não com a STRIPE — respondeu Foley.

— Bem, quando ouvir um grito alto e furioso vindo do Ocidente, saberá do que se trata.

— É melhor não discutir o assunto com ninguém por enquanto — disse Mary Pat. — Eles vão descobrir logo por outros canais.

Aquilo deixou claro para Russell que a mensagem sobre o Coelho, que enviara outro dia, referia-se a alguém que precisava ser retirado às pressas. E ele achava que sabia por quê. O Coelho era um especialista em comunicações, e quando se tinha um deles nas mãos era preciso tirá-lo da zona de risco no primeiro trem. Logo significava imediatamente, ou o mais perto disso que pudesse ser providenciado.

— Certo, me dê a mensagem. Vou enviá-la com um bloco único e depois encriptá-la na minha máquina STRIPE. Se eles estiverem acessando minhas comunicações, isso vai revelar algo? — disse, evitando tremer.

— Me diga você — respondeu Ed Foley.

Russell pensou por um instante e depois fez um gesto negativo.

— Não, provavelmente não. Mesmo quando se consegue invadir o sistema, nunca se intercepta mais do que um terço do tráfego. Os sistemas são muito complexos para isso. A não ser que o agente infiltrado esteja lendo o texto limpo do outro lado. Contra isso não há defesa, pelo menos do meu ponto de vista.

Aquela era outra possibilidade assustadora. Afinal, era o mesmo jogo deles e o mesmo objetivo que estavam permanentemente tentando alcançar: colocar uma pessoa lá dentro e permitir que ela enviasse informações para fora. Como o agente CARDEAL — um nome que nunca diziam em voz alta. Mas haviam escolhido aquele jogo. E, embora soubessem que o lado inimigo era bom, achavam que eles mesmos eram ainda melhores. Aquela era a música ao som da qual costumavam dançar.

— Muito bem, Mike. Nosso amigo acredita em blocos únicos. Parece que todos acreditam.

— Ivan com certeza acredita. Mas passar toda mensagem letra por letra deve deixar o pessoal deles maluco.

— Você já trabalhou com invasão? — perguntou Ed Foley.

A resposta imediata foi negativa.

— Não sou esperto o bastante. Mas é até bom que seja assim. Muitos caras dessa área acabam em sala protegida, recortando bonecos de papel com tesouras sem fio. Conheço vários funcionários da Divisão-Z. O chefe de lá acabou de recusar uma cadeira em matemática na Cal Tech. Ele é muito esperto — avaliou Russell. — Muito mais esperto do que eu jamais serei. Ed Popadopolous. O nome é grego. O pai tinha um restaurante em Boston. Agora me pergunte se eu gostaria de ocupar o cargo dele?

— Parece que não.

— Nem se eles incluíssem Pat Cleveland como benefício.

Ed Foley sabia que aquela era uma mulher muito atraente. Mike Russell realmente precisava de uma mulher em sua vida...

— Bem, vou mandar um despacho para você dentro de uma hora. Certo?

— Tudo bem.

Russell se retirou.

— Acho que o deixamos bem preocupado — disse Mary Pat.

— O almirante Bennett, em Fort Meade, também não vai ficar muito feliz. Preciso preparar a mensagem.

— Tudo bem. Vou ver como Eddie está se saindo com o giz de cera.

E Mary Patricia Kaminsky Foley também saiu da sala.

 

 

A REUNIÃO MATUTINA do juiz Arthur Moore acontecia geralmente às 7h30, exceto aos domingos, quando ele dormia um pouco mais e o horário passava para as 9h. A esposa já até reconhecia a batida do oficial de inteligência que transmitia as informações do dia, sempre no escritório privativo da casa, em Great Falls, que passava por inspeções semanais do maior especialista em escutas da agência. O mundo estivera relativamente tranquilo no dia anterior. O juiz aprendera, ao aceitar o cargo, que até os comunistas gostavam de relaxar nos fins de semana.

— Mais alguma coisa, Tommy? — perguntou.

— Algumas notícias ruins de Budapeste — respondeu o oficial de inteligência. — Nosso Station Chief, James Szell, foi flagrado pelo inimigo ao coletar uma encomenda. Os detalhes ainda não são conhecidos, mas o fato é que ele foi identificado pelo governo húngaro. Seu substituto imediato, Robert Taylor, está fora do país resolvendo assuntos pessoais. Por isso, a base de Budapeste está temporariamente fora de atividade.

— Qual é a gravidade disso?

— Não chega a ser uma grande tragédia. Não costuma acontecer muita coisa na Hungria. As forças militares deles têm papel reduzido no Pacto de Varsóvia, e a política externa, fora o que fazem nas regiões vizinhas, é apenas uma reprodução da de Moscou. A base vinha nos passando uma razoável quantidade de dados militares, mas o Pentágono não dá muita importância. O exército húngaro não treina o suficiente para representar ameaça, e os soviéticos não o consideram confiável — explicou o oficial de inteligência.

— Szell costuma cometer erros? — perguntou Moore. Lembrava-se vagamente de tê-lo conhecido em uma confraternização da agência.

— Na verdade, Jimmy tem uma boa reputação. Como disse, senhor, ainda não dispomos de detalhes. Ele provavelmente estará de volta até o fim da semana.

— Certo. É tudo?

— Sim, senhor.

— Nenhuma novidade sobre o papa?

— Nem uma palavra, senhor. Mas vou dar tempo ao nosso pessoal para tentar todos os caminhos.

— É o que Ritter costuma dizer.

 

 

ED FOLEY PRECISOU de quase uma hora para preparar o despacho. Tinha que ser curto, mas completo, o que exigia muito de sua capacidade de escrever. Ao terminar, levou-o imediatamente à sala de Mike Russell. Sentou-se e ficou observando o contrariado oficial-chefe de comunicações codificar as letras uma a uma, misturá-las a sobrenomes tchecos e depois superprotegê-las em sua máquina de encriptação STRIPE.

Acabado o processo, o texto foi enviado pelo fax seguro, que, logicamente, codificou tudo de novo, mas em forma gráfica em vez de alfanumérica. Embora a encriptação por fax fosse relativamente simples, como os inimigos — que presumidamente monitoravam as transmissões via satélite da embaixada — não podiam saber se a mensagem era gráfica ou em texto, era apenas mais um obstáculo para atrapalhar o pessoal de decodificação. O sinal seguiu por um satélite geossíncrono e desceu por diferentes links: um em Fort Belvoir, Virginia; outro em Sunnyvale, Califórnia; e, claro, um em Fort Meade, Maryland, para onde as outras bases enviaram suas partes em segurança através de fibra ótica.

A equipe de comunicações em Fort Meade era toda formada por militares sem especialização. Quando um deles, um sargento da Força Aérea, passou a mensagem pela máquina de decodificação, ficou surpreso com a nota informando que a encriptação extra fora feita com um bloco NHG-1329.

— Onde está essa porcaria? — perguntou ao supervisor de plantão, oficial graduado da Marinha.

— Droga. Não vejo um desses há muito tempo.

Teve que abrir um pesado arquivo e se guiar por ele até encontrar o local de arquivamento dentro de um grande cofre de comunicações no canto oposto da sala. O recinto era guardado por um sargento fuzileiro cujo senso de humor, como o dos demais marines que trabalhavam ali, fora removido cirurgicamente no Centro Médico Naval de Bethesda, antes de serem destacados para Fort Meade.

— Ei, sargento, preciso entrar para pegar uma coisa — disse.

— É necessário falar com o major antes — informou o sargento.

O oficial graduado foi até a mesa do major da Força Aérea, que estava lendo um jornal.

— Bom dia, major. Preciso pegar uma coisa dentro do cofre.

— E o que é?

— Um bloco único, NHG-1329.

— Ainda temos algum? — perguntou o major, surpreso.

— Senhor, se não tivermos, pode usar isso para acender sua churrasqueira.

Ele lhe entregou o despacho. O major analisou o papel.

— Entendo. Tudo bem. — O major rabiscou uma autorização em um bloquinho no canto da mesa. — Dê isso ao fuzileiro.

— Sim, senhor.

O oficial voltou ao cofre, enquanto o major tentava entender por que o pessoal da Marinha falava de um modo tão engraçado.

— Aqui está, Sam — disse o oficial, entregando-lhe o formulário.

O fuzileiro abriu a porta, e o oficial entrou. A caixa com o bloco não estava trancada, provavelmente porque qualquer pessoa que conseguisse passar pelos sete níveis de segurança necessários para chegar ali seria tão confiável quanto a mulher do presidente.

O bloco era na verdade um pequeno arquivo. Ao sair, o oficial da Marinha registrou a retirada e voltou a sua mesa. Ele e o sargento da Força Aérea enfrentaram juntos a árdua tarefa de decodificar o despacho.

— Merda — disse o oficial ao passar da metade do procedimento. — Devemos contar isso a alguém?

— Não, isso está fora da nossa competência, filho. Acredito que o DCI vá informar às pessoas certas. E esqueça que viu — completou.

Os dois, porém, sabiam que não esqueceriam aquilo. Depois de todas as portas pelas quais tiveram que passar para chegar ali, a simples possibilidade de que os sistemas de comunicações não fossem seguros era como ouvir que suas mães estavam rodando bolsinha na Rua 16, em Washington.

— Claro, chefe, claro — disse o jovem sargento. — Como entregamos isso?

— Vamos pedir um entregador. Pode chamar um?

— Claro, senhor — disse, afastando-se com um sorriso.

O entregador era um sargento do Exército que dirigia um Plymouth Reliant da corporação. Ele pegou o envelope selado, colocou-o na pasta que estava a seu lado e seguiu pela Baltimore-Washington Parkway até a Beltway, e de lá na direção oeste até a George Washington Parkway. A CIA ficava na primeira entrada à direita. Naquele ponto, o despacho — ou o que quer que fosse, já que ele não conhecia o conteúdo — deixava de ser sua responsabilidade.

O endereço no envelope indicava o sétimo andar. Como outras agências do governo, a CIA nunca dormia. No andar superior, estava Tom Ridley, oficial de inteligência credenciado — o mesmo que fazia os relatórios de fim de semana para o juiz Moore.

Ele precisou de três segundos para concluir que aquilo precisava ser encaminhado ao juiz imediatamente. Pegou o telefone seguro e teclou o número 1 no modo de discagem rápida.

— Arthur Moore — atendeu uma voz.

— Juiz, é Tom Ridley. Acabamos de receber algo.

"Algo" indicava que era importante.

— Agora?

— Sim, senhor.

— Pode vir até aqui?

— Sim, senhor.

— E pode trazer Jim Greer também?

- — Sim, senhor. E provavelmente o Sr. Bostock também.

Aquilo tornava as coisas interessantes.

— Muito bem, ligue para eles e depois venham para cá.

Ridley parecia ouvir a voz de Moore do outro lado da linha, antes de desligar: Droga, não consigo tirar um dia de folga! Gastou alguns minutos ligando para os dois outros oficiais. Depois, desceu para pegar o carro, parando no caminho para tirar três cópias.

 

 

ERA HORA DO ALMOÇO em Great Falls. A Sra. Moore, sempre uma anfitriã perfeita, havia servido carne e refrigerantes aos convidados inesperados antes de se retirar para a sala de estar do segundo andar.

— O que houve, Tommy? — perguntou Moore.

Ele gostava do novo oficial. Formado na Universidade de Marquette, era especialista em Rússia e fora um dos principais analistas da equipe de Greer antes de ser promovido ao posto atual. Logo seria um dos homens que sempre acompanhavam o presidente no Air Force One.

— Isto chegou de manhã a Fort Meade — disse Ridley, distribuindo as cópias.

Mike Bostock era o que lia mais rápido no grupo.

— Meu Deus.

— Isso vai deixar Chip Bennett muito feliz — previu James Greer.

— É, como uma ida ao dentista — comentou Moore, por último. — Muito bem, pessoal, o que isso significa?

Bostock foi o primeiro a tentar responder.

— Que precisamos do Coelho no nosso viveiro com urgência, cavalheiros.

— Por Budapeste? — perguntou Moore, lembrando do relatório da manhã.

— Maldição — disse Bostock.

— Muito bem — Moore se aproximou dos colegas. -— Vamos organizar nosso raciocínio. Primeiro, qual é a importância dessa informação?

James Greer respondeu.

— Ele afirma que a KGB vai matar alguém que não merece morrer. Parece estar falando do papa, não?

— Mais importante do que isso é ele dizer que nossos sistemas de comunicações estão comprometidos — ressaltou Bostock. — Para mim, é o aspecto mais importante dessa mensagem, James.

— Bem, de qualquer maneira, queremos esse cara aqui ao nosso lado, correto?

— Juiz, pode apostar sua cadeira nisso — disse o DDO interino. — O mais rápido que pudermos.

— Podemos fazer isso com nossos próprios recursos? — perguntou Moore, em seguida.

— Não será fácil. Budapeste foi arrasada.

— Isso muda a importância de tirar o traseiro felpudo dele da terra vermelha? — perguntou o DCI.

— Não — respondeu Bostock.

— Se não podemos cuidar disso sozinhos, então devemos recorrer a um terceiro?

— O senhor quer dizer os britânicos?

— Já nos valemos deles antes. Temos boas relações com eles, e Basil gosta de nos deixar em débito — lembrou Moore. — Mike, pode aguentar isso? — perguntou a Bostock.

Ele aprovou com convicção.

— Sim, senhor. Mas pode ser uma boa ideia manter um homem nosso por perto para acompanhar as coisas. Basil não fará objeção a isso.

— Muito bem, precisamos decidir quem enviaremos. Próxima questão: qual será o nível de urgência?

— O que acha de hoje à noite, Arthur? — sugeriu Greer, para diversão de todos. — Do modo que vejo tudo isso, Foley quer comandar a operação de sua base, e ele também é bem impaciente. É um bom sujeito. Sugiro que o deixemos conduzir as coisas. Budapeste aparentemente é um bom ponto de saída para o Coelho.

— Concordo — disse Mike Bostock. — É um lugar para onde um oficial da KGB pode ir, digamos, de férias. E dali simplesmente desaparecer.

— Eles vão perceber o sumiço dele rapidamente — destacou Moore.

— Eles também souberam quando Arkady Shevchenko sumiu. E daí? Ele ainda nos passou muitas informações, não foi? — lembrou Bostock.

Ele ajudara a supervisionar a operação, que na verdade fora comandada pelo FBI, de Nova York.

— Certo. O que respondo a Foley? — perguntou Moore.

— Uma única palavra: autorizado.

Bostock sempre apoiava seus oficiais de campo. Moore olhou ao redor.

— Objeções? Alguém?

Ninguém se manifestou.

— Muito bem, Tommy. Volte a Langley e envie isso a Foley.

— Sim, senhor.

O oficial de inteligência levantou-se e saiu. Era uma característica positiva do juiz Moore: quando se precisava de uma decisão, não importava se boa ou má, ele sempre apresentava uma.


19

 


SINAL LIMPO

 

FOLEY SABIA QUE A DIFERENÇA de fuso horário era a maior desvantagem de trabalhar naquela base. Se aguardasse a resposta na embaixada, talvez tivesse que esperar horas, e sem receber adicional. Por isso, logo depois de enviar a mensagem, reuniu a família e voltou para casa, levando uma cópia do Daily News, de Nova York. Eddie aproveitou para comer mais um cachorro-quente no caminho até o carro. Há muito tempo achava que o Daily News tinha a melhor seção de esportes de Nova York, ainda que as manchetes fossem um pouco sensacionalistas. Mike Lupica entendia mais de beisebol do que alguns pretensos jogadores, e Ed Foley respeitava suas análises. Ele poderia ter sido um bom espião, se houvesse escolhido uma atividade realmente útil. Agora Ed entendia por que os Yankees despencaram na temporada. Parecia que os malditos Orioles ficariam com o campeonato, e aquilo, diante de sua suscetibilidade nova-iorquina, era um crime maior do que a situação dos Rangers.

— E então, Eddie, ansioso para patinar? — perguntou ao filho, preso ao banco de trás pelo cinto de segurança.

— Claro! — respondeu o garoto imediatamente.

Afinal, Eddie Jr. era seu filho. Talvez aprendesse mesmo a jogar hóquei direito. À espera, no armário do pai, havia um par dos melhores patins infantis que o dinheiro podia comprar — e outro para quando os pés crescessem. Mary Pat já havia se informado sobre as ligas infantis. Para Ed, eram as melhores fora do Canadá. Talvez até as melhores do mundo.

Era uma pena não ter um telefone seguro em casa, mas, de qualquer maneira, o Coelho dissera que talvez não fosse totalmente seguro. Além disso, revelaria aos russos que ele não era apenas o oficial da embaixada que servia de babá para os repórteres.

O fim de semana era o momento mais monótono para os Foley. Nenhum dos dois se incomodava com o tempo ao lado do menino, obviamente, mas isso eles podiam fazer na casa de Virginia, que tinha sido alugada. Estavam em Moscou pelo trabalho, uma paixão para ambos e algo que, esperavam, o filho um dia entenderia. Por enquanto, o pai lia alguns livros com ele. O garoto estava começando a se familiarizar com o alfabeto e parecia ler palavras, embora como símbolos caligráficos e não construções formadas por letras. Era o bastante para deixar o pai orgulhoso, mas Mary Pat ainda tinha dúvida.

Depois de meia hora de leitura, o pequeno Eddie ficou explicando os vídeos dos Transformers ao pai durante o mesmo tempo, para grande satisfação do primeiro e estupefação do segundo.

Os pensamentos do STATION CHIEF em Moscou, logicamente, estavam concentrados no Coelho. Ele voltara a refletir sobre a sugestão da esposa de retirar o pacote do país sem que a KGB ficasse sabendo. Foi durante a fita dos Transformers que a ideia lhe ocorreu. Não havia assassinato sem um corpo, mas com um corpo, sem dúvida, havia um caso de assassinato. E se o corpo não fosse o correto?

Uma vez ouvira Doug Henning dizer que a essência da mágica era controlar a percepção da plateia. Se pudesse determinar o que os espectadores viam, também podia estabelecer o que eles achavam que viam, e a partir daí também o que se lembravam de ter visto e o que contariam às outras pessoas. A chave para aquilo era lhes dar algo que esperassem ver, mesmo que fosse inacreditável. As pessoas — até as inteligentes — acreditavam nas mais diversas coisas. Com certeza, aquilo se aplicava perfeitamente a Moscou, onde os governantes daquele vasto e poderoso país acreditavam em uma filosofia política tão destoante da realidade contemporânea quanto os direitos divinos dos reis. Mais precisamente, eles sabiam ser uma filosofia falsa, mas mesmo assim se disciplinavam para acreditar naquilo como se fosse uma escritura sagrada redigida em tinta dourada pela própria mão de Deus. Portanto, aquelas pessoas podiam ser enganadas. Afinal, eles já se esforçavam bastante para enganar a si mesmos.

Então, como enganá-los?, perguntou Foley a si mesmo. Se mostrasse alguma coisa que a outra parte esperasse ver, ela a veria, sendo real ou não. Eles queriam que os soviéticos achassem que o Coelho e sua família haviam... não fugido do país, mas... morrido?

O capitão Kidd teria dito que pessoas mortas não contam histórias. Nem as pessoas mortas erradas.

Os britânicos fizeram isso uma vez na Segunda Guerra Mundial, não fizeram?, tentou lembrar Foley. Sim, leu sobre aquilo em um livro na escola Fordham, e mesmo na época tinha ficado impressionado com o conceito operacional. Chamara-se Operação PICADINHO. Sem dúvida, um plano de alto nível, que envolvia fazer os inimigos se sentirem espertos, e pessoas de qualquer lugar do mundo adoravam se sentir espertas... Principalmente as idiotas, observou Foley. E os serviços de inteligência alemães não valiam sequer a pólvora necessária para mandá-los para o inferno. Eram tão incompetentes que a Alemanha teria se saído melhor se simplesmente os dispensasse. O astrólogo de Hitler faria o mesmo trabalho e custaria muito menos a longo prazo.

Mas os russos, ao contrário, eram muito espertos. Espertos o bastante para exigir cuidado redobrado em jogos psicológicos contra eles, mas não a ponto de, ao encontrarem algo que esperavam encontrar, deixar tudo de lado só para buscar o que não esperavam. Não, aquilo estava na natureza humana, e mesmo o novo homem soviético — imagem que insistiam em construir — sujeitava-se à natureza humana, por mais que o governo tentasse extirpar isso dele. E, então, como faremos isso?, pensou, enquanto na televisão um caminhão-trator a diesel se transformava em robô de duas pernas, a melhor opção para combater as forças do mal — quaisquer que fossem...

Mas é claro. Era óbvio, não era? Bastava dar a eles o que quisessem ver para provar que o Coelho e seus pequenos companheiros de toca estavam mortos; dar a eles o que as pessoas mortas sempre deixavam para trás. Aquela seria uma grande complicação, porém não tão grande a ponto de tornar o plano inviável. Mas precisariam de ajuda. A lembrança daquilo deixou Ed Foley inseguro. Em sua área de atuação, confiava-se mais em si mesmo do que em qualquer outra pessoa ou coisa. Depois de si próprio, talvez companheiros de organização, porém no menor número possível. Depois disso, quando se tornava necessário confiar em pessoas de outros grupos, era hora de cerrar os dentes. Em sua preparação antes do início da missão, fora informado de que Nigel Haydock era um britânico muito cooperativo — e capaz — e um espião competente que trabalhava para um serviço aliado. E era verdade que havia simpatizado com o sujeito e que o contato inicial havia sido positivo. Mas ele não pertencia à agência. Mesmo assim, Ritter lhe dissera que, em situações delicadas, podia contar com a ajuda de Haydock. Além do mais, o Coelho em pessoa afirmara que as comunicações britânicas não tinham sido comprometidas ainda, e ele precisava acreditar que o Coelho estava jogando limpo. A vida de Foley não dependia daquilo, mas a carreira certamente sim.

Muito bem. Como fazer aquilo então? Nigel era o adido comercial da embaixada britânica, do outro lado do rio em relação ao Kremlin, uma base que remontava à época dos czares e supostamente fora motivo de irritação constante para Stalin, que odiava ver a bandeira britânica, todas as manhãs, da janela de seu gabinete. Os britânicos também haviam ajudado a recrutar e depois orientar o coronel Oleg Penkovskiy, o agente que evitara a Terceira Guerra Mundial e que, por sua vez, recrutara o CARDEAL, a joia mais brilhante na coroa da CIA. Enfim, se tivesse que confiar em alguém seria em Nigel.

Por força das circunstâncias. Ao menos ficaria sabendo que havia espiões no SIS, se o Coelho fosse desmascarado. Ele concluiu que teria que pedir desculpas a Nigel apenas por pensar daquela forma, mas eram negócios; nada pessoal. É paranoia, Eddie, disse a si mesmo. Você não pode suspeitar de todo mundo.

O diabo que não posso!

Ele sabia que, provavelmente, Nigel Haydock pensava o mesmo a seu respeito. O jogo simplesmente funcionava daquele jeito. Se conseguissem transferir o Coelho dali, seria uma prova de que Haydock estava limpo. Ivan nunca deixaria o Coelho sair vivo do país. Ele sabia demais. Zaitzev saberia do risco que estava correndo? Confiava na CIA para tirar a ele e a família, vivos, daquela cidade... Mas, com o acesso que tinha a toda aquela informação, ele não estaria ao menos fazendo um julgamento consciente? Havia naquilo um número de engrenagens suficiente para alimentar uma fábrica de bicicletas.

A fita acabou, e o Robô Mestre — ou seja lá qual fosse o nome — transformou-se novamente em caminhão e partiu com o motor roncando, ao som da música tema do desenho. Naquele momento, Ed já ficaria satisfeito que o menino tivesse se divertido. Mas também conseguira passar um tempo precioso com o filho e, ao mesmo tempo, pensar em seus problemas. No fim, nada mau para uma noite de domingo.

 

 

— ENTÃO, QUAL É O PLANO, Arthur? — perguntou Greer.

— Boa pergunta, James — respondeu o DCI.

Estavam assistindo TV no escritório do juiz: Orioles e White Sox jogando em Baltimore.

Mike Flanagan arremessava e se mostrava a caminho de conquistar outro prêmio Cy Young. O interbase estreante que os Orioles haviam acabado de contratar também jogava bem e parecia ter um futuro promissor. Os dois estavam tomando cerveja e comendo pretzels, como se fossem pessoas normais, aproveitando uma tarde com o passatempo preferido dos americanos. Em parte, era verdade.

— Basil ajudará. Podemos confiar nele — opinou o almirante Greer.

— Concordo. Qualquer problema que tenha tido é coisa do passado, e ele saberá mantê-lo tão isolado quanto as joias da coroa da rainha. Mas vamos querer um dos nossos envolvido na outra ponta.

— Em quem está pensando?

— Não no chefe da base em Londres. Todos sabem quem é ele, até os motoristas de táxi. — Não existia dúvida quanto àquilo. O chefe de Londres atuava na espionagem há muito tempo e deixou de ser um oficial de campo para se tornar administrador. O mesmo valia para a maioria de seu pessoal, que considerava o serviço em Londres um trabalho fácil, basicamente um destino final para pessoas que já pensavam na aposentadoria. Eram todos bons homens, claro, apenas prontos para pendurar as chuteiras. — Quem quer que seja, tem que ir a Budapeste. E precisa ser invisível.

— Portanto, alguém que eles não conheçam.

— Exato — confirmou Moore, enquanto dava uma mordida no sanduíche e pegava algumas batatas fritas. — Ele não terá muito a fazer, só mostrar aos britânicos que está por perto. Mantê-los sob controle.

— Basil vai querer conversar com o Coelho.

— Não podemos evitar isso — respondeu Moore. — Ele também tem direito de molhar o bico.

Moore aprendera a expressão como juiz, num raro caso de apelação no crime organizado. Ele e os colegas de Austin, no Texas, riram daquilo por semanas, depois de negar o recurso por 5 a 0.

— Vamos querer ter uma pessoa por perto nessa hora também.

— Pode apostar seu traseiro nisso, James — concordou Moore.

— E é melhor que nosso representante esteja baseado por lá. O problema do fuso horário pode atrapalhar.

— Certo.

