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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONVERSA NA CATEDRAL / Mário Vargas Llosa
CONVERSA NA CATEDRAL / Mário Vargas Llosa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONVERSA NA CATEDRAL

Primeira Parte

 

Da porta de La. Crónica, Santiago contempla a Avenida Tacna, sem amor: automóveis, edifícios desiguais e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos a flutuar na neblina, o meio-dia cinzento. Em que altura se tinha fodido o Peru? Os ardinas vagueiam entre os veículos detidos pelo semáforo da Wilson, apregoando os jornais da tarde, e ele começa a andar, devagar, em direcção à Colmena. De mãos nos bolsos, cabisbaixo, é escoltado por transeuntes que se dirigem, também, à Plaza San Martin. Ele era como o Peru, Zavalita, a certa altura, tinha-se fodido. Pensa: em que altura? De fronte do Hotel Grillón, um cão vem lamber-lhe os pés: põe-te a mexer, não vás estar raivoso. O Peru fodido, pensa, Carlitos fodido, todos fodidos. Pensa: não há solução. Vê uma enorme bicha na paragem dos colectivos para Miraflores, atravessa a praça e lá está Norwin, Olá amigo, numa mesa do Bar Zela, senta-te Zavalita, segurando um pisco com ginger ale, engraxando os sapatos, a oferecer-lhe uma bebida. Não parece bêbedo por enquanto e Santiago senta-se, faz sinal ao engraxador para lhe engraxar também os sapatos. Pronto, chefe, deixar-lhos-ia a brilhar como um espelho, chefe.

 

- Há séculos que não há quem te veja, Sr. Articulista - diz Norwin. - Estás mais satisfeito na página editorial do que nas locais?

 

- Há menos trabalho - encolhe os ombros, se calhar tinha sido aquele dia em que o director o chamara, manda vir uma Cristal gelada, queria substituir o Orgambide, Zavalita?, ele tinha frequentado a Universidade e podia escrever editoriais, não era, Zavalita? - Pensa: aí é que eu me fodi. - Entro cedo, dão-me o tema, tapo o nariz e, duas ou três horas depois, pronto, largo a trela e já está.

 

- Eu não faria editoriais por mais que pagassem - diz Norwin.

 

- Estás longe da notícia e o jornalismo é a notícia, convence-te disso, Zavalita. Hei-de morrer ali mesmo, nas notícias criminais. A propósito, o Carlitos morreu?

 

- Continua na clínica, mas vão dar-lhe alta não tarda - diz Santiago. - Ele jura que desta vez é que deixa a bebida.

 

- É verdade que, uma noite, ao deitar-se, viu baratas e aranhas?

 

- pergunta Norwin.

 

- Levantou o lençol e saltaram-lhe em cima milhares de tarântulas, de ratos - diz Santiago. - Saiu em pêlo para a rua, aos gritos.

 

Norwin ri e Santiago fecha os olhos: as casas de Chorrillos são cubos com grades, cavernas rachadas por tremores de terra, enxameadas por dentro de homens inúteis e bolorentas velhinhas pútridas, de chinelos e com varizes. Uma figurinha corre entre os cubos, os seus alaridos estremecem a oleosa madrugada e enfurecem as formigas, lacraus e escorpiões que a perseguem. O consolo pelo álcool, pensa, contra a morte lenta os diabos azuis. Estava certo, Carlitos, cada qual se defendia do Peru conforme podia.

 

- Quando menos espere, dou também de caras com os bichinhos.

- Norwin contempla o seu pisco com ginger ale curiosamente, num meio sorriso. - Mas não há jornalistas abstémios, Zavalita. A pinga inspira, convence-te disso.

 

O engraxador acabou os sapatos de Norwin e besunta agora os de Santiago, assobiando. Como iam as coisas lá na Ultima Hora, que diziam esses patifes? Queixavam-se da tua ingratidão, Zavalita, ele que viesse vê-los alguma vez, como dantes. Então agora tinhas montes de tempo livre, Zavalita; trabalhavas noutro sítio?

 

- Leio, faço sestas - diz Santiago. - Talvez torne a matricular-me em Direito.

 

- Afastas-te da notícia e já queres um diploma. - Norwin olha-o, contristado. - A página editorial é o fim, Zavalita. Hás-de-te formar em Direito e abandonarás o jornalismo. Já te vejo convertido num burguês.

 

- Acabo de fazer trinta anos - diz Santiago. - Tarde para me converter em burguês.

 

- Trinta, só? - Norwin fica pensativo. - Trinta e seis, eu, e pareço teu pai. A página criminal dá cabo duma pessoa, convence-te disso.

 

Caras masculinas, olhos opacos e derrotados sobre as mesas do Bar Zela, mãos que se estendem para cinzeiros e copos de cerveja. Que feias eram as pessoas aqui, bem dizia o Carlitos. Pensa: que tenho eu hoje? O engraxador enxota com gestos largos dois cães que arfam entre as mesas.

 

- Quanto tempo é que vai ainda continuar a campanha de La Crónica contra a raiva? - diz Norwin. - Já se estão a tornar chatos, esta manhã dedicaram-lhe outra página.

 

- Fiz todos os editoriais contra a raiva - diz Santiago. - Bah, aborrece-me menos do que escrever sobre Cuba ou o Vietname. Bom, já não há bicha, vou tomar o colectivo.

 

- Vem daí almoçar comigo, eu pago - diz Norwin. - Esquece-te da tua mulher, Zavalita. Vamos ressuscitar os bons tempos.

 

Cobaias escaldantes e cerveja gelada, o Rinconcito Cajamarquino de Bajo el Puente e o espectáculo das águas indecisas do Rímac escorrendo por entre as rochas cor de ranho, o café terroso do Haiti, o jogo em casa de Milton, os piscos com ginger ale e o chuveiro em casa de Norwin, a apoteose da meia-noite no bordel com Becerrita, que arranjava descontos, o sono ácido e as náuseas e as dívidas do amanhecer. Os bons tempos, talvez tivesse sido nessa altura.

 

- A Ana fez ensopado de camarão, que é uma coisa que eu não posso perder - diz Santiago. - Fica para outra vez, amigo.

 

- Tens medo da tua mulher - diz Norwin. - Ui, estás bem fodido, Zavalita.

 

Mas não pelo que tu julgavas, amigo. Norwin faz questão de pagar a cerveja, o engraxador, e apertam as mãos. Santiago regressa à paragem, o colectivo que toma é um Chevrolet e tem o rádio aceso, Inça Cola refrescava melhor, depois uma valsa, rios, vertentes, a voz veterana de Jesus Vásquez, era o meu Peru. Ainda há engarrafamentos na baixa, mas a República e a Arequipa estão desafogadas e o automóvel pode andar depressa, outra valsa, as limenhas tinham alma de tradição. Porque seria que as valsas crioulas eram tão, tão estúpidas? Pensa: que tenho eu hoje? Tem o queixo no peito e os olhos meios fechados, vai como que a espiar a barriga: caramba, Zavalita, sentas-te e é esse inchaço no casaco. Seria da primeira vez que tinha bebido cerveja? Há quinze, vinte anos? Quatro semanas sem ver a mamã, a Teté. Quem diria que o Popeye se havia de formar em Arquitectura, quem diria que havias de acabar a escrever editoriais contra os cães de Lima. Pensa: qualquer dia fico barrigudo. Iria aos banhos turcos, jogaria ténis no Terrazas, em seis meses derreteria as banhas e pronto, outra vez uma barriga lisa como aos 15 anos. Esmerar-se, quebrar a inércia, sacudir-se. Pensa: desporto, essa é que é a solução. O parque de Miraflores já, a Quebrada, o Malecón, na esquina de Benavies, chefe. Sai do carro, caminha até à Porta, de mãos nos bolsos, cabisbaixo, que tenho eu hoje? O céu continua nublado, a atmosfera tornou-se mais cinzenta ainda e começou a cacimba: patinhas de mosquitos na pele, carícias de teias de aranha. Nem isso, uma sensação ainda mais furtiva e irritante. Até a chuva estava fodida neste país; se ao menos chovesse a cântaros. Que filme iria no Colina, no Montecarlo, no Marsano? Almoçaria, um capítulo do Contraponto que iria enlanguescendo e o levaria em braços até ao sono viscoso da sesta, se levassem um policial como o Rififí, um dos vaqueiros como o Rio Grande. Mas a Ana havia de ter o seu dramalhão marcado no jornal, que tenho eu hoje. Pensa: se a censura proibisse as mexicanadas, teria menos questões com a Ana. E depois da matinée das seis? Dariam uma volta pelo Malecón, fumariam debaixo dos guarda-sóis de cimento do Parque Necochea, sentindo o mar rugir na escuridão, voltariam à Quinta de los Duendes de mão dada, zangamo-nos muito, amor, discutimos muito, amor, e entre bocejos Huxley. Os dois quartos encher-se-iam de fumo e cheiro a azeite, tinha muita fome, amor? O despertador da madrugada, a água fria do chuveiro, o colectivo, a caminhada entre empregados de escritório pela Colmena, a voz do director, preferias a greve dos bancos, Zavalita, a crise das pescas ou Israel? Talvez valesse a pena esforçar-se um pouco e acabar p curso. Pensa: fazer marcha atrás. Vê os muros ásperos cor de laranja, as telhas encarnadas, os janelicos com grades pretas das casas de duende da Quinta. A porta do apartamento está aberta, mas não aparece o Batuque, divertido, a brincar, barulhento e efusivo. Porque é que deixas a porta de casa aberta quando vais à mercearia, amor? Mas não, lá está a Ana, que é que tens, vem com os olhos inchados e chorosos, despenteada: tinham levado o Batuque, amor.

 

- Arrancaram-mo das mãos - soluça Ana. - Uns pretos asquerosos, amor. Meteram-no no camião. Roubaram-no, roubaram-no.

 

Beija-a na testa, acalma-te, amor, acaricia-lhe a cara, como é que tinha sido, arrasta-a pelo ombro para dentro de casa, não chores, tontinha.

 

- Telefonei-te para a Crónica e não estavas - Ana faz beicinho.

- Uns bandidos, uns pretos com cara de foragidos. Eu levava-o com trela e tudo. Arrancaram-no, meteram-no no camião, roubaram-no.

 

- Almoço e vou buscá-lo ao canil - beija-a de novo Santiago. Vais ver que não lhe acontece nada, não sejas tola.

 

- Pôs-se às patadas, a abanar o rabinho - limpa os olhos com o avental, suspira. - Parecia que estava a perceber. Pobrezinho, pobrezinho.

 

- Arrancaram-to das mãos? - diz Santiago. - Isto é que é uma súcia, eu conto-lhes um conto.

 

Pega no casaco, que atirou para cima duma cadeira, e dá um passo em direcção à porta, mas Ana detém-no: que almoce primeiro num instante, amor. Tem a voz doce, covinhas nas faces, os olhos tristes, está pálida.

 

- O ensopado já deve estar frio - sorri, tremem-lhe os lábios. Esqueci-me de tudo com o que aconteceu, querido. Coitadinho do Batuquinho.

 

Almoçam sem falar, na mesinha junto à janela que dá para o pátio da Quinta: terra cor de tijolo, como os campos de ténis do Terrazas, um caminhito sinuoso de cascalho e, na orla, moitas de gerânios. O erisopado esfriou, uma película de gordura tinge o rebordo do prato, os camarões parecem de lata. Ia à mercearia de San Martin comprar uma garrafa de vinagre, querido, e de repente travou a seu lado um camião e apearam-se dois negros com cara de bandidos, de foragidos da pior espécie, um deu-lhe um empurrão, o outro arrancou-lhe a trela, e antes que ela se apercebesse já o tinham levado para o canil, já tinham partido. Pobrezinho, pobre animalzinho. Santiago põe-se em pé: esses abusadores iam ouvir-lhe das boas. Estava a ver, estava a ver? Ana soluça outra vez; também ele tinha medo de que o matassem, amor.

 

- Não lhe hão-de fazer nada, querida - beija Ana na face, um sabor instantâneo a carne viva e a sal. - Daqui a nada já to trago, vais ver.

 

Trota até à farmácia da esquina da Porta com a San Martin, pede para telefonar e liga para La Crónica. Responde-lhe Solórzano, o das criminais: sabia lá onde era o estupor do canil, Zavalita.

 

- Levaram-lhe o cão? - o farmacêutico avança uma cabeça solícita. - O canil fica na Puente dei Ejército. Vá depressa, ao meu cunhado mataram-lhe um chihuahtta, um animalzinho caríssimo.

 

Trota até à Larco, toma um colectivo, quanto custaria a corrida do Paseo Cólon até à Puente dei Ejército?, conta na carteira cento e oitenta soles. Domingo já não teriam nem um centavo, que pena a Ana ter deixado a clínica, se calhar não iam ao cinema à noite, pobre Batuque, editoriais sobre a raiva nunca mais. Apeia-se no Paseo Cólon, na Plaza Bolognesi encontra um táxi, o motorista não conhecia o canil, não senhor. Um vendedor de gelados da Plaza Dos de Mayo orienta-os: mais adiante, um letreirozinho junto ao rio, Depósito Municipal de Cães, era ali: um grande terreiro cercado por um muro baixo de adobe cor de caca - a cor de Lima, pensa, a cor do Peru -, ladeado de casotas que, ao longe, se vão misturando e adensando até se converterem num labirinto de esteiras, canas, telhas, chapas de zinco. Apagadas, longínquas rosnadelas. Há uma construção esquálida junto à entrada, uma placazinha diz Administração. Em mangas de camisa, de óculos, careca, um homem dormita num escritório cheio de papéis e Santiago prega um murro na mesa: tinham-lhe roubado o cão, tinham-no arrancado das mãos da sua senhora, o homem resmunga assustado, isto não ficava assim, caralho.

 

- Que é lá isso de entrar no escritório a largar caralhos? - o careca esfrega os olhos estupefactos e faz caretas. - Mais respeito.

 

- Se aconteceu alguma coisa ao meu cão, as coisas não ficam assim - puxa o cartão de jornalista e prega outro murro na mesa. - E os tipos que agrediram a minha esposa vão-se arrepender, garanto-lhe.

 

- Acalme-se um bocadinho - verifica o cartão, boceja, o desagrado da sua cara dissolve-se em aborrecimento beatífico. - Recolheram o seu cãozinho há um par de horas? Então há-de estar entre os que o camião trouxe ainda agora.

 

Que não ficasse assim, amigo jornalista, ninguém tinha culpa. A sua voz era enfastiada, sonolenta como os olhos, amarga como as pregas que tinha na boca: mais um que estava fodido. Os homens que andavam a apanhar cães recebiam por animal, às vezes abusavam, que é que se havia de fazer, era a luta pelas coroas. Uns latidos suraos no terreiro, uivos como que filtrados por paredes de cortiça. O careca sorri levemente e sem graça, põe-se abulicamente em pé, sai do escritório a resmungar. Atravessam um descampado, entram num armazém que cheira a urina. Jaulas paralelas, apinhadas de animais que se esfregam uns contra os outros e saltam no cercado, farejam os arames, rosnam. Santiago inclina-se diante de cada jaula, não era aquele, explora a promíscua superfície de focinhos, dorsos, rabos esticados e oscilantes, aqui também não. O careca segue a seu lado, de olhar perdido, arrastando os pés.

 

- Como pode verificar, não temos onde os meter - protesta, de repente. - Depois o seu jornal ataca-nos, veja lá que injustiça. A Câmara dá-nos uma miséria, temos de fazer milagres.

 

- Caralho - diz Santiago. - Aqui também não.

 

- Paciência - suspira o careca. - Ainda há mais quatro armazéns.

 

Saem novamente para o descampado. Terra remexida, ervas, excrementos, charcos pestilentos. No segundo armazém há uma jaula que se agita mais que as outras e uma coisa branca e lãzuda ressalta, sobressai, some-se na confusão: vá lá, vá lá. Meio focinho, um pedacito de rabo, dois olhos encarnados e chorosos: o Batuquinho. Ainda tinha a trela, não havia direito, ora que porra, mas o careca calma, calma, ia mandá-lo soltar. Afasta-se com passos lentos e, momentos depois, volta seguido por um mulato baixinho e de fato-macaco azul: anda lá, que tirasse aquele esbranquiçado, Pancras. O mestiço abre a jaula, agarra o Batuque pelo pescoço, estende-o a Santiago. Coitado, estava a tremer, mas solta-o e dá um passo atrás, sacudindo-se.

 

- Cagam-se sempre - ri o mulato. - É a maneira de dizerem estamos contentes por sair da prisão.

 

Santiago ajoelha junto ao Batuque, coça-lhe a cabeça, dá-lhe as mãos a lamber. Treme, goteja urina, cambaleia embriagado e só no descampado começa a brincar e a revolver a terra, a correr.

 

- Venha comigo, veja as condições em que se trabalha - toma Santiago pelo braço, sorri-lhe acidamente. - Escreva qualquer coisa no seu jornal, peça à Câmara que nos aumente a verba.

 

Armazéns malcheirosos e em ruínas, um céu cinzento de aço, baforadas de ar molhado. A cinco metros deles, uma silhueta escura, de pé junto a um fardo, luta com uma salsicha que protesta com uma voz demasiado feroz para o seu minúsculo corpo e se retorce histérica: ajuda-o, Pancras. O mulato baixinho corre, abre o fardo, o outro mete a salsicha lá dentro. Fecham o fardo com uma corda, colocam-no no chão e o Batuque começa a rosnar, puxa pela trela gemendo, que tens tu, olha espantado, ladra rouco. Os homens seguram já os cajados nas mãos, começam já um-dois a bater e a rugir, e o fardo dança, salta, uiva enlouquecido, um-dois rugem os homens e batem. Santiago fecha os olhos, aturdido.

 

- Aqui no Peru estamos na idade da pedra, meu amigo - um sorriso agridoce anima a face do careca. - Veja as condições em que se trabalha, diga-me lá se há direito.

 

O fardo aquietou-se, os homens continuam a dar-lhe pauladas durante mais um bocado, atiram os cajados ao chão, enxugam as faces, esfregam as mãos.

 

- Dantes matavam-se como Deus manda, agora o dinheiro não chega - queixa-se o careca. - Escreva um artigozinho, amigo jornalista.

 

- E o senhor sabe quanto ganhamos aqui? - diz Pancras, gesticulando; volta-se para o outro. - Diz-lhe tu, este senhor é jornalista, que proteste no jornal dele.

 

É mais alto, mais novo que Pancras. Dá uns passos em direcção a eles e Santiago consegue finalmente ver-lhe a cara: o quê? Larga a trela, o Batuque desata a correr ladrando e ele abre a boca e fecha-a: o quê?

 

- Um sol por animal, senhor - diz o mulato. - Ainda por cima temos de levá-los ao monturo onde os queimam. Apenas um sol, senhor.

 

Não era ele, os pretos pareciam-se todos, não podia ser ele. Pensa: porque é que não há-de ser ele? O mulato agacha-se, levanta o fardo, era ele, era, leva-o até um canto do descampado, despeja-o entre outros fardos ensanguentados, volta gingando sobre as pernas compridas e esfregando a testa. Era ele, era. Ó sócio, dá-lhe um encontrão, Pancras, vens almoçar ou não vens?

 

- Aqui queixam-se, mas quando vão no camião apanhá-los têm vida de lordes - rosna o careca. - Esta manhã apanharam o seu cãozinho, que tinha trela e estava com a dona, os vivaços.

 

O mulato ergue os braços, era ele: eles não tinham saído esta manhã no camião, senhor, tinham passado o tempo a dar ao pau. Pensa: ele. A sua voz, o seu corpo, são os dele, mas parece ter mais trinta anos. A mesma cara fina, o mesmo nariz achatado, o mesmo cabelo crespo. Mas agora, além disso, há bolsas violáceas nas pálpebras, rugas no pescoço, um sarro amarelo-esverdeado nos dentes de cavalo. Pensa: eram branquíssimos. Como está mudado, como está estragado. Está mais magro, mais sujo, muitíssimo mais velho, mas aquele é o seu andar requebrado e lento, aquelas as suas pernas de aranha. As manápulas têm agora uma crosta nodosa e há uma beiça de saliva em redor da boca. Já tornaram a atravessar o terreiro, estão no escritório, o Batuque roça-se pelos pés de Santiago. Pensa: não sabe quem eu sou. Não lho diria, não lhe falaria. Quem é que te havia de reconhecer, Zavalita, tinhas 16, 18 anos?, e agora eras um velho de 30. O careca coloca o químico entre as duas folhas, garatuja umas linhas numa letra inclinada e avarenta. Recostado contra o vão da porta, o mulato lambe os lábios.

 

- Uma assmaturazmha aqui, meu amigo; e a sério, dê-nos um empurrãozinho, peça na Crónica, que nos aumentem a verba - o careca olha para o mulato.

 

- Não ias almoçar?

 

- Não seria possível um adiantamento? - dá um passo e explica com naturalidade: - Ando em baixo de finanças, senhor.

 

- Meia libra - boceja o careca. - Não tenho mais.

 

Guarda a nota sem olhar e sai juntamente com Santiago. Um rio de camiões, autocarros e automóveis atravessa a Puente dei Ejército, que cara faria ele se?, na neblina os montões terrosos e casebres de Fray Martin de Porres, largaria a correr?, divisam-se como sonhos. Olha o mulato nos olhos e ele olha-o:

 

- Se matassem o meu cão, acho que os matava a vocês - e tenta sorrir.

 

Não, Zavalita, não te reconhece. Escuta atentamente e o seu olhar é turvo, distante e respeitoso. Além de envelhecer, tinha também embrutecido. Pensa: tinha-se fodido, também.

 

- Apanharam esta manhã o lanzudito? - um brilho inesperado surge de repente nos seus olhos. - Deve ter sido o preto Céspedes, esse não liga a coisa nenhuma. Mete-se nos jardins, corta as trelas, faz seja o que for para ganhar o seu sol.

 

Estão ao pé da escada que sobe até à Alfonso Ugarte; o Batuque espoja-se na terra e ladra ao céu cor de cinza.

 

- Ambrosio? - sorri, vacila, sorri. - Não és o Ambrosio? Não larga a correr, não diz nada. Olha com uma expressão abatida e estúpida e, de repente, há nos seus olhos uma espécie de vertigem.

 

- Já não te lembras de mim? - vacila, sorri, vacila. - Sou o Santiago, o filho de D. Fermín.

 

As manápulas levantam-se, o Menino Santiago, senhor?, imobilizam-se como se duvidassem entre estrangulá-lo e abraçá-lo, o filho de D. Fermín? Tem a voz entrecortada de surpresa ou emoção e pestaneja, ofuscado. Claro, homem, não o reconhecia? Santiago em compensação reconheceu-o assim que o viu no terreiro: quem havia de dizer, homem. As manápulas animam-se, ora esta, viajam de novo pelo ar, como tinha crescido. Deus meu, dão palmadas nos ombros e nas costas de Santiago, e os seus olhos riem, finalmente: que alegria, menino.

 

- Parece mentira vê-lo já homem - apalpa-o, olha-o, sorri-lhe.

 

- Estou a vê-lo e nem acredito, menino. Claro que o reconheço, agora sim. Parece-se com o seu paizinho; um bocadinho também com a D. Zoila.

 

E a Menina Teté?, e as manápulas vão e vêm, emocionadas, assustadas?, e o Sr. Chispas?, dos braços para os ombros e dos ombros para as costas de Santiago, e os seus olhos parecem ternos e reminiscentes e a sua voz insiste em ser natural. Ele havia cada coincidência! Onde se haviam de encontrar, menino! E depois de tanto tempo, que diabo.

 

- Esta faina fez-me sede - diz Santiago. - Anda daí, vamos beber qualquer coisa. Conheces algum sítio para estes lados?

 

- Conheço o sítio onde como - diz Ambrosio. - A Catedral, é de pobres, não sei se lhe agradará.

 

- Se tiver cerveja gelada, agrada-me, com certeza - diz Santiago.

 

- Vamos, Ambrosio.

 

Parecia mentira que o Menino Santiago já bebesse cerveja, e Ambrosio ri, com os grossos dentes amarelo-esverdeados ao léu: o tempo voava, caraças. Sobem a escada, entre os pátios da primeira esquina da Alfonso Ugarte há uma garagem branca da Ford, e na embocadura da esquerda assomam, desbotados pela inexorável cinzentura, os armazéns do Ferrocarril Central. Um camião carregado de caixotes oculta a porta d'A Catedral. Lá dentro, sob o tecto de zinco, apinha-se em bancos e mesas toscas uma barulhenta multidão voraz. Dois empregados, em mangas de camisa, vigiam do balcão as caras amarelentas, as feições angulosas que mastigam e bebem, e um camponiozito sumido num andrajoso avental distribui sopas fumegantes, garrafas, travessas de arroz. Muito carinho, muitos beijos, muito amor, berra um gira-discos multicor, e ao fundo, por trás do fumo, do ruído, do sólido odor a comidas e álcool e dos bailarinos enxames de moscas, há uma parede esburacada - pedras, casebres, um fio de água de um rio, o céu plúmbeo -, e uma mulher larga, banhada em suor, mexe em panelas e frigideiras, rodeada pelo faiscar de um fogão. Há uma mesa vazia junto ao gira-discos, entre a constelação de cicatrizes da mesa distingue-se um coração atravessado por uma seta, um nome de mulher: Saturnina.

 

- Eu já almocei, mas tu manda vir qualquer coisa para comer diz Santiago.

 

- Duas Cristais bem fresquinhas - grita Ambrosio, com as mãos em concha a servir de altifalante. - Uma sopa de peixe, pão e carne guisada com arroz.

 

Não devias ter vindo, não devias ter-lhe falado, Zavalita, não estás fodido, o que tu estás é doido. Pensa: o pesadelo vai voltar. A culpa é tua, Zavalita, pobre papá, pobre velhote.

 

- Motoristas, operários das fabriquetas destes sítios - Ambrosio faz um sinal em volta, em jeito de desculpa. - Vêm da Avenida Argentina porque a comida é regular e, sobretudo, barata.

 

O camponiozito traz as cervejas, Santiago enche os copos e bebem à sua saúde, menino, à tua, Ambrosio, e há um cheiro compacto e indecifrável que debilita, enjoa e submerge a cabeça de recordações.

 

- Mas que trabalho pesado que tu arranjaste, Ambrosio. Estás há muito tempo no canil?

 

- Há um mês, menino, e entrei graças à raiva, porque não havia vagas. Lá pesado é, tiram-nos a pele e o osso. Só é leve quando se vai apanhar cães no camião.

 

Cheira a suor, pimentão e cebola, a urina e lixo acumulado, e a música do gira-discos mistura-se com a voz plural, com roncos de motores e buzinadelas, e chega aos ouvidos deformada e espessa. Rostos queimados, pómulos salientes, olhos adormecidos pela rotina ou pela indolência vagabundeiam por entre as mesas, formam cachos junto ao balcão, obstruem a entrada. Ambrosio aceita o cigarro que Santiago lhe oferece, fuma-o, atira a ponta ao chão e enterra-a com o pé. Sorve a sopa ruidosamente, mordisca os pedaços de peixe, agarra nos ossos e chupa-os, deixando-os brilhantes, escutando ou respondendo ou perguntando, e engole pedacinhos de pão, bebe grandes goles de cerveja e limpa o suor com a mão: o tempo engolia uma pessoa sem ela dar por isso, menino. Pensa: porque é que eu não me vou embora? Pensa: tenho de ir e pede mais cerveja. Enche os copos, agarra no seu e enquanto fala, recorda, sonha ou pensa, observa o círculo de espuma salpicado de crateras, bocas que se abrem silenciosamente vomitando borbulhas louras e desaparecem no líquido amarelo que a sua mão aquece. Bebe sem fechar os olhos, arrota, puxa de cigarros e acende-os, inclina-se para fazer festas ao Batuque: coisas passadas, que caralho. Fala e Ambrosio fala, as bolsas das suas pálpebras são azuladas, as asas do nariz tremem como se tivesse estado a correr, como se tivesse afogado, e a seguir a cada gole cospe, olha nostálgico as moscas, escuta, sorri e fica triste ou confundido e os seus olhos, por vezes, parecem enfurecer-se ou assustar-se ou ir-se embora; de vez em quando tem ataques de tosse. Há brancas entre os seus cabelos crespos, sobre o fato-macaco veste um casaco que deve ter sido também azul e ter tido botões, e uma camisa de colarinho alto que se lhe enrosca na garganta como uma corda. Santiago vê-lhe os sapatões enormes: enlameados, retorcidos, fodidos pelo tempo. A voz dele chega-lhe aos ouvidos titubeante, receosa, perde-se, cautelosa, implorativa, volta, respeitosa ou ansiosa ou compungida, sempre vencida: nem trinta nem quarenta, talvez cem. Não estava só acabado, envelhecido, embrutecido; se calhar, estava também tuberculoso. Mil vezes mais fodido que o Carlitos ou que tu, Zavalita. Ia-se embora, tinha de ir e pede mais cerveja. Estás bêbedo, Zavalita, daqui a nada desatavas a chorar. A vida não tratava bem as pessoas neste país, menino, desde que saíra de casa tinha vivido aventuras de filme. Também a ele a vida não o tinha tratado bem, Ambrosio, e pede mais cerveja. Iria vomitar? O cheiro a fritos, pés e axilas esvoaça, picante e envolvente, por cima das cabeças lisas ou hirsutas, por cima dos topetes com fixador e das chatas nucas com caspa e brilhantina, a música do gira-discos cala-se e volta, e agora, mais intensas e irrevogáveis que os rostos saciados e as bocas quadradas e as pardacentas faces imberbes, as abjectas imagens da memória lá estão também: mais cerveja. Este país não era mesmo uma balbúrdia, menino, não era mesmo um quebra-cabeças tremendo, o Peru? Não era incrível que os odriistas e os apristas que tanto se odiavam fossem agora unha com carne, menino? Que diria o seu paizinho a isto, menino? Falam e de vez em quando ouve timidamente, respeitosamente, Ambrosio, que se atreve a protestar: tinha de se ir embora, menino. Está pequenino e inofensivo, lá longe, por trás da mesa compridíssima, que transborda de garrafas, e tem os olhos bêbedos e aterrados. Ò Batuque ladra uma vez, ladra cem vezes. Um remoinho interior, uma efervescência no coração do coração, uma sensação de tempo suspenso e de fedor. Falam? O gira-discos deixa de troar, troa outra vez. O caudaloso rio de cheiros parece fragmentar-se em rias de tabaco, cerveja, pele humana e restos de comida que circulam tepidamente pelo ar maciço d’A Catedral, e rapidamente são absorvidos por uma invencível pestilência superior: nem tu nem eu tínhamos razão, papá, é o cheiro da derrota, papá. Gente que entra, come, ri, ronca, gente que sai, e o eterno perfil pálido dos empregados do balcão. Falam, calam-se, bebem, fumam e quando o camponiozito aparece ali, inclinado sobre a mesa eriçada de garrafas, as outras mesas estão vazias e já não se ouve o gira-discos nem o estalar do fogão, só o Batuque a ladrar, Saturnina. O camponiozito conta pelos dedos tisnados e vê a cara urgente de Ambrosio avançando para ele: sentia-se mal, menino? Uma dorzita de cabeça, já estava a passar. Estás a fazer uma linda figura, pensa, bebi muito, Huxley, aqui tens o Batuque são e salvo, demorei-me porque encontrei um amigo. Pensa: amor. Pensa: pára, Zavalita, já chega. Ambrosio mete a mão no bolso e Santiago estica os braços: estava doido, homem?, ele pagava. Tropeça e Ambrosio e o camponiozito amparam-no: larguem-me, aguentava-se sozinho, sentia-se bem. Que diabo, menino, não era caso para menos, pois se tinha bebido tanto. Avança passo a passo por entre as mesas vazias e as cadeiras inanimadas d’A Catedral, olhando fixamente o chão canceroso: pronto, já passou. O cérebro vai-se esvaziando, vai fugindo a modorra das pernas, vão-se aclarando os olhos. Mas as imagens lá continuam. Entrelaçando-se com os seus pés, o Batuque ladra, impaciente.

 

- Vá lá que lhe chegou o dinheiro, menino. Palavra que se sente melhor?

 

- Estou um bocado tonto, mas bêbedo não, a bebida não me faz nada. Anda-me a cabeça à roda de tanto pensar.

 

- Quatro horas, menino, não sei o que hei-de inventar agora. Posso perder o emprego, o menino sabe lá. Enfim, fico-lhe agradecido. Pelas cervejinhas, pelo almoço, pela conversa. Oxalá possa retribuir-lhe alguma vez, menino.

 

Estão no passeio, o camponiozito acaba de fechar o portão de madeira, o camião que ocultava a entrada já se foi, a neblina esborrata as fachadas e na luz cor de aço da tarde escoa-se, opressivo, o jorro de automóveis, camiões e autocarros pela Puente dei Ejército. Não há ninguém perto, os longínquos transeuntes são silhuetas sem cara que deslizam entre véus fumacentos. Despedimo-nos e pronto, pensa, nunca mais o vês. Pensa: nunca o vi, nunca falei com ele, um chuveiraço, uma sesta e pronto.

 

- Palavra que se sente bem, menino? Não quer que eu vá consigo?

 

- Quem se sente mal és tu - diz, sem mexer os lábios. - Toda a tarde, todas estas quatro horas, te sentiste mal.

 

- Nem pense nisso, aguento muito bem a bebida - diz Ambrosio e, por um instante, ri. Fica com a boca entreaberta, a mão petrificada no queixo. Está imóvel, a um metro de Santiago, com as abas do casaco levantadas, e o Batuque, de orelhas fitas, olha para Ambrosio, e escava a terra, surpreendido ou inquieto ou assustado. No interior d’A Catedral arrastam-se cadeiras e parece que estão a lavar o chão.

 

- Estás farto de saber de que é que eu estou a falar - diz Santiago. - Deixa de te fazer pílulas, fazes favor.

 

Não quer ou não consegue perceber, Zavalita: não se mexeu e nas suas pupilas continua a mesma porfiada cegueira, aquela atroz escuridão tenaz.

 

- Eu dizia se queria que eu fosse consigo - balbucia e baixa os olhos, a voz. - Quer que lhe chame um táxi, quer dizer?

 

- Na Crónica precisam de um porteiro - e ele também baixa a voz. - É um trabalho menos pesado que o canil. Eu arranjo as coisas para te admitirem sem papéis. Era muito melhor para ti. Mas, por favor, deixa um bocadinho de te fazer pílulas.

 

- Está bem, está bem - há um mal-estar crescente nos seus olhos, parecia que a sua voz se ia rasgar em guinchos. - Que é que tem, menino, porque é que se põe com isso?

 

- Dou-te todo o meu ordenado deste mês - e a sua voz entorpece-se bruscamente, mas não soluça: está hino, com os olhos muito abertos. - Três mil e quinhentos soles. Não é verdade que com esse dinheiro já podes?

 

Cala-se, baixa a cabeça e, automaticamente, como se o silêncio tivesse desfeito um mecanismo inflexível, o corpo de Ambrosio dá um passo atrás e encolhe-se e as suas mãos avançam à altura do estômago, como para se defender ou atacar. O Batuque rosna.

 

- Subiu-lhe a pinga à cabeça? - rouqueja, com a voz alterada. Que é que tem, o que é que quer?

 

- Que deixes de te fazer pílulas - fecha os olhos e toma fôlego.

- Que falemos com franqueza da Musa, do meu pai. Foi ele que te mandou? Não me importa, quero saber. Foi o meu pai?

 

Corta-se-lhe a voz e Ambrosio dá outro passo atrás e Santiago divisa-o, acachapado e tenso, com os olhos desorbitados pelo espanto ou pela cólera: não te vás embora, anda cá. Não ficou embrutecido, não é pílulas, pensa, anda cá, anda cá. Ambrosio inclina o corpo, agita um punho, à guisa de ameaça ou de despedida.

 

- Vou-me embora para não se arrepender do que está a dizer rouqueja, com a voz entristecida. - Não preciso de emprego, fique sabendo que não aceito favores seus, e muito menos o seu dinheiro. Fique sabendo que não merecia o pai que teve, convença-se. Vá à merda, menino.

 

- Pronto, pronto, não me importo - diz Santiago. - Anda cá, não te vás embora, anda cá.

 

Há uma rápida rosnadela aos seus pés, o Batuque olha também: a figurinha escura afasta-se cosida com os muros descampados, sobressai contra os janelões reluzentes da garagem da Ford, submerge-se na escadita da Puente.

 

- Pronto - soluça Santiago, inclinando-se, acariciando o rabito teso, o focinho ansioso. - Já vamos, Batuquinho.

 

Endireita-se, soluça outra vez, puxa de um lenço e limpa os olhos. Durante uns segundos permanece imóvel, de costas apoiadas contra o portão d’A Catedral, apanhando a cacimba na cara, outra vez cheia de lágrimas. O Batuque esfrega-se contra os seus tornozelos, lambe-Lhe os sapatos, rosna baixinho, fitando-o. Começa a andar, depressa, de mãos nos bolsos, em direcção à Plaza Dos de Mayo, e o Batuque trota a seu lado. Há homens curvados ao pé do monumento e em redor dele uma esterqueira de beatas, cascas e papéis; nas esquinas, as pessoas tomam de assalto os autocarros escavacados que se perdem envoltos em descampados em direcção ao bairro de lata; um polícia discute com um vendedor ambulante e as caras de ambos são odiosas e desalentadas e as suas vozes estão como que crispadas por uma exasperação vazia. Dá a volta à praça, ao entrar na Colmena manda parar um táxi: o seu cãozinho não iria sujar o banco? Não, chefe, não sujaria: para Miraflores, para a Calle Porta. Entra, senta o Batuque nos joelhos, este inchaço no casaco. Jogar ténis, nadar, fazer pesos, aturdir-se, alcoolizar-se como o Carlitos. Fecha os olhos, tem a cabeça encostada ao espaldar, a sua mão acaricia o dorso, as orelhas, o focinho frio, a barriga fremente. Salvaste-te do canil, Batuquinho, mas a ti nunca virá ninguém tirar-te do canil, Zavalita, amanhã iria visitar o Carlitos à clínica e levar-lhe-ia um livro, Huxley não. O táxi avança por cegas ruas barulhentas, na escuridão ouve motores, apitos, vozes fugitivas. Foi pena não ter aceitado o convite do Norwin para almoçar, Zavalita. Pensa: ele mata-os à paulada e tu com editoriais. Ele era melhor que tu, Zavalita. Tinha pago mais, tinha-se fodido mais. Pensa: pobre papá. O táxi diminui a velocidade e ele abre os olhos: a Diagonal está ali, apanhada nos faróis dianteiros do táxi, oblíqua, prateada, fremente de carros, com os seus anúncios luminosos já a cintilar. A neblina branqueia as árvores do Parque, as torres da igreja desvanecem-se na cinzentura, as copas das árvores oscilam: pare aqui. Paga a corrida e o Batuque começa a ladrar. Solta-o, vê-o atravessar a entrada da Quinta como uma bólide. Ouve lá dentro os latidos, ajeita o casaco, a gravata, ouve o grito de Ana, imagina a sua cara. Entra no descampado, as casitas de duendes têm as janelas iluminadas, a silhueta de Ana a abraçar o Batuque e vir ao seu encontro, porque é que te demoraste tanto, amor, tinha estado tão nervosa, tão assustada, amor.

 

- Vamos para casa, este animal vai enlouquecer toda a Quinta e beija-a apressadamente. - Cala-te, Batuque.

 

Vai à casa de banho e enquanto urina e lava a cara ouve Ana, que tinha acontecido, querido, porque é que se tinha atrasado daquela maneira, a brincar com o Batuque, ainda bem que o encontraste, amor, e ouve os ditosos latidos. Sai e Ana está sentada na salinha, com o Batuque nos braços. Senta-se ao lado dela, beija-lhe a testa.

 

- Estiveste a beber - agarrou-o pelo casaco, olha-o meio risonha, meio zangada. - Cheiras a cerveja, amor. Não me digas que não, estiveste a beber, não foi?

 

- Encontrei um tipo que não via há séculos. Fomos tomar uma bebida. Não pude livrar-me, amor.

 

- E eu aqui, meio louca de angústia - ouve a sua voz queixosa, mimenta, carinhosa. - E tu a beber cerveja com os teus amigalhaços. Porque é que ao menos não me telefonaste para a alemã, amor?

 

- Não havia telefone, metemo-nos numa tasca de má morte bocejando, espreguiçando-se, sorrindo. - E além disso não gosto de maçar a maluca da alemã a toda a hora. Sinto-me mesmo mal, dói-me a cabeça horrivelmente.

 

Bem feito, por causa dele tinha estado toda a tarde com os nervos num feixe, e passa-lhe a mão pela testa e olha-o e sorri-lhe e fala-lhe baixinho e belisca-lhe uma orelha: é bem feito que te doa a cabecinha, amor, e ele beija-a. Queria dormir um bocadinho, ela fechava-lhe a cortina, querido? Sim, põe-se de pé, um bocadinho, cai na cama, e as sombras de Ana e do Batuque andam num vaivém em redor dele, procurando-se.

 

- O pior é que gastei o dinheiro todo, amor. Não sei como nos vamos aguentar até segunda-feira.

 

- Bah, não faz mal. O que vale é que o merceeiro de San Martin me fia sempre, o que vale é que é o melhor merceeiro que há.

 

- O pior é que ficamos sem cinema. Ia alguma coisa que prestasse, hoje?

 

- Um com o Marlon Brando, no Colina - e a voz de Ana, longíssimo, chega como que através da água. - Um daqueles policiais de que tu gostas, amor. Se quiseres, peço dinheiro emprestado à alemã.

 

Está satisfeita, Zavalita, perdoa-te tudo porque trouxeste o Batuque. Pensa: neste momento é feliz.

 

- Vou-me arranjar e vamos ao cinema, mas vais-me prometer que nunca mais vais beber cerveja com os teus amigalhaços sem me avisares - ri-se Ana, cada vez mais longe.

 

Pensa: prometo. A cortina tem um canto dobrado e Santiago consegue ver um retalho de céu quase escuro, e adivinhar, lá fora, lá em cima, caindo sobre a Quinta de los Duendes, Miraflores, Lima, a miserável cacimba de sempre.

 

Popeye Arévalo tinha passado a manhã na praia de Miraflores. Não vale a pena estares a olhar para a escada, diziam-lhe as raparigas do bairro, a Teté não vem, com certeza. E, efectivamente, a Teté nessa manhã não foi tomar banho. Frustrado, voltou a casa antes do meio-dia, mas, à medida que subia a encosta da Quebrada, ia vendo o narizinho, a franjinha, os olhinhos da Teté, e emocionou-se: quando passarás a ligar-me, Teté, quando? Chegou a casa com os cabelos avermelhados ainda húmidos, ardendo de insolação, com a cara cheia de sardas. Encontrou o senador à espera dele: anda cá, sardento, iam conversar um bocado. Fecharam-se no escritório, e o senador sempre queria estudar arquitectura? Sim, papá, claro que queria. O problema é que o exame de admissão era tão difícil, concorriam montes e entravam pouquíssimos. Mas ele estudaria a valer papá, e se calhar entrava. O senador estava satisfeito por ele ter acabado o liceu sem perder nenhum ano e desde o fim do ano era uma mãe para ele, em Janeiro tinha-lhe aumentado a mesada de uma para duas libras. Mas, mesmo assim, Popeye não esperava tanto: bom, sardento, como era difícil a admissão a Arquitectura, era melhor não se arriscar este ano, que se matriculasse num dos cursos pré-universitários e estudasse a valer, e assim para o ano que vem entras com certeza: que lhe parecia, sardento? Bestial, papá, a cara de Popeye iluminou-se mais, os olhos bailaram-lhe. Havia de marrar, matar-se-ia a estudar, e no ano seguinte entraria com certeza. Popeye tinha receado um Verão fatal, sem banhos de mar, sem matinées, sem festas, dias e noites ocupados pelas matemáticas, pela física e pela química, e, apesar de tanto sacrifício, acabo por não passar na admissão e terei perdido as férias sem apelo nem agravo. Ali estavam agora, recuperadas, a praia de Mira•flores, as ondas da Herradura, a baía de Ancón, e as imagens eram tão reais, as plateias do Leuco, do Montecarlo e do Colina tão bestiais, salões onde ele e a Teté dançavam boleros, como os de um filme em tecnicolor. Estás satisfeito?, perguntou o senador, e ele satisfeitíssimo. É mesmo boa pessoa, pensava, enquanto se dirigiam à casa de jantar, e o senador pois é assim, sardento, mal o Verão acabasse fossava a valer, prometia-lhe, e Popeye jurava, papá. Durante o almoço, o senador atirou-lhe algumas piadas, a filha de Zavala ainda não te dava sorte, sardento?, e ele corou: já ia dando um bocadito, papá. Ainda és uma criança para teres namorada, disse a velha, que se deixasse de tolices por enquanto. Que ideia, ele já é crescido, disse o senador, e além disso a Teté era uma linda moça. Não dês o braço a torcer, sardento, as mulheres gostavam de se fazer rogadas, a ele tinha-lhe dado bom trabalho conquistar a velha, e a velha morta de riso. Tocou o telefone e o mordomo veio a correr: o seu amigo Santiago, menino. Tinha de o ver urgentemente, sardento. Às três no Cream Rica da Larco, magricela? As três em ponto, sardento. O teu cunhado ia-te tratar da saúde se não deixasse a Teté em paz, sardento?, sorriu o senador, e Popeye pensou, mas que bem disposto que ele está hoje. Nem pouco mais ou menos, ele e Santiago eram unha com carne, mas a velha franziu o sobrolho: esse rapazinho tem uma aduela a menos, não? Popeye levou uma colherzita de gelado à boca, quem lhe tinha dito isso?, outra de doce, talvez convencesse Santiago a irem lá a casa ouvir discos e a chamar a Teté, só para conversar um bocado, magricela. Tinha-lho dito a própria Zoila durante a canasta de sexta-feira, insistiu a velha. Santiago dava-lhe ultimamente muitas dores de cabeça, a ela e ao Fermín; passava o dia a pegar-se com a Teté e com o Chispas, tinha-se feito desobediente e respondão. O magrigela tinha ficado em primeiro lugar nos exames finais, protestou Popeye, que mais queriam os velhos?

 

- Não quer ir para a Católica, teima em ir para San Marcos disse a D. Zoila. - O Fermín anda raladíssimo com isso.

 

- Eu cá o convencerei, Zoila, não te metas tu nisso - disse D. Fermín. - Está na idade do armário, é preciso saber levá-lo. Se a gente se zanga com ele, ainda teima mais.

 

- Se em lugar de conselhos lhe desses uns açoites, já ele te dava atenção - disse a D. Zoila. - Quem não sabe educar és tu.

 

- Casou-se com aquele rapaz que ia lá a casa - diz Santiago. O Popeye Arévalo. O sardento Arévalo.

 

- O magricela não se dá bem com o velho porque não têm as mesmas ideias - disse Popeye.

 

- E que ideias tem esse miúdo que ainda mal saiu da casca? riu-se o senador.

 

- Estuda, faz-te advogado e depois poderás meter a colherada na política - disse D. Fermín. - Está bem, magricela?

 

- O magricela irrita-se por o pai ter ajudado o Odría na revolta contra o Bustamante - disse Popeye. - Ele é contra os militares.

 

- Ele, bustamantista? - perguntou o senador. - E o Fermín que julga que ele é o prodígio da família. Não deve ser assim tanto, para admirar o cobardola do Bustamante.

 

- Poderia ser um cobardola, mas era de boa gente e tinha sido diplomata - disse a velha de Popeye. - Ao passo que o Odría é um soldadeco e um mestiço.

 

- Não te esqueças de que eu sou senador odriista - riu o senador. - Portanto, deixa-te lá de chamar mestiço ao Odría, patetinha.

 

- Meteu-se-lhe na cabeça matricular-se em San Marcos porque não gosta dos padres, e porque quer ir para onde vai o povo - disse Popeye. - A verdade é que se lhe meteu isso na cabeça porque é um espírito de contradição. Se os pais lhe dissessem que fosse para San Marcos, ele diria não, vou mas é para a Católica.

 

- A Zoila tem razão, em San Marcos ele vai perder as relações disse a velha de Popeye. - Os rapazes finos vão para a Católica.

 

- Deixa estar que na Católica também há cada índio que até mete medo, mamã - disse Popeye.

 

- Com o dinheiro que o Fermín ganha, agora que anda unha com carne com o Cayo Bermúdez, o miúdo não vai precisar de relações

- disse o senador. - Está bem, sardento, vai-te lá embora.

 

Popeye levantou-se da mesa, lavou os dentes, penteou-se e saiu. Ainda eram só duas e um quarto, o melhor era fazer horas. Somos compinchas ou não somos, Santiago?, anda lá, dá-me uma ajudinha com a Teté. Subiu pela Larco a pestanejar por causa do brilho do sol e parou a excogitar as montras da Casa Nelson: aquelas mocassinas de camurça com umas calcitas castanhas e aquela camisa amarela, bestial. Chegou ao Cream Rica antes de Santiago, instalou-se numa mesa donde podia ver a avenida, pediu um milk-shake de baunilha. Se não conseguisse convencer Santiago a irem ouvir discos lá a casa, iriam à matinée ou jogar a casa do Coco Becerra, que o magricela queria falar-lhe. Nisto entrou Santiago, com uma cara de palmo e meio, os olhos com aspecto febril: os velhos tinham posto a Amalia na rua, sardento. Estavam a abrir a sucursal do Banco de Crédito e, pelas janelas do Cream Rica, Popeye via as portas tumultuosas engolirem as pessoas que tinham estado à espera no passeio. Estava sol, os expressos passavam apinhados, homens e mulheres disputavam entre si os colectivos na esquina da Shell. Porque é que tinham esperado até agora para a pôr fora, magricela? Santiago encolheu os ombros, os velhos não queriam que ele se apercebesse de que a despediam por causa do que acontecera naquela noite, como se ele fosse parvo. Parecia mais magro com aquela cara de enterro, os cabelos castanho-escuros escorriam-lhe sobre a testa. O empregado aproximou-se e Santiago fez-lhe sinal para a taça de Popeye, de baunilha também?, sim. Afinal para que é que havia de estar assim, animou-o Popeye, depressa arranjaria outro emprego, em toda a pane precisavam de criadas. Santiago contemplou as unhas: a Amalia era boa pessoa, quando o Chispas, a Teté ou eu estávamos mal dispostos, desabafávamos fazendo-lhe exigências e ela nunca fez queixa de nós aos velhos, sardento. Popeye mexeu o milk-shake com a palhinha, como é que te hei-de convencer a irmos a tua casa ouvir discos, cunhado?, sorveu a espuma.

 

- A tua velha foi fazer queixinhas à senadora por causa daquilo de San Marcos - disse.

 

- Até pode ir fazer queixinhas ao rei de Roma - disse Santiago.

 

- Se San Marcos os chateia tanto, matricula-te na Católica, que diferença te faz? - disse Popeye. - Ou na Católica são mais exigentes?

 

- Bem se ralam os meus velhos com isso - disse Santiago. Não gostam de San Marcos porque lá há mestiços e porque se faz política, só por isso.

 

- Andas com um feitio tramado - disse Popeye. - Estás sempre do contra, dizes mal de tudo, e tomas as coisas demasiadamente a peito. Não dês cabo da tua vida para nada, magricela.

 

- Mete os teus conselhos no bolso - disse Santiago.

 

- Não te armes tanto em sabichão, magricela - disse Popeye. Está bem que sejas vivo, mas isso não quer dizer que todos os outros sejam atrasados mentais. A noite passada trataste o Coco duma maneira que nem sei como é que ele aguentou.

 

- Se não me apetecer ir à missa, não tenho de dar explicações a esse sacristão - disse Santiago.

 

- Quer dizer que agora também estás armado em ateu - disse Popeye.

 

- Não estou armado em ateu - disse Santiago. - Lá porque não goste dos padres não quer dizer que não acredite em Deus.

 

- E que dizem lá em casa a não ires à missa? - perguntou PoPeye. - Que diz a Teté, por exemplo?

 

- Esta questão da criada anda-me a chatear, sardento - disse Santiago.

 

- Esquece-te disso, não sejas parvo - disse Popeye. - A propósito da Teté, porque é que ela não foi à praia esta manhã?

 

- Foi ao Regatas com umas amigas - disse Santiago. - Não sei porque é que não a metes na ordem.

 

- O coradinho, o das sardas - diz Ambrosio. - O filhito do senador. D. Emílio Arévalo, claro. Casou-se com ele?

 

- Não gosto de sardentos nem de ruços - fez uma careta a Teté.

 

- E ele é ambas as coisas. Pfff, que nojo.

 

- O que mais me custa é que a despediram por minha causa disse Santiago.

 

- Devias dizer era por causa do Chispas - consolou-o Popeye.

 

- Tu nem sabias o que era a ioimbina.

 

Ao irmão de Santiago chamavam agora só Chispas, mas antes, na época em que lhe dava para se mostrar no Terrazas a levantar pesos, chamavam-lhe Tarzan Chispas. Tinha sido cadete da Escola Naval uns meses e quando o expulsaram (por ter andado à pancada com um guarda-marinha, dizia ele) esteve uns bons tempos à boa vida, metido no jogo e na bebida e armado em desordeiro. Aparecia no Ovalo de San Fernando e dirigia-se ameaçador a Santiago, apontando para Popeye, Tono, Coco ou Lalo: vá lá a ver, sabichão, com qual destes queria medir as forças. Mas desde que começara a trabalhar no escritório de D. Fermín tinha assentado.

 

- Sei muito bem o que é, o que nunca tinha era visto - disse Santiago. - Achas que põe as mulheres loucas?

 

- Invenções do Chispas - murmurou Popeye. - Ele disse-te que as põe loucas?

 

- Põe, põe, mas, se a mão escapa, pode transformá-las em cadáveres, Menino Chispas - disse Ambrosio. - Não me meta em complicações. Olhe que se o seu papá o apanha, dá cabo de mim.

 

- E disse-te que com uma colherada qualquer gaja se abria toda?

 

- murmurou Popeye. - Histórias, magricela.

 

- Temos de experimentar - disse Santiago. - Mesmo que seja para ver se é verdade, sardento.

 

Calou-se, atacado de um risinho nervoso, e Popeye riu-se também. Acotovelavam-se, o que era difícil era descobrir com quem, excitados, enlouquecidos, aí é que estava, e a mesa e os mifk-shakes tremiam com as sacudidelas: mas que par de malucos, magricela. Que é que o Chispas lhe tinha dito quando lha dera? O Chispas e Santiago davam-se como o cão e o gato e sempre que podia o Chispas pregava partidas ao magricela e o magricela ao Chispas sempre que podia: se calhar era uma rasteira do teu irmão, magricela. Não, sardento, o Chispas tinha chegado a casa todo bem posto, ganhei rios de dinheiro no hipódromo, e, o que nunca acontecera, antes de se deitar enfiou-se no quarto de Santiago a aconselhá-lo: já é tempo de te sacu- dires, não tens vergonha de continuar virgem, já um homenzarrão?, e ofereceu-lhe um cigarro. Não fiques chateado, disse o Chispas, tens gaja?, Santiago mentiu-lhe que sim e o Chispas, preocupado: já é tempo de te desvirginares, magricela, palavra.

 

- Não te pedi já tanto que me levasses às pegas? - perguntou Santiago.

 

- Podes apanhar um esquentamento e o velho mata-me - disse o Chispas. -^- Além disso, os homens conquistam a sua queca à própria custa, e não a pagar. Armas em sabido em tudo e estás na lua a respeito de gajas, sabichão.

 

- Não armo nada em sabido - disse Santiago. - Ataco quando me atacam. Anda lá, Chispas, leva-me às pegas.

 

- Então porque é que discutes tanto com o velho? - disse o Chispas. - Fazes-lhe a vida num inferno a contrariá-lo em tudo.

 

- Só o contrario quando se põe a defender o Odría e os militares - disse Santiago. - Anda lá, Chispas

 

- E porque é que tu és contra os militares? - perguntou o Chispas. - E que raio de merda te fez o Odría a ti?

 

- Subiram ao Governo à força - disse Santiago. - O Odría meteu uma data de gente na cadeia.

 

- Só os apristas e os comunistas - disse o Chispas. - Foi mais que bom para eles, eu tinha-os fuzilado a todos. O país era um caos no tempo do Bustamante, as pessoas decentes não podiam trabalhar em paz.

 

- Então tu não és uma pessoa decente - disse Santiago. - Porque no tempo do Bustamante andavas à boa vida.

 

- Estás-te a candidatar a um sopapo, sabichão - disse o Chispas.

 

- Eu tenho as minhas ideias e tu as tuas - disse Santiago. - Anda lá, leva-me às pegas.

 

- Às pegas, nicles - disse o Chispas. - Mas vou ajudar-te a trabalhar uma gaja.

 

- E a ioimbina compra-se nas farmácias? - perguntou Popeye.

 

- Arranja-se por portas travessas - disse Santiago. - É proibida.

 

- Um bocadinho na coca-cola, num cachorro - disse o Chispas -, e esperas que comece a fazer efeito. E quando ela começar a ficar nervosinha, nessa altura depende de ti.

 

- E isso pode-se dar a uma de quantos anos, por exemplo, ó Chispas? - perguntou Santiago.

 

- Não hás-de ser tão bruto que a vás dar a uma de dez - riu-se o Chispas. - A uma de catorze já podes, mas poucochinho. Embora nessa idade não se abra, dá-te um gozo bestial.

 

- Será mesmo? - perguntou Popeye. - Não te terá ele dado um bocado de sal, de açúcar?

 

- Provei-a com a ponta da língua - disse Santiago. - Não cheira a nada, é um pozinho assim meio picante.

 

Na rua engrossara a multidão, que tentava entrar nos colectivos apinhados, nos expressos. Não faziam bicha, eram uma pequena turba que agitava as mãos diante dos autocarros de carapaça azul e branca que passavam sem se deterem. De súbito, entre os corpos, duas miúdas silhuetas idênticas, duas cabeleiras negras: as gémeas Vallerriestra. Popeye afastou a cortina e acenou-lhes um adeus, mas elas não o viram ou não o reconheceram. Batiam com os pés no chão, impacientemente, e as suas caritas frescas e brilhantes olhavam a cada momento para o relógio do Banco de Crédito, se calhar iam a alguma matinée da baixa, magricela. Cada vez que se aproximava um colectivo, avançavam para a paragem com ar resoluto, mas afastavam-nas sempre.

 

- Se calhar, vão sozinhas - disse Popeye. - Vamos à matinée com elas, magricela.

 

- Estás apaixonado pela Teté ou não, catavemo? - perguntou Santiago.

 

- A Teté é a minha única paixão - respondeu Popeye. - Claro que se em vez da matinée quiseres que vamos ouvir discos a tua casa, estou de acordo.

 

Santiago abanou a cabeça enfastiadamente: tinha arranjado uns cobres, ia levá-los à criada, ela vivia para ali, em Surquillo. Popeye abriu os olhos, à Amalia?, e desatou a rir, vais-lhe dar a tua mesada por os teus pais a terem despedido? Não era a mesada, Santiago partiu a palhinha em duas, tinha arrancado cinco libras ao velhote. E Teté levou um dedo à testa: direitinho para o manicómio, magricela. Despediram-na por minha causa, disse Santiago, que mal tinha dar-lhe umas coroas? Nem que estivesses apaixonado pela criada, magricela, cinco libras era um ror de dinheiro, então para isso levamos as gémeas ao cinema. Mas nesse momento as gémeas meteram-se num Morris verde, e Popeye agora é tarde, filho. Santiago pusera-se a fumar.

 

- Eu não acredito ’que o Chispas tenha dado ioimbina à namorada, inventou essa para armar em malandro - disse Popeye. - Tu eras capaz de dar ioimbina a uma rapariga séria?

 

- À minha namorada não - respondeu Santiago. - Mas porque não a uma sopeirita, por exemplo?

 

- E que é que vais fazer? -   sussurrou Popeye. - Vais dá-la a alguém ou vais deitá-la fora?

 

Estava a pensar deitá-la fora, sardento, e Santiago baixou a voz, e enrubesceu, depois pôs-se a pensar e tartamudeou, tinha tido uma ideia. Só para ver como era, sardento, que é que achava?

 

- Uma estupidez sem nome, com cinco libras pode-se fazer um milhar de coisas - disse Popeye. - Mas isso é lá contigo, a massa é tua.

 

- Anda comigo, sardento - disse Santiago. - É já aqui, em Surquillo.

 

- Mas depois vamos a tua casa ouvir discos - disse Popeye. E chamas a Teté.

 

- És mesmo um interesseiro de merda, sardento - disse Santiago.

 

- E se os teus velhos descobrem? - perguntou Popeye. - Ou o Chispas?

 

- Os meus velhos vão a Ancón e não voltam antes de segunda-feira - respondeu Santiago. - E o Chispas foi à quinta de um amigo.

 

- Imagina que lhe cai mal, que lhe dá um desmaio - disse Popeye.

 

- Damos-lhe poucochinho - disse Santiago. - Não sejas cagarola, sardento.

 

Nos olhos de Popeye tinha surgido uma luzinha, lembras-te de quando nos pusemos a espreitar a Amalia em Ancón, magricela? Do terraço via-se a casa de banho das criadas, na clarabóia duas caras juntas e imóveis e lá em baixo uma silhueta esfumada, um fato de banho preto, que boa a indiazinha, magricela. O par da mesa vizinha levantou-se e Ambrosio aponta a mulher: aquela era uma pega, menino, passava o dia n’A Catedral à procura de clientes. Viram o par sair para a Avenida Larco, viram-no atravessar a Calle Shell. A paragem estava agora deserta, expresso e colectivos passavam semivazios. Chamaram o criado, dividiram a conta, e como é que ele sabia que era pega? Porque, além de bar-restaurante, A Catedral também era pensão de pegas, menino, por trás da cozinha havia um quartito e alugavam-no a dois soles por hora. Avançaram pela Avenida Larco, a ver as garotas que saíam das lojas, as senhoras que arrastavam carrinhos de bebé a chiar. No parque, Popeye comprou a Última Hora e leu em voz alta as notícias, folheou os desportos, e ao passar defronte de La Tiendecita Blanca olá, Lalo. Na Alameda Ricardo Palma amarrotaram o jornal e deram-lhe uns toques de pé até que o desfizeram e deixaram abandonado numa esquina de Surquiflo.

 

- Só me faltava que a Amalia estivesse furiosa e me mandasse passear - disse Santiago.

 

- Cinco libras é uma fortuna - disse Popeye. - Vai-te receber como um rei.

 

Estavam perto do cinema Miraflores, em frente do mercado de quiosques de madeira, esteiras e toldos, onde vendiam flores, cerâmicas e frutas, e chegavam à rua estampidos de tiros, alaridos índios, vozes de miúdos: Morte no Arizona. Pararam para ver os cartazes: uma fita de cowboys, magricela.

 

- Estou um bocado inquieto - disse Santiago. - Esta noite não preguei olho, deve ser isso.

 

^ - Estás inquieto porque te arrependeste - disse Popeye. - Estás-me a aldrabar, não vai acontecer nada, não sejas pateta, e na altura precisa quem se arrepende és tu. Vamos ao cinema, então.

 

- Não me arrependi, já passou - disse Santiago. - Espera aí, vou ver se os velhos já se foram embora.

 

O carro não estava lá, já tinham saído. Entraram pelo jardim, passaram pela fonte de azulejos, e se ela estivesse a dormir, magricela? Acordavam-na, sardento. Santiago abriu a porta, o clique do interruptor e as trevas converteram-se em alcatifas, quadros, espelhos, mesinhas com cinzeiros, candeeiros. Popeye ia a sentar-se, mas Santiago vamos lá acima ao meu quarto. Um átrio, um escritório, uma escada com corrimãos de ferro. Santiago deixou Popeye no patamar, entra e põe música, ia chamá-la. Galhardetes do colégio, um retrato do Chispas, outro da Teté com o vestido da primeira comunhão, linda, pensou Popeye, um porco orelhudo e trombudo sobre a cómoda, o mealheiro, quanto dinheiro teria? Sentou-se na cama, acendeu o rádio da mesa-de-cabeceira, uma valsa de Felipe Pinglo, passos, o magricela: já estava, sardento. Tinha-a encontrado acordada, traz-me cá acima umas coca-colas, e riram-se, schiu, aí vinha ela, seria ela? Sim, lá estava ela no umbral da porta, surpreendida, examinando-os com desconfiança. Tinha-se pregado contra a porta, um casaco de malha cor-de-rosa e uma camisola, não dizia nada. Era a Amalia e não era, pensou Popeye, quem diria que era a mesma do avental azul que circulava na casa do magricela com bandejas e espanadores nas mãos? Tinha agora os cabelos embaraçados, boa tarde menino, uns sapatões de homem e via-se que estava assustada: olá, Amalia.

 

- A mamã contou-me que te tinhas ido embora - disse Santiago. - Tenho pena de que vás.

 

Amalia afastou-se da porta, fitou Popeye, como estava, menino, que lhe sorriu amistosamente da calçada: não tinha ido embora por vontade dela, a Sr.1 D. Zoila é que a tinha despedido. Mas porquê, minha senhora, e a Sr.” D. Zoila porque sim, faz as malas agora mesmo. Falava e ia alisando o cabelo com as mãos, ajeitando a blusa. Santiago escutava-a, com expressão de embaraço. Ela não queria deixar a casa, menino, ela tinha pedido por tudo à senhora.

 

- Põe a bandeja na mesinha - disse Santiago. - Espera, estamos a ouvir música.

 

Amalia pôs a bandeja com os copos e as coca-colas em frente ao retrato do Chispas e ficou de pé junto da cómoda, com cara de intrigada. Estava com o vestido branco e os sapatos sem salto da farda, mas sem avental nem touca. Porque é que ficava ali especada?, anda cá, senta-te, havia espaço. Sentar-se, ela?, e largou uma risadinha, a senhora não gostava que ela entrasse no quarto dos meninos, se calhar, não sabia? Não sejas parva, a minha mãe não está, a voz de Santiago tornou-se tensa de repente, nem ele nem Popeye fariam queixa dela, senta-te, tonta. Amalia tornou a rir-se, agora dizia isso, mas, à primeira que se zangasse, fazia queixa dela e a senhora dizia-lhe das boas. Palavra que o magricela não faz queixa de ti, disse Popeye, não te faças rogada e senta-te. Amalia olhou para Santiago, olhou para Popeye, sentou-se numa esquina da cama e agora estava séria. Santiago levantou-se, dirigiu-se à bandeja, vê lá não te escape a mão, pensou Popeye, e olhou para Amalia: gostava da maneira como aqueles cantavam? Apontou para o rádio, estupendo, não é? Gostava, cantavam muito bem. Tinha as mãos nos joelhos, mantinha-se muito empertigada, tinha semicerrado os olhos, como que para ouvir melhor: eram os Trovadores dei Norte, Amalia. Santiago continuava a servir as coca-colas e Popeye espiava-o, inquieto. Amalia sabia dançar? Valsas, boleros, marchas? Amalia sorriu, pôs-se séria, voltou a sorrir: não, não sabia. Arrimou-se um bocadinho à borda da cama, cruzou os braços. Os seus movimentos eram forçados, como se a roupa lhe estivesse apertada ou lhe picasse as costas; a sua sombra não se mexia no chão.

 

- Trouxe-te isto para comprares qualquer coisa - disse Santiago.

 

- A mim? - Amalia olhou as notas, sem as agarrar. - Mas se a Sr.” D. Zoila me pagou o mês completo, menino.

 

- Não é a minha mãe que to manda - disse Santiago. - Sou eu que to ofereço.

 

- Mas o menino não vai oferecer-me do seu dinheiro - tinha as faces coradas, olhava confundida para o magricela. - Como é que eu posso aceitar?

 

- Não sejas tonta - insistiu Santiago. - Anda lá, Amalia.

 

Deu-lhe o exemplo: levantou o copo e bebeu. Agora estavam a tocar Siboney, e Popeye tinha aberto a janela: o jardim, as arvorezinhas da rua iluminadas pelo candeeiro da esquina, a superfície agitada da fonte, o friso de azulejos a cintilar, oxalá não lhe aconteça nada, magricela. Bom, então à sua saúde, menino, e Amalia bebeu um grande gole, suspirou e afastou o copo dos lábios semivazio: óptima, geladinha. Popeye aproximou-se da cama.

 

- Se quiseres, ensinamos-te a dançar - disse Santiago. - Assim, quando tiveres namorado, podes ir com ele aos bailes sem desacertar.

 

- Se calhar, já tem namorado - disse Popeye. - Confessa, Amalia, já tens?

 

- Olha como ela se ri, sardento - Santiago agarrou-lhe num braço. - Claro que tens, descobrimos o teu segredo, Amalia.

 

- Tens, tens - Popeye deixou-se cair ao pé dela, agarrou-lhe no outro braço. - Olha como ela se ri, a marota.

 

Amalia retorcia-se de riso e sacudia os braços, mas eles não a largavam, tinha agora, menino, não tinha nada, dava-lhes cotoveladas para os afastar, Santiago abraçava-a pela cintura, Popeye pôs-lhe uma mão no joelho e Amalia uma palmada: isso é que não, menino, nada de mexer nela. Mas Popeye voltou à carga: marota, marota. Se calhar, até sabia dançar e tinha-lhes dito que não, vamos lá a ver, confessa: bom, menino, aceitava o dinheiro. Agarrou nas notas que se amarrotaram entre os seus dedos, para que ele visse que já não se fazia rogada e guardou-as no bolso do casaco de malha. Mas tinha pena de que ele ficasse sem o seu dinheiro, agora não teria nem para a matinée de domingo.

 

- Não te preocupes - disse Popeye. - Se não tiver, nós lá no bairro fazemos um peditório e convidamo-lo.

 

- Como amigos que são, pois claro - e Amalia abriu os olhos, como se estivesse a recordar. -•- Mas entrem, mesmo que seja só um instante. Desculparão a pobreza.

 

Não lhes deu tempo para recusarem, entrou em casa a correr e eles seguiram-na. Manchas e fuligem, umas cadeiras, gravuras, duas camas por fazer. Não podiam demorar, Amalia, tinham um compromisso. Ela anuiu, esfregava com a saia a mesa do centro do quarto, só um bocadinho. Um brilho malicioso faiscou-lhe nos olhos, não se importavam de esperar um bocadinho por ela enquanto conversavam?, ia comprar uma coisa para eles, já vinha. Santiago e Popeye olharam-se assustados, deslumbrados, era outra pessoa, magricela, tinha ficado louquinha. As suas gargalhadas ressoavam por todo o quarto, tinha a cara suada e lágrimas nos olhos, os seus esforços contagiavam a cama com um calafrio guinchante. Agora ela também acompanhava a música com palmas: sabia, sabia. Uma vez tinham-na levado a Agua Dulce e tinha dançado num sítio onde havia uma orquestra a tocar, está louquíssima, pensou Popeye. Levantou-se, apagou o rádio, pôs o gira-discos, voltou à cama. Agora queria vê-la dançar, que satisfeita que tu estás, marota, anda, vamos, mas Santiago levantou-se: ia dançar com ele, sardento. Espertalhão, pensou Popeye, abusas por ela ser tua criada, e se aparecesse a Teté?, e sentiu vergarem-se-lhe os joelhos e vontade de ir embora, espertalhão. Amalia tinha-se posto de pé e evolucionava pelo quarto, sozinha, aos encontrões aos móveis, entorpecida e pesada, cantarolando a meia voz, volteando às cegas, até que Santiago a abraçou. Popeye apoiou a cabeça na almofada, estendeu a mão e apagou o candeeiro, escuridão, logo a seguir o brilho do lampião da rua iluminou levemente as duas silhuetas. Popeye viu-as flutuar em círculo, ouviu a voz lamurienta de Amalia e meteu a mão no bolso, estava a ver que sabia dançar, menino? Quando o disco acabou e Santiago veio sentar-se na cama, Amalia ficou encostada à janela, de costas para eles, a rir-se: o Chispas tinha razão, olha como ela ficou; cala-te, espertalhão. Falava, cantava e ria como se estivesse bêbeda, nem os via, entortavam-se-lhe os olhos, sardento, Santiago estava um bocado inquieto, e se ela desmaia? Deixa-te de parvoíces, disse-lhe Popeye ao ouvido, trá-la para a cama. A sua voz era resoluta, urgente, estava em pau, magricela, e tu não?, angustiada, espessa: ele também, sardento. Despi-la-iam, apalpá-la-iam, comê-la-iam, magricela. Meio corpo inclinado sobre o jardim, Amalia balançava-se vagarosamente, murmurando qualquer coisa, e Popeye divisava-lhe a silhueta recortada contra o céu escuro: outro disco, outro disco. Santiago endireitou-se, um fundo de violinos e a voz de Leo Marini, autêntico veludo pensou Popeye, e viu Santiago dirigir-se à varanda. As duas sombras uniram-se, enganou-o e agora tinha-o a tocar violino em grande forma, vais-me pagar esta partida, meu vivaço. Agora nem se mexiam, a indiazinha era atarracada e parecia pendurada no magricela, devia estar a apalpá-la que era uma beleza, mas que raio de porra, e adivinhou a voz de Santiago, não estás cansadinha?, entrecortada e frouxa e meio estrangulada, não se queira deitar?, trá-la para aqui, pensou. Estavam ao pé dele, Amalia dançava como uma sonâmbula, tinha os olhos fechados, as mãos do magricela subiam, desciam, desapareciam nas costas dela e Popeye não lhes distinguia as caras, estava a beijá-la e ele na plateia, mas que raio de porra, sirvam-se, meninos.

 

- Trouxe-lhes também estas palhinhas - disse Amalia. - É assim que os meninos a bebem, não é?

 

- Para que é que te estiveste a incomodar? - disse Santiago. Nós não demorávamos nada.

 

Estendeu-lhes as coca-colas e as palhinhas, arrastou uma cadeira e sentou-se defronte deles; tinha-se penteado, tinha posto um cinto e abotoado o casaco de malha e via-os beber. Ela não bebia nada.

 

- Não devias ter gasto assim o teu dinheiro, tonta - disse Popeye..

 

- Não é meu, é o que o Menino Santiago me deu - riu-se Amalia. - Para ao menos lhes fazer uma gentileza, pois então.

 

A porta da rua estava aberta, lá fora começava a escurecer e ouvia-se por vezes ao longe passarem os eléctricos. Muitas pessoas iam e vinham pelo passeio, vozes, risos, algumas caras paravam um segundo para ver.

 

- Lá estão a sair das fábricas - disse Amalia. - É pena que o laboratório do seu paizinho não seja para estes lados, menino. Para a Avenida Argentina vou ter de tomar o eléctrico e depois o autocarro.

 

- Vais trabalhar para o laboratório? - perguntou Santiago.

 

- O seu paizinho não lhe disse? - perguntou Amalia.- Pois vou, a partir de segunda-feira.

 

Ela ia a sair de casa com a mala e encontrou D. Fermín, queres que te arranje trabalho no laboratório?, e ela claro que quero, D. Fermín, seja onde for, e então ele chamou o Menino Chispas e disse-lhe telefona ao Carrillo e ele que lhe arranje um lugar: que gozo, pensou Popeye.

 

- Ainda bem - disse Santiago. - No laboratório com certeza que estás melhor.

 

Popeye puxou do seu maço de Chesterfield, ofereceu um cigarro a Santiago, hesitou um segundo, e outro a Amalia, mas ela não fumava, menino.

 

- Se calhar, fumas, e estás a enganar-nos como no outro ™a ~ disse Popeye. - Disseste-nos que não sabias dançar e sabias.

 

Viu-a empalidecer, palavra que não, menino, ouviu-a tartamudear, sentiu que Santiago se remexia na cadeira e pensou, meti água. Amalia tinha baixado a cabeça.

 

- Era a brincar - disse, e ardiam-lhe as faces. - Não tens nada de que te envergonhar, aconteceu alguma coisa, por acaso?

 

Ela foi recobrando as cores, a voz: não queria nem lembrar-se, menino. Que mal que se tinha sentido, no dia seguinte, ainda se lhe misturava tudo na cabeça e as coisas dançavam-lhe nas mãos. Levantou a cara, olhou-os com timidez, com inveja, com admiração: a eles nunca lhes faziam nada as coca-colas? Popeye olhou para Santiago, Santiago olhou para Popeye e olharam ambos para Amalia: tinha vomitado toda a noite, nunca mais voltava a beber coca-cola na vida. E, no entanto, tinha bebido cerveja e nada, e pasteurina e também nada, e pepsicola e muito menos, aquela coca-cola não estaria estragada, menino? Popeye mordeu a língua, puxou do lenço e assoou-se furiosamente. Apertava o nariz e sentia que o estômago lhe ia rebentar: o disco tinha acabado, agora sim, e tirou rapidamente a mão do bolso das calças. Eles continuavam submersos na semiobscuridade, venham, venham, sentem-se um bocadinho, e ouviu Amalia: a música já tinha acabado, menino. Uma voz difícil, porque é que o outro menino tinha apagado a luz, respirando com dificuldade, que a acendessem senão ia-se embora, queixando-se sem forças, como se um sono ou aborrecimento invencível a apagasse, às escuras não queria, assim não gostava. Eram uma silhueta sem forma, uma sombra mais entre as outras sombras do quarto e parecia que estavam a fingir que jogavam à pancada, entre a mesa-de-cabeceira e a cómoda. Levantou-se, aproximou-se deles tropeçando, vai para o jardim, sardento, e ele olha para este, chocou com qualquer coisa, doeu-lhe o tornozelo, não ia nada, trá-la para a cama, largue-me, menino. A voz de Amalia elevava-se, que é que lhe deu, menino?, enfurecia-se e agora Popeye tinha-lhe encontrado os ombros, largue-me, que a largasse, e arrastava-a, que atrevido, que abusador, os olhos fechados, a respiração apressada, e rebolou com eles por cima da cama: já estava, magricela. Ela riu-se, não me faça cócegas, mas os braços e as pernas continuavam a lutar e Popeye riu-se angustiosamente: sai daqui, sardento, deixa-me. Não saía nada, porque é que havia de sair, e havia uma confusão de roupas e peles molhadas na sombra, um revolver de pernas, mãos, braços e cobertores. Estavam a sufocá-la, menino, não podia respirar: como tu te ris, marota. Largue-me, largaram-na, uma voz sufocada, um arquejo entrecortado e animal, e de repente schiu, empurrões e gritinhos, e Santiago schiu, e Popeye schiu: a porta da rua schiu. A Teté, pensou, e sentiu que o corpo se lhe derretia. Santiago tinha corrido à janela e ele não conseguia mexer-se: a Teté, a Teté.

 

- Agora é que vamos mesmo, Amalia - Santiago levantou-se, largou a garrafa na mesa. - Obrigado pelo convite.

 

- Obrigada eu, menino - disse Amalia. - Por ter vindo e por aquilo que me trouxe.

 

- Vem visitar-nos lá a casa - disse Santiago.

 

- Claro que vou, menino - disse Amalia. - E dê muitas saudades minhas à Menina Teté.

 

- Põe-te a mexer daqui, arranja-te, de que é que estás à espera?

- disse Santiago. - E, tu, compõe a camisa e dá uma penteadela, idiota.

 

Acabava de acender a lâmpada, alisava os cabelos, Popeye enfiava a fralda da camisa nas calças e olhava-o, aterrado: fuja, fuja do quarto. Mas Amalia continuava sentada na cama e tiveram de a erguer em peso, cambaleou com uma expressão idiota, amparou-se à mesa-de-cabeceira. Depressa, depressa, Santiago esticava a colcha da cama e Popeye correu a desligar o gira-discos, sai do quarto, idiota. Não conseguia mexer-se, olhava-os com os olhos cheios de espanto e escorregava-lhes das mãos e nisto abriu-se a porta e eles largaram-na: olá, mamã. Popeye viu a D. Zoila e tentou sorrir, de calças e com um turbante escarlate, boa noite, minha senhora, e os olhos da senhora sorriram e olharam para Santiago, para Amalia, e o seu sorriso foi diminuindo e morreu-lhe: olá, papá. Viu, por trás da D. Zoila., o rosto cheio, os bigodes e as patilhas grisalhas de D. Fermín, olá magricela, atua mãe arrependeu-se de, olá Popeye, estavas aqui? D. Fermín entrou no quarto, uma camisa sem colarinho, um casaco de Verão, mocassinas, e estendeu a mão a Popeye: como está, senhor?

 

- Não estás deitada, tu? - disse a D. Zoila. - Já passa da meia-noite.

 

- Estávamos mortos de fome e acordei-a para nos fazer umas sanduíches - disse Santiago. - Não estavam para passar a noite em Ancón?

 

- A tua mãe esqueceu-se de que tinha convidados para o almoço, amanhã - disse D. Fermín. - As distracções da tua mãe, como sempre.

 

Pelo rabo do olho, Popeye viu Amalia sair com a bandeja nas mãos, olhava para o chão e caminhava direitinha, vá lá, vá lá.

 

- A tua irmã ficou em casa dos Vallarino - disse D. Fermín. Resultado, lá se foram por água abaixo os meus projectos de descansar este fim-de-semana.

 

- Já é meia-noite, minha senhora? - disse Popeye. - Vou-me já embora. Não demos pelas horas, julgava que fossem dez.

 

- Que é feito do senador? - perguntou D. Fermín. - Há séculos que não aparece no Clube.

 

Saiu com eles até à rua e aí Santiago deu-lhe uma palmada no ombro e Popeye acenou-lhe adeus: Chau, Amalia. Afastaram-se em direcção à linha do eléctrico. Entraram no El Triunfo para comprar cigarros; abarrotava já de bebedolas e jogadores de bilhar.

 

- Cinco libras para nada, uma figura bestial - disse Popeye. No fim fizemos um favor à sopeira, agora o teu velho arranjou-lhe um emprego melhor.

 

- Mesmo assim, tratámo-la mal -- disse Santiago. - Não me arrependo dessas cinco libras.

 

Não é por nada, mas estás nas lonas - disse Popeye. – Que é que nós lhe fizemos? Já lhe deste cinco libras, deixa-te lá de remorsos.

 

Seguindo a linha do eléctrico, desceram até à Ricardo Palma e caminharam fumando sob as árvores da alameda, entre filas de automóveis.

 

- Não te deu vontade de rir quando ela disse aquilo das coca-colas? - riu-se Popeye. - Achas que ela é assim tão parva ou estava-se a fazer? Não sei como é que me consegui aguentar, cá por dentro, mijava-me a rir.

 

- Vou-te fazer uma pergunta - diz Santiago. - Tenho cara de sacana?

 

- E eu vou-te dizer uma coisa - disse Popeye. - Não achas que ela nos foi comprar as coca-colas só por esperteza? A lançar-se, como quem não quer a coisa, para ver se repetíamos o que fizemos na outra noite.

 

- Tens um espírito podre, sardento - disse Santiago.

 

- Mas que pergunta - diz Ambrosio. - Claro que não, menino.

 

- Está bem, a sopeira é uma santa e eu tenho um espírito podre

 

- disse Popeye. - Então vamos a tua casa ouvir discos.

 

- Fizeste-o por mim? - perguntou D. Fermín. - Por mim, negro? Pobre infeliz, pobre doido.

 

- Juro-lhe que não, menino - ri-se Ambrosio. - Está a brincar comigo?

 

- A Teté não está em casa - disse Santiago. - Foi ao cinema com umas amigas.

 

- Ouve, não sejas sacana, magricela - disse Popeye. - Estás-me a mentir, não? Tu prometeste, magricela.

 

- Queres dizer que os sacanas não têm cara de sacanas, Ambrosio

 

- diz Santiago.

 

O tenente nem sequer bocejou durante a viagem; passou todo o tempo a falar da revolução, a explicar ao sargento que conduzia o jipe como agora que Odría tinha subido ao Poder os apristas entrariam nos eixos, e a fumar uns cigarros que cheiravam a guano. Tinham saído de Lima de madrugada e só pararam uma vez, em Surco, para mostrar o salvo-conduto a uma patrulha que controlava os veículos na estrada. Entraram em Chincha às sete da manhã. A revolução ali nem se notava: as ruas estavam animadas pelos miúdos das escolas, não se via tropa nas esquinas. O tenente saltou para o passeio, entrou no café-restaurante Mi Pátria, ouviu no rádio, com um fundo de marcha militar, o mesmo comunicado que ouvia há dois dias. Apoiando os cotovelos no balcão, pediu um café com leite e uma sanduíche de queijo amanteigado. Perguntou ao homem de camisola e de cara avinagrada que o atendeu se conhecia Cayo Bermúdez, um comerciante de cá. Ia, revolveu o homem os olhos, prendê-lo? Era aprista, o tal Bermúdez? Sabia lá, não se metia em política. Melhor, a política era para os desocupados e não para quem trabalhava, o tenente procurava-o por um assunto pessoal. Aqui não o encontraria, nunca cá vinha. Vivia numa casita amarela, por trás da igreja. Era a única dessa cor, as casas ao lado eram brancas ou cinzentas e havia também uma castanha. O tenente bateu à porta e esperou e ouviu passos e uma voz quem é.

 

- O senhor Bermúdez está? - perguntou o tenente.

 

A porta abriu-se rangendo e adiantou-se uma mulher: uma indiazeca de cara amulatada e cheia de manchas, senhor. A gente em Chincha dizia quem te viu e quem te vê. Porque em rapariga era apresentável. Como o dia da noite, digo-lhe eu, o que ela mudou, senhor. Tinha os cabelos revoltos, o xale de lã que lhe cobria os ombros parecia serapilheira.

 

- Não está - olhava de soslaio, com uns avarentos olhinhos receosos. - Para que era? Sou a mulher dele.

 

- Demorará muito? - o tenente examinou a mulher com surpresa, com desconfiança. - Posso esperar por ele?

 

Ela afastou-se da porta. Lá dentro, o tenente sentiu-se enjoado entre os móveis maciços, os jarrões sem flores, a máquina de costura e as paredes consteladas de pequenas sombras ou buracos ou moscas. A mulher abriu uma janela, uma língua de sol entrou. Era tudo velho, sobravam coisas no quarto. Caixotes arrumados contra os cantos, pilhas de jornais. A mulher murmurou com licença e esfumou-se na boca escura de um corredor. O tenente ouviu um canário a cantar algures. Se era realmente a mulher dele, senhor? Mulher dele perante Deus, claro que sim, uma história que agitou Chincha. Como começou, senhor? Uma série de anos atrás, quando a família Bermúdez saiu da propriedade dos de Ia Flor. A família, quer dizer o Abutre, a beata da D. Catalina e o filho, D. Cayo, que nessa altura ainda devia gatinhar. O Abutre tinha sido capataz da propriedade e, quando veio para Chincha, dizia-se que os de Ia Flor o tinham despedido por roubar. Em Chincha abriu uma casa de penhores. Quando alguém tinha falta de dinheiro, ia ter com o Abutre, preciso de tanto, o que é que me dás por penhor, este anelzinho, este relógio, e, se a pessoa não pagava, ele ficava com o penhor, e as comissões do Abutre eram tão grandes que os seus devedores morriam. Por isso é que lhe chamavam o Abutre, senhor: vivia dos cadáveres. Encheu-se de dinheiro em poucos anos e fechou com chave de ouro quando o Governo do general Benavides começou a prender e a deportar apristas; o subcomissário Núnez dava a ordem, o capitão Rascachucha metia o aprista na gaiola e corria à família, o Abutre arrematava-lhe as coisas e depois repartiam o bolo entre os três. E com o dinheiro o Abutre tornou-se importante, senhor, até foi alcaide de Chincha e aparecia de chapéu de feltro na Plaza de Armas, nos desfiles das Fiestas Pátrias. E encheu-se de presunção. Deu-lhe para o filho andar sempre com sapatos calçados e não se misturar com mestiços. Em miúdos jogavam futebol, roubavam fruta nas hortas, Ambrosio metia-se lá em casa e o Abutre não se importava. Quando ficaram endinheirados, em compensação, expulsaram-no e repreendiam D. Cayo quando o apanhavam com ele. Criado dele? Nada disso, senhor, amigo dele, mas só quando eram deste tamanho. A negra estava nessa altura instalada perto da esquina onde D. Cayo vivia e ele e Ambrosio passavam a vida a fazer travessuras. Depois o Abutre, senhor, a vida, separou-os. A D. Cayo meteram-no no Colégio José Pardo, e a Ambrosio e ao Perpétuo, a negra, envergonhada com a história do Trifulcio, levou-os para Mala, e quando voltaram a Chincha D. Cayo era inseparável dum lá do colégio, o Serrano. Ambrosio encontrava-o na rua e já não o tratava por tu, tratava-o por você. Nas representações do Colégio José Pardo, D. Cayo recitava, lia o seu discursozito, nos desfiles levava o estandarte. O menino prodígio de Chincha, diziam, um futuro cérebro, e diziam que ao Abutre lhe crescia água na boca quando falava do filho e que dizia há-de ir longe. O certo é que foi mesmo, não é, senhor?

 

- Acha que ele se demora? - o tenente esmagou o cigarro no cinzeiro. - Não sabe onde é que ele foi?

 

- E eu também me casei - diz Santiago. - E tu, não te casaste?

 

- Às vezes vem almoçar tardíssimo - murmurou a mulher. Se

 

quiser, deixe-me o recado.

 

- O menino também, tão novo? - perguntou Ambrosio.

 

- Eu espero - disse o tenente. - Oxalá não se demore muito.

 

Já estava no último ano do colégio, o Abutre ia mandá-lo para Lima estudar para advogado e D. Cayo tinha vocação para isso, diziam. Ambrosio vivia nessa altura no bairro pobre que ficava ao pé da saída de Chincha, senhor, que dava para o que viria a ser Grocio Prado. E ali o tinha apanhado uma vez, e ali mesmo tinha percebido que ele tinha feito gazeta às aulas, e ali mesmo tinha pensado quem será a gaja. A montá-la? Não, senhor, a olhá-la com olhos de louco. Fazia-se distraído, como se estivesse a guardar os porcos, como quem estivesse à espera. Tinha deixado os livros no chão, estava ajoelhado, os olhos entortavam-se-lhe para o bairro e Ambrosio dizia quem é, quem será. Era a Rosa, senhor, a filha da Túmula, a leiteira. Uma magrita sem nada de especial, nessa altura parecia branquinha em vez de índia. Há pessoas que nascem feias e depois melhoram, a Rosa começou por ser razoável e acabou em coiro. Razoável, nem bonita nem feia, uma daquelas a quem um branco faz uma vez um favor e se já te vi esqueci-me. As maminhas ainda a despontar, um corpo n o vinho e mais nada, mas tão porca que nem para a missa se arranjava. Andava por Chincha a tocar o burro com as bilhas, senhor, a vender cabaças de casa em casa. A filha da Túmula e o filho do Abutre, imagine-se a escandaleira, senhor. O Abutre tinha já uma loja de ferreiro e um armazém e diziam que dizia quando o rapaz voltar de Lima já doutor há-de levantar os negócios que é uma beleza. A D. Catalina andava sempre na igreja, íntima do padre, lotarias a favor dos pobres, Acção Católica. E o filho às voltas com a filha da leiteira, era coisa que não cabia na cabeça a ninguém. Mas foi assim, senhor. Lá lhe terá chamado a atenção a sua maneirinha de caminhar ou qualquer coisa, há quem prefira os animaizitos rafeiros aos de raça, dizem. Deve ter pensado, ando atrás dela, gozo o meu bocado e deixo-a, e ela devia aperceber-se de que o branquinho estava embeiçado por ela e devia pensar deixo-o andar atrás de mim, gozar um bocado e apanho-o. O caso é que D. Cayo caiu, senhor: que desejava? O tenente abriu os olhos, pôs-se em pé de um salto.

 

- Desculpe, deixei-me dormir - passou a mão pela cara, tossiu.

- O senhor Bermúdez?

 

Junto da horrível mulher estava um homem de cara ressequida e ácida, quarentão, em mangas de camisa, com uma maleta debaixo do braço. A boca larguíssima das calças tapava-lhe os sapatos. Umas calças de marinheiro, chegou a pensar o tenente, de palhaço.

 

- Para o servir - disse o homem, parecendo aborrecido ou contrariado. - Está à espera há muito tempo?

 

- Vá fazendo as malas - disse o tenente, jovialmente. - Vou levá-lo a Lima.

 

Mas o homem não se alterou. A sua cara não sorriu, os olhos não se surpreenderam nem se alarmaram nem se alegraram. Observavam-no com a anterior monotonia indiferente.

 

- A Lima? - perguntou devagar, as pupilas sem luz. - Quem é que precisa de mim em Lima?

 

- Nada mais, nada menos que o coronel Espina - disse o tenente, com uma vozinha triunfal. - O ministro do Governo, nem mais nem menos.

 

A mulher abriu a boca, Bermúdez nem pestanejou. Permaneceu inexpressivo, a seguir um indício de sorriso alterou o sonolento enfado do seu rosto, um segundo depois, os olhos voltaram a desinteressar-se e a aborrecer-se. É o fígado, pensou o tenente, um amargurado, com a mulher que lhe saiu na rifa não admira. Bermúdez atirou com a maleta para cima do sofá.

 

- Pois é, ontem ouvi dizer que o Espina é um dos ministros da Junta - puxou de um maço de Inças, ofereceu um cigarro enfastiado ao tenente. - O Serrano não lhe disse porque é que me quer ver?

 

- Só disse que precisava de si com urgência - o Serrano?, pensou o tenente. - E que o levasse a Lima, mesmo que tivesse de apontar-lhe uma pistola ao peito.

 

Bermúdez deixou-se cair num cadeirão, cruzou as pernas, expeliu uma baforada de fumo que lhe enevoou a cara e, quando o fumo se desvaneceu, o tenente viu que lhe sorria como se lhe estivesse a fazer um favor, pensou, como se estivesse a fazer troça de mim.

 

- Não me convém sair hoje de Chincha - disse, com uma frouxidão dissolvente. - Há um negócio que está para se fechar numa propriedade de cá.

 

- Quando se é chamado pelo ministro do Governo, não há mas nem meio mas - disse o tenente. - Faça favor, senhor Bermúdez.

 

- Dois tractores novos, uma boa comissão - explicava Bermúdez às moscas ou buracos ou sombras. - Hoje não estou para passeios a Lima.

 

- Tractores? - o tenente fez um gesto irritado. - Pense um bocadinho com a cabeça, faça favor, e não percamos mais tempo.

 

Bermúdez deu uma fumaça, semicerrando os olhinhos frios, e expeliu o fumo sem pressas.

 

- Quando se anda aflito com as letras, não há outro remédio senão pensar nos tractores - disse, como se não visse nem ouvisse. Diga ao Serrano que eu apareço lá um dia destes.

 

O tenente olhava-o consternado, divertido, confundido: nesta altura teria de puxar da pistola e apontar-lha ao peito, Sr. Bermúdez, nesta altura iam-se rir dele. Mas D. Cayo, como se nada fosse, senhor, fazia gazeta e aparecia no bairro de lata e as mulheres apontavam-no, Rosa, segredavam e riam-se para ele, Rosinha, olha quem ali vem. A filha da Túmula andava inchadíssima, senhor. Imaginem, o filho do Abutre a vir ali para a ver, convencidíssima. Não saía para conversar com ele, fazia-se contrariada, corria para o pé das amigas, e era toda risos, toda coqueteria. Ele não se ralava com a arrogância da moça, até parecia que isso o inflamava ainda mais. Uma sabida de primeira, a filha da Túmula, senhor, e a mãe nem é bom falar, qualquer pessoa percebia, mas ele não. Aguentava, esperava, voltava ao bairro pobre, a indiazita havia de cair qualquer dia, negro; ele é que caiu, senhor. Não vê que ela o repudia em vez de agradecer-lhe que a ande a namorar, D. Cayo? Mande-a para o diabo, D. Cayo. Mas ele era como se lhe tivessem dado uma poção qualquer, sempre a persegui-la, e o povo começou a mexericar. Sabe lá o que se diz por aí, D. Cayo. E ele cagando, ele fazia o que lhe dava na cabeça, e a cabeça dizia-lhe que se atirasse à moça, claro. Pois muito bem, ninguém tinha nada a reprovar-lhe, qualquer branco se apaixona por uma indiazita, faz lá a coisa com ela e ninguém tem nada com isso, não é, senhor? Mas D. Cayo perseguia-a como se fosse a sério, não era loucura? E mais loucura era a Rosa dar-se ao luxo de o desprezar. Parecia que se dava a esse luxo, senhor.

 

- Já metemos gasolina, já mandei dizer para Lima que chegávamos por volta das três e meia - disse o tenente. - Quando quiser, senhor Bermúdez.

 

Bermúdez tinha mudado de camisa e vestia um fato cinzento. Levava uma pasta na mão, um chapeuzinho puído, óculos escuros.


- É toda a sua bagagem? - perguntou o tenente.

 

- Faltam quarenta malas - rosnou Bermúdez, sem abrir a boca.

- Vamos embora, quero voltar a Chincha hoje mesmo.

 

A mulher olhava para o sargento, que via o óleo ao jipe. Tinha tirado o avental, o vestido apertado desenhava-lhe a barriga curva, as ancas que se derramavam. Desculpe, estendeu-lhe a mão o tenente, roubar-lhe o seu marido, mas ela não se riu. Bermúdez tinha entrado para o banco de trás do jipe e ela olhava-o como se o odiasse, pensou o tenente, ou nunca mais o voltasse a ver. Entrou no jipe, viu Bermúdez acenar um vago adeus à mulher, e partiram. O sol ardia, as ruas estavam desertas, um vapor nauseabundo desprendia-se do pavimento, os vidros das casas cintilavam.

 

- Há muito tempo que não vai a Lima? - tentou ser amável o tenente.

 

- Vou duas ou três vezes por ano, por causa dos negócios - disse, sem afecto, sem graça, a vozinha preguiçosa, mecânica, aborrecida da vida. - Represento aqui umas firmas agrícolas.

 

- Não chegámos a casar, mas eu também tive mulher - diz Ambrosio.

 

-- E como é que os seus negócios não lhe correm bem? - perguntou o tenente. - Os fazendeiros daqui são ricaços, não são? Muito algodão, não é?

 

- Tiveste? - pergunta Santiago. - Zangaste-te com ela?

 

- Noutros tempos corriam bem - disse Bermúdez; só não é o homem mais antipático do Peru porque o coronel Espina ainda é vivo, pensou o tenente, mas este vinha logo a seguir ao coronel. Com o controlo de trocas, os algodoeiros deixaram de ganhar o que ganhavam e agora é preciso suar sangue para lhes vender uma enxada.

 

- Morreu-me lá em Pucallpa, menino - diz Ambrosio. - Deixou-me uma filhita.

 

- Bom, por isso é que fizemos a revolução - disse o tenente, de bom humor. - Acabou-se o caos. Agora, com o exército lá em cima, vai tudo entrar nos eixos. Vai ver que com Odría as coisas vão melhorar.

 

- Acha que sim? - bocejou Bermúdez. - Aqui as pessoas é que mudam, as coisas nunca.

 

- O senhor não lê os jornais, não ouve a rádio? - insistiu o tenente, risonho. - Já começou a limpeza. Apristas, vigaristas, comunistas, todos para a gaiola. Não vai ficar um único rato à solta.

 

- E que foste tu fazer a Pucallpa? - pergunta Santiago.

 

- Aparecerão outros - disse asperamente Bermúdez. - Para limpar o Peru dos ratos tinham de atirar-nos umas bombas e fazer-nos desaparecer do mapa.

 

- Trabalhar, pois que é que havia de ser, menino? - diz Ambrosio. - Melhor dizendo, procurar trabalho.

 

- Isso é a sério ou está a brincar? - perguntou o tenente.

 

- O meu velho sabia que tu estavas lá? - pergunta Santiago.

 

- Não gosto de brincar - disse Bermúdez. - Quando falo, é sempre a sério.

 

O jipe atravessava um vale, o ar cheirava a mariscos e ao longe distinguiam-se colinas terrosas, areais. O sargento guiava mordiscando um cigarro e o tenente tinha enterrado o boné até às orelhas: anda daí, beberiam umas cervejas, negro. Tinham tido uma conversa de amigos, senhor, precisa de mim, tinha Ambrosio pensado, e com certeza tratava-se de Rosa. Tinha arranjado uma camioneta, uma propriedadezita, e convencido o seu amigo, o Serrano. E queria que Ambrosio o ajudasse também, para o caso de haver sarilho. Mas vamos lá a ver, que sarilho é que podia haver? A rapariga por acaso tinha pai ou irmãos? Não, só tinha a Túmula, era canja. Ele tinha muito prazer em ajudá-lo, o problema é que. A Túmula não lhe metia medo, senhor, nem a malta do bairro, mas e o seu paizinho, D. Cayo? Porque se o Abutre descobria, a D. Cavo o mais que lhe acontecia era levar uma tareia, mas e a ele? Não havia de descobrir nada, negro, ia a Lima por três dias e quando voltasse já a Rosa estava outra vez no bairro. Ambrosio engoliu a história, senhor, ajudou-o enganado. Porque uma coisa era roubar a mocinha por uma noite, gozar o seu bocado e libertá-la e outra, ou não é, senhor?, casar com ela. O bandido de D. Cayo tinha-os comido por parvos a ele e ao Serrano, senhor. A todos, menos à Rosa, menos à Túmula. Em Chincha diziam que quem ficou a ganhar foi a filha da leiteira, que de andar de burro a distribuir leite passou a senhora e nora do Abutre. Todos os outros perderam: D. Cayo, os pais dele, até a Túmula, porque perdeu a filha. Quer dizer, a Rosa foi uma sabidona de alto lá com ela. Quem diria, senhor, uma insignificante, a espertalhona saiu-lhe a sorte grande. Que tinha o Ambrosio que fazer, senhor? Ir à praça às nove, e tinha ido e esperado e apanharam-no, deram voltas e, quando estava tudo a dormir, postaram a camioneta junto à casa de D. Mauro Cruz, o surdo. D. Cayo tinha combinado com a moça encontrarem-se ali às dez. Claro que apareceu, como é que não havia de aparecer? Apareceu, D. Cayo avançou para ela e eles ficaram na camioneta. Ou ele lhe disse qualquer coisa ou ela adivinhou qualquer coisa, o caso é que a filha da Túmula largou a correr e D. Cayo a gritar agarrem-na. Então Ambrosio foi atrás dela, agarrou-a, pô-la aos ombros e sentou-a na camioneta. Aí é que tinha visto a manha da Rosa, senhor, aí é que se viu que ela a tinha fisgada. Nem um grito, nem um ai, só corridinhas, arranhõezinhos, murrozinhos. O mais fácil teria sido pôr-se a guinchar, havia de aparecer alguém, caía-lhes em cima meio bairro, não era? Queria que a roubassem, estava à espera que a roubassem, uma vivaça, não acha, senhor? Qual morta de medo, qual tinha ficado sem voz. Deu pontapés e arranhões quando já estava apanhada e na camioneta fingia que chorava porque tapava a cara, mas Ambrosio não a ouvia chorar. O Serrano meteu o prego a fundo, a camioneta desembestou pela vereda. Chegaram à propriedadezinha e D. Cayo apeou-se e a Rosa, sem que fosse preciso pegar nela, meteu-se direitinha em casa, estava a ver, senhor? Ambrosio foi-se deitar a pensar que cara teria a Rosa no dia seguinte, e se contaria à Túmula e a Túmula à negra e se a negra o chatearia. Ninguém suspeitava do que estava para acontecer, senhor. Porque a Rosa não voltou no dia seguinte, nem D. Cayo, nem no outro nem no seguinte. No bairro, a Túmula desfazia-se em lágrimas, e em Chincha a D. Catalina desfazia-se em lágrimas, e Ambrosio não sabia onde se havia de meter. No terceiro dia chegou o Abutre e deu parte à polícia e a Túmula também tinha dado pane. Imagine os mexericos, senhor. Quando o Serrano e Ambrosio se viam na rua, nem se falavam, ele também devia andar enrascadíssimo. Só apareceram ao fim de uma semana, senhor. Ninguém o tinha obrigado, ninguém lhe tinha apontado um revólver ao peito dizendo-lhe para a igreja ou para o túmulo. Procurou um padre da sua própria vontade. Dizem que os viram sair de um autocarro na Plaza de Armas, que ele ia de braço dado com a Rosa, que os viram entrar na casa do Abutre como quem volta de um passeio. Devem ter aparecido lá de repente, juntos, imagine, D. Cayo deve ter puxado da certidão e ter dito, casámo-nos, está a imaginar a cara do Abutre, senhor, que história vem a ser essa?

 

- Andam a apanhar ratos ali, tenente? - com um sorriso desabrido, Bermúdez apontava o Parque Universitário. - Que há em San Marcos?

 

Barreiras militares cercavam as quatro esquinas do Parque Universitário e havia patrulhas de soldados de capacete, polícia de choque e guardas a cavalo. Abaixo a Ditadura, diziam uns cartazes presos aos muros de San Marcos. A porta principal da universidade estava fechada, e crepes de luto oscilavam nas varandas, e nos telhados umas cabeças minúsculas espiavam os movimentos dos soldados e guardas. As paredes do recinto universitário transpiravam um rumor que crescia e decrescia entre salvas de palmas.

 

- Uns quantos apristas andam ali metidos desde 27 de Outubro

 

- o tenente fazia sinais ao oficial que comandava a barreira da Avenida Abancay. - Os camelos não tomam emenda.

 

- E porque é que não os correm a tiro? - perguntou Bermúdez.

 

- Foi assim que o exército começou a limpeza?

 

Um alferes da polícia aproximou-se do jipe, cumprimentou, examinou o salvo-conduto que o tenente lhe estendeu.

 

- Como vão esses subversivos? - perguntou o tenente, apontando para San Marcos.

 

- Ali, a armar zaragatas - disse o alferes. - Às vezes atiram as suas pedritas. Podem passar, meu tenente.

 

Os guardas afastaram os cavaletes e o jipe atravessou o Parque Universitário. Sobre os crepes ondulantes havia umas cartolinas brancas, Estamos de Luto pela Liberdade, e tíbias e caveiras desenhadas a tinta preta.

 

- Eu corria-os a tiro, mas o coronel Espina quer vencê-los pela fome - disse o tenente.

 

- Como estão as coisas na província? - perguntou Bermúdez. No Norte deve haver sarilhos, faço ideia. Os apristas lá são fortes.

 

- Tudo sossegado, isso de a Apra controlar o Peru eram histórias disse o tenente. - Bem vê, os líderes foram logo pedir asilo nas embaixadas. Nunca se viu revolução mais pacífica, senhor Bermúdez. E isto de San Marcos resolve-se num minuto se os superiores quiserem.

 

Não havia cordões de militares nas ruas da baixa. Só na Plaza Itália apareceram de novo soldados com capacetes. Bermúdez desceu do jipe, espreguiçou-se, deu alguns passos, esperou pelo tenente, olhando-o com a maior das abulias.

 

- Nunca entrou no Ministério? - animou-o o tenente. - O edifício é velho, mas há salas riquíssimas. A do coronel tem quadros e tudo.

 

Entraram, e não tinham passado dois minutos, quando a porta se abriu, como se tivesse havido um terramoto lá dentro, e D. Cayo e a Rosa saíram aos tombos, e o Abutre atrás, pior que uma barata e investindo como um touro, dizem que foi coisa digna de se ver, senhor. A fúria dele não era contra a filha da Túmula, com ela parece que não estava zangado, só com o filho. Atirava-o ao chão com um murro, levantava-o a pontapé, e assim por diante até à Plaza de Armas. Aí tiveram de o agarrar, senão matava-o. Não se conformava por ele ter casado daquela maneira, não passando de um miúdo, e sobretudo com quem. Nem se conformou nunca, claro, nem voltou a ver D. Cayo, nem a dar-lhe um chavo. D. Cayo teve de começar a ganhar para os alfinetes para ele e para a Rosa. Nem sequer acabou o colégio, ele que o Abutre dizia que havia de ser o futuro cérebro. Se em vez do padre tivesse sido o alcaide a casá-los, o Abutre arrumava o assunto num abrir e fechar de olhos, mas com Deus, como é que se podia resolver o assunto, senhor? Ainda para mais sendo a D. Catalina a beata que era. Devem ter consultado o padre, ele deve ter dito não há nada a fazer, a religião é a religião e agora até que a morte os separe. De maneira que o Abutre não teve outro remédio senão desistir. Dizem que deu uma sova ao padre que os casou, que depois não lhe queriam dar a absolvição e que por penitência o obrigaram a pagar uma das torres da igreja nova de Chincha. Segue-se que até a religião teve a sua parte no bolo, senhor. O Abutre nunca mais viu o casalinho. Parece que, quando sentiu que ia morrer, perguntou: tenho netos? Talvez, se os tivesse tido, perdoasse D. Cayo, mas a Rosa não só se tinha tornado um coiro como, para cúmulo, nunca ficou de barriga. Dizem que, para o filho não herdar, o Abutre começou a gastar o que tinha em bebedeiras e esmolas, que se a morte não o apanha desprevenido dava também a casita que tinha por trás da igreja. Não teve tempo, senhor. Porque é que se manteve tanto tempo com a índia? Era o que toda a gente dizia ao Abutre: há-de passar-lhe a paixoneta e manda-a outra vez para a Túmula e o senhor recuperará o seu filho. Mas ele nunca o fez, vá lá saber porquê. Pela religião não me parece, D. Cayo não ia à igreja. Para irritar o pai, senhor? Porque odiava o Abutre, diz o senhor? Para o lograr, para que ele visse esfumarem-se as esperanças que tinha postas nele? Lixar-se para matar o pai de desgosto? Acredita que fosse por isso, senhor? Fazê-lo sofrer custasse o que custasse, mesmo que tivesse de transformar-se num miserável? Bom, não sei, senhor, se o senhor acha que foi, talvez fosse. Não fique assim, senhor, estávamos a conversar tão bem, senhor. Sente-se mal? O senhor não está a falar do Abutre e de D. Cayo mas é de si e do Menino Santiago, não é, senhor? Está bem, senhor, já sei que não está a falar comigo. Já aqui não está quem falou, senhor, não fique assim, senhor.

 

- Como é Pucallpa? - pergunta Santiago.

 

- Uma terreola que não vale nada - responde Ambrosio. O menino não conhece?

 

- Passei toda a vida a sonhar com grandes viagens e só cheguei até ao quilómetro oitenta, uma vez - diz Santiago. - Tu, ao menos, viajaste um pouco.

 

- Em má hora, menino - diz Ambrosio. - Pucallpa só me trouxe desgraças.

 

- Quer dizer que a vida te correu mal - disse o coronel Espina. - Pior que ao resto do curso. Não tens um chavo e não passaste de provinciano.

 

- Não tive tempo para seguir a pista do resto do curso - disse Bermúdez, calmamente, olhando Espina sem arrogância, sem modéstia. - Mas, claro, a ti correu-te melhor que a todos os outros juntos.

 

- O melhor aluno, o mais inteligente, o mais marrão - disse Espina. - O Bermúdez há-de ser presidente e o Espina seu ministro, dizia o Tordo, lembras-te?

 

- Já nessa altura querias ser ministro, é verdade - disse Bermúdez, com um risinho amargo. - Pronto, já és. Estás satisfeito, não?

 

- Não o pedi nem o procurei - o coronel Espina abriu os braços com resignação. - Impuseram-no e eu aceitei-o como um dever.

 

- Em Chincha diziam que eras um militar apristão, que tinhas ido a um cocktail oferecido pelo Haya de la Torre - continuou a sorrir Bermúdez, sem convicção. - E agora, olha, a caçar apristas como se fossem ratos. Foi o que disse o tenentezeco que me mandaste. E, por falar nisso, já vai sendo tempo de me dizeres a que propósito vêm todas estas honras.

 

A porta do escritório abriu-se, entrou um homem, de rosto circunspecto, a fazer vénias, com uns papéis nas mãos, podia, Sr. Ministro?, mas o coronel mais tarde Dr. Alcibíades, imobilizou-o com um gesto, que ninguém os interrompesse. O homem fez outra vénia, muito bem, Sr. Ministro, e saiu.

 

- Senhor Ministro - rouquejou Bermúdez, sem nostalgia, olhando letargicamente em redor. - Parece mentira. Estar aqui sentado. Sermos já ambos cinquentões.

 

O coronel Espina sorria com afecto, tinha perdido muito cabelo, mas as mechas que conservava não tinham uma única branca, e a sua cara amarelenta mantinha-se louçã; passeava devagar os olhos pelo rosto curtido e indolente de Bermúdez, pelo corpo avantajado e ascético encolhido no largo cadeirão de veludo vermelho.

 

- Tramaste-te por causa desse casamento absurdo - disse, com voz melíflua e paternal. - Foi o grande erro da tua vida, Cavo. Eu bem te preveni, lembras-te?

 

- Mandaste-me buscar para falares do meu casamento? – disse sem ira, sem ímpeto, com a medíocre vozinha de sempre. Mais uma palavra e vou-me embora.

 

- Continuas o mesmo peludo de sempre - riu-se Espina. Como está a Rosa? Já sei que não tiveste filhos.

 

- Se não te importas, vamos ao assunto de uma vez por todas - disse Bermúdez; uma sombra de fadiga velou-lhe os olhos, tinha a boca contraída de impaciência. Tectos, cornijas, terraços, monturos aéreos, recortavam-se sobre nuvens obesas, pelas janelas, por trás de Espina.

 

- Embora nos tenhamos visto poucas vezes, continuaste a ser o meu melhor amigo - quase se entristeceu o coronel. - Já quando éramos pequenos, eu estimava-te, Cayo. Mais do que tu a mim. Admirava-te, até te invejava.

 

Bermúdez perscrutava o coronel, imperturbável. O cigarro que tinha na mão consumira-se, a cinza caía sobre a alcatifa, as volutas de fumo rebentavam contra a sua cara como ondas de encontro a rochas pardacentas.

 

- Quando eu era ministro do Bustamante, todo o curso me procurou, menos tu - disse Espina. - Porquê? Estavas em má situação, tínhamos sido quase como irmãos. Eu teria podido ajudar-te.

 

- Vieram lamber-te as mãos como os cães, pedir-te recomendações e propor-te negócios? - perguntou Bermúdez. - Como eu não vim, deves ter dito este enriqueceu ou morreu.

 

- Sabia que estavas vivo, mas meio morto de fome - disse Espina. - Não me interrompas, deixa-me falar.

 

- E que ainda és muito lento - disse Bermúdez. - É preciso tirar-te as palavras a saca-rolhas, como no José Pardo.

 

- Quero ser-te útil - murmurou Espina. - Diz-me o que posso fazer por ti.

 

- Dá-me um transporte para regressar a Chincha - sussurrou Bermúdez. - O jipe, uma passagem de colectivo, seja o que for. Por causa deste passeiozinho a Lima, arrisco-me a perder um negócio interessante.

 

- Estás contente com a tua sorte, não te importa envelhecer provinciano e sem fortuna - disse Espina. - Já não és ambicioso, Cayo.

 

- Mas ainda sou orgulhoso - disse Bermúdez, secamente. Não gosto de aceitar favores. Era tudo o que querias dizer-me?

 

O coronel observava-o, como se o estivesse a medir ou a adivinhar, e o sorrisinho cordial que lhe tinha estado a flutuar nos lábios desvaneceu-se. Uniu as mãos polidas, avançou a cabeça:

 

- Pão pão, queijo queijo, Cayo? - disse, com súbita energia.

 

- Já não era sem tempo - Bermúdez esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro. - Já me estavas a cansar com tantas declarações de amor.

 

- O Odría precisa de gente de confiança - o coronel contava as sílabas, como se a sua segurança e desenvoltura se vissem de repente ameaçadas. - Aqui todos estão connosco e ninguém está connosco. La, Prensa e a Sociedade Agrária querem só que suprimamos o controlo de trocas e protejamos a liberdade de comércio.

 

- Como vocês lhes vão fazer a vontade, não há problema - disse Bermúdez. - Não é?

 

- El Comercio só chama a Odría o salvador por ódio à Apra - disse o coronel Espina. - Esses tipos só querem que a gente ponha os apristas à sombra.

 

- O que já está feito - disse Bermúdez. - Por esse lado também não há problema, pois não?

 

- E a International, a Cerro e as outras companhias só querem um governo forte que dê tranquilidade aos sindicatos - continuou Espina, sem o ouvir. - Cada um puxa a brasa à sua sardinha, estás a ver?

 

- Os exportadores, os antiapristas, os gringos e até o exército - disse Bermúdez. - O dinheiro e a força. Não sei que razão de queixa possa ter o Odría. Não se pode exigir mais.

 

- O presidente conhece a mentalidade destes filhos da puta

 

- disse o coronel Espina. - Hoje apoiam-te, amanhã cravam-te um punhal nas costas.

 

- Como vocês fizeram ao Bustamante - sorriu Bermúdez, mas o coronel não se riu. - Bom, enquanto conseguirem mante-los satisfeitos, eles apoiarão o regime. Depois arranjam outro general e põem-nos fora. Não tem sido sempre assim no Peru?

 

- Desta vez não vai ser - disse o coronel Espina. - Nós vamo-nos proteger.

 

- Pois acho muito bem - disse Bermúdez, abafando um bocejo. - Mas qual é o meu papel no meio disto?

 

- Falei de ti ao presidente - o coronel Espina considerou um momento o efeito das suas palavras, mas Bermúdez não tinha mudado de expressão; o cotovelo no braço do sofá, a cara apoiada na palma da mão aberta, escutava, imóvel. - Estávamos a baralhar nomes para a Direcção do Governo e o teu veio-me à boca e larguei-o. Fiz asneira?

 

Calou-se, um gesto de contrariedade ou fadiga ou dúvida ou pesar torceu a boca e semicerrou os olhos. Permaneceu durante uns segundos com expressão ausente e a seguir perscrutou a cara de Bermúdez: lá estava, idêntica, absolutamente quieta, à espera.

- Um cargo obscuro, mas importante para a segurança do regime

- acrescentou o coronel. - Fiz asneira? Nesse lugar precisas de alguém que _ seja uma espécie do teu outro eu, advertiram-me, o teu braço direito. E veio-me o teu nome à boca e larguei-o. Sem pensar Já vês, estou a falar com toda a franqueza. Fiz asneira?

 

Bermúdez tinha puxado doutro cigarro e acendera-o. Chupou-o contraindo ligeiramente a boca, mordeu levemente o lábio inferior Olhou para o morrão, para o fumo, para a janela, para os monturos dos telhados de Lima.

 

- Sei que, se quiseres, podes ser o homem de quem preciso

- disse o coronel Espina.

 

- Já vejo que tens confiança no teu velho condiscípulo - disse, por fim, Bermúdez, tão baixo que o coronel avançou a cabeça. teres escolhido este provinciano frustrado e sem experiência para teu braço direito é uma grande honra, Serrano.

 

- Deixa-te de ironias - Espina deu uma palmadinha na mesa diz-me se aceitas ou não.

 

- Uma coisa destas não se decide de um momento para o outro

- disse Bermúdez. - Dá-me uns dias para pensar.

 

- Não te dou meia hora sequer, vais responder agora mesmo

- disse Espina. - O presidente espera-me às seis no Palácio   Se aceitas   vens comigo para eu te apresentar. Se não, podes voltar a Chincha.

 

- As funções de director do Governo imagino eu - disse Bermúdez - Em compensação, não imagino qual será o ordenado

 

- Um ordenado base e umas despesas de representação - disse o coronel Espina. - Uns cinco ou seis mil soles, calculo. Bem sei que não é muito. ^

 

- Chega para viver modestamente - sorriu levemente Bermúdez. - Como sou um homem modesto, chegar-me-ia.

 

- Então, nem mais uma palavra - disse o coronel Espina Mas ainda não me respondeste. Fiz asneira?

 

- Isso só o tempo o poderá dizer, Serrano - sorriu outra vez, ao de leve.

 

Se o Serrano nunca reconheceu Ambrosio? Quando Ambrosio era motorista de D. Cayo, entrou no carro mais de mil vezes, senhor mais de mil vezes o tinha levado a casa. Talvez o reconhecesse, mas o caso e que nunca o demonstrou, senhor. Como ele na altura era ministro, talvez se envergonhasse de ter conhecido Ambrosio quando não era ninguém, não gostaria que Ambrosio soubesse que ele tinha estado implicado no rapto da filha da Túmula. Talvez o tivesse apagado da memória para que aquela cara negra não lhe trouxesse más recordações, senhor. Das vezes que se viram tratou Ambrosio como um motorista que se vê pela primeira vez. Bom dia, boa tarde, e o Serrano o mesmo. É verdade que a Rosa se fez um coirão e se encheu de verrugas, mas no fundo a história dela fazia pena, não fazia, senhor? No fim de contas, ela era mulher dele, não é verdade? E deixou-a em Chincha e ela não pôde gozar de nada quando D. Cayo se tornou importante. Que lhe aconteceu durante todos estes anos, pergunta o senhor? Quando D. Cayo veio a Lima, ela ficou na casinha amarela, se calhar, ainda lá continua a transformar-se em ossos. Mas a ela não a abandonou como à D. Hortênsia, sem um chavo. Dava-lhe uma pensão, disse muitas vezes a Ambrosio lembra-me de mandar o dinheiro à Rosa, negro. Que fez ela durante todos estes anos? Sabe-se lá, senhor. Deve ter feito a vida de sempre, uma vida sem amigas nem parentes. Porque desde o casamento nunca mais voltou a ver ninguém do bairro, nem sequer a Túmula. Com certeza era D. Cayo que lho proibia. E a Túmula passava o tempo a maldizer a filha porque não a convidava para casa dela. Mas nem assim, senhor; não entrou na sociedade de Chincha, nem por sombra, quem é que se ia juntar com a filha da leiteira, mesmo que fosse mulher de D. Cayo e usasse sapatos e lavasse a cara todos os dias, se todos a tinham visto a arrear o burro e a distribuir cabaças? E para mais sabendo que o Abutre não a reconhecia como nora. Não teve outro remédio senão enfiar-se num quartinho que D. Cayo alugou por trás do Hospital San José, e levar vida de freira. Quase nunca saía, com vergonha, porque na rua a apontavam, ou talvez por medo do Abutre. Além disso, seria por hábito, Ambrosio tinha-a visto algumas vezes, no mercado, ou a despejar um alguidar para a rua e a esfregar roupa, ajoelhada no passeio. Afinal, de que é que lhe serviu tanta esperteza, senhor, tanto malabarismo para caçar o branquito? Terá ganho um apelido e melhorado de condição, mas ficou sem uma amiga e até sem a mãe. D. Cayo, senhor? Sim, ele tinha amigos, aos sábados lá estava ele a tomar as suas cervejinhas no Cielito Lindo ou a jogar a malha no Jardín El Paraíso, e na casa de pegas diziam que se enfiava sempre no quarto com duas. Raramente saía com a Rosa, senhor, até ao cinema ia sozinho. Em que trabalhava D. Cayo, senhor? No armazém dos Cruz, num banco, num notário, mais tarde vendia tractores aos fazendeiros. Passou coisa de um ano no tal quartinho e quando melhorou de vida mudou-se para o bairro sul, Ambrosio nesse tempo era já motorista interprovincial e parava pouco em Chincha, e numa das vezes que chegou à povoação disseram-lhe morreu o Abutre e D. Cayo e a Rosa foram viver com a beata. A D. Catalina morreu com o Governo do Bustamante, senhor. Quando mudou a sorte de D. Cayo, com o Odría, em Chincha diziam agora a Rosa vai fazer uma casa nova e há-de ter criadas. Nem pensar nisso, senhor. Começaram a chover visitas à Rosa, nessa altura. ~N’A Voz de Chincha, saíam fotografias de D. Cayo, a quem chamavam «Chincano Ilustre», e não havia quem não caísse em cima da Kosa para lhe pedir um empregozinho para o meu marido, uma bolsa de estudo para o meu filho, que coloquem o meu irmão como professor aqui, subcomissário acolá. E as famílias de apristas e apristõees a chorarem-lhe D. Cayo que liberte o meu sobrinhito ou deixe o meu tio voltar ao país. Foi então que veio a vingança da filha da Tumula, senhor, foi então que os que lhe tinham causado aborrecimentos as pagaram todas. Dizem que os recebia à porta e que para todos fazia a mesma cara de idiota. O seu filhinho estava preso? Imaginem, que pena. Um emprego para o seu enteadozinho? Que tosse a Lima e falasse com o marido e até depois. Mas Ambrosio só sabia tudo isto por ouvir dizer, senhor, não vê que nessa altura também já .estava em Lima? Quem o tinha convencido a vir procurar L». Cayo, senhor? A negra, Ambrosio não queria, diziam dizem que ela despacha todos os chinchanos que vão pedir-lhe alguma coisa Mas a ele não o despachou, senhor, ajudou-o e Ambrosio agradecia-mo. Sim, odiava todos os chinchanos, sabe-se lá porquê, bem vê que não fez nada por Chincha, nem sequer uma escolazinha mandou construir na sua terra. Quando o tempo passou, as pessoas começaram a dizer mal do Odría, e os apristas desterrados voltaram a Chincha, dizem que o subprefeito pôs um polícia na casinha amarela para proteger a Rosa, não vê que D. Cayo era odiado, senhor? Uma rematada estupidez, desde que ele estava no Governo nem viviam juntos nem se viam, toda a gente sabia que se matassem a Rosa não dariam qualquer desgosto a D. Cayo, antes lhe fariam um favor porque não só não gostava dela, senhor, como até a devia odiar por se ter tornado tão feia, não lhe parece?

 

- Viste a recepção que te fez - disse o coronel Espina - Ficaste a saber que espécie de homem é o general.

 

- Tenho de pôr a cabeça em ordem - murmurou Bermúdez tenho-a feita em água.

 

- Vai descansar - disse Espina. - Amanhã apresento-te ao pessoal do Ministério e ponho-te a par das coisas. Mas diz-me ao menos se estas satisfeito.

 

- Satisfeito, não sei - disse Bermúdez. - Sinto-me um pouco como se estivesse bêbedo, isso sim.

 

- Bom, já sei que é essa a tua maneira de agradecer - riu-se Espina.

 

- Vim para Lima só com esta maleta - disse Bermúdez. - Pensava que era uma questão de horas.

 

- Precisas de dinheiro? - perguntou Espina. - Com certeza, homem, empresto-te agora algum e amanhã arranjamos maneira de te ciarem um adiantamento na tesouraria.

 

- Que aborrecimento tiveste em Pucallpa? - pergunta Santiago

 

- Vou procurar um hotel peno daqui - disse Bermúdez. - Voltarei amanhã cedo.

 

- Por mim, por mim? - perguntou D. Fermín. - Ou fizeste-o por ti, para me teres na mão, pobre desgraçado?

 

- Um tipo que eu julgava ser meu amigo mandou-me ir para lá

- diz Ambrosio. - Vai para lá, negro, uma babilónia. Patranhas, menino, o maior barrete do século. Ah, se eu lhe contasse.

 

Espina acompanhou-o até à porta do gabinete e apertaram as mãos. Bermúdez saiu, com a maleta numa das mãos e o chapeuzito na outra. Tinha um aspecto distraído e grave, parecia olhar para dentro. Não correspondeu à vénia do oficial da porta do Ministério. Seria a hora da saída das repartições? As ruas estavam cheias de gente e de barulho. Misturou-se com a multidão, seguiu a corrente, foi, veio, voltou por passeios estreitos e apinhados, arrastado por uma espécie de remoinho ou feitiço, parando por vezes a uma esquina para acender um cigarro. Num café de Calle Azángaro, pediu um chá de limão, que saboreou muito vagarosamente, e ao sair deixou de gorjeta o dobro da conta. Numa livraria sumida num passeio da Calle de Ia Union, folheou romancecos de capas flamejantes e letra gasta pelos dedos e minúscula, olhando sem ver, até que Os Mistérios de Lesbos lhe acenderam os olhos, por um segundo. Comprou-o e saiu. Deambulou ainda um bocado pela baixa, com a maleta debaixo do braço e o chapeuzinho amachucado na mão, fumando sem parar. Escurecia já e as ruas estavam desertas quando entrou no Hotel Maury e pediu um quarto. Puseram-lhe uma ficha à frente e ficou com a caneta erguida uns segundos onde dizia profissão, por fim escreveu funcionário público. O quarto ficava no terceiro andar, a janela dava para um terraço interior. Meteu-se na banheira e deitou-se vestido com a roupa interior. Folheou Os Mistérios de Lesbos, deixando os olhos correr cegos pelos apertados caracteres negros. A seguir apagou a luz. Mas não conseguiu dormir antes de muitas horas. Acordado, repousava de costas, o corpo imóvel, o cigarro a arder entre os dedos, respirando com ansiedade, os olhos fixos na sombra escura do tecto.

 

- Então foi em Pucallpa e por culpa desse tal Hilário Morales, então sabes quando e porquê te fodeste - diz Santiago. - Eu daria alguma coisa por saber em que altura me fodi.

 

Lembrar-se-ia, traria o livro? O Verão estava no fim, pareciam cinco horas e nem duas eram ainda, e Santiago pensa: trouxe o livro, lembrou-se. Sentia-se eufórico ao entrar no poeirento saguão de lajes e pilares escavacados, que ele fosse admitido, que ela fosse admitida, optimista, e tu foste admitido, pensa, e ela foi admitida: ah, Zavalita, sentias-te feliz.

 

- Tem saúde, é novo, tem trabalho, tem mulher - diz Ambrosio. - Como é que se pode ter fodido, menino?

 

Sós ou em grupos, as caras enfronhadas nos seus apontamentos quantos destes seriam admitidos, onde estava Aída?, os candidatos davam voltas ao pano em passo de procissão, repassavam a matéria sentados nos bancos lascados, encostados às imundas paredes interrogavam-se a meia voz. Mestiços, mestiças, a gente bem não vinha para cá. Pensa: tinham razão, mamã.

 

- Antes de sair de casa, quando entrei em San Marcos, era um tipo puro - diz Santiago.

 

Reconheceu algumas caras do exame escrito, trocou sorrisos e olas, mas Aída não aparecia, e foi instalar-se junto à entrada. Ouviu um grupo a rever geografia, ouviu um rapaz, imóvel, de olhos baixos, recitando, como se rezasse, os vice-reis do Peru.

 

- Daqueles que os ricaços fumam nas touradas? - ri-se Ambrosio.

 

Viu-a entrar: o mesmo vestido direito cor de tijolo, os mesmos sapatos rasos do exame escrito. Avançava com o seu ar de aluna uniformizada e estudiosa pelo saguão apinhado, voltava de um lado para outro a sua cara de menina crescida, sem brilho sem graça, sem pintura a procurar alguma coisa, alguém, com os seus olhos duros e adultos. Os lábios contraíram-se-lhe, a boca masculina abriu-se e viu-a sorrir: o rosto grosseiro suavizou-se, iluminou-se. Viu-a aproximar-se dele: olá, Aída.

 

- Estava-me cagando no dinheiro e julgava-me capaz de grandes coisas. Um puro nesse sentido.

 

- Em Grocio Prado vivia a beata Melchorita, dava tudo o que tinha e passava o tempo a rezar - diz Ambrosio. - O menino queria ser um santo como ela, quando era garoto?

 

- Trouxe-te A Noite Ficou para Trás - disse Santiago. - Espero que gostes.

 

- Falaste-me tanto dele que estou morta por o ler -- disse Aída. - tens o romance do francês sobre a Revolução Chinesa

 

- Calle Pruno, Calle de Padre Jerónimo? - pergunta Ambrosio. - Nessa casa dão dinheiro aos negros lixados como este aqui?

 

- Foi lá que fizemos o exame de admissão no ano em que entrei para San Marcos - diz Santiago. - Eu tinha-me apaixonado por raparigas de Miraflores, mas em Padre Jerónimo apaixonei-me a sério pela primeira vez.

 

- Não parece um romance, parece é um livro de história - disse Aída.

 

- Ai sim? - pergunta Ambrosio. - E ela também se apaixonou por si. r

 

- Embora seja uma autobiografia, lê-se como um romance - disse Santiago. - Has-de ver o capítulo «A noite das facas longas», sobre uma revolução na Alemanha. Formidável, vais ver

 

- Sobre uma revolução? - Aída folheou o livro, com a voz e os olhos agora cheios de desconfiança. - Mas este Valtin é comunista ou anticomunista?

 

- Não sei se se apaixonou por mim, não sei se soube que eu estava apaixonado por ela - diz Santiago. - Às vezes penso que sim, outras vezes que não.

 

- O menino não soube, ela não sabia, que complicação, será que essas coisas não se sabem sempre, menino? - pergunta Ambrosio.

- Quem era a rapariga?

 

- Aviso-te já que se for anti to devolvo - e a suave voz tímida de Aída tornou-se desafiadora. - Porque eu sou comunista.

 

- És comunista? - olhou-a, atónito, Santiago. - Palavra que és comunista?

 

Ainda não eras, pensa, querias ser comunista. Sentia o coração bater com toda a força e estava maravilhado: em San Marcos não se estuda nada, magricela, só se fazia política, era um fosso de apristas e de comunistas, todos os desiludidos do Peru se juntavam lá. Pensa: pobre papá. Nem sequer tinhas entrado em San Marcos, Zavalita, vê lá o que descobrias.

 

- Na verdade, sou e não sou - confessou Aída. - Porque onde andarão os comunistas cá?

 

Como se podia ser comunista sem sequer saber se havia um partido comunista no Peru? Se calhar o Odría tinha-os mandado prender a todos, se calhar, tinha-os deportado ou assassinado. Mas se passasse na oral e entrasse em San Marcos. Aída averiguaria na universidade, pôr-se-iam em contacto com os que restavam e estudaria marxismo e inscrever-se-ia no Partido. Olhava-me a desafiar-me, pensa, discute comigo, anda lá, a sua voz era suave e os seus olhos insolentes, diz-me são uns ateus, ardentes, contraria-me, anda lá, inteligentes, e tu, pensa, ouvia-la assustado e admirado: aquilo existia, Zavalita. Pensa: foi nessa altura que me apaixonei?

 

- Uma colega de San Marcos - diz Santiago. - Falava de política, acreditava na Revolução.

 

- Caramba, não me diga que se apaixonou por uma aprista, menino - diz Ambrosio.

 

- Os apristas já não acreditavam na Revolução - diz Santiago Ela era comunista.

 

- Cos diabos - diz Ambrosio. - Que raio de coisa, menino. Novos candidatos chegavam a Padre Jerónimo, invadiam o saguão,

 

o pátio, corriam até às listas afixadas com percevejos num quadro, reviam afanosamente os seus apontamentos. Um rumor azafamado flutuava sobre o local.

 

- Ficaste a olhar para mim como se eu fosse um ogre - disse Aída.

 

- Que ideia, eu respeito todas as opiniões, e para mais, não penses nisso, também sou de - calou-se, procurou, tartamudeou Santiago - ideias avançadas.

 

- Óptimo, ainda bem que és - disse Aída. - Iremos hoje à oral? De tanto esperar, tenho uma confusão terrível na cabeça, não me lembro de nada do que estudei.

 

- Vamos rever um bocado, se quiseres - disse Santiago. O que é que te assusta mais?

 

- História Universal - disse Aída. - Sim, vamos fazer perguntas um ao outro. Mas a andar, estudo melhor assim do que sentada, tu não?

 

Atravessaram o saguão de lajes cor de vinho com salas dos lados, onde moraria ela?, havia um pequeno pátio com menos gente lá ao fundo. Fechou os olhos, viu a casita apertada, limpa, de móveis austeros, e viu as ruas em redor e as caras, duras, dignas, graves, sóbrias?, dos homens que avançavam pelos passeios sumidos em fatos-macaco e casacões cinzentos, e ouviu os seus diálogos, solidários, parcos, clandestinos?, e pensou operários, pensou comunistas e decidiu não sou bustamantista, não sou aprista, sou comunista. Mas qual era a diferença? Não podia perguntar-lho, pensará que sou idiota, tinha de tirar-lho sem ela dar por isso. Ela devia ter passado todo o Verão assim, os olhinhos ferozes cravados nos questionários, indo e vindo por um quarto minúsculo. Haveria pouca luz, para tomar notas sentar-se-ia a uma mesita iluminada por um candeeiro sem quebra-luz ou por velas, moveria os lábios devagarinho, fechando os olhos, levantar-se-ia e passeando repetiria nomes, datas, nocturna e voluntariosa, o pai seria operário, a mãe criada? Pensa: ah, Zavalita. Caminhavam muito devagar, as dinastias faraónicas, fazendo perguntas um ao outro em voz baixa, Babilónia e Nínive, teria ouvido falar do comunismo lá em casa?, causas da primeira guerra mundial, que pensaria ela quando soubesse que o velhote era odriista?, a batalha do Marne, se calhar nunca mais queria andar contigo, Zavalita: odeio-te, papá. Fazíamos perguntas um ao outro, mas não as fazíamos a nós mesmos, pensa. Pensa: estávamos a fazer-nos amigos. Teria estudado num Colégio Nacional? Sim, numa Unidade Escolar, ele?, no Santa Maria, ah, num colégio de meninos bem. Tinha de tudo, era um colégio péssimo, ele não tinha culpa de que os velhos o tivessem metido lá, teria preferido o Guadalupe, e Aída desatou a rir: não é preciso corares, não tinha preconceitos, que tinha acontecido em Verdun? Pensa: esperávamos coisas formidáveis da Universidade. Estavam no Partido, iam à tipografia juntos, escondiam-se juntos num sindicato, metiam-nos juntos na prisão e exilavam-nos juntos: era uma batalha e não um tratado, palerma, e ele, claro, que palerma, e agora ela quem tinha sido Cromwell? Esperávamos coisas formidáveis de nós mesmos, pensa.

 

- Quando entrou em San Marcos e lhe cortaram o cabelo à tigela, a Menina Teté e o Menino Chispas gritavam-lhe cabeça de abóbora

- diz Ambrosio. - Que satisfeito que o seu paizinho ficou por o menino ter ficado bem no exame.

 

Falava de livros e tinha saias, sabia de política e não era homem, a Mascote, a Franga, a Esquilo, desvaneciam-se, Zavalita, as lindas idiotas de Miraflores, derretiam-se, desapareciam. Descobrir que pelo menos uma podia servir para qualquer coisa mais, pensa. Não só para se masturbar, não só para se vir, pensando nela, não só para se apaixonar. Pensa: para qualquer coisa mais. Ia para Direito e também Pedagogia, tu ias para Direito e também Letras.

 

- Andas armada em vampireza, em palhaça, ou quê? - perguntou Santiago. - Onde é a ida tão embonecada, tão pintadinha?

 

- E em Letras que especialidade? - perguntou Aída. - Filosofia?

 

- Onde me apetecer, e tu que tens com isso? - disse a Teté. Quem é que falou contigo, e com que direito é que tu falas comigo?

 

- Literatura, penso - disse Santiago. - Mas ainda não sei.

 

- Todos os que vão para Literatura querem ser poetas - disse Aída. - Tu também?

 

- Deixem-se de brigas - disse a D. Zoila. - Parecem o cão e o gato, já chega.

 

- Tinha um caderno de versos escritos às escondidas - disse Santiago. - Ninguém o podia ver, ninguém podia saber. Estás a ver? Era um puro.

 

- Não fiques corado por eu te perguntar se queres ser poeta riu-se Aída. - Não sejas burguês.

 

- Também o faziam ir aos arames chamando-lhe sabichão - diz Ambrosio. - As lutas que armavam uns com os outros, menino.

 

- Podes ir já mudar de vestido e lavar a cara - disse Santiago. Não vais sair, Teté.

 

- E que mal tem que a Teté vá ao cinema? - perguntou a D. Zoila. - Desde quando andas tão severo com a tua irmã, tu, o liberal, o mata-padres?

 

- Ela não vai ao cinema, vai mas é dançar ao Sunset com o bandido do Pepe Yánez - disse Santiago. - Esta manhã apanhei-a a combinar tudo pelo telefone.

 

- Ao Sunset com o Pepe Yánez? - perguntou o Chispas. Com esse saloio?

 

- Não é que queira ser poeta, mas gosto muito de Literatura disse Santiago.

 

- Endoideceste, Teté? - perguntou D. Fermín. - Isso é verdade, Teté?

 

- Mentira, mentira - tremia, fulminava Santiago com os olhos a Teté. - Maldito, imbecil, odeio-te, só desejo que morras.

 

- E eu também - disse Aída. - Em Pedagogia vou escolher Literatura e Espanhol.

 

- Tu julgas que enganas assim os teus pais, pedaço de? - perguntou D. Zoila. - E que é isso de chamares maldito ao teu irmão? Estás doida?

 

-- Ainda não tens idade para ir a boites, menina - disse D. Fermín. - Não sais hoje, nem amanhã, nem domingo.

 

- Vou dar cabo do Pepe Yánez - disse o Chispas. - Mato-o, papá.

 

Agora a Teté chorava aos gritos, maldito, tinha entornado a chávena de chá, porque é que não morria de uma vez, e a D. Zoila doidinha, doidinha, tão matulão e tão maricas, e a D. Zoila estás a manchar a toalha, em vez de andares a mexericar como as mulheres vai escrever os teus versinhos de maricas. Levantou-se da mesa e saiu da sala de jantar e ainda gritou os teus versinhos de mexeriqueiro e de maricas, e que morresse de uma vez, maldito. Ouviram-na subir as escadas, atirar com uma porta. Santiago mexia a colherinha na chávena vazia como se acabasse de deitar açúcar.

 

- Aquilo que a Teté disse é verdade? - sorriu D. Fermín. - Tu escreves versos, magricela?

 

- Esconde-os num caderninho atrás da Enciclopédia, a Teté e eu lemo-los todos - disse o Chispas. - Versinhos de amor, e também sobre os Inças. Não te envergonhes, sabichão. Olha como ele se pôs, papá.

 

- Tu mal sabes ler, portanto não vejo como tenhas lido fosse o que fosse - disse Santiago.

 

- Não és a única pessoa no mundo que sabe ler - disse a D. Zoila. - Não sejas tão presunçoso.

 

- Vai lá escrever os teus versinhos efeminados, sabichão - disse o Chispas.

 

- Mas o que é que eles aprenderam, para que é que andaram no melhor colégio de Lima? - suspirou a D. Zoila. - Insultam-se como dois carroceiros, diante de nós.

 

- E porque é que não me contaste que escrevias versos? - perguntou D. Fermín. - Tens de mos mostrar, magricela.

 

- Mentiras do Chispas e da Teté - balbuciou Santiago. - Não faças caso, papá.

 

Lá estava o júri, eram três, caíra sobre o local um temeroso silêncio. Rapazes e raparigas viram os três homens atravessar o saguão precedidos de um contínuo, viram-nos desaparecer numa aula. Que eu seja admitido, que ela seja admitida. De novo brotou o zumbido, mais espesso e ruidoso que antes, Aída e Santiago voltaram ao pátio do fundo.

 

- Vais passar e com notas altas - disse Santiago. - Sabes os questionários todos, com vírgulas e tudo.

 

- Não penses nisso, há muitas coisas que quase não sei - disse Aída. - Tu, sim, é que vais passar.

 

- Passei todo o Verão a marrar - disse Santiago. - Se me chumbam, prego um tiro na cabeça.

 

- Eu sou contra o suicídio - disse Aída. - Uma pessoa matar-se é uma cobardia.

 

- Histórias dos padres - disse Santiago. - É preciso uma pessoa ter muita coragem para se matar.

 

- Não me importam os padres - disse Aída, e os olhinhos pensa: anda lá, anda, atreve-te. - Eu não acredito em Deus, sou ateia.

 

- Eu também sou ateu - disse Santiago, apressadamente. - Claro. Reiniciaram a caminhada, as perguntas, por momentos distraíam-se     , esqueciam os questionários e punham-se a conversar, a discutir: concordavam, discordavam, gracejavam, o tempo voava e, de repente Zavala, Santiago! Despacha-te, sorriu-lhe Aída, e que lhe calhasse        um questionário fácil. Atravessou uma dupla cerca de candidatos, entrou na sala do exame, e já não te lembras, Zavalita, do questionário que te calhou, nem das caras dos examinadores, nem do que respondeste: só que saiu satisfeito.

 

- Lembra-se da rapariga de quem gostava e do resto já se esqueceu - diz Ambrosio. - E natural, menino.

 

Nesse dia gostavas de tudo, pensa. Dó sítio a cair de velho, das caras cor de betume ou terra ou paludismo dos examinandos, da atmosfera que fervilhava de apreensão, das coisas que Aída dizia. Como te sentias, Zavalita? Pensa: como no dia da minha primeira comunhão.

 

- Vieste porque era a do Santiago - fez beicinho a Teté. À minha não vieste, já não gosto de ti.

 

- Anda cá, dá-me um beijo, não sejas tolinha - disse D. Fermín.

 

- Vim porque o magricela ficou em primeiro, se tivesses tirado boas notas, também teria ido à tua primeira comunhão. Gosto igualmente dos três.

 

- Dizes isso, mas não é verdade - queixou-se o Chispas. À minha primeira comunhão também não foste.

 

- Com esta cena de ciúmes vão estragar o dia ao magricela, deixem-se de tolices - disse D. Fermín. - Vá, entrem para o carro.

 

- À Herradura beber milk-shakes com cachorros, papá - disse Santiago.

 

- Ã Roda que puseram no Campo de Marte, papá - disse o Chispas.

 

- Vamos à Herradura - disse D. Fermín. - Foi o magricela que fez a primeira comunhão, a ele é que se faz a vontade.

 

Saiu da sala de aula a correr, mas antes de chegar até junto de Aída, davam logo as notas, perguntas compridas ou curtas?, teve de suportar o assalto dos candidatos, e Aída recebeu-o a sorrir: pela cara dela via que se tinha saído bem, já não tens de dar um tiro na cabeça.

 

- Antes de tirar o questionário, pensei a minha alma por um fácil

 

- disse Santiago. - Se o Diabo existir, vou para o Inferno. Mas o fim justifica os meios.

 

- Nem a alma nem o Diabo existem - anda lá, anda. - Se acreditas que o fim justifica os meios, és um nazi.

 

- Contrariava tudo, pontificava sobre tudo, discutia como se se quisesse enganar a si própria - diz Santiago.

 

- Uma gajinha intrometida, daquelas que a gente diz branco e elas preto, a gente preto e elas não, branco - diz Ambrosio. - Manhas para excitar os homens, mas que dão o seu resultado.

 

- Claro que espero por ti - disse Santiago. - Queres que te faça umas perguntas?

 

A história persa, Carlos Magno, os Astecas, Carlota Corday, factores externos da desaparição do Império Austro-Húngaro, o nascimento e a morte de Danton: que lhe saísse um questionário fácil, que passasse. Voltaram ao primeiro pátio, sentaram-se num banco. Um ardina entrou apregoando os jornais da tarde, o rapaz que estava ao pé^deles comprou El Comercio e um momento depois disse filhos ’o. mâe’ Cra ° cúmu’°- Voltaram-se para o olharem e ele mostrou-Lhes um título e a fotografia de um homem de bigodes. Tinham-no metido na prisão, exilado ou assassinado, e quem era o homem? Ali estava o Jacobo, Zavalita: louro, esquálido, os olhos claros furiosos, o dedo sobre a fotografia do jornal, a voz arrastada a protestar, o Peru ia de mal a pior, um sotaque extremamente provinciano naquela cara leitosa, onde se punha o dedo saía pus, como dizia Gonzáles Prada, avistada alguma vez, ao longe e de passagem, nas ruas de Miraflores.

 

- Outro dos tais? - pergunta Ambrosio. - Caramba, San Marcos era um ninho de subversivos, menino.

 

Outro puro dos tais, pensa, em rebelião contra a sua pele, contra a sua classe, contra si mesmo, contra o Peru. Pensa: continuará puro, será feliz?

 

Não havia assim tantos, Ambrosio. Foi um acaso juntarmo-nos os três nesse primeiro dia.

 

- Esses amigos de San Marcos nunca os levava o menino lá a casa - diz Ambrosio. - Em compensação, o Menino Popeye e os seus colegas do colégio passavam a vida a tomar chá em sua casa.

 

Tinhas vergonha, Zavalita?, pensa: que o Jacobo, o Héctor, o Solórzano, fossem a tua casa e vissem com quem vivias, que conhecessem a velha e ouvissem o velho, que a Aída ouvisse as lindas idiotices da Teté? Pensa: ou que a velha e o velho soubessem com quem andavas, que o Chispas e a Teté vissem a cara de pássaro do índio Martinez? Nesse primeiro dia começaste a matar os velhos, o Popeye, Miraflores, pensa. Estavas a romper, Zavalita, a entrar noutro mundo: foi^ nessa altura, fecharam-se nessa altura? Pensa: rompendo com quê, entrando em que mundo?

 

Ouviram-me falar do Odría e foram-se - Jacobo apontou o grupo de candidatos que se afastava e olhou-os a eles com uma curiosidade sem ironia. - Vocês também têm medo?

 

Medo? - Aída endireitou-se violentamente no banco. - Eu digo que o Odría é um ditador e um assassino, e digo-o aqui, na rua, em qualquer lado.

 

Pura como as raparigas do Quo Vadis, pensa, impaciente por descer às catacumbas e sair ao circo e atirar-se às garras e mandíbulas dos leões. Jacobo ouvia-a desconcertado, ela tinha esquecido o exame, um ditador que subiu ao Poder na ponta das baionetas, elevava a voz e gesticulava e Jacobo anuía e olhava-a com simpatia, e tinha suprimido os partidos e a liberdade de imprensa e agora entusiasmado e tinha dado ordens ao exército para chacinar os Arequipenhos e agora enfeitiçado e tinha preso, deportado e torturado tantos, nem sequer se sabia quantos, e Santiago observava Aída e Jacobo e de repente, pensa, sentiste-te torturado, exilado, atraiçoado, Zavalita, e interrompeu-a: o Odría era o pior tirano da história do Peru.

 

- Bom, o pior não sei se é - disse Aída, tomando fôlego. Mas, um dos piores, claro que é.

 

- Dá-lhe tempo e verás - insistiu Santiago, com ímpeto. - Há-de ser o pior.

 

- Tirando a do proletariado, todas as ditaduras, são a mesma coisa - disse Jacobo. - Historicamente.

 

- Tu sabes qual é a diferença entre aprismo e comunismo? pergunta Santiago.

 

- Não é preciso dar-lhe tempo para ser pior - disse Aída. O que é preciso é derrubá-lo antes.

 

- Bom, os apristas são muitíssimos e os comunistas pouquíssimos

- diz Ambrosio. - Não vejo maior diferença que essa.

 

- Não acredito que aqueles se tenham ido embora por estares a dizer mal do Odría, foram-se embora porque estão a estudar - disse Santiago. - Em San Marcos devem ser todos progressistas.

 

Olhou-te como se tivesse visto um par de asinhas nas tuas costas, pensa, San Marcos já não era o que tinha sido, como a um menino bom e tarado, Zavalita. Não sabias, não percebias o vocabulário sequer, tinhas de aprender o que era aprismo, fascismo, comunismo, e por que San Marcos já não era o que tinha sido: porque, desde o golpe do Odría, os dirigentes eram perseguidos e os centros federados desmantelados e porque as aulas estavam cheias de informadores matriculados como alunos e Santiago frivolamente interrompeu-o: Jacobo vivia em Miraflores? Parecia tê-lo visto por lá uma vez, e Jacobo ruborizou-se e fez que sim de má vontade e Aída desatou a rir: então eram ambos de Miraflores, então eram ambos meninos bem. Mas Jacobo, pensa, não gostava de graças. Os olhos azuis pedagogicamente pousados nela, a voz paciente, andina, desenvolta, explicava: não interessa onde se vive, mas sim o que se pensa e faz, e Aída: era verdade, mas ela não dissera a sério aquela dos meninos bem, era a brincar, e Santiago leria, estudaria, aprenderia marxismo como ele: nessa altura, Zavalita. O contínuo gritou um apelido e Jacobo pôs-se de pé: estavam a chamá-lo. Dirigiu-se para a sala sem pressa, confiante e calmo como falava; inteligente, não é?, e Santiago olhou para Aída; inteligentíssimo, e ainda por cima como ele sabia de política, e Santiago decidiu: ele saberia mais.

 

- Será verdade que há informadores entre os alunos? - perguntou Aída.

 

- Se descobrirmos algum no nosso ano, apanhá-lo-emos - disse Santiago.

 

- Olha para este, já falas como aluno - disse Aída. - Vamos fazer mais uma revisãozinha.

 

Mas, mal tinham recomeçado as perguntas e o passeio circular, Jacobo saiu da aula, lento e apertado no seu desbotado fato azul, e aproximou-se deles, risonho e decepcionado, os exames eram um gozo, Aída não tinha de se ralar, o presidente do júri, um químico, sabia menos de Letras que tu ou eu. O que era preciso era responder com segurança, só chumbava os que hesitassem. Antipatizei com ele, pensa, mas quando chamaram Aída e a acompanharam à aula e regressaram ao banco e conversaram a sós, simpatizaste com ele, Zavalita. Foram-se-te os ciúmes, pensa, comecei a admirá-lo. Tinha acabado o colégio havia dois anos, não entrara em San Marcos no ano anterior por causa de uma tifóide, opinava como quem dá machadadas. Sentias-te tonto, imperialismo, idealismo, como um canibal ao ver arranha-céus, materialismo, consciência social, confuso, imoral. Quando se curara, vinha à tarde dar voltas pela Faculdade de Letras, ia ler à Biblioteca Nacional, e sabia tudo e tinha respostas para tudo e falava de tudo, pensa, menos dele. Em que colégio tinha estudado, a família dele era judia, tinha irmãos, em que rua morava? Não se impacientava com as perguntas, era prolixo e impessoal nas explicações, o aprismo significava reformismo e o comunismo revolução. Chegou alguma vez a estimar-te e odiar-te, pensa, a invejar-te como tu a ele? Ia estudar Direito e História e tu ouvia-lo deslumbrado, Zavalita: estudavam juntos, iam à tipografia clandestina juntos, conspiravam, militavam, preparavam juntos a Revolução. Que pensava de ti, pensa, que pensaria agora de ti? Aída chegou ao banco com os olhos coruscantes: o questionário número um, tinha-se fartado de falar. Felicitaram-na, fumaram, saíram para a rua. Os automóveis passavam pela Padre Jerónimo com os faróis acesos, e uma brisa lustral refrescava-lhes a cara ao descerem pela Azángaro, loquazes, excitados, em direcção ao Parque Universitário. Aída tinha sede, Jacobo fome, porque não iam comer qualquer coisa? propôs Santiago, eles boa ideia; ele pagava e Aída que horror, que burguês. Não fomos àquele tasca da Colmena comer pães com torresmos, mas sim contar os nossos projectos uns aos outros, pensa, fazermo-nos amigos discutindo até ficar sem voz. Nunca mais essa exaltação, essa generosidade. Pensa: essa amizade.

 

- Ao meio-dia e à noite isto enche-se - disse Jacobo. - Os estudantes vêm aqui depois das aulas.

 

- Quero contar-lhes uma coisa de uma vez por todas - Santiago cerrou os punhos por baixo da mesa e engoliu a saliva. - O meu pai é a favor do Governo.

 

Houve um silêncio, a troca de olhares entre Jacobo e Aída parecia eterna. Santiago ouvia os segundos passarem e mordia a língua: odeio-te, papá.

 

- Bem me parecia que eras parente desse Zavala - disse Aída, finalmente, com um consternado sorriso de pêsames. - Mas que importância tem isso, o teu pai é uma coisa e tu outra.

 

- Os melhores revolucionários saíram da burguesia - levantou-lhe o moral Jacobo, sobriamente. - Romperam com a sua classe e converteram-se à ideologia da classe operária.

 

Deu alguns exemplos e, comovido, pensa, agradecido, Santiago contava-lhes as suas pegas sobre religião com os padres do colégio, as discussões políticas com o pai e com os amigos lá do bairro, e Jacobo tinha-se posto a passar revista aos livros que estavam em cima da mesa: A Condição Humana era. interessante, embora um bocadinho romântica, e não valia a pena ler A Noite Ficou para Trás, o autor era anticomunista.

 

- Só no fim do livro - protestou Santiago -, só porque o Partido não quis ajudá-lo a recuperar a mulher aos nazis.

 

- Pior ainda - explicou Jacobo. - Era um renegado e um romântico.

 

- Quando se é sentimental, não se pode ser revolucionária? perguntou Aída, desgostosa.

 

Jacobo reflectiu uns segundos e ergueu os ombros: talvez em alguns casos se pudesse.

 

- Mas os renegados são o pior que há, reparem na Apra - acrescentou. - Ou se é revolucionário até ao fim ou não se é.

 

- Tu és comunista? - perguntou Aída, como se perguntasse que horas tens, e Jacobo perdeu momentaneamente a calma: as faces ruborizaram-se-lhe, olhou à sua volta, ganhou tempo tossindo.

 

- Simpatizante - disse, cautelosamente. - O Partido é ilegal e não é fácil uma pessoa pôr-se em contacto com ele. Além disso, para ser comunista, é preciso estudar muito.

 

- Eu também sou simpatizante - disse Aída, encantada. - Que sorte termo-nos conhecido.

 

- E eu também - disse Santiago. - Conheço mal o marxismo, mas gostava de saber mais. Mas não sei é onde nem como.

 

Jacobo olhou-os um por um nos olhos, lenta e profundamente, como se calculasse a sua sinceridade ou discrição, e deitou um novo olhar em volta e inclinou-se para eles: havia um alfarrabista, aqui na baixa. Tinha-o descoberto noutro dia, entrara para bisbilhotar e estava a folhear uns livros quando apareceram uns números, antiquíssimos, interessantíssimos, de uma revista que se chamava, julgava, Cultura. Soviética. Livros proibidos, revistas proibidas, e Santiago viu estantes transbordando de folhetos que não se vendiam nas livrarias, de volumes que a polícia tinha retirado das bibliotecas. À sombra de paredes carcomidas pela humidade, entre teias de aranha e fuligem, eles consultavam os livros explosivos, discutiam e tomavam notas, em noites escuras como breu, à luz de candeeiros improvisados, faziam resumos, trocavam ideias, liam, instruíam-se, rompiam com a burguesia, armavam-se com a ideologia da classe operária.

 

- Não haverá mais revistas nesse alfarrabista? - perguntou Santiago.

 

- E capaz de haver - disse Jacobo. - Se quiserem, podemos ir lá ver. Amanhã, por exemplo.

 

- Também podíamos ir a uma exposição, a um museu - disse Aída.

 

- Pois podíamos, até agora não conheço nenhum museu de Lima - disse Jacobo.

 

- Nem eu - disse Santiago. - Aproveitemos estes dias, antes de começarem as aulas, e vamos visitá-los todos.

 

- Podemos ir todas as manhãs aos museus e à tarde percorrer os alfarrabistas - disse Jacobo. - Conheço uma série deles, às vezes encontram-se coisas boas.

 

- A revolução, os livros, os museus - diz Santiago. - Estás a ver o que é ser puro?

 

- Eu julgava que ser puro era viver sem fornicar, menino - diz Ambrosio.

 

- E também ao cinema uma tarde destas, ver um bom filme

 

- disse Aída. - E se o burguês do Santiago quiser pagar, que pague.

 

- Nunca mais te hei-de pagar nem que seja um copo de água

 

- disse Santiago. - Onde nos encontramos amanhã e a que horas?

 

- Então, magricela? - perguntou D. Fermín. - A oral foi muito difícil? Achas que passaste, magricela?

 

- Às dez na Plaza San Martin - disse Jacobo. - Na paragem do expresso.

 

- Acho que sim, papá - disse Santiago. - Já podes perder as esperanças de eu entrar alguma vez para a Católica.

 

- Devia puxar-te as orelhas por seres rancoroso - disse D. Fermín. - Então sempre passaste, já és mesmo um senhor universitário. Dá cá um abraço, magricela.