— Que tal Ryan? — perguntou Greer. — Ele está acima de qualquer suspeita. Ninguém sabe quem é. É um dos meus. Não tem nem jeito de oficial de campo.

— Seu rosto já saiu nos jornais — observou Moore.

— Acha que a KGB lê as colunas sociais? No máximo, acharam que era um rico aspirante a escritor. Se houver um dossiê a respeito dele deve estar no subsubsolo do Centro. Não deve ser um problema.

— Acha mesmo isso? — perguntou Moore. Sem dúvida, Bob Ritter ficaria possesso. Mas não chegava a ser um problema. Bob tinha a ambição de um dia comandar todas as operações da CIA; mas, por melhor que fosse, nunca se tornaria DCI, por diversas razões, entre as quais a aversão do Congresso a espiões com complexo de Napoleão. — Ele consegue dar conta do recado?

— O garoto é ex-fuzileiro e pensa rápido, lembra?

— É, ele já conquistou seu espaço, James. E não é de mijar sentado — reconheceu o DCI.

— E só precisa ficar de olho nos nossos amigos, sem brincar de espião em solo inimigo.

— Bob vai ter um acesso.

— Manter o Bob em seu lugar não vai nos atrapalhar, Arthur. Principalmente se tudo der certo, pensou Greer. E daria certo. Depois de sair de Moscou, a operação seria pouco mais do que rotineira. Tensa, porém rotineira.

— E se ele estragar tudo?

— Arthur, Jimmy Szell cometeu um erro em Budapeste, e ele é um oficial de campo experiente. Sei que provavelmente não foi falha dele, apenas azar, mas mesmo assim prova meu argumento. Grande parte disso tudo depende da sorte. Os britânicos vão se encarregar do trabalho de verdade, e tenho certeza de que Basil montará uma boa equipe.

Moore avaliou a sugestão em silêncio. Ryan era um novato na CIA, mas sua estrela estava em ascensão. O fato de ter vivido aquela aventura menos de um ano antes, cumprindo a missão mesmo diante de duas armas carregadas, pesava a seu favor. Um aspecto positivo do Corpo de Fuzileiros era produzir poucos covardes. Ryan pensava e agia rápido, o que era uma boa carta para se ter na manga. Melhor ainda: os britânicos gostavam dele. Tinha lido os comentários de Sir Basil Charleston sobre a estada de Ryan na Century House — estava muito impressionado com o jovem analista americano. Portanto, era uma chance de integrar um novo talento, que, embora não tivesse sido formado na Fazenda, tampouco era uma criança perdida na floresta. Ryan já estivera lá e, inclusive, matara alguns lobos pelo caminho.

— James, foge um pouco às regras, mas não vou dizer não por causa disso. Tudo bem, fale com ele. Espero que seu garoto não fique assustado.

— Que nome Foley deu à operação?

— BEATRIX. A autora de As aventuras de Pedro, o coelho, sabe?

— Esse garoto está se saindo muito bem, Arthur. E a esposa dele, Mary Patricia, é um verdadeiro talento.

— Nisso concordamos totalmente, James. Ela seria uma grande cowgirl, e ele, um excelente chefe de polícia na região do Rio Pecos — disse o DCI.

Moore gostava de ver os jovens talentos que a agência estava produzindo. Eles mostravam de onde vinham. Na verdade, vinham de lugares distintos, mas todos pareciam carregar o mesmo fogo que ele sentira trinta anos antes, trabalhando com Hans Tofte. Não eram muito diferentes dos Texas Rangers que aprendera a admirar na infância — os caras inteligentes e durões que faziam o que tinha que ser feito.

— Como informaremos Basil?

— Liguei para Chip Bennett ontem à noite e mandei-o procurar alguns blocos únicos. Devem estar em Langley até a noite de hoje. Mandaremos tudo para Londres no 747, e alguns de lá para Moscou. Assim, podemos nos comunicar em segurança, ainda que de um modo um pouco inconveniente.

 

 

AQUELA TAREFA, NA REALIDADE, já estava quase concluída. Um sistema de computador usado para captar pontos e traços do código Morse fora conectado a um rádio de alta sensibilidade sintonizado numa frequência que não era empregada por qualquer agência humana, transformando os ruídos em caracteres romanos. Um dos técnicos de Fort Meade observou que o barulho intergaláctico que estavam copiando correspondia à estática residual produzida pelo Big Ben, assunto pelo qual Penzias e Miller haviam recebido o prêmio Nobel anos antes. Era o máximo de aleatoriedade possível. A não ser que se pudesse decodificá-la para ter acesso aos pensamentos de Deus, o que estava além da capacidade até da Divisão-Z da NSA. Uma impressora matricial colocava as letras em conjuntos de papel-carbono — três cópias de cada, uma para a origem, uma para a CIA e uma para a NSA. Todas continham letras suficientes para transcrever um terço da Bíblia, e cada página e linha eram identificadas alfanumericamente para possibilitar a decodificação. Três pessoas separavam as páginas, conferiam se os conjuntos estavam corretos e depois os colocavam em arquivos na tentativa de facilitar o uso. Em seguida, um arquivo era entregue a um oficial da Força Aérea, que levava as cópias da CIA a Langley. O chefe dos técnicos tentava imaginar o que seria tão importante para exigir os códigos únicos, que a NSA abandonara havia muito tempo, assumindo o culto institucional à tecnologia eletrônica.

Mas não cabia a ele questionar. Em Fort Meade, Maryland, certamente não.

 

 

RYAN ESTAVA ASSISTINDO TV, tentando se acostumar aos seriados cômicos britânicos. Ele aprendera a gostar do humor britânico. Afinal, eles haviam inventado Benny Hill: o cara devia ter algum problema mental para fazer as coisas que fazia. Mas levava um tempo para se acostumar com as séries regulares. A linguagem era simplesmente diferente e, embora ele falasse inglês tão bem quanto qualquer americano, as nuances — naturalmente exageradas na TV — tinham um aspecto sutil que às vezes passava despercebido. Jack percebeu, porém, que a esposa conseguia captá-lo. Ela ria com tamanho entusiasmo que chegava a engasgar, enquanto ele mal conseguia entender. De repente, ouviu o som do telefone seguro vindo do escritório no andar de cima e subiu correndo para atender; não havia como ser engano. Quem quer que tivesse definido o número do seu telefone — no caso, a British Telecom, empresa semiprivada que fazia exatamente o que o governo determinava —, teria escolhido uma combinação tão fora do padrão, que só uma criança seria capaz de discá-la sem querer.

— Ryan — disse ele, depois que seu telefone se conectou ao outro.

— Jack, aqui é Greer. Como está o domingo na velha Inglaterra?

— Choveu hoje. Não pude aparar a grama — contou Ryan.

Ele não se importava. Odiava aparar a grama desde a infância, quando aprendeu que, por mais que cortasse, aquela coisa crescia de novo em poucos dias e reassumia sua aparência horrível.

— Bem, aqui os Orioles estão derrotando o White Sox por cinco a dois, depois do sexto inning. Acho que seu time é favorito ao título.

— Quem fica com a National League?

— Eu apostaria nos Phillies, garoto.

— Aposto um dólar que está errado, senhor. Os Orioles parecem estar bem, daqui. — Que não é aí. Droga. Desde que a cidade de Baltimore perdera a equipe dos Colts, ele transferira sua paixão para o beisebol. Taticamente, o jogo era mais interessante, apesar de carecer do confronto viril do futebol americano. — Então, o que está acontecendo em Washington, em uma tarde de domingo, senhor?

— Só queria deixá-lo de sobreaviso. Há uma mensagem a caminho de Londres que diz respeito a você. Uma nova missão. Levará de três a quatro dias.

— Certo. — Aquilo despertou seu interesse, mas ele tinha que saber o que era, antes de ficar animado demais. Provavelmente, uma nova análise de que precisavam. Normalmente, assuntos econômicos, porque o almirante gostava de sua maneira de lidar com os números. — Algo importante?

— Bem, queremos saber o que pode fazer a respeito — foi tudo que o DDI se permitiu dizer.

Esse cara deve ensinar às raposas como enganar cachorros e cavalos. É bom que não seja britânico. A aristocracia local o mataria por arruinar suas corridas de cavalo, pensou Ryan.

— Certo, senhor. Estarei à espera. É pedir demais que faça um resumo do jogo para mim?

— Esse novo interbase, acho que se chama Ripken, acabou de chegar à segunda base na linha do jardim externo esquerdo. Completou o sexto ponto, com um fora, no final do sétimo inning.

— Obrigado, senhor, é bem melhor do que Fawlty Towers.

— Que porcaria é essa?

— É algo que chamam de comédia por aqui, almirante. É até engraçado, se puder entender.

— Faça um relatório da próxima vez que eu aparecer para uma visita — sugeriu o DDI.

— Sim, senhor.

— A família vai bem?

— Estamos todos bem, senhor. Obrigado por perguntar.

— Certo. Aproveite o resto do domingo. Até logo.

— O que era? — perguntou Cathy, da sala.

— O chefe. Vai mandar um serviço para mim.

— O que, exatamente?

Ela não desistia nunca.

— Ele não disse. Só avisou que receberia uma nova tarefa.

— E não disse o que era?

— O almirante gosta de surpresas.

— Sei.

 

 

O MENSAGEIRO ACOMODOU-SE na poltrona da primeira classe. O pacote, dentro da mala de mão, estava embaixo da poltrona da frente, e ele tinha uma coleção inteira de revistas para ler. Por estar viajando disfarçado, e não como um entregador diplomático oficial, podia fingir que era uma pessoa normal, um papel que também representaria no balcão de imigração do terminal 4 do aeroporto de Heathrow, antes de pegar o carro da embaixada para a viagem até a Grosvenor Square. Na maioria das vezes, procurava um pub agradável e cerveja britânica de qualidade antes de voltar para casa um dia e meio depois. Era um desperdício de talento e treinamento para o oficial de campo novato, mas todos tinham que pagar seus pecados. No caso do jovem recém-saído da Fazenda, aquele era o momento. Ele se consolava com o pensamento de que, o que quer que fosse, devia ser minimamente importante. Claro, gênio. Se fosse tão importante, estaria a bordo de um Concorde.

 

 

ED FOLEY DORMIA o sono dos justos. No dia seguinte, arranjaria uma desculpa para seguir até a embaixada britânica, sentar-se com Nigel e planejar a operação. Se tudo corresse bem, poria a gravata mais vermelha que tivesse para buscar a mensagem de Oleg Ivanovich, marcaria o próximo encontro cara a cara e levaria a operação adiante.

Quem será que a KGB quer matar? O papa?, perguntou-se. Bob Ritter estava preocupadíssimo com aquilo. Ou será outra pessoa? A KGB tinha um modo muito direto de lidar com pessoas de quem não gostava. Ao contrário da CIA. Eles não haviam matado uma única pessoa desde a década de 1950, quando o presidente Eisenhower usara a agência — com muita inteligência — como alternativa ao emprego de tropas uniformizadas em ações premeditadas. Mas aquele talento não fora passado ao governo Kennedy, que arruinara praticamente tudo em que colocara as mãos. Provavelmente, excesso de livros de James Bond. Tudo na ficção era mais simples do que no mundo real, mesmo em histórias escritas por um ex-agente de campo. No mundo real, até fechar o zíper podia ser complicado.

Ele, entretanto, estava planejando uma operação razoavelmente complexa e dizendo a si mesmo que não era tão complexa. Estaria cometendo um erro? A mente de Foley continuou divagando enquanto o resto de sua consciência dormia. Mesmo adormecido, ele analisava as situações. Em seus sonhos, via coelhos correndo por um campo verde, enquanto raposas e ursos permaneciam à espreita. Os predadores não avançavam, talvez porque os coelhos fossem muito rápidos ou porque estivessem perto demais de suas tocas, o que tornaria inútil uma perseguição. Mas o que aconteceria se os coelhos se afastassem além da conta de suas tocas? Nesse caso, as raposas poderiam capturá-los, e os ursos poderiam aparecer para engoli-los por inteiro... Seu trabalho era proteger os coelhinhos, não era?

Mesmo assim, no sonho, raposas e ursos só observavam, enquanto ele, a águia, voava em círculos e olhava para baixo. Ele, a águia, havia abandonado os coelhos, mas uma raposa poderia render um petisco saboroso, se suas presas a agarrassem da maneira apropriada, bem atrás da cabeça, para quebrar seu pescoço. Os restos ficariam para o urso, que não se importava com o que comia. Não, o Sr. Urso não dava a mínima. Era apenas um grande e velho urso, com o estômago sempre vazio. Comeria até uma águia se tivesse a oportunidade, porém a águia era muito ágil e esperta, não era? Somente enquanto mantivesse os olhos abertos, lembrou-se a nobre águia; mesmo com muitas habilidades e visão privilegiada, era preciso ter cuidado. E, assim, a águia subia, aproveitando as correntes térmicas, e observava. Ela não devia entrar na confusão. No máximo, poderia dar um rasante e alertar os coelhinhos sobre o perigo próximo. Os coelhinhos, contudo, eram notoriamente burros e ficavam mastigando a grama, sem olhar ao redor com o cuidado necessário. Aquele era seu trabalho, disse a nobre águia a si mesma; usar sua magnífica visão para garantir que soubesse de tudo o que precisava saber. A tarefa dos coelhos era correr quando fosse necessário. Com a ajuda da águia, correr para outro campo, sem raposas e ursos por perto, para que pudessem criar seus lindos filhotes e viver felizes para sempre, como Flopsy, Mopsy e Cotton-tail, das histórias de Beatrix Potter.

Foley rolou na cama, e o sonho chegou ao fim, com a águia alerta aos perigos, os coelhos comendo grama e as raposas e os ursos à distância, apenas observando, sem se mexer, porque não sabiam qual coelhinho se afastaria demais da segurança de sua toca.

 

 

O ALARME PROPOSITADAMENTE irritante do despertador fez os olhos de Foley se abrirem. Ele rolou para desligá-lo e, em seguida, pulou da cama e entrou direto no banheiro. Subitamente, sentiu saudades de sua casa na Virginia. Tinha mais de um banheiro — dois e meio, na verdade —, o que proporcionava certa flexibilidade em caso de emergência. O pequeno Eddie se levantava assim que era chamado e, quase imediatamente, se punha na frente do aparelho de TV para gritar "Professora-Maravilhaaaaaa" quando o programa de ginástica começava. Aquilo provocava risos de seus pais. Até os caras da KGB, do outro lado das escutas, deviam rir do menino.

— Algo importante previsto para hoje no escritório? — perguntou Mary Pat, na cozinha.

— Talvez apenas as mensagens habituais de Washington enviadas no fim de semana. Preciso dar um pulo até a embaixada britânica antes do almoço.

— É mesmo? Para quê? — perguntou a mulher.

— Quero passar lá para conversar com Nigel Haydock sobre umas coisas — contou, enquanto ela colocava o bacon para fritar.

Mary Pat sempre preparava bacon e ovo nos dias de tarefas importantes de espionagem.

Ed imaginava se os operadores de escuta da KGB acabariam percebendo a relação.

Provavelmente não. Ninguém era tão detalhista, e os hábitos alimentares americanos só lhes interessavam na medida em que os estrangeiros geralmente comiam melhor do que os russos.

— Bem, mande um "oi" para ele.

— Pode deixar.

Ele bocejou e tomou um gole de café.

— Precisamos convidá-los para vir aqui. Pode ser na semana que vem?

— Por mim, tudo bem. Rosbife, como sempre?

— Perfeito. Vou tentar arrumar algumas espigas de milho congeladas.

Os russos plantavam milho, que podia ser comprado nos mercados abertos dos fazendeiros, mas, embora fosse de boa qualidade, não se comparava à variedade Silver Queen de que aprenderam a gostar na Virginia. Por isso, normalmente optavam pelo milho congelado que a Força Aérea trazia do Reno-Meno, junto com os cachorros-quentes Chicago Red servidos na cantina e todos os outros sabores de casa que eram tão importantes para quem estava a serviço ali. Devia ser exatamente igual em Paris, pensou Ed. O café da manhã foi rápido e, meia hora depois, ele estava quase pronto.

— Que gravata devo usar hoje, querida?

— Na Rússia, é de bom tom usar vermelho de vez em quando — disse ela, entregando-lhe a gravata, acompanhada do prendedor da sorte prateado, e dando uma piscadinha.

— Ahn-han — concordou, olhando no espelho para ajeitá-la sob o colarinho. — Bem, aqui está Edward Foley, o pai, oficial de relações exteriores.

— Para mim, está ótimo, querido.

Ela o beijou, fazendo barulho.

— Tchau, papai — disse o filho, enquanto o pai saía pela porta.

Uma batida de mão no ar em vez do beijo: ele estava muito grande para aquelas coisas de menininhas.

O resto da viagem resumia-se à insuportável rotina de sempre. Caminhar até o metrô, comprar o jornal na banca e pegar exatamente o mesmo trem pelos cinco copeques de praxe. Como pegava o mesmo trem todo dia na volta, com o intuito de passar à KGB uma imagem de pessoa habituada à rotina, tinha que assumir comportamento condizente de manhã. Na embaixada, esperou em seu escritório que Mike Russell trouxesse as mensagens da manhã. Nada de diferente, pôde perceber, só de folhear os papéis e checar os cabeçalhos.

— Alguma coisa sobre aquilo de que falamos? — perguntou o oficial de comunicações, prolongando-se por um instante.

— Parece que não — respondeu Foley. — Deixei você um pouco cismado?

— Ed, receber e enviar material em segurança é meu trabalho, sabia?

— Veja pelo meu lado, Mike. Se eles me descobrirem, me tornarei tão inútil quanto tetas em porco-do-mato. Sem falar das pessoas que vão morrer em consequência.

— Sim, entendo. — Russell pensou por um instante. — Só não consigo acreditar que eles possam invadir meus sistemas, Ed. É como disse: nós perderíamos agentes por todos os lados.

— Concordo, mas cautela nunca é demais, é?

— Entendi a mensagem. Se eu pegar alguém bisbilhotando na minha área, ele não viverá o bastante para conversar com o FBI — prometeu, sombriamente.

— Não exagere muito.

— Ed, quando eu estava no Vietnã, mensagens sem segurança provocavam a morte de soldados. As coisas chegam a esse nível de gravidade, entende?

— Se eu souber de algo, lembrarei de informá-lo, Mike.

Russell se retirou, já sem soltar tanta fumaça pelas ventas.

Foley organizou as mensagens — logicamente, endereçadas ao chefe da base, não a um nome em particular — e começou a lê-las. Ainda havia preocupação quanto à KGB e ao papa, mas, fora o Coelho, ele não tinha novidades a relatar. Somente a esperança o fazia crer que Flopsy tinha algo para lhe contar sobre o assunto. Muito interesse pela reunião do Politburo, na semana anterior, porém precisaria aguardar relatórios de suas fontes.

Perguntas sobre a saúde de Leonid Brejnev. O problema é que, embora soubessem os nomes de seus médicos — uma equipe inteira —, nenhum deles falava diretamente com a CIA. Era possível concluir, pelas imagens veiculadas na TV, que Leonid Ilyich não correria a maratona nas Olimpíadas. No entanto, pessoas naquele estado sobreviviam por anos, o que era uma notícia boa e má ao mesmo tempo. Brejnev não tomaria qualquer atitude nova e diferente, mas, ao se tornar gradualmente mais irracional, não havia como prever que medidas idiotas poderia implantar. Bem, com certeza, não retiraria as tropas do Afeganistão. Ele não se importava nem um pouco com as vidas de jovens soldados russos, muito menos com os passos da morte se aproximando de sua própria porta. A sucessão interessava à CIA, mas já estava praticamente decidido que Yuriy Vladimirovich Andropov seria o próximo a ocupar a cabeceira da mesa, salvo no caso de uma morte repentina ou de um erro grosseiro, do ponto de vista político.

Andropov, contudo, era um político muito astuto para tanto. Não, ele era o atual czarevich, e ponto final. Havia a esperança de que não conseguisse se manter ativo, o que seria o caso se os rumores sobre sua doença hepática fossem confirmados. Toda vez que o via na TV, Foley procurava o tom amarelado em sua pele que indicaria a doença; mas os sinais podiam ser disfarçados com maquiagem, se fosse permitido usar maquiagem em líderes políticos... Hum, como posso verificar isso?, pensou. Talvez fizesse uma consulta à Divisão de Ciência e Tecnologia, em Langley.

 

 

ZAITZEV ASSUMIU SEU LUGAR, depois de dispensar Kolya Dobrik, e deu uma olhada nas mensagens à espera. Decidira memorizar o máximo possível do conteúdo e, por isso, demorou um pouco mais para encaminhar as comunicações aos destinatários finais. Havia mais uma do agente CASSIUS, dirigida ao pessoal de inteligência política, no andar superior, e também ao Instituto Estados Unidos-Canadá, que fazia análise complementar da situação para o Centro. Em outra mensagem, o agente NETUNO, que enviava muito material de qualidade à KGB, pedia dinheiro. O nome NETUNO sugeria o mar, não? Zaitzev vasculhou sua memória em busca de outras mensagens enviadas por aquela fonte. Não tratavam essencialmente da marinha dos Estados Unidos? E ele estava preocupado com a segurança das comunicações americanas. Certamente a KGB estava pagando quantias imensas, centenas de milhares de dólares em dinheiro, algo difícil de se obter — era mais fácil para a União Soviética pagar em diamantes, que podiam ser retirados das minas na Sibéria Oriental. Eles haviam pago alguns americanos com diamantes, mas estes acabaram pegos pelo atento FBI, e a KGB nunca tentou negociar sua libertação... por falar em lealdade. Zaitzev sabia que os americanos tentavam negociar, mas, na maioria dos casos, as pessoas em questão já haviam sido executadas, um pensamento que fez seu sangue gelar.

Mas não havia como voltar atrás. Além disso, se a CIA era competente a ponto de a KGB temê-la, aquilo não significava que estava em boas mãos?

Ele se lembrou, então, de outra coisa que tinha que fazer naquele dia. Em sua gaveta, havia formulários para relatórios de contatos. Mary sugerira que relatasse o encontro deles. E assim ele fez. Descreveu-a como uma mulher bonita, com vinte e muitos ou trinta e poucos anos, mãe de um menino simpático. Não muito inteligente. Muito americana em seus maneirismos, escreveu. Tinha talento linguístico limitado, com bom vocabulário, porém sintaxe e pronúncia deficientes, o que tornava seu russo compreensível mas um tanto afetado. Ele não avaliou a possibilidade de se tratar de uma oficial de inteligência, o que, em sua opinião, era a escolha mais acertada. Depois de quinze minutos escrevendo, levou o relatório ao oficial de segurança do departamento.

— Foi uma perda de tempo — disse, entregando o papel ao oficial, um capitão por duas vezes preterido para promoção.

O oficial avaliou o relatório.

— Onde a encontrou?

— Está escrito bem aí. — Ele apontou para um trecho do relatório. — Levei minha zaichik para passear no parque, e ela apareceu com o menino. O nome dele é Eddie. O nome verdadeiro, obviamente, é Edward Edwardovich. Ou Edward Júnior, como dizem os americanos. Acho que ela disse que tinha quatro anos. Um bom menino. Conversamos por alguns minutos sobre amenidades, e os dois foram embora.

— O que achou dela?

— Se for uma espiã, então posso ter total confiança na vitória do socialismo — respondeu Zaitzev. — Ela é bem bonita, mas magra demais. E não é muito inteligente. Suponho que seja uma típica dona de casa.

— Mais alguma coisa?

— Está tudo aí, camarada capitão. Levei o mesmo tempo para escrever isso que passei conversando com ela.

— Sua diligência é apreciada, camarada major.

— Eu sirvo à União Soviética.

Zaitzev retornou a sua mesa. Foi uma boa ideia da parte dela ter o cuidado de se antecipar, pensou. Afinal, podia haver uma sombra atrás dela. Ou então acabava de incluir um novo registro em seu arquivo, feito por um oficial da KGB, assegurando que ela não representava uma ameaça ao socialismo mundial.

Ele recomeçou a fazer anotações mentais detalhadas sobre seu trabalho cotidiano.

Quanto mais informações fornecesse à CIA, mais bem pago seria. Talvez levasse a filha ao tal parque de diversões Disney. E talvez sua pequena zaichik até se divertisse.

As mensagens que encaminhava também falavam de outros países, e ele tratou de memorizá-las. Um agente de codinome MINISTRO, na Inglaterra, chamava sua atenção. Provavelmente atuava no Foreign Office e fornecia excelentes informações políticas e diplomáticas, muito apreciadas nos andares de cima.

 

 

FOLEY USOU UM CARRO da embaixada para ir até a missão britânica. Depois de se identificar, foi tratado com cordialidade, e Nigel desceu para encontrá-lo no grand foyer — que, sem dúvida, era bem grande.

— Oi, Ed. — Ele lhe deu um aperto de mão afetuoso e sorriu. — Venha por aqui. — Subiram as escadas de mármore e logo chegaram a seu escritório. Haydock fechou a porta e indicou uma poltrona de couro. — Em que posso ajudá-lo?

— Conseguimos um Coelho — disse Foley, deixando as preliminares de lado.

Aquilo revelou tudo. Haydock ficava sabendo que Foley era espião. Um "primo" na terminologia britânica.

— Por que está me contando?

— Precisamos de sua ajuda para tirá-lo de lá. Queremos fazer isso por Budapeste, mas nossa base local está fora de ação. Como estão suas operações por lá?

— O chefe é Andy Hudson. Ex-oficial do regimento de paraquedistas, muito capaz. Mas vamos com calma, Edward. O que pode me contar e por que isso é tão importante?

— Ele é um desertor, como você deve imaginar. Parece atuar em comunicações. Acho que ele é "quente", Nigel. Solicitei permissão para retirá-lo imediatamente, e Langley autorizou. É uma jogada certa, cara — explicou.

— Então esse camarada tem alta prioridade e alto grau de confiança?

Foley fez um gesto com a cabeça. — Isso. E quer saber da boa notícia?

— Se houver alguma...

— Ele garante que nossas comunicações estão comprometidas, mas o sistema novo de vocês ainda não foi invadido.