 

Não dormiste, pensa, tenho a certeza de que a Aída também não dormiu, que o Jacobo também não dormiu. Todas as portas abertas, pensa, em que altura e porquê começaram a fechar-se?

 

- Já fizeste o gosto ao dedo, já entraste em San Marcos - disse a D. Zoila. - Estás satisfeito, suponho.

 

- Satisfeitíssimo, mamã - disse Santiago. - Principalmente porque nunca mais terei de andar com gente fina. Não imaginas como estou satisfeito.

 

- Se o que queres é transformar-te em rústico, porque não vais antes para criado? - disse o Chispas. - Anda sem sapatos, não te laves, cria pulgas, sabichão.

 

- O que interessa é que o magricela tenha entrado na universidade - disse D. Fermín. - A Católica teria sido preferível, mas se ele quer estudar, estuda em qualquer sítio.

 

- A Católica não é melhor que San Marcos, papá - disse Santiago. - É um colégio de padres. E eu não quero nada com os padres, eu odeio os padres.

 

- Ainda hás-de ir para o Inferno, palerma - disse a Teté. - E tu deixas que ele levante a voz daquela maneira, papá?

 

- Dá-me uma raiva que tenhas esses preconceitos, papá - disse Santiago.

 

- Não são preconceitos, não me importa nada que os teus colegas sejam brancos, pretos ou amarelos - disse D. Fermín. - Eu quero é que estudes, que não percas o teu tempo e fiques sem profissão como o Chispas.

 

- O sabichão levanta a voz e tu descarregas em mim - disse o Chispas. - Sim senhor, muito bem, papá.

 

- Fazer política não é perder tempo - disse Santiago. - Ou cá só os militares é que têm direito a fazer política?

 

- Primeiro os padres, agora os militares, são sempre as mesmas músicas - disse o Chispas. - Muda de assunto, sabichão, pareces um disco riscado.

 

- Foste muito pontual - disse Aída. - Vinhas a falar sozinho, que engraçado. ,

 

- Nunca se pode estar bem contigo - disse D. Fermín. - Mesmo que te tratem com carinho, dás sempre um coice.

 

- É que sou um bocado doido - disse Santiago. - Não tens medo de te dar comigo?

 

- Está bem, não chores, não ajoelhes, acredito, fizeste-o por mim

 

- disse D. Fermín. - Não pensaste que, em vez de me ajudar, podias arruinar-me para toda a vida? Para que é que Deus te deu cabeça, desgraçado?

 

- Nem pensar nisso, os doidos encantam-me - disse Aída. Hesitei entre Direito e Psiquiatria.

 

- O que acontece é que eu te dou confiança a mais e tu abusas, magricela - disse D. Fermín. - Vai para o teu quarto, de uma vez por todas.

 

- Quando me castigas a mim, cortas-me a mesada, quando é com o Santiago, só o mandas deitar-se - disse a Teté. - Não há direito, papá.

 

- O que acontece é que ninguém está satisfeito com a sua sorte

 

- diz Ambrosio. - Nem o menino, que tem tudo. Veja lá o que direi eu.

 

- Corta-lhe também a mesada, papá - disse o Chispas. - A que propósito vêm essas preferências?

 

- Ainda bem que te decidiste por Direito - disse Santiago. Olha, aí vem o Jacobo.

 

- Não metam a colherada quando eu estou a falar com o magricela - disse D. Fermín. - Senão vocês é que ficam sem mesada.

 

Deram-lhe luvas de borracha, um guarda-pó, disseram-lhe: és envasilhadora. As pastilhas começavam a cair e ela tinha de as meter nos frascos e pôr-lhes um bocadinho de algodão por cima. Às que colocavam as tampas chamavam rolhadoras, etiquetadoras às que colocavam as etiquetas, e no fim da mesa quatro mulheres recebiam os frascos e arrumavam-nos em caixas de cartão: chamavam-lhes empacotadoras. A vizinha dela chamava-se Gertrudis Lama e tinha uma grande rapidez com os dedos. Amalia pegava às oito, parava ao meio-dia, tornava a pegar às duas e largava às seis. Quinze dias depois de estar no laboratório, a tia mudou-se de Surquillo para Limoncillo, e ao princípio Amalia ia almoçar a casa, mas tantos autocarros saíam caros e o tempo era muito apertado. Um dia chegou às duas e um quarto e a inspectora andas a abusar porque foste recomendada pelo patrão? Traz a comida como nós, aconselhou-a Gertrudis Lama, poupas tempo e dinheiro. A partir daí passou a levar uma sanduíche e fruta e a almoçar com Gertrudis num regato da Avenida Argentina onde vinham vendedores ambulantes oferecer-Lhes limonadas e gelados e tipos que trabalhavam nas vizinhanças meterem-se com elas. Ganho mais que dantes, pensava, trabalho menos e tenho uma amiga. Tinha umas certas saudades do seu quartinho e da Menina Teté, mas do desgraçado, desse já nem me lembro, dizia ela a Gertrudis Lama, e Santiago a Amalia?, e Ambrosio sim, lembra-se dela, menino?

 

Ainda não fazia um mês que estava no laboratório quando conheceu Trinidad. Dizia vulgaridades com mais graça que os outros, Amalia lembrava-se a sós dos disparates dele e soltava gargalhadas. Simpático, embora um bocado chanfrado, não?, disse-lhe um dia Gertrudis, e noutro o que tu te ris com ele, e noutro nota-se que estás a gostar do maluquinho. Só se fores tu, disse Amalia, e pensou estou a gostar dele?, e Santiago Amalia, tua mulher, a Amalia que morreu em Pucallpa? Uma tarde viu-o na paragem, à espera dela. O atrevidão entrou no eléctrico, sentou-se ao lado dela, mulata vaidosa, e começou com as suas graças, mulatinha convencida, ela estava séria por fora e morta de riso por dentro. Pagou-lhe o bilhete e quando Amalia se apeou, ele chauzinho amor. Era magrinho, mulato, doidíssimo, de cabelos lisos castanho-escuros, de boa figura. Os olhos eram rasgados e quando ganharam confianças um com o outro Amalia dizia-lhe tens raça de índio, e ele e tu és uma mulatinha branca, havemos de fazer uma linha mistura, e Ambrosio sim, menino, a própria. Outra vez acompanhou-a no eléctrico até à baixa e entrou com ela no autocarro para Limoncillo e também lhe pagou o bilhete e ela que poupanças. Trinidad queria convidá-la para lanchar mas Amalia não, não podia aceitar. Vamos descer, amorzinho, desça você, que confianças eram essas? Vou-me embora se nos apresentarmos, disse ele, e estendeu-lhe a mão, Trinidad López, muito prazer, e ela estendeu-lha, muito prazer, Amalia Cerda. No dia seguinte, Trinidad sentou-se ao lado dela no regato e começou a dizer a Gertrudis que amiguinha tão simpática que você tem, a Amalia tira-me o sono. Gertrudis dava-lhe troco e fizeram-se amigos, e depois Gertrudis a Amalia, porque é que não ligas ao maluquinho, esquecerás o tal Ambrosio, e Amalia desse já nem me lembro, e Gertrudis palavra?, e Santiago já tinhas alguma coisa com ela quando ela trabalhava lá em casa? Amalia chocava-se com os disparates que Trinidad dizia, mas gostava da boca dele e de ele não tentar ter atrevimentos com ela. A primeira vez que tentou foi no autocarro para Limoncillo. Estava à cunha, iam esmagados um contra o outro, e então reparou que ele estava a começar a roçar-se. Não podia retroceder, tens de te fazer lucas. Trinidad olhava-a sério, aproximava a cara dela, e de repente amo-te, e beijou-a. Sentiu calor, que alguém se ria. Abusador, quando desceram ficou furiosa, tinha-a envergonhado diante de todos, atrevidão. Era a mulher que procurava, dizia-lhe Trinidad, trago-te no coração. Nem que eu fosse doida para acreditar no que os homens dizem, dizia Amalia, tu só pensas é em abusar. Foram até casa; antes de chegarem, anda um bocadinho até aqui à esquina, e ali beijou-a outra vez, és tão boa, abraçava-a e a voz enfraquecia-lhe, amo-te, sente, sente como me pões. Ela agarrava-lhe as mãos, não o deixou abrir-lhe a blusa, levantar-lhe a saia: já nessa altura se tinham apaixonado, menino, mas as coisas a sério começaram depois.

 

Trinidad trabalhava perto do laboratório, numa fábrica têxtil, e contou a Amalia nasci em Pacasmayo e trabalhei em Trujillo numa garagem. Mas que tinha estado preso por ser aprista só lhe contou depois, um dia que passavam pela Avenida Arequipa. Havia uma casa com jardins e árvores, em volta trincheiras, carros da polícia, guardas, e Trinidad levantou a mão esquerda e disse ao ouvido de Amalia Víctor Raul, o povo aprista saúda-te, e ela endoideceste? Aquela é a Embaixada da Colômbia, disse-lhe Trinidad, e que lá dentro estava asilado o Haya de la Torre, e que o Odría não queria deixá-lo sair do país e por isso é que havia tantos chuis. Desatou a rir e contou-lhe: uma noite eu e um colega passámos por aqui a fazer A-pra, A-pra com a buzina do carro, e os polícias perseguiram-nos e meteram-nos na prisão. Trinidad era aprista?, e ele até à morte, e tinha estado preso?, e ele sim, para que vejas a confiança que tenho em ti. Tinha-se tornado aprista havia dez anos, contou ele, porque nessa garagem de Trujillo todos pertenciam ao partido, e explicou-lhe Víctor Raul Haya de Ia Torre é um sábio, e a Apra o partido dos pobres e mestiços do Peru. Tinha estado preso pela primeira vez em Trujillo, porque a polícia o apanhara a pintar nas ruas Viva a Apra. Quando saiu do comissariado, não o receberam na garagem e por isso veio para Lima, e aqui o partido arranjou-me trabalho numa fábrica da Vitarte, contou ele, e que durante o governo de Bustamante tinha sido defensista: ia com os companheiros furar as manifestações dos oligarcas ou dos vermelhos e saía sempre magoado. Não por cobardia, o físico é que não ajudava, e ela claro, és tão magrinho, e ele mas macho, da segunda vez que tinha estado preso os da secreta tinham-lhe feito cuspir os dentes e nem assim denunciei ninguém. Quando veio o levantamento de 3 de Outubro no Callao e o Bustamante declarou a Apra ilegal, os companheiros da Vitarte disseram-lhe esconde-te, mas ele não tenho medo, não tinha feito nada. Continuou a ir trabalhar e depois, em 27 de Outubro, veio a revolução do Odría e perguntaram-lhe nem agora te escondes?, e ele nem agora. Na primeira semana de Novembro, uma tarde, ao sair da fábrica, aproximou-se dele um tipo, você é Trinidad López?, o seu primo está à sua espera naquele carro. Ele desatou a fugir porque não tinha primos, mas apanharam-no. Na prefeitura queriam que ele denunciasse os planos terroristas da seita, ele que planos, que seita?, e dissesse onde e quem editava La Tribuna, clandestina. Foi então que lhe fizeram saltar aquele par de dentes, e Amalia quais?, e ele quais?!, e ela pois se tens os dentes todos inteirinhos, e ele tinha posto postiços e não se notava nada. Esteve preso oito meses, a prefeitura, a penitenciária, o Frontón, e quando o soltaram tinha perdido dez quilos. Esteve três meses sem trabalho antes de entrar na fábrica da Avenida Argentina. Agora as coisas corriam bem, já era especializado. Na noite em que o levaram para o comissariado por causa daquilo da Embaixada da Colômbia, pensou lixei-me outra vez, mas acreditaram que tivesse sido alguma bebedeira e soltaram-no no dia seguinte. Agora tinha de ter cuidado com duas coisas: com a política, porque tinham ficha dele, e com as mulheres, umas cascavéis de mordedura fatal, dessas era ele que tinha fichas. A sério?, perguntou-lhe Amalia, e ele mas apareceste tu e tornei a cair, lá em casa ninguém sabia que havia alguma coisa entre ti e a Amalia, diz Santiago, nem os meus irmãos riem os velhotes, e Trinidad a beijá-la, e ela larga-me, atrevido, e Ambrosio não sabiam porque nós tínhamos as nossas coisas às escondidas, menino, e Trinidad amo-te, toma, para que sintas, e Santiago porquê às escondidas?

 

Amalia ficou tão assustada ao saber que Trinidad tinha estado na cadeia e que podiam prendê-lo outra vez, que nem o contou a Gertrudis. Mas depressa descobriu que Trinidad se interessava mais pelo desporto do que pela política, e dentro do desporto pelo futebol, e dentro do futebol pela equipa do Municipal. Arrastava-a consigo ao estádio bem cedinho para arranjar um bom lugar, durante o jogo ficava rouco de tanto gritar, dizia palavrões, se metiam um golo na baliza do magro Suárez, Trinidad tinha jogado no juvenis do Municipal quando trabalhava na Vitarte, e agora tinha formado uma equipazinha na fábrica da Avenida Argentina, e todos os sábados à tarde tinha jogo. Tu e o desporto são o meu vício, dizia a Amalia, e ela há-de ser afinado, bebe pouco e não parecia mulherengo. Além do futebol, gostava de boxe, da luta livre. Levava-a ao Luna Parque e explicava-lhe aquele touro que sobe ao ringue com uma capa de toureiro é o espanhol Vicente Garcia, e que torcia pelo Yanqui, não porque fosse bom, mas porque ao menos era peruano. Amalia gostava do Peta, tão elegante, estava a lutar e de repente dizia ao árbitro alto e penteava a trunfa, e odiava o Toro, que ganhava metendo dedos nos olhos e atirando pontapés ao estômago. Mas no Luna Parque quase não se viam mulheres, havia bêbedos atrevidos e nas tribunas armavam-se cenas de pancadaria piores que no ringue. Faço-te a vontade com o futebol, mas basta de desporto, dizia ela a Trinidad, leva-me antes ao cinema. Como quiseres, amorzinho, mas andava sempre com artimanhas para ir ao Luna Parque. Mostrava-lhe o anúncio da luta livre de La. Crónica, punha-se a falar de chaves e derrubes, esta noite o Médico tira a máscara se ganhar ao Mongol, não achas que era bestial? Não acho, dizia-lhe Amalia, deve ser como todas as vezes. Mas já se tinha afeiçoado a ele e às vezes bom, esta noite vamos ao Luna Parque, e ele feliz.

 

Um domingo estavam a comer uma empada depois da luta livre e Amalia viu que Trinidad a olhava de uma maneira esquisita: que tens? Deixa a tua tia, que viesse com ele. Fingiu-se aborrecida, discutiram, teimou tanto comigo que acabou por me convencer, contou depois Amalia a Gertrudis Lama. Foram a casa de Trinidad, em Mirones, e essa noite tiveram a grande discussão. Esteve muito carinhoso ao princípio, a beijá-la e a abraçá-la, chamando-lhe amorzinho com voz de moribundo, mas ao amanhecer viu-o pálido, olheirento, despenteado, com a boca a tremer: agora” conta-me quantos passaram já por aqui. Amalia só um (tonta, refinadíssima tonta chamou-lhe Gertrudis Lama), só o motorista da casa em que estive a servir, ninguém mais lhe tinha tocado, e Ambrosio: para os seus pauzinhos não descobrirem, se calhar julgava que eles haviam de gostar, não? Trinidad começou a insultá-la e a insultar-se por a ter respeitado, e com uma palmada atirou-a ao chão. Alguém tocou e abriu a porta, Amalia viu um velho que dizia que foi, Trinidad, e Trinidad insultou-o também e ela vestiu-se e saiu a correr. Nessa manhã, no laboratório as pastilhas escorregavam-lhe dos dedos e mal podia falar do desgosto que sentia. Os homens têm lá o seu orgulho, disse-lhe Gertrudis, quem é que te mandou contar-lhe, devias era ter negado, palerma, negavas. Mas ele há-de perdoar-te, consolou-a, há-de voltar a procurar-te, e ela odeio-o, nem morta fazia as pazes com ele, e Ambrosio mas depois tinham-se zangado, menino, Amalia lá seguiu o seu caminho e até teve umas paixões por aí, e Santiago pois foi, com um aprista, e Ambrosio só muito depois e por acaso se tinham visto outra vez. Essa tarde, ao regressar a Limoncillo, a tia chamou-lhe doida e desavergonhada, não acreditou que ela tivesse dormido em casa de uma amiga, hás-de acabar perdida e da próxima vez que dormisse fora expulso-te de casa. Passou uns dias sem apetite e abatida, umas noites sem dormir que nunca mais amanheciam, e uma tarde ao sair do laboratório viu Trinidad na paragem. Entrou no eléctrico com ela, e Amalia não olhava para ele, mas sentia calor ao ouvi-lo falar. Parva, pensava, gostas dele. Ele pedia-lhe perdão e ela nunca te hei-de perdoar, ainda por cima tinha-lhe feito a vontade indo a casa dele, e ele esqueçamos o passado, amorzinho, não sejas soberba. Em Limoncillo quis abraçá-la e ela empurrou-o e ameaçou-o com a polícia. Falaram, discutiram, Amalia amoleceu e, na esquinazinha de sempre, ele, suspirando embebedei-me todas as noites desde aquela noite, Amalia, o amor tinha sido mais forte que o orgulho, Amalia. Pegou nas suas coisas às escondidas da tia, chegaram a Mirones ao anoitecer, de mão dada. Na rua, Amalia viu o velho que tinha entrado pelo quarto dentro e Trinidad apresentou-o a Amalia: a minha companheira, D. Atanasio. Nessa mesma noite quis que Amalia deixasse o trabalho: alguma vez estava coxo, não podia muito bem ganhar para ambos? Ela cozinharia para ele, lavar-lhe-ia a roupa e depois tomaria conta dos filhos. Os meus parabéns, disse o engenheiro Carrillo a Amalia, direi a D. Fermín que vais casar. Gertrudis abraçou-a com os olhos húmidos, tenho pena de que te vás embora, mas fico satisfeita por ti. E como sabia que o tal com quem Amalia viveu era aprista, menino? Há-de tratar-te bem, prognosticou-lhe Gertrudis, não te enganará. Porque Amalia tinha ido lá a casa duas vezes pedir ao velhote que tirasse o aprista da prisão, Ambrosio.

 

Trinidad era bem-humorado, carinhoso, Amalia pensava o que Gertrudis me disse cumpre-se. Só com o que ele ganhava já não podiam ir os dois ao estádio, de maneira que Trinidad ia sozinho, mas ao domingo à noite iam juntos ao cinema. Amalia tornou-se amiga da Sr.a Rosário, uma lavadeira com muitos filhos que morava lá na rua e era muito boa pessoa. Ajudava-a a fazer os embrulhos, e às vezes D. Atanasio vinha conversar com elas, vendedor de lotarias, borrachão e conhecedor da vida toda da vizinhança. Trinidad regressava a Mirones lá para as sete, ela tinha a comida dele pronta, um dia parece-me que estou grávida, amor. Puseste-me a corda ao pescoço e agora espetas-me a faca, dizia Trinidad, oxalá que seja homem, vão julgar que é teu irmão, que mamãzinha tão nova que ele vai ter. Aqueles meses, pensaria Amalia depois, foram os melhores da minha vida. Lembraria sempre os filmes que viram e os passeios que deram pela baixa e pelos balneários, as vezes que comeram torresmos no Rímac, e a Fiesta de Amancaes a que foram com a Sr.a Rosário. Vai haver aumento em breve, vem mesmo a calhar, e Ambrosio esse têxtil também morreu; tinha morrido, ai sim? Sim, meio doido, Amalia pensava que dumas sovas que lhe tinham dado no tempo do Odría. Mas não houve aumento, diziam que havia crise, Trinidad voltava para casa mal-humorado porque aqueles caralhos agora andavam a falar em greve. Aqueles caralhos do sindicato, praguejava, aqueles fura-greves que são pagos pelo Estado. Tinham-se feito eleger com o auxílio dos informadores e agora falavam em greve. A eles não lhes aconteceria nada, mas ele tinha ficha e diriam o aprista é o agitador. E realmente houve greve e no dia seguinte D. Atanasio entrou a correr lá em casa: um carro da polícia parou à porta e levou Trinidad. Amalia foi com a Sr.” Rosário à prefeitura. Pergunte ali, pergunte acolá, não conheciam Trinidad López. Pediu dinheiro emprestado para o autocarro à Sr.a Rosário e foi a Miraflores. Quando chegou à casa, não se atrevia a tocar, e se me aparece ele? Esteve a andar de um lado para outro em frente da porta e de repente viu-o. Cara de espanto, de felicidade, e, ao vê-la grávida, de fúria. Ah, bonito, bonito, apontava para a barriga dela, bonito, bonito. Não vim cá para te ver a ti, pôs-se Amalia a chorar, deixa-me entrar. É verdade que te juntaste com um tipo da fábrica têxtil, perguntou Ambrosio, o filho que esperas é dele? Ela entrou em casa e deixou-o a falar sozinho, ficou à espera no jardim, fitando a cerca de gerânios, a fontezinha de azulejos, o seu quartinho do fundo, sentiu tristeza, tremiam-lhe os joelhos. Com os olhos toldados, viu alguém a sair, como está, Menino Santiago, olá Amalia. Estava mais alto, mais homem, sempre tão magrinho. Pois cá estava ela a visitá-los, menino, que é que lhe tinha acontecido à cabeça. Ele tirou a boina, tinha o cabelo curtíssimo e com um aspecto horrível. Tinham-lhe cortado o cabelo à tigela, era assim que baptizavam os caloiros na universidade, mas a ele o cabelo estava a demorar muito a crescer. E então Amalia desatou a chorar, que D. Fermín que é tão bom me ajude outra vez, o marido não tinha feito nada, tinham-no metido na prisão sem mais nem menos, Deus lho pagaria, menino. Apareceu D. Fermín de bata, acalma-te, pequena, que tens tu? O Menino Santiago contou-lhe, e ela não fez mal nenhum, D. Fermín, ele não era aprista, gosta de futebol, até que a certa altura D. Fermín começou a rir: calma, calma, vamos lá a ver. Foi telefonar, demorou-se, Amalia sentia-se emocionada por estar outra vez na casa, por ter visto Ambrosio, do que acontecia a Trinidad. Pronto, disse D. Fermín, diz-lhe que não torne a meter-se em sarilhos. Ela queria beijar-lhe a mão e D. Fermín quieta, pequena, tudo tinha remédio menos a morte. Amalia passou a tarde com a D. Zoila e a Teté. Que bonita que ela estava, que olharapos, e a senhora obrigou-a a ficar para almoçar e ao despedir-se, para dares uma coisa ao teu filho, deu-lhe duas libras.

 

No dia seguinte, Trinidad apareceu em Mirones. Furioso, aqueles fura-greves tinham-lhe partido o canastro, praguejando como Amalia nunca o ouvira, tinham-no acusado de mil e uma coisas, por causa daqueles conas da mãe, os tipos da secreta tinham-no espancado outra vez. Murros, chicotadas, para que denunciasse não sabia o quê nem quem. Estava mais enfurecido com os fura-greves do sindicato do que com os tipos da secreta: quando a Apra triunfar, esses cabrões hão-de ver, esses vendidos ao Odría hão-de ver. Já não estás no quadro, disseram-lhe na fábrica, despediram-te por abandono do trabalho. Se me queixo ao sindicato, já sei para onde é que me mandam, e se me queixo ao Ministério, já sei para onde é que me mandam. Perdes o tempo a insultar as mães dos fura-greves, dizia Amalia, era melhor que procurasses trabalho. Quando começou a correr as fábricas, diziam que a crise continuava, e andaram a viver de empréstimos, e de repente Amalia apercebeu-se de que Trinidad dizia mais mentiras que nunca: e de que tinha morrido Amalia, Ambrosio? Saía às oito da manhã e voltava meia hora depois e enfiava-se na cama, caminhei por toda a cidade à procura de trabalho, estava meio morto. E Amalia: mas se tu saíste e voltaste logo a seguir. E Ambrosio: de uma operação, menino. E ele: tinham ficha dele, os fura-greves passaram palavra, olharam-no como se ele tivesse peste, nunca arranjarei trabalho. E Amalia: deixa-te de fura-greves e procura trabalho, ainda morriam de fome. Não posso, dizia ele, estou doente, e ela estás doente do quê? Trinidad metia o dedo na garganta até lhe darem vómitos e vomitava: como é que havia de procurar trabalho, se estava doente? Amalia voltou a Miraflores, chorou à D. Zoila, a senhora falou a D. Fermín, e o senhor ao Menino Chispas diz ao Carrillo que a tornem a admitir. Quando lhe contou que a tinham readmitido no laboratório, Trinidad pôs-se a olhar para o tecto. Orgulhoso, que mal é que tem que eu trabalhe até tu te curares, não estás doente? Quanto lhe tinham pago para me humilhares agora que me apanhas derrotado?, perguntava Trinidad.

 

Gertrudis Lama ficou contente quando a viu outra vez no laboratório, e a inspectora que grande cunha, entras e sais de um emprego como quem muda de camisa. Nos primeiros dias, as pastilhas escapavam-se-lhe e os frascos giravam-lhe, mas ao fim de uma semana estava outra vez hábil. Tens de o levar ao médico, dizia-lhe a Sr.a Rosário, não vez que passa todo o dia a dizer tolices? Mentira, só à hora da comida ou quando se tocava no assunto do trabalho é que disparatava, depois era o mesmo de antigamente. Ao acabar de comer, metia o dedo à boca até vomitar, e então estou doente, amorzinho. Mas se Amalia não fizesse caso e limpasse o vomitado como se nada fosse, daí a pouco esquecia-se da sua doença e como vai isso no laboratório, e até lhe dizia piadas e fazia meiguices. Há-de-lhe passar, pensava, rezava, chorava Amalia às escondidas dele, há-de voltar a ser o que era. Mas não lhe passava e até lhe deu para se pôr à porta da rua a chamar fura-greves aos transeuntes. Queria dar-lhes patadas e aplicar-lhes as chaves da luta livre, e é tão magrinho que mo trazem sempre a deitar sangue, contava Amalia a Gertrudis. Uma noite vomitou sem meter o dedo à boca. Ficou pálido e Amalia levou-o no dia seguinte ao Hospital Operário. Nevralgias, disse o médico, e que tomasse umas colherinhas todas as vezes que lhe doesse a cabeça, e desde então Trinidad passava o dia a dizer que a cabeça lhe ia estoirar. Tomava as colherzinhas, e náuseas. De tanto brincar aos doentes, acabaste por adoecer, repreendia-o Amalia. Tornou-se orgulhoso, praguejador, fazia troça de tudo e já quase não conseguiam conversar. Ao vê-la chegar do trabalho o quê, ainda não me abandonaste?, e a pequenita?, pergunta Santiago. Passava o tempo deitado na cama, quando não me mexo sinto-me bem, ou a conversar com D. Atanasio, e não voltara a perguntar pelo filho. Se Amalia lhe dizia estou a engordar ou já se mexe, olhava-a como se não soubesse do que ela falava. Comia mal, por causa dos vómitos. Amalia roubava uns pacotinhos de papel no laboratório e pedia-lhe vomita para aí, não vomites no chão, e ele de propósito abria a boca por cima da mesa ou da cama e, com uma vozinha enfadada, se te faz tanto nojo, vai-te embora, anda: tinha ficado em Pucallpa, menino. Mas depois arrependia-se, desculpa, amorzinho, tornei-me mau, suporta-me mais um bocadinho porque vou morrer. Iam de vez em quando ao cinema. Amalia quis entusiasmá-lo a ir ao estádio, mas ele agarrava-se à cabeça: não, estava doente. Ficou magro como um cão, as calças, que não fechavam na braguilha, ficavam-lhe agora a dançar, já não pedia a Amalia corta-me o cabelo como antigamente, e porque é que a tinha deixado em Pucallpa?, não te decepcionaste de um indivíduo tão frouxo que à primeira queda abandona sem lutar e se faz doido e se deixa sustentar pela mulher?, perguntou-lhe Gertrudis. Pelo contrário, gostava mais dele desde que o via transformado num farrapo. Pensava nele todo o tempo, sentia que o mundo acabava quando o ouvia dizer disparates, quando ele a despia aos puxões na escuridão, sentia uma vertigem. Uma senhora que se tinha feito amiga de Amalia tinha-se oferecido para a criar, menino. As dores de cabeça de Trinidad iam e vinham, voltavam a ir e vir, e ela nunca sabia se eram reais ou invenções ou exageros E, além disso, Ambrosio tinha-se metido num sarilho e saíra a toda a pressa de Pucallpa. Só os vómitos é que nunca lhe passavam. A culpa é tua, dizia Amalia, e ele dos fura-greves, amorzinho, a ela não lhe mentiria.

 

Um dia Amalia encontrou a Sr.a Rosário à entrada do beco, com as mãos nas ancas, os olhos como brasas; fechou-se no quarto com a Celeste, tinha querido abusar dela, só abriu a porta quando o ameacei com a polícia. Amalia encontrou Trinidad a lamentar-se, a Sr.a Rosário era uma mal intencionada, chamar a polícia sabendo que ele tinha filha, perversa, ele queria lá saber da gorducha da Celeste, queria era pregar-lhe uma partida. Desavergonhado, ingrato, insultava-o Amalia, chulo, doido, e por fim atirou-lhe um sapato. Ele deixava-a gritar-lhe e dar-lhe palmadas sem protestar. Nessa noite atirou-se ao chão apertando a cabeça com as mãos e Amalia e D. Atanasio arrastaram-no para a rua e meteram-no num táxi. Na Assistência Pública deram-lhe uma injecção. Voltaram a Mirones a passo de procissão, com Trinidad no meio, parando para descansar em cada quarteirão. Deitaram-no, e, antes de adormecer, Trinidad fê-la chorar: deixa-me, que não arruinasse a sua vida com ele, estava acabado, procura alguém que te corresponda melhor. A pequenita chamava-se Amalia Hortênsia e devia ter já cinco ou seis aninhos, menino.

 

Um dia, ao regressar do laboratório, encontrou Trinidad aos saltos: acabaram-se as nossas penas, tinha trabalho. Abraçava-a, beliscava-a, parecia feliz. Mas e a tua doença, perguntava Amalia apatetada, e ele foi-se, curei-me. Tinha-se encontrado na rua com um companheiro, o Pedro Flores, contou-lhe ele, um aprista com quem esteve preso no Frontón, e quando Trinidad lhe contou o sucedido o Pedro anda comigo, e levou-o ao Callao, apresentou-o a outros companheiros, e nessa mesma tarde arranjou trabalho numa loja de móveis. Estás a ver, Amalia, os companheiros eram assim, sentia-se aprista até à medula, viva Víctor Raul. Ganharia pouco, mas que tinha isso, se lhe levantara o moral. Trinidad saía muito cedo, mas voltava antes de Amalia. Melhorou de humor, dói-me menos a cabeça, os companheiros tinham-no levado a um médico que não lhe levou nada e lhe deu umas injecções e é como vês, Amalia, dizia-lhe, o partido trata de mim, é a minha família. Pedro Flores nunca vinha a Mirones, mas Trinidad saía muitas noites para se reunir com ele e Amalia andava com ciúmes, achas que eu te podia enganar quando tu me ajudaste tanto?, ria-se Trinidad, juro-te que vou a reuniões clandestinas com os meus companheiros. Não te metas em política, dizia-lhe Amalia, da próxima vez matam-te. Deixou de falar dos fura-greves, mas continuava com os vómitos. Muitas tardes ia dar com ele estendido na cama, com os olhos encovados e sem vontade de comer. Uma noite em que tinha ido a uma reunião, veio D. Atanasio e disse a Amalia anda daí e levou-a até à esquina. Estava lá Trinidad, sozinho, sentado no passeio, a fumar. Amalia esteve a espiá-lo e quando Trinidad regressou ao beco que tal te correu?, e ele bem, discutimos muito. Ela pensou: outra mulher. Mas então porque estava tão carinhoso? Na primeira semana de trabalho esperou Amalia com o sobretudo fechado, vamos comprar qualquer coisa à Sr.a Rosário para lhe passar a zanga, escolheram um perfumezinho, e depois que queres que te compre a ti, amorzinho? Paga antes a renda, disse-lhe Amalia, mas ele queria gastar aquele dinheiro com ela, amorzinho. Amalita pela mãe, e Hortênsia por uma senhora onde Amalia tinha trabalhado, menino, uma de quem ela gostava muito e que também morreu: claro que depois do que fizeste tens de sair de cá, infeliz, disse D. Fermín. Foste a minha salvação, dizia-lhe Trinidad, diz-me o que queres. E então Amalia vamos ao cinema. Viram um filme da Libertad Lamarque, triste, a história era parecida com a deles, Amalia saiu aos suspiros e Trinidad tens muitos sentimentos, amorzinho, vales muito. Estiveram a divertir-se e lembrou-se outra vez do filho e apalpava-lhe a barriga, que gordinho. A Sr.a Rosário desatou a chorar por causa do perfumezinho e disse a Trinidad não sabias o que estavas a fazer, dá cá um abraço. No outro domingo, Trinidad vamos ver a tua tia, faria as pazes com Amalia quando soubesse do filho. Foram a Limoncillo e Trinidad entrou primeiro e depois saiu a tia com os braços abertos a chamar Amalia. Ficaram para comer com ela e Amalia pensava já lá vai o mau tempo, tudo se compôs. Sentia-se já muito pesada. Gertrudis Lama e outras colegas do laboratório tinham-lhe feito roupinhas para o filho.

 

No dia em que Trinidad desapareceu, Amalia tinha ido ao médico com Gertrudis. Voltou a Mirones tarde e Trinidad não estava em casa, amanheceu e não havia meio de chegar, e por volta das dez da manhã parou um táxi na rua e saiu dele um tipo que perguntou por Amalia: quero falar consigo a sós, era Pedro Flores. Meteu-a no táxi e ela que é que aconteceu ao meu marido?, e ele está preso. O senhor é que tem a culpa e ele olhou-a como se ela tivesse endoidecido, o senhor convenceu-o a meter-se na política, e Pedro Flores eu, na política? Ele nunca se tinha metido nem meteria nunca na política porque odiava a política, minha senhora, e pelo contrário, o maluco do Trinidad é que esta noite o podia ter metido num bom sarilho. E contou-lhe: regressaram de uma festazinha em Barranco e, ao passarem pela Embaixada da Colômbia, Trinidad pára ali um bocadinho, tenho de sair; Pedro Flores julgou que ele ia urinar, mas saiu do táxi e começou a gritar fura-greves, viva a Apra, Víctor Raul, e quando ele arrancou assustado viu que os polícias lhe caíam em cima. O senhor é que tem a culpa, chorava Amalia, a Apra é que tem a culpa, vão apanhá-lo. Que tinha ela, de que é que está a falar: nem Pedro Flores era aprista nem Trinidad tinha sido alguma vez aprista, sei-o de sobra porque somos primos, tinham-se criado juntos na Victoria, nascemos na mesma casa, minha senhora. Mentira, ele nasceu em Pacasmayo, choramingava Amalia, e Pedro Flores quem é que lhe meteu essa na cabeça? E jurou-lhe: nasceu em Lima e nunca saiu de cá e nunca se meteu em política, só uma vez é que o prenderam por engano ou sabe-se lá porquê na altura da revolução do Odría e quando saiu da prisão deu-lhe na maluqueira fazer-se passar por nortenho e por aprista. Que fosse à prefeitura, diga-lhes que ele estava bêbedo e que anda meio atrevido, eles soltam-no. Deixou-a na rua e a Sna Rosário acompanhou-a a Miraflores pedinchar a D. Fermín. Na prefeitura não está, disse D. Fermín depois de telefonar, que voltasse amanhã, ia averiguar. Mas na manhã seguinte entrou um rapazito lá no beco: Trinidad López estava no San Juan de Dios, minha senhora. No hospital, mandavam Amalia e a Sr.a Rosário de uma sala para outra, até que uma Irmã velhinha, com barbicha de homem, ah, sim, e começou a dar conselhos a Amalia. Tinha de resignar-se. Deus levou o teu marido, e enquanto Amalia chorava contaram à Sr.’ Rosário que o tinham encontrado naquela madrugada à porta do hospital, que tinha morrido de derrame cerebral.

 

Quase não chorou Trinidad, porque no dia seguinte ao enterro a tia e a Sr.a Rosário tiveram de a levar para a maternidade, as dores já eram seguidas, e naquela madrugada nasceu morto o filho de Trinidad. Esteve cinco dias na maternidade, compartilhando uma cama com uma preta que tinha dado à luz dois gémeos e que procurava conversar com ela durante todo o tempo. Ela respondia-lhe, sim, bem, não. A Sr.” Rosário e a tia vinham vê-la todos os dias e traziam-Lhe de comer. Não sentia dor nem desgosto, unicamente cansaço, comia sem vontade, custava-lhe falar. Ao quarto dia apareceu Gertrudis, porque é que não avisaste, o engenheiro Carrillo podia julgar Sie ela tinha abandonado o trabalho, o que vale é que tens cunha de Fermín. O engenheiro que julgasse o que quisesse, pensava Amalia. Ao sair da maternidade foi ao cemitério levar flores a Trinidad. Na campa estava ainda a estampazinha que a Sr.” Rosário tinha posto e as letras que o seu primo Pedro Flores tinha desenhado no gesso com um pauzinho. Sentia-se fraca, vazia, aborrecida, se alguma vez tivesse dinheiro, havia de comprar uma lápide e hei-de mandar gravar Trinidad López em letras douradas. Pôs-se a falar baixinho com ele, porque é que te foste embora agora que tudo se estava a compor, a repreendê-lo, porque é que me fizeste acreditar em tantas mentiras, a contar-lhe, levaram-me para a maternidade, o filho dele tinha morrido, oxalá o tenhas conhecido lá em cima. Voltou a Mirones lembrando-se daquele casaco azul do qual Trinidad dizia é a minha elegância e de como ela lhe cosia os botões tão mal que voltavam a cair. O quartinho estava fechado a cadeado, o dono tinha vindo com um bufarinheiro e vendera tudo o que encontrara, deixem-lhe alguma coisa do marido para recordação, tinha-lhe implorado a Sr.” Rosário, mas não quiseram, e Amalia tanto se me dá. A tia tinha metido hóspedes na casita de Limoncillo e não tinha lugar para ela, mas a Sr.” Rosário arranjou-lhe lugar num dos dois quartos, e Santiago em que sarilhos é que te meteste, porque é que tiveste que sair de Pucallpa à pressa? Uma semana depois apareceu, em Mirones, Gertrudis Lama, porque é que não tinha voltado ao laboratório, até quando julgas tu que esperam por ti? Mas Amalia nunca mais voltaria ao laboratório. E então que é que ia fazer? Nada, ficar aqui até me mandarem embora, e a Sr.” Rosário tonta, eu nunca te mando embora. E porque é que não queria voltar ao laboratório? Não sabia, mas não voltava, e dizia-o com tal cólera que Gertrudis Lama não perguntou mais nada. Um sarilho tremendo, tinha tido de se esconder por causa de um assunto de um camião, nem era bom lembrar-se. A Sr.” Rosário obrigava-a a comer, aconselhava-a, tentava fazê-la esquecer. Amalia dormia entre a Celeste e a Jesus, e a mais pequena das filhas da Sr.” Rosário queixava-se de ela falar com Trinidad e com o filho às escuras. Ajudava a Sr.” Rosário a lavar a roupa num alguidar, a estendê-la nos cordéis, a aquecer os ferros de carvão. Fazia-o sem dar por isso, com o espírito em branco, as mãos frouxas. Anoitecia, amanhecia, entardecia, vinha Gertrudis visitá-la, vinha a tia, ela ouvia-as e dizia-lhes a tudo que sim e agradecia-lhes as prendazinhas que traziam. Continuas a pensar no Trinidad?, perguntava-lhe todos os dias a Sr.” Rosario, e ela sim, e também no seu filhito. És parecida com o Trinidad, dizia-lhe a Sr.a Rosário, baixas a cabeça, não lutas, que se esquecesse da sua desgraça, ainda és nova, podia refazer a vida. Amalia não saía de Mirones, andava um autêntico farrapo, raramente se lavava e penteava, um dia ao ver-se ao espelho pensou se o Trinidad te visse já não gostaria de ti. À noite, quando D. Atanasio regressava, metia-se no quarto a conversar com ele. Vivia num quartinho de tecto tão baixo que Amalia não conseguia estar de pé, e havia no chão um colchão estripado e mil e um trastes. Enquanto conversavam, D. Atanasio puxava da sua garrafinha e bebia. Achava que os da secreta tinham apanhado Trinidad, D. Atanasio, que quando viram que lhes morria nas mãos o tinham deixado à porta do San Juan de Dios ? Às vezes, D. Atanasio, sim, é capaz de ter sido isso, e outras não, deviam tê-lo soltado e ele ter-se-ia sentido mal e teria ido sozinho ao hospital, e outras que te importa isso agora, já tinha morrido, pensa em ti, esquece-te dele.

 

Teria sido nesse primeiro ano, ao ver que San Marcos era um bordel e não o paraíso que julgavas? De que é que não tinha gostado, menino? Não era de as aulas começarem em Junho em vez de Abril, nem de os catedráticos serem decrépitos como as carteiras, mas sim do fastio dos seus colegas quando se falava de livros, da indolência dos seus olhos quando de política. Os mestiços pareciam-se terrivelmente com os meninos bem, Ambrosio. Os professores deviam receber ordenados miseráveis, deviam trabalhar em ministérios, deviam dar aulas em colégios, não se lhes podia exigir mais. Era preciso compreender a apatia dos estudantes, dizia Jacobo, o sistema formou-os assim: precisavam de ser agitados, doutrinados, organizados. Mas onde estavam os comunistas, onde estavam ainda que fosse os apristas? Todos presos, todos deportados? Eram críticas retrospectivas, Ambrosio, nessa altura não se apercebia e gostava de San Marcos. Que seria do catedrático que num ano glosou dois capítulos da «Síntese de Investigações Lógicas» publicada pela Revista de Occidente? Suspender fenomenologicamente o problema da raiva, pôr entre parêntesis, diria Husserl, a grave situação criada pelos cães de Lima: que cara faria o director? Que seria daquele que só fazia provas de ortografia? Que seria do que perguntou no exame erros de Freud?

 

- Enganas-te, deve-se ler tudo, até os obscurantistas - disse Santiago.

 

- O ideal seria lê-los no próprio idioma - disse Aída. - Gostaria de saber francês, até alemão.

 

- Lê tudo, mas com sentido crítico - disse Jacobo. - Os progressistas parecem-te sempre maus e os decadentes bons. É isso que eu te critico.

 

- Só digo que Assim Se Temperou o Aço me aborreceu e que gostei de O Castelo - protestou Santiago. - Não estou a generalizar.

 

- A tradução do Ostrovsky deve ser má e a do Kafka boa, não discutam mais - disse Aída.

 

Que seria do velhote pequenino, barrigudo, de olhos azuis e cabeleira branca que explicava as fontes históricas? Era tão bom que dava vontade de seguir História em vez de Psicologia, dizia Aída, e Jacobo sim, só era pena que fosse hispanista e não indigenista. As aulas abarrotadas dos primeiros dias foram esvaziando, em Setembro só metade dos alunos assistiam e já não era difícil conseguir lugares sentados nas aulas. Não se sentiam defraudados, não era que os professores não soubessem ou não quisessem ensinar, pensa, a eles também não lhes interessava aprender. Porque eram pobres e tinham de trabalhar, dizia Aída, porque estavam contaminados pelo formalismo burguês e só queriam o diploma, dizia Jacobo; porque para ser licenciado não era preciso assistir nem interessar-se nem estudar: bastava esperar. Estava satisfeito em San Marcos, magricela, era verdade que ali ensinavam os cérebros do Peru, magricela, porque é que se tinha tornado tão reservado, magricela? Sim, papá, estava, era verdade, papá, não se tinha tornado reservado, papá. Entravas e saías de casa como um fantasma, Zavalita, fechavas-te no quarto e não ligavas nenhuma à família, pareces um urso dizia a D. Zoila, e o Chispas que ias ficar chanfrado de tanto ler, e a Teté porque é que já não saías com o Popeye, sabichão? Porque o Jacobo e a Aída eram suficientes, pensa, porque eles eram a amizade que excluía, enriquecia e compensava tudo. Foi nessa altura, pensa, foi nessa altura que me fodi?

 

Tinham-se matriculado nos mesmos cursos, sentavam-se no mesmo banco, iam juntos à Biblioteca de San Marcos ou à Nacional, separavam-se de mau grado para dormir. Liam os mesmos livros, viam os mesmos filmes, enfureciam-se com os mesmos jornais. Ao sair da universidade, ao meio-dia e à tarde, conversavam durante horas no El Palermo da Colmena, discutiam durante horas na pastelaria Los Huérfanos da Azángaro, comentavam durante horas as notícias políticas num café-bilhar nas traseiras do Palácio da Justiça. Às vezes encafuavam-se num cinema, às vezes empreendiam como uma aventura longas caminhadas pela cidade. Assexuada, fraternal, a amizade parecia também eterna.

 

- Importavam-nos as mesmas coisas, odiávamos as mesmas coisas, e nunca estávamos de acordo em coisa nenhuma - diz Santiago.

- Era formidável.

 

- Então porque é que andava amargurado? - pergunta Ambrosio. - Por causa da rapariga?

 

- Nunca a via a sós - diz Santiago. - Não andava amargurado: um bichinho no estômago de vez em quando, mais nada.

 

- O menino queria namorá-la e não podia, com o outro sempre ao pé - diz Ambrosio. - Eu bem sei o que se sente quando se está perto da mulher que se ama e não se pode fazer nada.

 

- Foi o que te aconteceu com a Amalia? - pergunta Santiago.

 

- Vi um filme que era assim - diz Ambrosio.

 

A universidade era um reflexo do país, dizia Jacobo, se calhar, há vinte anos aqueles professores eram progressistas e liam, mas depois, por terem de trabalhar noutras coisas e por causa do ambiente, tinham-se mediocrizado e aburguesado, e nessa altura, viscoso e minúsculo na boca do estômago: o bichinho. A culpa também era dos alunos, dizia Aída, gostavam desse sistema; e, se todos tinham culpa, não havia outro remédio senão conformarmo-nos?, perguntava Santiago, e Jacobo: a solução era a reforma universitária. Um corpo diminuto e ácido na maldade das conversas, repentino no calor das discussões, interferindo, desviando, malogrando a atenção com rajadas de melancolia ou nostalgia. Cátedras paralelas, governo de coligação, universidades populares, dizia Jacobo: que todos os que fossem capazes se dedicassem ao ensino, que os alunos pudessem censurar os maus professores e, como o povo não podia ir à universidade, que fosse a universidade ao povo. Melancolia desses impossíveis diálogos a sós com a rapariga que desejava, nostalgia desses passeios a sós com a rapariga que inventava? Mas, se a universidade era um reflexo do país, San Marcos nunca estaria bem enquanto o Peru estivesse tão mal, dizia Santiago, e Aída: se se quisesse cortar o mal pela raiz, não se devia falar de reforma universitária, mas sim de Revolução. Mas eles eram estudantes e o seu campo de acção era a universidade, dizia Jacobo, trabalhando pela reforma trabalhariam pela Revolução: era preciso ir por partes e não ser pessimista.

 

- O menino tinha ciúmes do seu amigo - diz Ambrosio. E não há coisa mais venenosa que o ciúme.

 

- O Jacobo devia sentir o mesmo que eu - diz Santiago. - Mas ambos dissimulávamos.

 

- Ele também devia sentir vontade de o fazer desaparecer com um olhar mágico para ficar só com a rapariga - ri Ambrosio.

 

- Era o meu melhor amigo - diz Santiago. - Eu odiava-o, mas ao mesmo tempo gostava dele e admirava-o.

 

- Não deves ser tão céptico - disse Jacobo. - E essa coisa do tudo ou nada é tipicamente burguesa.

 

- Eu não sou céptico - disse Santiago. - Mas nós falamos, falamos, e ficamos por aí.

 

- Isso é verdade, até agora não passámos da teoria - disse Aída.

 

- Devíamos fazer qualquer coisa mais do que conversar.

 

- Sozinhos não podemos - disse Jacobo. - Primeiro temos de nos pôr em contacto com os universitários progressistas.

 

- Há dois meses que entrámos e ainda não encontrámos nenhum

 

- disse Santiago. - Estou em crer que não existem.

 

- Têm de se precaver e é lógico - disse Jacobo. - Mais tarde ou mais cedo, hão-de aparecer.

 

E, com efeito, confidenciais, receosos, misteriosos, tinham aparecido pouco a pouco, como sombras furtivas: estavam no 1.° ano de Letras, não estavam? Nos intervalos das aulas, costumavam sentar-se num banco qualquer do pátio da faculdade, parecia que andavam a fazer um peditório, ou dar voltas em redor do fontanário de Direito, para comprar colchões para os estudantes presos, e ali trocavam por vezes umas palavras com alunos de outras faculdades ou outros anos, que eram guardados nos calabouços da penitenciária, dormindo no chão, e nesses rápidos diálogos fugidios, por detrás da desconfiança, abrindo caminho através da suspeita, ainda ninguém lhes tinha falado do peditório?, preveniam ou julgavam prevenir uma subtil exploração da sua maneira de pensar, não era nada de político, uma discreta sondagem, era simplesmente uma acção humanitária, vagas indicações para se prepararem para qualquer coisa que viria, e até simples caridade cristã, ou um secreto chamamento para que manifestassem da mesma maneira cifrada que se podia confiar neles: podiam dar ao menos um sol? Apareciam solitários e esfumados nos pátios de San Marcos, aproximavam-se deles para falarem uns instantes sobre assuntos ambíguos, desapareciam por muitos dias e de repente reapareciam, cordiais e evasivos, com a mesma cautelosa expressão risonha nos mesmos rostos índios, mestiços, mulatos, negros, e as mesmas palavras ambivalentes nos seus sotaques de província, com os mesmos fatos usados e desbotados e os mesmos sapatos velhos e às vezes alguma revista ou jornal ou livro debaixo do braço. Que estudavam, donde eram, como se chamavam, onde viviam? Como um súbito relâmpago no céu nublado, aquele rapaz de Direito tinha sido um dos que se encerraram em San Marcos quando da revolução do Odría, uma brusca confidência rasgava repentinamente as conversas cinzentas, e tinha estado preso e feito a greve da fome na prisão, e acendia-as e tornava-as febris, e só o tinham soltado havia um mês, e essas revelações e descobertas, e aquele tinha sido delegado de Económicas quando os Centros Federados e a Federação Universitária funcionavam, despertavam neles uma ansiosa excitação, antes de a polícia ter destroçado os organismos estudantis prendendo os dirigentes, uma feroz curiosidade.

 

- Chegas tarde para não comeres connosco, e, quando nos dás esse prazer, não abres a boca - disse a D. Zoila. - Cortaram-te a língua lá em San Marcos?

 

- Falou contra o Odría e contra os comunistas - disse Jacobo.

 

- Aprista, não acham?

 

- Faz-se mudo para se armar em original - disse o Chispas.

 

- Os génios não perdem o seu tempo a falar com ignorantes, não é, sabichão?

 

- Quantos filhos tem a Menina Teté? - pergunta Ambrosio.

 

- E o menino, quantos?

 

- Talvez antes trotskista, porque diz bem do Lechín - disse Aída. - Não dizem que o Lechín é trotskista?

 

- A Teté dois, eu nenhum - diz Santiago. - Não queria ser pai, mas talvez um destes dias me decida. Da maneira como isto vai, vem a dar no mesmo.

 

- E, além disso, andas meio sonâmbulo e com olhos de carneiro mal morto - disse a Teté. - Apaixonaste-te por alguma lá em San Marcos ?

 

- Quando chego, vejo o candeeiro da tua cabeceira aceso - disse D. Fermín. - Acho muito bem que leias, mas também devias ser um bocadinho sociável, magricela.

 

- Apaixonei-me, sim, de uma com tranças que anda descalça e só fala quichua - disse Santiago. - Estás interessada?

 

- Lá a negra dizia que cada filho vem com o seu pão debaixo do braço - diz Ambrosio. - Eu, por mim, teria tido um montão, digo-lhe. A negra, quero dizer a minha mãezinha que Deus haja.

 

- Chego um bocado cansado e é por isso que me meto no quarto, papá - disse Santiago. - Nem que tivesse endoidecido, para não querer falar convosco.

 

- É o que me acontece por falar contigo, que és uma mula selvagem - disse a Teté.

 

- Doido não, mas esquisito sim - disse D. Fermín. - Agora que estamos aqui sozinhos, magricela, fala-me com confiança. Tens algum problema?

 

- Aquele é que podia ser do Partido - disse Jacobo. - A interpretação dele do que se passa na Bolívia era marxista.

 

- Nenhum, papá - disse Santiago. - Não tenho nada, palavra.

 

- O Pancras teve um filho em Huacho há uma pipa de anos e a mulher fugiu-lhe um dia e nunca mais a viu - diz Ambrosio. Desde então anda a procurar esse filho. Não quer morrer sem saber se saiu tão feio como ele.

 

- Esse tipo não se aproxima para nos sondar, é mas é para estar contigo - disse Santiago. - Só fala contigo e com que sorrisinhos. Fizeste uma conquista, Aída.

 

-- Sempre és muito mal-intencionado, sempre és muito burguês

 

- disse Aída.

 

- Compreendo, porque eu também passo os dias a lembrar-me da Amalita Hortênsia - diz Ambrosio. - A pensar como será ela, com quem se parecerá.

 

- Achas que isso só acontece aos burgueses? - perguntou Santiago. - Que os revolucionários nunca pensam em mulheres?

 

- Pronto, lá te zangaste por eu te chamar burguês - disse Aída.

 

- Não sejas susceptível, homem, não sejas burguês. Ai, lá me escapou outra vez.

 

- Vamos tomar um café com leite - disse Jacobo. - Venham, quem paga é o ouro de Moscovo.

 

Eram rebeldes solitários, militavam em alguma organização clandestina, algum deles seria da secreta? Não andavam juntos, era raro aparecerem ao mesmo tempo, não se conheciam ou fingiam que não se conheciam entre eles. Às vezes, era como se estivessem a pontos de revelar alguma coisa importante, mas detinham-se no umbral da revelação, e as suas insinuações e alusões, os seus fatos desbotados e as suas maneiras calculadas provocavam neles desassossego, dúvidas, uma admiração contida por receio ou temor. As suas caras casuais começaram a aparecer nos cafés onde iam depois das aulas, era um enviado, explorava o terreno?, as suas humildes silhuetas a sentarem-se nas mesas que eles ocupavam, então mostremos-lhe que com eles não havia motivos para dissimular, e ali, fora de San Marcos, no nosso ano há dois da secreta dizia Aída, longe dos confidentes emboscados, descobrimo-los e não o puderam negar, dizia Jacobo, os diálogos começaram a ser menos etéreos, desculparam-se alegando que como advogados seriam promovidos dizia Santiago, a adoptar um carácter audazmente político, os palermas nem sequer sabiam mentir dizia Aída. As conversas costumavam começar com uma anedota qualquer, os perigosos não eram os que se davam a conhecer dizia Washington, ou brincadeira ou boato ou averiguação, mas sim os informadores eventuais que não pertenciam aos quadros da polícia, e logo apareciam, tímidas, acidentais, as perguntas,. que tal era o ambiente do primeiro ano?, havia inquietação, os rapazes preocupavam-se com os problemas?, haveria uma maioria interessada em reconstituir os Centros Federados?, e cada vez mais sibilina, viperina, que pensavam da revolução boliviana?, a conversa resvalava, e da Guatemala, que pensavam?, até à situação internacional. Animados, excitados, discutiam sem baixar a voz, que os da secreta os ouvissem, que os metessem na cadeia, e Aída estimulava-se a si mesma, era a mais entusiasta pensa, deixava-se conquistar pela própria emoção, a mais arriscada pensa, a primeira a desviar atrevidamente a conversa da Bolívia e da Guatemala para o Peru: vivíamos numa ditadura militar, e os olhos nocturnos brilhavam, ainda que a revolução boliviana tivesse sido só liberal, e o nariz afilava-se-lhe, ainda que a da Guatemala não tivesse chegado a ser uma revolução democrático-burguesa, e a testa latejava-lhe mais depressa, estavam melhor que o Peru, e uma mecha de cabelos dançava, governado por um generalzeco, e batia na testa enquanto falava, e por uma pandilha de ladrões, e os seus pequenos punhos davam pancadas na mesa. Incomodadas, alarmadas, as sombras furtivas interrompiam Aída, mudavam de assunto ou levantavam-se e iam-se embora.

 

- O seu paizinho dizia que San Marcos fez mal ao menino - diz Ambrosio. - Que o menino deixou de gostar dele por culpa da universidade.

 

- Puseste o Washington numa situação embaraçosa - disse Jacobo. - Se for do Partido, é obrigado a ter cuidado. Não fales tão alto de Odría diante dele, podes comprometê-lo.

 

- O meu pai disse-te que eu tinha deixado de gostar dele? - pergunta Santiago.

 

- Achas que o Washington se foi embora por causa disso? - pergunta Aída.

 

- Era o que mais o preocupava na vida - diz Ambrosio. - Saber por que razão tinha o menino deixado de gostar dele.

 

Estava no 3.° ano de Direito, era um provincianozito branco e jovial que falava sem adoptar o ar solene, esotérico, arquiepiscopal dos outros, foi o primeiro cujo nome souberam: Washington. Sempre vestido de cinzento-claro, sempre com os alegres dentes caninos à mostra, com as suas brincadeiras impunha às conversas do El Palermo, do café-bilhar ou do pátio de Económicas um clima pessoal que não surgia nos diálogos herméticos ou estereotipados que tinham com os outros. Mas, apesar do seu ar comunicativo, também sabia ser impenetrável. Tinha sido o primeiro a transformar-se de sombra furtiva num ser de carne e osso. Num conhecido, pensa, quase num amigo.

 

- Porque julgava ele isso? - pergunta Santiago. - Que mais te dizia o meu pai?

 

- Porque é que não formamos um círculo de estudos? - perguntou Washington, distraidamente.

 

Deixaram de pensar, de respirar, com os olhos fixos nele:

 

- Um círculo de estudos? - perguntou Aída, lentissimamente.

- Para estudar o quê?

 

- A mim não, menino - diz Ambrosio. - Falava com a sua mãezinha, com os seus manos, com amigos, e eu ouvia-os quando os levava no automóvel.

 

- Marxismo - disse Washington, com naturalidade. - Não se ensina na universidade e pode-nos ser útil como cultura geral, não acham?

 

- Tu conhecias o meu pai melhor do que eu - diz Santiago. Conta-me que mais dizia ele de mim.

 

- Seria interessantíssimo - disse Jacobo. - Formemos o círculo.

 

- Como é que o havia de conhecer melhor do que o menino? diz Ambrosio. - Que ideia, menino.

 

- O problema é arranjar os livros - disse Aída. - Nos alfarrabistas só se encontra um ou outro número antigo da Cultura Soviética,.

 

- Eu sei que ele te falava de mim - diz Santiago. - Mas não faz mal, se não quiseres, não contes.

 

- Podem-se arranjar, mas é preciso ter cuidado - disse Washington. - Estudar marxismo já é expor-se a ficar com ficha de comunista. Bom, vocês sabem-no muito bem.

 

Assim tinham nascido os círculos marxistas, assim tinham começado insensivelmente a militar, a submergir-se na prestigiosa, cobiçada clandestinidade. Assim tinham descoberto o desmantelado alfarrabista da Calle Chota e o velho espanhol de óculos escuros e barbicha esbranquiçada que tinha nas traseiras da loja edições do Siglo XX e de Lautaro, assim tinham comprado, forrado, folheado avidamente aquele livro que acenderia as discussões do círculo durante semanas, esse manual com respostas para tudo. Lições Elementares de Filosofia, pensa. Pensa: Georges Politzer. Assim tinham conhecido Héctor, até então outra sombra furtiva, e sabido que essa esquálida girafa lacónica estudava Economia e ganhava a vida como locutor. Tinham decidido reunir-se duas vezes por semana, tinham discutido longamente o local, tinham escolhido finalmente a pensão de Héctor em Jesus Maria, onde iriam a partir de então e durante meses, todas as quintas-feiras e sábados à tarde, sentindo-se seguidos e espiados, olhando receosamente a vizinhança antes de entrarem. Chegavam por volta das três, o quarto de Héctor era velho e grande e tinha duas largas janelas, que davam para a rua, no segundo andar da pensão de uma surda que às vezes subia lá a’cima para lhes rugir querem chá? Aída instalava-se na cama, a negação da negação pensa, Héctor no chão, os saltos qualitativos pensa, Santiago na cadeira única, a unidade dos contrários pensa, Jacobo numa janela, Marx pôs de pé a dialéctica que Hegel tinha de cabeça, e Washington permanecia sempre de pé. Pensa: para crescer e ria-se. Um deles, sempre diferente, expunha um capítulo do livro de Politzer, às exposições seguiam-se discussões, estavam reunidos duas ou três e até quatro horas, saíam aos pares deixando o quarto cheio de fumo e de ardor. Mais tarde voltavam a encontrar-se os três sozinhos em qualquer parque, qualquer rua, qualquer café, o Washington pertenceria ao Partido?, perguntava Aída, continuava a conversar, o Héctor pertenceria ao Partido?, perguntava Jacobo, a supor, o Partido existiria?, perguntava Santiago, como se faria a autocrítica?, e a discutir fervorosamente. Assim tinham passado o l.” ano, assim tinha passado o Verão, assim tinha começado o 2.°

 

Tinha sido nesse segundo ano, Zavalita, ao ver que não bastava aprender marxismo, que também era preciso acreditar? Se calhar, o que te tinha fodido era a falta de fé, Zavalita. Falta de fé para acreditar em Deus, menino? Para acreditar em qualquer coisa, Ambrosio. A ideia de Deus, a ideia de um «puro espírito» criador do universo não tinha sentido, dizia Politzer, um Deus fora do espaço e do tempo era qualquer coisa que não podia existir. Andavas com uma cara que não é a tua cara de costume, Santiago. Era preciso participar da mística idealista e por conseguinte não admitir nenhum controlo científico, dizia Politzer, para acreditar num Deus que existiria fora do tempo, isto é, que não existiria em nenhum momento, e que existiria fora do espaço, isto é, que não existiria em parte alguma. O pior era ter dúvidas, Ambrosio, o maravilhoso era poder fechar os olhos e dizer Deus existe, e acreditar nisso. Tinha-se apercebido de que por vezes fazia batota no círculo, Aída: dizia acredito ou estou de acordo e no fundo tinha dúvidas. Os materialistas, apoiados nas conclusões das ciências, dizia Politzer, afirmavam que a matéria existia no espaço e num dado momento (no tempo). Fechar os punhos, cerrar os dentes, Ambrosio, a Apra é a solução, a religião é a solução, o comunismo é a solução, e acreditar nisso. Então a vida organizar-se-ia por si e não nos sentiríamos vazios, Ambrosio. Ele não acreditava nos padres, menino, e não ia à missa desde que nascera, mas acreditava na religião e em Deus, não tinham todas as pessoas de acreditar em alguma coisa, menino? Por conseguinte, o universo não tinha podido ser criado, concluía Politzer, já que teria sido preciso a Deus para criar o mundo um momento que não tinha sido momento algum (visto que para Deus o tempo não existia) e teria também sido preciso que o mundo saísse do nada: e isso preocupava-te assim tanto, Zavalita?, perguntava Aída. E Jacobo: se, de qualquer maneira, era preciso começar por acreditar em qualquer coisa, era preferível acreditar que Deus não existe a acreditar que existe. Santiago também o preferia, Aída, ele queria convencer-se de que Politzer tinha razão, Jacobo. O que o angustiava era ter dúvidas, Aída, não poder estar certo, Jacobo. Agnosticismo pequeno-burguês, Zavalita, idealismo dissimulado, Zavalita. Aída não tinha dúvida nenhuma, Jacobo acreditava com pontos e vírgulas no que Politzer dizia? As dúvidas eram fatais, dizia Aída, paralisam-te e nada podes fazer, e Jacobo: passar a vida a rebuscar será verdade?, a torturar-se será mentira?, em vez de agir? O mundo nunca mudaria, Zavalita. Para agir era preciso acreditar em qualquer coisa, dizia Aída, e acreditar em Deus não tinha ajudado a mudar coisa nenhuma, e Jacobo: era preferível acreditar no marxismo, que podia mudar as coisas, Zavalita. Inculcar nos operários a dúvida metódica?, perguntava Washington, nos camponeses a quádrupla raiz do princípio da razão suficiente?, perguntava Héctor. Pensa: pensavas não, Zavalita. Fechar os olhos, o marxismo apoia-se na ciência, a religião na ignorância, fincar os pés na terra. Deus não existia, fazer ranger os dentes, o motor da história era a luta de classes, retesar os músculos, ao libertar-se da exploração burguesa, respirar fundo, o proletariado libertaria a humanidade, e investir: e instauraria um mundo sem classes. Não conseguiste, Zavalita, pensa. Pensa: eras, és, serás, morrerás um pequeno burguês. As mamadas, o colégio, a família, o bairro, foram mais fortes?, pensa. Ias à missa, confessavas-te e comungavas nas primeiras sextas-feiras, rezavas e já então mentira, não acredito. Ias à pensão da surda, as mudanças quantitativas acumulando-se produziam uma mudança qualitativa, e tu sim, sim, o maior pensador materialista antes de Marx tinha sido Diderot, sim, sim, e de repente o bichinho: mentira, não acredito.

 

- Ninguém devia aperceber-se, isso era o principal - diz Santiago. - Não escrevo versos, acredito em Deus, não acredito em Deus. Sempre a mentir, sempre a fazer batota.

 

- O melhor é não beber mais, menino - diz Ambrosio.

 

- No colégio, em casa, no bairro, no círculo, na Fracção, n’A Crónica - diz Santiago. - Toda a vida a fazer coisas sem acreditar, toda a vida a fingir.

 

- E bem feito o papá ter deitado o teu livro comunista para o lixo, ah, ah - disse a Teté.

 

- E toda a vida a querer acreditar em qualquer coisa - diz Santiago. - E toda a vida mentira, não acredito.

 

Teria sido a falta de fé, Zavalita, não teria sido a timidez? No caixote de jornais velhos da garagem, atrás do novo exemplar de Politzer, foram-se acumulando, Que Fazer? pensa, os livros tidos e discutidos no círculo, A Origem da Família, da Sociedade e do Estado pensa, livros mal encadernados e de letra minúscula, A Luta de Classes em França pensa, que ficava impressa na ponta dos dedos. Previamente observados, rondados, sondados, votados, incorporaram-se no círculo o índio Martínez que estudava etnologia, e depois Solórzano de Medicina, e depois uma rapariga quase albina que alcunharam de «a Ave». O quarto de Héctor tornou-se pequeno, os olhos da surda alarmaram-se perante a crónica invasão, decidiram mudar. Aída ofereceu a sua casa, e então reuniam-se alternadamente em Jesus Maria, numa casinha de tijolos vermelhos do Rímac, num apartamento de Petit Thouars forrado de flores de lis. Recebeu-os um gigante efusivo e encanecido da primeira vez que entraram na casa de Aída, apresento-lhes o meu pai, e enquanto lhes apertava a mão olhava-os com melancolia. Tinha sido operário de artes gráficas e dirigente sindical, tinha estado preso no tempo de Sánchez Cerro, tinha estado à beira da morte com um ataque de coração. Agora trabalhava de dia numa tipografia, era revisor de provas do El Comercio à noite, e já não fazia política. E sabia que eles vinham aqui estudar marxismo?, sabia, sim, e não se importava?, claro que não, achava muito bem.

 

- Deve ser formidável dar-se com o pai como se fosse um amigo

- disse Santiago.

 

- O pobrezinho foi meu pai, meu amigo e também minha mãe disse Aída. - Desde que morreu a minha mãe de verdade.

 

- Eu para me dar bem com o meu velho tenho de esconder-lhe o que penso - disse Santiago. - Nunca me dá razão.

 

- Como é que ta havia de dar se é um senhor burguês? - perguntou Aída.

 

 medida que o círculo aumentava, da acumulação quantitativa ao salto qualitativo, pensa, convertia-se de centro de estudos em cenáculo de discussão política. Da exposição dos ensaios de Maríategui à refutação dos editoriais de La Prensa, do materialismo histórico aos abusos de Cayo Bermúdez, do aburguesamento do aprismo ao boato venenoso contra o inimigo subtil: os trotskistas. Tinham identificado três, tinham dedicado horas, semanas, meses, a adivinhá-los, investigá-los, espiá-los e abominá-los: intelectuais, inquietantes, passeavam-se pelos pátios de San Marcos, com a boca cheia de doutrinas e provocações, cataclísmicos, heterodoxos. Seriam muitos? Pouquíssimos mas perigosíssimos dizia Washington, trabalhariam com a polícia? perguntava Solórzano, se calhar, e de qualquer maneira vinha a dar ao mesmo dizia Héctor, porque dividir, confundir, desviar e intoxicar era pior que delatar dizia Jacobo. Para enganar os trotskistas, para evitar os informadores, tinham concordado em não andarem juntos na universidade, em não pararem a conversar quando se cruzassem nos corredores. No círculo havia união, cumplicidade, inclusivamente solidariedade, pensa. Pensa: só entre nós os três amizade. Incomodaria os outros essa ilhota que constituíam, esse triunvirato tenaz? Continuavam a ir juntos às aulas, bibliotecas e cafés, a passear juntos pelos pátios, a ver-se a sós depois das reuniões do círculo. Conversavam, discutiam, caminhavam, iam ao cinema e Milagre de Milão tinha-os exaltado, a pomba branca do epílogo era a pomba da paz, aquela música A Internacional, o Vittorio de Sica devia ser comunista, e quando num cinema de bairro anunciavam um filme russo, pressurosos, esperançados, fervorosos, precipitavam-se, embora tivessem a certeza de que iriam ver um filme velhíssimo de intermináveis bailados.

 

- Um friozinho? - pergunta Ambrosio. - Uma cãibra no estômago?

 

- Como à noite, quando era pequeno - diz Santiago. - Acordava na escuridão, vou morrer. Não me podia mexer, nem acender a luz, nem gritar. Ficava encolhido, a suar, a tremer.

 

- Há um de Económicas que talvez possa entrar - disse Washington. - O problema é que já somos muitos no círculo.

 

- Mas porque é que lhe dava isso, menino? - pergunta Ambrosio.

 

Aparecia, ali estava, diminuto e glacial, gelatinoso. Retorcia-se delicadamente na boca do estômago, segregava aquele líquido que molhava as palmas das mãos, acelerava o coração e se despedia com um calafrio.

 

- Sim, é imprudente continuarmos a reunir-nos tantos - disse Héctor. - O melhor seria dividirmo-nos em dois grupos.

 

- Sim, dividamo-nos, eu fui o que mais se convenceu, nem me passava pela cabeça - diz Santiago. - Semanas depois acordava repetindo como um idiota não pode ser, não pode ser.

 

- Que critério vamos seguir para nos dividirmos? - perguntou o índio Martínez. - Depressa, não percamos tempo.

 

- Está cheio de pressa porque traz a mais-valia na ponta da língua - riu-se Washington.

 

- Podemos tirar à sorte - disse Héctor.

 

- A sorte é uma coisa irracional - disse Jacobo. - Proponho que nos dividamos por ordem alfabética.

 

- Claro, é mais racional e mais fácil - disse a Ave. - Os quatro primeiros para um grupo, os restantes para o outro.

 

Não tinha sido um golpe no coração, não tinha aparecido o bichinho, unicamente surpresa ou confusão, pensa, só aquele repentino mal-estar. E aquela ideia fixa: um equívoco. E aquela ideia fixa, pensa: um equívoco?

 

- Os que estiverem de acordo com a proposta de Jacobo levantem a mão - disse Washington.

 

Um mal-estar crescente, o cérebro embotado, uma vertiginosa timidez a emudecer-lhe a língua, levantando a mão uns segundos depois dos restantes.

 

- Então pronto, está resolvido - disse Washington. - Jacobo, Aída, Héctor e Martínez um grupo, e nós os quatro outro.

 

Não tinha voltado a cabeça para olhar para Aída nem para Jacobo, tinha acendido prolixamente um cigarro, folheado Engels, trocado um sorriso com Solórzano.

 

- Pronto, Martínez, já podes brilhar - disse Washington. Que há sobre a mais-valia?

 

Não só a revolução, pensa. Tépido, escondido, também um coração, e um pequeno cérebro alerta, rápido, calculista: tê-lo-ia planeado, pensa, tê-lo-ia decidido intempestivamente? A revolução, a amizade, os ciúmes, a inveja, tudo amassado, tudo misturado, ele também, Zavalita, feito do mesmo barro porco, Jacobo também, Zavalita.

 

- Não havia tipos puros no mundo - diz Santiago. - Sim, foi nessa altura.

 

- Mas nunca mais voltava a ver a rapariga? - pergunta Ambrosio.

 

- Vê-la-ia menos vezes, ele ia vê-la sozinho duas vezes por semana - diz Santiago. - E além disso, doía-me aquele golpe baixo. Não por razões morais, por inveja. Eu era tímido e nunca me teria atrevido.

 

- Ele foi mais espertalhão - ri-se Ambrosio. - E o menino ainda não lhe perdoou essa partida.

 

O índio Martínez tinha gestos e voz de mestre-escola, em resumo a mais-valia era o trabalho não remunerado, e era reiterativo e impertinente, a proporção do produto roubada ao trabalhador que ia aumentar o capital, e Santiago fitava eternamente a sua cara amarelenta e ouvia interminavelmente a sua docente, didáctica voz, e em redor o morrão dos cigarros acendia-se cada vez que as mãos os levavam aos lábios e apesar de tantos corpos apertados num espaço tão exíguo havia aquela sensação de solidão, aquele vazio. O bichinho lá estava agora, dando mansas voltas monótonas nas entranhas.

 

- Porque sou como esses animaizinhos que diante do perigo se encolhem e ficam quietos à espera de que os pisem ou lhes cortem a cabeça - diz Santiago. - Não ter fé e ainda por cima ser tímido é como ser sifilítico e leproso ao mesmo tempo.

 

- O menino não faz outra coisa que não seja dizer mal de si mesmo - diz Ambrosio. - Se alguém lhe dissesse as coisas que o menino diz de si, o menino não se ficava.

 

É que se tinha quebrado qualquer coisa que parecia eterna, doeu-me tanto por ela, por mim, por ele? Mas tinhas dissimulado como sempre, Zavalita, mais que nunca, e saído da reunião com Jacobo e Aída, e falado excessivamente enquanto caminhavam em direcção ao centro, Engels e a mais-valia, sem lhes dar tempo para responder, Politzer e a Ave e Marx, incessante e loquaz, interrompendo-os se abriam a boca, matando assuntos e ressuscitando-os, atropelando, profuso, confuso, para que aquele monólogo nunca mais acabasse, fabricando, exagerando, mentindo, sofrendo, para que a proposta de Jacobo não fosse mencionada, para que não se dissesse que a partir de sábado estariam os outros em Petit Thouars e ele no Rímac, sentindo também agora e pela primeira vez que estavam juntos e não estavam, que faltava a comunicação respiratória de outras vezes, a inteligência corporal de outras vezes, enquanto atravessavam a Plaza de Armas, que horrivelmente aqui e agora também qualquer coisa artificiosa e mentirosa os isolava, como as conversas com o velho pensa e equivocava-os e começava a inimizá-los. Tinham descido a Calle de la Union sem se olharem, ele a falar e eles a ouvirem, Aída lamentá-lo-ia, Aída tê-lo-ia premeditado com ele?, e ao chegar à Plaza San Martin era tardíssimo, Santiago tinha olhado para o relógio, ia a correr apanhar o expresso, tinha-lhes estendido a mão e partido a correr, sem se ter combinado onde e a que horas nos encontraríamos amanhã, pensa. Pensa: pela primeira vez.

 

Tinha sido nessas últimas semanas do 2.° ano, Zavalita, nesses dias vazios antes do exame final? Tinha-se dedicado furiosamente a ler, a trabalhar no círculo, a acreditar no marxismo, a emagrecer. Ovos mexidos para nada dizia a D. Zoila, e laranjadas para nada e com-flakes para nada, estavas um autêntico esqueleto e qualquer dia levantavas voo. Também era contra os teus princípios comer, sabichão?, perguntava o Chispas e tu não comias porque a tua cara me tira o apetite, e o Chispas ia-te dar um sopapo, sabichão, ia-to dar. Continuavam a ver-se e a cabecinha infalivelmente assomava quando Santiago entrava nas salas de aula e se sentava com eles, abria caminho entre os emaranhados de tecidos e tendões e assomava, ou quando iam tomar um café juntos ao El Palermo, entre sangrentas veias e ossos alvos assomava, ou uma Chicha1 avermelhada à pastelaria Los Huérfanos ou uma sanduíche de presunto e salada ao café-bilhar, e por trás da cabecita o ácido corpozinho assomava. Conversavam sobre os cursos e os próximos exames, os preparativos para as eleições dos Centros Federados, e as discussões nos seus respectivos círculos e os presos e a ditadura de Odría e da Bolívia e da Guatemala. Mas já só se viam porque San Marcos e a política por vezes nos juntavam,

 

1 Bebida alcoólica resultante da fermentação do milho em água açucarada. (N. do T.)

 

pensa, já só por acaso, já só por obrigação. Eles viam-se a sós depois das reuniões do seu círculo?, passeavam, iam a museus ou livrarias ou cinemas como dantes com ele?, tinham saudades dele, pensavam nele, falavam dele?

 

- Um telefonema para ti de uma rapariga - disse a Teté - Tinhas o segredo muito bem guardado. Quem é ela?

 

- Se te pões a ouvir pelo outro telefone, dou-te um sopapo Teté - disse Santiago.

 

- Podes dar uma saltada a minha casa? - perguntou Aída. Não tens nada que fazer, não te interrompo?

 

- Que ideia, vou agora mesmo - disse Santiago. - Dentro de meia hora estou aí, o mais tardar.

 

- Ai vou agora mesmo, ai que ideia - disse a Teté. - Podes dar uma saltada a minha casa? Ai que vozinha.

 

Tinha aparecido enquanto esperava o colectivo na esquina da Larco com a José Gonzales, crescido enquanto o colectivo subia pela Avenida Arequipa, e lá estava, enorme e pegajoso, enquanto viajava encolhido a um canto do automóvel, empapando-lhe as costas de uma substância gelada, enquanto sentia cada vez mais frio, medo e esperança, naquela tarde que começava a ser noite. Tinha acontecido alguma coisa, ia acontecer alguma coisa? Pensava havia um mês que só nos víamos em San Marcos, pensa, nunca me tinha telefonado, pensava se calhar, pensa, pensava de repente. Tinha-a visto da esquina de Petit Thouars, uma figurinha que se esfumava na luz moribunda, esperando-o à porta de casa, tinha-me acenado um adeus com a mão e tinha visto a sua cara pálida, aquele vestido azul, os seus olhos graves, aquele casaco de malha azul, a sua boca séria, e tinha-lhe sentido a mão a tremer.

 

- Desculpa ter-te telefonado, queria falar contigo de uma coisa parecia impossível aquela vozinha entrecortada, pensa, incrível aquela vozinha intimidada. - Vamos caminhar um bocado, está bem?

 

- O Jacobo não está contigo? - perguntou Santiago. - Aconteceu alguma coisa?

 

- Acha que tem dinheiro para pagar tantas cervejas? - pergunta Ambrosio.

 

- Tinha acontecido o que tinha de acontecer - diz Santiago. Eu julgava que já tinha acontecido e só acontecera essa manhã.

 

Tinham estado juntos toda a manhã, um bichinho como uma cobra, não tinham ido às aulas porque Jacobo lhe tinha dito quero falar contigo a sós, uma cobra afiada como uma faca, tinham caminhado pelo Paseo de La República, uma faca como dez facas, tinham-se sentado num banco da fonte do Parque de la Exposición. Pelas faixas paralelas da Avenida Arequipa passavam automóveis e uma faca entrava muito levemente e outra saía e voltava a entrar devagarinho, e eles avançavam pela alameda que estava escura e vazia, e outro como num pão de côdea finita e muito miolo no seu coração, e de súbito a vozinha calou-se.