— É bom saber disso. Isso quer dizer que eu posso me comunicar à vontade, mas vocês não?

Outro sinal positivo.

— Soube hoje cedo que vou receber um reforço para as comunicações. Talvez eles tenham arranjado alguns blocos únicos para usarmos. Devo ficar sabendo ainda hoje, mais tarde.

Haydock recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro — um Silk Cut com baixo teor de alcatrão. Ele havia escolhido aquela marca para satisfazer a esposa.

— Vocês já têm um plano? — perguntou o espião britânico.

— Acreditamos que ele possa pegar o trem até Budapeste. Desse ponto em diante, bem...

Foley deu uma visão geral do plano que elaborara com Mary Pat.

— É mesmo criativo, Edward. — Haydock parou para pensar. — Quando leu sobre a Operação MINCEMEAT? É parte do currículo da nossa academia, você sabe.

— Desde criança, acho que é muito engenhosa.

— Em teoria, não é má ideia... Mas, sabe, não dá para encontrar as peças de que você precisa em qualquer ferro-velho.

— Já imaginava isso, Nigel. Por isso, se quisermos realizar a jogada, é melhor começarmos a nos mexer logo.

— Concordo. — Haydock parou novamente. — Basil vai querer saber de algumas coisas. O que mais posso contar a ele?

— Ele deveria receber uma carta em mãos do juiz Moore nesta manhã. Tudo que posso dizer é que esse sujeito parece valioso.

— Você disse que ele é oficial de comunicações. Trabalha no Centro?

— Sim.

— Isso pode ser muito valioso, sem dúvida — concordou Haydock. — Principalmente se ele for responsável pela entrega das mensagens.

A pronúncia do britânico lembrou Foley do oficial responsável por seu treinamento. Ele quase riu... mas se controlou. Desta vez assentiu com menos entusiasmo e os olhos fixos no anfitrião.

— É o que achamos, parceiro.

Haydock finalmente se deu conta.

— Meu Deus. Isso seria bem valioso. É mesmo só um desertor?

— Isso. Na verdade, é um pouco mais complicado, mas essencialmente é isso.

— Não é uma armadilha, um chamariz?

— É claro que pensei nessa possibilidade, mas não faz sentido, faz? — devolveu Foley. O colega britânico sabia que ele era da agência, não que era chefe da base. — Se tivessem me identificado, por que mostrar as cartas tão cedo?

— É verdade — reconheceu Nigel. — Seria um erro. Então vamos tentar Budapeste? Pelo menos é mais fácil do que sair por Moscou.

— Há más notícias também. A esposa dele não sabe do plano — contou Foley.

— Você só pode estar brincando, Edward.

— Bem que gostaria de estar. Mas é assim que está acontecendo.

— Bem, o que é a vida sem complicações? Alguma preferência para a retirada do Coelho? — perguntou, sem dar tempo para Foley entender o que estava pensando.

— Creio que isso seja uma tarefa para seu amigo Hudson, em Budapeste. Essa não é minha área, assim como não é meu papel dizer a ele como realizar a operação.

Haydock apenas balançou a cabeça. Era uma daquelas coisas que podiam ser deixadas de lado, mas, de qualquer forma, precisavam ser ditas.

— Quando? — perguntou.

— Logo. O mais cedo possível. Langley está quase tão ansiosa quanto eu.

Ele não acrescentou que seria uma excelente maneira de deixar sua marca como chefe da estação de Moscou.

— Estão pensando em Roma? Sir Basil vem insistindo comigo a esse respeito.

— Sua primeira-ministra está interessada?

— Acredito que tanto quanto seu presidente. Essa jogada pode deixar as coisas bem complicadas.

— Consideravelmente — concordou Foley. — Bem, só queria deixá-lo informado sobre o assunto. Sir Basil provavelmente lhe enviará uma mensagem mais tarde.

— Entendido, Edward. Quando chegar, posso começar a tomar providências.

Ele verificou o relógio: muito cedo para convidar o visitante para uma cerveja no pub da embaixada. Uma pena.

— Quando receber a autorização, me ligue, O.K.?

— Pode ter certeza. Vamos arrumar as coisas para você, Ed. Andy Hudson é um bom oficial e comanda uma operação bem organizada em Budapeste.

— Ótimo.

Foley se levantou.

— Que tal um jantar nos próximos dias? — perguntou Haydock.

— É melhor ser logo. Penny parece estar quase pronta para dar à luz.

— Quando a leva de volta para casa?

— Em duas semanas. Ela já não aguenta tanto chute e agitação.

— É sempre um bom sinal, amigo.

— Temos um bom médico bem aqui na embaixada para o caso de acontecer antes do esperado.

O médico da embaixada não queria realmente realizar um parto. Eles nunca queriam.

— Bem, se for menino, Eddie vai emprestar a ele suas fitas dos Transformers — prometeu Ed.

— Transformers? O que é isso?

— Se for menino, você vai descobrir — respondeu Foley.


20

 


ENCENANDO

 

O OFICIAL DE CAMPO novato chegou ao terminal 4 de Heathrow pouco antes das sete da manhã. Passou rapidamente pela imigração e pela alfândega e seguiu para a área de desembarque, onde o motorista o esperava com a tradicional plaquinha. No seu caso, obviamente com um nome falso, já que os agentes da CIA só usavam nomes reais quando era totalmente necessário. O motorista era Leonard Watts. Conduzia um Jaguar da embaixada e, como tinha passaporte diplomático e placas especiais no carro, não se importava muito com os limites de velocidade.

— Como foi a viagem?

— Tranquila. Dormi a maior parte do tempo.

— Bem-vindo ao mundo das operações de campo — disse Watts. — Quanto mais tempo dormir, melhor.

— É, acho que sim. — Era sua primeira missão em outro continente, e não parecia tão complicada. — Aqui está o pacote.

Não ajudava muito em seu disfarce o fato de ter viajado apenas com a sacola da entrega e uma pequena mala que passara a viagem no compartimento de bagagens contendo camisa e cueca limpas, além de um conjunto de barbear.

— Aliás, meu nome é Len.

— Prazer. Eu sou Pete Gatewood.

— Primeira vez em Londres?

— É — respondeu Gatewood, tentando se acostumar a estar sentado no lado esquerdo sem um volante para protegê-lo, num carro dirigido por um piloto reprovado na Nascar. — Quanto tempo até a embaixada?

— Meia hora. — Watts estava concentrado na direção. — O que está carregando?

— Só sei que é alguma coisa para o chefe da base.

— Bem, rotina não é. Eles me acordaram para isso — reclamou Watts.

— Em que lugares já trabalhou? — perguntou Gatewood, na esperança de fazer aquele maníaco reduzir um pouco a velocidade.

— Ah, por todo lado. Bonn, Berlim, Praga. Estou quase pronto para me aposentar e voltar para Indiana. Agora temos uma equipe de futebol para torcer.

— É, e todo aquele milho também — comentou Gatewood.

Ele nunca estivera em Indiana e não tinha interesse particular em visitar o estado conhecido pelas plantações — e que, lembrou-se, também revelara ao mundo alguns jogadores de basquete muito bons.

Em pouco tempo, passaram um grande parque à esquerda e, alguns quarteirões adiante, chegaram ao retângulo verde da Grosvenor Square. Watts parou o carro para Gatewood descer. Ele se desviou dos "vasos de flores", colocados ali para manter carros-bomba à distância do concreto que cercava o prédio excepcionalmente feio, e entrou. Os fuzileiros no interior do edifício verificaram sua identidade e ligaram para alguém. Logo uma mulher de meia-idade apareceu no saguão de entrada e o encaminhou ao elevador, que os levou até o terceiro andar, perto do grupo técnico que trabalhava com o GCHQ britânico, em Cheltenham. Gatewood entrou na sala situada em um canto e viu um homem de certa idade sentado atrás de uma mesa de carvalho.

— Você é Gatewood?

— Sim, senhor. E o senhor...

— Randy Silvestri. Você tem um pacote para mim — lembrou o Station Chief de Londres.

— Sim, senhor.

Gatewood abriu o zíper da sacola e tirou um grande envelope. Entregou-o.

— Está curioso para saber o que tem aí dentro? — perguntou Silvestri, observando o jovem.

— Se disser respeito a mim, creio que o senhor me contará.

O chefe aprovou seu comportamento.

— Muito bem. Annie o levará lá embaixo para tomar o café da manhã, se quiser, ou você pode pegar um táxi até o hotel. Tem dinheiro britânico?

— Cem libras, senhor, em notas de dez e vinte.

— Certo, é o suficiente para suas necessidades. Obrigado, Gatewood.

— Pois não, senhor.

Gatewood deixou o escritório.

Silvestri abriu o pacote depois de conferir que não havia sido violado. O arquivo continha quarenta ou cinquenta folhas de papel, cheias de letras aleatórias, separadas por espaço um e meio. Um bloco de cifras únicas. Para a base de Moscou, dizia o aviso na capa. Ele mandaria aquilo para Moscou no voo de meio-dia da British Airways. E duas cartas. Uma para Sir Basil, com indicação de entrega em mãos. Pediria um carro para levá-lo à Century House depois de ligar para avisar. A outra era destinada ao tal Ryan, de quem Jim Greer gostava tanto, também para ser entregue em mãos, através do escritório de Basil. Ele imaginava o que estaria acontecendo. Com aquele tipo de procedimento, não podia ser trivial. Pegou o telefone e apertou a tecla 5 no modo de discagem rápida.

— Basil Charleston falando.

— Basil, sou eu, Randy. Acabou de chegar uma coisa para você. Posso levar até aí?

Um ruído de folhas sendo viradas. Basil sabia que era importante.

— Que tal às dez, Randy?

— Perfeito. Nos vemos daqui a pouco.

Silvestri tomou um gole de café e avaliou o tempo necessário. Tinha uma hora para sair.

Apertou um botão no interfone.

— Sim, senhor.

— Annie, tenho um pacote para ser enviado a Moscou. Temos algum entregador à disposição?

— Sim, senhor.

— Certo, pode levar isso para ele?

— Sim, senhor.

As secretárias da CIA não eram pagas para falar demais.

— Excelente. Obrigado.

Silvestri desligou.

 

 

JACK E CATHY ESTAVAM no trem, passando pela região de Elephant and Castle.

Jack ainda não conseguira descobrir como o lugar recebera aquele nome. O tempo parecia ameaçador. A Inglaterra não é extensa o bastante para uma tempestade ficar estacionada, pensou Ryan. Talvez fosse apenas uma série de nuvens de chuva vindas do Atlântico. Em todo caso, entre ontem e hoje, seu histórico de dias agradáveis parecia estar no fim. Que pena.

— Só óculos esta semana, querida? — perguntou à esposa, que estava com a cabeça enterrada em uma revista médica, como sempre.

— A semana inteira — confirmou ela, levantando a cabeça em seguida. — Não é tão empolgante quanto uma cirurgia, mas é importante, sabe?

— Cathy, se você faz isso, deve ser importante.

— E você não pode dizer o que vai fazer?

— Não até chegar à minha mesa no escritório.

E, provavelmente, depois também não. O que quer que fosse, devia ter sido transmitido por impressora ou fax seguro, à noite... no caso de algo realmente importante, teria chegado por mensageiro. A diferença de fuso horário tornava essa opção até conveniente. O primeiro 747 que saía de Dulles chegava entre seis e sete da manhã, e, do aeroporto, eram mais quarenta minutos até sua mesa. O governo conseguia ser mais eficaz do que a Federal Express quando queria. Quinze minutos de Dayly Telegraph para ele, e New England Journal of Medicine para ela, e os dois se separaram em Victoria. Cathy insistiu em pegar o metrô, enquanto Jack preferiu um táxi. Ele abriu caminho passando pelo Palácio de Westminster e depois atravessou o Tâmisa. Ryan pagou os 4,50 da corrida e acrescentou uma gorda gorjeta. Dez segundos depois, estava dentro do prédio.

— Bom dia, Sir John — cumprimentou-o Bert Canderton.

— Olá, sargento-major — respondeu Ryan, passando a credencial pelo portão e, em seguida, tomando o elevador até o andar superior.

Simon já estava a postos, analisando mensagens. Ergueu os olhos quando Jack entrou.

— Bom dia, Jack.

— Oi, Simon. Como foi o fim de semana?

— Não pude cuidar do jardim. Essa maldita chuva.

— Alguma coisa interessante esta manhã?

Ryan se serviu de café. O chá inglês de Simon não era ruim, mas Jack simplesmente não gostava de chá, especialmente de manhã. Seus doces preferidos não existiam por lá, e ele esquecera de comprar um croissant no caminho.

— Nada por enquanto. Há algo chegando dos Estados Unidos.

— O que é?

— Basil não contou, mas quando alguma coisa é entregue em mãos numa manhã de segunda costuma ser interessante. Deve ter a ver com os soviéticos. Ele me disse para esperar.

— Seria bom começar a semana com alguma coisa interessante. — Ryan experimentou o café. Não era tão bom quanto o de Cathy, mas superava o chá. — Quando chega?

— Em dez minutos. O chefe de sua base, Silvestri, está trazendo para cá de carro.

Ryan o encontrara apenas uma vez. Parecera competente, mas isso era previsível em se tratando de um Station Chief da CIA, mesmo destacado para uma posição de fim de carreira.

— Nada novo de Moscou?

— Só rumores sobre a saúde de Brejnev. Parece que parar de fumar trouxe poucos benefícios — disse Harding, acendendo o cachimbo. — Velho desagradável — completou o analista britânico.

— E esse negócio do Afeganistão?

— Ivan está ficando mais esperto. Os helicópteros Mi-24 parecem ser bem eficientes.

Uma má notícia para os afegãos.

— Como acha que isso vai acabar?

Harding deu de ombros.

— Depende de quantas baixas Ivan está disposto a sofrer. Eles têm o poder de fogo necessário para vencer; portanto, depende apenas de vontade política. Infelizmente, para os mujahideen, a liderança de Moscou não se incomoda muito com o número de baixas.

— A não ser que algo modifique a equação — pensou Ryan, em voz alta.

— Por exemplo?

— Mísseis terra-ar capazes de neutralizar os helicópteros. Nós temos o Stinger. Nunca usei um pessoalmente, mas as avaliações são muito boas.

— Será que um bando de selvagens analfabetos conseguiria usar um míssil da maneira apropriada? — perguntou Harding, incrédulo. — Um rifle moderno, sem dúvida. Uma metralhadora também. Mas um míssil?

— A meta é produzir uma nova arma que seja à prova de soldados, Simon. Ou seja, simples a ponto de não ser necessário pensar enquanto se foge das balas. Nessa situação, não há muito tempo para se fugir, então o objetivo é reduzir ao máximo o número de etapas. Como eu disse, nunca usei esse míssil, mas já brinquei com armas antitanque e posso dizer que são bem simples.

— De qualquer forma, seu governo tem que decidir se vai fornecer os mísseis e isso ainda não foi feito. Não consigo ficar muito empolgado. Tudo bem, eles estão matando russos, o que reconheço que é ótimo, mas continuam sendo uns malditos selvagens.

E eles mataram um monte de britânicos uma vez, lembrou Ryan. E a memória dos britânicos é tão boa quanto a de qualquer povo. Também havia o risco de que os Stinger caíssem nas mãos dos russos, o que não deixaria a Força Aérea americana muito satisfeita. Enfim, aquilo estava muito acima de sua competência. Havia discussões sobre o assunto até no Congresso.

Jack se sentou, tomou um pouco de café e começou a ler suas mensagens. Depois, voltaria ao trabalho de verdade: analisar a economia soviética. Seria como fazer o mapa de um prato cheio de espaguete.

 

 

A FUNÇÃO DE SILVESTRI em Londres não era segredo. Ele estava no negócio da espionagem havia muito tempo e, embora nunca tivesse sido desmascarado propriamente, o bloco oriental já deduzira para que agência do governo trabalhava ao fim de sua estada em Varsóvia, onde comandava uma base muito organizada e obtinha, em quantidade, informação política de grande valor. Aquela devia ser sua última atribuição, assim como da maioria de seus oficiais. Por ter o respeito de diversas agências aliadas, conseguira o posto em Londres, onde sua principal tarefa era realizar a intermediação com o Serviço Secreto britânico. Um Daimler da embaixada levou-o até o outro lado do rio.

Ele nem precisava de credencial para passar pela segurança. O próprio Sir Basil o aguardava na entrada, onde os dois trocaram um aperto de mão, antes de subir as escadas.

— Quais são as novas, Randy?

— Tenho uma entrega para você e uma para aquele Ryan — informou Silvestri.

— Muito bem. Devo chamá-lo?

O chefe em Londres lera as informações da capa e já sabia o que havia nos pacotes.

— Claro, Bas, sem problemas. Harding também, se quiser.

Charleston pegou o telefone e chamou os dois, que chegaram em menos de dois minutos. Todos já haviam se encontrado pelo menos uma vez. Na verdade, Ryan era o menos familiarizado com o outro americano. Sir Basil pediu que se sentassem. Ele já abrira seu envelope.

Silvestri entregou o segundo a Ryan.

Jack já tentava imaginar o problema que o esperava. Havia algo incomum acontecendo, e ele aprendera a não confiar em coisas novas e diferentes na CIA.

— Isso é interessante — comentou Charleston.

— Devo abrir agora? — perguntou Ryan.

Diante da confirmação de Silvestri, ele pegou seu canivete suíço e abriu o grosso envelope. O comunicado tinha apenas três páginas e era assinado pessoalmente pelo almirante Greer.

Um coelho, leu imediatamente. Ele conhecia a terminologia. Alguém queria fugir... de Moscou... e a CIA estava tomando as providências, com ajuda do SIS, porque a base de Budapeste estava temporariamente fora de operação...

— Diga a Arthur que teremos prazer em cooperar, Randy. Presumo que teremos oportunidade de conversar com ele antes de o despacharem para Londres.

— É o mínimo que podemos fazer, Bas — confirmou Silvestri. — Que nível de dificuldade vê nisso?

— Tirá-lo por Budapeste? — Charleston pensou por um momento. — Creio que não será muito difícil. Os húngaros têm uma polícia secreta bem dura, mas o país como um todo não é devotado ao marxismo. Ah, esse coelho diz que a KGB pode estar interceptando suas comunicações. É por isso que Langley está tão agitada.

— Acertou em cheio, Basil. Se houver um buraco, temos que tapá-lo rapidamente.

— Esse cara trabalha no MERCÚRIO russo? Meu Deus — comentou Ryan.

— Exatamente, garoto — disse Silvestri.

— Mas por que me mandar para uma operação de campo? — quis saber Ryan, em seguida. — Não sou um oficial de campo.

— Precisamos que um dos nossos acompanhe a operação.

— Entendo perfeitamente, Randy — observou Charleston, com os olhos ainda presos aos relatórios. — E vocês querem mandar alguém que os inimigos não conheçam?

— É o que parece.

— E por que logo eu? — insistiu Ryan.

— Jack, seu único trabalho será acompanhar o andamento. Mera formalidade — disse Sir Basil, tentando tranquilizá-lo.

— E quanto ao meu disfarce?

— Forneceremos um novo passaporte diplomático — respondeu C. — Estará em segurança. Convenção de Viena, sabe como é.

— Mas... mas... será falso.

— Eles não terão como saber, garoto.

— E meu sotaque?

Era completamente óbvio que o sotaque dele não era britânico.

— Na Hungria? — perguntou Silvestri, sorrindo.

— Jack, com aquela língua deles, duvido seriamente que sejam capazes de perceber a diferença. Em todo caso, com seus novos documentos, será praticamente inviolável.

— Relaxe, garoto. É melhor que o ursinho de pelúcia da sua filha. Confie em mim nesse caso, está bem? — assegurou Silvestri.

— E você será acompanhado por um oficial de segurança o tempo todo — acrescentou Charleston.

Ryan teve que se recostar na cadeira e respirar fundo. Ele não podia parecer um covarde na frente daqueles homens, nem diante do almirante Greer.

— Tudo bem, me desculpem. É que nunca fui a campo, e é tudo uma novidade para mim. — Ele torceu que fosse suficiente para desfazer qualquer má impressão. — O que terei que fazer exatamente? E como?

— Você pegará um avião em Heathrow para Budapeste. Nossos amigos o buscarão no aeroporto e o levarão à embaixada. Ficará lá alguns dias e verá como Andy consegue tirar o Coelho da terra vermelha. Randy, quanto tempo acha que será necessário?

— Para começar a operação? No fim da semana, talvez um ou dois dias a mais — avaliou Silvestri. — O Coelho vai de avião ou trem até Budapeste, e seu homem descobrirá um jeito de tirá-lo da cidade.

— Dois ou três dias para isso — estimou Sir Basil. — Não pode ser rápido demais.

— Tudo bem, isso significa que fico fora de casa por quatro dias. Que história vou contar?

— A sua mulher? — perguntou Charleston. — Conte a ela que precisa ir a, hum, Bonn. Digamos que em missão envolvendo a Otan. Seja vago em relação à questão do tempo — aconselhou.

Por dentro, estava se divertindo em ter que explicar aquilo ao Americano Inocente no Exterior.

— Tudo bem — concordou Ryan.

Não parece que eu tenha muitas escolhas neste caso, não é mesmo?

 

 

DEPOIS DE RETORNAR À EMBAIXADA, Foley foi à sala de Mike Barnes. Ele era o adido cultural, o especialista oficial em tudo que envolvia badalação. Aquela era uma função importante em Moscou: a União Soviética tinha uma vida cultural muito rica.

O fato de a maior parte remontar à época dos czares não parecia incomodar o regime atual, provavelmente porque todos os grandes russos queriam parecer kulturniy e superiores aos ocidentais, especialmente aos americanos, cuja "cultura" era muito mais recente e grosseira do que a do país de Borodin e Rimsky-Korsakov. Barnes, com formação na escola de música Juilliard e em Cornell, apreciava particularmente a música russa.

— Oi, Mike — disse Foley.

— Como está sendo cuidar dos jornalistas? — perguntou Barnes.

— Sempre a mesma coisa. Ei, preciso fazer uma pergunta.

— Pode falar.

— Mary Pat e eu estamos pensando em viajar, talvez para o Leste Europeu. Praga e outros lugares. Algum lugar para ouvir boa música?

— A sinfônica de Praga ainda não começou as apresentações. Mas Jozsef Rozsa está em Berlim agora e depois vai para Budapeste.

— Quem é ele? Nunca ouvi esse nome — disse Foley, com o coração quase saindo pela boca.

— Nasceu na Hungria, é primo de Miklos Rozsa, compositor de Hollywood. Trabalhou em filmes como Ben-Hur. Acho que é o que se chama de família musical. Parece que é excelente. Acredite se quiser, mas a rede ferroviária estatal húngara tem quatro orquestras, e Jozsef vai conduzir a número 1. Vocês podem ir de trem ou avião, depende do tempo disponível.

— Interessante — disse Foley. Fascinante, pensou por dentro.

— A Orquestra de Moscou abre temporada no início do próximo mês. Estão com um novo maestro, um tal de Anatoliy Sheymov. Ainda não ouvi seu trabalho, mas parece que é muito bom. Posso arranjar ingressos. Ivan gosta de se mostrar para os estrangeiros, e eles são realmente de primeira linha.

— Obrigado, Mike. Vou pensar nisso. Até mais tarde.

Foley se retirou e voltou sorrindo para sua sala.

 

 

— MALDIÇÃO — EXCLAMOU SIR BASIL, ao ler a mais recente comunicação de Moscou. — Que gênio teve essa ideia? — perguntou ao vazio. Ah, o oficial americano, Edward Foley. Como ele vai conseguir realizar isso?, perguntou-se o diretor-geral do SIS.

Estava de saída para um almoço no Palácio de Westminster e não havia como cancelar o compromisso. Teria que ruminar aquilo enquanto comia seu rosbife e pudim Yorkshire.

 

 

— QUE SORTE A MINHA — disse Ryan, de volta a sua sala.

— Jack, será mais seguro do que atravessar a rua.

Às vezes, aquela era uma tarefa emocionante em Londres.

— Posso me cuidar, Simon — assegurou Ryan ao colega. — O problema é que, se eu cometer um erro, alguém vai pagar por ele.

— Você não terá esse tipo de responsabilidade. Só estará lá para observar. Não conheço Andy Hudson pessoalmente, mas ele tem excelente reputação profissional.

— Ótimo — comentou Ryan. — Hora do almoço, Simon, e acho que preciso de uma cerveja.

— Que tal no Duke of Clarence?

— Não foi esse cara que se afogou num barril de malvasia?

— Forma deprimente de morrer, Sir John — disse Harding.

— E, afinal, o que é malvasia?

— Um vinho feito de uma uva muito forte e doce, parecido com o madeira. Na verdade, agora ele vem das mesmas ilhas.

Mais um pouco de cultura inútil assimilada, pensou Ryan, enquanto pegava o paletó.

 

 

Em MOSCOU, ZAITZEV CHECOU seu arquivo pessoal. Ele tinha doze dias de férias acumuladas. A família não conseguira vaga em Sochi no verão anterior — a cota da KGB se esgotara em julho e agosto — e então ficara sem viajar. Como em qualquer país, era mais fácil marcar férias com uma criança pequena; podia-se sair da cidade quando se quisesse. Svetlana estava na creche estatal, mas perder alguns dias de bloquinhos e giz de cera era mais simples do que faltar a uma ou duas semanas de escola primária, o que suscitava reprovação.

 

 

NO ANDAR SUPERIOR, o coronel Rozhdestvenskiy lia a mensagem mais recente do coronel Bubovoy, de Sofia, que acabara de ser entregue pelo mensageiro. O primeiro-ministro búlgaro concordara com o pedido de Moscou. E com uma conveniente ausência de perguntas desagradáveis. Os búlgaros sabiam qual era seu lugar. O chefe de Estado de uma nação supostamente soberana sabia receber ordens de um oficial de campo do Comitê de Segurança do Estado russo. Exatamente como deve ser, pensou o coronel. Naquele momento, o coronel Strokov, da Dirjavna Sugurnost, estaria escolhendo um atirador, seguramente um turco, permitindo que a operação 666 fosse adiante. Ele relataria tudo ao diretor Andropov mais tarde.