- E de que é que te queria falar a sós? - sem a olhar, pensa, sem descerrar os dentes. - Alguma coisa de mim, alguma coisa contra mim?

 

- Não, não era nada de ti, era de mim - uma voz como o miar de um gatinho, pensa. - Apanhou-me de surpresa, deixou-me sem saber o que dizer.

 

- Mas o que é que ele te disse? - murmurou Santiago.

 

- Que está apaixonado por mim - como os gemidos do Batuque quando era cachorrinho, pensa.

 

- Décimo quarteirão da Avenida Arequipa, Dezembro, sete da noite - diz Santiago. - Já sei, Ambrosio, foi nessa altura.

 

Tinha tirado as mãos dos bolsos, tinha-as levado à boca e bafejado e tentado sorrir. Tinha visto Aída descruzar os braços, parar, vacilar, procurar o banco mais próximo, tinha-a visto sentar-se.

 

- Ainda não tinhas dado por isso? - perguntou Santiago.- Porque julgas que propôs ele que o círculo se dividisse assim?

 

- Porque dávamos mau exemplo, porque formávamos quase uma fracção e os outros podiam ressentir-se, e eu acreditei nele - uma vozinha insegura, pensa. - E que isso não ia alterar nada e que embora tivéssemos círculos separados tudo continuaria como dantes entre nós. E eu acreditei nele.

 

- Queria estar a sós contigo - disse Santiago. - No lugar dele qualquer pessoa teria feito o mesmo.

 

- Mas tu ficaste aborrecido e não voltaste a procurar-nos - alarmada e sobretudo desgostosa, pensa. - E não voltámos a estar juntos, e nada continua como dantes.

 

- Não fiquei nada aborrecido e tudo continua como dantes

- disse Santiago. - A única coisa que aconteceu foi que me apercebi de que o Jacobo queria estar a sós contigo e que eu estava a mais. Mas continuamos amigos como dantes.

 

Era outro que falava, pensa, não eras tu. A voz um pouco mais firme agora, mais natural, Zavalita: não era ele, não podia ser ele. Compreendia, explicava, aconselhava duma altura neutral e pensava não sou. Ele era uma coisa pequenina e maltratada, uma coisa que se encolhia debaixo dessa voz, uma coisa que se escapulia e corria e fugia. Não era orgulho, nem despeito, nem humilhação, pensa, nem sequer eram ciúmes. Pensa: era timidez. Ela escutava-o imóvel, observava-o com uma expressão que ele não sabia nem queria decifrar, e de repente tinha-se levantado e tinham percorrido calados meio quarteirão, enquanto, tenazes, silenciosas, as facas continuavam a carnificina.

 

- Não sei o que hei-de fazer, sinto-me confusa, tenho dúvidas - disse, por fim, Aída. - Foi por isso que te telefonei, pensei de repente que me podias ajudar.

 

- E eu pus-me a falar de política - diz Santiago. - Estás a ver?

 

- Claro que sim - disse D. Fermín. - Sair de casa e de Lima, desaparecer. Não estou a pensar em mim, infeliz, mas sim em ti.

 

- Mas em que sentido dizes isso?’- parecendo espantada, pensa, parecendo assustada.

 

- No sentido em que o amor torna as pessoas muito individualistas - disse Santiago. - E depois as pessoas dão a isso uma importância maior que a tudo, incluindo a Revolução.

 

- Mas se tu dizias que as duas coisas não se opunham - soletrando, pensa, sussurrando. - Agora achas que sim? Como podes saber que nunca te hás-de apaixonar?

 

- Não achava nada, não sabia nada - diz Santiago. - Ir embora, escapar, desaparecer.

 

- Mas para onde, senhor? - perguntou Ambrosio. - O senhor não acredita em mim, o senhor está-me a pôr fora.

 

- Então não é verdade que tenhas dúvidas, então também estás apaixonada por ele - disse Santiago. - Pode ser que no teu caso e no do Jacobo não se oponham. E além disso ele é muito bom rapaz.

 

- Eu sei que é bom rapaz - disse Aída. - Mas não sei se estou apaixonada por ele.

 

- Estás, estás, eu também dei por isso - disse Santiago. - E não fui só eu, todos os do círculo. Devias aceitá-lo, Aída.

 

Insistias, Zavalita, era um óptimo rapaz, porfiavas, Zavalita, Aída estava apaixonada por ele, exigias, dar-se-iam muito bem e repetias e tornavas e ela escutava muda à porta de casa, com os braços cruzados, calculando a estupidez de Santiago?, com a cabeça inclinada, medindo a cobardia de Santiago?, com os pés unidos. Queria realmente um conselho, pensa, sabia que estavas apaixonado por ela e queria saber se te atreverias a dizer-lho? Que teria ela dito se eu, pensa, que teria eu dito se ela. Pensa: ai, Zavalita.

 

Ou tinha sido quando, um dia ou semana ou mês depois de ver Aída e Jacobo pela Colmena de mão dada, souberam que Washington era, efectivamente, o ansiado contacto? Quase não tinha havido comentários no círculo, só uma piada perdida de Washington, no outro círculo havia dois que tinham feito o seu ninho de amor, que romance tão escondidinho, só uma fugaz observação da Ave: e que parzinho tão perfeito. Não havia tempo para mais: as eleições universitárias estavam à porta e reuniam-se todos os dias, discutiam as candidaturas que apresentariam aos Centros Federados, e as alianças que aceitariam e as listas que apoiariam e os folhetos e a propaganda mural que fariam, e um dia Washington convocou ambos os círculos para casa da Ave e entrou na salinha do Rímac sorrindo: trazia uma coisa que era dinamite puro. A Cahuide, pensa. Pensa: Organização do Partido Comunista Peruano. Estavam apertados, o fumo dos cigarros nublava as folhinhas mimeografadas que passavam de mão em mão, irritava os olhos, a Cahuide, que avidamente liam, Organização, uma e outra vez, do Partido Comunista Peruano, e olhavam a cara dura do índio de barrete, poncho, sandálias e o seu beligerante punho levantado, e de novo a foice e o martelo cruzados por baixo do título. Tinham-na lido em voz alta, glosado, discutido, tinham crivado Washington de perguntas, tinham-na levado para casa. Tinha esquecido o seu ressentimento, a sua falta de fé, a sua frustração, a sua timidez, os seus ciúmes. Não era uma lenda, não tinha desaparecido com a ditadura: existia. Apesar de Odría, aqui também homens e mulheres, apesar de Cayo Bermúdez, se reuniam secretamente e formavam células, dos agentes da secreta e das deportações, imprimiam a Cahuide, das prisões e das torturas, e preparavam a Revolução. Washington sabia quem eram, como actuavam, onde estavam, e ele vou-me inscrever pensava, pensa, vou-me inscrever, naquela noite, enquanto apagava o candeeiro da mesa-de-cabeceira e qualquer coisa arriscada, ainda generosa, ansiosa, ardia na escuridão e continuava a arder no sonho: teria sido nessa altura?

 

- Estava preso por ter roubado ou matado ou porque o acusaram de qualquer coisa que outro tinha feito - disse Ambrosio. - «Oxalá morra na prisão», dizia a negra. Mas soltaram-no e foi então que o conheci. Vi-o uma única vez na vida, senhor.

 

- Registaram as declarações deles? - perguntou Cayo Bermúdez. - Todos apristas? Quantos deles tinham antecedentes?

 

- Cuidado que aí vem ele - disse Trifulcio. - Cuidado que ele vem a descer.

 

Era meio-dia, o sol caía verticalmente sobre a areia, uma aura de olhos sangrentos e negra plumagem sobrevoava as dunas imóveis, descia em círculos fechados, com as asas dobradas, o bico esticado, um leve tremor cintilante no deserto.

 

- Quinze tinham ficha -- disse o prefeito. - Nove apristas, três comunistas, três duvidosos. Os outros onze não têm antecedentes. Não, D. Cayo, ainda não ouvimos as declarações deles.

 

Uma iguana? Duas patinhas enlouquecidas, uma minúscula poeira, um fio de pólvora a incendiar-se, uma rampante flecha invisível. Docemente, a ave de rapina bateu as asas rasando o solo, apanhou-a com o bico, levantou-a, executou-a enquanto escalava o ar, devorou-a metodicamente sem deixar de subir pelo limpo, quente céu de Verão, com os olhos fechados pelos dardos amarelos que na sua direcção o Sol atirava.

 

- Interroguem-nos de uma vez - disse Cayo Bermúdez. - Os feridos estão melhor?

 

- Conversámos como dois desconhecidos que não têm concha, há anos. Desde então, nunca mais soube dele, menino.

 

- A dois dos estudantes foi preciso interná-los no Hospital da Polícia, D. Cayo - disse o prefeito. - Os guardas não têm nada, só pequenas contusões.

 

Continuava a subir, digerindo, obstinada e às cegas, e, quando ia a dissolver-se na luz, estendeu as asas, traçou uma grande curva majestosa, uma sombra sem forma, uma pequena mancha a deslocar-se sobre quietas areias brancas e ondulantes, quietas areias amarelas: uma circunferência de pedra, muros, grades, seres seminus que quase não se moviam ou jaziam à sombra de uma protuberância reverberante de zinco, um jipe, estacas, palmeiras, uma faixa de água, casebres, casas, automóveis, praças com árvores.

 

- Deixámos uma companhia em San Marcos e estamos a tratar de reparar a porta que o tanque deitou abaixo - disse o prefeito. Também pusemos uma secção em Medicina. Mas não houve nenhuma tentativa de manifestação nem nada, D. Cayo,

 

- Deixe-me aí essas fichas para eu as mostrar ao ministro - disse Cayo Bermúdez.

 

Desdobrou as harmoniosas asas castanho-escuras, inclinou-se, girou solenemente e sobrevoou outra vez as árvores, a avenida de água, as quietas areias, descreveu círculos pausados sobre o deslumbrante zinco, sem deixar de o observar desceu um pouco mais, indiferente ao murmúrio, à vozearia codiciosa, ao estratégico silêncio que se sucediam no rectângulo fechado por muros e grades, atenta apenas à eriçada saliência cujos reflexos a atingiam, e continuou a descer fascinada por aquela orgia de luzes, bêbeda de brilhos?

 

- Tu deste ordem para invadir San Marcos? - perguntou o coronel Espina. - Tu? Sem me consultares?

 

- Um mulato de cabelos brancos e enorme que andava como um macaco - disse Ambrosio. - Queria saber se havia mulheres em Chincha, extorquiu-me dinheiro. Não tenho boas recordações dele, senhor.

 

- Antes de falar de San Marcos, conta-me que tal correu essa viagem - disse Bermúdez. - Como vão as coisas pelo Norte?

 

Esticou cautelosamente as patinhas cinzentas, comprovava a resistência, a temperatura, a existência do zinco?, fechou as asas, pousou, olhou e adivinhou e já era tarde: as pedras sepultavam-lhe as penas, rasgavam-lhe os ossos, quebravam-lhe o bico, e uns sons metálicos brotavam enquanto as pedras voltavam ao pátio rolando pelo zinco.

 

- Vão bem, mas eu quero saber se tu endoideceste - disse o coronel Espina. - Sr. Coronel, invadiram a universidade, Sr. Coronel, a polícia de choque está em San Marcos. E eu, o ministro do Governo, nas nuvens. Estás doido, Cayo?

 

A ave de rapina deslizava, agonizava rapidamente sobre o plúmbeo zinco que ia manchando de escarlate, chegava ao extremo, caía e mãos esfomeadas recebiam-na, disputavam-na e depenavam-na e havia risos, insultos, e um fogão faiscava já contra o muro de adobe.

 

- Que tal o olho do senhor? - disse Trifulcio. - Quem sabe, e quero ver se há alguém que o ponha em dúvida, e como.

 

- Aquele furúnculo de San Marcos rebentando num par de horas e sem mortos - disse Bermúdez. - E, em vez de me agradeceres, perguntas-me se estou doido. Não estás a ser justo, Serrano.

 

- A negra também não o voltou a ver depois dessa noite - diz Ambrosio. - Ela achava que ele era mau de nascença, menino.

 

- Vai haver protestos no estrangeiro, precisamente o que não convém ao regime - disse o coronel Espina. - Não sabias que o presidente quer evitar sarilhos?

 

- O que não convinha ao regime era um foco subversivo em pleno centro de Lima - disse Bermúdez. - Dentro de uns dias, a polícia pode retirar-se, abre-se San Marcos e fica tudo em paz.

 

Mastigava empenhadamente o pedaço de carne que conquistara a pulso e os braços e as mãos ardiam-lhe e tinha rasgões violáceos na pele escura e a fogueira onde tinha tostado a sua presa fumegava ainda. Estava de cócoras, no canto à sombra do zinco, com os olhos semicerrados por causa da reverberação ou para desfrutar melhor o prazer que nascia nas suas mandíbulas e abarcava o palato e a língua e a garganta que os resíduos de penas pegadas à carne chamuscada arranhavam deliciosamente ao passar.

 

- E ainda por cima não tinhas autorização e a decisão competia ao ministro e não a ti - disse o coronel Espina. - Muitos governos não reconheceram o regime. O presidente deve estar furioso.

 

- Cuidado que vêm visitas - disse Trifulcio. - Cuidado que aí vêm.

 

- Os Estados Unidos reconheceram-nos e isso é o que importa - disse Bermúdez. - Não te preocupes com o presidente, Serrano. Consultei-o a noite passada, antes de agir.

 

Os outros deambulavam sob o sol homicida, reconciliados, sem rancor, sem lembrar que se tinham insultado, empurrado e ferido pelas presas trituradas, ou dormiam estendidos junto às paredes, sujos, descalços, boquiabertos, embrutecidos de aborrecimento, fome ou calor, com os braços nus sobre os olhos.

 

- A quem é que irá calhar? - perguntou Trifulcio. - A quem é que irão bater?

 

- A mim julgo que nunca me tinha feito nada - disse Ambrosio. - Até essa noite. Eu não lhe tinha raiva, senhor, embora também não tivesse nenhum carinho por ele. E nessa noite até me fez pena.

 

- Prometi ao presidente que não haveria mortos e cumpri - disse Bermúdez. - Aqui tens as fichas políticas dos quinze detidos. Limparemos San Marcos e as aulas poderão recomeçar. Não estás satisfeito, Serrano?

 

- Não era pena de ele ter estado preso, entenda-se, menino - diz Ambrosio. - É que parecia um mendigo. Sem sapatos, umas unhas deste tamanho, umas crostas nos braços e na cara que não eram crostas, era sujidade. Isto é com toda a franqueza, note.

 

- Agiste como se eu não existisse - disse o coronel Espina.

- Porque é que não me consultaste?

 

  1. Melquíades vinha pelo corredor escoltado por dois guardas, seguido por um homem alto que trazia um chapéu de palha que o vento candente agitava, as abas e a copa mexiam-se como se fossem de papel de seda, e um fato branco e uma gravata azul e uma camisa ainda mais branca. Tinham-se levantado e D. Melquíades falava com o desconhecido e apontava-lhe qualquer coisa no pátio.

 

- Porque havia um risco - disse Bermúdez. - Podiam estar armados, podiam disparar. E eu não queria que o sangue caísse sobre a tua cabeça, Serrano.

 

Não era advogado, nunca se vira um legulejo tão bem vestido, nem autoridade, porque porventura lhes tinham dado hoje sopa de legumes, porventura os tinham mandado varrer as celas e os isolado como sempre que havia inspecção? Mas, se não era advogado nem autoridade, quem é que podia ser?

 

- Teria prejudicado o teu futuro político, eu expliquei isso ao presidente - disse Bermúdez. - Tomo a decisão, assumo a responsabilidade. Se houver consequências, demito-me, e o Serrano fica imaculado.

 

Deixou de roer o ossinho polido que tinha entre as manápulas, ficou rígido, baixou um pouco a cabeça, os seus olhos fitavam assustados o corredor: D. Melquíades continuava a fazer sinais, continuava a apontar para ele.

 

- Mas as coisas correram bem e agora o mérito é todo teu - disse o coronel Espina. - O presidente há-de pensar que o homem que eu recomendei tem mais colhões do que eu.

 

- Ouve lá, ó Trifulcio! - gritou D. Melquíades. - Não vês que te estou a chamar? De que é que estás à espera?

 

- O presidente sabe que eu te devo este lugar - disse Bermúdez.

- Sabe que basta tu franzires a testa para eu dizer obrigado por tudo e pôr-me outra vez a vender tractores.

 

- Ouve lá! - gritaram os guardas, agitando as mãos. - Ouve lá, ó tu!

 

- Três facas e uns quantos «cocktails Molotov», não havia razão para tanto susto - disse Bermúdez. - Mandei pôr uns revólveres e mais algumas facas e boxes, para os jornalistas.

 

Endireitou-se, correu, atravessou o pátio, levantando uma rajada de vento, parou a um metro de D. Melquíades. Os outros tinham avançado as cabeças e olhavam e mantinham-se silenciosos. Os que passeavam tinham-se imobilizado, os que dormiam estavam acachapados a observar e o sol parecia líquido.

 

- Ainda por cima convocaste os jornalistas? - disse o coronel Espina. - Não sabes que quem assina os comunicados é o ministro, que é o ministro que dá as conferências de imprensa?

 

- Vamos lá a ver, Trifulcio, levanta esse barril que D. Emílio Arévalo quer-te ver - disse D. Melquíades. - Não me deixes ficar mal, olha que eu disse-lhe que tu conseguias.

 

- Convoquei-os para tu lhes falares - disse Bermúdez. - Aqui tens o comunicado pormenorizado, as fichas, as armas para as fotografias. Convoquei-os a pensar em ti, Serrano.

 

- Eu não fiz nada, senhor - pestanejou e gritou e esperou e gritou novamente Trifulcio. - Nada. Palavra de honra, D. Melquíades.

 

- Está bem, não se fala mais nisso - disse o coronel Espina. Mas é bom que se saiba que eu queria liquidar a questão de San Marcos quando estivesse resolvido o problema dos sindicatos.

 

Preto, cilíndrico, o barril estava ao pé da varanda, debaixo de D. Melquíades, dos guardas e do desconhecido de branco. Indiferentes ou interessados ou aliviados, os outros olhavam para o barril e para Trifulcio ou olhavam-se trocistas.

 

- Aquilo de San Marcos não está liquidado, mas é a altura de o liquidar - disse Bermúdez. - Aqueles vinte e seis são elementos de choque, mas a maioria dos cabecilhas anda à solta, e é preciso deitar-Lhes a mão agora.

 

- Não sejas imbecil e levanta esse barril - disse D. Melquíades.

 

- Já sei que não fizeste nada. Anda lá, levanta-o para o senhor Arévalo ver.

 

- Os sindicatos são mais importantes que San Marcos, aí é que é preciso fazer uma limpeza - disse o coronel Espina. - Até agora não deram sinal, mas a Apra é forte entre os operários, e uma faiscazinha pode provocar uma explosão.

 

- Só caguei na cela porque estou doente - disse Trifulcio. Não consegui aguentar-me, D. Melquíades. Pela minha palavra.

 

- Fá-la-emos - disse Bermúdez. - Limparemos tudo o que for preciso, Serrano.

 

O desconhecido desatou a rir, D. Melquíades desatou a rir, no pátio estoiraram risos. O desconhecido arrimou-se à varanda, meteu uma mão no bolso, tirou e mostrou a Trifulcio qualquer coisa que brilhava.

 

- Leste La Tribuna, clandestina? - perguntou o coronel Espina.

 

- Dizem as piores coisas do exército, de mim. É preciso evitar que essa suja folha de couve continue a circular.

 

- Um sol para levantar aquele barril, senhor? -- fechou e abriu os olhos e desatou a rir Trifulcio. - Mas claro que isso é para já, senhor!

 

- Claro que em Chincha falavam dele, senhor - disse Ambrosio.

 

- Que tinha violado uma menor, que tinha roubado, que tinha matado um tipo numa briga. Nem todas estas barbaridades deviam ser verdadeiras. Mas algumas eram, se não, porque é que ele teria estado tanto tempo preso?

 

- Vocês, os militares, continuam a pensar na Apra de há vinte anos - disse Bermúdez. - Os líderes estão velhos e corrompidos, já não estão para se deixar matar. Não haverá explosão, não haverá revolução. E essa folha de couve há-de desaparecer, prometo-te.

 

Alçou as manápulas à altura da cara (enrugada já nas pálpebras e no pescoço e nas patilhas crespas e grisalhas), cuspiu nelas um par de vezes, esfregou-as e deu um passo em direcção ao barril. Apalpou-o, fê-lo oscilar, encostou as pernas compridas, o ventre abaulado e o largo tórax ao corpo duro do barril e apertou-o violenta, amorosamente, com os braços compridíssimos.

 

- Nunca mais o vi, mas uma vez ouvi falar dele - diz Ambrosio.

 

- Tinham-no visto pelas povoações do departamento, durante as eleições de cinquenta, a fazer campanha pelo senador Arévalo. A colar cartazes, a distribuir panfletos. Para a candidatura de D. Emílio Arévalo, o amigo do seu paizinho, menino.

 

- Já lhe arranjei a listazinha, D. Cayo, só renunciaram três prefeitos e oito subprefeitos dos nomeados pelo Bustamante - disse o Dr. Alcibíades. - Doze prefeitos e quinze subprefeitos mandaram telegramas de felicitações ao general por ter subido ao Poder. Os outros, mudos; talvez queiram que os confirmem, mas não se atrevem a pedi-lo.

 

Fechou os olhos, e ao erguer o barril, incharam-lhe as veias do pescoço e da testa e empapou-se-lhe a pele gasta da cara e arroxearam-se-lhe os lábios gordos. Arqueado, aguentava o peso com todo o corpo, e uma manápula desceu toscamente pelo flanco do barril e este ergueu-se um pouco mais. Deu dois passos de embriagado com a sua carga às costas, olhou com soberba para a varanda, e com um empurrão devolveu o barril ao solo.

 

- O Serrano julgava que iam renunciar em massa e queria começar a nomear prefeitos e subprefeitos à toa - disse Cayo Bermúdez.

 

- Como vê, doutorzinho, o coronel não conhece os Peruanos.

 

- Um autêntico touro, Melquíades, tinhas razão, na idade dele é inacreditável - o desconhecido de branco atirou a moeda ao ar e Trifulcio apanhou-a em voo. - Ouve lá, que idade tens tu?

 

- Pensa que todos são como ele, homens honrados - disse o Dr. Alcibíades. - Mas diga-me, D. Cayo, porque é que estes prefeitos e subprefeitos se haviam de manter leais ao pobre Bustamante, que nunca mais levantará a cabeça.

 

- Faço lá ideia - riu-se, ofegou, enxugou a cara Trifulcio. Uma pipa de anos. Mais do que o senhor.

 

- Confirme nos cargos os que mandaram telegramas de adesão, e também os mudos, depois os iremos substituindo a todos com calma

 

- disse Bermúdez. - Agradeça os serviços prestados aos que renunciaram, e o Lozano que abra fichas para esses.

 

- Há ali um daqueles que te agradam, Hipólito - disse Ludovico. - O senhor Lozano recomenda-no-lo especialmente.

 

- Lima continua inundada de pasquins clandestinos asquerosos

 

- disse o coronel Espina. - Que há, Cayo?

 

- Quem imprime A Tribuna clandestina e onde e em menos de um ai - disse Hipólito. - Olha que tu és dos que me agradam.

 

- Essas folhinhas subversivas vão desaparecer imediatamente disse Bermúdez. - Entendido, Lozano?

 

- Estás pronto, negro? - disse D. Melquíades. - Deves estar sobre brasas, não, Trifulcio?

 

- Não sabes nem quem nem onde? - perguntou Ludovico. Então como é que tinhas uma Tribuna, no bolso quando te prenderam na Vitarte, paizinho?

 

- Se estou pronto? - riu com angústia Trifulcio. - Pronto, D. Melquíades?

 

- Quando ultimamente vinha a Lima, eu mandava dinheiro à negra e ia visitá-la de quando em quando - disse Ambrosio. - Depois, nada. Morreu sem saber de mim. É uma das coisas que me pesam, senhor.

 

- Meteram-ta no bolso sem dares por isso? - perguntou Hipólito. - Mas que tontinho que tu me saíste, paizinho. E que calcinhas tão à moda que tu tens, e o que aí vai de brilhantina no cabelo. Com que então nem sequer és aprista, com que então nem sequer sabes quem imprime A Tribuna nem onde?

 

- Já te esqueceste de que sais hoje? - perguntou D. Melquíades.

 

- Ou já estás acostumado cá ao sítio e não queres sair?

 

- Soube que a negra tinha morrido por um chinchano, menino diz Ambrosio. - Quando ainda trabalhava para o seu paizinho.

 

- Não senhor, não me esqueci, senhor - sapateou, bateu as palmas Trifulcio. - Mas como é que se lembra, D. Melquíades?

 

- Estás a ver? O Hipólito zangou-se e olha o que te aconteceu, vê lá se te volta a memória de vez - disse Ludovico. - Olha que és dos que lhe agradam.

 

- Não respondem, mentem, passam a bola uns aos outros - disse Lozano. - Mas nós nem dormimos, D. Cayo. Noites a fio sem pregar olho. Havemos de acabar com esses pasquins, juro-lhe.

 

- Dá-me o teu dedo; isso, agora põe aqui uma cruz - disse D. Melquíades. - Pronto, Trifulcio, outra vez livre. Até te parece mentira, não?

 

- Isto não é um país civilizado, muito pelo contrário, é um país bárbaro e ignorante - disse Bermúdez. - Deixe-se de contemplações com esses sujeitos, e averigue-me o que eu preciso de uma vez por todas.

 

- Mas que magrinho que tu me saíste, paizinho - disse Hipólito.

 

- Com o casaco e a camisa não se notava, até se te podem contar os ossos, paizinho.

 

- Lembras-te do senhor Arévalo, que te deu um sol por teres levantado o barril? - perguntou D. Melquíades. - É um fazendeiro importante. Queres trabalhar para ele?

 

- Quem e onde e em menos de um ai - disse Ludovico. - Queres que a gente passe a noite toda assim? E se o Hipólito se torna a zangar?

 

- Claro que quero, D. Melquíades - assentiu com a cabeça e com as mãos e com os olhos Trifulcio. - Agora mesmo ou quando o senhor disser.

 

- Vais fazer com que te estraguem o físico e eu morro de pena disse Hipólito. - Porque cada vez me agradas mais, paizinho.

 

- Precisa de gente para a sua companha eleitoral, porque é amigo de Odría e vai ser senador - disse D. Melquíades. - Pagar-te-á bem. Aproveita esta oportunidade, Trifulcio.

 

- Nem sequer nos disseste como te chamas, paizinho - disse Ludovico. - Ou também não sabes, também já te esqueceste?

 

- Embebeda-te, procura a tua família, vai um bocado às pegas disse D. Melquíades. - E na segunda-feira vai à herdade dele, à saída de Iça. Pergunta e qualquer pessoa ta indicará.

 

- Tens sempre os tomatezinhos tão pequenos ou é do susto ? perguntou Hipólito. - E a pilinha mal se vê, paizinho. Também é do susto?

 

- Claro que me lembrarei, senhor, que mais quero eu - disse Trifulcio. - Agradeço-lhe imenso ter-me recomendado àquele senhor.

 

- Deixa-o lá que nem te ouve, Hipólito - disse Ludovico.

- Vamos ao gabinete do senhor Lozano. Deixa-o lá, Hipólito.

 

O guarda deu-lhe uma palmadinha nas costas, bom, Trifulcio, e fechou o portão atrás dele, até nunca mais ou até à próxima, Trifulcio. Caminhou rapidamente em frente, pelo descampado que conhecia, que se divisava das celas de primeira, e depressa chegou às árvores que também tinha decorado, e a seguir avançou por um novo campo até às barracas do exterior, onde, em vez de se deter, apressou o passo. Cruzou quase correndo com barracas e silhuetas humanas que o olhavam com surpresa ou indiferença ou temor.

 

- E não é que tenha sido mau filho ou não gostasse dela, a negra merecia o Céu, como o senhor - disse Ambrosio. - Deu cabo do lombo para me criar e dar-me de comer. O que acontece é que a vida não nos dá tempo para a gente se lembrar da nossa mãe.

 

- Deixámo-lo porque Hipólito deixou escapar a mão e o tipo começou a dizer patetices e depois desmaiou, senhor Lozano - disse Ludovico. - Eu acho que esse Trinidad López não é aprista nem sabe de que lado está. Mas, se quiser, nós acordamo-lo e continuamos, senhor.

 

Continuou a avançar, cada vez mais apressado e perdido, incapaz de se orientar nessas primeiras ruas empedradas que os seus pés descalços pisavam furiosamente, internando-se cada vez mais na cidade tão alargada, tão estendida, tão diferente da que os seus olhos recordavam. Caminhou sem rumo, sem pressa, por fim atirou-se para cima do banco que estava à sombra das palmeiras de uma praça. Havia uma loja numa esquina, entravam mulheres com crianças, uns miúdos apedrejavam um candeeiro e uns cães ladravam. Devagar, sem barulho, sem dar por isso, pôs-se a chorar.

 

- O seu tio sugeriu-me que o chamasse, capitão, e eu também queria conhecê-lo - disse Cayo Bermúdez. - Até certo ponto, somos colegas, não é verdade?, e com certeza havemos de trabalhar juntos mais dia menos dia.

 

- Era boa, sacrificou-se imenso, não faltava à missa - diz Ambrosio. - Mas tinha o seu temperamentozinho, menino. Por exemplo, não me batia com a mão, era com um pau. Para não te fazeres como o teu pai, dizia ela.

 

- Eu já o conhecia de nome, senhor Bermúdez - disse o capitão Paredes. - O meu tio e o coronel Espina apreciam-no muito, dizem que isto funciona graças ao senhor.

 

Levantou-se, lavou a cara na fonte da praça, perguntou a dois homens onde se tomava e quanto custava o autocarro para Chincha. Parando aqui e além, para ver as mulheres e as coisas tão modificadas, dirigiu-se a outra praça pejada de veículos. Perguntou, regateou, mendigou e subiu para um camião que demorou duas horas a partir.

 

- Não falemos de méritos, que o senhor deixa-me muito para trás, capitão - disse Cayo Bermúdez. - Sei que se empenhou a fundo na revolução comprometendo oficiais, que pôs a segurança militar a correr sobre esferas. Sei-o pelo seu tio, não negue.

 

Foi em pé durante toda a viagem, aferrado à grade do camião, cheirando e olhando o areal, o céu, o mar, que aparecia e desaparecia entre as dunas. Quando o camião entrou em Chincha, abriu muito os olhos, e voltava a cabeça de um lado para outro, aturdido pelas diferenças. Corria fresco, já não havia sol, as copas das palmeiras dançavam e murmuravam quando passou por baixo delas, agitado, tonto, sempre apressado.

 

- Quanto à revolução, é a pura verdade e nisso não há lugar para modéstias - disse o capitão Paredes. - Mas na segurança militar sou apenas um colaborador do coronel Molina, senhor Bermúdez.

 

Mas o trajecto até ao bairro da lata foi comprido e tortuoso, porque a memória o enganava e a cada momento tinha de perguntar às pessoas onde ficava a saída para Grocio Prado. Chegou quando havia já lampiões e sombras, e o bairro já não era um bairro de lata, mas sim um aglomerado de casas firmes, e, em vez de começarem os algodoais nos seus antigos limites, começavam as casas doutro bairro de lata. Mas a barraca era a mesma e a porta estava aberta e reconheceu imediatamente Tomasa: a gorda, a preta, a que estava sentada no chão, a que estava a comer à direita da outra mulher.

 

- O coronel Molina é quem faz a figura, mas o senhor é que faz andar a máquina - disse Bermúdez. •- Também o sei pelo seu tio, capitão.

 

- O sonho dela era a lotaria, senhor - disse Ambrosio. - Uma vez saiu a um vendedor de gelados de Chincha, e ela pode ser que Deus a faça sair outra vez aqui e comprava os seus bilhetinhos com o dinheiro que não tinha. Levava-os à Virgem, prendia-lhes velinhas. Nunca lhe saiu um centavo, senhor.

 

- Imagino como andaria este Ministério no tempo do Bustamante, com os apristas por todos os lados e as sabotagens na ordem do dia - disse o capitão Paredes. - Mas não lhes serviu de muito, a esses espertalhões.

 

Entrou de um salto, dando murros no peito e grunhidos, e postou-se entre as duas e a desconhecida deu um grito e persignou-se. Tomasa, encolhida no chão, observava-o e de repente o medo desapareceu da sua cara. Sem falar, sem esperar, apontou-lhe a porta do casebre com o punho. Mas Trifulcio não saiu, desatou a rir, deixou-se cair alegremente no chão e começou a coçar as axilas.

 

- Serviu-lhes pelo menos para não deixarem vestígios, os arquivos da Direcção não servem para nada - disse Bermúdez. - Os apristas fizeram desaparecer os ficheiros. Estamos a organizar tudo de novo e era disso que lhe queria falar, capitão. A segurança militar podia ajudar-nos muito.

 

- Então és motorista do senhor Bermúdez? - perguntou Ludovico. - Muito prazer, Ambrosio. Com que então vais-nos dar uma ajudazinha cá no bairro de lata?

 

- Não há problemas, claro que temos de colaborar um com o outro - disse o capitão Paredes. - Sempre que precisar de qualquer informação, eu lha arranjarei, senhor Bermúdez.

 

- A que é que vens, quem é que te chamou, quem é que te convidou? - rugiu Tomasa. - Pareces um foragido, assim. Pareces o que és. Não viste como a minha amiga se foi embora logo que te viu? Quando é que te soltaram?

 

- Eu queria mais do que isso, capitão - disse Bermúdez. Queria dispor do ficheiro político completo da segurança militar. Ter uma cópia.

 

- Chama-se Hipólito e é o burro mais burro da criação - disse Ludovico. - Ele daqui a nada já vem, já to apresento. Também não é do quadro e com certeza nunca há-de ser. Eu espero vir a ser um dia, com um bocadinho de sorte. Ouve lá, Ambrosio, tu é que hás-de ser, não?

 

- Os nossos arquivos são intocáveis, estão sob segredo militar disse o capitão Paredes. - Comunicarei o seu projecto ao coronel Molina, mas ele também não pode decidir. O melhor seria o ministro do Governo fazer um ofício ao ministro da Guerra.

 

- A tua amiga saiu a correr como se eu fosse o Diabo - riu-se Trifulcio. - Ouve, Tomasa, deixa-me comer isto. Tenho uma fome que nem vejo.

 

- Isso é precisamente o que se tem de evitar, capitão - disse Bermúdez. - A cópia desse arquivo deve passar à Direcção do Governo sem que o coronel Molina nem o próprio ministro da Guerra o saibam. Compreende?

 

- Um trabalho exasperante, Ambrosio - disse Ludovico. - Horas e horas a perder a voz, as forças, e depois vem alguém do quadro e passa-te por cima, e o senhor Lozano ameaça pagar-te menos. Exasperante para todos menos para o burro do Hipólito. Queres que te conte porquê?

 

- Eu não posso dar-lhe uma cópia dos arquivos ultra-secretos sem que os meus superiores o saibam - disse o capitão Paredes. Está lá a vida inteira dos oficiais todos, de milhares de civis. É como o ouro do Banco Central, senhor Bermúdez.

 

- Está bem, tens de te ir embora, mas agora acalma-te e bebe um gole, infeliz - disse D. Fermín. - E agora conta-me como foi. Deixa lá de chorar.

 

- Precisamente, capitão, claro que sei que esse arquivo é ouro disse Bermúdez. - E o seu tio também sabe. O assunto deve ficar só entre os responsáveis pela segurança. Não, não se trata de rebaixar o coronel Molina.

 

- Porque depois de meia hora de estar a apertar com um tipo, o burro do Hipólito, de repente, pumba, põe-se em pau. A gente aborrece-se. Ele não, pumba, põe-se em pau.

 

- Pelo contrário, é dar-lhe um lugar mais importante - disse Bermúdez. - Dar-lhe o comando de tropas, dar-lhe um quartel. E ninguém discutirá que o senhor é a pessoa mais indicada para substituir o coronel Molina na chefia da segurança. Nessa altura poderemos fundir os serviços com discrição, capitão.

 

- Nem uma noite, nem uma hora - disse Tomasa. - Não vais viver aqui nem um minuto. Vais-te embora agora mesmo, Trifulcio.

 

- O senhor meteu o meu tio num bolso, amigo Bermúdez - disse o capitão Paredes. - Ainda não há seis meses que o conhece e já tem mais confiança em si do que em mim. Bom, está bem, estou a brincar, Cayo. Podemos tratar-nos por tu, não?

 

- Não mentem por valentia, Ambrosio, é mas é por medo - disse Ludovico -, tu verás se alguma vez te consegues entender com eles. Há quanto tempo és aprista? Não sou. E então como é que tu dizes que Fulano e Cicrano são teus chefes? Não são. Exasperante, podes crer.

 

- O teu tio sabe que a vida do regime depende da segurança disse Bermúdez. - Agora toda a gente se desfaz em aplausos, mas não tardarão a aparecer as armadilhas e os afrouxamentos e as lutas de interesses e nessa altura tudo dependerá do que a segurança tiver feito para neutralizar os ambiciosos e os ressentidos.

 

- Não espero ficar, estou de visita - disse Trifulcio. - Vou trabalhar para um ricaço de Iça chamado Arévalo. Palavra, Tomasa.

 

- Eu bem sei - disse o capitão Paredes. - Quando já não houver apristas, aparecerão inimigos ao presidente dentro do próprio regime.

 

- Es comunista, és aprista? Não sou aprista, não sou comunista - disse Ludovico. - Es um mancas, compadre, ainda nem te tocámos e já estás a mentir. Horas nisto, noites nisto, Ambrosio. E isto põe o Hipólito em pau, estás a ver o género de tipo que ele é?

 

- Por isso é preciso trabalhar a longo prazo - disse Bermúdez.

 

- Agora o elemento mais perigoso é o civil, amanhã será o militar. Estás a ver porque é que há tanto segredo com esta coisa do arquivo?

 

- Nem perguntas onde é que está enterrado o Perpetuo, nem se o Ambrosio ainda é vivo - disse Tomasa. - Já te esqueceste de que tinhas filhos?

 

- Era uma mulher alegre que gostava da vida, senhor - disse Ambrosio. - Pobrezinha, ir-se juntar com um tipo capaz de fazer aquilo ao próprio filho. Mas claro que se a negra não se tivesse apaixonado por ele, eu não teria nascido. Portanto, para mim foi um bem.

 

- Tens de alugar uma casa, Cayo, não podes continuar no hotel

 

- disse o coronel Espina. - Além disso, é absurdo que não uses o automóvel que te compete como director do Governo.

 

- Não me interessam os mortos - disse Trifulcio. - Mas gostaria de ver o Ambrosio, isso sim. Ele vive contigo?

 

- O caso é que eu nunca tive automóvel, e, além disso, o táxi é cómodo - disse Bermúdez. - Mas tens razão, Serrano, vou passar a usá-lo. Deve-se estar a enferrujar.

 

- O Ambrosio vai amanhã trabalhar para Lima - disse Tomasa.

 

- Para que é que o queres ver?

 

- Eu não acreditava naquilo do Hipólito, mas era verdade - disse Ludovico. - Não foi ninguém que me contou, fui eu que vi.

 

- Não deves ser tão modesto, faz uso das tuas prerrogativas disse o coronel Espina. - Estás aqui metido quinze horas por dia e nem tudo é trabalho na vida. É preciso arejar de vez em quando, Cayo.

 

- Por pura curiosidade, para ver como ele é - disse Trifulcio. Vejo o Ambrosio e palavra que me vou embora, Tomasa.

 

- Pela primeira vez deram-nos um tipo da Vitarte só aos dois disse Ludovico. - Ninguém do quadro para nos passar por cima, tinham falta de gente. E foi então que eu a vi, Ambrosio.

 

- Claro que hei-de arejar, Serrano, mas preciso de estar mais aliviado de trabalho - disse Bermúdez. - E hei-de procurar casa e de me instalar com maior comodidade.

 

- O Ambrosio estava a trabalhar aqui como motorista interprovincial - disse Tomasa. - Mas em Lima as coisas hão-de-lhe correr melhor e por isso encorajei-o a ir para lá.

 

- O presidente está muito satisfeito contigo, Cayo - disse o coronel Espina. - Agradece-me mais ter-te recomendado do que tudo em que o ajudei na revolução, imagina.

 

- Chegava-lhe e começou a suar, e mais, cada vez suava mais, e chegou-lhe tanto que o tipo se pôs a dizer disparates - disse Ludovico. - E de repente vi-lhe a braguilha inchada como um balão. Juro-te, Ambrosio.

 

- Aquele que ali vem, aquele homenzarrão - disse Trifulcio. Aquele é que é o Ambrosio?

 

- Para que é que lhe bates, se já o deixaste meio atarantado, para quê, se já o puseste a dormir - disse Ludovico. - Nem ouvia, Ambrosio. Em pau, como um balão. Foi como eu te conto, juro. Já o vais conhecer, já to apresento.

 

- Todas as nossas esperanças para sair do atoleiro estão agora postas nos senhores - disse D. Fermín.

 

- Reconheci-te logo - disse Trifulcio. - Anda cá, Ambrosio, dá-me um abraço, deixa-me cá ver-te.

 

- O regime num atoleiro? - perguntou o coronel Espina. - Está a brincar, D. Fermín? Se a revolução não vai de vento em popa, então não sei de nenhuma coisa que vá.

 

- Eu iria esperá-lo - disse Ambrosio. - Mas não sabia que vossemecê saía.

 

- O Fermín tem razão, coronel - disse Emílio Arévalo. - Nada irá de vento em popa enquanto não se fizerem eleições e o general Odría não voltar ao Poder ungido e sacramentado pelos votos dos Peruanos.

 

- Vá lá que tu não me pões fora como a Tomasa - disse Trifulcio. - Julgava-te ainda rapazinho e és quase tão velho como este negro do teu pai.

 

- As eleições serão uma formalidade, se quiser, coronel - disse D. Fermín. - Mas uma formalidade necessária.

 

- Já o viste, agora vai-te embora, anda - disse Tomasa. O Ambrosio parte amanhã, tem de fazer a mala.

 

- E para chegar às eleições é preciso ter o país pacificado, isto é, limpo de apristas - disse o Dr. Ferro. - Senão, as eleições poderiam rebentar-nos nas mãos como uma bomba.

 

- Vamos beber a qualquer lado, Ambrosio - disse Trifulcio. Conversamos um bocado e depois vens fazer a mala.

 

- O senhor não abre a boca, senhor Bermúdez - disse Emilio Arévalo. - Até parece que a política o aborrece.

 

- Queres dar má fama ao teu filho? - perguntou Tomasa. É para isso que queres que o vejam contigo na rua?

 

- Não é só parecer, a verdade é que me aborrece mesmo - disse Bermúdez. - Aliás, não percebo nada de política. Não se riam, é verdade. Por isso, prefiro ouvi-los.

 

Avançaram às escuras, por ruas ondulantes e abruptas, entre casebres de junco e esporádicas casas de tijolos, vendo pelas janelas, à luz de velas e lamparinas, silhuetas confusas que comiam conversando. Cheirava a terra, a excrementos, a uvas.

 

- Pois olhe que, para quem não sabe nada de política, desempenha muito bem o cargo de director do Governo - disse D. Fermín.

- Outro copo, D. Cayo?

 

Encontraram um burro caído no caminho, ladraram-lhes cães invisíveis. Eram quase da mesma estatura, iam calados, o céu estava claro, fazia calor, não corria vento. O homem que descansava na cadeira de balouço pôs-se de pé ao vê-los entrar na taberna deserta, serviu-lhes uma cerveja e voltou a sentar-se. Chocaram os copos na penumbra, ainda sem falarem.

 

- Fundamentalmente, duas coisas - disse o Dr. Ferro. - Primeira, manter a unidade da equipa que tomou o Poder. Segunda, continuar a limpeza com pulso forte. Universidade, sindicatos, administração. A seguir, eleições e ao trabalho pelo país.

 

- Que é que eu gostaria de ser na vida, pergunta o menino? diz Ambrosio. - Ricaço, é claro.

 

- Com que então vais para Lima amanhã - disse Trifulcio. E ao que vais?

 

- E tudo uma questão de empréstimos e de créditos - disse D. Fermín. - Os Estados Unidos estão dispostos a ajudar um governo de ordem, por isso é que apoiaram a revolução. Agora querem eleições e é preciso fazer-lhes a vontade.

 

- Vou procurar trabalho lá - disse Ambrosio. - Na capital ganha-se mais.

 

- Os gringos são formalistas, é preciso compreendê-los - disse Emílio Arévalo. - Estão felizes com o general e só pedem que se respeitem as formas democráticas. Com Odría eleito, abrem-nos os braços e dão-nos os créditos que forem precisos.

 

- E há quanto tempo és motorista? - pergunta Trifulcio.

 

- Mas antes de tudo há que lançar para a frente a Frente Patriótica Nacional ou Movimento Restaurador ou lá como se chame - disse o Dr. Ferro. - Para isso é básico o programa e é por isso que eu insisto tanto nele.

 

- Dois anos como profissional - disse Ambrosio. - Comecei como ajudante, a conduzir por empréstimo. Depois fui camionista e agora estive como condutor de autocarros, por aqui, pelos distritos.

 

- Um programa nacionalista e patriótico que agrupe todas as forças sãs - disse Emílio Arévalo. - Indústria, comércio, empregados, agricultores. Inspirado em ideias simples mas eficazes.

 

- Quer dizer que és um homem sério, de trabalho - disse Trifulcio. - A Tomasa, que não queria que me vissem contigo, lá tinha as suas razões. Achas que vais conseguir trabalho em Lima?

 

- Precisamos de qualquer coisa que lembre a excelente fórmula do marechal Benavides - disse o Dr. Ferro -, Ordem, Paz e Trabalho. Eu tinha pensado em Saúde, Educação e Trabalho. Que lhes parece?

 

- Vossemecê lembra-se da leiteira Túmula, da filha que ela tinha?

 

- perguntou Ambrosio. - Casou-se com o filho do Abutre. Lembra-se do Abutre? Eu ajudei o filho a roubá-la.

 

- Claro, a candidatura do general tem de ser lançada em grande

 

- disse Emílio Arévalo. - Todos os sectores a devem proclamar de uma maneira espontânea.

 

- O Abutre, o prestamista, o que foi alcaide? - disse Trifulcio.

 

- Lembro-me dele, lembro.

 

- Hão-de proclamá-la, D. Emílio - disse o coronel Espina. O general cada dia é mais popular. Em poucos meses, as pessoas viram já a tranquilidade que agora existe e o caos que o país era com os apristas e os comunistas à solta.

 

- O filho do Abutre está no Governo, agora é importante - disse Ambrosio. - É capaz de me ajudar a arranjar trabalho em Lima.

 

- Não quer vir daí comigo tomar uma bebida, D. Cayo? - perguntou D. Fermín. - Não lhe ficou a doer a cabeça com os discursos do amigo Ferro? A mim deixa-me sempre tonto.

 

- Se ele é importante, já não há-de querer saber de ti - disse Trifulcio. - Há-de olhar-te por cima do ombro.

 

- Com muito gosto, senhor Zavala - disse Bermúdez. - Sim, o doutor Ferro é um bocado falador. Mas nota-se que tem experiência.

 

- Para o cativares, leva-lhe uma lembrançazinha - disse Trifulcio. - Qualquer coisa que lhe recorde a aldeia e lhe toque o coração.

 

- Uma experiência enorme, porque há vinte anos que pertence a todos os governos - riu D. Fermín. - Venha, tenho aqui o carro.

 

- Vou-lhe levar umas garrafas de vinho - disse Ambrosio. E vossemecê, que é que vai fazer agora? Vai voltar para casa?

 

- O mesmo que o senhor - disse Bermúdez. - Pois sim, senhor Zavala, uísque, com certeza.

 

- Acho que não, bem viste como a tua mãe me recebeu - disse Trifulcio. - Mas isso não quer dizer que Tomasa seja má mulher.

 

- Nunca compreendi a política porque nunca gostei dela - disse Bermúdez. - As circunstâncias fizeram que na velhice me venha meter na política.

 

- Ela diz que o senhor a abandonou uma data de vezes - disse Ambrosio. - Que só vinha a casa para lhe sacar o dinheiro que ela ganhava a trabalhar que nem uma moura.

 

- Eu também detesto a política, mas que quer? - disse D. Fermín. - Quando os homens de trabalho se abstêm e deixam a política aos políticos, o país vai por água abaixo.

 

- As mulheres são umas exageradas e a Tomasa, ao fim e ao cabo, é mulher - disse Trifulcio. - Vou trabalhar para Iça, mas hei-de vir vê-la.

 

- Palavra que nunca cá tinha vindo? - perguntou D. Fermín. O Espina anda a explorá-lo, D. Cayo. O show é bastante bom, vai ver. Não pense que eu faço muita vida nocturna. É muito raro.

 

- E como vão as coisas por cá? - perguntou Trifulcio. - Tu deves saber, com a tua idade deves ser um conhecedor. As mulheres, as casas de pegas. O que é que cá há de casas de pegas?

 

Tinha um vestido branco de baile muito cingido que cintilava suavemente e desenhava tão nítidas e tão vivas as linhas do seu corpo que parecia nua. Um vestido da cor da pele, que beijava o chão e a obrigava a dar uns passinhos curtos, uns saltos de grilo.

 

- Há duas, uma cara e uma barata - disse Ambrosio. - A cara quer dizer uma libra, a barata que se conseguem apenas por três soíes. Mas são uma porcaria.

 

Tinha os ombros brancos, redondos, macios, e a brancura da sua tez contrastava com o tom escuro dos cabelos, que lhe caíam pelas costas. Franzia a boca com lenta avidez, como se fosse morder o pequeno microfone prateado, e os seus olhos grandes brilhavam e corriam pelas mesas, uma e outra vez.

 

- Bonita, a tal Musa, não acha? - perguntou D. Fermín. - Pelo menos, comparada com os esqueletos que dançaram há bocado. Mas a voz não ajuda muito.

 

- Não quero levar-te nem que me acompanhes, e aliás já sei que é melhor não te verem comigo - disse Trifulcio. - Mas gostaria de dar uma volta por lá, só para ver. Onde é a mais barata?

 

- Muito bonita, é, um lindo corpo, uma bonita cara - disse Bermúdez. - E, a mim, a voz não me parece assim tão má.

 

- Aqui perto - disse Ambrosio. - Mas a polícia anda sempre lá, porque todos os dias há brigas.

 

- Pois digo-lhe que essa mulher tão mulher não é tão mulher como parece - disse D. Fermín. - Gosta de mulheres.

 

- Isso é o menos, já estou habituado aos chuis e às brigas - riu Trifulcio. - Anda, paga a cerveja e vamos embora.

 

-’Ai sim? - perguntou Bermúdez. - Esta mulher tão bonita? Ai sim?

 

- Eu fazia-lhe companhia, mas o autocarro para Lima parte às seis

- disse Ambrosio. - E ainda tenho as minhas coisas por lá espalhadas.

 

- Então não tem filhos, D. Cayo - disse D. Fermín. - Pois olhe que se livrou de muitos problemas. Eu tenho três, e agora começam a causar-nos dores de cabeça, a mim e à Zoila.

 

- Deixas-me à porta e vais-te embora - disse Trifulcio. - Leva-me por onde ninguém nos veja, se quiseres.

 

- Dois homenzinhos e uma mulherzinha? - perguntou Bermúdez. - Já crescidos?

 

Saíram outra vez para a rua e a noite estava mais clara. A lua ia-lhes mostrando os sulcos, as valas, as pedras. Percorreram vielas desertas. Trifulcio virando a cabeça para a esquerda e para a direita, observando tudo, espiolhando tudo; Ambrosio com as mãos nos bolsos, dando pontapés nas pedrinhas.

 

- Que futuro poderia ter a marinha para um rapaz? - disse D. Fermín. - Nenhum. Mas o Chispas teimou e eu movi umas influências e consegui que ele entrasse. E agora expulsam-no, está a ver? Fraco nos estudos, indisciplinado. Vai ficar sem profissão, isso é que é o pior. Claro que eu podia mexer-me e conseguir que o desculpassem. Mas não, não quero ter um filho marinheiro. Vou é pô-lo a trabalhar comigo, isso sim.

 

- Isso é tudo o que tens, Ambrosio? - perguntou Trifulcio. Só um par de libras? Só um par de libras, tu, um motorista feito?

 

- E porque é que não o manda estudar para o estrangeiro? perguntou Bermúdez. - Pode ser que, mudando de ambiente, o rapaz se corrija.

 

- Se tivesse mais, dava-lho também - disse Ambrosio. - Bastava que me pedisse, que eu dava-lho. Para que é que puxou dessa faca? Não era preciso. Olhe, venha lá a casa, que eu dou-lhe mais. Mas guarde isso, dou-lhe mais cinco libras. Mas não me ameace. Tenho muito gosto em ajudá-lo, em dar-lhe mais. Venha lá, vamos a casa.

 

- Impossível, a minha mulher morria, sabe lá - disse D. Fermín

 

- O Chispas sozinho no estrangeiro, isso sim, a Zoila alguma vez deixava. E o preferido dela.

 

- Não, não vou - disse Trifulcio. - Isto chega. E é um empréstimo, eu depois pago-te as duas libras, porque vou trabalhar para Iça. Assustaste-te por eu ter puxado da faca? Não te ia fazer mal, és meu filho. E pago-te, palavra.

 

- E o mais novito também lhe saiu difícil? - perguntou Bermúdez.

 

- Não quero que me pague, eu ofereço-lhas - disse Ambrosio.

 

- Não me assustou. Não era preciso puxar da faca, juro-lhe. Vossemecê é meu pai, eu dava-lhe, se me pedisse. Venha lá a casa, juro que lhe dou mais cinco libras.

 

- Não, o magricela é o pólo oposto do Chispas - disse D. Fermín. - E o primeiro da turma, ganha todos os prémios no fim do ano. E preciso refreá-lo para ele não estudar tanto. Uma maravilha de rapaz, D. Cayo.

 

- Deves pensar que eu sou pior do que a Tomasa te disse - disse Trifulcio. - Mas tirei a faca por acaso, palavra, não te ia fazer nada, mesmo que nem me desses sequer um sol. E depois pago-te, palavra que te pago as duas libras, Ambrosio.

 

- Já vejo que o mais novito é o seu preferido - disse Bermúdez.

 

- E que carreira quer ele seguir?

 

- Está bem, se quiser, paga-mas - disse Ambrosio. - Esqueça-se disso, eu já me esqueci. Não quer vir até casa? Dou-lhe mais cinco, prometo.

 

- Ainda está no segundo ano e não sabe - disse D. Fermín. Não é que seja meu preferido, eu gosto igualmente dos três. Mas Santiago faz-me sentir orgulhoso dele. Enfim, o senhor compreende.

 

- Estás a pensar que eu sou um cão que até o próprio filho rouba, que até para o filho puxa da faca - disse Trifulcio. - Juro-te que isto é um empréstimo.

 

- Faz-me uma certa inveja ouvi-lo, senhor Zavalita - disse Bermúdez. - Apesar das dores de cabeça, ser pai deve ter as suas compensações.

 

- Está bem, está bem, eu acredito que foi por acaso e que depois me paga - disse Ambrosio. - Agora esqueça isso, por favor.

 

- Vive no Maury, não é? - perguntou D. Fermín. - Venha, eu levo-o.

 

- Não te envergonhas de mim? - perguntou Trifulcio. - Responde-me com franqueza.

 

- Não, muito obrigado, prefiro ir a pé, o Maury é aqui perto disse Bermúdez. - Muito prazer em conhecê-lo, senhor Zavala.

 

- Mas que é que lhe deu, de que é que eu me havia de envergonhar? - disse Ambrosio. - Venha daí, entramos os dois na casa de pegas, se quiser.

 

- Tu, por aqui? - perguntou Bermúdez. - Que fazes por cá?

 

- Não, vaHá fazer a mala, não vá alguém ver-nos juntos - disse Trifulcio. - És um bom filho, felicidades lá por Lima. Podes crer que eu depois te pago, Ambrosio.

 

- Mandavam-me de um sítio para outro, fizeram-me esperar horas aqui, D. Cayo - disse Ambrosio. - Olhe que já estava para voltar a Chincha.

 

- Geralmente, o motorista do director do Governo é um eventual das Investigações, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades. - Por questões de segurança. Mas se o senhor prefere...

 

- Vim procurar trabalho, D. Cayo - disse Ambrosio. - Já me cansei de guiar aquele autocarro desconjuntado. Pensei que o senhor talvez me pudesse empregar.

 

- Prefiro, sim, doutorzinho - disse Bermúdez. - Este mulato conheço-o há anos e inspira-me mais confiança do que um ponto de interrogação das Investigações. Ele está aí à porta, é capaz de se encarregar disso, se faz favor?

 

- Estou farto de saber conduzir, e o trânsito de Lima aprendo-o num abrir e fechar de olhos, D. Cayo - disse Ambrosio. - O senhor precisa de um motorista? Isso é que era valente, D. Cayo.

 

- Está bem, eu encarrego-me - disse o Dr. Alcibíades. - Mando meterem-no no quadro do Comissariado, ou admitirem-no como eventual ou seja lá o que for. E entregarem-lhe o carro hoje mesmo.

 

- Está bem, então fico contigo - disse Bermúdez. - Tens sorte, Ambrosio, vieste mesmo na altura precisa.

 

- À tua saúde - diz Santiago.

 

O alfarrabista ficava no interior de uma casa com varandas, atravessava-se um trémulo portão e via-se a livraria a um canto, lá no fundo, abarrotada e deserta. Santiago chegou antes das nove, percorreu as estantes do saguão, folheou os livros estragados pelo tempo, as revistas descoradas. O velho da boina e patilhas olhou-o com indiferença, querido velho Matias pensa, depois pôs-se a observá-lo pelo canto do olho, e por fim aproximou-se dele: procurava alguma coisa? Um livro sobre a Revolução Francesa. Ah, sorriu o velho, por aqui. Às vezes era mora aqui o Sr. Henri Barbusse?, ou D. Bruno Bauer está?, às vezes bater ao portão assim, e havia confusões cómicas às vezes, Zavalita. Conduziu-o a um quarto invadido por pilhas de jornais, teias de aranha prateadas e livros arrumados contra negras paredes. Apontou-lhe uma cadeira de balouço, que se sentasse, tinha um ligeiro sotaque espanhol, uns olhinhos loquazes, uma barbicha triangular muito branca; não o teriam seguido? Ter muito cuidado, tudo dependia dos jovens.

 

- Setenta anos e era puro, Carlitos - disse Santiago. - O único que conheci com aquela idade.

 

O velho piscou-lhe afectuosamente o olho e voltou ao pátio. Santiago bisbilhotou antigas revistas de Lima, a Variedades e a Mundial pensa,x pôs de lado as que tinham artigos de Mariátegui ou Vallejo.

 

- E verdade, nessa altura, os Peruanos liam na imprensa Vallejo e Mariátegui - disse Carlitos. - Agora lêem-nos a nós, Zavalita, que retrocesso.

 

Uns minutos depois viu Jacobo e Aída entrarem de mão dada. Já não era um bichinho nem uma cobra nem uma faca, era um alfinete que picava e se esfumava. Viu-os a cochicharem junto às velhas estantes e viu o abandono e a alegria da cara de Jacobo e viu-os separarem-se quando Matias se aproximou deles e viu desaparecer o sorriso de Jacobo e aparecer a concentração façanhuda, a abstracta seriedade, a cara que mostrava ao mundo desde há alguns meses. Trazia o fato cor de café que agora era raro mudar, a camisa enrugada, a gravata com o nó mal apertado. Deu-lhe para se disfarçar de proletário troçava Washington, pensa, fazia a barba uma vez por semana e não engraxava os sapatos, um dia destes a Aída deixa-o ria Solórzano.

 

- Todo aquele mistério era porque nesse dia íamos deixar de brincar - disse Santiago. - Ia começar a coisa a sério, Carlitos.

 

Tinha sido no princípio desse 3.° ano em San Marcos, Zavalita, entre a descoberta da Cahuide e aquele dia? Das leituras e discussões à distribuição de folhinhas passadas a copiógrafo na universidade, da pensão da surda à casinha do Rímac à livraria do Matías, dos jogos perigosos ao perigo a valer: naquele dia. Os dois círculos não tinham voltado a reunir-se, só via Jacooo e Aída em San Marcos, havia outros círculos a funcionar, mas, se o perguntavam a Washington, ele respondia em boca fechada não entra mosca e ria-se. Uma manhã chamou-os: a tal hora, em tal parte, só eles os três. Iam conhecer um tipo da Cahuide, que lhe pusessem as perguntas que quisessem, as dúvidas que tivessem, pensa nessa noite também não dormi. De vez em quando o Matías levantava a vista do pátio e sorria-lhes, no quarto do fundo eles fumavam, folheavam as revistas, olhavam constantemente para o saguão e para a rua.

 

- Marcou-nos às nove e já são nove e meia - disse Jacobo. - Se calhar, não vem.

 

- A Aída mudou muito assim que passou a andar com o Jacobo

 

- disse Santiago. - Brincava, andava satisfeita. Em compensação, ele tornou-se sério e deixou de se pentear e de mudar de roupa. Não se ria para a Aída se alguém o estava a ver, quase não lhe dirigia a palavra diante de nós. Tinha vergonha de ser feliz, Carlitos.

 

- O facto de ser comunista não quer dizer que não seja peruano

 

- riu-se Aída. - Há-de chegar às dez, vão ver.

 

Era um quarto para as dez; uma cara de passarinho no saguão, um andar saltitante, uma pele que parecia papel amarelo, um fato que lhe ficava a dançar, uma gravatinha escarlate; viram-no falar com Matías, olhar em redor, aproximar-se. Entrou no quarto, sorriu-lhes, desculpem chegar tarde, uma mão delgadinha, o autocarro em que vinha tinha tido uma avaria, e ficaram a olhar uns para os outros, embaraçados.

 

- Obrigado, por terem esperado por mim - a voz, como a cara, era também fininha, pensa. - Cumprimentos fraternais da Cahuide, camaradas.

 

- A primeira vez que ouvia camaradas, Carlitos, já imaginas o coração do sentimental do Zavalita - disse Santiago. - Só conheci o nome de guerra dele, Llaque; só o vi umas quantas vezes. Ele trabalhava na Fracção Operária da Cahuide, eu não passei da Fracção Universitária. Um daqueles puros, sabes.

 

Nessa manhã não sabíamos que o Llaque era estudante de Direito aquando da revolução do Odría, pensa, nem que tinha sido apanhado no assalto da polícia a San Marcos, nem que o tinham torturado e desterrado para a Bolívia e que em La Paz estivera preso seis meses, nem que tinha voltado clandestinamente ao Peru; só que parecia um passarinho, nessa manhã, enquanto a sua vozinha resumia a história do Partido e o viam mexer a sua delgada mão amarela num movimento rotativo e idêntico, como se tivesse uma cãibra, e olhar de soslaio para o pátio e para a rua. Tinha sido fundado por José Carlos Mariátegui e, logo que nasceu, cresceu e formou quadros e conquistou sectores operários, queria mostrar-nos que éramos de confiança, e não nos ocultou que tinha sido sempre minúsculo nem a sua debilidade perante a Apra, e essa tinha sido a época dourada do Partido, a época da revista Amauta e do jornal Labor e da organização de sindicatos e do envio de estudantes às comunidades indígenas. Com a morte de Mariátegui em 1930, o Partido tinha caído em mãos de aventureiros e de oportunistas, o velho Matías morreu e demoliram a casa de Chota e construíram um cubo com janelas pensa, que lhe tinham dado uma linha claudicante de retirada perante as massas que por isso mesmo caíram sob a influência aprista, que teria sido feito do caramara Llaque, Zavalita? Aventureiros como Ravines, que se tornou agente imperialista e ajudou Odría a derrubar Bustamante, teria renegado, ter-se-ia cansado da difícil e asfixiante tarefa de ser militante e teria mulher, filhos e trabalharia num ministério?, e oportunistas como Terreros, que se tornou beato e todos os anos vestia um hábito roxo e arrastava uma cruz na Procissão de Nosso Senhor dos Milagres, ou teria contimiado e falaria ainda com a sua voz de passarinho em círculos de estudantes quando não estava na prisão? Traições e repressões tinham quase liquidado o Partido, e se tinha continuado seria pró-soviético, pró-chinês ou um desses castristas que tinham morto nas guerrilhas ou ter-se-ia tornado trotskista?, e quando Bustamante subira ao Poder em’ 1945 o Partido tinha voltado à legalidade e começou a reestruturar-se e a combater na classe operária o reformismo da Apra, teria ido para Moscovo ou para Pequim ou para Havana?, mas com o golpe militar de Odría o Partido tinha sido novamente desmantelado, acusá-lo-iam de estalinista ou de revisionista ou de aventureirista?, todo o comité central e dezenas de dirigentes e militantes e simpatizantes presos e desterrados e alguns assassinados, lembrar-se-ia de ti, Zavalita, daquela manhã na loja do Matías, daquela noite no Hotel Mogollón?, e as células sobreviventes desse grande naufrágio tinham lentamente, trabalhosamente, constituído a Organização Cahuide, que imprima essa folhinha e se dividia na Fracção Universitária e na Fracção Operária, camaradas.

 

- Quer dizer que a Cahuide tem poucos estudantes, poucos operários - disse Aída.

 

- Trabalha-se em condições difíceis, às vezes, por causa de um camarada que é apanhado, perdem-se meses de esforços - segurava o cigarro com as unhas do indicador e do polegar, pensa, sorria com muita timidez. - Mas, apesar da repressão, estamos a crescer.

 

- E convenceu-te, é claro, Zavalita - disse Carlitos.

 

- Convenceu-me de que acreditava no que nos dizia - disse Santiago. - E, além disso, notava-se que gostava do que estava a fazer.

 

- Qual é a posição do Partido em relação à unidade de acção com as outras organizações ilegais? - perguntou Jacobo. - Com a Apra, com os trotskistas.

 

- Não vacilava, tinha fé - disse Santiago. - Eu já invejava as pessoas que acreditavam cegamente em alguma coisa, Carlitos.

 

- Estaríamos dispostos a trabalhar com a Apra contra a ditadura

- disse Llaque. - Mas os apristas não querem que a direita continue a acusá-los de extremismo e fazem tudo por demonstrar o seu amicomunismo. E os trotskistas não são mais de dez, e certamente agentes da polícia.

 

- É a melhor coisa que pode acontecer a um tipo, Ambrosio diz Santiago. - Acreditar no que diz, gostar do que faz.

 

- Porque é que a Apra, que se tornou pró-imperialista, continua a ter a confiança do povo? - perguntou Aída.

 

- Pelo peso do hábito e pela sua demagogia e pelos mártires apristas - disse Llaque. - Sobretudo, por causa da direita peruana. Não percebe que a Apra já não é sua inimiga e sim sua aliada, e continua a persegui-la e assim prestigia-a perante o povo.

 

- Isso é verdade, a estupidez da direita converteu a Apra num grande partido - disse Carlitos. - Mas, se a esquerda não passou de uma maçonaria, não foi por causa da Apra, mas por falta de gente capaz.

 

- É que os capazes como tu e eu não se metem no barulho disse Santiago. - Contentamo-nos em criticar os incapazes que se metem. Achas justo, Carlitos?

 

- Não acho e é por isso que nunca falo de política - disse Carlitos. - Tu é que me obrigas, com os teus masochismos asquerosos de todas as noites, Zavalita.

 

- Agora é a minha vez de perguntar, camaradas - sorriu Llaque, meio envergonhado. - Querem entrar na Cahuide? Podem trabalhar como simpatizantes, não precisam de se inscrever no Partido, por enquanto.

 

- Eu quero entrar já no Partido - disse Aída.

 

- Não há pressa, têm tempo para reflectir - disse Llaque.

 

- No círculo tivemos mais que tempo para isso •- disse Jacobo.

- Eu também me quero inscrever.

 

- Eu prefiro continuar como simpatizante - o bichinho, a faca, a cobra. - Tenho algumas dúvidas, gostaria de estudar mais um bocado antes de me inscrever.

 

- Muito bem, camarada, não te inscrevas até superares todas as dúvidas - disse Llaque. - Como simpatizante, pode-se também desenvolver uma actividade muito útil.

 

- Ficou nessa altura demonstrado que o Zavalita já não era puro, Ambrosio - diz Santiago. - Que o Jacobo e Aída eram mais puros que o Zavalita.

 

E se te inscrevesses naquele dia, Zavalita, pensa? O facto de seres militante ter-te-ia arrastado, comprometido cada vez mais, teria varrido as dúvidas e em alguns meses ou anos ter-te-ia transformado num homem de fé, num optimista, num outro obscuro puro heróico? Terias vivido mal, Zavalita, como terão o Jacobo e a Aída, pensa, entrado e saído da prisão umas vezes, sido admitido e despedido de sórdidos empregos, e, em lugar de editoriais em La Crónica contra os cães raivosos, escreverias nas paginazinhas mal impressas da Unidad, quando houvesse dinheiro e a polícia não o impedisse pensa, sobre os progressos científicos da pátria do socialismo e a vitória no sindicato de panificadores de Lurín da lista revolucionária sobre a entreguista aprista pró-patronal, ou nas mais mal impressas da Bandera Roja, contra o revisionismo soviético e os traidores da Unidad pensa, ou terias sido mais generoso e entrado num grupo de insurreição e sonhado e agido e fracassado nas guerrilhas e estarias na prisão, como o Héctor pensa, ou morto e decomposto na selva, como o índio Martínez pensa, e feito viagens semiclandestmas a congressos da juventude, pensa Moscovo, levado saudações fraternais a encontros de jornalistas, pensa Budapeste, ou recebido treino militar, pensa Havana ou Pequim. Terias chegado a advogado, ter-te-ias casado, terias sido consultor de um sindicato, deputado, mais desgraçado, a mesma coisa ou mais feliz? Pensa: ai, Zavalita.

 

- Não foi horror ao dogma, foi um reflexo de menino anarquista que não quer receber ordens - disse Carlitos. - Foi que, no fundo, tinhas medo de romper com as pessoas que comem e vestem e cheiram bem.

 

- Mas se eu detestava esse género de pessoas, se ainda as detesto - disse Santiago. - Se é essa a única coisa de que estou certo, Carlitos.

 

- Então foi espírito de contradição, vontade de encontrar três patas no gato sabendo que tem quatro - disse Carlitos. - Devias ter-te dedicado à literatura e não à revolução, Zavalita.

 

- Eu sabia que se todos se dedicassem a ser inteligentes e a duvidar, o Peru estaria sempre fodido - disse Santiago. - Eu sabia que eram precisos dogmáticos, Carlitos.

 

- Com dogmáticos ou com inteligentes, o Peru há-de estar sempre fodido - disse Carlitos. - Este país começou mal e acabará mal. Como nós, Zavalita.

 

- Nós os capitalistas? - perguntou Santiago.

 

- Nós os cacógrafos - disse Carlitos. - Havemos de rebentar todos deitando espuma, como o Becerrita. À tua saúde, Zavalita.

 

- Meses, anos, a sonhar inscrever-me no Partido, e, quando surge a ocasião, faço meia volta - disse Santiago. - Nunca o perceberei, Carlitos.

 

- Doutor, doutor, tenho uma coisa que sobe e desce e não sei o que é - disse Carlitos. - É um peidinho maluco, minha senhora, a senhora tem cara de rabo e o pobre peidinho não sabe por onde é que há-de sair. O que te lixa a vida é um peidinho maluco, Zavalita.

 

Juram consagrar a vossa vida à causa do socialismo e da classe operária?, tinha perguntado Llaque, e Aída e Jacobo sim, enquanto Santiago observava; depois escolheram os seus pseudónimos.

 

- Não te sintas diminuído - disse Llaque a Santiago. - Na Fracção Universitária, simpatizantes e militantes são iguais.

 

Estendeu-lhes a mão, adeus camaradas, que saíssem dez minutos depois dele. A manhã estava enevoada e húmida quando deixaram para trás a livraria do Matías e entraram no Bransa da Colmena e pediram cafés com leite.

 

- Posso-te fazer uma pergunta? - perguntou Aída. - Porque é que não te inscreves? Que dúvidas tens?

 

- Já te disse uma vez - disse Santiago. - Ainda não estou convencido de algumas coisas. Eu bem queria...

 

- Ainda não estás convencido de que Deus não existe? - riu Aída.

 

- Ninguém tem de discutir a decisão dele - disse Jacobo. Deixa-o esperar o seu tempo.

 

- Não a discuto, mas vou-te dizer uma coisa - disse Aída, riqdo. - Nunca te inscreverás, e, quando acabares o curso, esquecerás a revolução e serás advogado da International Petroleum e sócio do Club Nacional.

 

- Consola-te, a profecia não se cumpriu - disse Carlitos.

 

Nem advogado nem sócio do Club Nacional, nem proletário nem burguês, Zavalita. Uma pobre merdinha entre uma coisa e outra mais nada. ’

 

- Que foi feito do tal Jacobo, da tal Aída? - pergunta Ambrosio.

 

- Casaram-se, suponho que tiveram filhos, há anos que não os vejo - disse Santiago. - Sei da existência do Jacobo quando leio nos jornais que o prenderam ou que acabam de o libertar.

 

- Continuas a ter inveja dele - disse Carlitos. - Vou-te proibir de voltares a tocar no assunto, faz-te pior do que a mim a bebida Porque é esse o teu vício, Zavalita: o tal Jacobo, a tal Aída.

 

~ V.m norror’ aquilo que vinha esta manhã na Prensa - disse a D. Zoila - Não deviam publicar atrocidades daquelas.

 

Inveja por causa da Aída? Já não, pensa. E por causa do outro, Zavalita? Teria de o ver, pensa, falar com ele, saber se aquela vida sacriíicada o tornou melhor ou pior. Pensa: saber se tem a consciência em paz.

 

- Passas a vida a protestar por causa dos crimes e é a primeira coisa que lês - disse a Teté. - Sempre és muito cómica, mamã.

 

Pelo menos não se devia sentir só, pensa, e sim rodeado, acompanhado, amparado. Aquela coisa um bocado morna e viscosa que sentia nas discussões do círculo e da célula e da Fracção, pensa.

 

- Outra criança raptada e violada por um monstro? - perguntou D. Fermín.

 

A partir desse dia vimo-nos ainda menos que antes - disse Santiago. - Os nossos círculos converteram-se em células, de maneira que continuámos separados. Nas reuniões da Fracção estávamos rodeados de gente.

 

- Estás pior que os jornais - disse a D. Zoila. - Não fales assim diante da Teté.

 

- Mas quantos eram e que diabo faziam? - perguntou Carlitos

- Nunca ouvi falar da Cahuide na época do Odría.

 

- Julgas que ainda tenho dez anos, mamã? - perguntou a Teté.

 

- Nunca soube quantos - disse Santiago. - Mas fizemos qualquer coisa contra o Odría, pelo menos na universidade.

 

- Alguém é capaz de me dizer que notícia tão horrível é essa?

 

perguntou D. Fermín.

 

- Em tua casa sabiam no que estavas metido? - perguntou Carlitos.

 

- Vender os próprios filhos! - disse a D. Zoila. - Queres coisa mais horrível?

 

- Eu procurava não os ver nem falar com eles - disse Santiago.

 

- Cada vez me dava pior com os velhos.

 

Dias, semanas, sem chover em Puno, a seca tinha destruído colheitas, dizimado o gado, esvaziado aldeias, e havia índios fotografados contra paisagens ressequidas, índias deambulando com os filhos às costas sobre fendas abertas, animais agonizando com os olhos abertos, e os títulos e subtítulos apareciam com pontos de interrogação:

 

- Têm sentimentos, mas sobretudo têm fome, mamã - disse Santiago. - Se os vendem, é para que eles não morram de fome.

 

Tráfico de escravos entre Puno e Juliaca à sombra da seca?

 

- Que é que fizeram além de discutir os editoriais dos jornais e ler livros marxistas? - perguntou Carlitos.

 

índias vendem crianças a turistas?

 

- Não sabem o que é um filho, uma família, pobres animaizinhos - disse a D. Zoila. - Quando não se tem que comer, não se têm filhos.

 

- Ressuscitámos os Centros Federados, a Federação Universitária

 

- disse Santiago. - O Jacobo e eu fomos eleitos delegados de curso.

 

- Suponho que não vais atirar as culpas para cima do Governo por não chover em Puno - disse D. Fermín. - O Odría quer ajudar essa pobre gente. Os Estados Unidos fizeram um donativo importante. Vão-lhes mandar roupa, alimentos.

 

- As eleições foram um êxito para a Fracção - disse Santiago. Oito delegados da Cahuide entre Letras, Direito e Ciências Económicas. Os apristas tinham mais, mas, se votássemos juntos, podíamos controlar os Centros. Os apolíticos não estavam organizados e facilmente os dividiríamos.

 

- Não repitas que o donativo dos gringos vai servir para encher os bolsos dos odriistas - disse D. Fermín. - O Odría pediu-me para presidir à comissão encarregada da distribuição do auxílio.

 

- Mas cada acordo entre nós e os apristas custava discussões e lutas intermináveis - disse Santiago. - Durante um ano, a minha vida foram reuniões, no Centro, na Fracção, e reuniões secretas com os apristas.

 

- Ele há-de dizer que tu também roubas, papá - disse o Chispas. - Para o sabichão, todas as pessoas finas no Peru são exploradores e ladrões.

 

- Outra notícia na Prensa que parece feita de encomenda para ti, mamã - disse a Teté. - Morreram dois fulanos na prisão de Cuzco e fizeram-lhes a autópsia e encontraram-lhes atacadores e solas de sapatos na barriga.

 

- Porque é que te afligiu tanto perder a amizade desse par? perguntou Carlitos. - Não tinhas outros amigos na Cahuide?

 

- Achas que comeram solas por serem ignorantes, mamã? - perguntou Santiago.

 

- Só falta que este miúdo me chame imbecil e me dê uma bofetada, Fermín - disse a D. Zoila.

 

- Era amigo de todos, mas tratava-se de uma amizade funcional

- disse Santiago. - Nunca falámos de coisas pessoais. Com o Jacobo e a Aída, a amizade tinha sido qualquer coisa de carnal.

 

- Não dizes que os jornais mentem? - perguntou D. Fermín porque é que há-de ser mentira quando falam das obras do Governo e verdade quando publicam um horror destes?

 

- Estragas-nos todos os almoços e jantares - disse a Teté. Nunca és capaz de estar sem brigar, sabichão?

 

- Mas vou-te dizer uma coisa - diz Santiago. - Não estou arrependido de ter ido para San Marcos em vez da Católica.

 

- Tenho aqui o recorte da Prensa - disse Aída. - Lê, para te encheres de vómitos.

 

- Porque graças a San Marcos não fui um aluno modelo nem um advogado modelo, Ambrosio - diz Santiago.

 

- Que a seca criou uma situação explosiva no Sul - disse Aída -, um excelente caldo de cultura para os agitadores. Continua, isso ainda não é nada, já vais ver.

 

- Porque no bordel está-se mais peno da realidade do que no convento - diz Santiago.

 

- Que alertem as guarnições, que vigiem os camponeses prejudicados - disse Aída. - A seca preocupa-os porque poderia haver um levantamento, não porque os índios estejam a morrer de fome. Tá viste alguma coisa como isto?

 

- Porque graças a San Marcos me fodi - diz Santiago. - E neste pais quem não se fode, fode os outros. Não estou arrependido Ambrosio.

 

- Precisamente por serem imundos, estes jornais são um grande estimulo - disse Jacobo. - Se uma pessoa se sente desmoralizada, basta abrir um deles para que lhe volte o ódio contra a burguesia peruana.

 

- Quer isto dizer que com as nossas cacografias estamos a alentar os rebeldes de dezasseis anos - disse Carlitos. - Então não sintas a consciência pesada, Zavalita. Bem vês, embora seja obliquamente ainda ajudas os teus ex-parceiros.

 

- Dizes isso a brincar, mas se calhar é verdade - disse Santiago

 

- Cada vez que escrevo sobre alguma coisa que me repugna, faço o artigo mais asqueroso possível. De repente, no dia seguinte, um rapazinho lê-o e sente vómitos e, bem, acontece qualquer coisa.

 

Sobre a porta estava o cartaz de que Washington falara O pó cobria por completo as toscas letras de «Academia», mas o desenho

 

- a mesa, o taco, as três bolas de bilhar - distinguia-se muito nítido e havia além disso o barulho das carambolas que vinha do interior: era ali.

 

- Agora o Odría é nobre - riu D. Fermín. - Leram o Comerão? Descende de barões, etc., e se quiser pode fazer valer o título

 

Santiago empurrou a porta e entrou: meia dúzia de mesas de bilhar e, entre os veludos verdes e os tectos de vigas descobertas, caras dissolvidas nas ondas fumarentas; uma ramada de arames sobrevoava as mesas, os jogadores marcavam os pontos com os tacos.

 

- Que é que teve a ver aquela greve dos ferroviários com a tua fuga de casa? - perguntou Carlitos.

 

Atravessou a safa de jogo, depois outro salão com uma única mesa ocupada, depois um pátio eriçado de latas de lixo. Ao fundo, junto a uma figueira, havia uma portazinha fechada. Dois toques, esperou, outros dois toques, e logo vieram abrir.

 

- O Odría não se apercebe de que, ao permitir essas adulações, se converte no bobo de Lima - disse a D. Zoila. - Se ele é nobre, que seremos nós.

 

- Ainda não chegaram os apristas - disse Héctor. - Entra, os camaradas já cá estão.

 

- Até então, o nosso trabalho tinha sido estudantil - disse Santiago. - Peditórios para os estudantes presos, discussões nos Centros, distribuição de panfletos e da Cahuide. Essa greve dos ferroviários permitiu-nos passar a coisas maiores.

 

Entrou e Héctor fechou a porta. O quarto era mais velho e sujo que as salas de jogo. Quatro mesas de jogo tinham sido postas de pé contra a parede, para deixar mais espaço. Os delegados da Cahuide estavam salpicados por ali.

 

- Que culpa tem Odría de que alguém escreva um artigo a dizer que ele é nobre? - perguntou D. Fermín. - O que os espertalhões inventam para ganhar dinheiro. Até genealogias!

 

Washington e o índio Martínez conversavam de pé próximo da porta, Solórzano folheava um jornal sentado a uma mesa, Aída e Jacobo desapareciam quase na penumbra de um canto, a Ave tinha-se acomodado no chão e Héctor espiava o pátio pelas gretas da porta.

 

- A greve dos ferroviários não era política, mas sim para melhoria de salários - disse Santiago. - O sindicato mandou uma carta à Federação de San Marcos pedindo apoio estudantil. Na Fracção pensou-se que era a grande oportunidade.

 

- Disse-se aos apristas que viessem um a um, mas eles estão-se nas tintas para a segurança - disse Washington. - Apresentaram-se em magote, como de costume.

 

- Então chama esse fulano e ele que averigue também os nossos títulos - disse a D. Zoila. - O Odría nobre, era só o que faltava.

 

Chegaram uns minutos depois, em grupo, como Washington temia, cinco dos vinte delegados apristas: Santos Vivero, Arévalo, Ochoa, Huamán e Saldívar. Misturaram-se com os da Cahuide, sem votar decidiu-se que Saldívar dirigisse o debate. A sua cara magra, as suas mãos ossudas, as suas mechas grisalhas, davam-lhe um ar responsável. Como sempre, antes de começar, trocavam zombarias, ironias.

 

- Na Fracção resolvemos tentar provocar em San Marcos uma greve de solidariedade com os ferroviários - disse Santiago.

 

- Já sei porque é que te preocupa tanto a segurança - dizia Santos Vivero a Washington. - Porque vocês são todos os vermelhos do pais e se aparecem os da secreta e vos prendem desaparece o comunismo no Peru. Em compensação, nós os cinco somos uma gota de agua no mar aprista peruano.

 

- Quem cai a esse mar não se afoga em água, mas sim em presunção - disse Washington.

 

Héctor tinha ficado no seu posto de observação junto à porta; todos talavam em voz baixa, havia um ronronar contínuo, macio, e de repente eleva-se uma risada, uma exclamação.

 

- Nós, os delegados da Fracção, não podíamos decidir uma greve, éramos apenas oito votos na Federação - disse Santiago. - Mas com os apristas podíamos. Tivemos uma reunião com eles, numa academia de bilhar. Foi aí que começou, Carlitos.

 

- Duvido que estes apoiem a greve - sussurrou Aída a Santiago

 

- listão divididos. Tudo depende do Santos Vivero, se ele estiver de acordo, os outros seguem-no. São uma carneirada, bem sabes, o que o líder disser está certo.

 

- Foi a primeira grande discussão na Cahuide - disse Santiago

 

- Eu era contra a greve de solidariedade; quem encabeçou os partidários foi o Jacobo.

 

- Bem, companheiros - Saldíver bateu as palmas. - Aproximem-se, vamos começar.

 

- Não foi para contrariar o Jacobo - disse Santiago. - Eu pensava que não conseguiríamos e apoio dos estudantes, que íamos fracassar. Mas fiquei em minoria e aprovou-se a ideia.

 

- Companheiros serão vocês - riu Washington. - Estamos juntos, mas não nos mistures, Saldívar.

 

- Aquelas reuniões com os apristas eram como os desafios amigáveis de futebol - disse Santiago. - Começavam com abraços e às vezes acabavam ao murro.

 

- Bom, então companheiros e camaradas - disse Saldívar. Aproximem-se ou vou ao cinema.

 

Formou-se uma roda em torno dele, os risos e murmúrios foram cessando. Adoptando rapidamente uma seriedade fúnebre, Saldívar resumiu o motivo da reunião: esta noite discutir-se-ia na Federação a solicitação de apoio dos ferroviários, companheiros, decidir se podíamos apresentar uma moção conjunta, camaradas, Jacobo levantou a mão.

 

- Na Fracção preparávamos essas reuniões como um bailado disse Santiago. - Falar por turnos, desenvolver cada um o seu argumento, não deixar nenhuma opinião contrária por rebater

 

Estava com a gravata caída, despenteado, falava em voz baixa: a greve era uma ocasião magnífica para provocar a tomada de consciência política no meio estudantil. Com as mãos caídas ao longo do corpo: para conseguir a aliança operário-estudantil. Olhando Saldívar muito sério: iniciar um movimento que podia alargar-se a reivindicações, como a libertação de estudantes presos e a amnistia política. Calou-se e Huamán levantou a mão.

 

- Eu era contra a greve pelas mesmas razões que Huamán, um aprista, expôs - disse Santiago. - Mas, como a Fracção tinha concordado com a greve, coube-me defendê-la contra Huamán. É o que se chama centralismo democrático, Carlitos.

 

Huamán era pequenino e amaneirado, tinha-nos custado três anos reconstituir os Centros e a Federação de San Marcos depois da repressão, os seus gestos eram elegantes, como íamos lançar uma greve, por razões extra-universitárias, que podia ser rejeitada pelas bases?, e ralava com uma mão na lapela e remexendo a outra como uma borboleta, se as bases rejeitassem a greve, perderíamos a confiança dos estudantes, e a sua voz era empestada, floreada e por vezes esganiçada, e além disso viria a repressão e os Centros e a Federação seriam desmantelados antes de terem podido agir.

 

- Eu sei que a disciplina de um partido tem de ser assim mesmo

 

- disse Santiago. - Sei que, senão, seria um caos. Não me estou a defender, Carlitos.

 

- Não te percas, Ochoa - disse Saldívar. - Cinge-te ao tema em discussão.

 

- Justamente, precisamente - disse Ochoa. - Pergunto eu: estará a Federação de San Marcos suficientemente forte para se lançar numa acção frontal contra a ditadura?

 

- Diz depressa o que tens a dizer, que não temos tempo - disse Héctor.

 

- E se não está suficientemente forte e se lança à greve - disse Ochoa -, qual seria a atitude da Federação, pergunto eu?

 

- Porque é que não vais dirigir o programa Kolynos pergunta por vinte mil soles? - interrogou Washington.

 

- Seria ou não seria uma atitude de provocação? - disse Ochoa, imperturbável. - Pergunto eu, e construtivamente respondo: seria, sim. O quê? Uma provocação.

 

- Era no meio dessas reuniões que eu de repente sentia que nunca seria um revolucionário, um militante a sério - disse Santiago. De repente, uma angústia, uma náusea, uma sensação de estar a malbaratar horrivelmente o tempo.

 

- O jovem romântico não queria discussões - disse Carlitos. Queria acções epónimas, bombas, tiros, assaltos a quartéis. Romances a mais, Zavalita.

 

- Bem sei que te aborrece falar em defesa da greve - disse Aída.

 

- Mas consola-te, bem vês que todos os apristas são contra. E, sem eles, a Federação rejeitará a nossa moção.

 

- Deviam inventar uma pastilha, um supositório, para as dúvidas

 

- diz Santiago. - Imagina que beleza, enfia-se e já está: acredito. Levantou a mão e começou a falar, antes de Saldívar lhe dar a palavra: a greve consolidaria os Centros, daria experiência aos delegados as bases apoiariam, pois não tinham já demonstrado a sua confiança neles elegendo-os? Tinha as mãos nos bolsos e cravava as unhas nas palmas.

 

- Como quando fazia o exame de consciência, às quintas-feiras antes da confissão - disse Santiago. - Tinha sonhado com mulheres nuas porque tinha querido sonhar com elas ou porque o Diabo o quis e não pude evitá-lo? Estavam ali, na escuridão, como intrusas ou como convidadas?

 

- Estás enganado, tinhas planta de militante, isso é que tinhas disse Carlitos. - Se eu tivesse de defender ideias contrárias às minhas, saíam-me zurros ou grunhidos ou pios.

 

- Que fazes tu na Crónica? - perguntou Santiago. - Que fazemos nos todos os dias, Carlitos?

 

Santos Vivero levantou a mão, tinha ouvido as intervenções com uma expressão de suave desassossego, e, antes de falar, fechou os olhos e tossiu, como se ainda tivesse dúvidas.

 

- A viragem deu-se no último minuto - disse Santiago. Parecia que os apristas estavam contra, que não se faria greve. Talvez tudo tivesse sido diferente nesse caso, eu não teria entrado para a Crónica, Carlitos.

 

Ele pensava, companheiros e camaradas, que o fundamental nestes momentos não era a luta pela reforma universitária, mas a luta contra a ditadura. E uma maneira eficaz de lutar pelas liberdades públicas, pela libertação dos presos, pelo regresso dos desterrados, pela legalização dos partidos, era, companheiros e camaradas, forjar a aliança operário-estudantil, ou, como tinha dito um grande filósofo, entre trabalhadores manuais e intelectuais.

 

- Se voltas a citar o Haya de Ia Torre, leio-te o Manifesto Comunista - disse Washington. - Tenho-o aqui.

 

- Pareces uma puta velha a recordar a sua juventude - disse Carlitos. - Nisso também não nos parecemos. O que me aconteceu quando era rapaz varreu-se-me da memória e estou certo de que o mais importante me acontecerá amanhã. Tu parece que deixaste de viver quando tinhas dezoito anos.

 

- Não o interrompas, que ele pode arrepender-se - sussurrou Hector. - Não vês que ele é a favor da greve?

 

Sim, esta podia ser uma boa oportunidade, porque os companheiros ferroviários estavam a demonstrar valentia e combatividade, e o seu sindicato não estava controlado pelos fura-greves. Os delegados não deviam seguir cegamente as bases, deviam mostrar-lhes o rumodespertá-las, companheiros e camaradas, empurrá-las para a acção.

 

- Depois do Santos Vivero, os apristas começaram a falar outra vez, e nos outra vez - disse Santiago. - Saímos da academia de bilhar de acordo e nessa noite a Federação aprovou uma greve indefinida de solidariedade com os ferroviários. Fui preso exactamente dez dias depois, Carlitos.

 

- Foi o teu baptismo - disse Carlitos. - Ou melhor, a tua certidão de óbito, Zavalita.

 

- Quer dizer que teria sido melhor para ti ficares em casa, não ir para Pucallpa - diz Santiago.

 

- Sim, muito melhor - diz Ambrosio. - Mas quem é que adivinhava, menino?

 

Mas que bem que ele fala, gritou Trifulcio. Havia esparsos aplausos na Plaza, um cartaz, algumas claques. Da escadinha da tribuna, Trifulcio via a multidão ondulando como o mar sob a chuva. Ardiam-lhe as mãos, mas continuava a aplaudir.

 

- Primeiro, quem é que te mandou gritar Viva a Apra ao pé da Embaixada da Colômbia - disse Ludovico. - Segundo, quem são os teus parceiros. E terceiro, onde estão os teus parceiros. De uma vez por todas, Trinidad López.

 

- E a propósito - diz Santiago. -- Porque é que saíste lá de casa?

 

- Sentado, Landa, já estivemos de pé bastante tempo no Te Deum

 

- disse D. Fermín. - Sente-se, D. Emílio.

 

- Já estava cansado de trabalhar para os outros - diz Ambrosio.

 

- Queria experimentar por conta própria, menino.

 

De vez em quando gritava viva-don-Emilio-Arévalo, de vez em quando viva-o-general-Odría, de vez em quando Arévalo-Odría. Da tribuna tinham-lhe feito gestos, tinham dito não o interrompas enquanto fala, praguejando entre dentes, mas Trifulcio não obedecia: era o primeiro a aplaudir, o último a deixar de o fazer.

 

- Sinto-me enforcado com este peitilho - disse o senador Landa.

 

- Não sou pessoa para andar de cerimónia. Eu sou um camponês, que diabo.

 

- Já, Trinidad López - disse Hipólito. - Quem te mandou, quem são e onde estão. De uma vez por todas.

 

- Eu julgava que o meu velho te tinha despedido - diz Santiago.

 

- Já sei porque é que ele não aceitou o cargo de senador por Lima que o Odría lhe ofereceu, Fermín - disse o senador Arévalo. Para não ter de usar casaca nem chapéu.

 

- Que ideia, pelo contrário - diz Ambrosio. - Pediu-me que continuasse com ele e eu não quis. Veja lá que engano, menino.

 

De vez em quando aproximava-se do balcão da tribuna, encarava a multidão com os braços ao alto, três hurras por Emílio Arévalo, e ele mesmo rugia rrá!, três hurras pelo general Odría!, e estertoreamente rrárrárrá!

 

- O Parlamento é bom para vocês que não têm nada que fazer disse D. Fermín. - Para vocês, os latifundiários.

 

- Já me estou a zangar, Trinidad López - disse Hipólito. Agora sim, agora é que me estou a zangar, Trinidad.

 

- Só me meti nesta brincadeira porque o presidente insistiu para que eu encabeçasse a lista de Chiclayo - disse o senador Landa. Mas já me estou a arrepender. Vou ter de descuidar o Olave. Maldito peitilho!

 

- Como é que soubeste que o meu velho tinha morrido? - pergunta Santiago.

 

- Não sejas fingido, desde que és senador rejuvenesceste dez anos disse D. Fermín. - E não te podes queixar, numas eleições como estas, até dá gosto ser candidato.

 

- Pelo jornal, menino - diz Ambrosio. - Não imagina o desgosto que tive. Porque o seu paizinho foi um grande homem.

 

Agora a Plaza fervilhava de cantos, murmúrios e aplausos. Mas, ao estalar no microfone, a voz de D. Emílio Arévalo abafava os ruídoscaía sobre a Plaza do tecto da Alcadía, do campanário, das palmeiras! do largo do jardim. Até na Ermita de Ia Beata, Trifulcio tinha posto um altifalante.

 

- Alto lá, as eleições terão sido fáceis para o Landa, que concorreu sozinho - disse o senador Arévalo. - Mas no meu departamento houve duas listas, e a vitória custou-me a brincadeira de meio milhão de soles.

 

- Estás a ver, o Hipólito zangou-se e chegou-te - disse Ludovico - Quem?, onde? Antes que o Hipólito se zangue outra vez, Trinidad.

 

- Não tenho culpa de que a outra lista por Chiclayo tivesse assinaturas apristas - riu-se o senador Landa. - Foi o Júri Eleitoral que a recusou, eu não.

 

E que fizeram eles das bandeiras?, disse de repente Trifulcio, com os olhos cheios de assombro. Ele tinha a sua presa à camisa, como uma flor. Arrancou-a com uma mão, mostrou-a à multidão com um gesto desafiante. Umas quantas bandeirinhas elevaram-se por cima dos chapeirões de palha e dos chapelinhos de papel que muitos tinham improvisado para se protegerem do sol. Onde estavam as outras, para que é que eles julgavam que eram, porque é que não puxavam delas? Cala-te, negro, disse o que dava as ordens, está tudo a correr muito bem. E Trifulcio: beberam a pinga, mas esqueceram-se das bandeirinhas, senhor. E o que dava as ordens: deixa-os lá, está tudo muito bem. E Trifulcio: não é por nada, é que a ingratidão destes tipos mete-me raiva, senhor.

 

- De que é que morreu o seu paizinho, menino? - pergunta Ambrosio.

 

- Ao Landa estas lides eleitorais rejuvenesceram-no, mas a mim fizeram-me cabelos brancos - disse o senador Arévalo. - Basta de eleições. Cinco quecas, esta noite.

 

- Do coração - diz Santiago. - Ou das fúrias que eu lhe fiz ter.

 

- Cinco? - riu o senador Landa. - Vais ficar com o eu numa desgraça, Emílio.

 

- E agora o Hipólito pôs-se em pau - disse Ludovico. - Ai, mãe, agora sim, agora é que vais ver, Trinidad.

 

- Não diga isso, menino - diz Ambrosio. - Se D. Fermín gostava tanto de si. Dizia sempre: o magricela é de quem eu gosto mais.

 

Solene, marcial, a voz de D. Emílio Arévalo flutuava sobre a Plaza, invadia as ruas terrosas, perdia-se nos campos. Estava em mangas de camisa, gesticulava e o seu anel relampejava junto à cara de Trirulcio. Levantava a voz, tinha-se enfurecido? Olhou para a multidão: caras quietas, olhos avermelhados do álcool, bocas a fumar ou a bocejar. Tinha-se irritado por não lhe estarem a dar atenção?

 

- De tanto conviveres com o populacho, ficaste contagiado disse o senador Arévalo. - Não digas essas piadas quando discursares no senado, Landa.

 

- Tanto, que sofreu imenso quando o menino fugiu de casa diz Ambrosio.

 

- Bom, o gringo contou-me as suas queixas, o problema é este disse D. Fermín. - Que já passaram as eleições, que causa má impressão ao governo dele que o candidato da oposição continue preso. Esses gringos formalistas, vocês sabem.

 

- Ia todos os dias a casa do seu tio Clodomiro perguntar pelo menino - diz Ambrosio. - Sabes alguma coisa do magricela, que tal está o magricela.

 

Mas de repente D. Emílio deixou de gritar e sorriu e começou a falar como se estivesse satisfeito. Sorria, a sua voz era suave, mexia a mão, parecia arrastar uma muleta e que o touro passava a roçar-lhe o corpo. As pessoas da tribuna sorriam, e Trifulcio, aliviado, sorriu também.

 

- Já não há razão para ele continuar preso, vão libertá-lo de um momento para o outro - disse o senador Arévalo. - Não o disse ao embaixador, Fermín?

 

- Até que enfim que começaste a falar - disse Ludovico. Quer dizer que não gostas das pancadas, mas das carícias do Hipólito gostas. O quê, que é que estás a dizer, Trinidad?

 

- E também à pensão de Barranco onde o menino vivia - diz Ambrosio. - E à dona que é que o meu filho faz, como está o meu filho.

 

- Não percebo estes gringos de merda - disse o senador Landa.

- Achou muito bem que se prendesse o Montagne antes das eleições e agora acha mal. Aqueles tipos mandam-nos embaixadores de circo.

 

- Ia à pensão perguntar por mim? -- pergunta Santiago.

 

- Claro que disse, mas esta noite falei com o Espina e ele tem receio - disse D. Fermín. - Que é preciso esperar, que se puser o Montagne agora em liberdade poderão pensar que o prenderam para que o Odría ganhasse as eleições sem competidor, que a história da conspiração era mentira.

 

- Que tu és o braço direito de Haya de Ia Torre? - disse Ludovico. - Que tu é que és o verdadeiro chefe máximo da Apra e o Haya de la Torre é o teu criadito, Trinidad?

 

- Se ia, menino, imensas vezes - diz Ambrosio. - Dava dinheiro à dona da pensão para ela não dizer nada ao menino.

 

- O Espina é um pateta sem emenda - disse o senador Landa

- Pelos vistos, julga que alguém engoliu a aldrabice da conspiração. Ate a minha criada sabe que prenderam o Montagne para deixar o campo livre ao Odría.

 

- Olha que não gozas assim connosco, paizinho - disse Hipólito. - Queres que te desfaça a cara ou quê, Trinidad?

 

- O senhor julgava que o menino se zangava se soubesse - diz Ambrosio.

 

- A verdade é que a prisão do Montagne foi uma asneirada disse o senador Arévalo. - Não sei porque é que aceitaram que houvesse um candidato da oposição se à última hora iam fazer marcha atrás e metê-lo na cadeia. A culpa é dos conselheiros políticos. Arbeláez, o idiota do Ferro, inclusivamente você, Fermín.

 

- As coisas não saíram como eu esperava, D. Emílio - disse D. Fermín. - Podíamos ter um desgosto com o Montagne. Aliás, eu não fui partidário de que o prendessem. Enfim, agora o que é preciso é compor as coisas.

 

Agora gritava, as suas mãos eram duas aspas, e a sua voz elevava-se e trovejava como uma grande onda que de repente se desfez viva o Peru! Uma salva de aplausos na tribuna, uma salva na Plaza. Trifulcio agitava a sua bandeirinha, viva-don-Emilio-Arévalo, agora sim, uma data de bandeirinhas assomou sobre as cabeças, viva-o-general-Odría, agora sim. Os altifalantes rugiram um segundo, depois inundaram a Plaza com o Hino Nacional.

 

Eu dei a minha opinião ao Espina, quando me disse que ia prender o Montagne com o pretexto de uma conspiração - disse D. Fermín. - Ninguém vai engolir essa, isso só vai prejudicar o general, não temos gente segura no Júri Eleitoral, nas mesas? Mas o Espina é um imbecil, sem qualquer tacto político.

 

- Com que então o chefe máximo, com que então mil apristas vão assaltar o cormssanado para te libertarem - disse Ludovico Julgas então que, fazendo-te doido, nos levas, Trinidad.

 

- Não pense que eu sou curioso, mas porque é que o menino fugiu de casa? - pergunta Ambrosio. - Não estava bem lá em casa com os seus paizinhos?

 

D Emílio Arévalo suava: apertava as mãos que convergiam para ele de todos os lados, limpava a testa, sorria, cumprimentava, abraçava as pessoas da tribuna, e a armação de madeira bamboleava-se, enquanto D. Emílio se dirigia para a escadinha. Agora era a tua vez Trifulcio.

 

- Bem de mais, por isso é que me fui embora - diz Santiago. - Era tão puro e tão parvo que me lixava ter uma vida tão fácil e ser um menino bem.

 

- O que é curioso é que a ideia de o prender não foi do Serrano

 

- disse D. Fermín. - Nem do Arbeláez nem do Ferro. Quem os convenceu, quem teimou foi o Bermúdez.

 

- Tão puro e tão parvo que julgava que se me fodesse um bocado me faria um homenzinho, Ambrosio - diz Santiago.

 

- Também não engulo essa de ter sido obra de um directorzeco do Governo, de um empregadote - disse o senador Landa. - Isso foi invenção do Serrano Espina, para passar a bola a alguém, se as coisas dessem para o torto.

 

Trifulcio estava ali, ao pé da escadinha, defendendo o seu lugar às cotoveladas, cuspindo nas mãos, o olhar freneticamente cravado nas pernas de D. Emílio, que se aproximavam misturadas com outras, o corpo tenso, os pés bem fincados na terra: era com ele, era a vez dele.

 

- Tens de acreditar, porque é verdade - disse D. Fermín. E não o julgues tão insignificante. Como quem não quer a coisa, esse empregadito está-se a tornar o homem de confiança do general.

 

- Aqui o tens, Hipólito, ofereço-to - disse Ludovico. - Acaba-Lhe de vez com as manias de chefe máximo.

 

- Então não saiu de casa porque tinha ideias políticas diferentes das do seu paizinho? - pergunta Ambrosio.

 

- Acredita em tudo o que ele lhe diz, considera-o infalível em tudo - disse D. Fermín. - Quando o Bermúdez dá a sua opinião, o Ferro, o Arbeláez, o Espina e até eu vamos para o diabo, não existimos. Foi o que se viu no caso do Montagne.

 

- O pobre não tinha ideias políticas - diz Santiago. - Apenas interesses políticos, Ambrosio.

 

Trifulcio deu um salto, as pernas estavam já no último degrau, deu um empurrão, dois, e agachou-se e já ia levantá-lo. Não, não, amigo, disse um D. Emílio risonho e modesto e surpreendido, muito obrigado mas, e Trifulcio soltou-o, retrocedeu, confundido, a abrir e fechar os olhos, mas, mas?, e D. Emílio pareceu também confundido, e no grupo apinhado em torno dele houve cotoveladas, cochichos.

 

- A verdade é que ele, mesmo que não seja infalível, tem colhões

 

- disse o senador Arévalo. - Num ano e meio fez os apristas e os comunistas desaparecerem do mapa e pudemos convocar eleições.

 

- Continuas a ser o chefe máximo da Apra, paizinho? - perguntou Ludovico. - Bom, muito bem. Continua, Hipólito.

 

- O caso do Montagne foi assim - disse D. Fermín. - Um belo dia o Bermúdez desapareceu de Lima e regressou duas semanas depois. Corri metade do país, general, se o Montagne for candidato às eleições, o senhor perde.

 

De que é que estás à espera, imbecil, disse o que dava as ordens, e Trifulcio atirou um olhar angustiado a D. Emílio, que fez um sinal de depressa ou despacha-te. A cabeça de Trifulcio agachou-se velozmente, atravessou o arco que as pernas formavam, levantou D. Emílio como uma pena.

 

- Isso era um disparate - disse o senador Landa. - O Montagne nunca ganharia. Não tinha dinheiro para uma boa campanha, nós controlávamos toda a máquina eleitoral.

 

- E porque é que o meu velho te parecia um tão grande homem?

- pergunta Santiago.

 

- Mas os apristas haviam de votar nele, todos os inimigos do regime haviam de votar nele - disse D. Fermín. - O Bermúdez convenceu-o. Se concorro nestas condições, perco. Enfim, foi assim, por isso é que o meteram na prisão.

 

- Porque era, ora essa, menino - diz Ambrosio. - Tão inteligente e tão cavalheiro e tão isso tudo, ora essa.

 

Ouvia aplausos e aclamações à medida que avançava com a sua carga às costas, rodeado por Téllez, Urondo, o capataz e o que dava as ordens, gritando também ele Arévalo-Odría, seguro, tranquilo, segurando-se bem das pernas, sentindo nos cabelos os dedos de D. Emílio, vendo a outra mão a agradecer e apertar as mãos que lhe estendiam.

 

- Agora deixa-o, Hipólito - disse Ludovico. - Não vês que já desmaiou ?

 

- A mim não me parecia um grande homem, parecia-me um canalha - diz Santiago. - E odiava-o.

 

- Está a fingir - disse Hipólito. - Queres ver como está a fingir?

 

O Hino Nacional tinha terminado quando acabaram de dar a volta à Plaza. Houve um rufar de tambor, um silêncio, e começou uma martnera. Entre as cabeças e as barracas de refrescos e de comidas, Trifulcio divisou um par a dançar: vá, leva-o para a camioneta, negro. Para a camioneta, senhor.

 

- O melhor é falarmos com ele - disse o senador Arévalo. Você conta-lhe a sua conversa com o embaixador, Fermín, e nós dir-Lhe-emos: as eleições já acabaram, o pobre Montagne já não é perigo para ninguém, liberte-o e esse gesto conquistar-lhe-á simpatias. Ao Odna é preciso levá-lo assim.

 

- Menino, menino - diz Ambrosio. - Como é que pode dizer uma coisa dessas, menino?

 

- Que bem que tu conheces a psicologia dos índios, senador disse o senador Landa.

 

- Já vês que não está a fingir - disse Ludovico. - Larga-o lá. Mas já não o odeio, agora que morreu já não - diz Santiago.

 

- Foi um canalha, mas sem o saber, sem querer. E, além disso, neste pais há canalhas para dar e vender e eu acho que ele já pagou o que tinha a pagar, Ambrosio.

 

Agora põe-no no chão, disse o que dava as ordens, e Trifulcio agachou-se: viu os pés de D. Emílio tocarem o chão, viu as suas mãos sacudirem as calças. Entrou na camioneta e atrás dele Téllez, Urondo e o capataz. Trifulcio à frente. Um grupo de homens e mulheres olhava, boquiaberto. Rindo» deitando a cabeça fora da janela. Trifulcio gritou-lhes: viva D. Emilio Arévalo!

 

- Não sabia que o Bermúdez tinha assim tanta influência no Palácio - disse o senador Landa. - É verdade que ele tem uma amante que é bailarina ou qualquer coisa assim?

 

- Está bem, Ludovico, pouco barulho - disse Hipólito. - Já o larguei.

 

- Acaba de lhe pôr uma casinha em San Miguel - sorriu D. Fermín. - Aquela que era amante do Muelle.

 

- E aquele tipo com quem trabalhaste antes de seres motorista do meu velho, também te parecia um grande homem? - pergunta Santiago. v

 

- À Musa? - perguntou o senador Landa. - Bolas, uma senhora mulher. Essa é que é a amante do Bermúdez? E uma ave de voos altos, para a meter numa gaiola é preciso ter os bolsos bem recheados.

 

- Tenho a impressão de que o tipo deu o bafo, ora merda - disse Ludovico. - Atira-lhe água, faz qualquer coisa, não fiques aí parado.

 

- De voos tão altos que deixou o Muelle no túmulo - riu-se D. Fermín. - E maricas, e droga-se.

 

- D. Cayo? - pergunta Ambrosio. - Nem por sombras, menino, não era nada que se parecesse com o seu paizinho.

 

- Não deu nada o bafo, está vivo - disse Hipólito. - De que é que tens medo, eu não lhe fiz nem um arranhão, nem uma nódoa negra. Desmaiou de medo, Ludovico.

 

- Mas quem é que não é maricas nestes tempos, quem é que não se droga agora em Lima? - disse o senador Landa. - Estamo-nos a civilizar, não é verdade?

 

- Não tinhas vergonha de trabalhar com esse filho da puta? pergunta Santiago.

 

- Então fica assim, amanhã falamos com o Odría - disse o senador Arévalo. - Hoje puseram-lhe a faixa presidencial e temos de o deixar passar o dia a ver-se ao espelho e a gozar.

 

- Porque é que havia de ter? - pergunta Ambrosio. - Eu não sabia que D. Cayo ia pregar a partida ao seu paizinho. Se nessa altura eram tão amigos, menino.

 

Quando chegaram à casa da herdade e desceu da camioneta, Trifulcio, em vez de pedir comida, foi ao ribeiro molhar a cabeça, a cara e os braços. Depois estendeu-se no pátio das traseiras, debaixo do alpendre da cardadora. Ardiam-lhe as mãos e a garganta, estava cansado e satisfeito. Adormeceu logo.

 

- Aquele sujeito, aquele Trinidad López - disse Ludovico. Sim, de repente, começou a variar.

 

- Encontraste-a na rua? - perguntou Queta. - Aquela que era criada do Bola de Ouro, aquela que dormia contigo? Aquela por quem te apaixonaste?

 

- Ainda bem que mandou soltar o Montagne, D. Cayo - disse D. Fermín. - Os inimigos do regime estavam a aproveitar-se desse pretexto para dizer que as eleições foram uma farsa.

 

- Variou o quê? - perguntou o Sr. Lozano. - Falou ou não falou?

 

- E foram mesmo, aqui entre nós podemos reconhecê-lo - disse Cayo Bermúdez. - Prender o único candidato opositor não foi a melhor solução, mas não houve outro remédio. O que era preciso era que o general fosse eleito, não era?

 

- Contou-te que o marido tinha morrido, que o filho tinha morrido? - perguntou Queta. - Que andava à procura de trabalho?

 

Despertaram-no as vozes do capataz, de Urondo e de Téllez. Sentaram-se ao lado dele, ofereceram-lhe um cigarro, conversaram. A manifestação de Grocio Prado tinha corrido bem, não tinha? Tinha corrido bem, tinha. Em Chincha havia mais gente, não havia? Havia mais, havia. D. Emílio ganharia as eleições? Claro que ganharia. E Trifulcio: se D. Emílio fosse para Lima como senador, despedi-lo-iam? Não, homem, contratavam-no, disse o capataz. E Urondo: ficas connosco, vais ver. Ainda estava calor, o sol do entardecer coloria o algodoal, a casa da herdade, as pedras.

 

- Falou, mas só tolices, senhor Lozano - disse Ludovico. Que era o segundo chefe máximo, que era o primeiro chefe máximo. Que os apristas haviam de vir libertá-lo com canhões. Variou, palavra.

 

- E disseste-lhe que há uma casa em San Miguel onde andam à procura de criada? - perguntou Queta. - E levaste-a a casa da Hortênsia?

 

- Acredita realmente que o Odría fosse derrotado pelo Montagne? - perguntou D. Fermín.

 

- Diz antes que os levou à certa - disse o Sr. Lozano. - Oh, que par de inúteis. E ainda por cima parvos.

 

- Portanto, é a Amalia, a que começou a trabalhar na segunda-feira - disse Queta. - Portanto és mais burro do que pareces. Julgas que isso não se vai saber?

 

- O Montagne ou qualquer outro opositor, ganhava - disse Cayo Bermúdez. - O senhor não conhece os Peruanos, D. Fermín? Somos complexados, gostamos de apoiar o mais fraco, o que não está no Poder.

 

- Nada disso, senhor Lozano - disse Hipólito - Nem inúteis nem parvos. Venha ver como o deixámos e verá.

 

- Dizes tu que a fizeste jurar que não diria à Hortênsia que tu lhe deste a indicação? - perguntou Queta. - Que a fizeste acreditar que p Cayo Merda a punha na rua se soubesse que ela te conhecia?

 

Nisto abriu-se a porta da casa da herdade e lá vinha o que dava as ordens. Atravessou o pátio, parou em frente deles, apontou o dedo para Trifulcio: a carteira de D. Emílio, meu filho da puta.

 

- É pena o senhor não ter aceitado o cargo de senador - disse Cayo Bermúdez. - O presidente tinha a esperança de que o senhor fosse o porta-voz da maioria no Parlamento, D. Fermín.

 

- A carteira que eu lhe tirei, senhor? - Trifulcio levantou-se, deu murros no peito. - Eu, senhor, eu?

 

- Corja de imbecis - disse o Sr. Lozano. - E porque é que não o levaram para a enfermaria, corja de imbecis?

 

- Roubas quem te dá de comer? - disse o que dava as ordens. Quem te dá trabalho sendo tu um ladrão conhecido?

 

- Não conheces as mulheres - disse Queta. - Um dia ela há-de contar à Hortênsia que te conhece, que tu a levaste a San Miguel. Um dia a Hortênsia conta ao Cayo Merda e ele um dia ao Bola de Ouro. E nesse dia matam-te, Ambrosio.

 

Trifulcio tinha-se ajoelhado, tinha começado a jurar e a choramingar. Mas o que dava as ordens não se deixou comover: mandava-o outra vez para a prisão, delinquente, vagabundo, a carteira de uma vez por todas. E nisto abriu-se a porta da casa da herdade e saiu D. Emílio: Que era isto aqui?

 

- Levámo-lo, mas não o quiseram receber, senhor Lozano - disse Ludovico. - Que não tomavam essa responsabilidade, que só se o senhor desse a ordem por escrito.

 

- Já falámos sobre isso, D. Cayo - disse D. Fermín. - Tenho muito prazer em servir o presidente. Mas ser senador é entregar-se inteiramente à política e eu não posso.

 

- Eu não digo nada, eu nunca digo nada - disse Queta. - Eu não quero saber de nada. Vais-te foder, mas não há-de ser por minha causa.

 

- Também não aceitaria uma embaixada? - perguntou Cayo Bermúdez. - O general está muitíssimo grato pela colaboração que o senhor lhe prestou e quer demonstrar-lho. Não lhe interessaria, D. Fermín?

 

- Olhe como ele me está a ofender, D. Emilio - disse Trifulcio.

 

- Olhe a enormidade de que ele me está a acusar. Até me fez chorar, D. Emilio.

 

- Nem pensar - disse D. Fermín, rindo. - Não tenho queda para parlamentar nem para diplomata, D. Cayo.

 

- Não fui eu, senhor - disse Hipólito. - Endoideceu sozinho, atirou-se de bruços para o chão sozinho, senhor. Mal lhe tocámos, acredite, senhor Lozano.

 

- Não foi ele, homem - disse D. Emilio ao que dava as ordens.

 

- Deve ter sido algum mestiçozeco da manifestação. Tu não eras tão reles que me roubasses a mim, pois não, Trifulcio?

 

- Õ senhor vai ferir o general com tanto desinteresse, D. Fermín

 

- disse Cayo Bermúdez.

 

- Mais facilmente deixaria cortarem-me a mão, D. Emílio - disse Trifulcio

 

- Foram vocês que armaram esta complicação - disse o Sr. Lozano. - E hão-de ser vocês sozinhos a desarmá-la, seus caralhos.

 

- Engana-se, não se trata de desinteresse - disse D. Fermín. Lá virá a ocasião de o Odría retribuir os meus serviços. Está a ver? Como o senhor é tão franco comigo, eu faço o mesmo consigo, D. Cayo.

 

- Vão buscá-lo caladinhos, vão levá-lo com cuidadinho - disse o Sr. Lozano -, vão-no deixar em qualquer lado. E, se alguém os vê, fodem-se, e ainda por cima fodo-os eu. Entendido?

 

Ah, mulato importuno, disse D. Emílio. E voltou para a casa da herdade com o que dava as ordens, e Urondo e o capataz foram-se também, daí a pouco. Já tinham feito o gosto ao dedo, tinham chamado o que queriam à tua mãe, Trifulcio, ria-se Téllez. , 7~ O senhor está sempre a convidar-me e eu gostaria de lho retribuir -- disse Cayo Bermúdez. - Gostaria de o convidar para jantar em minha casa uma noite destas, D. Fermín.

 

- Esse homem que me insultou não sabia a que é que se arriscava - disse Trifulcio.

 

- Pronto, senhor - disse Ludovico. - Fomos buscá-lo, levámo-lo, deixámo-lo e ninguém nos viu.

 

- Não lhe tiraste a carteira? - perguntou Téllez. - A mim não me enganas tu, Trifulcio.

 

- Quando quiser - disse D. Fermín. - Com muito gosto, D. Cayo.

 

- Tirei, mas ele não tinha dado por nada - disse Trifulcio. Vamos esta noite à vila?

 

- A porta do San Juan de Dios, senhor Lozano - disse Hipólito.

 

- Ninguém nos viu.

 

- Arranjei uma casita em San Miguel, perto de Bertoioto - disse Cayo Bermúdez. - E, além disso, bem, não sei se sabe, D. Fermín.

 

- Quem, de que é que estão a falar? - perguntou o Sr. Lozano.

 

- Ainda não se esqueceram, seus caralhos?

 

- Quanto dinheiro tinha a carteira, Trifulcio? - perguntou Téllez.

 

- Bom, já tinha ouvido umas coisas - disse D. Fermín. O senhor sabe os mexeriqueiros que os Limenhos são, D. Cayo.

 

- Não sejas tão curioso - disse Trifulcio. - Considera-te satisfeito por eu te pagar as bebidas esta noite.

 

- Ah, bom, ah, pois claro - disse Ludovico. - Ninguém, não é nada. Já nos esquecemos de tudo, senhor.

 

- Sou um provinciano, apesar de estar há um ano e meio em Lima ainda não sei os costumes de cá - disse Cayo Bermúdez. Francamente, sentia-me um bocado atrapalhado. Tinha medo que o senhor não aceitasse ir a minha casa, D. Fermín.

 

Eu também, senhor Lozano, palavra que me esqueci – disse Hipólito. - Quem era Trinidad López, nunca o vi, nunca existiu. Está a ver, senhor? Já me esqueci.

 

Téllez e Urondo, já bêbedos, cabeceavam no banco de madeira da taberna, mas apesar das cervejas e do calor, Trifulcio continuava acordado. Pelos buracos da parede divisava-se a praceta arenosa branqueada pelo sol, a cabana onde entravam os eleitores. Trifulcio olhava para os guardas parados em frente da cabana. Durante toda a manhã, tinham vindo um par de vezes beber uma cerveja e agora estavam ali, com os seus uniformes verdes. Por cima das cabeças de Téllez e Urondo via-se uma língua de praia, um mar com manchas de algas a brilhar. Tinham visto os barcos partirem, tinham-nos visto dissolverem-se no céu do horizonte. Tinham comido sebiche1 fresco e peixe frito com batatas cozidas e bebido cerveja, muita cerveja.

 

- Julgava que eu era um frade, um tanso? - perguntou D. Fermín. - Ora, ora, D. Cayo. Acho magnífico que tenha feito uma conquista daquelas. Tenho muito prazer em ir comer convosco, tantas vezes quantas queiram.

 

Trifulcio viu o terreiro, viu a camioneta vermelha. Atravessou a praceta por entre cães a ladrar, travou em frente da taberna, apeou-se o que dava as ordens. Já tinha votado muito gente? Muitíssima. Tinham estado toda a manhã a entrar e a sair. Trazia botas, calças de montar, uma camisa sem botões: não os queria ver bêbedos, que não bebessem mais. E Trifulcio: mas estava ali um par de chuis, senhor. Não te preocupes, disse o que dava as ordens. Subiu para a camioneta e desapareceu entre latidos e uma nuvem de pó.

 

- No fim de contas, o senhor tem um bocado a culpa - disse Cayo Bermúdez. - Lembra-se daquela noite, no Embassy?

 

Os que acabavam de votar aproximavam-se da taberna, a dona barrava-lhes a entrada, à porta: fechado por causa das eleições, não se atendia ninguém. Então porque é que não estava fechado para aqueles? A velha não lhes dava explicações: rua ou chamava os chuis. Os tipos iam-se embora, praguejando.

 

- Claro que me lembro - riu-se D. Fermín. - Mas nunca imaginei que o senhor ficasse embeiçado pela Musa, D. Cayo.

 

A sombra dos casebres da praceta era já mais comprida que as manchas de sol, quando voltou a aparecer a camioneta vermelha, agora carregada de homens. Trifulcio olhou para a cabana: um grupo de eleitores observava a camioneta com curiosidade, os dois guardas olhavam também para lá. Depressa, recomendava o que dava as ordens aos homens que saltavam para o chão, vamos lá embora com isto. A votação devia estar a acabar, já deviam estar a selar as urnas.

 

- Já sei porque é que o fizeste, infeliz - disse D. Fermín. - Não foi por ela me extorquir dinheiro nem por fazer chantagem comigo.

 

Trifulcio, Téllez e Urondo saíram da taberna, puseram-se em frente dos homens da camioneta. Não eram mais de quinze e Trifulcio

 

1 Prato tradicional do Peru: peixe cru cozinhado com limão. (N. do T.)

 

reconheceu-os: tipos da cardadora, trabalhadores, os dois criados da casa da herdade. Sapatões de ver a Deus, calças de algodão, chapeirões. Tinham os olhos a arder, cheiravam a álcool.

 

- Já viu este Cayo? - perguntou o coronel Espina. - Eu a julgar que ele não fazia senão trabalhar dia e noite, e veja lá o que ele arranjou. Bonita febra, hem, D. Fermín?

 

Avançaram em pelotão pela praceta e os que estavam à porta da cabana começaram a acotovelar-se e a afastar-se. Os guardas saíram-lhes ao encontro.

 

- Foi mas foi por causa da carta anónima que ela me mandou a contar-me aquilo da tua mulher - disse D. Fermín. - Não foi para me vingar, foi para tu te vingares, infeliz.

 

- Houve aqui trapaça - disse o que dava as ordens. - Vimos protestar.

 

- Eu cá caí das nuvens - disse o coronel Espina. - Caraças, o sossegadinho do Cayo com um mulherão daqueles. Incrível, não acha, D. Fermín?

 

- Não permitimos que haja fraude - disse Téllez. - Viva o general Odría, viva D. Emilio Arévalo!

 

- Estamos aqui para manter a ordem - disse um dos guardas. Não temos nada a ver com a votação. Protestem com os das mesas.

 

- Viva! - gritavam os homens. - Arévalo-Odría!

 

- O mais engraçado é que eu lhe dava conselhos - disse o coronel Espina. - Não trabalhes tanto, goza um bocado a vida. E veja lá como ele se saiu, D. Fermín.

 

As pessoas tinham-se aproximado, misturado com eles, e olhavam para eles e olhavam para os guardas e riam-se. E então à porta da cabana surgiu um homenzinho que fitou Trifulcio assustado: que barulho era este? Tinha casaco e gravata, óculos, um bigodinho suado.

 

- Saiam, saiam - disse, com voz tremida. - Já encerrou a votação, já são seis horas. Guardas, esta gente que se retire.

 

- Julgavas que eu te ia despedir quando soube daquilo da tua mulher - disse D. Fermín. - Julgaste que fazendo isso me tinhas na mão. Também tu querias fazer chantagem comigo, infeliz.

 

- Dizem que houve trapaça, senhor - disse um dos guardas.

 

- Dizem que vêm protestar, senhor doutor - disse o outro.

 

- E eu perguntei-lhe quando é que trazes a tua mulher de Chincha - disse o coronel Espina. - Nunca, fica lá em Chincha, ora toma. Veja lá como o provinciano do Cayo espertou, D. Fermín.

 

- É verdade, é, querem fazer batota - disse um tipo que saiu da cabana. - Querem roubar a eleição a D. Emilio Arévalo.

 

- Ouça lá, qual é o problema? - o homenzinho tinha aberto muito os olhos. - O senhor não controlou a votação como representante da lista Arévalo? De que trapaça é que está a falar, se nem sequer contámos ainda os votos?

 

- Pronto, pronto - disse D. Fermín. - Pára lá de chorar. Não foi nada disso, não pensaste isso, não o fizeste por causa disso?

 

- Não permitimos - disse o que dava as ordens. - Vamos entrar.

 

- No fim de contas, tem o direito de se divertir - disse o coronel Espina. - Espero que o general não veja com maus olhos isto de ele arranjar uma amante, assim tão às claras.

 

Trifulcio agarrou o homenzinho pelas abas do casaco e com suavidade afastou-o da porta. Viu-o ficar amarelo, sentiu-o tremer. Entrou na cabana, atrás de Téllez, de Urondo e do que dava as ordens. Lá dentro, um rapaz novito, de fato-macaco, parou e começou a gritar aqui não se pode entrar, ó da guarda, ó da guarda! Téllez deu-lhe um empurrão e o rapaz caiu ao chão a gritar ó da guarda, ó da guarda! Trifulcio levantou-o, sentou-o numa cadeira: quietinho, caladinho, homem. Téllez e Urondo acarretaram as urnas e saíram para a rua. O homenzinho, aterrado, fitava Trifulcio: era um delito, haviam de ser presos, e a voz enfraquecia-se-lhe.

 

- Cala-te, estás comprado pelo Mendizábal - disse Téllez.

 

- Cala-te, se não queres que te calem - disse Urondo.

 

- Não permitimos que haja fraude - disse aos guardas o que dava as ordens. - Vamos levar as urnas para o Júri Departamental.

 

- Se bem que não acredito, porque o que o Cayo faz nunca lhe parece mal - disse o coronel Espina. - Diz que o melhor serviço que eu prestei ao país foi desenterrar o Cayo da província e trazê-lo para trabalhar comigo. Meteu o general no coração, D. Fermín.

 

- Bom, está bem - disse D. Fermín. - Não chores mais, infeliz.

 

Na camioneta, Trifulcio sentou-se à frente. Viu pela janela o homenzinho e o rapaz de fato-macaco discutirem com os guardas à porta da cabana. A multidão fitava-os, uns apontavam para a camioneta, outros riam-se.

 

- Bom, não querias fazer chantagem comigo, o que querias era ajudar-me - disse D. Fermín. - Farás o que eu disser, está bem, obedecer-me-ás. Mas chega, pára lá de chorar.

 

- Tanta espera para isto? - perguntou Trifulcio. - Se só lá havia dois tipos do senhor Mendizábal. Os outros eram só mirones.

 

- Não te desprezo, nem te odeio - disse D. Fermín. - Está bem, tens-me respeito, fizeste-o por mim. Para que eu não sofresse, está bem. Não és um infeliz, está bem.

 

- O Mendizábal julgava-se muito seguro - disse Urondo. Como estas terras são dele, julgava que apanhava os votos todos. Mas espetou-se.

 

- Está bem, está bem - repetia D. Fermín.

 

A polícia tinha arrancado os cartazes da fachada de San Marcos, apagado os vivas à greve e os morras a Odría. Não se viam estudantes no Parque Universitário. Havia guardas apinhados em frente da capela dos magnates, dois carros da polícia à esquina de Azángaro, polícia de choque nos descampados vizinhos. Santiago percorreu a Colmena, a Plaza San Martin. Na Calle de Ia Union, de vinte em vinte metros, aparecia um guarda impávido entre os transeuntes, com a metralhadora debaixo do braço, a máscara antigas às costas, um cacho de granadas lacrimogéneas à cintura. As pessoas que saíam das lojas, os vadios e os conquistadores olhavam-nos com apatia ou com curiosidade, mas sem medo. Também na Plaza de Armas havia carros da polícia, e diante dos muros do Palácio, além das sentinelas de uniformes pretos e vermelhos, viam-se soldados com capacete. Mas do outro lado da ponte, no Rímac, não havia sequer polícias de trânsito. Rapazes com cara de arruaceiros, arruaceiros com cara de tuberculosos, fumavam sob os mortiços candeeiros da Francisco Pizarro, e Santiago avançou por entre tabernas que cuspiam bebedolas cambaleantes e os mendigos, as crianças esfarrapadas e os cães sem dono de outras vezes. O Hotel Mogollón era estreito e comprido como a viela sem asfalto onde se situava. Não havia ninguém no nicho que fazia de recepção, o corredorzinho e a escada estavam às escuras. No segundo andar, quatro tiras douradas emolduravam a porta do quarto, mais pequena que o seu vão. Deu as três batidas de contra-senha e empurrou: a cara de Washington, um catre com uma manta, uma almofada sem fronha, duas cadeiras, um bacio.

 

- A baixa está cheia de polícias - disse Santiago. - Esperam outra manifestação-relâmpago para esta noite.

 

- Más notícias, apanharam o índio Martínez quando ia a sair de Engenharia - disse Washington; estava magro e olheirento, assim tão sério parecia outra pessoa. - A família dele foi à prefeitura, mas não conseguiu vê-lo.

 

Das tábuas do tecto pendiam teias de aranha, a única lâmpada estava muito alta e a luz era suja.

 

- Agora os apristas já não podem dizer que só eles é que são presos - disse Santiago; sorriu, confundido.

 

- Temos de mudar de sítio - disse Washington. - Até a reunião desta noite é perigosa.

 

- Achas que se o espancarem ele fala? - tinham-no amarrado e uma silhueta atarracada e maciça tomava balanço e batia, a cara do indivíduo contraía-se numa careta, a sua boca uivava.

 

- Nunca se sabe - Washington ergueu os ombros e baixou os olhos, por um momento. - Aliás, não tenho confiança no tipo do hotel. Esta tarde tornou a pedir-me os papéis. O Llaque vem aí e não pude avisá-lo do que aconteceu ao Martínez.

 

- O melhor será chegarmos a um acordo rapidamente e sairmos daqui - Santiago puxou de um cigarro e acendeu-o e deu várias fumaças e a seguir tornou a puxar do maço e estendeu-o a Washington.

 

- A Federação sempre reúne esta noite?

 

- O que resta da Federação, há doze delegados fora de combate

 

- disse Washington. - Em princípio, sim, às dez, em Medicina.

 

- De qualquer maneira vão-nos apanhar lá - disse Santiago.

 

- Pode ser que não, o Governo deve saber que esta noite provavelmente se vai levantar a greve e deixa-nos reunir - disse Washington. - Os independentes assustaram-se e querem fazer marcha atrás. Parece que os apristas também.

 

- E nós que é que vamos fazer? - perguntou Santiago.

 

- É o que temos de decidir agora - disse Washington. - Olha, notícias de Cuzco e de Arequipa. Por lá as coisas ainda estão piores do que cá.

 

Santiago aproximou-se do catre, pegou nas cartas. A primeira vinha de Cuzco, uma letra fibrosa e direita de mulher, a assinatura era um gancho com losangos. A célula tinha entrado em contacto com os apristas para discutir a greve de solidariedade, mas a polícia antecipou-se, camaradas, ocupou a universidade e a Federação tinha sido desmantelada; pelo menos vinte detidos, camaradas. A massa estudantil estava um bocado apática, mas o moral dos camaradas que escaparam à repressão sempre elevado, apesar dos reveses. Fraternalmente. A carta de Arequipa estava escrita à máquina, com uma tinta que não era preta nem azul, mas violeta, e não tinha assinatura nem era dirigida a ninguém. Estávamos a movimentar bem a campanha nas faculdades e o ambiente parecia favorável a apoiar a greve de San Marcos quando a polícia entrou na universidade, entre os detidos havia oito dos nossos, camaradas: esperando dar-lhes melhores notícias em breve e desejando-lhes os maiores êxitos.

 

- Em Trujillo a moção foi rejeitada - disse Washington. - Os nossos só conseguiram que fosse aprovada uma mensagem de solidariedade moral. Isto é, nada.

 

- Nenhuma universidade apoia San Marcos, nenhum sindicato apoia os ferroviários - disse Santiago. - Não temos outro remédio senão levantar a greve, nesse caso.

 

, - De qualquer maneira, fez-se bastante - disse Washington. E agora, com os presos, temos uma boa bandeira para recomeçar em qualquer momento.

 

Deram três batidas na porta, entre, disse Washington, e entrou Héctor, a transpirar, vestido de cinzento.

 

- Julgava que ia chegar tarde e afinal sou dos primeiros. - Sentou-se numa cadeira, limpou a testa com um lenço. Tomou ar e expeliu-o como se fosse fumo. - Não se consegue localizar um único ferroviário. A polícia ocupou o sindicato. Fomos com dois apristas. Eles também tinham perdido o contacto com a comissão da greve.

 

- Prenderam o índio quando ele ia a sair de Engenharia - disse Washington.

 

Héctor ficou a olhar para ele, com o lenço encostado à boca.

 

- Contanto que não me dêem uma tareia e o desfigurem - a sua voz e o sorriso forçado foram-se apagando e morreram, guardou o lenço. Estava agora muito sério. - Então não devíamos reunir-nos aqui esta noite.

 

- Vem cá o Llaque, não houve maneira de o prevenir - disse Washington. - Aliás, a Federação reúne daqui a hora e meia e mal temos tempo para chegar a um acordo entre nós.

 

- Mas que acordo? - disse Héctor. - Os independentes e os apristas querem levantar a greve e é o mais lógico. Está-se tudo a desmoronar, é preciso salvar o que resta dos organismos estudantis.

 

Outra vez três batidas, viva, camaradas, a gravatinha vermelha e a voz de passarinho. Llaque olhou em redor com surpresa.

 

- Não combinaram para as oito? Que é feito dos outros?

 

- O Martínez foi apanhado esta manhã - disse Washington. Achas que anulemos a reunião e vamos embora?

 

A carinha não se franziu, os seus olhos não se alarmaram. Devia estar acostumado a estas notícias, pensa, a viver escondendo-se e ao medo. Olhou o relógio, esteve um momento calado, a reflectir.

 

- Se o prenderam esta manhã, não há perigo - disse por fim, com um meio sorriso envergonhado. - Só o interrogam esta noite, ou talvez ao amanhecer. Temos tempo de sobra, camaradas.

 

- Mas seria melhor que te fosses embora - disse Héctor. Quem corre maior perigo aqui és tu.

 

- Mais baixo, na escada já vos ouvia - disse Solórzano, do umbral da porta. - Então caçaram o índio. A nossa primeira baixa, caramba.

 

- Esqueceste-te dos três toques? - perguntou Washington.

 

- A porta estava aberta - disse Solórzano. - E vocês falavam aos gritos.

 

- Daqui a nada são oito e meia - disse Llaque. - E os outros camaradas?

 

- O Jacobo tinha de se encontrar com os têxteis, a Aída ia à Católica com um delegado de Educação - disse Washington. - Não devem tardar. Vamos lá começar com isto.

 

Héctor e Washington sentaram-se no catre, Santiago e Llaque nas cadeiras, Solórzano no chão. Estamos à espera, camarada Julián, ouviu Santiago e teve um sobressalto. Esquecias-te sempre do teu pseudónimo, Zavalita, esquecias-te sempre que eras o secretário das actas e de que devias resumir a sessão anterior. Fê-lo rapidamente, sem se levantar, em voz baixa.

 

- Passemos às informações - disse Washington. - Sejam breves e concisos, façam favor.

 

- O melhor é averiguarmos duma vez o que é que lhes aconteceu

- disse Santiago. - Vou telefonar.

 

- No hotel não há telefone - disse Washington. - Terias de ir à procura duma farmácia e essas idas e vindas não convêm. Ainda só estão atrasados meia hora, devem estar a vir.

 

- As informações, pensa, os longos monólogos onde era difícil distinguir o objecto do sujeito, os factos das interpretações e as interpretações das frases feitas. Mas nessa noite todos tinham sido rápidos, parcos e concretos. Solórzano: a Associação dos Centros de Agricultura tinha rejeitado a moção por ser política, porque é que San Marcos se ligava a uma greve ferroviária? Washington: os dirigentes da Escola Normal diziam não há nada a fazer, se convocarmos uma votação, noventa por cento será contra a greve, dar-lhe-emos apenas o nosso apoio moral. Héctor: os contactos com a comissão da greve dos ferroviários tinham-se desfeito a partir da ocupação do sindicato pela polícia.

 

- Agricultura descartou-se, Engenharia descartou-se, a Normal descartou-se e a Católica não se sabe - disse Washington. - As Universidades de Cuzco e Arequipa ocupadas e Trujillo arrependeu-se. A situação é esta, em resumo. É quase certo que esta noite na Federação se proponha levantar a greve. Temos uma hora para decidir a nossa posição.

 

Parecia que não haveria discussão, pensa, que todos estavam de acordo. Héctor: o movimento tinha provocado uma tomada de consciência política dos estudantes, agora convinha retirar antes que a Federação desaparecesse. Solórzano: levantar a greve, sim, mas para começar imediatamente a preparar um novo movimento, mais forte e mais bem coordenado. Santiago: sim, iniciar imediatamente uma campanha para a libertação dos estudantes presos. Washington: com a experiência adquirida e os ensinamentos destes dias de luta, a Fracção Universitária da Cahuide tinha tido o seu baptismo de fogo, ele também era a favor do levantamento da greve para reagrupar as forças.

 

- Eu queria dizer uma coisa, camaradas - disse Llaque, com a sua esganiçada voz tímida, mas nada vacilante. - Quando a Fracção concordou em apoiar a greve dos ferroviários, já sabíamos tudo isto.

 

O que é que sabíamos? Que os sindicatos eram fura-greves, pois os verdadeiros dirigentes operários estavam mortos ou presos ou desterrados, que com a greve viria a repressão e haveria prisões e que as outras universidades virariam as costas a San Marcos. O que não sabíamos, o que não estava previsto, camaradas, o que era? A sua mãozinha erguia-se e baixava junto à tua cara, Zavalita, a sua voz baixinha insistia, repetia, convencia. Que a greve alcançaria este êxito e obrigaria o Governo a desmascarar-se e a mostrar abertamente toda a sua brutalidade. Que a situação ia mal? Ia mal, com três universidades ocupadas, com pelo menos cinquenta estudantes e dirigentes operários presos? Mal, com as manifestações-relâmpago na Calle de Ia Union e a imprensa burguesa obrigada a dar informações sobre a repressão? Pela primeira vez um movimento daquela envergadura contra Odría, camaradas, pela primeira vez uma greta em tantos anos de ditadura monolítica. Mal, mal? Não era absurdo retroceder nestes momentos? Não seria mais correcto tentar alargar e radicalizar o movimento? Avaliando a situação, não do ponto de vista reformista, mas sim revolucionário, camaradas. Calou-se e eles olhavam-no e olhavam-se, pouco à vontade.

 

- Se os apristas e os independentes se puseram de acordo para levantar a greve, não podemos fazer nada - disse Solórzano, por fim.

 

- Podemos lutar, camarada - disse Llaque.

 

E a porta abriu-se, pensa, e entraram. Aída avançou rapidamente para o meio do quarto, Jacobo ficou para trás.

 

- Já não era sem tempo - disse Washington. - Estávamos preocupados por vossa causa.

 

- O Jacobo fechou-me e não me deixou ir à Católica - de um fôlego, pensa, como se tivesse decorado o que ia dizer. - Ele também não foi ter com os têxteis, como a Fracção o encarregou. Peço que o expulsem.

 

- Agora percebo que tenhas continuado com ela metida na cabeça durante tantos anos, Zavalita - disse Carlitos.

 

Estava de pé entre as duas cadeiras, debaixo da luz, com os punhos cerrados, os olhos dilatados e a boca a tremer. O quarto tinha-se encolhido, o ar tornado mais espesso. Olhavam-na imóveis, engoliam saliva, Héctor suava. Lá estava a respiração de Aída ao teu lado, Zavalita, a sombra dela a oscilar no chão. Tinhas a garganta seca, mordias o lábio, o coração acelerado.

 

- Bom, bolas, camarada - disse Washington. - Estávamos aqui...

 

- Além disso, tentou suicidar-se porque lhe disse que não queria continuar com ele - lívida, pensa, os olhos muito abertos, cuspindo as palavras como se lhe queimassem a língua. - Tive de o enganar para ele me deixar vir. Peço que o expulsem.

 

-- E abriu-se a terra - disse Santiago. - Não por ela ter largado aquilo, ali, diante de todos. Mas por ter sido uma zanga daquelas, Carlitos, um sarilho daqueles, com ele a fechá-la e ameaças de suicídio e tudo aquilo.

 

- Acabaste? - perguntou, por fim, Washington.

 

- Até essa altura não te tinha passado pela cabeça que eles dormiam juntos - riu-se Carlitos. - Julgavas que se olhavam nos olhos e se davam as mãos e recitavam poemas de Maiakovsky e de Nazim Himet um ao outro, Zavalita.

 

Agora todos se mexiam nos seus lugares, Héctor enxugava a cara, Solórzano explorava o tecto, porque é que ele não avançava e não dizia qualquer coisa, que estava ele a fazer mudo lá atrás? Aída continuava de pé ao teu lado, Zavalita, com as mãos já não fechadas, mas abertas, um anel prateado com as suas iniciais no dedo mínimo, as unhas cortadas como um homem. Santiago levantou a mão e Washington com um gesto indicou-lhe que falasse.

 

- Falta uma hora para a Federação reunir e ainda não chegámos a um acordo - pensando aterrado vai-me falhar a voz, pensa. - Vamos perder tempo a discutir problemas pessoais nesta altura?

 

Calou-se, acendeu um cigarro, o fósforo rebolou aceso para o chão e pisou-o. Viu as caras dos outros começarem a refazer-se da surpresa, a enfurecer-se. Ansiosa, difícil, a respiração de Aída continuava ainda ali.

 

- Claro que não nos interessam os assuntos pessoais - murmurou Washington, com um desgosto que transbordava da sua voz. Mas o que a Aída acaba de contar é muito grave.

 

Um silêncio com bicos, pensa, um calor repentino que embrutecia e sufocava.

 

- A mim não me importa que dois camaradas se zanguem ou se fechem ou se suicidem - disse Héctor, com o lenço encostado à boca. - Importa-me é saber o que aconteceu com os têxteis, com a Católica. Se os camaradas que deviam lá ir não foram, que expliquem porquê.

 

- A camarada já explicou - sussurrou a voz de passarinho. Que o outro camarada dê a sua versão e acabemos com isto duma vez.

 

Olhos que rodavam em direcção à porta, os passos lentos de Jacobo, a silhueta de Jacobo junto à de Aída. O seu fato azul-claro enrugado, a camisa meio saída, o casaco desabotoado, a gravata caída.

 

- O que a Aída disse é verdade, perdi o controlo dos nervos detendo-se em cada palavra, pensa, cambaleando como um bêbedo.

- Estava transtornado, foi uma debilidade, um momento de crise. Submeto-me a qualquer decisão da Fracção, camaradas.

 

- Não deixaste a Aída ir à Católica? - perguntou Solórzano. E verdade que não foste encontrar-te com os têxteis, que tentaste impedir a Aída de vir à reunião?

 

- Não sei o que é que me deu, não sei o que é que me deu - os olhos acobardados, pensa, atormentados, e o seu olhar de louco. Peço desculpa a todos. Quero vencer esta crise, ajudem-me a recompor-me, camaradas. O que a camarada, o que a Aída disse, é verdade. Aceito qualquer decisão, camaradas.

 

Calou-se, retrocedeu até à porta e Santiago deixou de o ver. Aída de novo sozinha, a sua mão arroxeada de tensão. Solórzano tinha a testa enrugada, tinha-se levantado.

 

- Vou dizer francamente o que penso - a sua cara desfigurada pela fúria, pensa, a sua voz desiludida. - Eu votei a favor desta greve porque os argumentos do Jacobo me convenceram. Ele foi o mais entusiasta, por isso é que elegemos a Federação e a comissão da greve. Tenho de lembrar que, enquanto o camarada Jacobo agia como um egoísta, prendiam o Martínez. Creio que devemos de qualquer maneira aplicar sanções a uma falta destas. Os contactos com os têxteis, com a Católica, nestes momentos, enfim, para que é que hei-de dizer o que todos nós sabemos. Uma coisa destas não é possível, camaradas.

 

- Claro que é grave, claro que cometeu uma falta - disse Héctor. - Mas agora não há tempo, Solórzano. A Federação reúne daqui a meia hora.

 

- É uma estupidez continuar a perder tempo assim, camaradas a voz de passarinho, perplexa, impaciente, a sua mãozinha levantada.

 

- Temos de adiar este assunto e voltar ao tema em discussão.

 

- Peço que se adie a discussão deste assunto até à próxima sessão

 

- disse Santiago.

 

- Não quero ofender ninguém, mas o Jacobo não deve assistir a esta reunião - disse Washington; vacilou um segundo e acrescentou:

 

- Já não acredito que seja de confiança.

 

- Põe a minha moção à votação - disse Santiago. - Agora és tu que nos estás a fazer perder tempo, Washington. Vamos esquecer a greve, a Federação, para continuar a discutir toda a noite acerca do Jacobo?

 

- Os minutos estão a passar - insistiu, implorou Llaque. - Não se esqueçam disso, camaradas.

 

- Está bem, vamos votar - disse Washington. - Tens alguma coisa a acrescentar, Jacobo?

 

Os passos, a silhueta, tinha tirado as mãos dos bolsos e apertava-as uma contra a outra. Umas mechas louras tapavam-lhe as orelhas, os seus olhos já não eram suficientes e sarcásticos, como nos debates pensa, toda a sua atitude revelava derrota e humildade.

 

- Eu julgava que para ele só existiam a Fracção, a revolução disse Santiago. - E de repente mentira, Carlitos. De carne e osso também, como tu, como eu.

 

- Compreendo que duvidem, que já não tenham confiança em mim - balbuciou. - Estou disposto a fazer a minha autocrítica, submeto-me a qualquer decisão. Dêem-me outra oportunidade para lhes mostrar, apesar de tudo, camaradas.

 

- O melhor é saíres do quarto enquanto votamos - disse Washington.

 

Santiago não o ouviu abrir a porta; percebeu que ele tinha saído quando o candeeiro oscilou e as sombras das paredes se moveram. Levantou-se, pegou no braço de Aída e apontou-lhe a cadeira. Ela sentou-se. As mãos sobre os joelhos, pensa, as pestanas negras molhadas, o cabelo revolto sobre o pescoço, e as orelhas como que enregeladas de frio. Que a tua mão se erguesse, pensa, e descesse e tocasse aquele pescoço e o acariciasse e alisasse essas mechas e os teus dedos se enredassem naqueles cabelos e os puxassem devagarinho e os largassem e os puxassem: ai, Zavalita.

 

- Vamos votar o pedido da Aída, primeiro - disse Washington.

 

- Os que estiverem de acordo com a expulsão do Jacobo da Fracção que levantem a mão.

 

- Eu apresentei uma questão prévia - disse Santiago. - Põe primeiro à votação o meu pedido.

 

Mas Washington e Solórzano já tinham levantado a mão. Todos se voltaram para olhar para Aída: estava cabisbaixa, com as mãos quietas sobre os joelhos.

 

- Tu não votas pelo que pediste? - perguntou Solórzano, quase aos gritos.

 

- Mudei de opinião - soluçou Aída. - O camarada Llaque tem razão. Temos de adiar a discussão deste assunto.

 

- Isto é incrível - disse a voz de passarinho. - Mas que é isto, que é isto?

 

- Estás a brincar connosco? - perguntou Solórzano. - A que é que estás a brincar, Aída?

 

- Mudei de opinião - sussurrou Aída, sem levantar a cabeça.

 

- Caralho - disse o voz de passarinho. - Onde é que nós estamos, a que é que estamos a brincar?

 

- Acabemos com esta brincadeira - disse Washington. - Quem é que está de acordo com o adiamento da discussão disto.

 

Llaque, Héctor e Santiago levantaram a mão, e uns segundos depois Aída fez o mesmo. Héctor ria-se, Solórzano apalpava o estômago como se estivesse com vómitos, mas que é isto repetia a voz de passarinho.

 

- As mulheres são formidáveis - disse Carlitos. - Farristas, comunistas, burguesas, sopeirais, têm todas qualquer coisa que nós não temos. Não seria melhor ser maricas, Zavalita? Entendermo-nos com qualquer coisa que conhecêssemos, e não com esses animais estranhos?

 

- Então chamem o Jacobo, acabou-se o circo - disse Washington. - Voltemos às coisas sérias.

 

Santiago virou-se: a porta aberta, a cara atarantada de Jacobo irrompendo pelo quarto.

 

- Há três carros da polícia à porta - sussurrou, tinha agarrado Santiago pelo braço. - Muitos da secreta, um oficial.

 

- Fechem essa porta, caralho - disse a voz de passarinho. Todos tinham estacado de chofre, Jacobo tinha fechado a porta e aguentava-a com o corpo.

 

- Aguenta-a - disse Washington, olhando para todos, atabalhoado. - Os papéis, as cartas. Aguentem a porta, não tem chave.

 

Héctor, Solórzano e Llaque vieram ajudar Jacobo e Santiago, que sustinham a porta, e todos rebuscavam nos bolsos. Inclinado sobre o candeeiro de mesa, Washington rasgava papéis e metia-os num bacio. Aída ia-lhe passando os cadernos, as folhas soltas que os outros lhe entregavam, ia e vinha correndo nas pontas dos pés entre a porta e a cama. O bacio já estava a arder. Lá fora não se ouvia nenhum ruído; todos tinham as orelhas espalmadas contra a porta. Llaque separou-se deles, apagou a luz e na escuridão Santiago sentia a voz de Solórzano: não seria rebate falso? A chamazinha do bacio crescia e decrescia, a intervalos idênticos Santiago via aparecer a cara de Washington a soprar. Alguém tossiu e a voz de passarinho murmurou silêncio, e começaram dois a tossir ao mesmo tempo.

 

- Muito fumo - sussurrou Héctor. - Temos de abrir essa janela.

 

Uma silhueta afastou-se da porta e empinou-se para a alta janela, mas a sua mão só chegava à borda. Washington pegou-lhe pela cintura, ergueu-o, ao abrir-se a janela, entrou uma baforada de ar fresco no quarto. A chamazinha tinha-se apagado, e agora Aída chegava o bacio a Jacobo, que, novamente erguido por Washington, despejava o bacio pela janela. Washington acendeu a luz: caras crispadas, olhos húmidos, bocas ressequidas. Por meio de gestos, Llaque mandou-os afastarem-se da porta, sentarem-se. Estava desfigurado, viam-se-lhe os dentes, num instante tinha envelhecido.

 

- Ainda há muito fumo - disse Llaque. - Fumem, fumem.

 

- Rebate falso - murmurou Solórzano. - Não se ouve nada. Santiago e Héctor distribuíram cigarros, até Aída, que não fumava,

 

acendeu um. Washington tinha-se postado ao pé da porta e espreitava pelo buraco da fechadura.

 

- Não sabem que é preciso trazer sempre livros de estudo? perguntou Llaque; a sua mãozinha gesticulava, histérica. - Reunimo-nos para falar de problemas universitários. Não somos políticos, não fazemos política. A Cahuide não existe, a Fracção não existe. Não sabem nada de nada.

 

- Vem alguém a subir - disse Washington, e apartou-se da porta. Ouviu-se um murmúrio, um silêncio, novamente o murmúrio, e duas batidas na porta.

 

- Perguntam por si, senhor - disse uma voz rouca. - Dizem que é urgente.

 

Aída e Jacobo estavam juntos, pensa, ele segurava-a pelo ombro. Washington deu um passo em direcção à porta, mas esta abriu-se antes e uma bólide levou-o à frente: uma figura a tropeçar, a escorregar, outras figuras a saltar, a gritar, revólveres que lhes apontavam, alguém dizia obscenidades, alguém ofegava.

 

- Que desejam? - perguntou Washington. - Porque é que entram assim a...

 

- Quem estiver armado que atire a arma para o chão - disse um homem baixinho, de chapéu e gravata azul. - Mãos ao ar. Revistem-nos.

 

- Somos estudantes - disse Washington. - Estamos...

 

Mas um agente empurrou-o e calou-se. Apalparam-nos dos pés à cabeça, fizeram-nos sair em fila, com as mãos ao alto. Na rua havia dois guardas com metralhadoras e um grupo de mirones. Dividiram-nos, a Santiago empurraram-no para um carro de polícia juntamente com Héctor e Solórzano. Iam muito apertados no banco, cheirava a sovaco, o que conduzia estava a falar por um pequeno microfone. O automóvel arrancou: a Puente de Piedra, a Tacna, a Wilson, a Avenida Espana. Parou em frente do gradeamento da prefeitura, um agente cochichou com as sentinelas, e ordenaram-lhes saiam. Um corredor com portinhas abertas, secretárias, polícias e tipos à paisana, em mangas de camisa, uma escada, outro corredor que parecia lavado, uma porta que se abria, entrem para aí, se fechava e o barulhinho da chave. Um quarto pequeno, que parecia a sala de entrada de um notário, com um único banco encostado à parede. Mantiveram-se calados, observando as paredes rachadas, o chão brilhante, a lâmpada fluorescente.

 

- Dez horas - disse Santiago. - A Federação deve estar a reunir.

 

- Se é que todos os outros delegados não estão aqui também disse Héctor.

 

Sairia amanhã a notícia, o velho tomaria conhecimento pelos jornais? Imaginavas a noite de insónias lá em casa, Zavalita, o choro da mamã, o rebuliço e as corridas ao telefone e as visitas e as bisbilhotices da Teté no bairro e os comentários do Chispas. Sim, naquela noite parecia uma casa de doidos, menino, diz Ambrosio. E Carlitos: devias sentir-te um Lenine. E de repente um mestiço atarracado tomava balanço e batia: principalmente cheio de medo, Carlitos. Puxou dos cigarros, distribuindo-os pelos três. Fumaram sem falar, tragando e expelindo o fumo ao mesmo tempo. Tinham acabado de pisar as pontas quando ouviram o barulhinho da chave:

 

- Santiago Zavala, quem é? - perguntou da porta uma cara nova. Santiago levantou-se. - Está bem, sente-se, não é preciso mais nada.

 

A cara desapareceu, outra vez o barulhinho.

 

- Quer dizer que já tens ficha - sussurrou Héctor.

 

- Quer dizer é que te vão soltar primeiro - sussurrou Solórzano. - Corre logo à Federação. Que façam barulho. Pelo Llaque e pelo Washington, são os que estão mais fodidos.

 

- Estás doido? - perguntou Santiago. - Porque é que me vão soltar a mim primeiro?

 

- Por causa da tua família - disse Solórzano, com uma risadinha. - Que protestem, que façam barulho.

 

- A minha família não vai mexer uma palha - disse Santiago. Pelo contrário, quando souberem que eu estou metido nisto...

 

- Não estás metido em coisa nenhuma - disse Héctor. - Não te esqueças disso.

 

- Talvez agora, com esta colheita, as outras universidades façam alguma coisa - disse Solórzano.

 

Tinham-se sentado no banco, falavam a olhar para a parede da frente ou para o tecto. Héctor pôs-se em pé, começou a andar de um extremo para o outro, disse que tinha as pernas dormentes. Solórzano virou as bandas do casaco para cima e meteu as mãos nos bolsos: fnozmho, não está?

 

- A Aída também teria vindo para aqui? - perguntou Santiago.

 

- Devem tê-la levado para Chorrillos, para a prisão de mulheres

- disse Solórzano. - Novmha, com quartos individuais.

 

- Perdemos estupidamente o tempo com aquela história dos noivos - disse Héctor. - Só para rir.

 

- Para chorar - disse Solórzano. - Para os mandar aos dois fazer folhetins radiofónicos, trabalhar em filmes mexicanos. E porque te fecho, e porque me suicido, e porque ponham-no fora da Fracção, e porque já não o ponham fora. Para lhes tirar as cuecas e dar uns açoites a esses meninos burgueses, caralho.

 

- Eu julgava que eles se davam bem - disse Héctor. - Tu sabias que eles brigavam?

 

- Não fazia ideia - disse Santiago. - Ultimamente via-os pouco.

 

- A minha mulher briga e a greve e o Partido que vão para o diabo, vou-me suicidar - disse Solórzano. - Vão mas é fazer folhetins radiofónicos, caralho.

 

- Os camaradas também têm o seu coraçãozinho - sorriu Héctor.

 

- Se calhar, obrigaram o Martinez a falar - disse Santiago. - Se calhar, chegaram-lhe e...

 

- Tenta disfarçar que tens medo - disse Solórzano. - Porque ainda é pior.

 

- Medo terás tu - disse Santiago.

 

- Claro que tenho - disse Solórzano. - Mas não o demonstro empalidecendo.

 

- Porque mesmo que empalideças não se nota - disse Santiago.

 

- Vantagens de ser mestiço - riu-se Solórzano. - Não te irrites, homem.

 

Héctor sentou-se: tinha um cigarro e fumaram-no entre os três, uma chupadela cada um.

 

- Como é que eles sabiam o meu nome - disse Santiago. - Que quereria aquele tipo.

 

- Como és de boas famílias, vão-te arranjar uns rinzitos com vinho, para não te sentires desambientado - disse Solórzano, bocejando. - Bem, já estou cansado.

 

Encolheu-se contra a parede e fechou os olhos. O seu corpo fortalhaço, a pele cor de cinza, o nariz muito aberto, pensa, os cabelos em pé, e era a primeira vez que o prendiam.

 

- Será que nos vão pôr juntos com os presos comuns? - perguntou Santiago.

 

- Oxalá que não - disse Héctor. - Não tenho vontade nenhuma de ser violado pelos gatunos. Olha para o camarada, como ele dorme. Ele é que tem razão, vamo-nos acomodar para ver se descansamos um bocado.