 

 

— TRÊS CORPOS? — perguntou Alan Kingshot, consideravelmente surpreso. Ele era o oficial de campo mais antigo de Sir Basil, um operador com muita experiência, que atuara nas ruas de todas as grandes cidades europeias, primeiro como oficial "legal" e depois como solucionador de problemas para o quartel-general. Tinha 37 anos de serviços prestados à rainha Elizabeth II. — Uma pequena mudança de planos, hein?

— Sim. Parece que o sujeito que sugeriu isso é fã da Operação MINCEMEAT — respondeu Basil.

A Operação MINCEMEAT era uma lenda da Segunda Guerra Mundial. Fora pensada para dar à Alemanha a falsa impressão de que a ação aliada seguinte não seria a planejada Operação HUSKY, a invasão da Sicília. Eles decidiram sugerir à inteligência alemã que o alvo previsto da invasão era a Córsega. Para tanto, os alemães receberam o corpo de um alcoólatra, que fora transformado depois de sua morte por excesso de álcool em um major da Marinha Real, supostamente um oficial que participava do planejamento da operação fictícia para a conquista da Córsega. O corpo foi jogado na água na costa espanhola pelo submarino HMS Seraph. Levado ao litoral, foi recolhido, entregue à polícia local e autopsiado, com a caixa de documentos algemada ao pulso do cadáver e passada ao oficial da Abwehr na região. Este enviara a papelada a Berlim, onde teve o efeito desejado, provocando a mobilização de várias divisões alemãs para uma ilha cuja única importância militar era ser a terra natal de Napoleão. A história era conhecida como O homem que nunca existiu, inspiração para um livro e um filme e prova adicional da enorme incompetência da inteligência alemã, incapaz de distinguir o corpo de um bêbado do de um soldado profissional.

— Que outras informações nós temos? Coisas como idade e sexo, senhor? — perguntou Kingshot.

— Entendo. Cor do cabelo e outras características. E a causa da morte também. Ainda não dispomos desses dados. A pergunta inicial é mais genérica: é possível fazer isso?

— Em tese, sim, mas antes de seguir em frente preciso de muitas informações. Como disse, altura, peso, cor dos cabelos e dos olhos e sexo, claro. Com isso, podemos prosseguir.

— Bem, Alan, comece a pensar no assunto. Me entregue uma lista dos dados de que precisa até o meio-dia de amanhã.

— Em que cidade acontecerá?

— Provavelmente Budapeste.

— Já é alguma coisa — pensou o agente, em voz alta.

— Que negócio mais macabro — murmurou Sir Basil depois que o subordinado havia saído.

 

 

ANDY HUDSON ESTAVA sentado em seu escritório, relaxando depois do almoço no pub da embaixada, acompanhado de uma cerveja John Courage. De estatura mediana, tinha 82 saltos de paraquedas no currículo, com problemas nos joelhos para comprovar. Fora considerado incapaz para o serviço ativo oito anos antes e, como gostava de levar uma vida emocionante, optara por se juntar ao Serviço Secreto. Subira rapidamente na hierarquia graças, principalmente, ao talento linguístico acima do normal. Em Budapeste, era muito necessário. A língua húngara era classificada pelos filólogos como indo-altaica. A mais próxima na Europa era o finlandês, e, depois, o mongol. Não tinha ligação com qualquer outra língua europeia, exceto pelos nomes cristãos, que foram adotados quando o povo magiar sucumbiu ao cristianismo, depois de matar missionários suficientes para ficar entediado. Com o tempo, os húngaros perderam o instinto guerreiro e se tornaram o povo menos beligerante do continente.

No entanto, eram muito competentes na intriga e, como qualquer sociedade, tinham um lado criminoso — que, no seu caso, havia se dirigido para o Partido Comunista e o aparelho de poder. A polícia secreta, a Allamvedelmi Hatosag, podia ser tão opressiva quanto a Cheka dos tempos do Félix de Ferro. Mas opressão não significava eficiência. Era como se tentassem compensar a ineficiência inata aplicando selvageria contra os que por acaso eram apanhados. A estupidez da polícia era notória. Havia um aforismo — "tão estúpido quanto seis pares de botas de policiais" — que Hudson já comprovara ser verdadeiro. Não era a Polícia Metropolitana. E Budapeste também não era Londres.

Na realidade, ele achava a vida aprazível naquele lugar. Budapeste tinha uma beleza surpreendente, com uma arquitetura similar à francesa, e era bastante espontânea para uma capital comunista. A comida era notavelmente boa, mesmo nos restaurantes mantidos pelo governo que podiam ser encontrados em toda esquina, onde as refeições não primavam pela elegância, mas pelo sabor. O transporte público atendia suas necessidades. Ele atuava basicamente com inteligência política. Tinha uma fonte chamada Parada, no Ministério das Relações Exteriores, que fornecia informações muito úteis sobre o Pacto de Varsóvia e a política do bloco oriental como um todo, em troca de dinheiro — valores razoáveis, porque sua ambição era pequena.

Como o restante da Europa Central, Budapeste estava uma hora à frente de Londres. O mensageiro da embaixada bateu à porta de Hudson, depois entrou para jogar um envelope em sua mesa. Hudson colocou o charuto sobre a mesa e pegou a carta. Viu que era de Londres. De Sir Basil em pessoa...

Caramba, pensou Hudson. Sua vida estava prestes a ficar um pouco mais interessante.

A mensagem acabava assim: "Mais detalhes em breve." Tudo bem. Nunca se sabia de tudo até se ter que cumprir as ordens. Sir Basil não era um mau superior, mas, como a maioria dos chefes de espionagem, gostava de mostrar muita inteligência, o que não se apreciava totalmente no campo, onde as abelhas operárias tinham que se preocupar com as vespas. A equipe de Hudson contava com três pessoas, incluindo o próprio. Budapeste não era uma base importante e, para ele, representava um passo intermediário até aparecer uma oportunidade melhor.

Afinal, era jovem para chefe. Basil estava lhe dando uma chance de mostrar serviço, o que convinha a Hudson. A maioria dos chefes permanecia sentada em seus escritórios, como aranhas em suas teias, o que proporcionava uma força dramática, porém podia se tornar um tanto monótono, já que envolvia redigir intermináveis relatórios. Ele comandava as operações pessoalmente, o que criava o risco de ser desmascarado, como acontecera com Jim Szell. Hudson fora informado por uma fonte chamada BOTA, infiltrada na própria AVH, de que não passara de um lance de azar. O charme do trabalho estava no perigo. E era mais seguro do que pular da cauda de um Lockheed Hercules com quase trinta quilos em armamento e ração amarrados nas costas. Mais seguro também do que patrulhar Belfast com o Provos por perto. Foram as habilidades desenvolvidas nas ruas do Ulster, aliás, que fizeram dele um espião preparado. Como tudo na vida, o doce e o amargo andavam juntos. Mas ele preferia receber sua dose de amargo de uma vez.

Havia um coelho querendo fugir. Não deviam ocorrer complicações, embora aquele coelho parecesse ser importante, a ponto de a CIA pedir ajuda ao "Six", o que não acontecia todo dia. Só quando os ianques se complicavam, pensou Hudson, algo que não era tão incomum. Ele ainda não tinha nenhuma tarefa a cumprir. Não podia determinar as necessidades até receber detalhes adicionais, mas, em princípio, sabia como tirar pessoas da Hungria. Não era tão difícil. A falta de compromisso dos húngaros com o socialismo impedia-os de serem adversários mais sérios. Assim, ele enviou apenas um despacho acusando o recebimento da mensagem à Century House e esperou o desenrolar dos acontecimentos.

 

 

O VOO DE MEIO-DIA da British Airways para Moscou era feito por um Boeing de duas turbinas. A viagem levava cerca de quatro horas, dependendo dos ventos, que estavam calmos naquele dia. Chegando ao aeroporto Sheremetyevo, o mensageiro diplomático atravessou o portão principal e passou rapidamente pelo controle de imigração, garantido pela força do malote de lona e do passaporte diplomático. Depois, caminhou para o carro da embaixada, que o esperava para o trajeto até a cidade. O mensageiro já estivera ali tantas vezes que o motorista e os guardas da embaixada o conheciam de vista, e ele sabia se orientar sozinho no prédio. Com a encomenda entregue, desceu para a cantina, onde pediu um cachorro-quente e uma cerveja, sentando-se em seguida para ler seu novo livro de bolso. Subitamente lhe ocorreu que precisava fazer mais exercícios, já que seu trabalho consistia inteiramente em ficar sentado, em carros e principalmente aviões. Aquilo não podia ser saudável, pensou.

 

 

MlKE RUSSELL OLHOU para o gigantesco bloco único que recebera, torcendo para não ter que usar tudo aquilo em um único dia. O absoluto sacrifício de transpor letras aleatórias era suficiente para deixar uma pessoa louca. Tinha de haver uma maneira mais fácil. Era para aquilo que serviam suas máquinas de encriptação KH-7, mas Foley sugerira que elas não eram totalmente seguras, o que deixara o profissional em seu interior indignado. A KH-7 era a máquina de encriptação mais sofisticada produzida, fácil de usar e inteiramente impossível de invadir. Pelo menos em sua opinião. Ele conhecia a equipe de matemáticos que elaborara os algoritmos. As fórmulas algébricas usadas na -7 estavam tão acima de sua compreensão que ele precisava se esforçar à exaustão para entender o mínimo... Mas tudo que um matemático era capaz de produzir, outro, em teoria, podia decifrar — e os russos dispunham de alguns excelentes. Daquele fato advinha seu pesadelo: os inimigos estavam lendo as comunicações que ele tinha o dever de proteger.

Simplesmente não era admissível.

Portanto, transtornos à parte, era obrigado a usar o bloco para as comunicações mais sigilosas. Ao menos não tinha uma vida social muito agitada em Moscou. Os cidadãos russos comuns viam sua pele escura como sinal de uma relação com macacos trepadores de árvore africanos, o que o ofendia tanto que ele sequer conversava sobre o assunto com outras pessoas; apenas deixava aquilo produzir ódio em seu coração, o mesmo tipo de raiva profunda que sentira pela Ku Klux Klan, até o FBI colocar aqueles branquelos ignorantes fora de circulação. Talvez ainda o odiassem, mas um novilho no cio podia correr atrás de vários animais sem conseguir cruzar com eles, e o mesmo acontecia com aqueles fanáticos idiotas que haviam se esquecido de que, no fim da história, Ulysses Simpson Grant derrotara Bobby Lee. Por mais que o odiassem, a perspectiva de parar na penitenciária federal de Leavenworth mantinha-os em seus esconderijos escuros. Os russos são da mesma laia daqueles desgraçados racistas, pensou Russell. Mas ele podia contar com os livros, o toca-fitas onde ouvia cool jazz e o dinheiro extra que o penoso cargo garantia. Daquela vez, mostraria a Ivan uma mensagem que não podia ser decifrada, e Foley tiraria o Coelho dali. Pegou o telefone e discou os números apropriados.

— Foley.

— Russell. Pode vir à minha sala um minuto?

— Estou a caminho — respondeu o chefe da base.

Levou quatro minutos.

— O que é, Mike? — perguntou, ainda passando pela porta.

Russell mostrou o arquivo.

— Só há três cópias disso. Aqui, em Langley e em Fort Meade. Você queria segurança, está aí a segurança, cara. Só tente manter as mensagens curtas, certo? Esse negócio tem tudo para aumentar minha pressão sanguínea.

— Certo, Mike. Lamento não haver uma forma mais simples de fazer.

— Quem sabe um dia. Deve haver um jeito de usar um computador. Sabe, colocar o bloco em um disquete. Talvez escreva a Fort Meade sugerindo isso — disse Russell. — Isto pode deixar uma pessoa vesga.

Antes você do que eu, Foley teve vontade de dizer.

— Tudo bem, mando algo para você mais tarde.

— Entendido — assentiu Russell.

Ele não precisou acrescentar que seria superencriptado com o bloco e depois codificado em sua KH-7. Estava torcendo para que Ivan interceptasse a transmissão e entregasse o documento aos seus analistas de códigos. Pensar naqueles desgraçados arrancando os cabelos por causa de uma de suas mensagens fazia-o sorrir. Seria perfeito dar aquele negócio para os mestres da matemática brincarem.

Mas não havia como saber. Se a KGB tivesse uma escuta no prédio, por exemplo, a energia não viria de uma bateria interna, e sim de emissões de micro-ondas da Nossa Senhora dos Microchips, no outro lado da rua. Ele mantinha dois funcionários realizando rondas permanentes em busca de sinais inexplicáveis de radiofrequência. Esporadicamente, encontravam um sinal que denunciava uma escuta, mas o último caso ocorrera vinte meses antes. Agora, dizia-se que a embaixada estava toda examinada e totalmente limpa, mas ninguém acreditava naquilo. Ivan era muito inteligente. Russell não entendia como Foley conseguia manter sua identidade em segredo. Aquilo, no entanto, não era problema seu; garantir a segurança das comunicações já era bem complicado.

 

 

DE VOLTA À SUA SALA, Foley esboçou a mensagem seguinte que enviaria a Langley, tentando mantê-la o mais concisa possível, facilitando as coisas para Russell.

O conteúdo certamente deixaria algumas pessoas de olhos arregalados no sétimo andar.

Ele estava torcendo para que os britânicos ainda não tivessem informado Washington da ideia. Aquilo seria considerado um comportamento altamente inadequado, e oficiais experientes de todos os lugares ficavam indignados com besteiras assim. Contudo, em alguns casos, simplesmente não havia tempo para percorrer os trâmites normais, e esperava-se de um chefe de base que mostrasse iniciativa de vez em quando.

E, com a iniciativa, um pouco de arrogância.

Foley checou a hora. Usava sua gravata mais vermelha, e faltava uma hora e meia para pegar o metrô. O Coelho tinha que vê-lo e ao sinal. Uma voz baixinha sugeria a Foley que colocasse BEATRIX em andamento o mais rápido possível. Se era por causa do perigo para o Coelho ou por alguma outra razão, ele não sabia, mas costumava confiar em seus instintos.


21

 


FÉRIAS

 

NÃO ERA MESMO FÁCIL fazer com que alguém pegasse a composição correta no metrô. O Coelho e Foley aproveitavam-se da eficiência sobre-humana do que devia ser o único aspecto da vida soviética que funcionava de maneira apropriada. O impressionante era que os trens circulavam em horários tão regulares e previsíveis quanto o do pôr-do-sol, mas com uma frequência muito maior. Foley deixou o despacho nas mãos de Mike Russell, vestiu a capa de chuva e saiu pela porta da frente da embaixada, no momento exato. Caminhou no ritmo habitual e chegou à plataforma do metrô no horário preciso, virando-se para conferir o relógio que pendia do teto da estação. Sim, conseguira novamente. Um trem apareceu logo que o outro partiu. Foley embarcou no vagão de sempre e deu uma volta para ver se... sim, o Coelho estava lá.

Foley desdobrou seu papel. A capa de chuva, aberta, estava folgada em seus ombros.

Zaitzev ficou surpreso ao ver a gravata, mas não tinha do que reclamar. Como de hábito, caminhou lentamente na direção apropriada.

O Station Chief de Moscou pensou que aquilo tinha virado quase uma rotina. Sentiu a mão entrar sorrateiramente em seu bolso e se retirar. Em seguida, seus sentidos aguçados indicaram que o homem dera um passo para atrás. Com sorte, não precisaria repetir o procedimento muitas vezes. Era seguro para Foley, mas certamente arriscado para o Coelho, por mais perito que tivesse se tornado naquele exercício. As outras pessoas no vagão — reconhecia alguns rostos pela repetição — podiam muito bem ser agentes da Segunda Diretoria. Podia haver uma vigilância descontínua sobre ele, usando um monte de agentes diferentes. Seria uma tática inteligente dos inimigos, segui-lo de modo intermitente, reduzindo a probabilidade de que ele os identificasse.

No tempo certo, como antes, o trem chegou à parada prevista. Foley desceu. Em algumas semanas, teria que começar a usar um forro sob a capa e possivelmente até a shapka que Mary Pat comprara para ele. Precisava pensar no que aconteceria depois da fuga do Coelho. Se a operação BEATRIX ocorresse conforme o esperado, seria obrigado a manter suas atividades de dissimulação por determinado tempo — ou talvez passasse a dirigir até a embaixada, uma mudança de rotina que os russos não considerariam estranha. Afinal, era americano, e os americanos eram conhecidos por ir de carro a todos os cantos. As viagens de metrô estavam se tornando entediantes. Sempre lotado, frequentemente com pessoas que não sabiam para que servia um chuveiro. Foley pensou nos sacrifícios que fazia pelo seu país. Não, corrigiu-se, as coisas que fazia contra os inimigos de seu país. Era aquilo que tornava tudo válido. Dar uma dor de barriga ao grande e velho Urso. Quem sabe até um câncer de estômago, refletiu, a caminho do apartamento.

 

 

— E ENTÃO, ALAN? — perguntou Charleston, levantando os olhos da mesa.

— Suponho que esta seja uma operação de grande porte, certo? — indagou Kingshot.

— Em seu objetivo, sim — confirmou o diretor-geral. — No aspecto operacional, bem rotineira. Só temos três pessoas em Budapeste, e não seria muito brilhante enviar um esquadrão de mercenários.

— Vai mais alguém?

— Jack Ryan, o americano — disse Sir Basil.

— Ele não é agente de campo — opôs-se Kingshot imediatamente.

— E uma operação essencialmente americana, Alan. Fizeram um pedido, totalmente razoável, de que um deles nos acompanhasse. Em troca, teremos um ou dois dias com o Coelho, em lugar seguro a nossa escolha. Ele certamente terá várias informações do nosso interesse e poderemos falar com ele em primeira mão.

— Bem, espero que esse Ryan não ponha tudo a perder.

— Alan, ele tem se mostrado bem equilibrado em momentos de dificuldade, não acha? — perguntou Basil, demonstrando a sensatez de sempre.

— Deve ser a formação de fuzileiro naval — comentou Kingshot, com benevolência sombria.

— E ele é muito inteligente, Alan. Vem nos fornecendo material excelente com seu projeto de análise.

— Se o senhor diz, tudo bem. Para arranjar os três corpos, preciso do auxílio do serviço reservado. E depois preciso ficar de joelhos rezando para algo horrível acontecer.

— No que está pensando? — Kingshot explicou seu recém-elaborado plano operacional. Sem dúvida, era a única forma de realizar algo assim. E, como observara Sir Basil mais cedo, era tão macabra quanto uma autópsia. — Quais são as chances de algo do gênero acontecer? — perguntou Basil.

— Preciso falar com a polícia para lhe dar uma resposta.

— Quem é seu contato por lá?

— O superintendente geral Patrick Nolan. O senhor o conhece.

Charleston fechou os olhos por um instante.

— Aquele sujeito enorme, que costuma enfrentar atacantes de rúgbi como exercício leve?

— Esse é o Nolan. Eles o chamam de "Pequenino" na polícia. Acho que come halteres com a papinha. Tenho autorização para discutir a Operação BEATRIX com ele?

— Só o estritamente necessário, Alan.

— Perfeito, senhor — concordou Kingshot, deixando a sala em seguida.

 

 

— VOCÊ QUER O QUÊ? — perguntou Nolan.

Passava um pouco das quatro da tarde. Os dois tomavam cerveja em um pub a um quarteirão da Scotland Yard.

— Foi o que ouviu, Pequenino — disse Kingshot, acendendo um cigarro para não destoar da clientela do bar.

— Devo admitir que já ouvi muitas coisas estranhas nos meus anos de serviço na Scotland Yard, mas nunca algo parecido com isso. — Nolan tinha mais de l,90m e cem quilos, com percentual de gordura baixíssimo. Passava pelo menos uma hora, três vezes por semana, na sala de musculação da polícia. Raramente portava arma quando estava de serviço; nunca precisara de uma para mostrar a um bandido que seria inútil resistir.

— Pode me dizer para que precisa disso? — perguntou.

— Infelizmente, não tenho permissão. Tudo que posso dizer é que é importante.

Um gole demorado de cerveja.

— Bem, você sabe que não guardamos essas coisas no necrotério. Nem no Black Museum.

— Pensei em acidente de trânsito. Acontecem o tempo todo, não é?

— Acontecem, sim, Alan. Mas não com uma família de três.

— Então com que frequência esse tipo de coisa acontece? — perguntou Kingshot.

— Talvez uns vinte casos desse tipo, em média, por ano. E de forma totalmente irregular. Não se pode ter certeza de que um acidente desses acontecerá em determinada semana.

— Bom, teremos que torcer para termos sorte. Se não acontecer, simplesmente não aconteceu.

Seria um inconveniente. Talvez fosse melhor pedir ajuda aos americanos: eles matavam pelo menos 50 mil pessoas por ano em suas estradas. Kingshot decidiu que sugeriria a ideia a Sir Basil na manhã seguinte.

— Sorte? Não sei se podemos chamar assim, Alan — comentou Nolan.

— Você entendeu, Pequenino. Só posso lhe garantir que é algo extremamente importante.

— E se acontecer na M4, o que fazemos?

— Recolhemos os corpos...

— E os parentes das vítimas? — perguntou Nolan.

— Substituímos os corpos por sacos com o mesmo peso. A condição dos cadáveres tornará impossível uma cerimônia com caixão aberto, não é mesmo?

— Sim, tem razão. E depois?

— Deixaremos nosso pessoal cuidar dos corpos. Você realmente não precisa saber dos detalhes.

O SIS mantinha uma relação próxima e cordial com a Polícia Metropolitana. Mas nada além disso. Nolan bebeu o resto da cerveja.

— Certo, deixarei os pesadelos para você, Alan. — Ele conteve um calafrio. — Devo ficar de olhos abertos desde já, não é?

— Imediatamente.

— E também devo considerar a possibilidade de recolher os restos de mais de um incidente desse tipo?

— É claro — respondeu Kingshot. — Outra rodada?

— Boa pedida, Alan — concordou Nolan. O anfitrião acenou para o garçom. — Adoraria saber, um dia, para que está usando meus serviços.

— Um dia, depois que estivermos ambos aposentados, Patrick. Você gostará de saber no que está ajudando. É uma promessa, meu amigo.

— Se você está dizendo, Alan — aceitou Nolan. Por enquanto.

 

 

— QUE DIABOS É ISSO? — disse o juiz Moore, ao ler o mais recente despacho de Moscou.

Ele entregou a cópia a Greer, que a leu rapidamente e passou adiante a Mike Bostock.

— Mike, seu garoto Foley tem uma imaginação fértil — comentou o almirante.

— Isso parece coisa da Mary Pat. É ela a mais arrojada. Mas é um plano original, companheiros.

— Original não é a palavra mais adequada — disse o DCI, girando os olhos. — Então, Mike, isso é factível?

— Teoricamente, sim. Gosto da ideia, do ponto de vista operacional. Pôr as mãos em um desertor, mantendo Ivan desinformado do fato. Seria um lance de classe, cavalheiros — comentou Bostock, impressionado. — A parte desagradável é que precisamos de três corpos, sendo um de criança.

Os três diretores da inteligência tentaram não se arrepiar com aquele pensamento.

Curiosamente, era mais fácil para o juiz Moore, que já havia sujado as mãos trinta anos antes. Entretanto, foi em época de guerra, quando as regras costumam ser muito menos rígidas. O que, porém, não impedia que tivesse arrependimentos — fato que, em última instância, o levara de volta ao direito. Não podia reverter as coisas que havia feito de errado, mas podia garantir que não voltassem a acontecer. Ou algo parecido com isso, pensou naquele momento. Algo parecido.

— Por que um acidente de carro? — perguntou Moore. — Por que não um incêndio doméstico? Não seria mais apropriado aos nossos propósitos táticos?

— Boa lembrança — concordou Bostock na hora. — Um trauma menos físico para termos de explicar.

— Vou perguntar isso a Basil.

Mesmo as pessoas mais brilhantes, pensou Moore, podiam ter um raciocínio limitado. Por isso vivia orientando todos a fugir do pensamento convencional. De vez em quando, alguém conseguia. Pena que fosse tão raro.

— Sabem de uma coisa? — disse Mike Bostock, depois de pensar por alguns instantes.

— Se isso der certo, será muito interessante.

— "Se" é uma palavra grande demais, Mike — ponderou Greer.

— Talvez desta vez o copo esteja meio cheio — sugeriu o DDO interino.

— Muito bem. A missão principal é arrancar o cara de lá. Mas nada impede que coloquemos um pouco de molho nesse prato.

— É — disse Greer, sem muita convicção.

— Vou ligar para Emil, no FBI, e pedir a opinião dele — disse Moore. — É mais da área deles do que da nossa.

— E se algum advogado ficar sabendo disso, Arthur?

— James, há maneiras de lidar com advogados.

É, uma pistola pode ser muito útil, pensou Greer. Ele fez um gesto de concordância.

Deixar cada coisa a seu tempo era uma boa filosofia, principalmente naquele ramo de atividade.

 

 

— COMO FOI SEU DIA hoje, querido? — perguntou Mary Pat.

— Ah, o mesmo de sempre — foi a resposta para os microfones no teto. Mais expressivo foi o sinal com os dois polegares, seguido do bilhete tirado do bolso do casaco. Havia um ponto de encontro e um horário marcado. Mary Pat cuidaria de tudo.

Ela leu o bilhete e balançou a cabeça. Levaria Eddie para passear de novo, para encontrar a pequena Svetlana, a zaichik. Depois, bastaria tirar o Coelho da cidade, o que, por se tratar de um agente da KGB, não seria muito difícil. Era uma das vantagens de ele trabalhar no Centro. Estavam falando de um quase nobre, não de um mero mujique da fábrica de peças de ferro.

O prato do jantar era um belo bife, o cardápio usual das celebrações. Mary Pat estava tão empolgada com aquilo quanto ele — provavelmente até mais. Com um pouco de sorte, a Operação BEATRIX faria a reputação do casal, algo que ambos desejavam.

 

 

RYAN PEGOU O MESMO TREM de sempre para voltar a Chatham. Desencontrara-se novamente da mulher, mas, como ela tivera um dia rotineiro, provavelmente teria saído mais cedo, como todos os outros médicos empregados pelo governo com quem trabalhava. Ele pensou se o mau hábito seria mantido quando retornassem a Peregrine Cliff. Improvável. Bernie Katz gostava de manter a mesa limpa, sem fila de espera, e os hábitos de trabalho londrinos estavam levando sua esposa à bebida. A boa notícia era que a semana não tinha cirurgias marcadas; portanto, podiam tomar vinho no jantar daquela noite.

Tentou calcular quanto tempo ficaria longe de casa. Não estava acostumado àquilo.

Uma vantagem de ser analista era fazer todo o trabalho no escritório e depois voltar para casa. Raras vezes dormira sem a companhia da mulher desde que haviam se casado, uma regra quase sagrada naquela relação. Ele gostava de poder acordar as três da manhã, rolar para perto dela e lhe dar um beijo no meio do sono, só para ver o sorriso em seu rosto. Estar ao lado de Cathy era a base de sua vida, o centro de seu universo.

Agora, o dever o manteria longe dela por vários dias, algo que não fazia parte de suas intenções. Assim como não tivera intenção de entrar em outro maldito avião, para voar até um país comunista portando documentos de identificação falsos e supervisionando uma operação clandestina. Ele não entendia nada do assunto, à exceção do que ouvira de um ou outro agente de campo, em Langley... e de sua experiência própria, em Londres e em Chesapeake, quando o grupo terrorista de Sean Miller invadira sua casa de armas em punho. Era algo de que se esforçava para esquecer. Talvez fosse diferente caso tivesse permanecido entre os fuzileiros, mas neste caso estaria cercado de companheiros de combate. Poderia colher os louros, lembrar-se de suas realizações com o orgulho de ter feito a coisa certa no momento certo, recontar seus atos heroicos aos interessados, transmitir lições táticas aprendidas da maneira mais difícil no campo de batalha sobre cervejas no O-club e até mesmo rir de fatos que normalmente não provocavam riso. Mas fora obrigado a abandonar o Corpo de Fuzileiros devido a problemas nas costas e, assim, enfrentara sua peleja como um civil muito assustado. No entanto, a coragem, como lhe disseram uma vez, significava apenas ser o único a saber do seu próprio medo. E ele acreditava ter mostrado aquela qualidade na hora decisiva.

Sua tarefa na Hungria seria somente observar. E depois, na parte realmente importante, ver o pessoal de Sir Basil interrogar o Coelho, em algum lugar seguro de Londres, antes que a Força Aérea americana os levasse a bordo de um KC-135, partindo da base de Bentwaters, com boa comida e bastante álcool para aplacar seu medo de voar.

Ele desceu do trem, subiu as escadas e pegou um táxi até Grizedale Close. Ao chegar em casa, descobriu que Cathy havia dispensado a Srta. Margaret e estava ocupada na cozinha, aparentemente com Sally como assistente.

— Oi, amor.

Um beijo na esposa. Depois, ergueu Sally para o abraço habitual. As garotinhas dão os melhores abraços.

— E então, o que era aquela mensagem tão importante? — perguntou Cathy.

— Nada demais. Na verdade, até um pouco decepcionante.

Cathy virou-se para olhá-lo de frente. Jack não conseguia enganar sequer uma criança; era uma das características mais agradáveis dele.

— Ahn-han.

— Sério, querida — disse Ryan, percebendo o olhar e se afundando cada vez mais no buraco em que se metera. — Não levei nenhum tiro ou coisa parecida.

— Tudo bem — respondeu ela, querendo dizer "Conversaremos sobre isso mais tarde".

Estragou tudo de novo, Jack.

— Como vai o negócio dos óculos?

— Examinei seis pessoas. Havia tempo para oito ou nove, mas minha lista só tinha seis.

— Já contou a Bernie sobre as condições de trabalho aqui?

— Liguei para ele hoje, assim que cheguei em casa. Ele deu uma boa gargalhada e disse para eu aproveitar as férias.

— E sobre os caras que tomaram cerveja no intervalo de uma operação?

Cathy se virou. — Ele disse exatamente o seguinte: "Jack é da CIA, não é? Mande ele executar os filhos da mãe."

Ela voltou a se concentrar na comida.

— Precisa explicar a ele que não fazemos esse tipo de coisa.

Jack conseguiu até sorrir. Aquilo, pelo menos, não era mentira — e ele esperava que Cathy percebesse.

— Sei disso. Você não suportaria o peso em sua consciência.

— Sou muito católico — reforçou ele.

— Ao menos posso ter certeza de que nunca vai me trair.

— Que Deus me faça ter câncer se isso um dia acontecer.

Era a única praga envolvendo câncer que ela chegava perto de admitir.

— Você nunca vai ter motivo para isso, Jack.

Estava dizendo a mais pura verdade. Ela não gostava de armas, nem de derramamento de sangue, mas o amava. E aquilo bastava.

O jantar transcorreu normalmente e foi seguido pelas atividades noturnas rotineiras, até chegar a hora de a filha botar o pijama amarelo e subir na cama de criança grande.

Com Sally na cama e o garoto cochilando, havia tempo para assistir a algum programa idiota na TV. Pelo menos essa era a intenção de Jack...

— Vamos lá, Jack, quais são as más notícias?

— Nada sério — respondeu ele.

Foi a pior resposta possível. Cathy era muito talentosa na arte de ler sua mente.

— O que quer dizer com isso?

— Preciso fazer uma pequena viagem. Para Bonn. — Jack lembrou-se do conselho de Sir Basil. — Um assunto da Otan que sobrou para mim.

— O que vai fazer lá?

— Não posso contar, amor.

— Quanto tempo?

— Provavelmente três ou quatro dias. Por alguma razão, eles acham que eu sou perfeito para a tarefa.

— Ahn-han. — A relativa sinceridade de Ryan foi evasiva o suficiente para despistar sua capacidade de ler mentes. — Você não vai carregar uma arma nem nada parecido, vai?

— Querida, sou um analista, não um oficial de campo, está lembrada? Isso não faz parte do meu trabalho. De qualquer maneira, acho que os espiões não costumam mesmo portar armas. Fica muito difícil dar uma explicação se alguém perceber.

— Mas...

— James Bond só existe nos filmes, não na vida real.

Ryan voltou sua atenção para a TV A ITV estava exibindo uma reprise de Danger UXB e, mais uma vez, Jack se viu tentando a adivinhar se Brian conseguiria sobreviver à missão de desmontar bombas, para se casar com Suzy quando retornasse à vida civil.

Esquadrão antibomba. Aquele sim era um trabalho desgraçado. Como único consolo, sabia-se que, caso se cometesse um erro, a dor não duraria muito tempo.

 

 

— TEVE NOTÍCIAS DE BOB? — perguntou Greer.

Eram quase seis da tarde. O juiz Moore levantou-se de sua luxuosa cadeira giratória e se alongou. Muito tempo sentado e pouco tempo em movimento. Ele tinha uma pequena propriedade no Texas, com três cavalos quarto de milha. Não se podia ser um cidadão de destaque no Texas sem possuir um ou dois cavalos. Três ou quatro vezes por semana, punha a sela em Aztec e cavalgava por uma hora, para desanuviar a cabeça e tirar os pensamentos do trabalho. Era daquele jeito que costumava ter suas melhores ideias. Talvez aquela fosse a razão de se sentir tão improdutivo. Um escritório simplesmente não era um lugar muito adequado ao raciocínio, mas todos os executivos do mundo fingiam que sim. Ele não entendia por quê. Era aquilo que faltava em Langley: seu próprio estábulo. Havia espaço de sobra no terreno da CIA, que correspondia a cinco vezes a área de sua propriedade no Texas. Mas se fizesse aquilo, a notícia se espalharia pelo mundo: o DCI dos Estados Unidos gosta de montar a cavalo com seu chapéu Stetson — que acompanhava o animal — e possivelmente uma Colt 45 na cintura — opcional. Não ficaria bem diante das equipes de televisão que, cedo ou tarde, apareceriam junto às cercas, armadas com câmeras portáteis. Assim, por causa de sua vaidade pessoal, tinha que se abster da oportunidade de se dedicar a um momento de reflexão criativa. Era totalmente estúpido, disse o ex-juiz a si mesmo, permitir que tais considerações interferissem na maneira de fazer seu trabalho. Na Inglaterra, Basil podia perseguir raposas na garupa de um puro-sangue sem que ninguém se importasse. Seria até admirado, ou na pior das hipóteses considerado um pouco excêntrico — em um país onde a excentricidade era uma qualidade que despertava respeito. Na "terra da liberdade", porém, as pessoas eram escravizadas por costumes impostos por repórteres e autoridades eleitas que transavam com suas secretárias. Bem, não havia uma norma determinando que o mundo devia fazer sentido, havia?

— Nada relevante. Apenas um telegrama dizendo que o encontro com nossos amigos coreanos estava correndo bem — relatou Moore.

— Sabe, esses caras me assustam um pouco — comentou Greer.

Ele não precisou explicar por quê. A CIA, por vezes, induzia seu pessoal de campo a lidar muito diretamente com funcionários do governo da outra Coreia. As regras eram um pouco diferentes por lá. O estado de guerra vigente entre o Norte e o Sul ainda era patente e, na guerra, as pessoas perdiam as vidas. A CIA não realizava ações do gênero havia quase trinta anos, mas os povos asiáticos não haviam adotado os conceitos ocidentais sobre o valor da vida humana. Talvez porque tivessem crenças religiosas diferentes. Existiam muitas possibilidades, mas, por alguma razão, eles simplesmente eram diferentes quanto aos parâmetros operacionais que se obrigavam a respeitar — ou não.

— Eles são nossos principais informantes sobre a Coreia do Norte e a China, James — lembrou Moore. — E são aliados muito fiéis.

— Sei disso, Arthur. — Era bom ouvir falar da República Popular da China de vez em quando. Entrar no país era uma das tarefas mais frustrantes da CIA. — Só preferiria que não fossem tão arbitrários em relação à morte.

— Eles operam dentro de regras bem rígidas, e os dois lados parecem segui-las.

E, em ambos os lados, os assassinatos tinham de ser autorizados pelo mais alto escalão. Não que aquilo importasse para os futuros cadáveres em questão. Operações de execução interferiam na missão principal: coletar informações. Era um aspecto de que as pessoas costumavam se esquecer, mas que a CIA e a KGB entendiam bem, razão pela qual decidiram se afastar dele. Entretanto, quando as informações obtidas assustavam ou incomodavam os políticos que geriam os serviços de inteligência, os espiões recebiam ordens para fazer coisas que geralmente gostavam de evitar. E, então, cumpriam a determinação através de prepostos ou mercenários, principalmente...

— Arthur, se a KGB quiser atacar o papa, o que acha que farão?

— Não será um deles — respondeu Moore. — É muito arriscado. Seria uma catástrofe política, como se um tornado atingisse o Kremlin com toda a força. Seguramente acabaria com a carreira política de Yuriy Vladimirovich, e não acredito que ele correria um risco tão alto, por qualquer razão. O poder é importante demais para ele.

O DDI fez um gesto com a cabeça: — Concordo. Acho que ele renunciará à diretoria em breve. Precisa fazer isso. Não permitirão que passe diretamente da chefia da KGB à secretaria geral. Seria ameaçador demais até para eles. Ainda se recordam de Beria. Ao menos, os que se sentam ao redor da mesa.

— Bem lembrado, James — disse Moore, de perto da janela. — Gostaria de saber quanto tempo de vida Leonid Ilyich tem.

Confirmar a morte de Brejnev era um interesse permanente da CIA. Ou melhor, de todo mundo em Washington.

— Andropov é nosso melhor indicador quanto a isso. Temos quase certeza de que será o substituto de Brejnev. Quando houver um sinal de que Leonid Ilyich esteja perto do fim, Yuriy Vladimirovich trocará de cargo.

— Faz sentido, James. Vou informar isso ao Departamento de Estado e à Casa Branca.

O almirante Greer assentiu.

— É para isso que nos pagam. Mas voltemos ao papa — sugeriu.

— O presidente continua fazendo perguntas — disse Moore.

— Se tomarem alguma atitude, não será um russo. Há muitas armadilhas políticas, Arthur.

— Como disse, concordo. Mas que opções restam?

— Eles usam os búlgaros para os serviços sujos — lembrou Greer.

— Então vão procurar um assassino búlgaro?

— Quantos búlgaros fazem peregrinação a Roma, na sua estimativa?

— Não podemos dizer aos italianos que fiquem atentos a isso, não acha? Com certeza, a informação vazaria, o que seria inadmissível. Na imprensa, pareceria algo completamente idiota. É uma coisa que não podemos fazer, James.

Greer deu um longo suspiro.

— É, eu sei. Não sem uma indicação segura.

— Mais segura do que temos atualmente. É praticamente nada, James, nada. Seria ótimo se a CIA fosse tão poderosa quanto os filmes e os críticos sugerem que é.

Nem sempre. Só às vezes, pensou o juiz Moore. Mas não era. Aquela era a verdade.

 

 

O DIA SEGUINTE começou primeiro em Moscou. Zaitzev acordou com o barulho do despertador analógico. Resmungou e reclamou como qualquer trabalhador no mundo e cambaleou até o banheiro. Dez minutos depois, estava tomando seu chá matutino e comendo pão preto com manteiga.

A menos de dois quilômetros de distância, a família Foley fazia a mesma coisa. Para variar, Ed decidiu comer um muffin inglês e geleia de uva, sendo acompanhado pelo filho, que deu um tempo na Professora-Maravilha e nas fitas dos Transformers. Estava se aprontando para a pré-escola que havia sido montada para as crianças ocidentais, bem ali no condomínio, onde demonstrava muito talento com o giz de cera e os novos triciclos da Hot Wheels, além de ser campeão no gira-gira.

Ed disse a si mesmo que podia relaxar por um dia. O encontro aconteceria à noite, e Mary Pat cuidaria de tudo. Em uma semana... talvez... BEATRIX estaria concluída e ele poderia relaxar novamente, deixando que seus oficiais fizessem todo o serviço naquela cidade horrorosa. Como era de se esperar, os malditos Baltimore Orioles estavam nos playoffs, perto de encarar os Philadelphia Phillies, enquanto seus Bronx Bombers já se preparavam para os rumores típicos de fim de temporada. Qual era o problema dos novos donos do time? Como pessoas ricas podiam ser tão estúpidas?

Ele teria que manter sua rotina no metrô. Se a KGB o estivesse seguindo, seria improvável que registrassem o trem que ele pegava. Aquela era uma questão importante. Se fosse uma dupla, o segundo homem permaneceria na plataforma e, depois da partida do trem, anotaria o horário no relógio da estação, que era o único que importava, por ser o mesmo que servia de referência para as composições. A KGB era aplicada e profissional, porém seria tão boa assim? Tal nível de precisão tinha mais a ver com os alemães, mas, se os desgraçados conseguiam fazer os trens circularem dentro dos horários exatos, então a KGB também poderia registrar estes horários. E, afinal, havia sido justamente a precisão que lhe permitira contactar o Coelho.

Que droga de vida!, reclamou Foley. Mas ele tinha sido informado de tudo antes de aceitar o posto em Moscou. E as coisas eram emocionantes por lá, não eram? Claro, tão emocionantes quanto para Luís XVI enquanto era levado à guilhotina, pensou Ed. Um dia, faria uma palestra sobre o assunto na Fazenda. Esperava que as pessoas reconhecessem o esforço necessário para escrever um roteiro de apresentação da Operação BEATRIX. Talvez ficassem um pouco impressionadas.

Quarenta minutos depois, comprou seu exemplar do Izvestia e pegou a interminável escada rolante até a plataforma, como sempre reparando nos olhares atravessados dos russos, que admiravam um americano de verdade como se fosse um bicho no zoológico. Aquilo nunca aconteceria com um russo em Nova York, onde se viam todos os grupos étnicos, principalmente atrás do volante de um táxi amarelo.

 

 

A ROTINA MATINAL ESTAVA cada vez mais assimilada. A Srta. Margaret ocupava-se das crianças, enquanto Eddie Beaverton esperava na porta. As crianças recebiam os abraços e beijos de hábito, e os pais finalmente saíam para trabalhar. Se havia algo que Ryan odiava era aquela rotina. Caso tivesse conseguido convencer Cathy a comprar um apartamento em Londres, o dia de trabalho seria duas horas mais curto. Mas, não, Cathy queria verde por perto para as crianças brincarem. Assim, logo não veriam mais o sol antes de chegar ao trabalho e, em pouco tempo, nem depois disso.

Dez minutos mais tarde, estavam em uma cabine de primeira classe, seguindo na direção noroeste para Londres — Cathy lendo sua revista médica, e Jack, o Daily Telegraph. Havia um artigo sobre a Polônia, e Jack notou que o repórter parecia estranhamente bem informado. Os textos por lá tendiam a ser bem menos extensos que os do Washington Post e, pela primeira vez, ele se percebeu lamentando aquilo.

Ou o sujeito recebera informações muito quentes ou era extremamente competente na análise. O governo polonês enfrentava um dilema e estava sob pressão. Havia rumores de que o papa estaria demonstrando insatisfação quanto às condições sociais de seu país e de seu povo. E aquilo, ressaltou o repórter, podia causar muitos problemas.

É a mais pura verdade, pensou Jack. A má notícia era que passara a ser um assunto público. Quem teria vazado a informação? Ele conhecia o repórter pelo nome; era especialista em questões internacionais, principalmente europeias. Então, quem seria o informante? Alguém no Foreign Office? Eles, em geral, eram espertos, mas, como seus colegas americanos em Foggy Bottom, ocasionalmente falavam sem pensar. E lá aquilo podia acontecer durante uma cervejinha em um dos milhares de pubs aconchegantes, talvez num canto sossegado, com um funcionário do governo retribuindo um favor ou simplesmente querendo parecer esperto diante da imprensa.

Alguém seria punido? Era um assunto a conversar com Simon.

A não ser que Simon fosse a própria fonte. Afinal, era experiente e tinha a confiança do chefe. Talvez Basil até tivesse autorizado o vazamento. Ou talvez os dois conhecessem alguém no governo e o tivessem autorizado a tomar uma cerveja com um jornalista de Fleet Street. Ou talvez o repórter fosse perspicaz o bastante para somar dois e dois por conta própria. Nem todos os caras espertos trabalhavam na Century House. E, com certeza, nem todos os americanos astutos serviam em Langley. De modo geral, o talento ia para onde havia dinheiro, porque pessoas inteligentes queriam ter casas confortáveis e férias agradáveis, como todo mundo. Quem ia para o serviço público sabia que podia viver com conforto, mas não luxo. Os melhores, porém, também acreditavam que tinham uma missão a cumprir na vida e, por isso, muita gente boa vestia uniforme e carregava armas e distintivos. Em seu caso, Ryan fora bem-sucedido no mercado financeiro, mas percebera que aquilo não o satisfazia. No fim, nem toda pessoa talentosa só pensa em dinheiro. Alguns se viam em uma espécie de jornada.

É isso que está fazendo, Jack?, perguntou a si mesmo, quando o trem chegava a Victoria Station.

— Quais são as reflexões profundas desta manhã? — perguntou a esposa.

— Ahn?

— Conheço esse olhar, querido. Está pensando em algo importante.

— Cathy, você é cirurgiã de olhos ou psicóloga?

— Com você, psicóloga — respondeu ela, sorrindo. Jack levantou-se e abriu a porta da cabine.

— Certo, minha lady. Você tem globos oculares a corrigir, e eu, segredos a descobrir. — Ele gesticulou para que a mulher saísse do vagão. — O que andou lendo de novidade no Boletim Mensal das Glândulas e Orifícios no caminho?

— Você não seria capaz de entender.

— Provavelmente não — admitiu Jack, dirigindo-se ao ponto de táxi. Eles pegaram um azul em vez do tradicional preto.

— Hospital Hammersmith — disse Ryan ao motorista. — E depois para o número 100 da Westminster Road Bridge.

— É no MI6, senhor?

— Perdão? — respondeu Ryan, inocentemente.

— A Universal Export, senhor. Onde James Bond trabalhava.

O motorista deu uma risada e saiu com o carro. Ryan lembrou-se que a saída para a CIA, na George Washington Parkway, não era mais indicada como Administração Nacional de Estradas. Cathy achou a situação engraçada: não havia como esconder segredos dos motoristas de táxi de Londres. Ela desceu na passagem subterrânea do Hammersmith. O motorista fez o retorno e percorreu mais alguns quarteirões até a Century House. Ryan atravessou a porta, passou pelo sargento-major Canderton e subiu para o escritório.

Logo que entrou, jogou o Telegraph na mesa de Simon, tirando a capa de chuva em seguida.

— Eu já vi, Jack — disse Harding imediatamente.

— Quem abriu a boca?

— Não tenho certeza. Provavelmente alguém no Foreign Office. Foram informados do assunto. Ou talvez alguém no gabinete da primeira-ministra. Sir Basil não ficou muito satisfeito — assegurou Harding.

— Ninguém entrou em contato com o jornal?

— Não. Não sabíamos disso até a publicação nesta manhã.

— Achei que os jornais tivessem uma relação mais cordial com o governo por aqui.

— Normalmente têm, o que me leva a crer que foi o gabinete da primeira-ministra que vazou a informação.

O rosto de Harding demonstrava inocência, mas Jack percebeu que estava tentando decifrá-la. Sua esposa era muito melhor naquilo. Ele sentia que Harding não estava sendo totalmente sincero, mas não havia razão para reclamações, ou havia?

— Alguma novidade de Langley?

Harding fez que não com a cabeça.

— Nada muito interessante. Também nada sobre a Operação BEATRIX. Contou a sua esposa da viagem?

— Sim. E esqueci de contar a você que ela é muito boa em ler meus pensamentos.

— A maioria das esposas tem essa habilidade, Jack.

Harding deu uma bela risada depois do comentário.

 

 

ZAITZEV ESTAVA diante da mesma mesa e da mesma pilha de mensagens. Eram diferentes nos detalhes, mas sempre idênticas no geral: relatórios de oficiais de campo transmitindo dados sobre estrangeiros envolvendo todos os assuntos. Ele tinha centenas de nomes operacionais na memória e milhares de pormenores armazenados entre suas orelhas, incluindo os nomes verdadeiros de alguns agentes e os codinomes de muitos outros.

Como nos dias anteriores, ele organizou seu tempo, lendo as mensagens da manhã antes de enviá-las aos andares superiores. Confiava na memória, treinada para guardar e organizar todos os detalhes importantes. Naturalmente, parte das mensagens continha informações ocultas de diversas maneiras. Por exemplo, embora provavelmente houvesse um agente russo infiltrado na CIA, Zaitzev só conhecia seu codinome: TROMPETE. As informações transmitidas por ele eram protegidas por superencriptação em camadas, incluindo o uso do bloco único.

Como os dados seguiam para um coronel do sexto andar especializado em investigações sobre a CIA e que trabalhava com a Segunda Diretoria, deduzia-se que o TROMPETE fornecia à KGB algo que interessava à Segunda Diretoria. Aquilo significava que havia agentes russos operando para a CIA bem ali em Moscou, o que provocava calafrios em Zaitzev. Mas ele já falara com os americanos e os alertara sobre a segurança de suas comunicações; portanto, qualquer despacho que pudesse revelar sua situação seria enviado a um número bem limitado de pessoas. Além disso, sabia que o TROMPETE recebia dinheiro, significando que não devia ser um oficial muito experiente, pois então teria um salário alto o suficiente para não se vender. Um agente movido por razões ideológicas lhe provocaria preocupação, mas não havia qualquer um com aquele perfil nos Estados Unidos — do contrário, ficaria sabendo, não?

O oficial de comunicações disse a si mesmo que, em uma semana, talvez menos, estaria no Ocidente, em segurança. Torcia para que a esposa não ficasse furiosa quando soubesse dos planos, o que, na realidade, era a possibilidade mais provável. Não havia parentes próximos. A mãe morrera no ano anterior, deixando-a profundamente triste, e Irina não tinha irmãos ou irmãs para reconfortá-la. O trabalho na GUM tampouco a satisfazia, devido aos pequenos delitos que eram comuns por lá. E ele prometeria dar-lhe o piano que ela tanto desejava, mas que nem seu emprego na KGB podia comprar, dada a quantidade limitada disponível.

Ele continuou a ler a papelada, um pouco mais lentamente, porém sem exagerar. Havia poucos trabalhadores realmente aplicados, mesmo na KGB. O provérbio mais cínico da União Soviética era: "Desde que eles finjam nos pagar, nós fingimos trabalhar." E o princípio se aplicava àquele caso também. Se alguém produzisse mais do que o esperado, eles simplesmente aumentariam a carga de serviço no ano seguinte, sem qualquer melhoria das condições de trabalho. Por isso, poucos davam duro o bastante para serem reconhecidos como Heróis do Trabalho Socialista.

Pouco depois das onze horas, o coronel Rozhdestvenskiy apareceu na sala de comunicações. Zaitzev notou sua presença e fez um sinal.

— Pois não, camarada major? — disse o coronel.

— Camarada coronel — disse ele em voz baixa —, não tem havido comunicações recentemente sobre a 666. Há algo que eu deva saber?

A pergunta surpreendeu Rozhdestvenskiy.

— Por que faz essa pergunta?

— Camarada coronel — continuou Zaitzev, demonstrando humildade —, entendi que a operação era muito importante e que eu era o único oficial de comunicações autorizado a tratar dela. Será que agi de maneira imprópria em algum momento?

— Ah. — Rozhdestvenskiy ficou aliviado. — Não, camarada major, não temos queixas de sua atuação. Simplesmente a operação não exige mais comunicações desse tipo.

— Entendo. Obrigado, camarada coronel.

— Parece cansado, major Zaitzev. Há algum problema?

— Não, camarada. Acho que preciso de férias. Não consegui viajar no verão. Uma ou duas semanas de folga antes do inverno seriam uma maravilha.

— Muito bem. Se tiver dificuldades, me avise, que tentarei facilitar as coisas para você.

Zaitzev deu um sorriso agradecido.

— Muito obrigado, camarada coronel.

— Você faz um bom trabalho aqui embaixo, Zaitzev. E todos temos direito a um descanso, até o pessoal da Segurança do Estado.

— Obrigado novamente, camarada coronel. Eu sirvo à União Soviética.