 

Apoiaram as cabeças contra a parede, fecharam os olhos. Um momento depois, Santiago ouviu passos e olhou para a porta; Héctor tinha-se também endireitado. Ó barulhinho, a cara de há pouco:

 

- Zavala, venha comigo. Sim, você sozinho.

 

O tipo atarracado tomava balanço e, ao sair da sala, viu os olhos de Solórzano abrirem-se, avermelhados. Um corredor cheio de portas, degraus, um corredor de lajedo que virava, subia e descia, um guarda com uma espingarda em frente de uma janela. O tipo caminhava de mãos nos bolsos, ao lado dele; tabuletas de metal que não conseguia ler. Entre para aí, ouviu, e ficou só. Uma sala grande, quase às escuras: uma secretária com um candeeirozinho sem quebra-luz, paredes nuas, uma fotografia de Odría enrolada na faixa presidencial como um bebé numa fralda. Retrocedeu, consultou o relógio, meia-noite e meia, tomava balanço e, as pernas frouxas, vontade de urinar. Um momento depois abriu-se a porta, Santiago Zavala?, disse uma voz sem cara. Sim: aqui estava o sujeito, senhor. Passos, vozes, o perfil de D. Fermín atravessando o feixe de luz do candeeiro, abrindo os braços, a cara dele contra a minha, pensa.

 

- Estás bem, magricela? Não te fizeram nada, magricela?

 

- Nada, papá. Não sei porque é que me trouxeram, eu não fiz nada, papá.

 

  1. Fermín olhou-o nos olhos, abraçou-o outra vez, soltou-o, sorriu levemente e voltou-se para a secretária, onde o outro já se tinha sentado.

 

- Está a ver, D. Fermín? - via-se-lhe mal a cara, Carlitos, uma vozinha enjoativa, servil. - Aí tem o seu herdeiro, são e salvo.

 

- Este rapaz não se cansa de me dar dores de cabeça - pobre dele, queria ser natural e era teatral e até cómico, Carlitos. - Invejo-o por não ter filhos, D. Cavo.

 

- A medida que caminhamos para velhos - é verdade, Carlitos, Cayo Bermúdez em pessoa - gostaríamos de ter quem nos represente no mundo quando já cá não estivermos.

 

  1. Fermín deu uma gargalhadinha embaraçada, sentou-se numa esquina da secretária, e Cayo Bermúdez pôs-se em pé: então era aquele, ali estava ele. Uma cara seca, apergaminhada, insípida. Não queria sentar-se, D. Fermín? Não, D. Cayo, estava aqui muito bem.

 

- Veja lá o sarilho em que se meteu, meu jovem - com amabilidade, Carlitos, como se o lamentasse. - Por se dedicar à política em lugar dos estudos.

 

- Eu não faço política - disse Santiago. - Estava só com uns colegas, não estávamos a fazer nada.

 

Mas Bermúdez tinha-se inclinado para oferecer cigarros a D. Fermín, que, imediatamente, com um sorriso postiço, tirou um Inça, ele que só conseguia fumar Chesterfield e odiava o tabaco negro, Carlitos, e pô-lo na boca. Aspirava com avidez e tossia, satisfeito por fazer alguma coisa que dissimulasse o seu mal-estar, Carlitos, o seu terrível embaraço. Bermúdez olhava para os turbilhões de fumo, aborrecido, e de repente os seus olhos encontraram Santiago:

 

- Está bem que um jovem seja rebelde, impulsivo - como se estivesse a dizer tolices numa reunião social, Carlitos, como se lhe importasse alguma coisa o que ele dizia. - Mas conspirar com os comunistas já é outra coisa. Não sabe que o comunismo é ilegal? Imagine se lhe aplicassem a Lei de Segurança Interna.

 

- A Lei de Segurança Interna não é para miúdos que nem sabem o que são, D. Cayo - com uma ravia refreada, Carlitos, sem levantar a voz, engolindo a vontade de lhe chamar cão, escravo.

 

- Por amor de Deus, D. Fermín - como que escandalizado, Carlitos, por não perceberem as piadas dele. - Nem para os miúdos nem muito menos para o filho dum amigo do regime como o senhor.

 

- Santiago é um rapaz difícil, eu bem sei - sorrindo e pondo-se sério, Carlitos, mudando de tom a cada palavra. - Mas não exagere, D. Cayo. O meu filho não conspira, e muito menos com comunistas.

 

- Ele que lhe conte, D. Fermín - amigável, obsequiosamente, Carlitos. - O que estava a fazer naquele hotel do Rímac, o que é a Fracção, o que é a Cahuide. Ele que lhe explique todos esses nomezinhos.

 

Expeliu uma baforada de fumo, contemplou melancolicamente as espirais.

 

- Neste país, os comunistas nem sequer existem, D. Cayo - engasgando-se com a tosse e com a cólera, Carlitos, pisando o cigarro com ódio.

 

- São poucochinhos, mas incomodam - como se eu me tivesse ido embora, Carlitos, ou nunca ali tivesse estado. - Publicam um jornaleco mimeografado, o Cahuide. Dizem horrores dos Estados Unidos, do presidente, de mim. Tenho a colecção completa e um dia hei-de mostrar-lha.

 

- Não tenho nada a ver com isso - disse Santiago. - Não conheço nenhum comunista em San Marcos.

 

- Deixamo-los brincar à revolução, a tudo o que quiserem, contanto que não se excedam - como se tudo o que ele próprio dizia o aborrecesse, Carlitos. - Mas uma greve política, de apoio aos ferroviários, imagine o que terá a ver San Marcos com os ferroviários, isso já não.

 

- A greve não é política - disse Santiago. - Foi a Federação que a decretou. Todos os alunos...

 

- Este moço é delegado de curso, delegado da Federação, delegado junto da comissão da greve - sem me ouvir nem ver, Carlitos, sorrindo para o velho como se lhe estivesse a contar uma piada. E membro da Cahuide, que é como se chama a organização comunista, desde há anos. Dois dos que foram presos com ele têm um historial cheiinho, são terroristas conhecidos. Não havia outro remédio, D. Fermín.

 

- O meu filho não pode continuar preso, ele não é um delinquente - já sem se conter, Carlitos, esmurrando a mesa, levantando a voz. - Eu sou amigo do regime, e não é de ontem, da primeira hora, e devem-me muitos favores. Vou falar com o presidente agora mesmo.

 

- D. Fermín, por favor - parecendo ferido, Carlitos, parecendo atraiçoado pelo seu melhor amigo. - Chamei-o para arrumarmos isto entre nós, eu sei melhor que ninguém que o senhor é um bom amigo do regime. Queria informá-lo das andanças deste moço, nada mais. É claro que não está preso. O senhor pode levá-lo agora mesmo, D. Fermín.

 

- Agradeço-lhe muito, D. Cayo - confundido de novo, Carlitos, passando o lenço pela boca, tentando sorrir. - Não se preocupe com o Santiago, eu encarrego-me de o levar ao bom caminho. Agora, se não se importa, preferia ir-me embora. Imagina como a mãe há-de estar.

 

- Claro, vá tranquilizar a sua esposa - compungido, Carlitos, querendo compor as coisas, reconciliar-se. - Ah, evidentemente, o nome do rapaz não aparecerá para nada. Não há ficha dele, asseguro-lhe que não ficará rasto deste incidente.

 

- Sim, isso podia prejudicar o rapaz no futuro - sorrindo-lhe, anuindo, Carlitos, tentando mostrar-lhe que se tinha reconciliado com ele. - Obrigado, D. Cayo.

 

Saíram. À frente iam D. Fermín e a figurinha pequena e estreita de Bermúdez, com o seu fato cinzento às riscas, os seus passinhos curtos e rápidos. Não correspondia às saudações dos guardas, às boas-noites dos agentes da secreta. O pátio, a fachada da prefeitura, as grades, ar puro, a avenida. O automóvel estava ao pé dos degraus. Ambrosio tirou o boné, abriu a porta, sorriu a Santiago, boa noite, menino. Bermúdez fez uma vénia e desapareceu na porta principal. D. Fermín entrou no automóvel: para casa depressa, Ambrosio. Partiram e o automóvel enfiou em direcção à Wilson, virou para a Arequipa, aumentando a velocidade a cada esquina, e pela janela entrava tanto ar, Zavalita, para respirar, para não pensar.

 

- Este filho da puta há-de pagar-mas - o tédio da sua cara, pensa, o cansaço dos seus olhos, que olhavam em frente. - Este mestiço de merda não me vai humilhar desta maneira. Eu o ensinarei a pôr-se no seu lugar.

 

- Era a primeira vez que o ouvia dizer palavrões, Carlitos - disse Santiago. - Insultar alguém daquela maneira.

 

- Há-de pagar-mas - a testa comida de rugas, pensa, a sua raiva gelada. - Eu o ensinarei a tratar com os patrões dele.

 

- Sinto muito ter-te feito passar esse mau bocado, juro-te que -- e a sua cara girando de repente, pensa, e a bofetada que te fechava a boca, Zavalita.

 

- A primeira, a única vez que me bateu - diz Santiago. - Lembras-te, Ambrosio?

 

- Tu também tens umas contas a ajustar comigo, miúdo - a voz dele convertida num grunhido, pensa. - Não sabes que para conspirar é preciso ser esperto? Que era imbecil conspirares lá de casa pelo telefone? Que a polícia podia escutar? O telefone estava interceptado, imbecil.

 

- Tinham gravado pelo menos dez conversas minhas com os da Cahuide, Carlitos - disse Santiago. - Bermúdez tinha-as mandado escutar. Sentia-se humilhado, era isso o que mais lhe doía.

 

Por alturas do Colégio Raimondi, o trânsito estava interrompido; Ambrosio desviou o carro para Arenales e não falaram até ao cruzamento de Javier Prado.

 

- Aliás, não se tratava de ti - a sua voz deprimida, preocupada, pensa, rouca. - Estava era a seguir-me os passos a mim. Aproveitou esta ocasião para mo dar a saber sem mo dizer de frente.

 

- Creio que nunca me senti tão amargurado, até àquela vez do bordel - disse Santiago. - Porque os tinham metido na prisão por minha causa, por causa da questão de Jacobo e da Aída, porque me tinham soltado e a eles não, por ver o velho naquele estado.

 

Novamente a Avenida Arequipa quase deserta, os faróis do automóvel e as rápidas palmeiras, e os jardins e as casas às escuras.

 

- Com que então és comunista, com que então, tal como eu previa, não entraste para San Marcos para estudar, mas sim para te meteres nas politiquices - o seu tom amargurado, pensa, áspero, zombeteiro. - Para te deixares iludir pelos vadios e pelos ressentidos.

 

- Fiquei bem nos exames, papá. Tirei sempre boas notas, papá.

 

- Eu quero lá saber que sejas comunista, aprista, anarquista ou existencialista ou o caralho - outra vez furioso, pensa, dando palmadas no joelho, sem olhar para mim. - Que atires bombas, roubes ou mates. Mas depois de fazeres vinte e um anos. Até lá, hás-de estudar e só estudar. Obedecer, só obedecer.

 

Pensa: nessa altura. Não te passou pela cabeça que ias dar cabo dos nervos à tua mãe? Pensa não. Que ias meter o teu pai num sarilho? Não, Zavalita, não te passou pela cabeça. A Avenida Angamos, a Diagonal, a Quebrada, Ambrosio acachapado sobre o volante: não pensaste, não te passou pela cabeça. Porque era muito cómodo, muito bonito, não? O paizinho dava-te de comer, o paizinho vestia-te e pagava-te os estudos e dava-te a mesada, e tu a brincares aos comunistas, e tu a conspirares contra as pessoas que davam trabalho ao paizinho, isso não, caralho. Não foi a bofetada, papá, pensa, isso é que me doeu. A Avenida 28 de Julho, as suas árvores, a Avenida Larco, o bichinho, a cobra, as facas.

 

- Quando produzires e te sustentares a ti próprio, quando já não dependeres da bolsa do paizinho, então sim - suavemente, pensa, ferozmente. - Comunista, anarquista, bombas, isso é lá contigo. Entretanto, estudas, obedeces.

 

Pensa: o que não te perdoei, papá. A garagem da casa, as janelas iluminadas, numa delas o perfil da Teté, lá vem o sabichão, mamã!

 

- E então cortaste com a Cahuide e com os teus parceiros? perguntou Carlitos.

 

- Vai tu, magricela, eu tenho de acabar de resolver este sarilho já arrependido, pensa, tentando já conciliar-se comigo. - E toma um banho, até piolhos deves trazer do( comissariado.

 

- E com a advocacia e com a família e com Miraflores, Carlitos. O jardim, a mamã, beijos, a sua cara cheia de lágrimas, não via, tonto, não via para ser tão tonto?, até a cozinheira e a criada lá estavam, e os gritinhos excitados da Teté: o regresso do filho pródigo, Carlitos, se em vez de umas horas tivesse estado preso um dia, ter-me-iam recebido com banda de música. O Chispas precipitava-se pelas escadas abaixo: pregaste-nos um destes sustos, homem. Sentaram-no na sala, rodearam-no, a Sr.a Zoila revolvia-lhe os cabelos e beijava-o na testa. O Chispas e a Teté morriam de curiosidade: na penitenciária, no comissariado, tinha visto ladrões, assassinos? O velho tentou falar para o Palácio e o presidente já estava a dormir, magricela, mas telefonou ao comissário e tinha-lhe dito das boas, sabichão. Uns ovos estrelados, dizia a D. Zoila à cozinheira, um leite com cacau e, se ainda houver, esse doce de limão. Não lhe tinham feito nada, mamã, tinha sido um engano, mamã.

 

- Agora, que o prenderam, está feliz, sente-se um herói - disse a Teté. - Agora, então, quem é que te vai aguentar.

 

- Vai aparecer o teu retrato no Comercio - disse o Chispas. Com o teu número e uma cara de fora-da-lei.

 

- Que tal é aquilo, como é, que é que fazem às pessoas quando estão presas? - perguntou a Teté.

 

- Despem-nas, vestem-lhes uma farda às listas e põem-lhes grilhões nos pés - disse Santiago. - Os calabouços estão cheios de ratazanas e não têm luz.

 

- Deixa-te disso, aldrabão - disse a Teté. - Conta, conta lá como é.

 

- Estás a ver, tontinho, estás a ver no que deu essa vontade toda de ir para San Marcos? - disse a D. Zoila. - Prometes-me que para o ano passas para a Católica? Que nunca mais te metes na política?

 

Prometia, mamã, nunca mais, mamã. Eram duas horas quando se foram deitar. Santiago despiu-se, enfiou o pijama, apagou o candeeiro. Sentia o corpo débil, muito calor.

 

- Nunca mais procuraste os tipos da Cahuide? - perguntou Carlitos.

 

Puxou o lençol até ao pescoço e o sono fugiu e o cansaço concentrou-se nas costas. A janela estava aberta e viam-se algumas estrelas.

 

- O Llaque esteve dois anos preso, o Washington foi desterrado para a Bolívia - disse Santiago. - Os outros foram postos em liberdade quinze dias depois.

 

Um mal-estar como um ladrão a rondar a escuridão, pensa, remorsos, ciúmes, vergonha. Odeio-te, papá, odeio-te, Jacobo, odeio-te, Aída. Sentia uma tremenda vontade de fumar e não tinha cigarros.

 

- Devem ter pensado que te assustaste - disse Carlitos. - Que os atraiçoaste, Zavalita.

 

A cara de Aída, de Jacobo e Washington e Solórzano e Héctor e outra vez a de Aída. Pensa: vontade de ser pequeno, de nascer outra vez, de fumar. Mas, se fosse pedir ao Chispas, tinha de conversar com ele.

 

- De certo modo, assustei-me, Carlitos - disse Santiago. - De certo modo, atraiçoei-os.

 

Sentou-se na cama, remexeu nos bolsos do casaco, levantou-se e revistou todos os fatos do roupeiro. Sem pôr o roupão nem as chinelas, desceu ao primeiro andar e entrou no quarto do Chispas. O maço e os fósforos estavam na mesa-de-cabeceira, o Chispas dormia de boca para baixo em cima dos lençóis. Voltou ao seu quarto. Sentado junto da janela, ansiosamente, deliciosamente, fumou, deitando a cinza para o jardim. Pouco depois sentiu o carro travar à porta. Viu D. Fermín entrar, viu Ambrosio dirigir-se ao seu quartinho do fundo. Agora devia estar a abrir a porta do escritório, agora a acender a luz. Procurou às cegas as chinelas e o roupão e saiu do quarto. Da escada viu que a luz do escritório estava acesa. Desceu, parou junto da porta de vidro: sentado numa das poltronas verdes, com o copo de uísque na mão, os seus olhos de insónia, os seus cabelos brancos nas fontes. Só tinha acendido o candeeiro de pé, com nas noites em que ficava em casa e lia os jornais, pensa. Bateu à porta e D. Fermín veio abrir.

 

- Queria falar contigo um instante, papá.

 

- Entra, aí fora ainda te constipas - já não estava zangado, Zavalita, contente por te ver. - Está muita humidade, magricela.

 

Agarrou-lhe pelo braço, fê-lo entrar, voltou à poltrona, Santiago sentou-se defronte dele.

 

- Estiveram acordados até agora? - como se já te tivesse perdoado, Zavalita, ou nunca se tivesse zangado. - O Chispas tem um bom pretexto para não ir amanhã ao escritório.

 

- Deitámo-nos há pouco, papá. Eu estava sem sono.

 

- Sem sono por causa de tantas emoções - olhando-te com carinho, Zavalita. - Bom, não é caso para menos. Agora tens de me contar tudo em pormenor. Trataram-te bem, a sério?

 

- Trataram, papá, nem sequer me interrogaram.

 

- Bom, ainda bem que o susto já passou - até com um bocadinho de orgulho, Zavalita. - De que é que querias falar comigo, magricela?

 

- Estive a pensar no que tu disseste e acho que tens razão, papá

- sentindo a boca secar-te de repente, Zavalita. - Quero sair de casa e arranjar um emprego. Qualquer coisa que me permita continuar a estudar, papá.

 

  1. Fermín não troçou, não se riu. Levantou o copo, bebeu um gole, limpou a boca.

 

- Estás zangado com o teu pai porque te deu uma bofetada agachando-se para te pôr uma mão no joelho, Zavalita, fitando-te como que a dizer-te esqueçamos, reconciliemo-nos. - Sendo tu tão crescido, sendo já um revolucionário perseguido.

 

Endireitou-se, puxou do maço de Chesterfield, do isqueiro.

 

- Não estou zangado contigo, papá. Mas não posso continuar a viver duma maneira e a pensar doutra. Por favor, tenta perceber-me, papá.

 

- Não podes continuar a viver como? - Ligeiramente ferido, Zavalita, logo entristecido, cansado. - Que há aqui que vá contra a tua maneira de pensar, magricela?

 

- Não quero depender da mesada - sentindo que te tremiam as mãos, a voz, Zavalita. - Não quero que qualquer coisa que eu faça recaia sobre ti. Quero depender de mim mesmo, papá.

 

- Não quer depender dum capitalista - sorrindo preocupado, Zavalita, dorido, mas sem rancor. - Não queres viver com o teu pai porque recebe contratos do Governo? É por isso?

 

- Não te zangues, papá. Não julgues que não tento, papá.

 

- Já és crescido, já posso ter confiança em ti, não é verdade? avançando uma mão até à tua cara, Zavalita, dando-te uma palmada na face. - Vou-te explicar porque é que fiquei tão furioso. Há uma coisa que estava em vias de se concretizar por estes dias. Militares, senadores, muita gente influente. O telefone estava interceptado por minha causa, não por tua. Deve ter escapado qualquer coisa, o mestiçozeco do Bermúdez aproveitou-se de ti para me dar a entender que suspeitava de qualquer coisa, que sabia. Agora é preciso parar tudo, começar do princípio. Como vês, o teu pai não é um lacaio do Odría nem pouco mais ou menos. Vamos correr com ele, vamos convocar eleições. Saberás guardar o segredo, não? Ao Chispas não lho teria contado, já vês que a ti te trato como um homenzinho, magricela.

 

- A conspiração do general Espina? - perguntou Carlitos. O teu pai também esteve implicado? Nunca se soube.

 

- Com que então estavas a pensar em sair de casa e ao teu pai o diabo que o carregasse - dizendo-te com os olhos o que lá vai, lá vai, não falemos mais disso, gosto de ti. - Já vês que as minhas relações com o Odría são precárias, já vês que não tens de que ter escrúpulos.

 

- Não é por isso, papá. Nem sequer sei se me interessa a política, se sou comunista. É para poder decidir melhor o que é que vou fazer, o que quero ser.

 

- Estive a pensar, agora no carro - dando-te tempo para reconsiderares, Zavalita, continuando a sorrir. - Queres que te mande para o estrangeiro por uns tempos? Para o México, por exemplo. Fazes os exames e em Janeiro vais estudar para o México, por um ou dois anos. Depois se verá a maneira de convencer a tua mãe. Que achas, magricela?

 

- Não sei, papá, não unha pensado nisso - pensando que ele te queria comprar, Zavalita, que inventara aquilo agora mesmo para ganhar tempo. - Tenho que pensar, papá.

 

- Até Janeiro tens mais que tempo - pondo-se de pé, Zavalita, dando-te outra vez uma palmada na cara. - Assim verás as coisas melhor, verás que o mundo não é o mundozinho de San Marcos. De acordo, magricela? E agora vamos para a cama, já são quatro horas.

 

Bebeu o último gole, apagou a luz, subiram a escada juntos. Defronte do quarto, D. Fermín inclinou-se para o beijar: tinhas de ter confiança no teu pai, magricela, fosses o que fosses, fizesses o que fizesses, eras de quem ele gostava mais, magricela. Entrou no quarto e caiu na cama. Esteve a olhar para o pedaço de céu da janela até amanhecer. Quando houve luz suficiente, levantou-se e dirigiu-se ao roupeiro. O arame estava no mesmo sítio em que o tinha escondido da outra vez.

 

- Havia uma data de tempo que não me roubava a mim mesmo, Carlitos - disse Santiago.

 

Gordo, trombudo, com a sua cauda em espiral, o porco estava entre as fotografias do Chispas e da Teté, junto ao galhardete do colégio. Quando acabou de tirar as notas, já tinha chegado o leiteiro, o padeiro, e Ambrosio limpava o carro na garagem.

 

- Daí a quanto tempo é que entraste para a Crónica,? - perguntou Carlitos.

 

- Daí a duas semanas, Ambrosio - diz Santiago.

 

Estou melhor do que lá na D. Zoila, pensava Amalia, do que no laboratório, há uma semana que não sonhava com Trinidad. Porque é que se sentia tão satisfeita na casita de San Miguel? Era mais pequena que a da D. Zoila, também de dois andares, elegante, e o jardim tão bem cuidado, isso é que era. O jardineiro vinha uma vez por semana e regava a relva e podava os gerânios, os loureiros e a trepadeira, que subia pela fachada como um exército de aranhas. À entrada havia um espelho na parede, uma mesinha de pés compridos com um jarrão chinês, a alcatifa da salinha era verde-esmeralda, as poltronas cor de âmbar e havia almofadas espalhadas pelo chão. Amalia gostava do bar: as garrafas com as suas etiquetas de cor, os animaizinhos de porcelana, as caixas de charutos embrulhados em celofane. E também dos quadros: a tapada com vista para a Plaza de Acho, os galos que lutavam no Coliseo. A mesa da casa de jantar era originalíssima, meio redonda meio quadrada, e as cadeiras com os seus altos espaldares pareciam confessionários. Havia de tudo no aparador: travessas, terrinas, pilhas de toalhas, serviços de chá, copos grandes e pequenos e compridos e curtos, cálices. Nas mesinhas das esquinas, os jarrões tinham sempre flores fresquinhas - Amalia, muda as rosas, Carlota, hoje compra gladíolos, Amalia, hoje jarros -, cheirava tão bem, e a copa parecia pintada de fresco de branco. Que engraçadas as latas, milhares delas, com as suas tampas coloridas e os seus patos Donald, super-homens e ratos Mickey. De tudo na despensa: bolachinhas, passas, batatinhas fritas, conservas que nunca mais acabavam, caixas de cerveja, de uísque, de águas minerais. No frigorífico, enorme, havia hortaliças e garrafas de leite para dar e vender. A cozinha tinha umas lajes pretas e brancas e dava para um pátio com cordéis. Era ali que ficavam os quartos de Amalia, Carlota e Simula, o quartinho de banho delas com a sua retrete, o seu chuveirinho e o seu lavatório.

 

Uma agulha fincava-se-lhe no cérebro, um martelo batia-lhe nas têmporas. Abriu os olhos e carregou na alavancazinha do despertador: o suplício cessou. Permaneceu imóvel, contemplando o mostrador fosforescente: sete e um quarto, já. Levantou o telefone que comunicava com a entrada, pediu o carro para as oito. Foi ao quarto de banho, levou vinte minutos a tomar duche, fazer a barba e vestir-se. O mal-estar no seu cérebro aumentou com a água fria, o dentífrico acrescentou um sabor adocicado ao gosto amargo da boca, ia vomitar? Fechou os olhos e foi como se visse pequenas chamas azuis consumindo-lhe os órgãos, o sangue a circular espessamente debaixo da pele. Sentia os músculos comprimidos, zumbiam-lhe os ouvidos. Abriu os olhos: dormir mais. Desceu até à casa de jantar, afastou o ovo mexido e as torradas, bebeu com asco a chávena de café puro. Dissolveu dois alka-seltzers em meio copo de água, e, logo que acabou de beber o borbulhante líquido, arrotou. No escritório, fumou dois cigarros enquanto preparava a maleta. Saiu e à porta os guardas de serviço levaram a mão à pala do boné. Estava uma manhã clara, o sol alegrava os telhados de Chaclacayo, os jardins e as moitas da margem do rio mostravam um verde intenso. Esperou fumando que Ambrosio tirasse o automóvel da garagem.

 

Santiago pagou as duas empadas quentes e a coca-cola, saiu e a Calle Carabaya ardia. Os vidros do eléctrico Lima-San Miguel repetiam os anúncios luminosos e o céu também estava avermelhado, como se Lima se fosse converter num inferno de verdade. Pensa: a merdinha na merda de verdade. Os passeios abarrotavam de formigas brilhantes, os transeuntes invadiam a via e avançavam por entre os automóveis, o pior que pode acontecer é uma pessoa ser apanhada pela saída dos escritórios na baixa, dizia a D. Zoila cada vez que voltava das compras, sufocada e lamurienta, e Santiago sentiu as cócegas no estômago: oito dias, já. Entrou pelo velho portão; um espaçoso saguão, gordos rolos de papel encostados às paredes manchadas de fuligem. Cheirava a tinta, a velhice, era um cheiro hospitaleiro. No gradeamento aproximou-se dele um porteiro vestido de azul: o Sr. Vallejo? Segundo andar, ao fundo, onde dizia Direcção. Subiu inquieto as escadas larguíssimas, que rangiam como se fossem roídas desde tempos imemoriais por ratos e traças. Nunca deviam ter passado uma vassoura por aqui. Para quê ter incomodado a D. Lúcia mandando-a passar o fato a ferro, para quê ter desperdiçado um sol engraxando os sapatos? Devia ser aquela a redacção: as portas estavam abertas, não havia ninguém. Deteve-se; com olhos vorazes, virgens, explorou as mesas desertas, as máquinas, os cestos de papéis de vime, as fotografias pregadas nas paredes. Trabalham de noite, dormem de dia, pensou, uma profissão um bocado boémia, um bocado romântica. Levantou a mão e deu uma batida discreta.

 

A escada da sala para o segundo andar tinha uma passadeirazinha vermelha presa com grampos dourados e na parede havia indiozinhos a tocar flauta, a guardar rebanhos de lamas. O quarto de banho reluzia de azulejos, o lavatório e a banheira eram cor-de-rosa, no espelho Amalia podia ver-se de corpo inteiro. Mas o mais bonito era o quarto da senhora, nos primeiros dias ia lá acima com qualquer pretexto e não se cansava de o contemplar. A alcatifa era azul-marinho, como as cortinas da varanda, mas o que chamava mais a atenção era a cama, tão larga, tão baixinha, com os seus pés de crocodilo e a sua colchá preta, com aquele animal amarelo que cuspia fogo. E para que eram tantos espelhos? Tinha-lhe custado habituar-se, àquela multiplicação de Amalias, a ver-se assim repetida, assim lançada pelo espelho do toucador contra o do biombo e pelo do guarda-vestidos (essa quantidade de vestidos, de blusas, de calças, de turbantes, de sapatos) contra aquele espelho inútil pregado ao tecto, no qual o dragão aparecia enjaulado. Havia um único quadro e ardeu-lhe a cara da primeira vez que o viu. A D. Zoila era incapaz de pôr no quarto dela uma mulher nua a agarrar os seios com aquela desfaçatez, a mostrar tudo com tamanho descaramento. Porque é que traziam tantas coisas da mercearia? Porque a senhora dá muitas festas, disse-lhe Carlota, os amigos do senhor eram importantes, era preciso recebê-los bem. A senhora parecia multimilionária, não se preocupava com o dinheiro. Amalia tinha ficado envergonhada ao ver as contas que Simula lhe apresentava, roubava-a descaradamente nas contas do dia e ela era como se nada fosse, gastaste tanto?, está bem, e guardava o troco sem o contar.

 

À medida que o automóvel descia pela estrada central, ele lia papéis, sublinhava frases, anotava as margens. O sol desapareceu por alturas da Vitarte, a atmosfera cinzenta foi esfriando à medida que se aproximavam de Lima. Era oito e trinta e cinco quando o automóvel parou na Plaza Itália e Ambrosio apeou-se a correr para lhe abrir a porta: o Ludovico que estivesse às quatro e meia no Club Cajamarca, Ambrosio. Entrou no Ministério, os gabinetes estavam desertos, também não havia ninguém na secretaria. Mas o Dr. Alcibíades estava já à sua mesa, revendo os jornais com um lápis vermelho entre os dedos. Pôs-se de pé, bom dia D. Cayo, e ele estendeu-lhe um punhado de papéis: estes telegramas imediatamente, doutorzinho. Apontou para a secretária, essas senhoras não sabiam que tinham de estar cá às oito e meia?, e o Dr. Alcibíades olhou o relógio da parede: eram só oito e meia, D. Cayo. Ele já se afastava. Entrou no seu gabinete, tirou o casaco desapertou a gravata. A correspondência estava sobre o mata-borrão: comunicações da polícia à esquerda, telegramas e comunicados ao centro, à direita cartas e petições. Aproximou o cesto dos papéis com o pé, começou com as comunicações. Lia, anotava, separava, rasgava. Estava a acabar de ver a correspondência quando o telefone tocou: o general Espina, D. Cayo, o senhor está? Sim, sim, estava, doutorzinho, passe-mo.

 

O senhor de cabelos brancos sorriu-lhe amistosamente e ofereceu-Lhe uma cadeira: era então o jovem Zavala, claro que o Clodomiro lhe tinha falado. Nos seus olhos havia um brilho cúmplice, nas suas mãos qualquer coisa de bondoso e untuoso, o seu gabinete estava imaculadamente limpo. Sim, Clodomiro e ele eram amigos desde o colégio; em compensação, ao seu paizinho, Fermín, não era?, não o tinha conhecido, era muito mais novo que nós, e sorriu outra vez: então tinha tido problemas em casa? Sim, o Clodomiro tinha-lhe contado. Bom, era a época disso, os jovens queriam ser independentes.

 

- É por isso que preciso de trabalhar - disse Santiago. - O meu tio Clodomiro pensou que o senhor, talvez.

 

- Teve sorte - assentiu o Sr. Vallejo. - Andamos precisamente à procura de um reforço para a secção das locais.

 

- Não tenho experiência, mas farei todos os possíveis por aprender depressa - disse Santiago. - Pensei que trabalhando aqui na Crónica talvez pudesse continuar a assistir às aulas de Direito.

 

- Desde que aqui estou, nunca vi muitos jornalistas que continuem a estudar - disse o Sr. Vallejo. - Tenho de lhe fazer uma advertência, para o caso de não saber. O jornalismo é a profissão mais mal paga. E também a que dá mais desgostos.

 

- Sempre me agradou, senhor - disse Santiago. - Sempre pensei que é a que está mais em contacto com a vida.

 

- Bom, bom - o Sr. Vallejo passou a mão pela cabeça nevada, assentiu com olhos benévolos. - Já sei que nunca trabalhou num jornal até agora, veremos que tal se dá. Enfim, gostava de fazer uma ideia da sua inclinação para isto. - Pôs-se muito sério, fez uma voz solene: - Um incêndio na casa Wiese. Dois mortos, prejuízos avaliados em cinco milhões, os bombeiros trabalharam toda a noite para apagar o sinistro. A polícia investiga se se trata de acidente ou de acto criminoso. Não vá além de um par de linguados. Na redacção há muitas máquinas, escolha uma qualquer.

 

Santiago anuiu. Pôs-se de pé, passou à redacção e quando se sentou na primeira secretária as mãos começaram-lhe a suar. Ainda bem que não havia ali ninguém. A Remington que tinha na sua frente pareceu-Lhe um pequeno ataúde, Carlitos. Era isso mesmo, Zavalita.

 

Junto ao quarto da senhora ficava o escritório: três sofazitos, um candeeiro, uma estante. Era ali que o senhor se fechava nas suas visitas à casita de San Miguel, e se estava com alguém não se podia fazer barulho, até a D. Hortênsia descia à sala, apagava o rádio, e, se a chamavam ao telefone, não atendia. Que mau feitio que o senhor devia ter para fazerem todo aquele teatro, assustou-se Amalia da primeira vez. Para que é que a senhora tinha três criadas se o senhor vinha tão de vez em quando? A negra Simula era gorda, encanecida, calada e antipatizou com ela. Em compensação, com a sua filha Carlota, esgrouviada, sem peito, de cabelo encarapinhado, simpatiquíssima, fizeram-se logo amigas. Não tem três por precisar, disse-lhe Carlota, é mas é para gastar em qualquer coisa o dinheiro que o senhor lhe dá. Era muito rico? Carlota abriu muito os olhos: riquíssimo, estava no Governo, era ministro. Por isso é que quando D. Cayo lá dormia apareciam dois polícias na esquina, e o motorista e o outro do carro ficavam à espera dele toda a noite, à porta. Como podia uma mulher tão nova e tão bonita estar com um homem que lhe chegava às orelhas quando ela punha saltos altos? Podia ser pai dela e era feio e nem sequer .vestia bem. Achas que a senhora gosta dele, Carlota? Qual gostava nem meio gostava, gostava era do dinheiro dele. Devia ter muito, para lhe pôr uma casa daquelas e ter-Lhe comprado aquela quantidade de roupa e jóias e sapatos. Como é que, sento tão bonita, não tinha conseguido arranjar marido? Mas a D. Hortênsia não parecia muito preocupada em casar-se, via-se que era feliz assim. Nunca ninguém a via ansiosa por que o senhor chegasse. Claro que ele aparecia e ela desfazia-se em atenções e cuidados, e quando o senhor telefonava a dizer vou jantar com tantos amigos, passava o dia a dar instruções a Simula, a verificar que Amalia e Carlota deixavam a casa num brinco. Mas o senhor saía e não voltava a falar dele, nunca lhe telefonava e andava tão alegre, tão despreocupada, tão entretida com as amigas, que Amalia pensava já nem se lembra dele. O senhor não era nada parecido com D. Fermín, que bastava vê-lo para saber que era uma pessoa fina e de posses. D. Cavo era pequenino, tinha a cara curtida, o cabelo amarelento como tabaco velho, olhos encovados de olhar frio e distante, rugas no pescoço, uma boca quase sem lábios e dentes sujos do tabaco, porque andava sempre de cigarro na mão. Era tão magrinho que a parte da frente do fato quase tocava a parte de trás. Quando Simula não estava a ouvir, ela e Carlota fartavam-se de dizer piadas: imagina-o em pelota, que esqueletozinho, que bracinhos, que perninhas. Quase nunca mudava de fato, andava com as gravatas mal postas e as unhas sujas. Nunca dizia bom dia nem até logo, quando elas o cumprimentavam, respondia com um mugido e sem olhar. Parecia sempre ocupado, preocupado, apressado, acendia os cigarros uns nos outros e quando falava ao telefone só dizia sim, não, amanhã, bom, e, quando a senhora brincava com ele, limitava-se a enrugar ligeiramente as maçãs do rosto e era esse o seu riso. Seria casado, que vida teria ele lá fora? Amalia imaginava-o a viver com uma velha beata sempre de luto.

 

- Está, está? - repetia a voz do general Espina. - Está, Alcibíades?

 

- Sim? - disse suavemente. - Serrano?

 

- Cayo? Bolas, até que enfim - a voz de Espina era asperamente jovial. - Desde anteontem que estou a ligar para ti e não na maneira. Nem no Ministério, nem em tua casa. Nem que andasses a fugir de mim, Cayo.

 

- Tens andado a ligar para mim? - tinha um lápis na mão direita, desenhava um círculo. - Não sabia de nada, Serrano.

 

- Dez vezes, Cayo. Quais dez, pelo menos quinze vezes.

 

- Vou averiguar porque é que não me dão os recados - um segundo círculo, paralelo ao anterior. - Diz lá, Serrano, estou às tuas ordens.

 

Uma pausa, uma tosse de mal-estar, a respiração entrecortada de Espina:

 

- Que significa aquele tipo da secreta à porta da minha casa, Cayo? - dissimulava o mau humor falando devagar, mas era pior. É protecção ou vigilância ou que merda é?

 

- Como ex-ministro tens direito pelo menos a um porteiro pago pelo Governo, Serrano - completou o terceiro círculo, fez uma pausa, mudou de tom. - Não sei de nada, homem. Se calhar, esqueceram-se de que já não precisas de protecção. Se esse sujeito te incomoda, mando tirá-lo de lá.

 

- Não me incomoda, chama-me a atenção - disse Espina, secamente. - Cartas na mesa, Cayo. Aquele sujeito ali significa que o Governo já não confia em mim?

 

- Não digas disparates, Serrano. Se o Governo não tem confiança em ti, em quem é que há-de ter?

 

- Por isso mesmo, por isso mesmo - a voz de Espina era lenta, atabalhoava-se, voltava a ser lenta. - Como é que eu não me havia de admirar, Cayo? Deves julgar que já estou velho para reconhecer um tipo da secreta.

 

- Não fervas em pouca água - o quinto círculo: mais pequeno que os outros, ligeiramente achatado. - Achas que te íamos pôr um paisano à porta? Deve ser algum conquistador que anda a namorar a tua criada.

 

- Pois o melhor é desaparecer daqui porque eu tenho maus fígados, bem sabes - colérico agora, respirando com força. - De um momento para o outro, irrito-me e prego-lhe um tiro. Queria avisar-te, pelo sim, pelo não.

 

- Não gastes pólvora em perdigotos - corrigiu o círculo, aumentou-o, arredondou-o, agora estava igual aos outros. - Vou averiguar hoje mesmo. Se calhar, o Lozano quis ficar bem contigo pondo-te um agente à porta para te tomar conta da casa. Vou mandar tirarem-no de lá, Serrano.

 

- Bom, aquilo de lhe pregar um tiro não era a sério - mais tranquilo agora, tentando brincar. - Mas hás-de compreender que este assunto me deixou ressentido, Cayo.

 

- És um Serrano desconfiado e mal agradecido - disse ele. Que mais queres, se te guardam a casa, com tanto rato à solta? Bom, esquece-te disso. A família como está? Vamos a ver se almoçamos juntos um dia destes.

 

- Quando quiseres, eu agora o que tenho mais é tempo livre um pouco entrecortado, indeciso, como que envergonhado do despeito que descobria na própria voz. - Tu é que não deves ter muito tempo, pois não? Desde que saí do Ministério não me procuraste uma única vez. E já lá vão quase três meses.

 

- Tens razão, Serrano, mas bem sabes o que isto é - oito círculos: cinco numa ilha, três por baixo; iniciou o nono, cuidadosamente. - Já estive para te telefonar várias vezes. De qualquer maneira, fica para a semana que vem. Um abraço, Serrano.

 

Desligou antes de Espina acabar as despedidas, contemplou um instante os nove círculos, rasgou a folha e atirou os pedaços para o cesto dos papéis.

 

- Demorei-me uma hora - disse Santiago. - Tornei a fazer os dois linguados quatro ou cinco vezes, corrigi as vírgulas à mão diante do Vallejo.

 

O Sr. Vallejo lia com atenção, de lápis suspenso sobre a folha, acenava com a cabeça, marcou uma cruzinha, moveu ligeiramente os lábios, outra, bem bem, uma linguagem simples e correcta, tranquilizou-o com um olhar piedoso, isso )á queria dizer muito. Só havia uma coisa...

 

- Se não tivesses passado na prova, terias voltado ao redil e serias agora um miraflorino modelo - riu-se Carlitos. - Aparecerias nas crónicas sociais, como o teu irmãozinho.

 

- Estava um bocado nervoso, senhor - disse Santiago. - Quer que faça outra vez?

 

- A mim quem me fez a prova foi o Becerrita - disse Carlitos.

- Havia uma vaga na secção criminal. Nunca me hei-de esquecer.

 

- Não vale a pena, não está mal - o Sr. Vallejo abanou a cabeça branca, olhou-o com os seus amistosos olhos pálidos. - Mas convém que vá aprendendo o ofício, se vai trabalhar connosco.

 

- Um doido entra num bordel de Huatica alucinado e esfaqueia quatro meretrizes, a patroa e dois maricas - grunhiu Becerrita. Uma das pegas morre. Num par de linguados e em quinze minutos.

 

- Muito obrigado, senhor Vallejo - disse Santiago. - Não imagina como lhe agradeço.

 

- Ia-me urinando - disse Carlitos. - Ah, o Becerrita.

 

- É simplesmente um problema de disposição dos dados de acordo com a sua importância e também de economia de palavras - o Sr. Vallejo tinha numerado algumas frases, devolvia-lhe as páginas. É preciso começar pelos mortos, jovem.

 

- Todos dizíamos mal do Becerrita, todos o detestávamos - disse Santiago. - E agora não fazemos outra coisa senão lembrá-lo e todos o adoramos e queríamos ressuscitá-lo. E absurdo.

 

- O que salta mais à vista, o que cativa as pessoas - acrescentou o Sr. Vallejo. - E isso que faz que o leitor sinta que a notícia lhe diz respeito. Talvez porque todos nós havemos de morrer um dia.

 

- Era o mais autêntico que passou pelo jornalismo limenho disse Carlitos. - A porcaria humana elevada à sua máxima potência, um símbolo, um paradigma. Quem não o há-de recordar com carinho, Zavalita?

 

- E eu pus os mortos no fim, que palerma - disse Santiago.

 

- Sabe o que são as três linhas? - o Sr. Vallejo olhou-o com picárdia. - O que os norte-americanos, o jornalismo mais ágil do mundo, fique sabendo, chamam o lead.

 

- Fez-te o número completo - disse Carlitos. - Em compensação, a mim, o Becerrita ladrou-me você escreve com as patas, só entra porque já me cansei de ver provas.

 

- Todos os dados importantes resumidos nas três primeiras linhas, no lead - disse amorosamente o Sr. Vallejo. - Uma coisa assim: dois mortos e um prejuízo de cinco milhões é o saldo provisório do incêndio que destruiu esta noite grande parte da Casa Wiese, um dos principais edifícios do centro de Lima; os bombeiros dominaram o fogo após oito horas de arriscado trabalho. Está a ver?

 

- Tenta escrever poemas depois de teres metido essas formulazinhas na cabeça - disse Carlitos. - E preciso ser-se maluco para ir trabalhar num jornal quando se tem algum carinho pela literatura, Zavalita.

 

- Depois já pode colorir a notícia - disse o Sr. Vallejo. - A origem do sinistro, a angústia dos empregados, as declarações das testemunhas, etc.

 

- Eu não tinha nenhum, desde que a minha irmã me fez fazer uma figura triste - disse Santiago. - Fiquei satisfeito por entrar para a Crónica, Carlitos.

 

Que diferente, em compensação, a D. Hortênsia! Ele tão feio e ela tão bonita, ele tão façanhudo e ela tão alegre. Não era altiva como a D. Zoila, que parecia que estava a falar dum trono, nem quando levantava a voz a fazia sentir-se sua inferior. Dirigia-se a ela sem poses, como se estivesse a falar com a Menina Queta. Mas, lá isso é verdade, tomava cá umas liberdades! Que falta de vergonha para certas coisas. O meu único vício são os copitos e os comprimidinhos disse ela uma vez, mas Amalia pensava o seu vício é mas é a ’limpeza. Via um bocadinho de pó na alcatifa e Amalia, o espanador!, um cinzeiro com beatas e como se tivesse visto uma ratazana Carlota, aquela porcaria! Tomava banho ao levantar e ao deitar e pior ainda, queria que elas também passassem a vida na água. No dia seguinte à entrada de Amalia para a casita de San Miguel, quando lhe levou o pequeno-almoço à cama, a senhora olhou-a de cima a baixo: já tomaste banho? Não, minha senhora, disse Amalia, surpreendida, e então ela fez trejeitos de nojo de menina pequenina, metesse-se já debaixo do chuveiro, aqui em casa tinha de tomar banho todos os dias. E meia hora depois, quando Amalia, a bater o dente, estava debaixo da água do chuveiro, abriu-se a portinha do quarto de banho e apareceu a senhora de roupão, com um sabão na mão. Amalia sentiu fogo no corpo, fechou a torneira, não se atrevia a apanhar o vestido, permaneceu cabisbaixa, transida. Tens vergonha de mim?, riu a senhora. Não, balbuciou ela, e a senhora riu-se outra vez: estavas a tomar banho sem te ensaboares, cá me parecia; toma, ensaboa-te bem. E, enquanto Amalia o fazia - o sabão escorregou-lhe três vezes das mãos, esfregava-se com tanta força que ficou com a pele a arder -, a senhora continuou ali, a bater com o salto do sapato no chão, desfrutando a vergonha dela, as orelhinhas também, agora as patinhas, a dar-lhe ordens toda risonha, olhando-a com todo o atrevimento. Muito bem, era assim que tinha de tomar banho e ensaboar-se todos os dias e abriu a porta para sair, mas ainda deitou um daqueles olhares a Amalia: não tens nada de que te envergonhar, apesar de seres magrinha não és malfeita. Foi-se embora e ao longe outra gargalhada.

 

Alguma vez a D. Zoila teria feito uma coisa daquelas? Sentia-se tonta, com a cara a arder. Abotoa a farda até acima, dizia a D. Zoila, não uses as saias tão curtas. Depois, enquanto limpavam a sala, Amalia contou a Carlota e ela revolveu os olhos: a senhora era assim, não tinha vergonha de nada, também entrava às vezes quando ela estava a tomar banho para ver se se ensaboava bem. Mas não era só isso, obrigava-as também a deitar pós nas axilas contra a transpiração. Todas as manhãs, meia a dormir, a espreguiçar-se, os bons-dias da senhora eram perguntar tomaste banho, puseste o desodorizante? Da mesma maneira que tomava essas liberdades, também não lhe importava que elas a vissem. Uma manhã Amalia viu a cama vazia e ouviu a água da banheira a correr: queria que lhe deixasse o pequeno-almoço na mesa-de-cabeceira, minha senhora? Não, traz-mo aqui. Entrou e a senhora estava na banheira, com a cabeça apoiada num almofadão e os olhos fechados. O vapor cobria o quarto de banho, estava tudo morno e Amalia parou à entrada da porta, olhando com curiosidade, com inquietação, o corpo branco imerso na água. A senhora abriu os olhos: que fome, traz-mo aqui. Sentou-se preguiçosamente na banheira e estendeu as mãos para a bandeja. Na atmosfera enevoada, Amalia viu aparecer o busto impregnado de gotinhas, os mamilos escuros. Não sabia para onde olhar, o que fazer, e a senhora (com olhos de regozijo começava a beber o sumo, a pôr manteiga na torrada), de repente, viu-a petrificada ao pé da banheira. Que estava ali a fazer com a boca aberta?, e com voz zombeteira, não gostas? Minha senhora, eu, murmurou Amalia, recuando, e a senhora numa gargalhada: vai-te lá embora, depois vens buscar a bandeja. Alguma vez a D. Zoila teria permitido que ela entrasse enquanto estava a tomar banho? Que diferente que ela era, que desavergonhada, que simpática. No primeiro domingo na casinha de San Miguel, para lhe causar boa impressão, perguntou-lhe posso ir um bocadinho à missa? A senhora soltou uma das suas gargalhadas: vai, mas cuidado, não te viole o padre, beatinha. Nunca vai à missa, contou-lhe depois Carlota, nós também já não vamos. Era por isso que na casinha de San Miguel não havia um único Sagrado Coração de Jesus, uma única Santa Rosa de Lima. Pouco tempo depois, também ela deixou de ir à missa.

 

Bateram à porta, ele disse entre e entrou o Dr. Alcibíades.

 

- Não tenho muito tempo, doutorzinho - disse, apontando para o monte de recortes de jornais que Alcibíades trazia. - Alguma coisa importante?

 

- A notícia de Buenos Aires, D. Cayo. Saiu em todos. Estendeu a mão, folheou os recortes. Alcibíades tinha marcado os

 

títulos com tinta vermelha - «Incidente antiperuano em Buenos Aires», dizia La Prensa, «Apristas apedrejam a Embaixada peruana na Argentina», dizia La Crónica,; «Espezinhada e insultada a bandeira nacional por apristas», dizia El Comercio -, e assinalado com setas o sítio onde a notícia acabava.

 

- Todos publicaram o telegrama da Ansa - bocejou ele.

 

- A United Press, a Associated Press e as outras agências tiraram a notícia dos seus boletins, tal como lhes pedimos - disse o Dr. Alcibíades. - Agora vão protestar porque a Ansa se lhes antecipou. Não demos nenhumas instruções à Ansa, porque como o senhor...

 

- Está bem - disse ele. - Comunique com o, como é que se chama o tipo da Ansa?, Tallio, não é? Que venha agora mesmo.

 

- Sim, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades. - Já ali está o senhor Lozano.

 

- Mande-o entrar e que ninguém nos interrompa - disse ele. Quando o ministro chegar, avise-o de que vou ao gabinete dele às três. Depois assino as cartas. É tudo, doutorzinho.

 

Alcibíades saiu e ele abriu a primeira gaveta da secretária. Tirou um frasquinho e contemplou-o um momento, contrariado. Extraiu um comprimido, humedeceu-o com saliva e engoliu-o.

 

- Há muito tempo que está no jornalismo senhor? - perguntou Santiago.

 

- Há quase trinta anos, imagine - os olhos do Sr. Vallejo extraviaram-se em profundezas temporais, um leve tremor lhe agitou a mão. - Comecei a transportar linguados da redacção para a tipografia. Bom, não me queixo. Isto é uma profissão ingrata, mas também dá as suas satisfações.

 

- A maior satisfação que lhe deram foi obrigá-lo a reformar-se disse Carlitos. - Sempre me espantou que um tipo como o Vallejo fosse jornalista. Era muito manso, muito cândido, muito correcto. Não era possível, tinha de acabar mal.

 

- Oficialmente, começará no dia um - o Sr. Vallejo olhou para o calendário Esso pregado na parede -, portanto, na próxima terça-feira. Se quiser ir-se pondo a par, pode dar uma volta pela redacção durante estas noites.

 

- Queres tu dizer que para se ser jornalista a primeira condição não é saber o que é o lead? - perguntou Santiago.

 

- Mas sim ser canalha, ou pelo menos saber aparentá-lo - assentiu jovialmente Carlitos. - Eu já não preciso de fazer esforços. Tu ainda um bocadinho, Zavalita.

 

- Quinhentos soles por mês não é grande coisa - disse o Sr. Vallejo. - Enquanto ganha calo. Depois aumentá-lo-ão.

 

Ao sair de La Crónica., cruzou-se no saguão com um homem de bigodinho milimétrico e gravata furta-cores, o titulador, o Hernández pensa, mas na Plaza San Martin já tinha esquecido a entrevista com Vallejo: tê-lo-ia procurado, deixado uma carta, estaria à espera dele. Não, ao entrar na pensão, a D. Lúcia limitou-se a dar-lhe as boas-tardes. Desceu ao escuro vestíbulo para telefonar ao tio Clodomiro.

 

- Felizmente correu bem, tio, começo no dia um. O senhor Vallejo foi muito amável.

 

- Óptimo, fico muito satisfeito com isso, magricela - disse o tio Clodomiro. - Já vejo que estás contente.

 

- Muito, tio. Agora já poderei pagar o que me emprestaste.

 

- Não há pressa nenhuma - o tio Clodomiro fez uma pausa. Podias telefonar aos teus pais, não te parece? Não te vão pedir que voltes para casa se não quiseres, já te disse. Mas não os deixes assim, sem notícias.

 

- Depois lhes telefono, tio. Prefiro que passem mais uns dias. Disseste-lhes que eu estou bem, não há razão para estarem preocupados.

 

- Falas sempre do teu pai e nunca da tua mãe - disse Carlitos.

- Não lhe deu nenhum fanico com a tua fuga?

 

- Deve ter chorado que nem uma Madalena, suponho, mas ela também não me foi procurar - disse Santiago. - Nem que ela fosse perder esse pretexto para se sentir uma mártir.

 

- Portanto ainda a odeias - disse Carlitos. - Julgava que já te tinha passado.

 

- Também eu julgava - disse Santiago. - Mas é como vês, de repente escapam-se-me as coisas e afinal não.

 

Que vida tão diferente que a D. Hortênsia levava! Que desordem, que costumes! Levantava-se tardíssimo. Amalia levava-lhe o pequeno-almoço às dez, juntamente com todos os jornais e revistas que encontrava no quiosque da esquina, mas depois de tomar o sumo, o café e as torradas, a senhora ficava na cama, a ler ou a remanchar, e nunca descia antes do meio-dia. Depois de Simula fazer as contas com ela, a senhora preparava a sua bebidazinha, o seu amendoinzinho ou as suas batatinhas, sentava-se na sala, punha discos e começavam os telefonemas. Para nada, porque sim, como os da Menina Teté às amigas: viste que a chilena vai trabalhar no Embassy, Quetita?, na Ultima Hora diziam que a Lulu tinha dez quilos a mais, Quetita, tinham topado a índia a namoriscar com um tocador de bongo, Quetita. Telefonava principalmente à Menina Queta, contava-lhe piadas fortes, dizia-lhe mal de toda a gente, e a menina também lhe devia contar e dizer mal. E que linguinha! Nos primeiros dias na casinha de San Miguel, Amalia julgava sonhar, é verdade que a Franga vai casar com aquele paneleiro, Quetita?, a conas da Paqueta está a ficar careca, Quetita: palavrões do piorio, a rirem-se como se nada fosse. Às vezes as obscenidades chegavam até à cozinha e Simula fechava a porta. Ao princípio Amalia ficava chocada, depois morria a rir e corria à copa para ouvir as mexeriquices que ela contava à Menina Queta ou à Menina Carmincha ou à Menina Lucy ou à D. Ivone. Quando se sentava a almoçar, a senhora já tinha tomado duas ou três bebidas e estava coradinha, com os olhos brilhantes de malícia, quase sempre de muito bom humor: tu ainda és virgem, mulatinha?, e Carlota aparvalhada, com a boca escancarada, sem saber o que responder; Amalia, tu não tens um amante?, credo, minha senhora, que ideia, e a senhora, rindo-se: se não tens um, deves ter dois, Amalia.

 

Que era que o lixava nele? A sua cara gordurenta, os seus olhinhos de porco, os seus sorrisos manteigueiros ? Lixava-o o seu cheiro a polícia, delações, a bordel, a sovaco, a gonorreias? Não, não era isso. Então o que era? Lozano tinha-se sentado numa das poltronas de couro e ordenava meticulosamente papéis e blocos em cima da mesinha. Ele agarrou num lápis, nos cigarros e sentou-se noutra poltrona.

 

- Como é que se tem portado o Ludovico? - sorriu Lozano. Está satisfeito com ele, D. Cayo?

 

- Tenho pouco tempo, Lozano - era a voz dele. - Seja o mais breve possível, se faz favor.

 

- Com certeza, D. Cayo.

 

- Construção Civil - acendeu um cigarro, viu as mãos rechonchudas escarvarem afanosamente nos papéis. - Como correram as eleições?

 

- A lista do Espinoza foi eleita por ampla maioria, sem qualquer incidente - disse Lozano, com um enorme sorriso. - O senador Parra assistiu à inauguração do novo sindicato. Ovacionaram-no, D. Cayo.

 

- Quantos votos teve a lista dos vermelhos?

 

- Vinte e quatro contra duzentos e picos - a mão de Lozano fez um gesto desdenhoso, a boca contorceu-se-lhe com asco. - Pff, uma coisa de nada.

 

- Espero que não tenha mandado prender todos os opositores do Espinoza.

 

- Só doze, D. Cayo, vermelhos e apristões com ficha. Tinham feito a campanha pela lista do Bravo. Não creio que sejam perigosos.

 

- Liberte-os aos poucos - disse ele. - Primeiro os vermelhos, depois os apristões. É preciso fomentar essa rivalidade.

 

- Sim, D. Cayo - disse Lozano; e uns segundos depois, orgulhoso: - Já deve ter visto os jornais. Que as eleições foram levadas a cabo da forma mais pacífica, que a lista apolítica se impôs democraticamente.

 

Nunca tinha trabalhado continuamente com eles, senhor. Só quando D. Cayo ia fazer alguma viagem e o emprestava ao Sr. Lozano. Que espécie de trabalhinhos, senhor? Bom, de tudo um pouco. O primeiro relacionava-se com os bairros de lata. Este é o Ludovico, tinha dito o Sr. Lozano, este é o Ambrosio, foi assim que se conheceram. Apertaram a mão, o Sr. Lozano explicou-lhes tudo, depois eles os dois tinham ido tomar uma bebida a uma casa de pasto da Avenida Bolívia. Haverá sarilho? Não, Ludovico pensava que seria fácil. Ambrosio era novo aqui, não? Estava cá por empréstimo, era motorista.

 

- Motorista do senhor Bermúdez? - tinha perguntado Ludovico, aparvalhado. - Deixa-me dar-te um abraço, deixa-me dar-te os parabéns.

 

Tinham simpatizado um com o outro, senhor, Ludovico tinha feito Ambrosio rir com as coisas do Hipólito, o outro do trio, o tal que era degenerado. Agora Ludovico era motorista de D. Cayo, senhor, e o Hipólito ajudante. Ao escurecer entraram na camioneta, com Ambrosio ao volante, e estacionaram longe do bairro de lata, porque havia um lamaçal. Continuaram à pata, enxotando as moscas, tropeçando, e perguntando encontraram a casa do tipo. Tinha vindo abrir uma gorda amestiçada que os olhou com desconfiança: podia-se falar com o Sr. Calancha? Tinha saído da escurdião: gorducho, sem sapatos, em camisa.

 

- Você é que é o chefão deste bairro? - tinha perguntado Ludovico.

 

- Já não há lugar para ninguém - o tipo tinha-os olhado compadecidamente, senhor. - Estamos cheios.

 

- Temos de falar consigo urgentemente - disse Ambrosio. Vamos dar uma voltinha enquanto conversamos?

 

O tipo tinha ficado a olhar para eles sem responder e por fim entrem, falariam mesmo aqui. Não, senhor, tem de ser a sós. Bom, como quisessem. Caminharam pelo terreiro. Ambrosio e Ludovico ao lado de Calancha.

 

- O senhor está-se a meter em sarilhos e viemos preveni-lo

- disse Ludovico. - Para seu bem.

 

- Não sei de que estás a falar - disse o tipo, com voz sumida. Ludovico puxou dos charutos, ofereceu-lhe um, acendeu-lho.

 

- Porque é que anda a aconselhar as pessoas a não irem à manifestação da Plaza de Armas em 27 de Outubro, senhor? - perguntou Ambrosio.

 

- Até anda a dizer mal do general Odría - disse Ludovico. Como é isso arranjado?

 

- Quem é que lhes contou essas calúnias? - como se o tivessem picado, senhor, e logo se pôs melífluo: - Os senhores são da polícia? Muito prazer.

 

- Se fôssemos, não te estávamos a tratar tão bem - disse Ludovico.

 

- A que propósito é que eu ia dizer mal do Governo, e ainda por cima do presidente? - protestava Calancha. - Se este bairro até se chama 27 de Octubre em homenagem a ele!

 

- Então porque é que anda a aconselhar as pessoas a não irem à manifestação, senhor? - perguntou Ambrosio.

 

- Tudo se sabe neste mundo - disse Ludovico. - A polícia anda a pensar que és um subversivo.

 

- Nunca por nunca, que mentira - um grande farsante, senhor -, deixem-me explicar-lhes tudo.

 

- Está bem, a falar é que a gente se entende - disse Ludovico. Tinha-lhes contado uma história de fazer chorar as pedras, senhor.

 

Muitos eram acabadinhos de chegar da serra e nem falavam espanhol, tinham-se instalado neste terrenozinho sem fazerem mal a ninguém, quando foi da revolução do Odría baptizaram-no 27 de Octubre para não se verem metidos com os chuis, estavam agradecidíssimos ao Odría por no-los ter tirado daqui. Estes tipos não eram como eles

 

- a passar-nos a mão pelo pêlo, senhor -, nem como ele, eram gente pobre e sem educação, tinham-no elegido presidente da Associação porque sabia ler e era da costa.

 

- E que tem isso a ver com o assunto? - perguntara Ludovico. - Queres-nos trabalhar o moral? Assim não vais lá, Calancha.

 

- Se nos metermos agora em política, os que vierem a seguir ao Odría largam-nos os chuis e põem-nos fora daqui - explicava Calancha. - Estão a ver?

 

- Essa de o Odría se ir embora cheira-me a coisa subversiva - disse Ludovico. - A ti não, Ambrosio?

 

O tipo deu um salto e caiu-lhe a ponta do charuto da boca. Agachou-se para a apanhar e Ambrosio deixe lá, fume outro inteiro.

 

- Não é que eu o queira, por mim que lá fique sempre - a beijar os dedos, senhor. - Mas o Odría podia morrer e ir para lá um inimigo e dizer aqueles do 27 de Octubre iam às manifestações dele. E atiravam-nos aos chuis, senhor.

 

- Deixa lá o futuro e pensa no que te convém - disse Ludovico.

 

- Prepara bem a tua gente para o 27 de Outubro.

 

Deu-lhe uma palmadinha no ombro, agarrou-o pelo braço como a um amigo: isto era uma conversa às boas, Calancha. Sim, senhor, claro, senhor.

 

- As camionetas virão buscá-los às seis - disse Ludovico. Que vão todos, velhos, crianças, mulheres. As camionetas vêm depois trazê-los. Depois podes organizar uma festança, se quiseres. Haverá bebidas de graça. Combinado, Calancha?

 

Com certeza, claro que sim, e Ludovico estendeu-lhe um par de libras: pelo incómodo de te termos interrompido a digestão, Calancha. Depois desfazia-se em agradecimentos, senhor.

 

A Menina Queta vinha quase sempre depois do almoço, era a sua amiga mais íntima, também bonita, mas nada que chegasse à D. Hortênsia. Calças, blusinhas decotadas e apertadinhas, turbantes de cor. Às vezes a senhora e a Menina Queta saíam no carrinho branco da menina e voltavam à noite. Quando ficavam em casa, passavam a tarde ao telefone e eram sempre os mesmos mexericos e maledicências. Toda a casinha se deixava contagiar pelas asneiras da senhora e da menina, as suas risadas chegavam até à cozinha e Amalia e Carlota corriam à copa para ouvirem as partidas que elas faziam. Falavam com um pano a tapar a boca, arrancavam o telefone uma à outra, mudavam de voz. Se lhes respondia um homem: és muito bom rapaz e agradas-me, estou apaixonada por ti, mas nem sequer olhas para mim, queres vir a minha casa esta noite?, sou uma amiga da tua mulher. Se fosse mulher: o teu marido engana-te com a tua irmã, o teu marido está doido por mim, mas não te assustes, não to roubo porque ele tem muitas espinhas nas costas, o teu marido vai-te pôr os cornos às cinco em Los Clavelps, bem sabes com quem. Ao princípio Amalia ficava com um gostinho amargo na boca ao ouvi-las, mais tarde divertia-se à grande. Todas as amigas da senhora são artistas, disse-lhe Carlota, trabalhavam na rádio, em cabarés. Todas eram elegantes, a Menina Lucy, atrevidas, a Menina Carmincha, saltos altíssimos, a senhora a quem chamavam a índia era uma das Binbanbún. E outro dia, baixando a voz, queres que te conte um segredo? A senhora também tinha sido artista, Carlota tinha encontrado no quarto dela um álbum com fotografias em que ela aparecia elegantíssima e com tudo à mostra. Amalia rebuscou a mesa-de-cabeceira, o guarda-vestidos, o toucador, mas não deu com o álbum. Mas com certeza era verdade, que à senhora não lhe faltava nada para ter sido artista, até tinha uma linda voz. Ouviam-na cantar no banho, quando a viam de muito bom humor, pediam-lhe, minha senhora, cante lá o Caminito ou Noche de amor ou Rosas rojas para ti e ela fazia-lhes a vontade. Nas festarolas, nunca se fazia rogada quando lhe pediam para cantar. Corria a pôr um disco, pegava num copo ou num bonequinho do aparador para imitar um microfone e punha-se no meio da sala e cantava, os convidados aplaudiam-na com toda a força. Estás a ver como ela foi artista?, sussurrava Carlota a Amalia.

 

- Têxteis - disse ele. - Ontem apareceu a discussão das cláusulas dos reclamos. Esta noite os patrões foram dizer ao ministro do Trabalho que há ameaça de greve, que tudo isto tem um fundo político.

 

- Perdão, D. Cayo, nem coisa que se pareça - disse Lozano. - O senhor sabe, têxteis, foco aprista desde sempre. De maneira que se fez lá uma limpeza em regra. O sindicato é de inteira confiança. O Pereira, o secretário-geral, o senhor conhece, sempre cooperou.

 

- Fale com o Pereira hoje mesmo - interrompeu-o ele. - Diga-Lhe que a ameaça de greve vai ficar em ameaça, as coisas agora não estão para greves. Que acatem a mediação do Ministério.

 

- Aqui está tudo explicado, D. Cayo, com licença. - Lozano inclinou-se, tirou velozmente uma folhinha do monte de papéis da mesa. - É uma ameaça, nada mais. Uma medida política, não para assustar os patrões, mas sim para que o sindicato recupere prestígio junto das bases. Há muita resistência contra a direcção actual, isto vai fazer que os operários voltem a...

 

- O aumento que o Ministério propõe é justo - disse ele. O Pereira que convença a gente dele, a discussão das cláusulas dos reclamos tem de acabar. Está-se a criar uma situação tensa, e as tensões favorecem a agitação.

 

- O Pereira pensa que, se o Ministério do Trabalho aceitasse, pelo menos, a segunda cláusula, ele poderia...

 

- Explique ao Pereira que é pago para obedecer, e não para pensar - disse ele. - Pusemo-lo lá para facilitar as coisas, não foi para as complicar pensando. O Ministério conseguiu algumas concessões dos patrões, agora o sindicato deve aceitar a mediação. Diga ao Pereira que este assunto tem de ficar arrumado em quarenta e oito horas.

 

- Sim, D. Cayo - disse Lozano. - Perfeitamente, D. Cayo.

 

Mas dois dias depois o Sr. Lozano estava furioso, senhor: o cagarola do Calancha não tinha ido à reunião da direcção e agora não há maneira de aparecer, faltavam três dias para o dia 27 e se o bairro não vai em peso a Plaza de Armas não se enchia. O homem é o Calancha, era preciso amansá-lo seja lá como for, ofereçam-lhe até quinhentos soles. Quer dizer que nos tinha enganado, senhor, saiu-nos uma mosquinha-morta hipócrita. Meteram-se na camioneta, chegaram a casa dele e não bateram à porta. Ludovico tinha deitado o zinco abaixo com uma palmada: lá dentro havia uma vela pendurada. Calancha e a indiazeca estavam a comer, e em volta algumas dez crianças a chorar.

 

- Saia, senhor - disse Ambrosio -, temos de conversar.

 

A indiazeca tinha pegado num pau e Ludovico pôs-se a rir. Calancha insultou-a, arrancou-lhe o pau, desculpem-na, não façam caso, um fiteiro incrível, senhor, tinha-se surpreendido por eles entrarem sem bater. Saiu com eles e nessa noite só levava umas calças e tresandava a álcool. Mal se afastaram da casa, Ludovico pregou-lhe uma bofetada à meia-volta, e Ambrosio outra, nenhuma delas com muita força, para lhe baixar o moral. Que alarido que ele tinha feito, senhor: atirou-se para o chão, não me matem, devia haver qualquer mal-entendido.

 

- Filho dum comboio de pegas - disse Ludovico. - Eu já te dou o mal-entendido.

 

- Porque é que não fez o que prometeu, senhor? - perguntou Ambrosio.

 

- Porque é que não foste à reunião da direcção quando o Hipólito veio combinar as camionetas? - perguntou Ludovico.

 

- Olhe para a minha cara, olhem para ela, não está pálida?

 

- chorava Calancha. - De vez em quando dão-me uns ataques que me deitam abaixo, estive de cama. Amanhã vou à reunião, tudo se há-de arranjar.

 

- Se os tipos de cá não forem à manifestação, a culpa é sua

 

- disse Ambrosio.

 

- E nessa altura vais para a prisão - disse Ludovico. - E para os presos políticos, ai minha mãezinha.

 

Ele dava-lhes a palavra de honra, jurava pela mãe, e Ludovico pregou-lhe outra e Ambrosio outra, desta vez com um bocadinho mais de força.

 

- Hás-de julgar que são balelas, mas olha que estas bofetadas são para teu bem - disse Ludovico. - Não vês que não queremos que vás parar à prisão, Calancha?

 

- Esta é a tua última oportunidade, homem - tinha dito Ambrosio.

 

Palavra, pela mãe dele, jurava-nos, senhor, não me batam mais.

 

- Se todos os serranos forem à Plaza e a coisa sair bem, há trezentos soles para ti, Calancha - disse Ludovico. - Entre trezentos soles e seres preso, tu verás o que te convém.

 

- Era só o que faltava, não quero dinheiro - a lata do tipo, senhor. - Eu faço-o unicamente pelo general Odría.

 

Deixaram-no assim, a jurar e prometer. Este cagarola teria palavra, Ambrosio? Tinha, senhor: no dia seguinte, o Hipólito foi-lhes levar as bandeirinhas e Calancha tinha-o recebido à frente da direcção, e Hipólito viu que ele obrigava a sua gente a comprometer-se e cooperava que era uma maravilha.

 

A senhora era mais alta que Amalia, mais baixa que a Menina Queta, tinha cabelos negros, uma pele como se nunca tivesse apanhado sol, olhos verdes e uns lábios rosados que os dentes certinhos andavam sempre a morder de uma maneira provocante como tudo. Que idade teria? Mais de trinta dizia Carlota, Amalia pensava que vinte e cinco. Da cintura para cima, tinha um corpo assim-assim, mas, para baixo, que curvas! Ombros atirados para trás, seis erectos, uma cintura de menina. Mas as ancas eram um coração, largas, largas, e iam diminuindo, diminuindo, e as pernas iam adelgaçando suavemente, tornozelos finos e pés como os da Menina Teté. Mãos também pequeninas, unhas compridíssimas sempre pintadas da cor dos lábios. Quando estava de calças e blusa, desenhava-se-lhe tudo, os decotes dos seus vestidos elegantes deixavam a descoberto os ombros, metade das costas e metade dos seios. Sentava-se, cruzava as pernas, a saia subia acima do joelho, e da copa, alvoroçadas como galinhas, Carlota e Amalia comentavam a maneira como os olhos dos convidados iam atrás das pernas e dos decotes da senhora. Velhos, de cabelos brancos, gordos, inventavam mil e uma coisas, levantar do chão o copo do uísque, agacharem-se para sacudir a cinza, para aproximarem os olhos e olharem. Ela não se aborrecia, até os provocava sentando-se assim, estendendo-lhes assim os amendoinzinhos. O senhor não é ciumento, pois não?, perguntava Amalia a Carlota, qualquer outro ficaria furioso se tomassem aquelas liberdades com a mulher. E Carlota: porque é que ele há-de ser ciumento dela?, se ela era só sua amante. Era tão estranho, o senhor seria feio e velho, mas não parecia ter nada de parvo, e no entanto ficava todo tranquilo quando os convidados, já alegretes, começavam a tomar liberdades com a senhora fingindo que estavam a brincar. Por exemplo, estavam a dançar e davam-lhe o seu beijito no pescoço ou faziam-lhe festas nas costas e apertavam-na cá duma maneira! A senhora dava a sua gargalhadinha, dava uma bofetada de brincadeira ao atrevido, empurrava-o de brincadeira contra uma poltrona, ou continuava a dançar como se nada fosse, deixando-o passar das marcas. D. Cayo nunca dançava. Sentado numa poltrona, com o copo na mão, conversava com os convidados, ou contemplava com a sua cara insípida as brincadeiras e coqueterias da senhora. Um senhor corado gritou um dia empresta-me a sua sereia para um fim-de-semana em Paracas, D. Cayo?, e o senhor ofereço-lha, general, e a senhora pronto, leva-me para Paracas, sou tua. Carlota e Amalia morriam a rir ouvindo estas graças, vendo destes descaramentos, mas Simula não as deixava espiar por muito tempo, vinha à copa e fechava a porta, ou então aparecia a senhora, de olhos brilhantes, faces vermelhas, e mandava-as deitar. Da cama, Amalia ouvia a música, as gargalhadas, barulho de copos, e ficava encolhida debaixo do cobertor, acordada, desassossegada, rindo-se sozinha. Na manhã seguinte, ela e Carlota tinham de trabalhar o triplo. Montanhas de beatas e de garrafas, móveis encostados às paredes, copos partidos. Limpavam, guardavam, arrumavam para que a senhora ao descer não começasse ai que sujeira, ai que porcaria. O senhor passava lá a noite quando havia festa. Saía cedinho. Amalia via-o, pálido e olheirento, atravessar rapidamente o jardim, acordar os dois tipos que tinham passado a noite no carro à espera dele, quanto é que ele lhes pagaria para os fazer perder noites daquela maneira?, e, logo que o automóvel partia, iam-se também embora os guardas da esquina. Nesses dias, a senhora levantava-se tardíssimo. Simula tinha já preparada uma travessa de conquilhas com molho de cebola e muitos pimentos e um corpo de cerveja gelada. Aparecia de roupão, com os olhos inchados e vermelhos, almoçava e voltava para a cama, e à tarde estava sempre a tocar a campainha para Amalia lhe levar água mineral, alka-seltzers, lá acima.

 

- Olave - disse ele, expelindo uma baforada de fumo. - O pessoal que mandou a Chiclayo voltou?

 

- Esta manhã, D. Cayo - assentiu Lozano. - Tudo resolvido. Isto aqui é uma informação do prefeito, isto uma cópia da participação da polícia. Os três cabecilhas estão presos em Chiclayo.

 

- Apristas? - deitou outra baforada e viu que Lozano continha um espirro.

 

- Só um tal Lanza, dirigente aprista velho. Os outros dois são novos, sem antecedentes.

 

- Traga-os a Lima e que confessem os seus pecados mortais e veniais. Uma greve como a do Olave não se organiza assim sem mais nem menos. Foi preparada com tempo e por profissionais. Já reataram o trabalho na fazenda?

 

- Esta manhã, D. Cayo - disse Lozano. - Comunicou-mo o prefeito pelo telefone. Deixámos um pequeno contingente no Olave por uns dias, embora o comissário assegure...

 

- San Marcos - Lozano fechou a boca e as suas mãos precipitaram-se para a mesa, apanharam três, quatro folhinhas e estenderam-lhas. Pô-las no braço da poltrona, sem olhar para elas.

 

- Nada esta semana, D. Cayo. Os grupinhos reúnem-se, os apristas mais desorganizados que nunca, os vermelhos um bocadinho mais activos. Ah, é verdade, identificámos um novo grupo trotskista. Reuniões, conversas, nada. Para a semana há eleições em Medicina. A lista aprista pode ganhar.

 

- As outras universidades - soprou o fumo e desta vez Lozano espirrou.

 

- A mesma coisa, D. Cayo, reuniões dos grupinhos, bulhas entre eles, nada. Ah, é verdade, a informação na Universidade de Trujillo finalmente está a trabalhar bem. Cá está, memorando número três. Temos lá dois elementos que...

 

- Só memorandos? - perguntou ele. - Esta semana não há panfletos, folhetos, revistecas tiradas ao copiador?

 

- Claro que há, D. Cayo - Lozano levantou a pasta, correu o fecho, tirou de lá um grosso envelope com ar de triunfo. - Panfletos, folhetos, até os comunicados à máquina dos Centros Federados. Tudo, D. Cayo.

 

- Viagem do presidente - disse ele. - Falou para Cajamarca?

 

- Começaram já todos os preparativos - disse Lozano. - Vou lá na segunda-feira e na quarta de manhã dou-lhe uma informação pormenorizada, de modo que, na quinta-feira, possa o senhor ir dar uma olhadela ao dispositivo de segurança. Se achar bem, D. Cayo.

 

- Decidi que os seus homens vão para Cajamarca por terra. Partem na quinta-feira, de autocarro, para lá estarem na sexta. Não vá o avião cair e não haver tempo para os substituir.

 

- Com as estradas da serra não sei o que será mais perigoso, se o autocarro, se o avião - gracejou Lozano, mas ele não sorriu e Lozano pôs-se imediatamente sério: - Muito bem pensado, D. Cayo.

 

- Deixe-me esses papéis todos - pôs-se de pé e Lozano imitou-o instantaneamente. - Devolvo-lhos amanhã.

 

- Então não lhe tiro mais tempo, D. Cayo. - Lozano seguiu até à secretária, com a sua enorme pasta debaixo do braço.

 

- Um momento, Lozano. - Acendeu outro cigarro, chupou-o, fechando ligeiramente os olhos. - Não saque mais dinheiro à velha Ivonne.

 

- Perdão, D. Cayo? - viu-o pestanejar, ficar confundido, empalidecer.

 

- Não me importo que saque uns soles às meninas mal comportadas de Lima - disse ele, amavelmente, sorrindo. - Mas à Ivonne deixe-a em paz, e, se alguma vez tiver algum problema, facilite-lhe as coisas. É boa pessoa, compreende?

 

A cara gorda tinha-se enchido de suor, os olhinhos de porco tentavam angustiosamente sorrir. Abriu-lhe a porta, deu-lhe uma palmadinha no ombro, até amanhã, Lozano, e voltou à secretária. Levantou o telefone: ligue-me ao senador Landa, doutorzinho. Pegou nos papéis que Lozano lhe tinha deixado, guardou-os na pasta. Um momento depois, o telefone tocou.

 

- Está, D. Cayo? - a voz jovial de Landa. - Ia precisamente telefonar-lhe neste momento.

 

- Como vê, senador, a transmissão de pensamento existe - disse ele. - Tenho uma boa notícia para si.

 

- Já sei, já sei, D. Cayo - que contente que tu estás, filho da puta. - Já sei, recomeçou esta manhã o trabalho no Olave. Não sabe como lhe agradeço que se tenha interessado por este assunto.

 

- Apanhámos os cabecilhas - disse ele. - Esses sujeitos não voltarão a causar problemas por uns tempos.

 

- Se a colheita se atrasasse, era uma catástrofe para todo o departamento - disse o senador Landa. - Anda muito ocupado, D. Cayo? Não tem nenhum compromisso para esta noite?

 

- Venha jantar a San Miguel - disse ele. - As suas admiradoras estão sempre a perguntar por si.

 

- Com muito prazer, por volta das nove, está bem? - o risinho de Landa. - Perfeito, D. Cayo. Então um abraço.

 

Desligou e marcou um número. Dois, três toques, só a seguir ao quarto uma voz sonolenta: sim, está?