Rozhdestvenskiy fez um gesto de concordância e saiu. Enquanto ele se afastava, Zaitzev respirou fundo e voltou à tarefa de memorizar despachos... mas não para a União Soviética. Então a 666 está sendo tratada através de mensageiros agora, pensou. Não haveria como obter mais informações a respeito, mas acabara de saber que ela permanecia em andamento, com alta prioridade. Eles iam mesmo concretizar aquilo. Zaitzev tentou prever se os americanos conseguiriam tirá-lo dali a tempo de impedir. A informação estava em seu poder, mas não a capacidade de tomar providências. Era como Cassandra, filha do rei Príamo de Troia: sabia o que ia acontecer e não podia convencer ninguém a fazer algo a respeito. Por alguma razão, Cassandra havia provocado a ira dos deuses e recebera a maldição como castigo. Mas o que ele fizera para merecer aquilo? Zaitzev viu-se subitamente irritado com a ineficiência da CIA. Não podia, contudo, simplesmente entrar num avião da Pan Am no aeroporto internacional Sheremetyevo, podia?


22

 


COMPRAS E ACERTOS

 

O SEGUNDO ENCONTRO cara a cara aconteceu mais uma vez na loja de departamentos GUM, onde uma certa Coelhinha procurava roupas de frio, que o pai queria comprar pessoalmente... aquilo surpreendera Irina Bogdanova, mas de maneira positiva. Mary Pat, a especialista absoluta em compras da família Foley, circulava, observando os vários itens em liquidação, surpresa por perceber que não havia só porcarias soviéticas. Algumas peças eram até interessantes... embora não o bastante para que quisesse comprá-las. Ela andou novamente pela seção de peles — que venderiam bem em Nova York, ainda que não fossem do mesmo nível dos produtos da Fendi.

Faltavam estilistas italianos na Rússia. No entanto, a qualidade das peles — ou seja, as peles dos animais propriamente ditas — não era má. Os soviéticos apenas não sabiam costurá-las do modo apropriado. Isso é muito ruim mesmo, pensou ela. O aspecto mais triste da União Soviética era como o governo daquele país sombrio conseguia impedir que seus cidadãos fossem bem-sucedidos. A originalidade, ali, era escassa. Os melhores itens para serem comprados eram obras de arte antigas, pré-revolucionárias, oferecidas em vendas repentinas visando levantar dinheiro para parentes ou alguma outra pessoa. Ela já havia comprado diversas peças, tentando não se sentir como uma ladra ao fazê-lo.

Para aplacar a consciência pesada, nunca pechinchava, preferindo pagar o preço pedido a tentar reduzi-lo em um percentual qualquer. Via aquilo como assalto a mão armada. E sua verdadeira missão em Moscou, na qual acreditava sinceramente, era ajudar aquelas pessoas, mesmo que elas dificilmente entendessem ou aprovassem seus atos. Ainda assim, a maioria dos moscovitas gostava de seu sorriso e gentileza. E com certeza também gostavam dos rublos certificados de faixa azul com que pagava as compras. Era um dinheiro que podiam usar para comprar artigos de luxo ou, quase tão bom quanto isso, trocar na proporção de três ou quatro por um.

Ela perambulou por meia hora até avistar seu alvo na seção de roupas infantis. Andou naquela direção, tomando o cuidado de pegar e avaliar alguns itens no caminho, antes de chegar por trás dele.

— Boa noite, Oleg Ivanovich — disse em voz baixa, segurando uma parca para meninas de três ou quatro anos.

— Mary, não é?

— Correto. Me diga uma coisa: você tem férias de que possa fazer uso?

— Sim. Para ser mais exato, duas semanas.

— E sua esposa gosta de música clássica, não é?

— Também é verdade.

— Há um maestro muito bom chamado Jozsef Rozsa. Ele vai se apresentar na principal sala de Budapeste domingo à noite. O melhor hotel para se hospedar é o Astoria. Fica perto da estação de trem e é popular entre os soviéticos. Diga a todos os seus amigos o que pretende fazer e se ofereça para trazer encomendas de Budapeste. Faça exatamente como um cidadão soviético normal. Nós cuidaremos do resto — assegurou ela.

— Nós três — lembrou Zaitzev. — Nós três conseguiremos sair?

— É claro, Oleg. Sua pequena zaichik verá muitas coisas maravilhosas nos Estados Unidos. E o inverno não é tão rigoroso quanto aqui — acrescentou Mary Pat.

— Nós, russos, gostamos do inverno — ressaltou Zaitzev, demonstrando certo orgulho.

— Nesse caso, pode morar numa região tão fria quanto Moscou. E, se quiser aproveitar um tempo mais quente em fevereiro, pode ir de carro ou avião à Flórida e relaxar numa praia ensolarada.

— Você é agente de viagens, Mary? — perguntou o Coelho.

— Para você, Oleg, é exatamente o que sou. Sente-se seguro em passar informações ao meu marido no metrô?

— Sim.

Pois não deveria, pensou Mary Pat.

— Qual é sua melhor gravata?

— Uma azul com listras vermelhas.

— Bem, use-a dois dias antes de pegar o trem para Budapeste. Esbarre nele e peça desculpas, para que fiquemos sabendo. Dois dias antes de deixar Moscou, use sua gravata azul listrada e esbarre nele no metrô — repetiu ela.

Naquele tipo de ação, era preciso ser cauteloso. As pessoas cometiam os erros mais tolos nas questões mais simples — mesmo, ou principalmente, quando suas vidas estavam em jogo. Por isso, ela tentava facilitar as coisas ao máximo. Só uma coisa a lembrar. Só uma coisa a fazer.

— Da, posso fazer isso tranquilamente.

Você é mesmo safado otimista, não é?

— Excelente. Por favor, seja muito cuidadoso, Oleg Ivanovich.

Tendo dito isso, ela se afastou. Cinco ou seis metros adiante, porém, parou e se virou. Havia uma câmera Minox em sua bolsa. Ela tirou cinco fotos e depois foi embora.

 

 

— NÃO VIU NADA DE INTERESSANTE para comprar? — perguntou o marido, no Mercedes 280 usado.

— Não, nada que valesse a pena. Talvez devêssemos ir a Helsinque comprar umas roupas de inverno — sugeriu ela. — Sabe, pegar o trem. Deve ser divertido. Eddie ia gostar.

O semblante do Station Chief refletiu preocupação. Deve ser melhor pegar o trem, pensou. Assim, não passaria a impressão de pressa ou coação. Leve muitas malas, metade vazia para trazer as quinquilharias compradas com seus rublos do Comecon. Com o detalhe de que você não voltará... e se Langley e Londres não fizerem nada errado, talvez consigamos mesmo dar um golpe de mestre...

— Para casa, querida? — perguntou Foley.

Não seria engraçado se a KGB não tivesse escuta alguma na casa e no carro, e eles estivessem fazendo toda aquela palhaçada de agente secreto à toa? Bem, pelo menos servia para praticar, não?

— Sim, já foi o bastante por hoje.

 

 

— MALDIÇÃO — EXCLAMOU BASIL CHARLESTON. Pegou o telefone e apertou três botões.

— Sim, sir? — disse Kingshot, ao entrar na sala.

— Veja isso. — C entregou-lhe o despacho.

— Merda — disse Kingshot.

Sir Basil conseguiu dar um sorriso. — São sempre as coisas mais óbvias e simples, não?

— Sim, senhor. Mesmo assim, faz a gente parecer um pouco idiota — reconheceu.

— Um incêndio doméstico. Funciona melhor do que o plano original.

— É algo que devemos lembrar. Quantos incêndios domésticos acontecem em Londres, Alan?

— Não tenho ideia, Sir Basil — admitiu o espião mais experiente do SIS. — Mas vou descobrir.

— Informe seu amigo Nolan também.

— Amanhã de manhã — assegurou Kingshot. — Pelo menos aumenta nossas chances. A CIA também está trabalhando nisso?

— Sim.

 

 

O FBI TAMBÉM. O DIRETOR Emil Jacobs já recebera muitos pedidos extravagantes dos amigos "do outro lado do rio", como a CIA às vezes era chamada na esfera oficial de Washington, mas aquilo era particularmente sinistro. Ele levantou o fone e acionou a linha direta com o DCI.

— Arthur, imagino que exista uma boa razão para isso — disse, sem rodeios.

— Não posso contar pelo telefone, mas há sim.

— Três caucasianos, um homem de trinta e poucos anos, uma mulher da mesma idade e uma menina de três ou quatro — repetiu Jacobs, lendo o bilhete entregue em mãos vindo de Langley. — Meus agentes vão pensar que o diretor ficou louco de vez. Talvez seja melhor pedir ajuda da polícia local...

— Mas...

— É, eu sei, a informação vazaria rápido demais. Tudo bem, posso mandar uma mensagem a todos os agentes em comando, pedindo que verifiquem seus relatórios matutinos, mas não será fácil impedir que algo desse tipo vaze.

— Sei disso, Emil. Estamos tentando obter ajuda dos britânicos também. Sei que não é algo que se possa simplesmente pedir e pronto. Tudo que posso dizer é que é muito importante, Emil.

— Tem alguma audiência prevista no Congresso?

— Comissão de Inteligência da Câmara, às dez. Discussão de orçamento — explicou Moore.

O Congresso sempre queria aquele tipo de informação, e Moore precisava defender sua agência dos parlamentares, que podiam cortar seus recursos a qualquer momento — só para poder reclamar, depois, das "falhas da inteligência", claro.

— Pode passar aqui no caminho? Preciso saber mais sobre essa história inacreditável — disse Jacobs.

— Por volta de oito e quarenta?

— Está bom para mim, Arthur.

— Então nos vemos amanhã.

O diretor Jacobs colocou o fone no lugar, tentando imaginar o que podia ser tão importante a ponto de requerer que o FBI bancasse o ladrão de túmulos.

 

 

No METRÔ, VOLTANDO para casa depois de comprar uma parca branca com flores vermelhas e verdes para sua pequena zaichik, Zaitzev revisou a estratégia. Quando contaria a Irina sobre as férias repentinas? Se decidisse fazer uma surpresa, haveria um problema: ela ficaria preocupada com o trabalho de contadora na GUM. Mas o escritório era gerido de modo tão frouxo que provavelmente não notariam a falta de um corpo. Por outro lado, se avisasse com antecedência, haveria outro problema: Irina tentaria organizar todos os detalhes, como qualquer esposa no mundo, já que, na cabeça dela, Zaitzev não era capaz de fazer tudo sozinho. Aquilo era até divertido, pensou Oleg Ivanovich, consideradas as circunstâncias.

Diante das opções, Zaitzev decidiu não contar nada à esposa antes, preferindo fazer uma surpresa, usando o tal maestro húngaro como desculpa. A surpresa de verdade só seria revelada em Budapeste. Pensou como ela reagiria à novidade. Talvez não muito bem, mas Irina era uma esposa russa, condicionada e educada para aceitar as ordens do marido — o que, para todos os homens russos, era como as coisas deviam ser.

Svetlana adorava andar de metrô. Oleg aprendera que aquela era uma característica das crianças. Para elas, tudo era uma aventura, na qual mergulhavam com seus olhos arregalados. Até algo tão comum quanto andar de metrô. Ela não caminhava nem corria: pulava como um filhote de cachorro. Ou melhor, como um coelhinho, pensou o pai, dando um sorriso. Será que sua pequena zaichik encontraria aventuras mais emocionantes no Ocidente? Provavelmente... se conseguirmos chegar lá vivos, lembrou-se Zaitzev. Havia perigo envolvido, mas seu medo não era por si mesmo, e sim pela filha. Era estranho. Ou não? Ele não sabia mais dizer. Sabia somente que tinha uma espécie de missão a cumprir, e aquilo era tudo que via pela frente. O resto se resumia a um conjunto de passos intermediários; e, no fim destes passos, havia uma luz clara e brilhante, que era tudo que conseguia enxergar. Era esquisito como a luz se tornara mais e mais brilhante, desde suas primeiras dúvidas relativas à operação 666 até o momento atual, passando a ocupar todo o seu campo de visão mental. A exemplo de uma mariposa, ele circundava a luz, cada vez mais perto, torcendo apenas para que não fosse uma chama que pudesse matá-lo.

— Aqui, papai! — disse Svetlana.

Ela percebeu a situação, agarrou sua mão e arrastou-o pela porta automática. Um minuto depois, pulou na escada rolante em movimento, animada com o novo "veículo".

Sua filha era como os adultos dos Estados Unidos — ou como os russos os imaginavam, sempre vendo as oportunidades, as possibilidades e a diversão, em vez de perigos e ameaças que os cuidadosos e sóbrios russos enxergavam em toda parte. Porém, se os americanos eram tão tolos, por que os russos estavam sempre tentando — e nunca conseguindo — alcançá-los? Os Estados Unidos estariam realmente certos em aspectos nos quais a União Soviética com frequência estava errada? Era uma questão mais profunda, sobre a qual praticamente não pensara. Tudo que sabia sobre aquele país vinha da propaganda a que assistia toda noite na TV ou lia no jornal oficial do Estado. Percebia que devia ser mentira, mas seu conhecimento era desequilibrado, já que não conhecia de fato informações verdadeiras. Portanto, sua viagem para o Ocidente era essencialmente uma viagem de fé. Se seu país estava tão errado, a outra superpotência só podia estar certa. Enquanto caminhava pela calçada, segurando a mão da filha, pensou que aquele era um salto grande, longo e perigoso. Devia ser mais temeroso.

No entanto, era tarde demais para ficar assustado, e voltar atrás seria tão prejudicial quanto seguir adiante. Antes de mais nada, a questão se reduzia a quem o destruiria, se não realizasse a missão — seu país ou ele mesmo. Por outro lado, perguntava-se se os Estados Unidos o recompensariam por tentar fazer o que considerava certo. Parecia que ele era Lenin e os outros heróis revolucionários: vira algo objetivamente errado e decidira tentar evitá-lo. Por quê? Porque precisava. Tinha que acreditar que os inimigos de seu país veriam o certo e o errado da mesma forma que ele. Fariam aquilo? Embora o presidente americano houvesse acusado seu país de ser o foco do mal no mundo, seu país dizia quase o mesmo dos Estados Unidos. Quem estava certo? Quem estava errado? Mas era seu país — e seu patrão — que conspirava para assassinar um homem inocente. Isso era tudo que conseguia ver no tocante ao certo e ao errado.

Ao virar à esquerda com Svetlana, para entrar no prédio, percebeu pela última vez que seu destino estava selado. Não podia mais mudá-lo; só lhe restava jogar os dados e esperar o resultado.

E onde sua filha cresceria? Aquilo também estava a cargo dos dados.

 

 

ACONTECEU PRIMEIRO EM YORK, maior cidade do norte da Inglaterra. Técnicos de segurança costumam dizer a quem quiser ouvir que a coisa menos importante em relação a incêndios é a causa, porque sempre começam pela mesma razão. Naquele caso, a razão era o que os bombeiros menos gostavam de descobrir. Depois de uma noite de diversão em seu pub favorito, o The Brown Lion, Owen Williams ainda conseguiu beber mais seis canecas de cerveja escura, o que se somou a um dia longo e cansativo no trabalho como carpinteiro. Estava sonolento quando chegou ao apartamento no terceiro andar, mas aquilo não o impediu de ligar a TV do quarto e acender o último cigarro do dia. Com a cabeça acomodada no travesseiro, deu algumas baforadas, antes de apagar por causa do álcool e do dia exaustivo. Naquele momento, a mão relaxou e o cigarro caiu na roupa de cama. Ficou queimando dez minutos, até que os lençóis brancos começaram a pegar fogo. Como Williams era solteiro — a mulher havia se divorciado dele um ano antes —, não havia ninguém para notar o odor funesto e pungente. Gradualmente, a fumaça subiu para o teto, enquanto o fogo na parte inferior consumia as roupas de cama e, depois, o colchão.

Mortes pelo fogo são raras, e este também não foi o caso de Owen Williams. Em vez disso, ele começou a inalar a fumaça. Frequentemente chamada pelos técnicos de "gás do fogo", a fumaça consiste basicamente de ar quente, monóxido de carbono e fuligem, ou material não-consumido do combustível. Destes, o monóxido de carbono costuma ser o componente mais letal, por se ligar aos glóbulos vermelhos do sangue. Essa ligação é mais forte do que a existente entre a hemoglobina e o oxigênio disponível que o sangue transporta às várias partes do corpo humano. O efeito genérico sobre a consciência é semelhante ao do álcool: euforia, como no estado de embriaguez, seguida por perda dos sentidos e, se o caso for grave, como aquele, morte por falta de oxigênio no cérebro. Assim, com o fogo cercando-o, Owen Williams não voltou a si, caindo mais e mais fundo no sono que o levaria, em paz, à eternidade, aos 32 anos.

Só três horas depois, um homem que morava no mesmo andar voltou do trabalho e sentiu um cheiro no corredor que ativou seu alarme interno. Bateu na porta e, sem obter resposta, correu para o seu apartamento e discou 999.

Havia um quartel dos bombeiros a apenas seis quarteirões. Os bombeiros enrolaram seus colchonetes, calçaram as botas, vestiram os uniformes, desceram pelo corrimão de metal até o nível dos equipamentos, apertaram o botão para abrir as portas automáticas e saíram em disparada pela rua a bordo de dois caminhões: um para lançar água, e outro com escada. Os motoristas conheciam as ruas como se fossem taxistas e chegaram ao prédio menos de dez minutos depois do alarme que os acordou. O primeiro caminhão parou, e dois homens arrastaram a mangueira até o hidrante da esquina, liberando a água numa demonstração de habilidade e prática. Os homens da escada, cuja missão prioritária era realizar buscas e salvamento, correram para dentro do prédio, só para descobrir que o zeloso cidadão que dera o alarme já tinha batido na porta de todos os apartamentos do terceiro andar e tirado todos os vizinhos. Ele indicou a porta correta ao bombeiro-chefe, que a derrubou com dois potentes golpes de machado. Uma densa nuvem de fumaça negra o recebeu — o cheiro que atravessou sua máscara revelou na hora que havia um colchão em chamas. Ele rezou para terem chegado a tempo, mas logo percebeu que não. Tudo, inclusive a escuridão da madrugada, jogava contra. O bombeiro correu para o quarto dos fundos, quebrou os vidros com o machado para permitir a saída da fumaça e depois se virou para ver o que já havia visto mais de trinta vezes em sua carreira: uma silhueta humana, quase oculta pela fumaça, imóvel.

Naquele momento, dois colegas estavam a seu lado. Eles arrastaram Owen Williams para o corredor.

— Que merda! — exclamou um dos bombeiros. O chefe dos paramédicos pôs uma máscara sobre o rosto pálido e apertou um botão para jogar oxigênio puro nos pulmões da vítima. Um segundo homem começou a bater em seu peito para reanimar o coração. Por trás deles, dois bombeiros levavam uma mangueira de duas polegadas e meia para dentro do apartamento e iniciavam o combate ao fogo.

No final das contas, a ação mostrou-se exemplar. O fogo foi debelado em menos de três minutos e, logo depois, a fumaça havia se dissipado, permitindo que os bombeiros tirassem suas máscaras de proteção. No corredor, porém, Owen Williams não dava sinal de vida. Como a regra era de que ninguém estava oficialmente morto até que um médico o dissesse, eles carregaram o corpo, como se fosse um grande e pesado saco de entulho, até a ambulância parada na rua. A equipe de paramédicos tinha seu próprio procedimento, seguido ao pé da letra: primeiro colocaram o corpo na maca, depois verificaram os olhos e as vias aéreas — que estavam desobstruídas — e finalmente usaram o ventilador para levar mais oxigênio ao paciente e o CPR para tentar uma reanimação cardiopulmonar. As queimaduras periféricas teriam que esperar.

Enquanto o motorista guiava pelas ruas escuras, em direção ao hospital Queen Victoria, a dois quilômetros dali, a prioridade era fazer o coração bater e os pulmões respirarem. Entretanto, quando chegaram ao hospital, os paramédicos já sabiam que seria um desperdício de seu valioso tempo. O setor de emergência estava pronto para recebê-los. O motorista parou a ambulância e deu ré para que as portas pudessem ser abertas e a maca, retirada. Um jovem médico observava tudo, mas ainda não tocava em nada.

— Inalação de fumaça — informou o paramédico enquanto entrava no hospital. — Intoxicação severa por monóxido de carbono.

As extensas, porém superficiais, queimaduras podiam esperar.

— Por quanto tempo? — perguntou o médico da emergência.

— Não sei. Ele não parece bem, doutor. Intoxicação por monóxido de carbono, olhos fixos e dilatados, unhas vermelhas, sem qualquer resposta à reanimação ou ao oxigênio — relatou o paramédico.

Todos os médicos fizeram o máximo. Não se podia simplesmente desistir da vida de um homem de pouco mais de trinta anos, mas uma hora depois Citava claro que Owen Williams não voltaria a abrir seus olhos azuis. Por ordem de um médico, os esforços para salvá-lo foram interrompidos, e a hora da morte, que seria registrada no atestado de óbito, definida. Os policiais, naturalmente, também estavam lá; ficaram conversando com os bombeiros até que a causa da morte fosse estabelecida. Foi feita uma análise química do sangue — uma amostra havia sido retirada imediatamente para verificação da presença de gases — e, depois de quinze minutos, o laboratório informou que o nível de monóxido de carbono era de 39 por cento, bem acima do nível letal. Ele estava morto antes mesmo de os bombeiros o tirarem da cama. Fim da história.

Os policiais assumiram o caso a partir daquele momento. Um homem morreu, e o fato tinha que ser informado às instâncias superiores da cadeia de comando.

A cadeia de comando acabava em Londres, no prédio de vidro e aço que se chamava New Scotland Yard, com o sinal giratório triangular que levava os turistas a acreditar que o nome da força policial era Scotland Yard, embora aquele fosse apenas o nome dado, anos antes, ao antigo prédio que a abrigava. Lá dentro, um recado preso à máquina de teletipo informava que o superintendente geral Nolan, da divisão especial, queria ser notificado de qualquer morte em incêndio ou acidente. O operador pegou o fone e ligou imediatamente.

O número era do oficial de plantão da divisão especial, que fez algumas perguntas e depois ligou para York, em busca de informações adicionais. Sua tarefa seguinte foi acordar o Pequenino Nolan pouco depois das quatro da manhã.

— Muito bem — disse o superintendente geral, depois de se aprumar. — Avise para que não façam nada com o corpo. Absolutamente nada. Certifique-se de que entendam isso: absolutamente nada.

— Compreendido, senhor — confirmou o sargento no escritório. — Vou transmitir a ordem.

Assim, a dez quilômetros dali, Patrick Nolan voltou a dormir — ou, pelo menos, tentou —, enquanto sua mente imaginava para que o SIS queria um corpo humano queimado.

Só podia ser algo bem interessante, mas também era repulsivo pensar naquilo.

Passaram-se vinte minutos até que conseguisse retornar ao sono.

 

 

O TRÁFEGO DE MENSAGENS foi intenso, no Atlântico e no Leste Europeu, durante toda a noite. As mensagens eram processadas pelos especialistas em comunicações das diversas embaixadas, todos funcionários explorados e mal pagos que, praticamente sozinhos, transmitiam as informações mais sigilosas; as pessoas que sabiam de tudo, mas não faziam nada com aquilo. Também eram eles que os inimigos mais se esforçavam para corromper e, por isso, eram submetidos a vigilância intensa, tanto no quartel-general quanto nas embaixadas. Mesmo assim, não havia uma preocupação particular em garantir seu bem-estar. E era por meio dessas pessoas desprezadas, porém essenciais, que os despachos chegavam às mesas apropriadas.

Um dos destinatários era Nigel Haydock, que recebeu a mais importante das mensagens daquela manhã. Só ele, naquele momento, conhecia o objetivo da Operação BEATRIX, no escritório onde supostamente atuava como adido comercial da embaixada de sua majestade britânica, na margem esquerda do Rio Moscou. Haydock costumava tomar café da manhã na embaixada, pois, com a esposa em gestação adiantada, achava incorreto que ela lhe preparasse a comida. Além disso, em sua opinião, ela vinha dormindo muito, talvez antevendo as noites sem sono depois que o diabinho chegasse. Então lá estava ele, na mesa, tomando um chá matutino e comendo um muffin amanteigado, quando recebeu o despacho de Londres.

— Caramba! — exclamou, parando em seguida para pensar.

A adaptação americana da Operação MINCEMEAT era brilhante. Cruel e sombria, porém brilhante. E parecia que Sir Basil a levaria em frente. Aquele trapaceiro. Era o tipo de coisa de que Bas gostava. Ele era adepto dos métodos antigos; gostava da sensação proporcionada por operações dissimuladas. A inteligência desmedida pode ser o caminho para sua queda, um dia, mas não há como não admirar a classe dele, pensou Haydock. Levar o Coelho até Budapeste e providenciar sua fuga de lá...

De manhã, Andy Hudson preferia tomar café com ovos, bacon, tomates fritos e torradas.

— Brilhante — disse em voz alta.

A audácia da operação atraía sua natureza aventureira. Precisariam tirar três pessoas — um homem adulto, uma mulher adulta e uma menina — clandestinamente da Hungria.

Não seria muito difícil, mas teria que checar as vias ilegais. Não podia comprometer aquela operação, principalmente se alimentasse esperança de receber uma promoção no futuro. O SIS era uma burocracia diferente dentro do governo, na medida em que, embora recompensasse o sucesso razoavelmente, não perdoava o fracasso. Não havia um sindicato para proteger as abelhas operárias do serviço de inteligência. Mas ele já sabia daquilo antes de entrar. E, pelo menos, eles não podiam tomar sua aposentadoria — quando tivesse o tempo de serviço para solicitá-la, lembrou-se. Por outro lado, se a operação não chegava a se equiparar a uma Copa dos Campeões, seria como marcar o gol da vitória para o Arsenal contra o Manchester United, e no estádio de Wembley.