 

- Convidei o Landa para esta noite - disse ele. - Telefona também à Queta. E ela que diga à Ivonne que não lhe vão sacar mais dinheiro. Pronto, continua a dormir.

 

Na manhãzinha de 27 tinham ido com Hipólito e Ludovico buscar os autocarros e camiões, estou preocupado dizia Ludovico mas Hipólito não há-de haver problema. De longe viram a gente do bairro de lata amontoada, à espera, tantos que tapavam os casebres, senhor. Queimavam porcarias, esvoaçavam cinzas e auras. Veio recebê-los a direcção. Calancha tinha-os cumprimentado todo melífluo, que lhes dizia eu? Apertou-lhes a mão, apresentou-os aos outros, tiravam os chapéus, abraçavam-nos. Tinham colado retratos de Odría nos telhados e nas portas, todos tinham as suas bandeirinhas, Viva a Revolução Restauradora, diziam os cartazes, Viva Odría, Os Bairros de Lata com Odría, Saúde Educação Trabalho. As pessoas olhavam-nos e as crianças agarravam-se-lhes às pernas.

 

- Vejam lá não se ponham com essas caras de enterro na Plaza de Armas - dissera Ludovico.

 

- Alegrar-se-ão a seu devido tempo - tinha dito Calancha, com um ar muito entendido, senhor.

 

Meteram-nos nos autocarros e camiões, havia de tudo, mas predominavam as mulheres e os serranos, tiveram de fazer várias viagens. A Plaza estava quase cheia com os espontâneos e a gente de outros bairros de lata e das herdades. Da catedral via-se um mar de cabeças, os cartazes e retratos e bandeiras a flutuarem por cima. Levaram a gente do bairro para onde o Sr. Lozano tinha dito. Havia senhoras e senhores às janelas da Câmara, das lojas, do Club de Ia Union, se calhar até D. Fermín lá estava, não, senhor?, e de repente Ambrosio olhem, um dos que estão naquela varanda é o Sr. Bermúdez. Os peixes maricas atiram-se uns aos outros, ria-se Hipóhto apontando para o lago, e Ludovico cada um fala do que conhece, paneleirão: estavam sempre a meter-se assim com Hipólito e ele nunca se zangava, senhor. Começaram a entusiasmar as pessoas, a fazê-las dar vivas e a fazerem claque. Riam-se, mexam a cabeça, animem-se, dizia Ludovico, Hipólito andava como um rato de um grupo para outro, mais alegria, mais barulho. Chegaram as bandas de música, tocaram valsas e marineras, por fim abriu-se a varanda do Palácio e apareceu o presidente e muitos senhores e militares, e as pessoas começaram a alegrar-se. Depois, quando Odría falou da Revolução, do Peru, animaram bastante. Davam vivas por sua conta, ao terminar o discurso aplaudiram-no imenso. Tinha ou não tinha palavra?, tinha-lhes perguntado Calancha, ao anoitecer, no bairro. Deram-lhe .os trezentos soles e deu-lhe para insistir em que tomassem umas bebidas juntos. Tinham distribuído bebidas e cigarros, muitos estavam bêbedos. Tomaram uns piscos com Calancha e depois Ludovico e Ambrosio tinham-se escapado, deixando Hipólito no bairro.

 

- O senhor Bermúdez estará satisfeito, Ambrosio?

 

- Claro que há-de estar, Ludovico.

 

- Não poderias dar um jeito para eu ir trabalhar contigo no automóvel, em vez do Hinostroza?

 

- Tratar de D. Cayo é o mais pesado que há, Ludovico. O Hinostroza anda meio idiota de tanta noite mal dormida.

 

- Mas são mais quinhentos soles, Ambrosio. E além disso, se calhar assim, metem-me no quadro. E, além disso, estaríamos juntos, Ambrosio.

 

Então Ambrosio tinha falado com D. Cayo, senhor, para meter o Ludovico em vez do Hinostroza, e D. Cayo tinha rido: agora até tu tens os teus afilhados, negío.

 

Foi no dia a seguir a uma festarola que Amalia teve a grande surpresa. Tinha sentido o senhor descer as escadas, ido à sala, visto por entre as persianas o carro partir e os polícias da esquina irem-se embora. Então subiu ao primeiro andar, bateu à porta ao de leve, podia ir buscar a enceradora, minha senhora?, e abriu e entrou em pontas dos pés. Lá estava, ao pé do toucador. A pouca luz da janela clareava as patinhas de crocodilo, o biombo, o guarda-vestidos, o resto estava às escuras e flutuava um vapor morno. Não olhou para a cama enquanto se dirigia ao toucador, mas sim quando voltava com a enceradora. Ficou gelada: estava lá também a Menina Queta. Parte dos lençóis e do cobertor tinham deslizado até à alcatifa, a menina dormia voltada para ela, com uma mão sobre a anca, a outra pendente, e estava nua em pêlo. Agora via também, sobre as costas morenas da menina, um ombro branco, um braço branco, os cabelos pretíssimos da senhora, que dormia virada para o outro lado, ela tapada com os lençóis. Continuou o seu caminho, o chão parecia coberto de agulhas, mas, antes de sair, uma invencível curiosidade obrigou-a a olhar: uma sombra clara, uma sombra escura, as duas tão quietas, mas qualquer coisa estranha e como que perigosa saía da cama e viu o dragão desconjuntado no espelho do tecto. Ouviu uma das duas murmurar qualquer coisa em sonhos e assustou-se. Fechou a porta, respirando apressadamente. Na escada desatou a rir, chegou à cozinha a tapar a boca, sufocada. Carlota, Carlota, a menina está lá em cima na cama com a senhora, e baixou a voz e olhou para o pátio, as duas sem nada, as duas em pêlo. Bah, a Menina Queta passava sempre a noite lá, e de repente Carlota deixou de bocejar e também baixou a voz, as duas sem nada, as duas em pêlo? Passaram toda a manhã, à medida que endireitavam os quadros, mudavam a água dos jarrões e sacudiam a alcatifa, às cotoveladas uma à outra, o senhor teria dormido no sofá, no escritório?, sufocadas de riso, debaixo da cama?, e de repente a uma enchiam-se os olhos de lágrimas e a outra dava-lhe palmadas nas costas, que aconteceria, o que é que elas fariam, como seria? Os olhos de Carlota pareciam moscardos, Amalia mordia a mão para conter as gargalhadas. Foi assim que Simula as encontrou ao voltar das compras, que é que tinham?, nada, tinham ouvido no rádio uma piada engraçadíssima. A senhora e a menina desceram ao meio-dia, comeram conquilhas com pimentos, beberam cerveja gelada. A menina tinha posto um roupão da senhora que lhe ficava curtíssimo. Não fizeram chamadas, estiveram a ouvir discos e a conversar, a menina saiu ao entardecer.

 

Estava ali o Sr. Tallio, D. Cayo, mandava-o entrar? Sim, doutorzinho. Um momento depois, a porta abriu-se: reconheceu as suas melenas louras, a sua cara imberbe e rosada, o seu andar elástico. Cantor de ópera, pensou, macarroni, eunuco.

 

- Muito prazer em vê-lo, senhor Bermúdez - vinha com a mão estendida e sorria, vamos a ver quanto tempo é que te dura essa alegria. - Espero que se lembre de mim, o ano passado tive...

 

- Claro, conversámos aqui mesmo, não foi? - conduziu-o à poltrona que Lozano tinha ocupado, sentou-se defronte dele. - Fuma?

 

Aceitou, apressou-se a puxar do isqueiro, fazia vénias.

 

- Estava a pensar em fazer-lhe uma visita um dia destes, Sr. Bermúdez - gesticulava, mexia-se na cadeira como se tivesse bichos. Como vê, foi como se...

 

- Me tivesse transmitido o pensamento - disse ele. Sorriu e viu Tallio anuir e abrir a boca, mas não lhe deu tempo para falar: estendeu-lhe o punhado de recortes. Um gesto exagerado de surpresa, folheava-os muito sério, assentia. Isso, muito bem, lê-os, faz de conta que os lês, italianote.

 

- Ah sim, já vi, sarilhos em Buenos Aires, não? - disse por fim, já sem gesticular, sem se mexer. - Há algum comunicado do Governo sobre este assunto? Publicá-lo-emos imediatamente é claro.

 

- Todos os jornais publicaram a notícia da Ansa, o senhor deixou atrás as outras agências - disse ele. - Ganhou uma boa primeira mão.

 

Sorriu e viu Tallio sorrir, já sem felicidade, já só por educação, eunuco, as faces ainda mais rosadas, ofereço-te ao Robertito.

 

- Nós pensávamos que era melhor não mandar essa notícia para os jornais - disse ele. - Já é lamentável que os apristas apedrejem a embaixada do seu próprio país. Para quê publicar isso aqui?

 

- Bom, a verdade é que me surpreendeu que só tivessem publicado o telegrama da Ansa - encolhia os ombros, levantava o indicador.

- Incluímo-lo nos nossos boletins porque não recebi nenhuma indicação a esse respeito. A notícia passou pelo Serviço de Informação, senhor Bermúdez. Espero que não tenha havido nenhum engano.

 

- Todas as agências o suprimiram, menos a Ansa - disse ele, entristecido. - Apesar das relações cordiais que temos consigo, senhor Tallio.

 

- A notícia passou por aqui, com todas as outras, senhor Bermúdez - já corado, já deveras surpreendido, já sem poses. - Não recebi qualquer indicação, qualquer nota. Peco-lhe que chame o doutor Alcibíades, quero que isto se esclareça imediatamente.

 

- O Serviço de Informação não dá vistos bons nem maus - apagou o cigarro, acendeu calmamente outro. - Só acusa a recepção dos boletins que lhe são enviados, senhor Tallio.

 

- Mas se o doutor Alcibíades mo tivesse pedido, eu teria suprimido a notícia, sempre o tenho feito - ansioso agora, impaciente, perplexo. - A Ansa não tem o menor interesse em difundir coisas que incomodem o Governo. Mas não somos bruxos, senhor Bermúdez.

 

- Nós não damos instruções - disse ele, interessado nas figuras que o fumo desenhava, nos borbotes da gravata de Tallio. - Limitamo-nos a sugerir, de maneira amigável e muito raramente, que não se propaguem notícias ingratas para o país.

 

- Pois com certeza, pois claro, eu bem sei, senhor Bermúdez já to pus em ponto de rebuçado, Robertito. - Tenho sempre seguido à risca as sugestões do doutor Alcibíades. Mas desta vez não houve qualquer indicação, qualquer sugestão. Peco-lhe que...

 

- O Governo não quis estabelecer uma censura oficial para não prejudicar as agências, precisamente - disse ele.

 

- Se não chama o doutor Alcibíades, nunca mais isto se esclarece, senhor Bermúdez - a tua latinha de vaselina e vamos a isso, Robertito. - Ele que lhe explique, que me explique a mim. Por favor, senhor. Não percebo nada disto, senhor Bermúdez.

 

- Deixa-me pedir eu - disse Carlitos; e ao criado: - Duas cervejas alemãs, dessas de lata.

 

Tinha-se recostado contra a parede atapetada de capas do The New Yorker. O reflector iluminava a sua cabeça crespa, os seus olhos desorbitados, a sua cara escurecida por uma barba de dois dias, o seu nariz avermelhado, de borrachola, pensa, de engripado.

 

- Essa cerveja é cara? - perguntou Santiago. - Ando um bocado apertado de massas.

 

- Eu pago, consegui arrancar um vale àqueles cabrões - disse Carlitos. - Por vires aqui comigo, esta noite morreu a tua fama de menino sossegado, Zavalita.

 

As capas eram brilhantes, irónicas, multicores. A maior parte das mesas estava vazia, mas, do outro lado do gradeamento que separava os dois ambientes do local, vinham murmúrios; no bar, um homem em mangas de camisa bebia uma cerveja. Alguém, oculto na escuridão, tocava piano.

 

- Tenho aqui deixado ordenados inteiros - disse Carlitos. Sinto-me bem neste antro.

 

- Eu é a primeira vez que venho ao Negro-Negro - disse Santiago. - Vêm aqui muitos pintores e escritores, não?

 

- Pintores e escritores náufragos - disse Carlitos. - Quando eu era um fura-vidas, entrava aqui como as beatas nas igrejas. Daquele canto, espiava, escutava, quando reconhecia um escritor, crescia-me o coração. Queria estar perto dos génios, queria que eles me contagiassem.

 

- Já sabia que também és escritor - disse Santiago. - Que publicaste poemas.

 

- Ia ser escritor, ia publicar poemas - disse Carlitos. - Entrei para a Crónica e mudei de vocação.

 

- Preferes o jornalismo à literatura? - perguntou Santiago.

 

- Prefiro a bebida - riu-se Carlitos. - O jornalismo não é uma vocação, e sim uma frustração, já deves ter dado por isso.

 

Encolheu-se, desenhos e caricaturas e títulos em inglês onde tinha estado a sua cabeça, e lá estavam a careta que lhe retorcia a cara, Zavalita, as suas mãos crispadas. Tocou-lhe no braço: sentia-se mal? Carlitos endireitou-se, encostou a cabeça à parede.

 

- Se calhar, é outra vez a úlcera - agora tinha um homem-corvo numa orelha, e na outra um arranha-céus. - Se calhar, é falta de álcool. Porque embora te pareça bêbedo, não bebi durante todo o dia.

 

O único que te resta e no hospital, com os diabos azuis, Zavalita. Irias vê-lo amanhã sem falta, Carlitos, levar-lhe-ias um livro.

 

- Estava aqui e sentia-me em Paris - disse Carlitos. - Pensava qualquer dia chego a Paris, e bum, génio como por artes mágicas. Mas não cheguei, Zavalita, e aqui me tens, às voltas com as dores de parto. Que é que tu ias ser quando vieste naufragar à Crónica?

 

- Advogado - disse Santiago. - Não, melhor, revolucionário. Comunista.

 

- Comunista e jornalista pelo menos rimam; em compensação, poeta e jornalista - disse Carlitos, e desatando a rir: - Comunista? A mim despediram-me de um emprego acusando-me de comunista. Se não fosse isso, não tinha entrado para o jornal e, se calhar, estava agora a escrever poemas.

 

- Não sabes o que são os diabos azuis? - pergunta Santiago. Quando não queres saber uma coisa não há quem te ganhe, Ambrosio.

 

- Por que caralho é que eu havia de ser comunista - disse Carlitos. - Isso é o que tem mais piada, a verdade é que nunca soube porque é que me despediram. Mas lixaram-me, e aqui me tens, bêbedo e com úlceras. À tua saúde, menino sossegado, à tua saúde, Zavalita.

 

A Menina Queta era a melhor amiga da senhora, a que vinha mais à casinha de San Miguel, a que nunca faltava às festas. Alta, de pernas compridas, cabelos vermelhos, pintados dizia Carlota, pele cor de canela, um corpo mais atraente que o da D. Hortênsia, como os seus vestidos e a sua maneira de falar e os seus disparates quando bebia. Era a que fazia mais barulho nas festas, uma atrevida a dançar, ela é que sim, que deixava os convidados abusarem à vontade, não parava de os provocar. Aproximava-se deles pelas costas, despenteava-os, puxava-lhes as orelhas, sentava-se-lhes nos joelhos, uma descarada. Mas era quem animava a noite com as suas tolices. A primeira vez que viu Amalia ficou a olhar para ela com um sorriso estranhíssimo, e examinava-a e fitava-a e ficava a pensar e Amalia que é que lhe deu, que tenho eu de especial? Com que então tu é que és a famosa Amalia, até que enfim que te conheço. Famosa porquê, menina? A que rouba corações, a que destrói os homens, ria-se a Menina Queta, Amalia a disputada. Doidíssima, mas tão simpática! Quando não estava a pregar partidas pelo telefone com a senhora, contava mexericos. Entrava com uma alegria perversa nos olhos, tenho uma data de novidades para te contar, filha, e da cozinha Amalia ouvia-a a cortar na casaca, a contar mexericos, a divertir-se à custa de toda a gente. Também ela tinha umas brincadeiras com Carlota e Amalia que as deixavam mudas e com a cara a escaldar. Mas era uma óptima pessoa, sempre que as mandava à mercearia comprar alguma coisa, dava-lhes um ou dois soles. Um dia de saída mandou Amalia entrar no seu carrinho branco e levou-a até à paragem.

 

- O Alcibíades em pessoa telefonou para o seu gabinete a pedir para essa notícia não ser mandada para os jornais - suspirou ele; sorriu levemente. - Não o teria maçado se não tivesse feito já uma investigação, senhor Tallio.

 

- Mas, não pode ser - a cara rubicunda arrasada pela desorientação, a língua subitamente presa. - Para o meu gabinete, senhor Bermúdez? Mas se a secretária me dá todos os... o doutor Alcibíades em pessoa? Não percebo como...

 

- Não lhe deram o recado? - ajudou-o ele, sem ironia. - Bom, já calculava que fosse qualquer coisa desse género. O Alcibíades falou com um dos redactores, parece-me.

 

- Dos redactores? - nem sombra do aprumo risonho, da exuberância de há pouco. - Mas não pode ser, senhor Bermúdez. Estou consternadíssimo, lamento imenso. Sabe com qual dos redactores, senhor? Só tenho dois e, bom, enfim, asseguro-lhe que isto não se repetirá.

 

- Eu estava surpreendido porque nós sempre nos portámos bem com a Ansa - disse ele. - A Rádio Nacional e o Serviço de Informação compram-lhe os boletins completos. Isso custa dinheiro ao Governo, como o senhor sabe.

 

- Com certeza, senhor Bermúdez - isso, agora indigna-te e faz o teu número, cantor de ópera. - Dá-me licença que use o seu telefone? Vou já averiguar quem é que recebeu a comunicação do doutor Alcibíades. Isto vai-se esclarecer agora mesmo, senhor Bermúdez.

 

- Sente-se, não se preocupe - sorriu-lhe, ofereceu-lhe um cigarro, acendeu-lho. - Temos inimigos por todos os lados, no seu gabinete deve haver alguém que não gosta de nós. Depois investigará, senhor Tallio.

 

- Mas aqueles dois redactores são uns rapazes que - mortificado, com uma expressão tragicómica -, enfim, hoje mesmo vou esclarecer isto. Vou pedir ao doutor Alcibíades que, de hoje para o futuro, comunique sempre comigo próprio.

 

- Sim, é o melhor - disse ele; reflectiu, observando como por acaso os recortes que dançavam nas mãos de Tallio. - O que é lamentável é que me criou um pequeno problema a mim. O presidente, o ministro, vão-me perguntar porque é que compramos os boletins de uma agência que nos dá dores de cabeça. E como sou eu o responsável pelo contrato com a Ansa, veja lá.

 

- É por isso mesmo que estou atrapalhadíssimo - e é verdade, querias estar longíssimo daqui. - A pessoa que falou com o doutor será despedida hoje mesmo, senhor.

 

- Porque estas coisas prejudicam o regime - dizia ele, como se estivesse a pensar em voz alta e com melancolia. - Os inimigos aproveitavam-se logo mal aparece uma notícia destas na imprensa. Eles já nos dão bastantes problemas. Não é justo que os amigos no-los dêem também, não acha?

 

- Isto não torna a acontecer, senhor Bermúdez - tinha puxado de um lenço azul-celeste, enxugava furiosamente as mãos. - Disso pode estar certo. Disso pode, senhor Bermúdez.

 

- Eu admiro as escórias humanas - Carlitos voltou a dobrar-se, como se tivesse levado um murro no estômago. - A página criminal corrompeu-me, como vês.

 

- Não bebas mais - disse Santiago. - Vamo-nos antes embora. Mas Carlitos tinha-se endireitado outra vez e sorria:

 

- À segunda cerveja, as pontadas desaparecem e sinto-me bestial, ainda não me conheces. É a primeira vez que bebemos juntos, não é?

- era, Carlitos, pensa, era a primeira vez. - Tu és muito sério, Javalita, sais do emprego e desapareces logo. Nunca vens beber um copo connosco, os náufragos. Não queres que a gente te corrompa?

 

- O ordenado dá-me à justa - disse Santiago. - Se fosse às pegas convosco, não teria sequer com que pagar a pensão.

 

- Vives sozinho? - perguntou Carlitos. - Julgava que eras um filho família. Não tens parentes? E que idades tens? És um borrachinho, não?

 

- Muitas perguntas ao mesmo tempo - disse Santiago. - Tenho família, sim, mas vivo sozinho. Ouve, como é que vocês fazem para se embebedarem e irem às pegas com o que ganham? É uma coisa que eu não percebo.

 

- Segredos da profissão - disse Carlitos. - A arte de viver endividado, de enganar as dívidas. E porque é que não vais às pegas, tens alguma gaja?

 

- Também me vais perguntar se toco pífaro? - disse Santiago.

 

- Se não tens e não vais às pegas, suponho que tocas - disse Carlitos. - A menos que sejas maricas.

 

Voltou a dobrar-se e quando se endireitou tinha a cara desfigurada. Encostou a cabeça crespa às capas de revista, esteve um bocado com os olhos fechados, depois rebuscou nos bolsos, tirou qualquer coisa que levou ao nariz e aspirou profundamente. Permaneceu com a cabeça atirada para trás, a boca entreaberta, com uma expressão de tranquila embriaguez. Abriu os olhos, olhou para Santiago, divertido:

 

- Para adormecer as picadas da pança. Não fiques com essa cara de assustado, não faço proselitismo.

 

- Queres-me assustar? - perguntou Santiago. - Perdes o teu tempo. Borrachola, drogado, já sabia, toda a redacção mo tinha dito. Eu não julgo as pessoas por isso.

 

Carlitos sorriu-lhe com afecto, e ofereceu-lhe um cigarro.

 

- Tinha má impressão de ti, porque ouvi dizer que tinhas entrado recomendado, e por nunca te juntares connosco. Mas estava enganado. Simpatizo contigo, Zavalita.

 

Falava devagar, e na sua cara havia uma tranquilidade crescente e os seus gestos eram cada vez mais cerimoniosos e lentos.

 

- Eu droguei-me uma vez, mas fez-me mal - era mentira, Carlitos. - Vomitei e avariou-se-me o estômago.

 

- Ainda não te desapontaste e já tens alguns três meses de Crónica, não? - dizia Carlitos, com recolhimento, como se rezasse.

 

- Três meses e meio - disse Santiago. - Acabo de passar o período de prova. Na segunda-feira confirmam-me o contrato.

 

- Pobre de ti - disse Carlitos. - Agora estás arriscado a ficar jornalista toda a vida. Escuta, aproxima-te, que ninguém ouça. Vou-te confessar um grande segredo. Não há nada maior do que a poesia, Zavalita.

 

Dessa vez a Menina Queta chegou à casinha de San Miguel ao meio-dia. Entrou como um ciclone, ao passar beliscou a bochecha de Amalia, que lhe tinha aberto a porta, e Amalia pensou: chanfradíssima. A D. Hortênsia assomou à escada e atirou-lhe um beijo: venho descansar um bocadinho, filha, a velha Ivonne anda à minha procura e eu estou morta de sono. Andas muito solicitada, riu-se a senhora, sobe, filha. Entraram no quarto, e um pouco depois um grito da senhora, traz-nos uma cerveja gelada. Amalia subiu com a bandeja e da porta viu a menina estirada na cama só com uma combinação em cima do corpo. O vestido e as meias e os sapatos estavam no chão e ela cantava, ria-se e falava sozinha. Era como se a senhora tivesse sido contagiada pela menina, porque embora não tivesse bebido durante a manhã, também ria, cantava e aplaudia a menina, do banquinho do toucador. A menina pegava na almofada, fazia ginástica, os cabelos coloridos tapavam-lhe a cara, nos espelhos, as suas compridas pernas pareciam as de uma enorme centopeia. Viu a bandeja e sentou-se, ai, tinha uma sede, bebeu metade do copo de um gole, ai que beleza. E de repente agarrou Amalia pelo pulso, anda cá, anda cá, olhando-a com uma destas malícias, não me fujas. Amalia olhou para a senhora, mas ela estava a olhar para a menina com picardia, como se pensasse que vais tu fazer, e então riu-se também. Ouve lá, tens um jeito para as escolher, filha, e a menina fingia que ameaçava a senhora, por acaso não me andas a enganar com esta, não?, e a senhora soltou uma das suas gargalhadas: engano-te com ela, pois. Mas tu não sabes com quem é que te engana esta mesquinha morta, ria-se a Menina Queta. Amalia começou a sentir os ouvidos a zumbir, a menina sacudia-a pelo braço e começou a cantar olho por olho, filha, dente por dente, e olhou para Amalia e a brincar ou a sério?, diz lá, Amalia, de manhãzinha depois de o senhor sair vens consolá-la? Amalia não sabia se havia de se zangar ou rir. Às vezes venho, sim, tartamudeou, e foi como se tivesse dito uma piada. Ah, marota, exclamou a Menina Queta olhando para a senhora, e a senhora, perdida de riso, empresto-ta mas trata-ma bem, e a menina deu um puxão a Amalia e fê-la cair sentada na cama. O que valeu foi que a senhora se levantou, veio a correr, debateu-se a rir com a menina até que esta a largou: vai-te embora, anda, esta doida ainda te corrompe. Amalia saiu do quarto, perseguida pelo riso de ambas, e desceu as escadas a rir, mas tremiam-lhe os joelhos e quando entrou na cozinha estava séria e furiosa. Simula esfregava a roupa no tanque, cantarolando: que é que tens? E Amalia: nada, estão bêbedas e fizeram-me envergonhar.

 

- O que é pena é que isto tenha acontecido agora que o contrato com a Ansa está a expirar - entre as nuvens de fumo, ele procurou os olhos de Tallio. - Imagine o que me vai custar convencer o ministro de que devemos renová-lo.

 

- Eu falo com ele, eu explico-lhe - lá estavam eles: claros, desconsolados, alarmados. - Estava precisamente para falar consigo sobre a renovação do contrato. E, agora, com esta confusão absurda. Eu dou todas as satisfações ao ministro, senhor Bermúdez.

 

- O melhor é nem o tentar ver até lhe passar a fúria - sorriu ele, e bruscamente levantou-se. - Enfim, tentarei compor as coisas.

 

Na cara leitosa reapareciam as cores, a esperança, a loquacidade, ia ao pé dele até à porta quase a dançar.

 

- O redactor que falou com o doutor Alcibíades vai ser despedido da agência, hoje mesmo - sorria, adoçava a voz, faiscava. O senhor sabe, para a Ansa, a renovação do contrato é uma questão de vida ou de morte. Não sabe como lhe agradeço, senhor Bermúdez.

 

- Expira na próxima semana, não é? Bom, combine lá as coisas com o Alcibíades. Tentarei obter rapidamente a assinatura do ministro.

 

Estendeu uma mão para a maçaneta da porta, mas não abriu. Tallio vacilava, tinha começado a corar outra vez. Esperou, sem lhe tirar a vista de cima dos olhos, que ganhasse coragem para falar:

 

- Quanto ao contrato, senhor Bermúdez - parece que tinhas estado a reprimir o cagalhão, eunuco -, nas mesmas condições do ano passado? Refiro-me a, quer dizer.

 

- Aos meus serviços? - perguntou ele, e viu a perturbação, o mal-estar, o sorriso difícil de Tallio; coçou o queixo e acrescentou, modestamente: - Desta vez não lhe vão custar dez, mas sim vinte por cento, amigo Tallio.

 

Viu-o abrir um pouco a boca, enrugar e desenrugar a testa num segundo; viu-o deixar de sorrir e anuir, com o olhar bruscamente distraído.

 

- Um cheque ao portador, sobre um banco de Nova Iorque; traga-mo pessoalmente na próxima segunda-feira - estavas a fazer contas de cabeça, Caruso. - Bem sabe como a papelada ministerial é complicada. Vamos ver se o conseguimos arranjar em quinze dias.

 

Abriu a porta, mas como Tallio fez um movimento de angústia, fechou-a. Esperou, sorrindo.

 

- Muito bem, seria estupendo que saísse dentro de quinze dias, senhor Bermúdez - tinha enrouquecido, estava triste. - Quanto a, quer dizer, não acha que vinte por cento é um bocado, quer dizer, exagerado ?

 

- Exagerado? - abriu um pouco os olhos, como se não percebesse, mas logo se retraiu, com um gesto amistoso. - Nem mais uma palavra, esqueça o assunto. Agora peco-lhe que me desculpe, tenho imenso que fazer.

 

Abriu a porta, batucar de máquinas de escrever, a silhueta de Alcibíades ao fundo, no seu gabinete.

 

- Com certeza, estamos de acordo - precipitou-se Tallio, gesticulando com desespero. - Não há problema, senhor Bermúdez. Segunda-feira, às dez, está bem?

 

- Perfeitamente - disse ele, quase a empurrá-lo. - Então até segunda-feira.

 

Fechou a porta e logo deixou de sorrir. Dirigiu-se à secretária, sentou-se, tirou o tubinho da gaveta da direita, encheu a boca de saliva, antes de pôr o comprimido na ponta da língua. Engoliu, ficou um momento de olhos fechados, com as mãos a comprimirem o mata-borrão. Um momento depois entrou Alcibíades.

 

- O italiano está triste que eu sei lá, D. Cayo. Oxalá que o tal redactor estivesse na agência às onze. Disse-lhe que telefonei a essa hora.

 

- Quer estivesse, quer não, ele despede-o - disse ele. - Não convém que um tipo que assina manifestos esteja numa agência noticiosa. Deu o meu recado ao ministro?

 

- Espera-o às três, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades.

 

- Bem, avise o major Paredes de que vou vê-lo, doutorzinho. Chego lá daqui a uns vinte minutos.

 

- Entrei para a Crónica sem nenhum entusiasmo, porque precisava de ganhar alguma coisa - disse Santiago. - Mas agora penso que dos empregos talvez seja o menos mau.

 

- Três meses e meio e ainda não te decepcionaste? - perguntou Carlitos. - É caso para te exibirem numa jaula de circo, Zavalita.

 

Não, não te tinhas decepcionado, Zavalita: o novo embaixador do Brasil, Dr. Hernando de Magalhães, apresentou esta manhã as suas credenciais, estou optimista sobre o futuro turístico do país, declarou esta noite, numa conferência de imprensa, o director do Turismo, perante numerosa e selecta assistência, a Sociedade Entre Nous celebrou ontem mais um aniversário. Mas esse lixo agradava-te, Zavalita, sentavas-te à máquina e ficavas satisfeito. Nunca mais aquela minúcia para redigir as diversas, pensa, aquela convicção furiosa com que corrigias, rasgavas e tornavas a fazer os linguados antes de os levares ao Arispe.

 

- Ao fim de quanto tempo te decepcionaste tu do jornalismo? perguntou Santiago.

 

Aqueles diversos e aqueles compartimentos pigmeus que, na manhã seguinte, ansiosamente procuravas no exemplar de La Crónica. comprado no quiosque do Barranco, que ficava ao pé da pensão. Que mostravas à D. Lúcia, orgulhoso: isto aqui fui eu que escrevi, minha senhora.

 

- Uma semana depois de entrar para a Crónica. - disse Carlitos.

- Na agência não fazia jornalismo, era mais um mecanógrafo que outra coisa. Tinha um horário corrido, às duas estava livre e podia passar as tardes a ler e as noites a escrever. Se não me tivessem despedido, que poeta a literatura não teria perdido, Zavalita.

 

Entravas às cinco, mas chegavas à redacção muito antes, e a partir das três e meia já estavas na pensão a olhar para o relógio, impaciente por ir apanhar o eléctrico, dar-lhe-iam hoje uma missão na rua?, uma reportagem, uma entrevista?, por chegares e sentares-te à secretária à espera de que o Arispe te chamasse: faça esta informação em dez linhas, Zavalita. Nunca mais aquele entusiasmo, pensa, aquele desejo de fazer coisas, hei-de conseguir uma primeira mão e felicitar-me-ão, nunca mais aqueles projectos, promover-me-ão. O que é que falhou? Pensa: quando, porquê?

 

- Nunca soube porquê, uma manhã o sacana entrou no gabinete e disse-me você anda a sabotar o serviço, seu comunista - e Carlitos riu-se em câmara lenta. - Isso é a sério?

 

- Muito a sério, caralho - disse Talho. - Você sabe quanto é que me vai custar a sua sabotagem?

 

- Vai-lhe custar que eu diga o que penso da sua mãe se me tornar a dizer caralho ou a levantar-me a voz - disse Carlitos, cheio de felicidade. - Nem sequer recebi indemnização. E entrei logo para a Crónica e. descobri logo o túmulo da poesia, Zavalita

 

- E porque é que não abandonaste o jornalismo? - perguntou Santiago. - Podias ter procurado outra coisa.

 

- Entra-se e não se sai, são as areias movediças - disse Carlitos. como a afastar-se ou a adormecer. - Vais-te afundando, afundando. Odeia-lo, mas não podes libertar-te. Odeia-lo, e de repente estás disposto a seja o que for para conseguir uma primeira mão. A passar as noites em claro, a meter-te em sítios incríveis. É um vício, Zavalita.

 

- Chegaram-me até ao pescoço, mas não me vão cobrir, sabes porquê? - diz Santiago. - Porque, de qualquer maneira, vou acabar o curso de Direito, Ambrosio.

 

- Não fui eu que escolhi as criminais, o que aconteceu foi que o Arispe já não me suportava nas locais nem o Maldonado nos telegramas - dizia Carlitos, longíssimo. - Só o Becerrita é que me suporta na página dele. Criminais, o pior do pior. Aquilo de que eu gosto. As escórias, o meu elemento, Zavalita.

 

Depois calou-se e permaneceu, imóvel e risonho, olhando o vazio. Quando Santiago chamou o empregado, acordou e pagou a conta. Saíram e Santiago teve de agarrá-lo pelo braço porque dava encontrões às mesas e às paredes. O Portal estava vazio, uma faixa de azul-celeste insinuava-se debilmente sobre os telhados da Plaza San Martin.

 

- É estranho que o Norwin não tenha aparecido por aqui - recitava Carlitos, com uma espécie de sossegada ternura. - Um dos melhores náufragos, uma magnífica escória. Hei-de apresentar-to, Zavalita.

 

Cambaleava, apoiado a um dos pilares do Portal, a cara suja da barba, o nariz ígneo, os olhos tragicamente felizes. Amanhã sem falta, Carlitos.

 

Voltava da farmácia com dois rolos de papel higiénico, quando na porta de serviço deu de caras com Ambrosio. Não te ponhas tão séria, disse ele, não te vim ver a ti. E ela: porque é que me havias de vir ver a mim, nem que tivéssemos alguma coisa a ver um com o outro. Não viste o carro?, perguntou Ambrosio, D. Fermín está lá em cima com D. Cayo. D. Fermín, D. Cayo?, disse Amalia. Sim, porque é que se admirava? Não sabia porquê, mas estava admirada, eram tão diferentes, tentou imaginar D. Fermín numa das festarolas e pareceu-Lhe impossível.

 

- É melhor que ele não te veja - disse Ambrosio. - Há-de contar-lhe que te despediram de casa dele, ou que deixaste o laboratório sem dizer água vai, e se calhar a D. Hortênsia despede-te também.

 

- O que tu não queres é que D. Cayo saiba que foste tu que me trouxeste para cá - disse Amalia.

 

- Bom, também é isso - disse Ambrosio. - Mas não por mim, e sim por ti. Já te disse que D. Cayo me odeia desde que o deixei para ir trabalhar com D. Fermín. Se sabe que tu me conheces, estás perdida.

 

- Que bom que tu te tornaste - disse ela. - O que tu te preocupas comigo agora.

 

Tinham ficado a conversar ao pé da porta de serviço, e Amalia espreitava de vez em quando para ver se Simula ou Carlota não se aproximavam. Não lhe tinha dito Ambrosio que D. Fermín e D. Cayo já não se davam como dantes? Sim, desde que o Sr. Cayo tinha mandado prender o Menino Santiago já não eram amigos; mas tinham negócios em comum e devia ser por causa disso que D. Fermín viera agora a San Miguel. Amalia estava satisfeita aqui? Sim, muito, trabalhava menos que dantes e a senhora era muito boa. Então deves-me um favor, disse Ambrosio, mas ela acabou-lhe logo com as brincadeiras: já to paguei antes, não te esqueças. E mudou de assunto, como,estavam lá por Miraflores? A D. Zoila muito bem, o Menino Chispas tinha uma namorada que fora candidata ao título de Miss Peru, a Menina Teté estava uma senhora, e o Menino Santiago não tinha voltado a casa desde que fugira. Não se podia falar nele diante da D. Zoila, porque se punha a chorar. E de repente: San Miguel faz-te bem, puseste-te uma linda rapariga. Amalia não se riu, olhou-o com toda a fúria que pôde.

 

- O teu dia de saída é domingo, não é? - perguntou ele. - Espero-te ali, na paragem do eléctrico, às duas. Apareces?

 

- Nem sonhes - disse Amalia. - Somos alguma coisa um ao outro para sairmos juntos?

 

Sentiu barulho na cozinha e entrou em casa, sem se despedir de Ambrosio. Foi à copa espreitar: lá estava D. Fermín, a despedir-se de D. Cayo. Alto, encanecido, tão elegante de cinzento, e lembrou-se de chofre de todas as coisas que tinham acontecido desde a última vez que o vira, de Trinidad, da Calle de Mirones, da maternidade, e sentiu que lhe vinham as lágrimas aos olhos. Foi ao quarto de banho molhar a cara. Agora estava furiosa com Ambrosio, furiosa consigo mesma por se ter posto a conversar com ele como se fossem alguma coisa um ao outro, por não lhe ter dito julgas que lá por me teres indicado que aqui precisavam de criada já me esqueci, que já te perdoei? Quem me dera que morresses, pensou.

 

Ajeitou a gravata, pôs o casaco, agarrou na pasta e saiu do escritório. Passou junto às secretárias com cara ausente. O automóvel estava parado à porta, para o Ministério da Guerra, Ambrosio. Demoraram quinze minutos a atravessar a baixa. Apeou-se antes que Ambrosio lhe abrisse a porta, espera aqui. Soldados que cumprimentavam, um corredor, uma escada, um oficial que sorria. Na antecâmara do Serviço de Informações esperava-o um capitão de bigodinho: o major está no gabinete, Sr. Bermúdez, entre. Paredes levantou-se ao vê-lo entrar. Sobre a secretária havia três telefones, um galhardete, um mata-borrão verde; nas paredes, mapas, planos, uma fotografia de Odría e um calendário.

 

- O Espina telefonou-me a fazer as suas queixas - disse o major Paredes. - Que, se não retiras aquele porteiro, lhe prega um tiro. Estava furioso.

 

- Já dei ordens para lhe retirarem o agente - disse ele, desapertando a gravata. - Pelo menos, agora sabe que está vigiado.

 

- Repito-te que é trabalho baldado - disse o major Paredes. Antes de o retirarem, promoveram-no. Porque é que ele se havia de pôr a conspirar?

 

- Porque lhe doeu deixar de ser ministro - disse ele. - Não, ele não se punha a conspirar por conta própria, é tolo de mais para isso. Mas podem servir-se dele. Ao Serrano, qualquer pessoa lhe mete os dedos pelos olhos dentro.

 

O major Paredes encolheu os ombros, fez uma careta céptica. Abriu um armário, tirou um envelope e estendeu-lho. Ele folheou distraidamente os papéis, as fotografias.

 

- Todas as suas deslocações, todas as suas conversas telefónicas

 

- disse o major Paredes. - Nada de suspeito. Resolveu consolar-se pela braguilha, como vês. Além da amante de Brena, arranjou outra, uma de Santa Beatriz.

 

Riu-se, disse mais qualquer coisa entre dentes e, por um instante, ele viu-as: gordas, carnudas, com as mamas pendentes, avançavam uma por cima da outra com um regozijo perverso nos olhos. Guardou os papéis e as fotografias no envelope e pô-lo na secretária.

 

- As duas amantes, as partidas de dados no Círculo Militar, uma ou duas bebedeiras por semana, é esta a vida dele - disse o major Paredes. - O Serrano é um homem acabado, convence-te.

 

- Mas com muitos amigos no exército, com dezenas de oficiais que lhe devem favores - disse ele. - Eu tenho faro de cão perdigueiro. Confia em mim, dá-me mais um tempo.

 

- Bom, se insistes tanto, mandarei vigiá-lo durante mais uns dias

 

- disse o major Paredes. - Mas sei que é inútil.

 

- Embora esteja afastado e seja tolo, um general é sempre um general - disse ele. - Quer dizer, mais perigoso que todos os apristas e vermelhos juntos.

 

O Hipólito era um bruto, isso era, senhor, mas também tinha lá os seus sentimentos, o Ludovico e Ambrosio tinham-no descoberto daquela vez do Porvenir. Ainda tinham tempo e iam tomar uma bebida quando apareceu o Hipólito e agarrou cada um deles pelo braço: convidava-os para uma garrafita. Tinham ido à taberna da Avenida Bolívia, o Hipólito tinha pedido três bebidas, puxado de cigarros e acendido o fósforo com mão trémula. Notava-se que estava preocupado, senhor, ria sem vontade, passava a língua pela boca como um animal com sede, olhava de soslaio e as meninas dos olhos dançavam-lhe. O Ludovico e o Ambrosio olhavam-se como quem diz que tem este.

 

- Parece que tens algum problema, Hipólito - disse Ambrosio.

 

- Apanhaste algum esquentamento na casa de pegas, irmão? perguntou Ludovico.

 

Fez que não com a cabeça, esvaziou o copo, disse ao criado outra rodada. Então o que era, Hipólito? Olhou para eles, soprou-lhes o fumo para a cara, por fim tinha-se resolvido a deitar a coisa cá para fora, senhor: este negócio do Porvenir lixava-o. Ambrosio e Ludovico riram-se. Não havia razão para isso, Hipólito, as velhas tontas desatariam a correr ao primeiro assobio, era o trabalho mais barato da vida, amigo. Hipólito esvaziou o segundo copo e os olhos saltaram-Lhe. Não era medo, conhecia a palavra, mas nunca o tinha sentido, ele tinha sido jogador de boxe.

 

- Não me iodas, não nos vais outra vez contar as tuas lutas disse Ludovico.

 

- É uma coisa pessoal - disse Hipólito, contristado. Calhou a vez a Ludovico de pagar outra rodada, e o criado, que os

 

tinha visto embalados, deixou a garrafa em cima da mesa. A noite passada não tinha dormido por causa deste negócio, calculem. O Ambrosio e o Ludovico olharam um para o outro como quem diz endoideceu? Fala-nos com toda a franqueza, para alguma coisa eram amigos. Tossia, parecia que se ia atrever e se arrependia, senhor, por fim prendeu-se-lhe a voz, mas desabafou: uma coisa de família, uma coisa pessoal. E, sem mais nem menos, tinha-lhes atirado com uma história tristíssima, senhor. A mãe fazia esteiras e tinha um lugarzito na Parada, ele tinha crescido no Porvenir, vivido lá, se aquilo era viver. Limpava e guardava carros, fazia recados, descarregava os camiões do mercado, arranjava os seus cobres conforme podia, às vezes metendo a mão onde não devia.

 

- Como é que se chamam os do Porvenir? - interrompeu-o Ludovico. - Os de Lima são Limenhos, os de Bajo el Puente Bajopontinos, e os do Porvenir?

 

- Tu queres lá saber do que eu estou a contar, ou o caralho - tinha dito Hipólito, furioso.

 

- Não é nada disso, irmão - Ludovico deu-lhe uma palmada. De repente veio-me essa dúvida à cabeça, desculpa lá, continua.

 

Que embora há uns bons anitos não fosse lá, aqui dentro, e tinha tocado no peito, senhor, o Porvenir continuava a ser a casa dele: aliás, fora lá que começara a jogar boxe. Que conhecia muitas das velhas da Parada, que algumas, se calhar, iam reconhecê-lo.

 

- Ah, caga nisso - disse Ludovico. - Não há motivo para te afligires, quem é que te há-de reconhecer depois de tantos anos. Aliás, nem te verão a cara, as luzes do Porvenir são péssimas, as borboletas andam a voar à volta dos candeeiros aos montes. Não há motivo, Hipólito.

 

Tinha ficado a pensar, lambendo a boca como um gato. O criado trouxe sal e limão, Ludovico pôs sal na ponta da língua, espremeu metade do limão na boca, esvaziou o copo e exclamou a pinga subiu de categoria. Tinham-se posto a falar de outra coisa, mas o Hipólito calado, a olhar para a mesa, pensando.

 

- Não - tinha dito de repente. - O que me lixa não é que alguém me reconheça, o que me lixa é o negócio só por si.

 

- Mas porquê, homem? - disse Ludovico. - Não é melhor enxotar velhas que estudantes, por exemplo? Nem que gritem e esperneiem, Hipólito. O barulho não faz mal a ninguém.

 

- E se eu tenho de bater a uma daquelas que me deram de comer em miúdo? - tinha dito Hipólito, dando um murro na mesa, furiosíssimo, senhor.

 

Ambrosio e o Ludovico como quem diz agora dá-lhe outra vez a choradeira. Mas homem, mas irmão, se deram de comer, é porque eram boas pessoas, santas, pacíficas, achas que se iam meter em complicações políticas? Mas o Hipólito, isso sim. Não queria dar o braço a torcer, abanava a cabeça como quem diz não me convencem.

 

- Hoje estou a fazer isto contra vontade - disse, por fim.

 

- E tu julgas que alguém o faz por gosto? - perguntou Ludovico.

 

- Eu faço - disse Ambrosio, a rir. - Para mim é uma espécie de descanso, uma espécie de aventura.

 

- Porque só vens de vez em quando - disse Ludovico. - Levas uma vida à grande como motorista do chefão e isto para ti é uma brincadeira. Espera só que te partam o crânio com uma pedrada, como uma vez a mim.

 

- Depois diz-nos se continuas a gostar - tinha dito Hipólito. Felizmente a ele nunca lhe tinha acontecido nada, senhor.

 

Como é que ele se atrevera? Nos dias da saída, quando não ia visitar a tia a Limoncillo, ou a Sr.a Rosário a Mirones, saía com Anduvia e Maria, duas empregadas da vizinhança. Lá porque a tinha ajudado a conseguir este emprego julga que te esqueceste? Iam passear, ao cinema, um domingo tinham ido ao Coliseu ver as danças folclóricas. Porque é que conversaste com ele como se já lhe tivesses perdoado? Algumas vezes saía com Carlota, mas não muito amiúde, porque Simula queria que Amalia a trouxesse antes do anoitecer. Devias tê-lo tratado mal, estúpida. À saída, Simula fazia-lhe a cabeça em água com recomendações, e, à chegada, com as suas perguntas. Que plantão que ele ia apanhar no domingo» vir de Miraflores até aqui para nada, o que ele te havia de maldizer. Pobre Carlota, a Simula não a deixava assomar o nariz à porta, estava sempre a meter-lhe medo com os homens. Esteve toda a semana a pensar vai ficar à tua espera, às vezes dava-lhe uma fúria que se punha a tremer, outras vezes riso. Mas, se calhar, ele não vinha, ela tinha-lhe dito nem sonhes e ele diria para que é que eu hei-de ir. No sábado passou a ferro o vestido azul brilhante q.ue a D. Hortênsia lhe tinha dado, onde é que vais amanhã?, perguntou-lhe Carlota, à tia dela. Via-se ao espelho e insultava-se: já estás a pensar em ir, estúpida. Não, não iria. Nesse domingo estreou os sapatos de salto alto que tinha comprado, e a pulseirinha que lhe saíra numa rifa. Antes de sair, pôs um pouco de pintura nos lábios. Levantou a mesa num instantinho, quase não almoçou, subiu ao quarto da senhora para se ver de corpo inteiro no espelho. Foi direitinha ao Bertoloto, atravessou-o e na Costanera sentiu raiva e cócegas no corpo: lá estava ele, na paragem, a acenar-Lhe. Pensou volta para trás, pensou não lhe vais falar. Tinha vestido um fato castanho, camisa branca, gravata vermelha, e um lencinho no bolso do casaco.

 

- Estava a pedir a todos os santos que não me deixasses aqui de plantão - disse Ambrosio. - Ainda bem que vieste.

 

- Vim apanhar o eléctrico - disse ela, indignada, virando-lhe a cara. - Vou à minha tia.

 

- Ah, bom - disse Ambrosio. - Então vamos juntos para a baixa.

 

- Esquecia-me dum pormenor - disse o major Paredes. O Espina tem-se encontrado muito com o teu amigo Zavala.

 

- Não tem importância - disse. - Há anos que são amigos. O Espina arranjou-lhe uma concessão para o laboratório dele abastecer os estabelecimentos do exército.

 

- Há umas coisas desse grande senhor que não me agradam disse o major Paredes. - De vez em quando sigo-lhe os passos. Às vezes reúne-se com apristões.

 

- Graças a esses apristões fica a saber muitas coisas e graças a ele fico eu a sabê-las - disse ele. - O Zavala não é problema. Com ele é que perdes o teu tempo.

 

- A lealdade desse grande senhor nunca me convenceu - disse o major Paredes. - Está com o regime para fazer negócios. Por pura conveniência.

 

- Todos nós estamos com o regime por conveniência, o que é importante é que a conveniência de tipos como o Zavala seja estar com o regime - sorriu ele. - Podemos dar uma vista de olhos ao assunto de Cajamarca?

 

O major Paredes anuiu. Levantou um dos três telefones e deu uma ordem. Ficou um momento pensativo.

 

- Ao princípio pensei que armavas em cínico -- disse a seguir. Agora tenho a certeza de que o és. Não acreditas em nada nem em ninguém, Cayo.

 

- Não me pagam para acreditar, mas sim para desempenhar um trabalho - sorriu ele, outra vez. - E desempenho-o bem, não?

 

- Se só estás neste cargo por conveniência, porque é que não aceitaste outras ofertas mil vezes melhores que o presidente te fez?

- riu-se o major Paredes. - Como vês, és cínico, mas não tanto como quererias.

 

Ele deixou de sorrir e olhou abulicamente para o major Paredes.

 

- Talvez porque o teu tio me deu uma oportunidade que ninguém me tinha dado - disse, encolhendo os ombros. - Talvez porque não encontrei ninguém que possa servir o teu tio neste cargo como eu. Ou talvez porque gosto deste trabalho. Não sei.

 

- O presidente anda preocupado com a tua saúde e eu também disse o major Paredes. - Em três anos envelheceste dez. Como vai a úlcera?

 

- Cicatrizada - disse ele. - Já não tenho de beber leite, felizmente.

 

Estendeu a mão para os cigarros que estavam na secretária, acendeu um e teve um acesso de tosse.

 

- Quantos fumas por dia? - perguntou o major Paredes.

 

- Dois ou três maços - disse ele. - Mas dos negros, não dessa porcaria que tu fumas.

 

- Não sei o que é que vai acabar contigo primeiro - riu-se o major Paredes. - o tabaco, a úlcera, as anfetaminas, os apristas ou algum militar ressentido, como o Serrano. Ou o teu harém.

 

Ele sorriu levemente. Bateram à porta, entrou o capitão de bigodinho com uma pasta: os fotomapas estavam prontos, meu major. Paredes estendeu o plano em cima da secretária: marcas vermelhas e azuis em certas encruzilhadas, uma espessa linha preta que ziguezagueava por muitas ruas e morria numa praça. Estiveram inclinados sobre o plano um bom bocado. Pontos nevrálgicos, dizia o major Paredes, locais de acantonamento, trajecto, a Puente, que ele vai inaugurar. Ele tomava notas num livrinho, fumava, fazia perguntas com a sua voz monótona. Voltaram às poltronas.

 

- Amanhã vou a Cajamarca com o capitão Rios para dar uma última olhadela ao dispositivo de segurança - disse o major Paredes.

- Pelo nosso lado, não há problemas, a segurança trabalhará como um relógio. E a tua gente?

 

- Com a segurança estou sossegado - disse ele. - O que me preocupa é outra coisa.

 

- A recepção? - perguntou o major Paredes. - Achas que lhe farão alguma afronta?

 

- O senador e os deputados prometeram encher a praça - disse ele. - Mas essas promessas, já se sabe como é. Esta tarde falo com a comissão de recepção. Mandei-os vir a Lima.

 

- Estes serranos seriam uns ingratos de merda se não o receberem de braços abertos - disse o major Paredes. - Está-lhes a construir uma estrada, uma ponte. Quem é que se tinha lembrado antes da existência de Cajamarca?

 

- Cajamarca foi um foco aprista - disse ele. - Fizemos uma limpeza, mas pode sempre acontecer um imprevisto.

 

- O presidente acha que a viagem vai ser um êxito - disse o major Paredes. - Diz que lhe asseguraste que há-de haver quarenta mil pessoas na manifestação e que não haverá sarilhos.

 

- Há-de haver, e não haverá sarilhos - disse ele. - Mas estas coisas é que me andam a envelhecer. Não é a úlcera, nem o tabaco.

 

Tinham pago ao criado, saído, e quando chegaram ao pátio já tinha começado a reunião, senhor. O Sr. Lozano recebeu-os de má catadura e apontou-lhes para o relógio. Estavam lá uns cinquenta, todos vestidos à paisana, alguns riam-se como idiotas e que fedor! Aquele é do quadro, aquele anda aos biscates como eu, aquele é do quadro, ia-lhos designando Ludovico, e estava um major da polícia a falar, meio pançudo, meio gago, estava sempre a repetir «portanto». Portanto haveria guarda de assalto nos arredores, portanto também carros da polícia, portanto a cavalaria escondddida numas garagens e ttterrenos, Ludovico e Ambrosio olhavam-se como quem diz engggraçadíssimo, senhor, mas o Hipólito continuava com cara de enterro. E então adiantou-se o Sr. Lozano, que silêncio para o ouvir.

 

- Mas a ideia é que a polícia não tenha de intervir - dissera. Foi uma coisa que o senhor Bermúdez recomendou especialmente. E também que não haja tiros.

 

- Está a falar do chefão porque tu estás aqui - tinha dito Ludovico a Ambrosio. - Para tu lhe ires contar.

 

- Portanto não se distribuirão pistolas, só cccasse-têtes e outras armas cccontundentes.

 

Levantara-se um ruído de estômagos, de gargantas, de pés, todos protestavam, mas sem abrir a boca, senhor. Silêncio, disse o major, mas quem tinha composto as coisas com cabeça tinha sido o Sr. Lozano.

 

- Vocês são de primeira e não precisam de balas para dispersar um punhado de tontas, se as coisas se puserem feias, entra a guarda de assalto. - Sabidão, tinha dito uma piada. - Ainda bem, senão tinha de devolver as bebidas. - Risos. E ele: - Continue a explicar-Lhes, major.

 

- Portanto entttendido, e antes de passar pela escotaria, olhem bem para as caras uns dos outros, não vão andar à paulada uns aos outros por engggano.

 

Tinham-se rido, por educação, não porque a sua piada tivesse piada, e na escotaria tiveram de assinar um recibozinho. Deram-lhes casse-têtes, boxes e correntes de bicicleta. Voltaram ao pátio, misturaram-se com os outros, alguns estavam tão bêbedos que mal conseguiam falar. Ambrosio metia conversa com eles, donde eram, se os tinham escolhido à sorte. Não, senhor, eram todos voluntários. Satisfeitos por poderem ganhar uns soles extra, mas alguns com medo do que lhes pudesse acontecer. Fumavam, gracejavam uns com os outros, agrediam-se de brincadeira com os casse-têtes. Assim estiveram até coisa das seis, quando o major veio dizer: está ali o autocarro. Na Plaza dei Porvenir metade tinha ficado com Ludovico e Ambrosio, no centro, entre os balouços. Hipólito tinha levado os outros até ao lado do cinema. Repartidos em grupinhos de três, de quatro, tinham-se metido na Feira. Ambrosio e Ludovico olhavam para as cadeiras voadoras, não era porreiro como as saias das mulheres se levantavam? Não, senhor, nem se via, havia poucochinha luz. Os outros compravam gelados, doces de batata, dois deles tinham trazido a sua garrafita e bebiam uns golitos junto à Rueda Chicago. Cheira-me a que deram uma informação falsa ao Lozano, tinha dito Ludovico. Havia já meia hora que ali estavam e nada.

 

No eléctrico sentaram-se juntos e Ambrosio pagou-lhe o bilhete. Ela estava tão furiosa por ter vindo que nem olhava para ele. Porque é que tu hás-de ser tão rancorosa, dizia Ambrosio. Com a cara colada à janela, Amalia olhava para a Avenida Brasil, para os automóveis, para o cinema Beverly. As mulheres têm bom coração e má memória, mas tu és o contrário, Amalia. Nesse dia em que se tinham encontrado na rua e ele lhe disse sei de um sítio em San Miguel onde procuram uma rapariga não tinham conversado tão bem? Ela o Hospital da Polícia, o óvulo de Magdalena Vieja. E noutro dia na porta de serviço não tinham falado tão bem? O Colégio Salesiano, a Plaza Bolognesi. Havia outro homem agora na tua vida, Amalia? E nisto entraram duas mulheres, sentaram-se defronte deles, pareciam de má vida e começaram a olhar para Ambrosio com um destes descaramentos. Que mal tinha que saíssem juntos uma vez como bons amigos? Só riam para ele, olhadelas e coquetarias, e de repente, sem se aperceber, a sua boca disse alto, olhando para as duas mulheres, não para ele: está bem, onde é que vamos? Ambrosio olhou para ela espantado, coçou a cabeça e riu-se: que mulher esta. Foram ao Rímac, porque Ambrosio tinha de se encontrar com um amigo. Encontraram-no num restaurantezinho da Calle Chiclayo, a comer arroz de frango.

 

- Apresento-te a minha noiva, Ludovico - disse Ambrosio.

 

- Não acredite - disse Amalia. - Amigos e mais nada.

 

- Sentem-se - disse Ludovico. - Tomem uma cerveja comigo.

 

- Ludovico e eu trabalhámos juntos com D. Cayo, Amalia disse Ambrosio. - Eu guiava o carro e ele tratava dele. Que noites desgraçadas, não eram, Ludovico?

 

Só havia homens no restaurante, alguns com que pinta, e Amalia sentia-se pouco à vontade. Que fazes aqui, pensava, porque é que és tão parva? Espiavam-na de revés, mas não lhe diziam nada. Deviam ter medo dos dois homenzarrões que estavam com ela, porque Ludovico era tão alto e forte como Ambrosio. Com a diferença de que era tão feio, com a cara picada das bexigas e os dentes partidos. Contavam coisas um ao outro, perguntavam por amigos e ela aborrecia-se. Mas, de repente, Ludovico deu uma pancadinha na mesa: pronto, iam a Acho, ele arranjava maneira de eles entrarem. Fê-los entrar, não pelo sítio do público, mas por uma ruela, e os polícias cumprimentavam Ludovico como um amigo íntimo. Sentaram-se na sombra, em cima, mas, como havia pouca gente, ao segundo touro desceram até à quarta fila. Toureavam três, mas a estrela era Santa Cruz, chamava a atenção ver um preto em traje de Inces. Torces por ele porque é teu irmão de raça, Brincava Ambrosio com Ludovico, e ele, sem se aborrecer, sim e também porque é valente. Era: fazia-se derrubar, ajoelhava-se, citava o touro de costas. Ela só tinha visto tourada no cinema e fechava os olhos, guinchava quando o touro derrubava um peão, que selvagens os picadores, dizia, mas no último touro de Santa Cruz também agitou o lenço, como Ambrosio, e pediu orelha. Saiu de Acho satisfeita, pelo menos tinha visto uma coisa nova. Era tão estúpido desperdiçar o dia de saída a ajudar a Sr.a Rosário a estender roupa, a ouvir a sua tia a queixar-se das suas hóspedes ou a dar voltas e mais voltas com Anduvia e Maria sem saber aonde ir. Tomaram uma chicha roxa na Puerta de Acho e Ludovico despediu-se. Caminharam até ao Paseo de Aguas.

 

- Gostaste dos touros? - perguntou Ambrosio.

 

- Gostei - disse Amalia. - Mas que crueldade para os animais.

 

- Se gostaste, havemos de voltar - disse Ambrosio.

 

Ia a responder-lhe nem sonhes mas arrependeu-se e fechou a boca e pensou parva. Lembrou-se de que havia mais de três anos, já quase quatro, que não saía com Ambrosio, e de repente sentiu-se condoída. Que é que queres fazer agora?, perguntou Ambrosio. Ir a casa da tia, a Limoncillo. Que teria ele feito durante todos estes anos? Vais outro dia, disse Ambrosio, vamos antes ao cinema. Foram a um do Rímac ver uma fita de piratas, e na escuridão ela sentiu que se lhe enchiam os olhos de lágrimas. Estavas-te a lembrar de quando ias ao cinema com o Trinidad, parva? De quando vivias em Mirones e passavas os dias, os meses, sem fazer nada, sem falar, quase sem pensar? Não, estava-se a lembrar de antigamente, dos domingos em que se encontravam em Surquillo, e das noites em que se juntavam às escondidas no quartinho ao pé da garagem e do que aconteceu. Sentiu raiva outra vez, se ele me toca, arranhava-o, matava-o. Mas Ambrosio nem sequer tentou, e ao sair convidou-a para lanchar. Foram andando até à Plaza de Armas, conversando de tudo menos dos tempos passados. Só quando estavam à espera do eléctrico é que ele a agarrou pelo braço: eu não sou o que tu julgas, Amalia. Nem tu és o que julgas, disse Queta, tu és o que fazes, aquela pobre Amalia faz-me pena. Larga-me senão grito, disse Amalia, e Ambrosio largou-a. Mas se não estavam a discutir, se só te estou a pedir que esqueças o que aconteceu. Tinha sido há tanto tempo já, Amalia. Chegou o eléctrico, viajaram mudos até San Miguel. Desceram na paragem do Colégio de las Canonesas e tinha escurecido. Tu tiveste outro homem, aquele têxtil, eu não tive nenhuma mulher. E um pouco depois, já a chegar à esquina da casa, com uma voz ressentida: fizeste-me sofrer muito, Amalia. Não lhe respondeu, desatou a correr, à porta de casa, voltou-se para olhar: tinha ficado à esquina, meio oculto entre a sombra das arvorezinhas sem ramos. Entrou em casa lutando para não se deixar comover, furiosa por se sentir comovida.

 

- Que é que há com aquela maçonaria de oficiais em Cuzco? perguntou ele.

 

- Agora, quando forem apresentadas as promoções ao Congresso, vão promover o coronel Idiáquez - disse o major Paredes. Como general já não pode continuar em Cuzco, e sem ele a cadeiazinha vai-se desfazer. Ainda não fazem nada; reúnem-se, falam.

 

- Não basta que o Idiáquez saia de lá - disse ele. - E o comandante, e os capitãezinhos? Não percebo porque é que não os separaram já. O ministro da Guerra garantiu que as transferências começariam esta semana.

 

- Falei dez vezes com ele, mostrei-lhe dez vezes as informações

 

- disse o major Paredes. - Como se trata de oficiais de prestígio, quer ir com pezinhos de lã.

 

- Então tem de intervir o presidente - disse ele. - Depois da viagem a Cajamarca, a primeira coisa a fazer é quebrar essa cadeiazinha. Estão bem vigiados?

 

- Se te parece - disse o major Paredes. - Até sei o que comem.

 

- Quando menos esperarmos, põem-lhes um milhão de soles em cima da mesa e temos revolução à vista - disse ele. - É preciso debandá-los para unidades bem afastadas quanto antes.

 

- O Idiáquez deve muitos favores ao regime - disse o major Paredes. - O presidente anda constantemente a sofrer decepções tremendas com as pessoas. Vai-lhe doer quando souber que o Idiáquez anda a amotinar oficiais contra ele.

 

- Devia-lhe doer mais saber que ele se levantou - disse ele; pôs-se de pé, tirou uns papéis da pasta e entregou-os ao major Paredes.

 

- Dá-lhes uma olhadela, para ver se esta malta tem cá ficha. Paredes acompanhou-o à porta, reteve-o pelo braço quando ele ia a sair:

 

- E aquela notícia da Argentina, esta manhã? Como é que te escapou?

 

- Não me escapou coisa nenhuma - disse ele. - Os apristas a apedrejarem uma embaixada peruana é uma boa notícia. Consultei o presidente e ele concordou em que fosse publicada.

 

- Bom, isso é verdade - disse o major Paredes. - Os oficiais de cá que a leram estavam indignados.

 

- Como vês, penso em tudo - disse ele. - Até amanhã.

 

Mas daí a pouco Hipólito tinha-se aproximado deles, com uma cara tristíssima, senhor: aí vinham, com os cartazes e tudo. Tinham entrado por uma das esquinas da Plaza, e eles aproximaram-se delas, como se fossem curiosos. Quatro traziam um cartaz com letras vermelhas, atrás vinha um grupinho, as cabecilhas, tinha dito Ludovico, que punham as outras a gritar e as outras estendiam-se ao longo de meio quarteirão. As pessoas da Feira também se tinham aproximado para as ver. Gritavam, sobretudo as da frente, nem se percebia o quê, e havia velhas, jovens e crianças mas nem um único homem, tal como disse o Sr. Lozano tinha dito o Hipólito. Muitas tranças, muitas saias, muitos chapéus. Estas julgam que estão na procissão, tinha dito o Ludovico: eram três que tinham as mãos postas como se estivessem a rezar, senhor. Umas duzentas ou trezentas ou quatrocentas, e por fim acabaram de entrar na Plaza.

 

- É pão com manteiga, vês? - tinha dito o Ludovico.

 

- Pão duro e manteiga rançosa, talvez - disse Hipólito.

 

- Metemo-nos no meio e cortamo-las em duas - tinha dito o Ludovico. - Ficamos com a cabeça e damos-te a cauda.

 

- Oxalá que as rabanadas sejam menos fortes que as cabeçadas disse o Hipólito, a tentar gracejar, senhor, mas não lhe saía. Levantou a gola do casaco e foi procurar o grupo dele. As mulheres deram a volta à Plaza e eles tinham-nas seguido, cá atrás e separados. Quando estavam em frente à Rueda Chicago, tinha aparecido outra vez o Hipólito: arrependi-me, quero ir-me embora. Eu gosto de ti, mas ainda gosto mais de mim, tinha dito Ludovico, aviso-te de que te fodo, meu paneleiro. Essa sacudidela tinha-lhe levantado o moral, senhor: olhou com fúria. Saiu disparado. Tinham-se ido misturando com a manifestação. Estavam aglomeradas junto à Rueda Chicago, as do cartaz estavam viradas para as outras. De repente uma das cabecilhas trepou a um estrado e começou a discursar. Tinha-se amontoado mais gente, estavam ali apertadinhas, tinham parado a música da Rueda Chicago, mas nem se ouvia a que estava a falar. Eles tinham-se ido metendo, aplaudindo, as parvas estão-nos a abrir caminho, dizia o Ludovico, e pelo outro lado a gente do Hipólito ia-se metendo também. Aplaudiam, davam-lhes os seus abraços, muito bem, bravo, algumas limitavam-se a olhá-los, mas outras, entrem entrem, davam-lhes a mão, não estamos sozinhas. Ambrosio e o Ludovico tinham-se olhado como que a dizer não nos separemos com esta trapalhada, pá. Já as tinham cortado em duas, estavam incrustados como uma cunha precisamente ao meio. Tinham puxado das matracas, dos apitos, Hipólito do seu altifalante, abaixo essa agitadora!, viva o general Odría!, morte aos inimigos do povo!, dos casse-têtes, dos boxes, viva Odría! Uma confusão tremenda, senhor. Provocadores guinchava a do estrado, mas o barulho engoliu-lhe a voz e em redor de Ambrosio as mulheres guinchavam e empurravam. Vão-se embora, dizia-lhes o Ludovico, enganaram-nas, voltem para casa, e nisto uma mão tinha-o apanhado desprevenido e senti que levava nas unhas uma tira do meu pescoço, tinha contado depois o Ludovico a Ambrosio, senhor. Nessa altura tinham entrado na dança os casse-têtes e as correntes, os sopapos e os murros, e nessa altura tinha começado um milhão de mulheres a rugir e espernear. Ambrosio e o Ludovico estavam juntos, um resvalava e o outro amparava-o, um caía e o outro levantava-o. As galinhas saíram galos, tinha dito o Ludovico, o espertalhão do Hipólito tinha razão. Porque se defendiam, senhor. Derrubavam-nas e ali ficavam, como mortas, mas do chão agarravam-se aos pés deles e deitavam-nos abaixo. Era preciso estar a dar patadas, a saltar, ouviam-se insultos às mães como tiros. Somos poucos, tinha dito um, que venha a guarda de assalto, mas Ludovico: não, caralho! Atiraram-se outra vez contra elas e tinham-nas feito recuar, a varanda da Rueda veio abaixo e com ela um monte de tontas. Algumas escapavam-se rastejando e agora em vez de viva Odría eles gritavam-lhes putacaspariu, conasdamãe, e por fim a cabeça tinha-se desfeito em grupinhos e era canja apanhá-las. Aos dois, aos três, apanhavam uma e davam-lhe, depois outra e davam-lhe, e Ambrosio e o Ludovico até gozavam com as suas caras suadas. Nisto soara o tiro, senhor, filhadumagrandassíssima do tipo que disparou, tinha dito o Ludovico. Não era dali, mas sim de trás. A cauda tinha estado inteirinha e às rabanadas, senhor. Foram ajudar e puseram-na em debandada. Quem tinha disparado era um chamado Soldevilla, encurralaram-me umas dez, iam-me’ arrancar os olhos, não tinha morto ninguém, o tiro foi para o ar. Mas Ludovico irritou-se na mesma: quem foi o sacana que te deu o revólver? E Soldevilla: esta arma não é da corporação, é propriedade minha. Fodes-te na mesma, tinha dito Ludovico, vou dar parte de ti e ficas sem gratificação. A Feira tinha ficado vazia, os tipos que operavam a Rueda, as cadeiras voadoras, o Foguete, estavam a tremer nas suas casotas, e as ciganas a mesma coisa nas suas tendas. Contaram-se e faltava um, senhor. Tinham-no encontrado desmaiado ao pé de uma tipa que chorava. Vários tinham-se enfurecido, que é que tu lhe fizeste, puta, e deram-Lhe. Chamava-se Iglesias, era ayacuchano, tinham-lhe rachado a boca, levantou-se como um sonâmbulo, que é que foi, que é que foi? Chega, tinha dito Ludovico aos que batiam na mulher, acabou-se. Tinham tomado o autocarro no descampado e ninguém falava, todos mortos de cansaço. Ao apearem-se tinham começado a fumar, a olhar para as caras uns dos outros, dói-me aqui, a rir-se, a minha mulher não vai acreditar que este arranhão é um acidente de trabalho, vão-se lá recompor. Eram esses mais ou menos os trabalhinhos, senhor.

 

Durante toda a semana Amalia esteve cavilosa, distraída. Em que pensas perguntava Carlota, e Simula quem se ri sozinho lembra-se das suas maldades, e a D. Hortênsia onde estás, volta à terra. Já não se sentia furiosa com ele, já não sentia raiva de si mesma por ter saído com ele. Odeia-lo e depois passa-te, pensava, e daí a bocadinho odeia-lo e passa-te outra vez, porque és tão parva. Uma noite sonhou que domingo, à hora da saída, o encontraria na paragem, à espera dela. Mas nesse domingo Carlota e Simula tinham um baptizado e a ela calhou-lhe a saída no sábado. Aonde havia de ir? Foi procurar Gertrudis, não a via há meses. Chegou ao laboratório na hora da saída e Gertrudis levou-a a almoçar a casa dela. Ingrata, este tempo todo, dizia Gertrudis, tinha ido a Mirones uma data de vezes e a Sr.a Rosário não sabia a direcção da casa onde tu trabalhas, conta-me como tens passado. Esteve vai não vai para lhe dizer que tinha visto outra vez Ambrosio, mas arrependeu-se, dissera-lhe tanto mal dele antes. Ficaram de se encontrar no domingo seguinte. Regressou a San Miguel ainda com luz e foi estender-se na cama. Depois de tudo o que te fez, ainda pensas nele, parva. De noite sonhou com Trinidad. Insultava-a e no fim prevenia-a, lívido: quando morreres, cá te espero. No domingo Simula e Carlota saíram cedo e a senhora pouco depois, com a Menina Queta. Lavou a louça, sentou-se na sala, ligou o rádio. Só havia desafios de futebol e aborrecia-se quando bateram à porta da cozinha. Sim, era ele.

 

- A senhora não está? - com o seu boné e a farda azul de motorista.

 

- Também tens medo da senhora? - perguntou Amalia séria.

 

- D. Fermín mandou-me fazer uns recados e escapei-me para te ver um bocadinho - disse ele, sorrindo-lhe, como se não tivesse ouvido. - Deixei o carro do outro lado. Oxalá que a D. Hortênsia não o reconheça.

 

- Quer dizer que cada vez tens mais medo de D. Fermín - disse Amalia.

 

O sorriso esmoreceu-lhe, fez um gesto desanimado e ficou a olhar para ela sem saber o que fazer. Atirou o boné para trás e sorriu-lhe com esforço: estava a arriscar-se a apanhar uma descompostura por te vir ver e tu recebes-me assim, Amalia. O que lá vai, lá vai, Amalia, tinha esquecido. Que fizesse como se tivessem acabado de se conhecer.

 

- Julgas que me vais fazer o mesmo da outra vez? - ouviu-se Amalia dizer, tremendo. - Enganas-te.

 

Ele não lhe deu tempo a recuar, já lhe tinha agarrado no pulso e olhava-a nos olhos, pestanejando. Não tentou abraçá-la, nem sequer se aproximou. Manteve-a presa um momento, fez um gesto estranho e largou-a.

 

- Apesar do têxtil, apesar de não te ter visto durante anos, para mim continuaste a ser a minha mulher - rugiu Ambrosio e Amalia sentiu que o coração lhe parava. Pensou: vou chorar, vou chorar. Para que saibas, continuo a amar-te como dantes.

 

Ficou a olhar outra vez e ela recuou e fechou a porta. Viu-o vacilar um momento; a seguir ajeitou o boné e foi-se embora. Ela voltou à sala e conseguiu vê-lo a dobrar a esquina. Sentada ao pé do rádio, massajava o pulso, espantada por não sentir cólera. Seria verdade, continuaria a amá-la? Não, era mentira. Se calhar, tinha-se apaixonado por ela outra vez, naquele dia em que se encontraram na rua? Lá fora não havia barulho algum, as cortinas estavam corridas, um resplendor esverdeado entrava vindo do jardim. Mas a voz dele parecia sincera, pensava, sintonizando uma e outra estação. Nenhum folhetim, era tudo touradas e futebol.

 

- Vai almoçar - disse a Ambrosio, quando o carro parou na Plaza San Martin. - Volta daqui a hora e meia.

 

Entrou no Bar do Hotel Bolívar e sentou-se junto à porta. Pediu um gim e dois maços de Inça. Na mesa vizinha, três tipos conversavam e conseguia ouvir, mutiladas, as piadas que contavam. Fumara um cigarro e tinha o copo em meio quando o divisou pela janela, atravessando a Colmena.

 

- Desculpe tê-lo feito esperar - disse D. Fermín. - Estava a jogar uma partida e o Landa, já sabe como o senador é, quando se agarra aos dados nunca mais os larga. O Landa está feliz, já se resolveu a greve do Olave.

 

- Vem do Club Nacional? - perguntou ele. - Os seus amigos oligarcas não andam a tramar nenhuma conspiração?

 

- Ainda não - sorriu D. Fermín, e apontando o copo disse ao criado a mesma coisa. - Que tosse é essa, apanhou alguma gripe?

 

- É o cigarro - disse ele, pigarreando outra vez. - Como tem passado? O filho travesso continua a dar-lhe dores de cabeça?

 

-- O Chispas? - D. Fermín levou à boca um punhado de amendoins. - Não, assentou e porta-se bem no escritório. Quem me preocupa agora é o segundo.

 

- Também lhe puxa o corpo para a farra? - perguntou ele.

 

- Quer entrar para aquela balbúrdia de San Marcos em vez da Católica. - D. Fermín provou a bebida, fez um gesto de tédio. Deu-lhe para falar mal dos padres, dos militares, de tudo, para nos irritar a mim e à mãe.

 

- Todos os rapazes são um bocado rebeldes - disse ele. - Acho que até eu o fui.

 

- Não tem explicação, D. Cayo - disse D. Fermín, agora grave. - Era tão aprumado, sempre as melhores notas, até beato. E agora, descrente, caprichoso. Só me havia de faltar que me saia comunista, anarquista, sei lá que mais.

 

- Então vai começar a dar-me dores de cabeça a mim - sorriu ele. - Mas olhe, se eu tivesse um filho, acho que preferia mandá-lo para San Marcos. Há lá muito indesejável, mas é mais universidade, não acha?

 

- Não é por em San Marcos se fazer politiquice - disse D. Fermín, com ar distraído. - É que, além disso, perdeu categoria, já não é como dantes. Agora é uma mestiçagem infecta, que espécie de relações pode o magricela arranjar por lá?

 

Ele olhou-o sem dizer nada e viu-o pestanejar e baixar a vista, confundido.

 

- Não é que eu tenha nada contra os mestiços - deste por ela, filho da puta -, muito pelo contrário, sempre fui o mais democrático possível. O que eu quero é que o Santiago tenha o futuro que merece. E, neste país, é tudo uma questão de relações, bem sabe.

 

Acabaram as bebidas, pediram outras duas. Só D. Fermín depenicava o amendoim, as azeitonas e as batatas fritas. Ele bebia e fumava.

 

- Soube que há uma nova licitação, outro ramal da Panamericana

 

- disse ele. - A sua empresa também se apresenta?

 

- Com a estrada para Pacasmayo, temos que chegue, por agora

 

- disse D. Fermín. - Quem tudo quer, tudo perde. O laboratório tira-me muito tempo, sobretudo agora, que começámos a remodelar o equipamento. Quero que o Chispas aprenda e me alivie um bocado de trabalho, antes de ampliar a empresa de construção.

 

Vagamente, comentaram a epidemia de gripe, as pedras atiradas pelos apristas contra a Embaixada Peruana em Buenos Aires, a ameaça de greve dos têxteis, pegaria a moda das saias compridas ou curtas?, até os copos ficarem vazios.

 

- A Inocência lembrou-se de que era o teu prato preferido e fez ensopado de camarão - o tio Clodomiro piscou-lhe o olho. A pobre velha já não cozinha tão bem como dantes. Fazia tenção de te levar a comer fora, mas fiz-lhe a vontade para não a ferir.

 

O tio Clodomiro serviu-lhe um copito de vermute. O seu apartamentozinho de Santa Beatriz tão arrumado, tão limpo, a velha Inocência tão boa, Zavalita. Tinha-os criado aos dois, tratava-os por tu, uma vez tinha puxado as orelhas ao velhote diante de ti: há séculos que não vens ver o teu irmão, Fermín. O tio Clodomiro bebeu um gohnho e limpou os lábios. Tão bem posto, sempre de colete, o colarinho e os punhos tão engomados, os seus olhinhos viçosos, a sua figura miúda e esquiva, as suas mãos nervosas. Pensa: Sabia, saberá? Há meses, anos, que não o ias ver, Zavalita. Tinhas de ir, vou.

 

- Lembras-te que diferença de idade fazia o tio Clodomiro do meu pai, Ambrosio? - pergunta Santiago.

 

- Aos velhos não se pergunta a idade - riu-se o tio Clodomiro. - Cinco anos, magricela. O Fermín tem cinquenta e dois, portanto faz as contas, estou quase nos sessenta.

 

- E no entanto ele parece mais velho - disse Santiago. - Tu conservaste-te jovem, tio.

 

- Jovem, essa é boa - sorriu o tio Clodomiro. - Deve ser por ter ficado solteiro. Foste ver os teus pais, por fim?

 

- Ainda não, tio - disse Santiago. - Mas hei-de ir, palavra que hei-de ir.

 

- Já passou muito tempo, magricela, tempo de mais - o tio Clodomiro admoestava-o com os seus olhos frescos, límpidos. - Quantos meses já? Quatro, cinco?

 

- Vão-me fazer uma cena terrível, a minha mãe há-de pedir-me aos gritos para voltar - pensa: seis, já. - E não volto, tio, têm de se convencer disso.