A primeira tarefa do dia seria procurar seus contatos fora do país. Esses são seguros, pensou. Levara tempo considerável para estabelecer sua rede e já fizera verificações anteriormente. De qualquer maneira, verificaria todos novamente, começando naquele dia mesmo. Também procuraria seu contato na AVH... ou seria melhor não? O que conseguiria com aquilo? Talvez lhe permitisse descobrir se a polícia secreta húngara estava em estado de alerta ou atrás de algo. Mas, se aquilo fosse verdade, o Coelho nem sairia de Moscou. Suas informações tinham que ser altamente relevantes para justificarem uma operação de tamanha complexidade por parte da CIA, com ajuda do SIS, e a KGB era uma agência muito cuidadosa e conservadora para pôr em risco informações tão importantes. No negócio da espionagem, o outro lado nunca era previsível. Havia pessoas demais com ideias sutilmente diferentes para que todos pudessem seguir um roteiro predefinido. Portanto, se a AVH soubesse de algo, não seria muita coisa. A KGB não confiava em ninguém, exceto quando havia supervisão direta, de preferência sob a mira de armas. A única medida inteligente a tomar era conferir seus procedimentos de fuga e, mesmo assim, discretamente. De resto, tinha que esperar o tal de Ryan chegar de Londres, para acompanhar tudo como sua sombra... Ryan, da CIA, pensou. O mesmo que... não, era impossível. Só podia ser coincidência. Tinha que ser. O outro Ryan era um marujo — um marujo americano. É apenas uma grande coincidência, concluiu o chefe da base de Budapeste.

Desta vez, Ryan se lembrou de levar os croissants com o café no táxi de Victoria à Century House. Ao chegar, viu o paletó de Simon no cabideiro, mas o dono não estava lá. Provavelmente foi conversar com Sir Basil, pensou. Sentou-se e observou a pilha de mensagens recebidas à noite. Os croissants — havia exagerado e comprado três, com porções de manteiga e geleia de uva para acompanhar — estavam tão macios que podia vesti-los em vez de comê-los. O café também parecia meio estranho. Ele decidiu que escreveria à Starbucks sugerindo que abrissem algumas lojas em Londres. Os britânicos precisavam de café de boa qualidade para largar o maldito chá, e a nova empresa de Seattle podia ajudar, desde que conseguisse treinar funcionários locais para preparar a bebida da maneira correta. Jack levantou os olhos quando a porta se abriu.

— Bom dia, Jack.

— Oi, Simon. Como está Sir Basil?

— Sentindo-se muito esperto por causa da Operação BEATRIX. Pode-se dizer que ela está em andamento.

— Pode me inteirar do que está acontecendo?

Simon Harding pensou um pouco e deu uma explicação breve.

— Esses caras estão loucos? — indignou-se Ryan, ao fim do rápido relato.

— Sim, Jack, é bem criativo — disse Harding. — Mas não deve haver muitas dificuldades operacionais.

— A não ser que eu vomite — ressaltou Jack, de modo sombrio.

— Então é melhor levar um saquinho — sugeriu Harding. — Pegue um do avião.

— Muito engraçado, Simon. — Ryan pensou por um instante. — O que é isso, uma espécie de trote?

— Não, não fazemos esse tipo de coisa. A ideia veio de seu próprio pessoal, e o pedido de colaboração, do próprio juiz Moore.

— Maldição! — exclamou Jack. — E aí eles me jogam na merda, não é?

— Jack, o objetivo disso não é só tirar o Coelho de lá, mas levar Ivan a pensar que ele esteja morto com a mulher e a filha, e não que seja um desertor.

Na verdade, o que incomodava Ryan era a parte dos cadáveres. O que, no mundo, podia ser mais repugnante do que aquilo? E ele ainda não sabe do pior, pensou Harding, satisfeito por ter omitido outro pedaço da história.

 

 

ZAITZEV FOI AO DEPARTAMENTO administrativo, no segundo andar do Centro. Mostrou sua identificação à secretária e esperou alguns minutos antes de entrar na sala do supervisor.

— Sim? — perguntou o burocrata, sem lhe dar muita atenção.

— Quero tirar férias para levar minha esposa a Budapeste. Há um maestro por lá que ela gostaria de ver... e prefiro ir de trem em vez de avião.

— Quando?

— Nos próximos dias. Na verdade, assim que for possível.

— Entendido. — O escritório de viagens da KGB fazia muitas coisas, a maioria totalmente rotineira. O "agente de turismo" ainda não olhara para ele. — Preciso verificar se há lugar no trem.

— Quero viajar na classe internacional, em cabine com camas para três. Tenho uma filha, como pode ver.

— Pode ser complicado conseguir tudo isso — observou o burocrata.

— Camarada, se houver dificuldade, peço que entre em contato com o coronel Rozhdestvenskiy — disse ele, serenamente.

A menção daquele nome finalmente levou o funcionário a olhar para Zaitzev. Restava saber se ele faria ou não a ligação. O burocrata típico não fugia ao procedimento habitual só para se tornar conhecido de um oficial graduado e, como a maioria das pessoas no Centro, sentia um medo saudável dos homens que ocupavam o andar superior. Por um lado, ele poderia querer verificar se alguém estava usando o nome do coronel sem autorização. Por outro, chamar a atenção como um empregado insignificante e intrometido da administração não lhe traria qualquer benefício. Ele olhou para Zaitzev, tentando adivinhar se tinha ou não autorização para citar o nome de Rozhdestvenskiy.

— Verei o que posso fazer, camarada — prometeu.

— Quando posso ligar para saber?

— Hoje, mais tarde.

— Obrigado, camarada.

Zaitzev saiu e desceu o corredor para pegar o elevador. Aquela etapa estava vencida, graças a seu protetor do andar superior. Para sinalizar que tudo ia bem, levava a gravata azul listrada, dobrada, no bolso do paletó. De volta a sua mesa, retornou à tarefa de memorizar o conteúdo das mensagens de rotina. Refletiu que era uma pena não poder fazer registros dos livros de cifras de código único, mas aquilo não seria prático.

E gravá-los era impossível até para sua memória treinada.

 

 

"EM ANDAMENTO" ERAM AS ÚNICAS Palavras na mensagem de Langley, viu Foley. Portanto, haviam decidido seguir adiante. Boa notícia. O quartel-general estava animado com a Operação BEATRIX, provavelmente porque o Coelho havia alertado para falhas na segurança das comunicações, a única causa certa de pânico no sétimo andar. Mas seria verdade? Não. Mike Russell não acreditava na possibilidade e, como sempre ressaltava, se fosse verdade, alguns de seus agentes teriam sido eliminados, o que não havia acontecido... a menos que a KGB fosse engenhosa o bastante para levar os agentes para seu lado. Porém, se isso acontecesse, ele conseguiria perceber, não? Bem, provavelmente, pensou. E, afinal, não havia como todos os agentes serem duplos. Era impossível esconder certas coisas, a não ser que a KGB tivesse a operação mais inteligente da história da espionagem. Embora aquilo fosse teoricamente possível, era uma suposição absurda. E eles possivelmente o evitariam, porque teriam que permitir a transferência de algumas informações importantes — importantes demais para deixar que fossem vazadas voluntariamente...

Contudo, não podia ignorar a possibilidade por completo. Seguramente, a NSA devia estar tomando providências, naquele exato momento, para avaliar a KH-7 e outras máquinas de codificação. Mas Fort Meade tinha uma "equipe vermelha" cuja função era justamente tentar invadir seus próprios sistemas. E, embora os matemáticos russos fossem bem espertos, não eram seres de outro planeta... a menos que tivessem um agente infiltrado em Fort Meade, uma fonte constante de preocupação. Quanto a KGB pagaria por aquele tipo de informação? Milhões, talvez. Eles não tinham tanto dinheiro para pagar seu pessoal e, além de sovinas, eram notadamente desleais, tratando seus agentes como peças dispensáveis. Claro, haviam retirado Kim Philby, mantendo-o em segurança em Moscou. As agências de espionagem ocidentais sabiam onde ele morava e até tinham fotografado o traidor desgraçado. Sabiam até quanto bebia — muito, mesmo para os padrões russos. No entanto, quando os russos tinham um agente preso, tentavam negociar, arranjar uma troca? Não desde que a CIA acertara a entrega de Francis Gary Powers, o azarado piloto de U-2 que os russos derrubaram em 1961, trocado por Rudolf Abel. O problema é que Abel era um de seus próprios oficiais, um coronel reconhecido que operava em Nova York. Aquilo tinha que ser um desestímulo a qualquer americano com a ilusão de ficar rico à custa da Rússia. E traidores levavam uma vida dura no sistema prisional federal, o que era mais um fator inibidor bem convincente.

Mas os traidores, por mais desorientados que fossem, eram reais. Pelo menos, a era dos espiões ideológicos acabara. Estes haviam sido os mais produtivos e dedicados, na época em que as pessoas realmente achavam que o comunismo representava o caminho para a evolução humana. Agora, nem os russos acreditam mais no marxismo-leninismo, à exceção do moribundo Suslov e de seu sucessor, Alexandrov. Portanto, os agentes da KGB no Ocidente, em sua maioria, não passavam de malditos mercenários. Eram diferentes dos guerreiros da liberdade que Ed Foley comandava nas ruas de Moscou — uma ilusão que todos os oficiais da CIA alimentavam, inclusive sua esposa.

E quanto ao Coelho? Ele estava irritado com alguma coisa. Em suas palavras, um assassinato, um plano de morte. Algo deixara um homem honrado e decente indignado. Sim, o Coelho tinha razões dignas, logo, merecedoras da atenção e consideração da CIA.

Meu Deus, olha o tipo de ilusão que temos de sustentar para trabalhar neste ramo, pensou Foley. Era preciso ser psicólogo, mãe atenciosa, pai austero, amigo próximo e confessor para indivíduos idealistas, confusos, revoltados ou simplesmente gananciosos que haviam escolhido trair seu país. Alguns bebiam demais; outros eram tão raivosos que se punham em perigo ao correr riscos absurdos. Alguns eram apenas loucos, dementes, clinicamente perturbados. Alguns adquiriam desvios sexuais — ou já apareciam com eles e se tornavam cada vez piores. E Ed Foley tinha que ser o assistente social de todos, uma função estranha para alguém que se via como o guerreiro que lutava com o Grande Urso. Bem, uma coisa de cada vez, pensou. Ele escolhera, conscientemente, uma profissão com salário pouco mais que aceitável, praticamente sem reconhecimento ou recompensa pelos riscos — físicos e psicológicos — envolvidos. Servia a seu país de uma forma que nunca despertaria admiração dos milhões de cidadãos que ajudava a proteger. Desprezado pela imprensa — que ele também desprezava — e sem chance de se defender contando a verdade sobre o que fazia. Que inferno de vida!

No entanto, também havia razões para satisfação, como tirar o Coelho da União Soviética.

Se BEATRIX desse certo.

Foley concluiu que, naquele momento, mais uma vez compreendia a sensação de lançar uma bola num jogo da World Series.

 

 

ISTVAN KOVACS MORAVA a poucos quarteirões do palácio do Parlamento húngaro, um prédio ornamentado que lembrava o Palácio de Westminster. Morava no terceiro andar de um edifício da virada do século XX, com quatro banheiros no primeiro andar, num sombrio pátio interno. Hudson pegou o metrô para chegar ao palácio de governo e andou o resto do caminho, checando sempre se não estava sendo seguido. Havia ligado antes — notavelmente, as linhas da cidade eram seguras, sem controle, principalmente devido à ineficiência dos sistemas de telefonia locais.

Kovacs tinha uma aparência tão típica que mereceria uma foto nos folhetos de turismo, se estes existissem: l,73m, moreno, rosto redondo, olhos castanhos e cabelos pretos. No entanto, por causa da profissão, vestia-se melhor do que o cidadão comum. Kovacs era contrabandista. Sua atividade era quase considerada honrada, já que fazia negócios pela fronteira com um país supostamente marxista ao sul, a Iugoslávia. Um homem esperto podia comprar produtos ocidentais por lá e revendê-los na Hungria e no resto do Leste Europeu. O controle de fronteiras na Iugoslávia era frouxo, principalmente para quem, como Kovacs, mantinha acordos com os guardas.

— Oi, Istvan — disse Andy Hudson, sorrindo.

Por ser muito comum, "Istvan" correspondia a Steven, assim como "Kovacs" a Smith.

— Bom dia, Andy — respondeu Kovacs, cumprimentando-o.

Ele abriu uma garrafa de Tokajy, similar ao vinho do Porto do tipo Tawny, feito de uvas atacadas pelo fungo da podridão nobre, que atingia as plantações ocasionalmente. Hudson passara a apreciá-lo como uma variedade de xerez; de gosto diferente, mas efeito idêntico.

— Obrigado, Ivan. — Hudson tomou um gole. Era de boa qualidade, com seis cestas de uvas atacadas pela podridão nobre no rótulo, indicando que se tratava do melhor tipo. — Então, como vão os negócios?

— Excelentes. Nossos videocassetes são populares entre os iugoslavos, e as fitas que eles me vendem são populares em todos os lugares. Ah, deve ser bom ter um pênis como o desses atores! — disse, rindo.

— As mulheres são muito interessantes — observou Hudson, que já havia assistido a algumas fitas.

— Como uma kurva pode ser tão bonita?

— Os americanos podem até pagar mais às piranhas deles do que os europeus às suas, mas, Istvan, aquelas mulheres não têm coração.

Hudson nunca pagara por uma mulher na vida — não formalmente, pelo menos.

— Não é o coração delas que me interessa — disse Kovacs, dando outra risada.

Ele estava tomando Tokajy havia algum tempo, o que significava que não levaria nenhum carregamento naquela noite. Bem, ninguém trabalhava o tempo todo.

— Talvez eu tenha um serviço para você.

— O que quer que eu traga?

— Nada. Quero que retire — explicou Hudson.

— Isso é fácil. A határ rség só cria dificuldade na entrada, e mesmo assim não é nada demais.

Ele levantou o braço e esfregou os dedos polegar e indicador, no gesto universal que indicava o que os guardas de fronteira queriam: dinheiro ou alguma mercadoria negociável.

— Bem, esse pacote pode ser bem volumoso.

— De que tamanho? Quer tirar um tanque daqui? — O exército húngaro acabara de receber novos T-72 russos. A TV mostrou tudo, na tentativa de levantar o espírito de combate das tropas. Perda de tempo, pensou Hudson. — Isso é difícil, mas pode ser feito, pelo preço certo.

Os poloneses, porém, já haviam fornecido um daqueles ao SIS, um fato mantido em certo sigilo.

— Não, Istvan, um pouco menor do que isso. Do meu tamanho, mas quatro pacotes.

— Quatro pessoas? — perguntou Kovacs, recebendo um olhar vago como resposta. Ele havia entendido. — Ah, muito fácil. Baszd meg! — exclamou.

— Sabia que podia contar com você, Istvan — disse Hudson, sorrindo. —- Quanto custa?

— Para levar três pessoas à Iugoslávia... — Kovacs pensou por um momento. — Ah, cinco mil marcos alemães.

— Ez kurva draga! — objetou Hudson. Ou ao menos quis passar a impressão. Não era tanto dinheiro: cerca de mil libras esterlinas. — Tudo bem, seu ladrão! Vou pagar porque é meu amigo. Mas só desta vez. — Ele terminou a bebida. — Sabe, eu podia simplesmente mandar os pacotes de avião — sugeriu Hudson.

— O aeroporto é o único lugar em que a határ rség fica alerta — comentou Kovacs. — Os coitados estão sempre expostos, com os oficiais graduados de olho. Não há oportunidade para... negociações.

— Suponho que esteja certo — aceitou Hudson. — Muito bem. Eu ligo para mantê-lo atualizado sobre o cronograma.

— Tudo bem. Sabe onde me encontrar.

Hudson se levantou.

— Obrigado pela bebida, amigo.

— Ela lubrifica os negócios — disse Kovacs, abrindo a porta para o visitante. Cinco mil marcos da Alemanha Ocidental cobririam vários compromissos e comprariam muitos produtos para revender em Budapeste com um lucro vantajoso.


23

 


TODOS A BORDO

 

ZAITZEV LIGOU PARA o escritório de viagens às 15h30. Torceu para que aquilo não revelasse uma ansiedade exagerada, mas concluiu que todos tinham muito interesse pelas férias.

— Camarada major, você está no trem de depois de amanhã. Sai da estação Kiev, às treze horas, e chega a Budapeste no dia seguinte, pontualmente às quatorze. Você e sua família estão no vagão 906, cabines A e B. Também têm reservas no hotel Astoria, em Budapeste, quarto 307, por onze dias. O hotel fica em frente à Casa de Cultura e Amizade Soviética, que obviamente é uma operação da KGB com um escritório de contato, para o caso de precisar de assistência.

— Excelente. Muito obrigado por sua ajuda. — Zaitzev pensou um pouco. — Quer que eu lhe traga alguma coisa de Budapeste?

— Bem, obrigado por se oferecer, camarada. — Sua voz se animou. — Sim, quem sabe algumas meias-calças para minha esposa? — disse o funcionário, em tom furtivo.

— De que tamanho?

— Minha esposa é uma autêntica russa — respondeu, sugerindo que não era anoréxica.

— Perfeito. Vou encontrar algo para ela com a ajuda da minha mulher.

— Excelente. Faça uma ótima viagem.

— Assim espero — disse Zaitzev.

Com tudo acertado, Oleg Ivanovich procurou o supervisor do turno para avisá-lo de seus planos para as duas semanas seguintes.

— Não há um projeto lá em cima do qual só você tem autorização para tratar? — perguntou o tenente-coronel.

— Sim, mas perguntei ao coronel Rozhdestvenskiy, e ele disse que não precisava me preocupar com isso. Se quiser, pode contactá-lo para confirmar, camarada — disse Zaitzev.

Foi exatamente o que o supervisor fez, na presença de Zaitzev. A breve ligação terminou com um "obrigado, camarada". Depois, ele olhou para o subordinado.

— Muito bem, Oleg Ivanovich, está dispensado de suas funções a partir desta noite. Já que vai para Budapeste, será que...

— Claro, Andrei Vasiliyevich. Pode me pagar quando eu voltar.

Andrei era um chefe correto, que nunca gritava e sempre tentava atender aos pedidos dos subordinados. Era uma pena que trabalhasse para uma agência que matava pessoas inocentes.

Faltava apenas limpar sua mesa, o que seria uma tarefa simples. Os regulamentos da KGB determinavam que toda mesa fosse organizada da mesma forma, para que os funcionários pudessem trocar de lugar sem confusão. E a mesa de Zaitzev seguia exatamente as especificações. Com os lápis apontados e arrumados, todas as mensagens até aquele momento encaminhadas e os livros nos devidos lugares, ele esvaziou a lixeira e foi ao banheiro masculino. Lá, escolheu uma cabine e trocou a gravata marrom pela listrada. Verificou a hora. Estava ligeiramente adiantado. Por isso, demorou-se um pouco mais na saída, fumando dois cigarros em vez de um, admirando o céu claro daquela tarde e parando no caminho para comprar um jornal. Também comprou, por dois rublos e quarenta centavos, seis maços de Krasnopresnensky, o mesmo cigarro premium que Leonid Brejnev fumava. Um produto de boa qualidade para fumar no trem. Além disso, podia gastar todos os seus rublos, já que não teriam valor no lugar para onde estava indo. Continuou andando até a estação do metrô, e conferiu o horário mais uma vez. O trem, obviamente, chegou na hora exata.

 

 

FOLEY ESTAVA no mesmo lugar de sempre, fazendo a mesma coisa exatamente da mesma maneira. Seus pensamentos ficaram agitados quando o trem chegou à estação. Sentiu a vibração causada pelos passageiros embarcando e ouviu os resmungos das pessoas causados pelos esbarrões. Ajeitou-se para virar a página, e o trem finalmente seguiu viagem. Os motorneiros — ou maquinistas ou como quer que se chamassem — sempre exageravam um pouco na aceleração. Momentos depois, alguém se pôs a seu lado. Ele não pôde ver, mas sentiu a presença. Dois minutos depois, o trem desacelerou ao se aproximar de outra estação. A composição parou, e alguém esbarrou nele. Foley virou-se parcialmente para ver quem era.

— Me desculpe, camarada — disse o Coelho. Usava uma gravata azul com listras vermelhas.

— Tudo bem — respondeu Foley, com o coração dando saltos dentro do peito.

Certo, em dois dias, na estação Kiev. O trem para Budapeste. O Coelho se afastou um ou dois passos, e estava acabado. A mensagem foi transmitida. Foguetes espaciais acionados. Foley dobrou o jornal e dirigiu-se para a porta. Depois da caminhada habitual até o apartamento, encontrou Mary Pat preparando o jantar.

— Gostou da minha gravata? Não disse nada hoje de manhã.

Os olhos de Mary Pat brilharam. Depois de amanhã, percebeu. Era preciso transmitir a informação, mas aquilo não passava de um procedimento básico. Torcia para que Langley estivesse pronta. BEATRIX avançava um pouco rápido demais, mas para que enrolar?

— O que temos para jantar?

— Queria preparar um bife, mas parece que vai ter que se conformar com galinha frita hoje.

— Tudo bem, querida.

— Bife depois de amanhã, o que acha? — perguntou ela.

— Para mim, está ótimo. Querida, cadê o Eddie?

— Assistindo aos Transformers, claro.

Ela apontou para a sala de estar.

— Esse é o meu filho — disse Ed, sorrindo. — Ele sabe o que é importante. Foley

beijou a esposa carinhosamente.

— Agora não, tigrão — disse Mary Pat. Contudo, uma operação bem-sucedida merecia uma comemoração particular. Não que aquela já tivesse acabado, mas certamente estava bem encaminhada. E era a primeira do casal em Moscou. — Pegou as fotos? — Ele as tirou do bolso do paletó. Sua qualidade não permitiria que saíssem na capa de uma revista, mas mostravam o Coelho e sua garotinha nitidamente. Ainda não conheciam a aparência da Sra. Coelho, mas teriam que se virar com aquilo. Mandariam as fotos para Nigel e Penny. Um deles cobriria a estação de trem para assegurar que o Coelho e sua família partissem como previsto.

— Ed, o chuveiro está com problema — disse Mary Pat. — A duchinha não está funcionando direito.

— Vou ver se Nigel tem ferramentas para me emprestar.

Foley atravessou o corredor e, em alguns minutos, voltou com Nigel, carregando uma caixa de ferramentas.

— Oi, Mary — disse Nigel, acenando, a caminho do banheiro.

Lá, ele mexeu muito na caixa de ferramentas e depois ligou a água, tornando inútil qualquer possível escuta da KGB.

— Então, Ed, o que houve?

Ed entregou-lhe as fotos.

— O Coelho e sua coelhinha. Ainda não temos nada da Sra. Coelho. Eles vão pegar o trem de uma da tarde para Budapeste, depois de amanhã.

— Estação Kiev — completou Haydock, fazendo um gesto positivo. — E você quer que eu tire uma foto da Sra. Coelho.

— Correto.

— Tudo bem, posso cuidar disso.

As coisas estavam começando a se mover. Como adido comercial, podia inventar uma história qualquer para acobertar aquilo, pensou Haydock. Chamaria um repórter bem comportado para acompanhá-lo e fazer parecer um assunto jornalístico — talvez algo sobre turismo. Paul Matthews, do Times de Londres, seria perfeito. Uma jogada fácil.

Convenceria Matthews a levar um fotógrafo e conseguiria imagens profissionais de toda a família Coelho para Londres e Langley usarem. E Ivan não suspeitaria de nada. Por mais relevantes que fossem as informações do Coelho, ele em si não passava de um codificador, um entre milhares de funcionários da KGB que não eram importantes o bastante para serem monitorados. Na manhã seguinte, Haydock ligaria para a rede ferroviária soviética e diria que o órgão correspondente britânico — também mantido pelo Estado — estava interessado em saber como os russos operavam seu transporte ferroviário... sim, aquilo funcionaria. Não havia nada de que os soviéticos gostassem mais do que outros países querendo aprender com seu glorioso sistema. Fazia bem ao ego. Nigel esticou o braço para fechar a torneira.

— Pronto. Acho que está consertado, Edward.

— Obrigado, cara. Algum lugar bom para comprar ferramentas em Moscou?

— Não sei, Ed. Tenho estas desde rapaz. Eram do meu pai.

Foley lembrou do que acontecera ao pai de Nigel. Ele, sem dúvida, queria que BEATRIX desse certo. Queria aproveitar qualquer oportunidade para enfiar algo bem grande no rabo do Urso.

— Como está Penny?

— O bebê ainda não desceu, então deve faltar no mínimo uma semana, provavelmente mais. Na verdade, está previsto para daqui a três semanas, mas...

— Os médicos nunca acertam isso, amigo. Nunca — disse Foley. — Meu conselho é: fique por perto. Quando pretendem voltar para a Inglaterra?

— Se o médico da embaixada estiver certo, em dez dias. Além do mais, o voo só leva duas horas.

— Seu médico é um otimista, cara. Essas coisas nunca acontecem de acordo com o planejado. Suponho que não queiram que o pequeno inglês nasça em Moscou, não é?

— Não, Edward, não queremos.

— Mantenha Penny longe de estrepolias — sugeriu Foley, piscando.

— Claro, vou cuidar disso, Ed.

O humor americano podia ser bem grosseiro.

Isso pode ser interessante, pensou Foley, enquanto levava o amigo à porta. Sempre acreditara que as crianças britânicas nasciam com cinco anos e iam direto para o internato. Elas seriam criadas da mesma forma que as americanas? Precisava conferir aquilo.

 

 

O CORPO DE OWEN WlLLlANS não foi reclamado. Aparentemente, ele não tinha parentes próximos, e a mulher não queria saber dele, especialmente morto. Depois de receber um telex de Patrick Nolan, superintendente geral da Polícia Metropolitana de Londres, a polícia local transferiu o corpo para uma caixa de alumínio, colocada em viatura que seguiu para a capital. Mas nunca chegou lá. A van parou num local predeterminado, e a caixa foi colocada em outro veículo, não-identificado, que então completou o trajeto até Londres. O corpo acabou levado a uma casa mortuária no distrito de Swiss Cottage, no norte da cidade.

O estado do corpo não era bom e, como ainda não fora examinado por um agente funerário, não recebera qualquer tratamento. O lado que não havia sido queimado tinha um tom azulado de palidez post mortem. Assim que o coração para, o sangue é empurrado pela gravidade às regiões inferiores do corpo — naquela situação, as costas —, onde, devido à falta de oxigênio, tende a tingir o corpo caucasiano de um azul lívido, deixando a parte superior na cor do marfim. O agente funerário era um civil que eventualmente prestava serviços especializados ao SIS. Ao lado de um patologista forense, ele examinou o corpo, em busca de qualquer coisa incomum. A pior parte era o cheiro de carne humana tostada, mas seus rostos estavam cobertos com máscaras cirúrgicas para atenuar o odor.

— Tatuagem na parte inferior do antebraço, queimada, mas não totalmente — relatou o agente.

— Entendido. — O patologista acendeu um maçarico a propano e apontou para o braço, queimando toda evidência de tatuagem. — Mais alguma coisa, William? — perguntou, minutos depois.

— Nada que eu consiga ver. A parte superior está bem queimada. Praticamente não há vestígios de cabelos. Uma orelha quase caiu. Creio que estava morto antes mesmo de ser queimado.

O cheiro de cabelo queimado era particularmente incômodo.

— Acho que sim — concordou o patologista. — Os gases do sangue espalharam o monóxido de carbono de forma letal. Duvido que esse pobre homem tenha sentido dor.

— Em seguida, ele queimou as impressões digitais, demorando-se para cauterizar as duas mãos, de forma que não parecesse uma mutilação deliberada do corpo. — Pronto. Se houver um meio de identificar esse corpo, não sei qual é.

— Agora congelamos? — perguntou o agente.

— Não, não acho que seja uma boa ideia. Se o resfriarmos a, digamos, dois ou três graus Celsius, não haverá qualquer decomposição perceptível.

— Então usaremos gelo seco.

— Isso. A caixa de metal é bem isolada e se fecha hermeticamente. O gelo seco não derrete, passa direto do estado sólido para o gasoso. Agora precisamos vesti-lo.

O médico levara as roupas íntimas. Nenhuma peça era originalmente britânica, e todas haviam sido quase totalmente destruídas pelo fogo. Era um trabalho desagradável, mas ao qual patologistas e agentes funerários tinham se acostumado logo no início das carreiras; apenas um modo diferente de pensar para um tipo diferente de atividade. Aquilo, porém, era sinistro demais, até para os dois. Naquela noite, ambos tomariam um drinque antes de dormir. Quando acabaram o serviço, a caixa de alumínio foi recolocada na van e levada à Century House. Uma nota na mesa de Sir Basil o informava de que o Coelho A estava pronto para seu último voo.

 

 

MAIS TARDE, NA MESMA NOITE, a quase cinco mil quilômetros, em Boston, Massachusetts, houve uma explosão de gás no segundo andar de uma estrutura usada como moradia, de frente para o porto. Três pessoas estavam no local. Os dois adultos, que não eram casados, estavam bêbados, e a filha de quatro anos da mulher — sem qualquer relação com o homem — já tinha ido para a cama. O fogo se espalhou rápido. Rápido demais para permitir que os dois adultos resistissem à intoxicação e reagissem. As três mortes não demoraram a acontecer, todas por inalação de fumaça, e não por queimaduras. O corpo de bombeiros de Boston chegou em dez minutos. Os homens responsáveis por busca e resgate lutaram contra as chamas com a ajuda apenas de dois jatos d'água. Encontraram os corpos e os arrastaram para fora, mas sabiam que, mais uma vez, haviam demorado demais. O capitão da companhia soube quase que imediatamente a causa da tragédia. Houve um vazamento de gás na cozinha, no antigo fogão que o senhorio não quisera substituir, e três pessoas acabaram morrendo por causa da avareza dele. (Claro que ele receberia o pagamento do seguro com satisfação, destacando como lamentava o incidente trágico.) Não era o primeiro caso do tipo, e não seria o último. O capitão e seus homens teriam pesadelos envolvendo os três corpos, especialmente o da menina, mas aquilo fazia parte do trabalho.

A história ocorrera cedo o bastante para aparecer no jornal das onze, seguindo a regra de que "se há sangue, rende matéria". O agente especial encarregado da divisão de campo do FBI em Boston estava assistindo, à espera das notícias dos playoffs do beisebol — uma recepção oficial na noite anterior o impedira de acompanhar a transmissão ao vivo na NBC. Ele viu a matéria e imediatamente se lembrou do telex disparatado que recebera mais Cedo. Disse alguns palavrões e pegou o telefone.

— FBI — respondeu o jovem agente responsável pelos telefonemas.

— Ligue para o Johnny agora — ordenou o agente especial. — Uma família morreu queimada em um incêndio na Hester Street. Ele sabe o que fazer. Diga para me ligar em casa, se for necessário.

— Positivo, senhor.

Tudo resolvido. Exceto para o agente encarregado adjunto John Tyler, que naquele momento lia um livro na cama. Nativo da Carolina do Sul, preferia o futebol universitário ao beisebol profissional. Foi resmungando até o banheiro e depois pegou a arma e as chaves para sair. Ele também tinha visto a mensagem de Washington e imaginou que tipo de droga Emil Jacobs estaria tomando. Mas não era sua função questionar as ordens.

 

 

NÃO MUITO DEPOIS, mas cinco horas à frente no fuso horário, Jack Ryan pulou da cama, pegou o jornal e ligou a TV. A CNN também estava noticiando o incêndio em Boston — tinha sido uma noite pouco movimentada nos Estados Unidos. Ele rezou silenciosamente pelas vítimas e começou a se preocupar com as tubulações de gás de seu próprio fogão. Sua casa, porém, era muito mais nova que o depósito de madeira com que se pareciam todas as casas na zona sul de Boston. Quando elas pegavam fogo, queimavam para valer. E rápido. Evidentemente, rápido demais para as pessoas saírem.

Lembrou-se de seu pai, sempre contando como respeitava os bombeiros, pessoas que entravam em prédios em chamas, em vez de fugir deles. A pior parte do trabalho devia ser encontrar corpos sem vida lá dentro. Ryan sacudiu a cabeça, abriu o jornal e pegou a xícara de café, enquanto sua esposa médica acompanhava o fim da matéria e mergulhava em seus próprios pensamentos. Ela se lembrou de ter tratado de vítimas de queimaduras no terceiro ano da faculdade e dos gritos medonhos sempre que precisava retirar tecido queimado das feridas — e não havia nada que pudesse fazer a respeito. Mas aquelas pessoas em Boston estavam mortas e ponto final. Ela não gostava, mas já testemunhara muitas mortes. Afinal, algumas vezes o bandido ganhava, e era assim que as coisas funcionavam. A conclusão não era agradável para uma mãe, principalmente porque a menina de Boston tinha a idade de Sally e perdera uma vida inteira. Ela suspirou. Ao menos, realizaria uma cirurgia naquela manhã, algo que faria diferença para a saúde de alguém.

 

 

SlR BASIL CHARLESTON vivia numa casa luxuosa em um elegante distrito de Londres chamado Belgravia, ao sul da Knightsbridge. Viúvo, com filhos que tinham se mudado muito tempo antes, acostumara-se a viver sozinho, embora uma equipe de segurança estivesse sempre presente. Também contava com uma empregada que ia arrumar a casa três vezes por semana, mas não tinha cozinheira, preferindo sair para jantar ou preparar pequenas refeições por conta própria. Ele tinha, obviamente, os equipamentos típicos de um chefe da espionagem: três tipos de telefone seguro, uma máquina de telex e um aparelho de fax protegidos. Não havia uma secretária particular, mas, quando as coisas ficavam agitadas e ele não estava no escritório, um serviço de entrega o deixava atualizado com o material impresso que circulava na Century House. Na realidade, como devia presumir que a "oposição" mantinha sua residência sob vigilância, considerava mais inteligente não sair de casa em tempos de crise, para projetar uma imagem de tranquilidade. Não importava: estava ligado ao SIS por um cordão umbilical eletrônico.

Foi exatamente assim naquela manhã. Alguém na Century House decidira informá-lo de que o SIS havia arranjado um corpo de homem adulto para usar na Operação BEATRIX: o tipo perfeito de informação para se receber no café da manhã.

Basil assumiu uma expressão de desgosto. Eles, no entanto, precisavam de três corpos, incluindo um de menina, assunto que definitivamente não caía bem com o chá matutino e o mingau de aveia. Mas era difícil não se deixar empolgar com aquela operação. Se o Coelho estivesse dizendo a verdade — nem sempre era o caso —, ele teria todo tipo de informação proveitosa em sua cabeça. As mais importantes, sem dúvida, seriam as identidades de possíveis agentes infiltrados no governo de Sua Majestade. Na realidade, aquela era uma responsabilidade do Security Service, o serviço de segurança — equivocadamente chamado de MI5 —, porém as duas agências cooperavam muito, mais do que a CIA e o FBI nos Estados Unidos. Ao menos na opinião de Charleston.

Sir Basil e sua equipe suspeitavam há tempos de vazamento no alto escalão do Foreign Office, mas nunca conseguiram chegar perto dele ou dela. Se conseguissem tirar o Coelho — nunca estava feito até estar feito —, aquela seria uma das perguntas que seu pessoal faria, no local seguro perto de Taunton, nas montanhas da região de Somerset.

 

 

— NÃO VAI TRABALHAR hoje? — perguntou Irina ao marido. Àquela hora, ele já devia ter saído, com certeza.

— Não. E tenho uma surpresa para você — revelou Oleg.

— O que é?

— Vamos viajar para Budapeste amanhã.

A notícia a fez se virar de imediato.

— O quê?

— Decidi tirar minhas férias e fiquei sabendo que há um novo maestro em Budapeste, Jozsef Rozsa. Como sei que gosta de música clássica, resolvi ir com você e nossa zaichik até lá, querida.

— Ah — foi tudo que conseguiu dizer inicialmente. — Mas... e meu emprego na GUM?

— Não tem como dar um jeito?

— É, acho que sim — disse Irina. — Mas por que Budapeste?

— Bem, por causa da música, e também podemos comprar algumas coisas por lá. Tenho uma lista de encomendas do pessoal do Centro.

— Ah, claro... podemos comprar coisas lindas para Svetlana — pensou, em voz alta.

Como funcionária da GUM, sabia o que se vendia na Hungria, produtos que nunca poderia comprar em Moscou, mesmo nas lojas "fechadas". — Afinal, quem é esse tal de Rozsa?

— É um jovem maestro húngaro que está em temporada europeia. Tem uma reputação excelente, querida. O programa inclui Brahms e Bach, se não me engano, e uma das orquestras estatais húngaras... e podemos fazer muitas compras.

Oleg acreditava que nenhuma mulher no mundo seria contrária a uma oportunidade como aquela. Esperou pacientemente pela objeção seguinte.

— Não tenho nada adequado para vestir.

— Minha querida, é por isso que vamos a Budapeste. Você pode comprar tudo de que precisa lá.

— Bem...

— E lembre-se de arrumar tudo em uma única mala. Vamos levar malas vazias para trazer todas as coisas que compraremos para nós e para nossos amigos.

— Mas...

— Irina, pense em Budapeste como uma grande loja de departamentos. Videocassetes húngaros, jeans ocidentais e meias-calças, perfumes de verdade. Você vai ser invejada na GUM — prometeu ele.

— Bem...

— Sabia que ia concordar. Meu amor, estamos saindo de férias! — disse, empregando um pouco de força masculina na voz.

— Se está dizendo — respondeu ela, com um sorriso sugerindo certa avareza. — Vou ligar mais tarde para o escritório, avisando. Acho que não sentirão tanto a minha falta.

— As únicas pessoas de quem se sente falta em Moscou são os membros do Politburo, e mesmo assim só pelo dia e meio necessário para substituí-los — disse Zaitzev.

Estava tudo acertado. Eles pegariam o trem para a Hungria. Irina começou a pensar no que levaria. Oleg deixou a tarefa a cargo da esposa. Em uma semana, no máximo dez dias, vamos ter roupas muito melhores, disse o oficial de comunicações da KGB a si mesmo. E talvez em um ou dois meses fossem visitar a tal Disney, na província americana da Flórida...

Ele ficou imaginando se a CIA tinha consciência do grau de confiança que estava colocando nela. Rezou — um hábito incomum em um oficial da KGB — para que se saíssem tão bem quanto esperava.

 

 

— BOM DIA, JACK.

— Oi, Simon. Quais as novidades no mundo?

Jack pôs o café na mesa antes de tirar o paletó.

— Suslov morreu na noite passada — informou Harding. — Sairá nos jornais deles hoje à tarde.

— Que pena. Quer dizer que outro morcego encontrou o caminho de volta para o inferno? — Pelo menos morreu com a visão em ordem, graças a Bernie Katz e ao pessoal do Johns Hopkins, pensou Ryan. — Complicações do diabetes?

Harding confirmou.

— Além de estar velho, creio. Nossas fontes dizem que foi ataque cardíaco. É incrível que o desgraçado realmente tivesse um coração. O substituto será Mikhail Yevgeniyevich Alexandrov.

— Ele também não é uma pessoa muito tranquila. Quando vai ser o enterro de Suslov?

— Ele é membro graduado do Politburo. Acredito que haverá um funeral oficial completo, desfile com banda e tudo mais. Depois, a cremação e uma vaga na muralha do Kremlin.

— Sempre quis saber o que um comunista de verdade pensa quando sente que vai morrer. Acha que eles consideram que tudo pode ter sido um grande erro?

— Não faço ideia. Mas Suslov evidentemente acreditava mesmo naquilo. Então, provavelmente pensou em todo o bem que fizera na vida, conduzindo a humanidade ao "futuro radiante" de que eles adoram falar.

Ninguém é tão idiota, pensou em responder Ryan, mas Simon estava provavelmente certo. Nada permanecia por mais tempo na cabeça de uma pessoa do que ideias ruins, e Mike Vermelho certamente mantivera suas ideias ruins perto de qualquer coração que eventualmente tivesse ao morrer. O destino ideal de um comunista depois da morte, porém, correspondia ao pior possível para Ryan. E se o comunista estivesse errado, seria literalmente um inferno. Que azar, Misha, espero que tenha levado protetor solar com você.

— Certo, o que temos para hoje?

— A primeira-ministra quer saber se isso terá algum efeito na política do Politburo.

— Diga-lhe que não, não terá. Em termos políticos, Alexandrov pode ser considerado irmão gêmeo de Suslov. Ele pensa que Marx é Deus, e Lenin, seu profeta, e que Stalin estava quase sempre certo, tendo sido apenas um pouco nekulturniy em excesso na aplicação de suas teorias políticas. O restante do Politburo não acredita mais nessas coisas, mas finge que sim. Apresente Alexandrov como o novo maestro da orquestra sinfônica ideológica. Eles não gostam tanto da música hoje em dia, porém continuam dançando ao ritmo dela, porque é a única dança que conhecem. Não creio que ele possa influenciar as decisões políticas. Nem minimamente. Ouvirão quando ele quiser falar, mas entrará tudo por um ouvido e sairá pelo outro; eles apenas fingem respeitá-lo.

— É um pouco mais complicado que isso, mas você captou os aspectos fundamentais — concordou Harding. — O problema é que preciso produzir dez páginas, com espaço duplo, dizendo isso.

— É, e em burocratês.

Ryan nunca dominara aquela linguagem, uma das razões que faziam o almirante Greer gostar tanto dele.

— Temos nossos procedimentos, Jack, e tanto a primeira-ministra como todos os primeiros-ministros gostam de receber o material em uma língua que sejam capazes de entender.

— Aposto que a dama de ferro consegue entender o linguajar de um estivador.

— Só quando ela fala nessa língua, Sir John, não quando outros querem falar com ela dessa forma.

— É, creio que sim — reconheceu Ryan. — De que documentos precisamos?

— Temos um dossiê volumoso sobre Alexandrov. Já o solicitei.

Ryan percebeu que aquele dia seria ocupado com uma sessão de redação criativa. Seria mais interessante analisar a economia soviética, mas, em vez disso, teria que ajudar a elaborar um obituário analítico e prospectivo sobre um homem do qual ninguém gostava e que provavelmente morrera sem deixar testamento.

 

 

Os PREPARATIVOS FORAM MAIS SIMPLES do que se podia desejar. Haydock esperava que os russos ficassem satisfeitos e, de fato, uma ligação para seu contato no Ministério dos Transportes fora o suficiente. Na manhã seguinte, às dez, Paul Matthews e um fotógrafo do Times estariam na estação Kiev para uma matéria sobre a rede ferroviária soviética e uma comparação com a britânica, que na opinião dos ingleses precisava de melhorias, principalmente no alto escalão da administração.

Matthews parecia suspeitar que Haydock era do "Seis", mas nunca deixara isso transparecer, porque o espião o ajudava muito oferecendo matérias. Era a maneira habitual de conseguir boas relações com jornalistas — uma tática ensinada na academia do SIS —, embora não admitida diante da CIA. O Congresso dos Estados Unidos aprova as mais incríveis e absurdas leis para limitar os serviços de inteligência, pensou o britânico, embora tivesse certeza de que as regras oficiais eram quebradas diariamente pelo pessoal de campo. Ele mesmo já violara restrições muito mais leves de seu próprio serviço. E nunca foi pego, claro. Assim como nunca tinha sido flagrado por manter agentes nas ruas de Moscou...

 

 

— OI, TONY. — ED FOLEY estendeu o braço para o correspondente do New York Times em Moscou. Ficou pensando se Prince percebia o quanto o desprezava. Mas, provavelmente, o sentimento era mútuo. — O que temos hoje?

— Estou atrás de um depoimento do embaixador sobre a morte de Mikhail Suslov.

Foley deu uma risada.

— O que acha de dizer que ele está muito feliz com a morte daquele velho escroto?

— Posso colocar isso na sua boca?

Prince mostrou o bloco de anotações: hora de maneirar nos comentários.

— Não com essas palavras. Não tenho instruções sobre esse assunto, Tony, e o chefe está ocupado com outros compromissos neste momento. Temo que não tenha tempo para conversar com você até o fim da tarde.

— Bem, Ed, preciso de alguma coisa.

— "Mikhail Suslov era um membro proeminente do Politburo e uma força ideológica importante neste país. Lamentamos sua morte prematura." Está bom assim?

— A primeira declaração era melhor e bem mais verdadeira — comentou o correspondente do Times.

— Você o conhecia?

Prince respondeu que sim.

— Encontrei-o algumas vezes, antes e depois de os médicos do Hopkins cuidarem do olho dele...

— Foi verdade? Quer dizer, ouvi histórias desse episódio, mas nenhuma muito consistente — disse Foley, representando.

Prince confirmou novamente.

— Foi bem real. Usava óculos de fundo de garrafa. Deu a impressão de ser um cavalheiro. De bons modos e tudo mais, porém havia um quê de "cara durão" por baixo. Parece que era uma espécie de sumo sacerdote do comunismo.

— Ah, ele fez votos de pobreza, castidade e obediência?

— Sabe, ele tinha mesmo um ar de asceta, como se fosse de fato um tipo de padre — disse Prince, depois de pensar um instante.

— Acha mesmo?

— Sim, havia algo de espiritual nele, como se pudesse ver coisas que o restante de nós não podia. Ele, sem dúvida, acreditava no comunismo. E não se desculpava por isso.

— Stalinista? — perguntou Foley.

— Não, mas trinta anos atrás teria sido. Posso imaginá-lo assinando a ordem para matar alguém. Não perderia o sono por isso... não nosso amigo Misha.

— Quem o substituirá?

— Não tenho certeza — admitiu Prince. — Minhas fontes dizem que eles ainda não sabem.

— Achei que ele fosse muito próximo do outro Mike, o Alexandrov — sugeriu Foley, imaginando se as fontes de Prince eram tão boas quanto ele achava que fossem.

Confundir os repórteres do Ocidente era um jogo para as lideranças soviéticas. Muito diferente de Washington, onde um jornalista tinha poder para usar contra os políticos. Não era o caso ali. Os membros do Politburo não temiam os repórteres — na verdade, o que ocorria era o contrário. Os contatos de Prince não eram tão bons.

— Talvez, mas não tenho certeza. O que estão comentando por aqui?

— Ainda não estive no refeitório, Tony. Não ouvi os rumores — esquivou-se Foley. Você não acha mesmo que vou lhe dar uma dica, não é?

— Bem, saberemos amanhã ou depois.

Mas seria ótimo se você fosse o primeiro a divulgar, e quer minha ajuda nisso, certo? Não nesta vida, pensou Foley, antes de decidir reconsiderar. Prince nunca seria um amigo muito valioso, mas talvez fosse útil. E não havia sentido em fazer inimigos só por prazer. Por outro lado, ajudar o sujeito podia sugerir que Foley ou era um espião ou os conhecia, e Tony Prince gostava de conversar e contar a todo mundo como era esperto... Não, é melhor que Prince pense que sou um idiota, porque vai contar a todos os conhecidos como ele é inteligente e como eu sou estúpido. Aprendera na Fazenda que o melhor disfarce de todos era ser considerado incapaz. Mesmo sendo um pouco doloroso para o ego, participar daquele jogo auxiliava no cumprimento da missão, e Ed Foley pensava sempre na missão. Portanto... que se dane Prince e o que ele pensa. Eu sou o cara que faz alguma diferença nesta cidade.

— Vamos combinar assim: vou perguntar por aí, ver o que as pessoas acham.

— Tudo bem.

Não podia esperar nada muito útil vindo de você, pensou Prince, um pouco alto demais. Seu talento em esconder as reações não era tão grande quanto imaginava. Nunca seria um bom jogador de pôquer, pensou o chefe da CIA em Moscou, enquanto o acompanhava à porta. Foley checou o relógio. Hora do almoço.

 

 

A EXEMPLO DA MAIORIA DAS ESTAÇÕES de trem europeias, a de Kiev tinha um tom amarelado — na verdade, vários palácios reais antigos também, como se houvesse ocorrido uma superprodução de mostarda no início do século XIX em toda a Europa. Algum rei podia ter gostado da cor, levando todos a pintar seus palácios da mesma forma. Graças a Deus, isso não aconteceu na Grã-Bretanha, pensou Haydock. A cobertura era de vidro com armações de ferro, para permitir a entrada da luz, mas, como em Londres, a limpeza devia ser rara, o que a deixava coberta de fuligem de antigos motores a vapor e suas caldeiras alimentadas a carvão.

Os russos continuavam os russos. Chegavam à plataforma carregando malas baratas e quase nunca estavam sozinhos; a maioria em família — mesmo que apenas um fosse viajar —, para que ocorressem as devidas despedidas, com beijos carinhosos, entre homens e mulheres e entre homens, o que sempre parecia peculiar aos olhos daquele inglês. Mas era um costume local, e todos os costumes locais pareciam peculiares aos visitantes. A partida do trem para Kiev, Belgrado e Budapeste estava prevista exatamente para as 13h, e a rede ferroviária russa, como o metrô de Moscou, mantinha uma pontualidade estrita.

A poucos metros, Paul Matthews conversava com um representante da rede ferroviária estatal, perguntando sobre os motores — eram todos elétricos desde que o camarada Lenin decidira disseminar a eletricidade e acabar com o piolho em toda a União Soviética. Curiosamente, a primeira tarefa mostrara-se mais fácil do que a segunda.

A grande locomotiva VL80T, formada por duzentas toneladas de aço, estava parada à frente da composição, na plataforma 3, com três vagões diurnos, um vagão-restaurante e três vagões-leito de primeira classe, além de três vagões postais logo atrás do motor. Na plataforma, maquinistas e atendentes aguardavam, parecendo mal-humorados, como todos os russos que trabalhavam atendendo o público.

Haydock olhava ao redor, as imagens do Coelho e da coelhinha presentes em sua memória. O relógio da estação marcava 12h15, assim como seu relógio de pulso. O Coelho apareceria? Haydock gostava de chegar mais cedo para voos e viagens de trem, talvez por um temor de ser deixado para trás originado em sua infância. Qualquer que fosse a razão, ele certamente já estaria lá, se precisasse pegar o trem das 13h. Tentou se lembrar de que nem todo mundo pensava do mesmo modo — a esposa, por exemplo.

Ele tinha um leve receio de que ela daria à luz no carro a caminho do hospital. Seria uma grande confusão, pensava o espião, enquanto Paul Matthews fazia perguntas e o fotógrafo disparava sua câmera. Finalmente... Sim, lá estava o Coelho, acompanhado da Sra. Coelho e da coelhinha. Nigel bateu no ombro do fotógrafo.

— Veja a família que está se aproximando. Linda menina — comentou, para quem quisesse ouvir.

O fotógrafo tirou uma sequência de dez fotos de uma vez, depois trocou de máquina e tirou mais dez. Excelente, pensou Haydock. Ele teria cópias antes de a embaixada fechar à noite; várias cópias para... não, ele as entregaria pessoalmente a Ed Foley e tomaria as providências para que o restante seguisse pelo mensageiro da rainha — versão britânica mais pomposa do entregador diplomático — para ter certeza de que chegariam às mãos de Sir Basil antes que ele fosse dormir. Imaginou como ocultariam a deserção do Coelho. Seguramente, implicaria arranjar cadáveres. De péssimo gosto, mas possível. Ficou feliz por não ter que pensar nos detalhes.

O Coelho passou a três metros dele e de seu amigo repórter. Não houve troca de palavras, embora a menina, como fazem todas as meninas, tenha se virado e olhado, enquanto passava. Ele deu uma piscada e recebeu um sorriso em retribuição. Eles passaram, procuraram um atendente e mostraram-lhe as passagens.

Matthews continuava fazendo suas perguntas e obtendo respostas muito educadas do sorridente funcionário da rede ferroviária russa.

Faltando exatos 30 segundos para as 13h, o condutor — pelo menos foi o que Haydock deduziu pelo uniforme surrado — subiu e desceu da lateral do trem, para se assegurar de que todas as portas, à exceção de uma, estavam fechadas. Ele deu um apito e fez sinal com uma placa para avisar o maquinista de que era hora de partir. Pontualmente às 13h, a buzina soou e o trem começou a se afastar da plataforma, ganhando velocidade gradualmente enquanto rumava na direção oeste, passando pelo amplo pátio de manobras, a caminho de Kiev, Belgrado e Budapeste.

 

 

 


C O N T I N U A