 

- Meses sem veres os teus pais, os teus irmãos, vivendo na mesma cidade - o tio Clodomiro abanava a cabeça, incrédulo. - Se fosses meu filho, tinha-te ido procurar, dava-te um par de açoites e trazia-te de volta no dia seguinte.

 

Mas ele não te tinha ido procurar, Zavalita, nem dado açoites, nem obrigado a voltar. Porquê, papá?

 

- Não quero dar-te conselhos, já és um homenzinho, mas não estás a proceder bem, magricela. Que queiras viver sozinho já é uma tolice, mas enfim. Não quereres ver os teus pais isso é que não, magricela. A Zoila está inquietíssima por tua causa. E o Fermín, cada vez que me vem perguntar como é que ele está, o que faz ele, vejo-o mais abatido.

 

- Se me fosse procurar, era por ir - disse Santiago. - Pode-me levar para casa cem vezes à força, que cem vezes eu volto a fugir.

 

- Ele não percebe, eu não percebo - disse o tio Clodomiro. Zangaste-te por ele te ter tirado da prefeitura? Querias que te deixasse preso com os outros doidos? Não te fez sempre as vontades? Não se dedicou sempre mais a ti do que à Teté, mais do que ao Chispas? Sê sincero comigo, magricela. Que tens tu contra o Fermín?

 

- É difícil de explicar, tio. Por agora, é melhor eu não ir a casa. Depois de passar um tempo, irei, prometo.

 

- Deixa-te de tolices e vai de uma vez - disse o tio Clodomiro. - Nem a Zoila nem o Fermín se opõem a que continues na Crónica. A única coisa que os preocupa é que, com o trabalho, abandones os estudos. Não querem que passes a vida sem seres mais que um empregadote, como eu.

 

Sorriu sem amargura e encheu novamente os copos. O ensopado já devia estar pronto, ouvia-se ao longe a voz de cana rachada da Inocência, e o tio Clodomiro abanava a cabeça, condoído: a velha já quase não via, magricela.

 

Que atrevimento, que falta de vergonha, dizia Gertrudis Lama, tornar a procurar-te depois do que te fez?, que horror. E Amalia que horror. Mas ele era assim, desde a primeira vez tinha sido assim. E Gertrudis: como, como é que tinha sido? Demorava o seu tempo, fazia as coisas tornarem-se misteriosas. Procurava pretextos para se enfiar na copa, nos quartos, no pátio quando Amalia lá estava. Ao princípio era incapaz de lhe dizer alguma coisa com a boca, mas falava com os olhos, e ela cheia de medo que a D. Zoila ou os meninos dessem conta e lhe interceptassem as olhadelas. Passou muito tempo antes de se encorajar a dizer-lhe coisas, e Gertrudis que coisas?, tens um ar tão novinho, que cara tão primaveril, e ela assustada, porque aquele tinha sido o primeiro emprego dela. Mas, valha-nos isso, cedo se tranquilizou. Seria atrevido, mas também prudente, ou melhor dizendo, cobarde: tinha mais medo dos senhores que eu, Gertrudis. Nem sequer pelas outras criadas se deixou apanhar, estava a meter-se com ela e aparecia a cozinheira ou a outra rapariga e ele punha-se a mexer. Mas quando estavam a sós, dos atrevimentos de boca passou aos de mão e Gertrudis a rir e tu? Amalia dava-lhe palmadas, uma vez uma bofetada. Podes-me fazer o que quiseres, bates-me e sabe-me a beijos, essas mentiras que eles dizem, Gertrudis. Arranjou maneira de ter o mesmo dia de saída que ela, averiguou onde vivia e um dia Amalia viu-o a passear para trás e para diante defronte da casa da tia em Surquillo, e tu lá dentro a espiá-lo encantada riu-se Gertrudis. Não, aborrecida. Ele impressionava era a cozinheira e a outra rapariga, diziam tão alto, tão forte, quando está de azul sentem-se calafrios, e porcarias assim. Mas ela não, Gertrudis, a Amalia parecia-lhe como outro qualquer e mais nada. Se não foi pela pinta, então porque é que ele te conquistou?, perguntou Gertrudis. Se calhar, pelas prendinhas que deixava escondidas na cama dela. A primeira vez que ele veio meter-lhe um embrulhinho no avental, devolveu-lho sem o abrir, mas depois, que parva, não era, Gertrudis?, aceitava-lhos, e à noite pensava, curiosa, que me dará ele hoje. Punha-os debaixo da colcha, sabe Deus em que altura ele entraria, um alfinete, uma pulseirita, lenços, quer dizer que já estavas com ele. Não, ainda não. Um dia que a tia não estava em Surquillo e ele apareceu, ela, que parva, não era?, saiu. Conversaram em plena rua, a comer uns gelados, e na semana seguinte, no dia de saída, foram ao cinema. Foi nessa altura? perguntou Gertrudis. Sim, tinha-se deixado abraçar, beijar. Desde então deve ter-se julgado com direitos ou qualquer coisa, mal estavam sós queria abusar, Amalia tinha de andar a fugir dele. Dormia ao pé da garagem, o seu quartinho era maior que o das criadas, com quarto de banho próprio e tudo, e uma noite e Gertrudis o quê o quê. Os senhores tinham saído, a Menina Teté e o Menino Santiago deviam já ter adormecido, o Menino Chispas tinha ido para a Escola Naval com a sua farda - o quê, o quê - e ela, parva, ora, tinha-lhe dado atenção, idiota, tinha-se metido no quarto dele. Claro, abusou, e Gertrudis então foi nessa altura, morta de riso. Fizera-a chorar, Gertrudis, sentir um destes medos, uma destas dores. Mas Amalia tinha começado logo a ficar desapontada, nessa mesma noite sentiu-o menos homem, e Gertrudis ahanah, ahahah, e Amalia não sejas parva, não foi por isso, ai que porca, fizeste-me envergonhar. Então com que é que ficaste desapontada?, perguntou Gertrudis. Estavam de luz apagada na cama, ele a consolá-la dizendo-lhe aquelas mentiras, nunca tinha pensado encontrar-te virgem, a beijá-la, e nisto ouviram-nos falar à porta, acabavam de chegar. Foi nessa altura, Gertrudis, foi por causa disso, Gertrudis. Como, o quê? Empaparam-se-lhe as mãos de suor, esconde-te, esconde-te, e empurrava-a, mete-te debaixo da cama, não te mexas, quase a chorar com o medo que sentia, um homenzarrão daqueles, Gertrudis, cala-te, e de repente tapou-lhe a boca com fúria, como se eu fosse gritar ou qualquer coisa, Gertrudis. Só quando ouviram que tinham atravessado o jardim e entrado em casa a largou. Só então disfarçou, por tua causa, para que não te apanhasse a ti, não te repreendesse a ti, não te despedisse a ti. E que tinham de ter muito cuidado, a D. Zoila era tão esquisita. Que estranha se tinha sentido no dia seguinte. Gertrudis, com vontade de rir, com pena, feliz, e que vergonha quando foi lavar às escondidas as manchas de sangue dos lençóis, ai, não sei porque é que te conto estas coisas, Gertrudis. E Gertrudis: porque já te esqueceste do Trinidad, filha, porque agora estás outra vez a morrer de amores pelo tal Ambrosio, Amalia.

 

- Esta manhã estive com os gringos - disse, por fim, D. Fermín. - São piores que o São Tomé. Demos-lhes todas as garantias, mas insistem em ter uma entrevista consigo, D. Cayo.

 

- No fim de contas, ainda são vários milhões - disse ele, com benevolência. - Compreende-se a hesitação deles.

 

- Não consigo perceber os gringos, não acham que são umas crianças grandes? - disse D. Fermín, com o mesmo tom casual, quase displicente. - Meio selvagens, além disso. Põem os pés em cima das mesas, tiram o casaco onde quer que estejam. E estes não são uma gentalha qualquer, creio que são gente bem. Às vezes dão-me vontade de lhes oferecer um livro do Carrefio.

 

Ele via pela janela os eléctricos da Colmena que chegavam e partiam, ouvia as inesgotáveis piadas dos homens da mesa vizinha.

 

- O assunto está arrumado - disse, de súbito. - A noite passada jantei com o ministro do Fomento. A decisão deve aparecer no Diário Oficial segunda ou terça-feira. Diga aos seus amigos que ganharam a licitação, que podem dormir descansados.

 

- Meus sócios, meus amigos não - protestou D. Fermín. O senhor conseguia ser amigo de gringos? Não temos muito em comum com esses grosseirões, D. Cayo.

 

Ele não disse nada. Fumando, esperou que D. Fermín estendesse a mão para o pratinho dos amendoins, que levasse o copo de gim à boca, que bebesse, que limpasse os lábios com o guardanapo, e que o olhasse nos olhos.

 

- A sério que não quer essas acções? - viu-o apartar a vista, interessado de repente na cadeira vazia que tinha na frente. - Eles insistem em que o convença, D. Cayo. E, realmente, não vejo porque é que não as aceita.

 

- Porque sou um ignorante em coisas de negócios - disse ele. Já não lhe contei que, em vinte anos de comerciante, não fiz um único negócio bom.

 

- Acções ao portador, a coisa mais segura, mais directa do mundo. - D. Fermín sorria-lhe amistosamente. - Que se podem vender pelo dobro do valor em pouco tempo, se não quiser conservá-las. Suponho que não pensa que aceitar essas acções fosse um acto indevido.

 

- Há muito tempo que não sei o que é devido ou indevido

- sorriu ele. - Só o que me convém ou não.

 

- Acções que não vão custar um cêntimo ao Estado, mas sim aos grosseirões dos gringos - sorriu D. Fermín. - O senhor faz-lhes um favor, e é lógico que lho retribuam. Essas acções representam muito mais de cem mil soles em numerário, D. Cayo.

 

- Sou modesto, esses cem mil soles bastam-me - sorriu ele de novo, um acesso de tosse fê-lo calar um momento. - Que as dêem ao ministro do Fomento, que é homem de negócios. Só aceito o que é sonante e se pode contar. O meu pai era um usurário, D. Fermín, e dizia isso. Eu herdei essa convicção.

 

- Bom, gostos não se discutem - disse D. Fermín, encolhendo os ombros. - Eu encarrego-me do depósito, o cheque fica pronto hoje.

 

Estiveram calados até o criado se aproximar para levar os copos e trazer a ementa. Um consommé e uma corvina, pediu D. Fermín, e ele um churrasco com salada. Enquanto o criado punha a mesa, ele ouvia, entrecortadamente, D. Fermín falar de um sistema de emagrecer comendo que tinha aparecido nas Selecções deste mês.

 

- Nunca te convidaram para ires lá a casa - disse Santiago. Trataram-te sempre como se fossem superiores a ti.

 

- Bom, graças à tua fuga, agora vemo-nos mais - sorriu o tio Clodomiro. - Mesmo que seja por interesse, andam sempre atrás de mim para lhes dar notícias tuas. E não é só o Fermín, a Zoilita também. Já era tempo de acabar esse afastamento absurdo.

 

- Mas porquê esse afastamento, tio? - disse Santiago. - Só te víamos quando o rei fazia anos.

 

- As patetices da Zoilita - como se dissesse as graças, as encantadoras manias da Zoilita. - As suas manias de grandeza, magricela. Eu sei que é uma grande mulher, uma verdadeira senhora, claro. Mas sempre teve preconceitos contra a nossa família, porque éramos pobretanas e não tínhamos pergaminhos. Ela contagiou o Fermín.

 

- E tu perdoas-lhes isso - disse Santiago. - O meu pai passa a vida a fazer-te desconsiderações e tu permites-lhe isso.

 

- O teu pai tem horror à mediocridade - riu-se o tio Clodomiro- - Deve ter pensado que, se nos déssemos muito, eu lhe pegava a peste. Ele foi sempre muito ambicioso, desde miúdo. Sempre quis ser alguém. Bom, conseguiu-o e ninguém lho pode reprovar. A ti até te devia envaidecer. Porque o Fermín conseguiu o que tem à força de trabalhar. A família da Zoilita lá o terá ajudado depois, mas, quando se casaram, ele já tinha uma magnífica posição. Enquanto o teu tio apodrecia pelas sucursais da província do Banco de Crédito.

 

- Falas sempre de ti como um medíocre, mas no fundo não é isso o que pensas - disse Santiago. - E eu também não. Não terás dinheiro, mas vives satisfeito.

 

- A tranquilidade não é a felicidade - disse o tio Clodomiro. Esse horror do teu pai pelo que foi a minha vida, dantes parecia-me injusto, mas agora compreendo-o. Porque, às vezes, ponho-me a pensar, e não tenho uma única recordação importante. Do escritório para casa, de casa para o escritório. Tolices, rotinas, só isso. Bom, deixemo-nos de coisas tristes.

 

A velha Inocência entrou na salinha: estava a comida na mesa, podiam vir. As suas chinelas, o seu lenço, Zavalita, o seu avental tão grande para aquele corpito raquítico, a sua voz de cana rachada. Havia um prato de ensopado no lugar dele, mas no do tio só havia um café com leite e uma sanduíche.

 

- É a única coisa que posso comer à noite - disse o tio Clodomiro. - Anda, serve-te, antes que arrefeça.

 

De vez em quando vinha a Inocência e virava-se para Santiago: que tal, estava bom? Segurava-lhe a cara, como tu estás crescido, estavas um belo moço, e quando se ia embora, o tio Clodomiro piscava o olho: pobre Inocência, tão carinhosa contigo, com toda a gente, pobre velha.

 

- Porque é que o tio Clodomiro nunca teria casado? - pergunta Santiago.

 

- Esta noite já estás a fazer perguntas de mais - disse o tio Clodomiro, sem rancor. - Bom, cometi o erro de passar quinze anos na província, julgando que assim faria carreira mais depressa no banco. Nessas aldeolas não encontrei noiva que valesse a pena.

 

- Não te escandalizes, que mal teria que fosse? - diz Santiago. - Acontece nas melhores famílias, Ambrosio.

 

- E, quando vim para Lima, o drama foi que para as raparigas eu não valia a pena. - Riu-se o tio Clodomiro. - Depois do pontapé

 

que o banco me deu, tive de começar no Ministério com um ordenado miserável. De maneira que fiquei solteirão. Mas não julgues que me faltaram aventuras, sobrinho.

 

- Espera, rapaz, não te levantes - gritou, lá de dentro, a Inocência. - Ainda falta a sobremesa.

 

- Já quase não vê nem ouve, coitada, e trabalha todo o dia - sussurrou o tio Clodomiro. - Várias vezes tentei meter outra rapariga, para ela descansar. Não há maneira, dão-lhe uns ataques tremendos, diz que o que eu quero é livrar-me dela. É teimosa como um burro. Há-de ir direitinha para o Céu, magricela.

 

Estás doida, disse Amalia, não lho perdoei nem hei-de perdoar, odiava-o. Discutiam muito?, perguntou Gertrudis. Pouco, e sempre por causa da cobardia dele, senão davam-se como Deus com os anjos. Viam-se aos dias de saída, iam ao cinema, passear, à noite ela atravessava o jardim sem sapatos e ficava com Ambrosio uma horita, duas. Tudo muito bem, nem as outras raparigas suspeitavam de nada. E Gertrudis: quando é que descobriste que ele tinha outra mulher?

 

Na manhã em que o viu a limpar o automóvel e a conversar com o Menino Chispas. Amalia estava a olhar de soslaio à medida que metia a roupa na máquina de lavar, e de repente viu-o ficar confundido e dizer ao Menino Chispas: eu, menino? Que ideia, gosto agora dela, nem dada, menino. A apontar para mim, Gertrudis, sabendo que eu estava a ouvir. Amalia imaginou que largava a roupa, corria e o arranhava todo. Nessa noite, só foi ao quarto dele para lhe dizer ouvi tudo, qual é a tua ideia, julgando que Ambrosio lhe pediria desculpa. Mas não, Gertrudis, não, nada disso: fora, põe-te a mexer, sai daqui. Tinha ficado aturdida na escuridão, Gertrudis. Ai isso é que não ia, porque é que me tratas assim, que te fiz eu, até que ele se levantou da cama e fechou a porta. Furioso, Gertrudis, cheio de ódio. Amalia tinha desatado a chorar, julgas que eu não ouvi o que disseste de mim ao menino?, e agora porque é que me pões fora, porque é que me recebes assim. O menino anda desconfiado, sacudia-a pelos ombros com uma destas fúrias, nunca mais ponhas os pés no meu quarto, com um destes desesperos, Gertrudis: nunca mais, ouviste?, fora daqui. Furioso, assustado, doido, sacudindo-a de encontro à parede. Não é por causa dos senhores, não procures pretextos, tentava dizer Amalia, arranjaste outra, mas ele arrastou-a até à porta, empurrou-a para fora e fechou a porta: nunca mais, ouviste? E ainda lhe perdoaste, e ainda gostas dele, disse Gertrudis, e Amalia estás doida? Odiava-o. Quem era a outra mulher? Não sabia, nunca a tinha visto. Envergonhada, humilhada, correu para o quarto a chorar tão alto que a cozinheira acordou e veio ver, Amalia teve de inventar que eram as regras, vêm-me sempre com muitas dores. E desde essa altura nunca mais? Nunca mais. Claro, ele tinha tentado fazer as pazes, vou-te explicar, vamos continuar juntos mas a encontrarmo-nos só na rua. Hipócrita, cobarde, maldito, mentiroso, levantava Amalia a voz e ele, assustado, desaparecia. Vá lá que não te deixou grávida, disse Gertrudis. E Amalia: nunca mais lhe falei, até depois, muito depois. Cruzavam-se em casa e ele bom dia e ela virava a cara, olá Amalia, e ela era como se tivesse passado uma mosca. Se calhar não era pretexto, dizia Gertrudis, se calhar, tinha era medo de que os descobrissem e os pusessem na rua, se calhar, não tinha outra. E Amalia: achas? A prova é que anos depois te viu na rua e te ajudou a arranjar trabalho, dizia Gertrudis, senão porque é que a teria procurado, pago os bilhetes. Se calhar, sempre tinha gostado dela, se calhar, enquanto estavas com o Trinidad sofria por ti, pensava em ti, se calhar, estava mesmo arrependido do que te fez. Achas que sim, perguntava Amalia, achas que sim?

 

- O senhor anda a perder um dinheirão por causa desse critério

- disse D. Fermín. - Não faz sentido que o senhor se contente com quantias miseráveis, não faz sentido ter o capital imobilizado num banco.

 

- O senhor continua apostado em me meter no mundo dos negócios - sorriu ele. - Não, D. Fermín, já tive a minha lição. Nunca mais.

 

- Por cada vinte ou cinquenta mil soles que o senhor recebe, há quem fique com o triplo - disse D. Fermín. - E não é justo, porque é o senhor quem decide as coisas. E, outra coisa, quando é que se decide a investir? Já lhe propus quatro ou cinco negócios que teriam entusiasmado qualquer pessoa.

 

Ele escutava-o com um sorrisinho cortês nos lábios, mas tinha os olhos aborrecidos. O churrasco estava na mesa havia uns minutos e ainda não o tinha provado.

 

- Já lhe expliquei -- pegou na faca e no garfo, ficou a observá-los. - Quando o regime acabar, quem paga as favas sou eu.

 

- Mais uma razão para assegurar o seu futuro - disse D. Fermín.

 

- Hão-de-me cair todos em cima, e os primeiros serão os do regime - disse ele, olhando deprimido a carne, a salada. - Como se, pelo facto de me atirarem com as culpas para cima, ficassem inocentes. Era preciso que eu fosse idiota para investir um centavo neste país.

 

- Livra, que o senhor hoje está pessimista, D. Cayo. - D. Fermín afastou o consommé, o criado trouxe-lhe a corvina. - Quem o ouvir há-de dizer que o Odría vai cair de um momento para o outro.

 

- Por enquanto não - disse ele. - Mas não há governos eternos, bem sabe. Aliás, não tenho ambições. Quando isto acabar, vou viver lá para fora sossegado, morrer em paz.

 

Olhou o relógio, tentou engolir alguns bocados de carne. Mastigava contra vontade, bebendo goles de água mineral, e por fim fez sinal ao criado para lhe levar o prato.

 

- Às três tenho encontro marcado com o ministro e já são duas e um quarto. Não tínhamos outro assuntozinho, D. Fermín?

 

  1. Fermín pediu café para ambos, acendeu um cigarro. Tirou um envelope do bolso e pô-lo na mesa.

 

- Preparei-lhe um memorando, para que estude os dados com calma, D. Cayo. Um pedido de concessão de terras, na região de Bagua. São uns engenheiros jovens, dinâmicos, cheios de vontade de trabalhar. Querem criar gado vacum, como verá. O processo está parado no Ministério da Agricultura há seis meses.

 

- Tomou nota do número do processo? - guardou o envelope na maleta, sem olhá-lo.

 

- E da data em que começou a demanda e dos departamentos por que passou - disse D. Fermín. - Desta vez não tenho nenhum interesse na empresa. São pessoas que quero ajudar. Amigos.

 

- Não lhe posso prometer nada, antes de me informar - disse ele. - Aliás, o ministro da Agricultura não morre de amores por mim. Enfim, depois lhe direi qualquer coisa.

 

- Logicamente, estes rapazes aceitarão as suas condições - disse D. Fermín. - Está certo que eu lhes faça um favor por amizade, mas não que o senhor arranje maçadas para nada por pessoas que não conhece.

 

- Logicamente - disse ele, sem sorrir. - Só arranjo maçadas para nada pelo regime.

 

Beberam o café, calados. Quando o criado trouxe a conta, puxaram os dois pela carteira, mas foi D. Fermín quem pagou. Saíram juntos para a Plaza San Martin.

 

- Imagino que deve andar ocupadíssimo com a viagem do presidente a Cajamarca - disse D. Fermín.

 

- Sim, um bocado, eu telefono-lhe quando este assunto acabar disse ele, estendendo-lhe a mão. - Já aí vem o meu carro. Até breve, D. Fermín.

 

Entrou no carro, ordenou para o Ministério, depressa. Ambrosio contornou a Plaza San Martin, seguiu em direcção ao Parque Universitário, guinou para a Abancay. Ele folheava o envelope que D. Fermín lhe entregara, e de vez em quando levantava os olhos e fixava-os na nuca de Ambrosio: o conas não queria que o filho se desse com mestiços, não queria que as más maneiras se lhe pegassem. Deixa estar que havia de convidar lá para casa tipos como o Arévalo ou o Landa, até mesmo os gringos a quem ele chamava grosseirões, todos menos ele. Riu-se, tirou um comprimido do bolso e encheu a boca de saliva: não queria que pegasses as más maneiras à mulher, aos filhos.

 

- Tens passado a noite a fazer perguntas, agora é a minha vez disse o tio Clodomiro. - Como te correm as coisas lá na Crónica?

 

- Já estou a aprender a medir as notícias - disse Santiago. - Ao princípio, ou me saíam muito compridas ou muito curtas. E também já me habituei a trabalhar de noite e dormir de dia.

 

- É outra coisa que deixa o Fermín aterrado - disse o tio Clodomiro. - Acha que com um horário desses ainda ficas doente. E que já não voltas à universidade. É verdade que vais às aulas?

 

- Não, é mentira - disse Santiago. - Desde que saí de casa não voltei à universidade. Mas não digas nada ao meu pai, tio.

 

O tio Clodomiro deixou de se mexer, as suas pequenas mãos esvoaçaram alarmadas, os seus olhos assustaram-se.

 

- Não me perguntes porquê, nem eu to sei explicar - disse Santiago. - Às vezes penso que é por não querer encontrar aqueles rapazes que ficaram na prisão enquanto a mim o meu pai me tirava de lá. Outras apercebo-me de que não é isso. Não gosto da advocacia, acho-a uma estupidez, não acredito nisso. Para que é que eu me hei-de formar?

 

- O Fermín tem razão, fiz-te um péssimo serviço - disse o tio Clodomiro, penalizado. - Agora que tens dinheiro, já não queres estudar.

 

- O teu amigo Vallejo não te disse quanto é que nos pagam? riu-se Santiago. - Não, tio, quase não tenho dinheiro. - Tenho tempo, poderia assistir às aulas. Mas ,é mais forte do que eu, a simples ideia de entrar na universidade dá-me náuseas.

 

- Não vês que podes ficar toda a vida como empregado te? perguntou o tio Clodomiro, consternado. - Um rapaz como tu, magricela, tão brilhante, tão estudioso.

 

- Não sou brilhante nem estudioso, não repitas isto ao meu pai, tio - disse Santiago. - A verdade é que estou desorientado. Sei o que não quero ser, mas não o que gostaria de ser. Não quero ser advogado, nem rico, nem importante, tio. Não quero ser aos cinquenta anos o que o meu pai é, o que são os amigos do meu pai. Estás a ver, tio?

 

- Estou a ver é que te falta uma ferramenta - disse o tio Clodomiro, com uma cara desolada. - Estou arrependido de ter falado ao Vallejo, magricela. Sinto-me responsável por tudo isto.

 

- Se não tivesse entrado para a Crónica, tinha arranjado outro emprego qualquer - disse Santiago. - Vinha a dar no mesmo.

 

Viria, Zavalita? Não, se calhar, seria diferente, se calhar, o pobre tio Clodomiro era responsável em parte. Eram dez horas, tinha de se ir embora. Levantou-se.

 

- Espera, tenho de te perguntar o que a Zoilita me pergunta a mim - disse o tio Clodomiro. - Submete-me sempre a um interrogatório tremendo. Quem te lava a roupa, quem te cose os botões.

 

- A senhora da pensão trata muito bem de mim - disse Santiago. - Que não se preocupe.

 

- E os teus dias livres? - perguntou o tio Clodomiro. - Com quem andas, onde vais. Sais com raparigas? É outra coisa que tira o sono à Zoilita. Se não andas metido nalguma aventura com uma tipa, coisas assim.

 

- Não estou metido com ninguém, sossega-a - riu-se Santiago.

- Diz-lhe que estou bem, que me estou a portar bem. Vou vê-los em breve, a sério.

 

Foram à cozinha e deram com Inocência adormecida na sua cadeira de balouço. O tio Clodomiro repreendeu-a e os dois ajudaram-na a chegar ao quarto, cabeceando de sono. A porta da rua, o tio Clodomiro abraçou Santiago. Vinha jantar na segunda-feira? Venho, tio. Apanhou um colectivo na Avenida Arequipa e, na Plaza San Martin, procurou Norwin nas mesas do Bar Zela. Ainda não tinha chegado, e, depois de estar à espera dele um bocado, saiu ao seu encontro pela Calle de la Union. Estava à porta de La Prensa a conversar com outro redactor da Última Hora.

 

- Que é que aconteceu? - perguntou Santiago. - Não ficámos de nos encontrar às dez no Zela?

 

- Isto é a profissão mais sacana que há, convence-te, Zavalita disse Norwin. - Tiraram-me todos os redactores e tive de encher a página sozinho. Há uma revolução, uma idiotice qualquer. Apresento-te aqui o Castelano, um colega.

 

- Uma revolução? - perguntou Santiago. - Cá?

 

- Uma revolução abortada, ou coisa que o valha - disse Castelano. - Parece que era encabeçada pelo Espina, aquele general que foi ministro do Governo.

 

- Não há nenhum comunicado oficial, e estes cabrões tiraram-me o pessoal todo para ir procurar informações - disse Norwin. - Enfim, esqueçamos isso, vamos tomar umas bebidas.

 

- Espera, eu quero saber - disse Santiago. - Vem comigo até à Crónica.

 

- Vão-te pôr a trabalhar e perdes a tua noite de folga - disse Norwin. - Vamos tomar uma bebida e por volta das duas passamos por lá para ir buscar o Carlitos.

 

- Mas como é que foi? - perguntou Santiago. - Quais são as notícias?

 

- Não há notícias, só boatos - disse Castelano. - Esta tarde começaram a prender pessoas. Dizem que a coisa era em Cuzco e Tumbes. Os ministros estão reunidos no Palácio.

 

- Mobilizaram todos os redactores só por vontade de nos foderem - disse Norwin. -• De qualquer maneira, não vão poder publicar nada além do comunicado oficial, e sabem-no muito bem.

 

- Porque é que em vez de irmos ao Zela não vamos à velha Ivonne? - perguntou Castelano.

 

- Então quem é que disse que o general Espina está metido nisso? - perguntou Santiago.

 

- Okay, à Ivonne, e de lá telefonamos ao Carlitos para vir ter connosco - disse Norwin. - Lá no bordel vais averiguar mais coisas sobre a conspiração do que na Crónica, Zavalita. E, no fim de contas, que te importa, ora que caralho. Interessa-te a política?

 

- É pura curiosidade - disse Santiago. - Aliás, só tenho um par de libras, a casa da Ivonne é caríssima.

 

- Isso é o menos, visto que estás na Crónica - riu-se Castelano.

- Sendo colega do Becerrita, arranjas lá todo o crédito que quiseres.

 

Na semana seguinte, Ambrosio não apareceu por San Miguel, mas na seguinte Amalia encontrou-o um dia à espera dela na mercearia da esquina. Tinha-se escapado só um bocadinho para te ver, Amalia. Não discutiram, conversaram o mais amigavelmente possível. Ficaram de sair juntos no domingo. Estás tão mudada, disse-lhe ele ao despedir-se, como tu te puseste.

 

Tinha melhorado assim tanto? Carlota dizia-lhe tens tudo o que é preciso para agradar aos homens, a senhora também se metia com ela com coisas assim, os polícias da esquina desfaziam-se em sorrisos, os motoristas do senhor em olhadelas, até o jardineiro, o rapaz das entregas da mercearia e o miúdo dos jornais passavam o tempo a dizer-Lhe piropos: se calhar era verdade. Em casa, foi-se ver aos espelhos da senhora, com um brilho malicioso nos olhos: realmente, era verdade. Tinha engordado, vestia melhor e isso devia-o à senhora, tão boa. Dava-lhe tudo o que já não usava, mas não como quem diz livra-me disto, com carinho. Este vestido já não me serve, prova-o, e vinha a senhora, é preciso subi-lo aqui, apertá-lo um bocadinho aqui, estas franjas não te ficam bem. Andava sempre a dizer-lhe não andes com as unhas sujas, penteia-te, lava o avental, uma mulher que não cuida de si está tramada. Não como sua criada, pensava Amalia, dá-me conselhos como se fosse uma pessoa da sua igualha. A senhora tinha-a mandado cortar o cabelo com uma franjinha à homem, uma vez que lhe apareceram borbulhas, ela própria lhe pôs uma das suas pomadas e daí a uma semana tinha a cara limpinha, outra vez teve uma dor de dentes, e ela própria a levou ao dentista, mandou-a tratar e não lhe descontou no ordenado. Alguma vez a D. Zoila era capaz de a tratar assim, alguma vez se preocupava daquela maneira. Não havia como a D. Hortênsia. A ela o que mais lhe importava no mundo era que tudo estivesse limpo, que as mulheres fossem bonitas e os homens bem parecidos. Era a primeira coisa que queria saber fosse de quem fosse, Fulaninha era bonita, e ele que tal era? E, isso sim, não perdoava que alguém fosse feio. Como ela troçava da D. Maclovia, por causa dos seus dentes de coelho, do Sr. Gumucio, por causa, da sua pança, daquela a que chamavam Paqueta, por causa das pestanas e unhas e seios postiços, e da velhice da D. Ivonne. O que elas diziam mal da D. Ivonne, ela e a Menina Queta! Que de tanto pintar o cabelo estava a ficar careca, que num almoço lhe tinha caído a dentadura, que as injecções que tinha tomado em vez de a rejuvenescerem lhe fizeram mais rugas. Falavam tanto dela que Amalia sentia curiosidade e um dia Carlota disse-lhe está ali, é aquela que veio com a Menina Queta. Foi espreitá-la. Estavam a tomar uma bebida na sala. A D. Ivonne não era assim tão velha nem tão feia, que injustas. E que elegância, que jóias, toda ela brilhava. Quando se foi embora, a senhora entrou na cozinha: esqueçam-se de que a velha veio cá. Ameaçou-as com o dedo, a rir: se o Cayo sabe que ela esteve cá, mato-as as três.

 

Do umbral viu o pequeno rosto constrangido do Dr. Arbeláez, as suas maçãs ossudas e grosseiras, os óculos na ponta do nariz.

 

- Lamento chegar tarde, doutor - a secretária é grande de mais para ti, pobre diabo. - Tive um almoço de trabalho, desculpe.

 

- Vem muito a tempo, D. Cayo - o Dr. Arbeláez sorriu-lhe sem afecto. - Sente-se, faça favor.

 

- Vi ontem o seu memorando, mas não puder vir antes - arrastou uma cadeira, pôs a pasta sobre os joelhos. - A viagem do presidente a Cajamarca absorveu-me durante estes dias.

 

Por detrás dos óculos, os olhos míopes e hostis de Arbeláez anuíram.

 

- É outro assunto de que gostava de falar consigo, D. Cayo. comprimia a boca, não dissimulava a sua contrariedade. - Anteontem pedi informações ao Lozano sobre os preparativos e ele disse-me que o senhor lhe tinha dado instruções para não os comunicar a ninguém.

 

- Pobre Lozano - disse ele, compadecidamente. - É claro que o senhor lhe deu uma descompostura.

 

- Não, não lhe dei descompostura nenhuma - disse o Dr. Arbeláez. - Fiquei tão admirado que nem consegui.

 

- O pobre do Lozano é útil, mas muito palerma - sorriu ele. Os preparativos da segurança estavam ainda em estudo, doutor, não valia a pena maçarem-no com isso. Eu o informarei de tudo, assim que tenhamos completado os pormenores.

 

Acendeu um cigarro, o Dr. Arbeláez chegou-lhe um cinzeiro. Olhava-o muito sério, com os braços cruzados entre uma agenda e uma fotografia de uma mulher de cabelos brancos e três jovens risonhos.

 

- Teve tempo de dar uma vista de olhos ao memorando, D. Cayo?

 

- Com certeza, doutor. Li-o com todo o cuidado.

 

- Então deve estar de acordo comigo - disse o Dr. Arbeláez, com secura.

 

- Desculpe que lhe diga, mas não estou - disse ele. Tossiu, murmurou perdão, e deu outra fumaça. - O fundo de segurança é sagrado. Não posso aceitar que me tire esses milhões. Acredite que lamento muito.

 

O Dr. Arbeláez pôs-se de pé, muito depressa. Deu uns passos em frente da secretária, com os óculos a dançar nas mãos.

 

- Já esperava isso, claro - a sua voz não era impaciente nem furiosa, mas tinha empalidecido ligeiramente. - No entanto, o memorando é claro, D. Cayo. E preciso renovar esses carros da polícia que estão a cair de velhos, é preciso iniciar os trabalhos nos comissariados da Tacna e da Moquegna senão qualquer dia desmoronam-se. Há mil e uma coisas paralisadas e os prefeitos e subprefeitos dão comigo em doido com telefonemas e telegramas. Onde é que quer que eu vá buscar os milhões necessários? Não sou bruxo, D. Cayo, não posso fazer milagres.

 

Ele anuiu, muito sério. O Dr. Arbeláez passava os óculos de uma mão para a outra, em pé defronte dele.

 

- Não há maneira de utilizar outras verbas do Orçamento? perguntou ele. - O ministro da Fazenda...

 

- Não nos quer dar nem mais um centavo e o senhor está farto de o saber - o Dr. Arbeláez levantou a voz. - Não há reunião do Gabinete em que ele não diga que os gastos do Governo são exorbitantes, e se o senhor açambarca metade da nossa verba para...

 

- Não açambarco coisa nenhuma, doutor - sorriu ele. - A segurança exige dinheiro, que quer? Eu não posso cumprir a minha obrigação se me reduzirem um centavo que seja o fundo de segurança. Lamento imenso, doutor.

 

Também havia trabalhinhos doutro género, senhor, mas que eram eles a fazer, Ambrosio não. Esta noite saímos, disse o Sr. Lozano, avisa o Hipólito e o Ludovico, no carro oficial, senhor? Não, no Fordzinho velho. Eles depois contavam-lhe, senhor, por isso é que Ambrosio sabia: seguir tipos, tomar nota de quem entrava em casa, fazer os apristas presos confessarem o que sabiam, nessas alturas é que o Hipólito se punha como Ambrosio lhe tinha contado, senhor, ou talvez fossem invenções do Ludovico. Ao anoitecer, o Ludovico foi a casa do Sr. Lozano, tirou o Fordzinho, foi buscar o Hipólito, meteram-se no Rialto a ver um policial e às nove e meia estavam à espera do Sr. Lozano na Avenida Espana. E, na primeira segunda-feira de cada mês, acompanhavam o Sr. Lozano a cobrar a mensalidade, dizem que era assim que ele lhe chamava. Claro, saiu de óculos escuros e encolheu-se no banco de trás. Ofereceu-lhes cigarros, disse-lhes uma piada, que bem disposto que ele anda quando está a trabalhar para ele comentou depois o Hipólito, e o Ludovico diz antes quando nos manda trabalhar para ele. A mensalidade, o dinheirinho que extorquia a todos os bordéis e pensões de pegas de Lima, que espertalhão, não acha, senhor? Começaram pela saída para Chosica, na casinha escondida por detrás do restaurante onde vendiam frangos. Vai tu, disse o Sr. Lozano ao Ludovico, senão o Pereda demora-me uma hora com as suas histórias e ao Hipólito entretanto vamos dar uma volta. Fazia aquilo às escondidas, senhor, devia julgar que D. Cayo não sabia de nada, depois quando o Ludovico passou a trabalhar com Ambrosio contou tudo a D. Cayo para cair nas boas graças dele e afinal de contas D. Cayo estava farto de saber. O Fordzinho arrancou, o Ludovico esperou que ele desaparecesse e empurrou a cancela. Havia muitos carros em bicha, todos com os mínimos, dando toques nos guarda-lamas e pára-choques e tentando ver as caras dos pares, dirigiu-se à porta onde estava o cartaz. Porque havia lá alguma coisa que D. Cayo não soubesse, senhor. Veio um criado que o reconheceu, espere só um bocadinho, e daí a pouco veio o Pereda, e então o Sr. Lozano? Está lá fora, mas cheio de pressa, disse o Ludovico, por isso não entrou. Tenho de falar com ele, disse o Pereda, é importantíssimo. Com aquilo de acompanhar o Sr. Lozano a cobrar mensalidades, o Ludovico e o Hipólito conheciam a Lima nocturna, aqui somos os reis das casas de pegas, diziam eles, imagine o que eles não abusariam, senhor. Caminharam até à cancela, esperaram pelo Fordzinho, o Ludovico pôs-se ao volante outra vez e o Pereda entrou para trás: arranca, disse o Sr. Lozano, não vamos ficar aqui. Mas o farrista a valer tinha sido o Hipólito, senhor, o Ludovico era sobretudo ambicioso: queria trepar, melhor dizendo, que um dia o metessem no quadro. Ludovico seguia pela estrada e de vez em quando olhava para o Hipólito e o Hipólito olhava para ele, como quem diz que pintor, este Pereda, as aldrabices que ele contava. Depressa, não tenho tempo, dizia o Sr. Lozano, o que é que é importantíssimo? Porque é que lhe aparavam os golpes, pergunta o senhor? Fulano, que apareceu aqui esta semana, Sr. Lozano, Sicrano que trouxe Beltrana, e o Sr. Lozano já sei que conheces todo o Peru, o que é que é importantíssimo? Porque não via que as pensões de pegas e os bordéis tiravam licença no comissariado, senhor? O Pereda mudou de voz e o Ludovico e o Hipólito trocaram um olhar, agora ia começar a lamúria. O Sr. Engenheiro tinha estado muito sobrecarregado de despesas, Sr. Lozano, pagamentos, letras, este mês não tinham lucros. De maneira que ou caíam com o dinheiro para ele ou ele lhes tirava a licença ou os multava: não tinham outro remédio, senhor. O Sr. Lozano rosnou e o Pereda parecia mel: mas o Sr. Engenheiro não se tinha esquecido do seu compromisso, Sr. Lozano, tinha-lhe deixado este chequezinho com a data antecipada, não fazia mal, pois não, Sr. Lozano? E o Ludovico e o Hipólito como quem diz prepara-te que aí vem o pontapé. Faz mal sim senhor porque eu não aceito cheques, disse o Sr. Lozano, o engenheiro tem vinte e quatro horas para fechar o negócio senão vêm-lhe fechar a porta; vamos deixar o Pereda, Ludovico. E o Ludovico e o Hipólito diziam que até para renovar a licença às pegas ele pedia a sua parte, senhor. Ò Pereda passou toda a viagem de regresso a explicar-se, a desculpar-se, e o Sr. Lozano mudo e quedo. Vinte e quatro horas, Pereda, nem mais um minuto, disse ao chegarem. E depois: estas mesquinhices incham-me cá os tomates. E o Ludovico e o Hipólito como quem diz o Pereda perdeu a noite, ficou fulo. Devia ser por isso que D. Cayo dizia se um dia o Lozano sai da polícia faz-se chulo, senhor: a verdadeira vocação dele é essa.

 

No sábado o telefone tocou duas vezes de manhã, a senhora ia atender e não era ninguém. Isto é alguém a pregar-me partidas, dizia a senhora, mas de tarde tocou outra vez. Amalia está, está?, e por fim reconheceu a voz assustada de Ambrosio. Com que então és tu que tens estado a ligar, disse ela a rir, não está cá ninguém, fala à vontade. Não podia sair no domingo com ela nem no seguinte, tinha de levar D. Fermín a Ancón. Não importa, disse Amalia, fica para outro dia. Mas importou-lhe, passou a noite de sábado acordada, a pensar. Aquilo da ida a Ancón seria verdade? No domingo saiu com Maria e Anduvia. Foram passear para o Parque de Ia Reserva, compraram gelados e estiveram sentadas na relva, a conversar, até que vieram uns soldados e tiveram de se ir embora. Não estaria ele comprometido com outra? Foram ao cinema Azul; estavam bem dispostas e, sentindo-se seguras sendo três, deixaram dois tipos pagarem-lhes o bilhete. Não estaria ele nesse momento noutro cinema bem acompanhado por? Mas a meio da sessão quiseram abusar e elas saíram a correr do Azul, e os tipos atrás a gritar o nosso dinheiro, suas vigaristas!, felizmente encontraram um polícia que os enxotou. Não se teria cansado de ela lhe estar sempre a lembrar como ele se tinha portado mal com ela? Durante toda a semana, Amalia, Maria e Anduvia só falaram dos tipos, e metiam medo umas às outras, vão aparecer, toparam onde nós vivemos, vão-te matar, vão-nos, com ataques de riso até que Amalia se punha a tremer e corria para casa. Mas à noite punha-se a pensar no mesmo: seria que ele nunca mais a procuraria? No domingo seguinte foi visitar a Sr.a Rosário a Mirones. A Celeste tinha fugido com um tipo e três dias depois tinha voltado sozinha, com uma cara de palmo e meio. Dei-lhe uma sova que a deixei em sangue, dizia a Sr.a Rosário, e se o tipo lhe fez um filho mato-a. Amalia ficou lá até à noite, sentindo-se mais deprimida que nunca no beco. Apercebia-se das poças de águas fétida, das nuvens de moscas, dos cães tão escanzelados, e espantava-se de pensar que tinha querido passar o resto da vida no beco quando Trinidad e o seu filhinho tinham morrido. Nessa noite acordou antes do amanhecer: que te importa que ele não volte, parva, melhor para ti. Mas estava a chorar.

 

- Nesse caso, vejo-me obrigado a recorrer ao presidente, D. Cayo - o Dr. Arbeláez pôs os óculos, nos punhos tesos da sua camisa cintilavam uns botões de punho de prata. - Procurei manter as melhores relações com o senhor, nunca lhe pedi contas, aceitei que a Direcção do Governo me subestimasse em mil e uma coisas. Mas não deve esquecer que eu sou o ministro e que o senhor está debaixo das minhas ordens.

 

Ele anuiu, com os olhos cravados nos sapatos. Tossiu, levando o lenço à boca. Levantou a cara, como que a resignar-se a uma coisa que o entristecia.

 

- Não vale a pena incomodar o presidente - disse, quase com timidez. - Eu tomei a liberdade de lhe explicar o assunto. Naturalmente, não me teria atrevido a não satisfazer a sua solicitação sem o apoio do presidente.

 

Viu-o apertar as mãos, ficar absolutamente imóvel, a olhá-lo com um ódio minucioso e devastador.

 

- Então já falou com o presidente - tremiam-lhe o queixo, os lábios, a voz. - Com certeza lhe apresentou as coisas do seu ponto de vista, claro.

 

- Vou-lhe falar com franqueza, doutor - disse ele, sem mau humor, sem interesse. - Estou na Direcção do Governo por duas razões. A primeira, porque o general mo pediu. A segunda, porque ele aceitou a minha condição: dispor do dinheiro necessário e não dar contas a ninguém do meu trabalho senão a ele em pessoa. Desculpe-me dizê-lo cruamente, mas é assim que as coisas são.

 

Olhou para Arbeláez, à espera. A cabeça dele era grande de mais para o corpo, os seus olhinhos míopes arrasaram-no devagar, milimetricamente. Viu-os sorrir com um esforço que lhe desfigurou a boca.

 

- Não ponho em dúvida o seu trabalho, sei que é extraordinário, D. Cayo - falava de uma maneira artificiosa e ofegante, a sua boca sorria, os olhos fulminavam-no, incansáveis. - Mas há problemas a resolver e o senhor tem de me ajudar. O fundo de segurança é exorbitante.

 

- Porque as nossas despesas são exorbitantes - disse ele. - Vou-lhe demonstrar, doutor.

 

- Também não duvido de que o senhor usa essa verba com a maior responsabilidade - disse o Dr. Arbeláez. - Simplesmente...

 

- O que custam as direcções sindicais aliadas, as redes de informação em centros de trabalho, nas universidades e na administração - recitou ele, ao mesmo tempo que tirava um processo da pasta e o punha em cima da secretária. - O que custam as manifestações, o que custa conhecer as actividades dos inimigos do regime aqui e no estrangeiro.

 

O Dr. Arbeláez não tinha olhado para o processo; escutava-o, acariciando um dos botões de punho, sempre com os olhinhos a odiarem-no morosamente.

 

- O que custa aplacar os descontentes, os invejosos e os ambiciosos que todos os dias surgem dentro do próprio regime - recitava ele. - A tranquilidade não é só uma questão de pau, é também de soles. O senhor torce o nariz e tem razão. Dessas coisas feias ocupo-me eu, o senhor nem sequer tem de tomar conhecimento delas. Dê uma olhadela a estes papéis e depois me dirá se acha que se podem fazer economias sem pôr a segurança em perigo.

 

- Mas sabe o senhor porque é que D. Cayo suporta as espertezas do senhor Lozano com as pensões de pegas e os bordéis, senhor? perguntou Ambrosio.

 

Dito e feito, o Sr. Lozano tinha perdido o bom humor: neste país, todos queriam armar em espertos, era a terceira vez que o Pereda vinha com a historieta do cheque. O Ludovico e o Hipólito, mudos, olhavam-se de soslaio: como se ele tivesse nascido ontem, caralho. Não lhes bastava enriquecerem à custa da luxúria das pessoas, ainda o queriam explorar a ele. Era de mais, ia-se começar a aplicar a lei e depois se veria onde iam parar as pensõezinhas. Já estavam na Urbanização de los Claveles, já tinham chegado.

 

- Vai tu, Ludovico - disse o Sr. Lozano. - Traz-me cá o coxo.

 

- Porque graças aos seus contactos com as pensões de pegas e bordéis, o senhor Lozano fica a saber a vida toda das pessoas - disse Ambrosio. - Pelo menos, era o que eles os dois diziam.

 

O Ludovico correu em direcção à cerca. Não havia bicha: os automóveis davam as suas voltas até sair algum carro, então estacionavam defronte do portão, sinais de luzes, abriam-lhes a porta e toca de molhar a sopa. Lá dentro estava tudo escuro; sombras de carros a entrar nas garagens, réstias de luz por baixo das portas, silhuetas de criados a transportarem cervejas.

 

- Viva, Ludovico - disse o coxo Melequías. - Posso-te servir uma cerveja?

 

- Não há tempo, amigo - disse Ludovico. - Está ali o homem à espera.

 

- Bom, não sei exactamente o que é que ele ficava a saber, senhor - disse Ambrosio. - A mulher que punha os cornos ao marido e com quem, o marido à mulher e com quem. Calculo que era esse género de coisas.

 

Coxeando, Melequías dirigiu-se à parede e tirou o casaco do cabide, agarrou no braço de Ludovico: faz-me de bengala para ir mais depressa, amigo. Até à Panamericana não parou de falar, e do mesmo de sempre: os seus quinze anos na polícia. E não como um simples chui, mas no quadro, e dos ladrões que lhe tinham fodido a pata à navalhada daquela vez.

 

- E essas informações são muito úteis a D. Cayo, não acha, senhor? - disse Ambrosio. - Sabendo essas coisas íntimas das pessoas, tem-nas presas por aqui, não é?

 

- Devias agradecer aos ladrões, Melequías - disse Ludovico. Graças a eles, tens este empregozinho descansado, onde deves encher o papo.

 

- Não penses nisso, Ludovico - viam os carros passar zunindo pela Panamericana, o Fordzinho não chegava. - Tenho saudades da polícia. Sacrificada, lá isso era, mas aquilo é que era vida. Já sabes, amigo, quando precisares, esta casa é tua. Quarto grátis, serviço grátis, até Bebidas grátis para ti, Ludovico. Olha, lá vem o carrito.

 

- Aqueles dois julgavam que, com as informações que lhes davam nas pensões de pegas, o senhor Lozano fazia as suas chantagens disse Ambrosio. - Que também sacava as suas talhadas para evitar escândalos às pessoas. Que tipo para os negócios, não acha, senhor?

 

- Espero que não me venhas com nenhuma aldrabice, coxo disse o Sr. Lozano. - Olha que estou muito mal disposto.

 

- Que ideia - disse o coxo Melequías. - Aqui tem o seu envelopezinho, com os cumprimentos do chefe, senhor Lozano.

 

- Ora vá lá, vá lá. - E o Ludovico e o Hipólito como quem diz amansou-o completamente. - E acerca do outro, coxo, o sujeito apareceu por aqui?

 

- Apareceu na sexta-feira - disse o coxo Melequías. - O mesmo carro que da outra vez, senhor Lozano.

 

- Muito bem, coxo - disse o Sr. Lozano. - Bravo, coxo.

 

- Se acho mal? - disse Ambrosio. - Bem, senhor, por um lado, claro que sim, não é? Mas essas coisas da polícia, da política, nunca são muito limpas. Trabalhando com D. Cayo, a gente dava por isso, senhor.

 

- Mas houve um acidente, senhor Lozano - o Ludovico e o Hipólito: borrou outra vez a pintura. - Não, não me esqueci de como é que se trabalhava com o aparelho, o tipo que o senhor mandou deixou a instalação perfeita. Eu mesmo carreguei na alavancazinha.

 

- E então onde é que estão as películas? - perguntou o Sr. Lozano. - Onde estão as fotografias?

 

- Comeram-nas os cães, senhor - Hipólito e- Ludovico não se olhavam, retorciam as bocas, encolhiam-se. - Comeram metade da película, fizeram as fotografias em pedaços. O embrulhinho estava em cima do frigorífico, senhor Lozano, e os animais...

 

- Chega, chega, coxo - rugia o Sr. Lozano. - Tu não és imbecil, és mais do que isso, não há palavras para dizer o que tu és, coxo. Os cães, comeram-nas os cães?

 

- Uns canzarrões enormes, senhor - disse o coxo Melequías. Trouxe-os o chefe, uns esfomeados, comem tudo o que encontram, até podem comer uma pessoa se ela se descuida. Mas o sujeito com certeza vai voltar e...

 

- Vai ao médico - disse o Sr. Lozano. - Há-de haver um tratamento qualquer, injecções, qualquer coisa, tanta estupidez deve-se poder curar. Os cães, caralho, comeram-nas os cães. Chau, coxo. Sai, não te desculpes e vai-te embora de uma vez. Para a Prolongación Meiggs, Ludovico.

 

- E, aliás, não era só o senhor Lozano que se aproveitava - disse Ambrosio. - Não o fazia também D. Cayo, de outra maneira? Aqueles dois diziam que no quadro todos tiravam a sua fatia duma maneira ou doutra, do primeiro ao último. Devia ser por isso que o grande sonho do Ludovico era ingressar no quadro. Não julgue que todas as pessoas são tão decentes e honestas como o senhor.

 

- Agora vai tu, Hipólito - disse o Sr. Lozano. - Para te irem conhecendo, já que ao Ludovico não lhe vão ver a cara por uns bons tempos.

 

- Porque é que diz isso, senhor Lozano? - perguntou Ludovico.

 

- Não te faças parvo, estás farto de saber porquê - disse o Sr. Lozano. - Porque vais trabalhar com o senhor Bermúdez, como tu querias, não era?

 

Lá para o meio da semana seguinte, Amalia estava a arrumar uma mísula quando tocaram a campainha. Foi abrir e deu de caras com D. Fermín. Tremeram-lhe os joelhos, mal conseguiu balbuciar bom dia.

 

- D. Cayo está? - não correspondeu ao seu cumprimento, entrou na sala quase sem olhar para ela. - Diz-lhe que é Zavala, se fazes favor.

 

Não te reconheceu, conseguiu pensar, meio admirada, meio ressentida, e nisto apareceu a senhora na escada: entra, Fermín, senta-te. O Cayo devia estar a vir, telefonou-me agora mesmo, podia servir-lhe uma bebida? Amalia fechou a porta, escapuliu-se para a copa e ficou à espreita. D. Fermín olhava para o relógio, tinha os olhos impacientes e a cara enfadada, a senhora estendeu-lhe um copo de uísque. Que teria acontecido ao Cayo, que era sempre tão pontual? Parece que a minha companhia não te agrada, assim zango-me contigo. Tratavam-se com uma destas confianças, Amalia estava espantada. Saiu pela porta de serviço, atravessou o jardim e Ambrosio tinha-se afastado um pouco da casa. Recebeu-a com uma cara aterrada: viu-te, falou contigo?

 

- Nem sequer me conheceu - disse Amalia. -- Mudei assim tanto, por acaso?

 

- Ainda bem, ainda bem - respirou Ambrosio, como se lhe tivessem devolvido a vida; abanava a cabeça, ainda combalido, e olhava para a casa.

 

- Sempre com segredos, sempre com receios - disse Amalia. Eu terei mudado, mas tu continuas o mesmo.

 

Mas dizia-lho a sorrir, para que visse que não o estava a repreender, que era de brincadeira, e pensou como tu estás satisfeita de o ver, parva. Agora Ambrosio ria-se também e com as mãos dava a entender escapámos de boa, Amalia. Chegou-se um pouco mais a ela e de repente agarrou-lhe na mão: saíam no domingo, encontravam-se na paragem às duas? Bom, então, domingo.

 

- Então D. Fermín e D. Cayo fizeram as pazes - disse Amalia.

 

- Então D. Fermín vai aparecer cá a toda a hora. Qualquer dia reconhece-me.

 

- Pelo contrário, agora é que eles estão com uma zanga de morte

 

- disse Ambrosio. - D. Cayo anda a arruinar os negócios a D. Fermín, por ser amigo de um general que quis fazer uma revolução.

 

Estava a contar-lhe tudo quando nisto viram o carro preto de D. Cayo a dobrar a esquina, aí vem ele, corre, e Amalia meteu-se para dentro de casa. Carlota estava à espera dela na cozinha, com os grandes olhos loucos de curiosidade: conhecia o motorista daquele senhor?, de que é que falaram, que te disse ele, era giríssimo, não era? Ela começou a dizer-lhe mentiras e nisto a senhora chamou-a: traz essa bandeja cá acima ao escritório, Amalia. Subiu com os copos e cinzeiros que dançavam, a tremer, pensando o idiota do Ambrosio pegou-me o medo, se ele me reconhece, que é que vai dizer. Mas não a reconheceu: os olhos de D. Fermín fitaram-na um segundo sem a ver e desviaram-se. Estava sentado e batia com o pé no chão, impaciente. Pôs a bandeja na secretária e saiu. Estiveram ali fechados coisa de meia hora. Discutiam, as vozes, muito altas, chegavam à cozinha e a senhora veio e fechou a porta da copa para não poderem ouvir. Quando viu pela cozinha partir o carro de D. Fermín, subiu para trazer a bandeja. A senhora e o senhor conversavam na sala. Que gritaria, dizia a senhora, e o senhor: este rato queria fugir quando lhe pareceu que o barco se ia afundar, agora está a pagá-las e não gosta. Com que direito é que chamava rato a D. Fermín, que era muito mais fino e melhor do que ele?, pensou Amalia. Com certeza tinha era inveja dele e Carlota conta lá, quem era, que é que estavam a dizer.

 

- Eu também estou neste cargo porque o presidente mo pediu disse o Dr. Arbeláez, adoçando a voz e ele pensou: bem, façamos as pazes. - Estou a tentar realizar um trabalho positivo e...

 

- Tudo o que há de positivo neste Ministério é o senhor quem o faz - disse ele, com energia. - Eu ocupo-me do negativo. Não, não estou a brincar, é verdade. Asseguro-lhe que lhe presto um grande serviço, eximindo-o a tudo o que se refere à baixa polícia.

 

- Não queria ofendê-lo, D. Cayo - o queixo do Dr. Arbeláez já não tremia.

 

- Não me ofendeu, doutor - disse ele. - Gostaria de fazer esses cortes no fundo de segurança. Simplesmente, não posso. E o senhor mesmo o vai verificar.

 

O Dr. Arbeláez agarrou no processo e estendeu-lho:

 

- Guarde-o, não preciso que me demonstre nada, acredito-o sem provas. - Tentou sorrir, quase sem separar os lábios. - Logo se verá o que havemos de inventar para remodelar esses carros da polícia e começar as obras na Tacna e na Moquegna.

 

Apertaram a mão, mas o Dr. Arbeláez não se levantou para se despedir dele. Foi directamente ao seu gabinete e o Dr. Alcibíades entrou atrás dele.

 

- O major e o Lozano acabam de sair, D. Cayo - entregou-lhe um envelope. - Más notícias do México, parece.

 

Duas páginas dactilografadas, corrigidas à mão, anotadas nas margens com letra nervosa. O Dr. Alcibíades acendeu-lhe o cigarro enquanto ele lia, devagar.

 

- Então a conspiração avança - desapertou a gravata, dobrou os papéis e meteu-os outra vez no envelope. - Isso parecia assim tão urgente ao major e ao Lozano?

 

- Em Trujillo e Chiclayo houve reuniões de apristas e o Lozano e o major acham que têm relação com a notícia de que esse grupo de exilados está pronto para sair do México - disse o Dr. Alcibíades.

- Foram falar com o major Paredes.

 

- Oxalá esses pássaros viessem cá ao país, para eu lhes poder deitar a mão - disse ele, bocejando. - Mas não vêm. Esta é já a décima ou décima primeira vez, doutorzinho, não se esqueça. Diga ao major Lozano que nos reuniremos amanhã. Não há pressa.

 

- Os cajamarquinos telefonaram para confirmar a reunião às cinco, D. Cayo.

 

- Sim, está bem -- tirou um envelope da pasta e entregou-lho. É capaz de me averiguar o andamento deste processo? É um pedido de concessão de terras em Bagua. Vá pessoalmente, doutorzinho.

 

- Amanhã mesmo, D. Cayo - o Dr. Alcibíades folheou o memorando, anuindo. - Sim, quantas assinaturas faltam, que informações, estou a ver. Muito bem, D. Cayo.

 

- Deve estar mesmo a chegar a notícia de que desapareceu o dinheiro da conspiração - sorriu ele, observando o envelope do major e de Lozano. - E os comunicados dos líderes a acusarem-se uns aos outros de traidores e ladrões. Às vezes, uma pessoa até se aborrece de acontecerem sempre as mesmas coisas, não é?

 

O Dr. Alcibíades anuiu e sorriu educadamente.

 

- Porque é que o senhor me parece tão honesto e tão fino? disse Ambrosio. - Bolas, não me faça perguntas tão difíceis, senhor.

 

- E verdade que me vão dar o cargo de vigiar o senhor Bermúdez, senhor Lozano? - perguntou Ludovico.

 

- Nem cabes em ti de contente - disse o Sr. Lozano. - Combinaste tudo isto com o Ambrosio, não?

 

- Não julgue o senhor que não quero trabalhar consigo, senhor Lozano - disse Ludovico. - O caso é que eu e o negro fizemo-nos bastante amigos, e ele está-me sempre a perguntar porque é que não me mexo para me transferirem, e eu não, estou muito bem com o senhor Lozano. Se calhar, o Ambrosio arranjou a troca por conta própria, senhor.

 

- Está bem - desatou a rir o Sr. Lozano - isto para ti é uma promoção e acho justo que queiras subir.

 

- Bom, a começar pela sua maneira de falar das pessoas - disse Ambrosio. - O senhor não passa a vida a insultar toda a gente mal vira costas, como D. Cayo. Ò senhor não diz mal de ninguém, fala bem de todos, com educação.

 

- Disse muito bem de ti ao Bermúdez - disse o Sr. Lozano. Cumpridor, aprumado, que tudo o que o negro disse era verdade. Não me deixes ficar mal. Bem sabes, bastava que eu dissesse não serve, para que o Bermúdez seguisse o meu conselho. Portanto, deves esta promoção tanto ao negro como a mim.

 

- Claro, senhor Lozano - disse Ludovico. - Agradeço-lhe imenso, senhor. Digo-lhe que não sei como retribuir.

 

- Sei eu - disse o Sr. Lozano. - Portando-te bem, Ludovico.

 

- O senhor manda e eu obedeço, às suas ordens seja para o que for, senhor Lozano.

 

- E metendo a viola no saco, também - disse o Sr. Lozano. Nunca saíste no Fordzinho comigo, não sabes o que é a mensalidade. Podes retribuir-me assim, vês?

 

- Juro-lhe que não precisava de me fazer essa recomendação, senhor Lozano - disse Ludovico. - Juro-lhe que era escusado. Por amor de Deus, por quem me toma o senhor?

 

- Tu bem sabes que é de mim que depende ingressares algum dia no quadro - disse o Sr. Lozano. - Ou não ingressares nunca, Ludovico.

 

- E também pela sua maneira de tratá-las - disse Ambrosio. Tão elegante, e fazendo sempre comentários tão agradáveis, tão inteligentes. Eu fico a ouvi-lo quando o senhor fala com alguém.

 

- Aí vêm o Hipólito e o índio Cigúena - disse Ludovico. Entraram no Fordzinho e o Ludovico estava tão satisfeito com a

 

notícia da sua transferência que até se metia contra o trânsito, contou depois a Ambrosio. O mestiço Cigúena contava as suas aldrabices do costume.

 

- Avariaram-se as canalizações e o arranjo foi caríssimo, senhor Lozano. Além disso, a clientela cada vez é menor. Os Limenhos já nem dão a sua queca, senhor, e a gente caminha para a ruína.

 

- Bom, então, como o teu negócio corre tão mal, não te deves importar que eu to feche amanhã - disse o Sr. Lozano.

 

- O senhor julga que são mentiras que eu invento para não lhe entregar a mensalidade, senhor Lozano - protestou o mestiço Cigúena. - Mas engana-se, aqui tem, o senhor bem sabe que isto para mim é sagrado. Só lhe conto os meus problemas como amigo, senhor Lozano, para o senhor saber.

 

- E também pela maneira como me trata - disse Ambrosio. Pela forma como me ouve, como me faz perguntas, como conversamos. Pela confiança que me dá. A minha vida mudou desde que entrei para o seu serviço, senhor.

 

No domingo Amalia demorou uma hora a arranjar-se e até Simula, sempre tão seca, gracejou caramba, que preparativos para a saída. Ambrosio estava já na paragem quando ela chegou e apertou-lhe a mão com tanta força que Amalia deu um gritinho. Ele ria-se, satisfeito, de fato azul, uma camisa tão branca como os seus dentes, uma gravatinha às pintas vermelhas e brancas: deixava-lo sempre inquieto, Amalia, agora também estava a desconfiar que o fizesses ficar ali de plantão. O eléctrico vinha quase vazio e, antes de ela se sentar, Ambrosio puxou do lenço e limpou o banco. O lugar da janela para a rainha, disse, dobrando-se todo numa vénia. Que boa disposição, como ele mudava, e disse-lho: que diferente que tu ficas quando não tens medo que te topem comigo. E ele estava satisfeito porque se recordava doutros tempos, Amalia. O condutor olhava-os divertido com os bilhetes na mão e Ambrosio despachou-o perguntando-lhe quer mais alguma coisa? Assustaste-o, disse Amalia, e ele sim, desta vez ninguém se havia de atravessar no seu caminho, nem nenhum condutor, nem nenhum têxtil. Olhou-a nos olhos, sério: eu portei-me mal, eu fugi com outra? Portar-se mal era quando uma pessoa deixava a sua mulher por outra, Amalia, zangámo-nos porque tu não compreendeste o que eu te pedi. Se não tivesse sido tão caprichosa, tão presunçosa, continuariam a encontrar-se na rua, e tentou passar-lhe o braço por cima do ombro mas Amalia retirou-lho: larga-me, portaste-te mal, e ouviram-se risinhos. O eléctrico tinha-se enchido. Estiveram um bocado calados e depois ele mudou de conversa: iriam dar um salto até casa do Ludovico, Ambrosio tinha de falar com ele, depois ficariam sós e fariam o que Amalia quisesse. Ela contou-lhe como D. Cayo e D. Fermín levantavam a voz no escritório e que o senhor tinha dito depois que D. Fermín era um rato. Rato será ele, disse Ambrosio, eram tão amigos e agora anda a querer arruinar-lhes os negócios. Na baixa tomaram um autocarro para o Rímac e andaram um par de quarteirões. Era qui, Amalia, na Calle Chiclayo. Seguiu-o até ao fundo de um corredor, viu-o puxar de uma chave.

 

- Julgas que eu sou parva? - disse, agarrando-o pelo braço. O teu amigo não está aí. A casa está vazia.

 

- O Ludovico vem mais tarde - disse Ambrosio. - Esperamos por ele a conversar.

 

- Vamos conversar a passear - disse Amalia. - Aí é que eu não entro.

 

Discutiram no pátio de lajes lamacentas, observados por miúdos que tinham deixado de andar às correrias, até que Ambrosio abriu a porta e a fez entrar de um sacão, a rir. Amalia viu tudo escuro uns segundos até Ambrosio acender a luz.

 

Saiu do gabinete às cinco menos um quarto e Ludovico estava já no carro, sentado ao pé de Ambrosio. Para o Paseo Cólon, para o clube Cajamarca. Manteve-se calado e com os olhos baixos durante o percurso, dormir mais, dormir mais. Ludovico acompanhou-o até à entrada do clube: entrava, D. Cayo? Não, espera aqui. Começava a subir a escada quando viu aparecer no patamar a silhueta alta, a cabeça grisalha do senador Heredia, e sorriu: se calhar, a Sr.a Heredia estava cá. Já chegaram todos, estendeu-lhe a mão o senador, um milagre de pontualidade atendendo a que se trata de peruanos. Que entrasse, a reunião seria no salão de recepções. Luzes acesas, espelhos de moldura dourada nas vetustas paredes, fotografias de velhotes de bigodaças, homens apinhados que deixaram de murmurar ao vê-los entrar: não, não estava lá nenhuma mulher. Os deputados aproximaram-se, apresentaram-lhe os outros: nomes e apelidos, mãos, muito prazer, boa tarde, pensava a senhora Heredia e... Hortênsia, Queta, Maclovia?, ouvia às suas ordens, muito gosto, e entrevia coletes abotoados, colarinhos engomados, lencinhos rígidos esticados nos bolsos dos casacos, faces arroxeadas, e criados de jaqueta branca que serviam bebidas, aperitivos. Aceitou um copo de laranjada e pensou tão distinta, tão branca, aquelas mãos tão cuidadas, aquelas maneiras de mulher habituada a mandar, e pensou a Queta tão escura, tão rústica, tão vulgar, tão habituada a servir.

 

- Se quiser, começamos, D. Cayo - disse o senador Heredia.

 

- Muito bem, senador - ela e a Queta, sim -, quando quiser. Os criados puxavam as cadeiras, os homens sentavam-se com os seus copos de pisco-sauer nas mãos defronte deles. Bem, aqui estavam reunidos para esta conversa informal sobre a visita do presidente a Cajamarca, disse o senador, essa cidade tão querida a todos os presentes e ele pensou: poderia ser criada dela. Sim, era criada dela, um triplo motivo de regozijo para os Cajamarquinos dizia o senador, não aqui mas na casa de campo que ela teria em Cajamarca, pela honra que significa esta visita à nossa terra dizia o senador, uma casa de campo cheia de velhos móveis e compridos corredores e quarto com fofas alcatifas de vicunha onde ela se aborreceria enquanto o marido frequentava a Assembleia na capital, e porque vai inaugurar a nova ponte e o primeiro troço da estrada dizia o senador, uma casa cheia de quadros e criados mas a criada que ela havia de preferir seria a Quetita, a sua Quetita. O senador Heredia pôs-se de pé: sobretudo, uma ocasião para os Cajamarquinos manifestarem a sua gratidão ao presidente por estas obras de tal transcendência para o departamento e para o país. Movimento de cadeiras, de mãos, como se fossem aplaudir, mas o senador já tinha recomeçado a falar. A Quetita é que lhe levaria o pequeno-almoço à cama e escutaria as suas confidências e guardaria os seus segredos: por isso se tinha nomeado esta comissão de recepção constituída por, e entreviu os mencionados sorrirem ou ruborizarem-se ao ouvirem os seus nomes.. Esta reunião tinha por objectivo coordenar o programa preparado pela comissão de recepção com o programa elaborado pelo próprio Governo para a visita presidencial, e o senador virou-se para olhar para ele: Cajamarca era uma terra hospitaleira e grata, D. Cayo. Odría receberia um acolhimento digno do labor que desempenha à frente dos altos destinos do país. Não se pôs de pé; sorrindo a custo, agradeceu ao distinto senador Heredia, à representação parlamentar cajamarquina, o seu desinteressado esforço para que a visita fosse um êxito, ao fundo do salão atrás de uns tules ondulantes as duas sombras deixavam-se cair calidamente uma ao pé da outra sobre um colchão de plumas que as recebia sem ruído, aos membros da comissão de recepção por terem tido a amabilidade de vir a Lima trocar ideias, e instantaneamente brotavam abafadas risadinhas atrevidas e as sombras já se tinham estreitado e rebolado e eram uma forma única sobre os lençóis brancos, debaixo dos tules: ele também estava convicto de que a visita seria um êxito, meus senhores.

 

- Desculpe interrompê-lo - disse o deputado Saraiva. - Só quero adverti-lo de que Cajamarca não vai olhar a despesas para receber o general Odría.

 

Sorriu, anuiu, com certeza seria assim, mas havia um pormenor sobre o qual gostaria de saber a opinião dos presentes. Sr. Eng.° Sara via: a manifestação da Plaza de Armas, na qual o presidente discursaria. Porque o ideal seria, tossiu, suavizou a voz, que a manifestação fosse levada a cabo de maneira que, procurou as palavras, o presidente não se sentisse desapontado. A manifestação seria um êxito sem precedentes, D. Cayo, interrompeu-o o senador, e houve murmúrios de confirmação e cabeças que acenavam, e por detrás dos tules tudo eram rumores, roçaduras e suaves arquejos, uma agitação de lençóis e mãos e bocas e peles que se procuravam e uniam.

 

Sr. Santiago, voltaram a ouvir-se os toques na porta, Sr. Santiago, e ele abriu os olhos, passou uma mão entorpecida pela cara e foi abrir, aturdido de sono: a D. Lúcia.

 

- Acordei-o? Desculpe-me, mas, ouviu o rádio, soube o que está a acontecer? - as palavras atropelavam-se-lhe, tinha a cara excitada, os olhos alarmados. - Greve geral em Arequipa, dizem que o Odría se calhar vai nomear um gabinete militar. Que é que vai acontecer, senhor Santiago?

 

- Nada, D. Lúcia - disse Santiago. - A greve há-de durar um par de dias e depois acaba e os senhores da Confederação hão-de voltar a Lima e tudo continuará na mesma. Não se preocupe.

 

- Mas houve mortos, vários feridos - os seus olhinhos cintilavam como se tivessem contado os mortos, pensa, visto os feridos. No teatro de Arequipa. A Confederação estava numa reunião e os odriistas meteram-se e houve uma cena de pancadaria e a polícia atirou bombas. Saiu na Prensa, senhor Santiago. Mortos,- feridos. Vai haver revolução, senhor Santiago?

 

- Não, minha senhora - disse Santiago. - Aliás, porque é que se assusta? Mesmo que haja revolução, a si não lhe acontece nada.

 

- Mas eu não quero que os apristas voltem - disse a D. Lúcia, assustada. - O senhor acha que vão derrubar o Odría?

 

- A Confederação não tem nada a ver com os apristas - riu-se Santiago. - São quatro milionários que eram amigos do Odría e que agora se pegaram com ele. É uma pega entre primos e irmãos. E afinal que lhe importa a si que os apristas voltem?

 

- São uns ateus, uns comunistas - disse a D. Lúcia. - Se calhar não são?

 

- Não, minha senhora, nem ateus nem comunistas - disse Santiago. - São mais direitistas que a senhora e odeiam mais os comunistas que a senhora. Mas não se preocupe, não vão voltar e o Odría ainda se aguenta uns tempos.

 

- Lá está o senhor sempre com as suas brincadeiras - disse a D. Lúcia. - Desculpe tê-lo acordado, julguei que, como jornalista, o senhor havia de ter mais notícias. O almoço está quase pronto.

 

A D. Lúcia fechou a porta e ele espreguiçou-se longamente. Enquanto tomava duche, ria-se sozinho: silenciosas silhuetas nocturnas surgiam pelas janelas da velha casa de Barranco, a D. Lúcia acordava uivando: os apristas!, desorbitada, rígida de espanto, e abraçava o seu gato miador e via os invasores abrirem roupeiros, baús e cómodas e levarem os seus trastes poeirentos, os seus casacos puídos, os seus vestidos roídos pelas traças: os apristas, os ateus, os comunistas! Iam voltar para roubarem as coisas às pessoas finas como a D. Lúcia, pensa. Pensa: pobre D. Lúcia, se tu soubesses que, para a minha mãe, nem sequer eras uma pessoa fina. Estava a acabar de se vestir quando a D. Lúcia voltou: o almoço estava na mesa. Aquela sopa de ervilhas e aquela batata solitária, náufraga no prato de água verde, pensa, aquelas hortaliças ralas com pedaços de sola a que a D. Lúcia chamava carne guisada. A Radio Reloj estava a transmitir, a D. Lúcia escutava com o indicador sobre os lábios: todas as actividades estavam paralisadas em Arequipa, tinha havido uma manifestação na Plaza de Armas e os líderes da Confederação tinham pedido novamente a renúncia do ministro do Governo, Sr. Cayo Bermúdez, que responsabilizavam pelos graves incidentes da véspera no Teatro Municipal, o Governo tinha feito um apelo à calma e advertido que não toleraria alterações da ordem. Estava a ver, estava a ver, Sr. Santiago?

 

- Se calhar, a senhora tem razão, se calhar, o Odría vai ser derrubado - disse Santiago. - Dantes as estações de rádio não se atreviam a dar notícias destas.

 

- E se os da Confederação vão lá para cima em vez do Odría, as coisas correrão melhor? - perguntou a D. Lúcia.

 

- Correrão na mesma ou pior, minha senhora - disse Santiago.

 

- Mas sem militares e sem Cayo Bermúdez talvez se note menos.

 

- Lá está o senhor sempre na brincadeira - disse a D. Lúcia. Nem a política leva a sério.

 

- E quando o meu velho esteve na Confederação? - pergunta Santiago. - Não te meteste? Não ajudaste nas manifestações que a Confederação fez contra o Odría?

 

- Nem quando trabalhei com D. Cayo nem com o seu paizinho - diz Ambrosio. - Eu nunca fiz política, menino.

 

- E agora tenho de me ir embora - disse Santiago. - Até logo, minha senhora.

 

Saiu para a rua e só então o sol descobriu, um sol frio de Inverno que tinha rejuvenescido os gerânios do minúsculo jardim. Estava um carro estacionado em frente à pensão e Santiago passou ao pé dele sem olhar, mas notou vagamente que o carro arrancava e avançava colado a ele. Voltou-se e olhou: olá, magricela. O Chispas sorria-lhe do volante, na sua cara uma expressão de menino que acaba de fazer uma travessura e não sabe se vai ser aplaudido ou admoestado. Abriu a porta do carro, entrou e agora o Chispas dava-lhe umas palmadas entusiastas, ah, caralho, viste?, acabei por te descobrir, e ria-se com uma alegria nervosa, ah, viste?

 

- Como é que, caralho, descobriste a pensão? - perguntou Santiago.

 

- Cabecinha, sabichão - o Chispas tocava a testa, ria-se às gargalhadas, mas não conseguia dissimular a emoção, pensa, a confusão.

- Tardei, mas acabei por te descobrir, magricela.

 

Vestido de café com leite, uma camisa creme, uma gravata verde-pálida e tinha um aspecto bronzeado, forte e saudável, e tu lembraste-te de que não mudavas de camisa há três dias, Zavalita, que não engraxavas os sapatos há um mês, e que o teu fato devia estar amarrotado e cheio de nódoas, Zavalita.

 

- Queres que te conte como é que te apanhei, sabichão? Postando-me em frente à Crónica uma data de noites. Os velhos julgavam que eu andava na farra e eu ali, à tua espera para te seguir. Por duas vezes confundi-te com outro que descia do colectivo antes de ti. Mas ontem apanhei-te e vi-te entrar. Palavra que estava meio atrapalhado, sabichão.

 

- Julgavas que eu te ia apedrejar - disse Santiago.

 

- Apedrejar, não, mas que ias armar em parvo - e corou. - Como és maluco e ninguém te entende, sabe-se lá. Mas vá lá que te portaste como uma pessoa educada, sabichão.

 

O quarto era grande e sujo, paredes rachadas e com manchas, uma cama por fazer, roupa de homem pendurada em cabides presos à parede com pregos. Amalia viu um biombo, um maço de Inça em cima da mesa-de-cabeceira, um lavatório esborcelado, um espelhinho, cheirava a urina e a bafio e apercebeu-se de que chorava. Para que é que a tinha trazido aqui?, falava entre dentes, e ele continuava com as mentiras, tão baixinho que mal se ouvia, a dizer vamos ver o meu amigo, queria enganá-la, abusar dela, dar-lhe um pontapé como da outra vez, Ambrosio tinha-se sentado na cama revolvida e, por entre as lágrimas, Amalia via-o abanar a cabeça, não te entendo, não compreendo. Porque é que estava a chorar?, falava-lhe com carinho, por eu te ter empurrado?, olhando-a com uma expressão contristada e lúgubre, estavas lá fora a fazer um escândalo com a tua teimosia em não entrares, Amalia, daí a bocado tinham toda a vizinhança ao pé a perguntar o que era, que diria depois o Ludovico. Tinha acendido um dos cigarros da mesa-de-cabeceira e começou a observá-la devagarinho, os pés, os joelhos, subia sem pressa pelo seu corpo e quando chegou aos olhos sorriu e ela sentiu um calorzinho e vergonha: és muito parva. Fez a cara mais zangada que pôde. Ludovico estava mesmo a vir, Amalia, ele chegava e iam-se embora, estou-te a fazer alguma coisa, por acaso?, e ela ai de ti que te atrevesses. Anda, Amalia, senta-te aqui, vamos conversar. Não se sentava nada, abre a porta, queria-se ir embora. E ele: também te punhas a chorar quando o têxtil chegava a casa? Entristeceu-se-lhe a cara e Amalia pensou está com ciúmes, está furioso, e sentiu que a cólera se lhe desvanecia. Ele não era como tu, olhando para o chão, não se envergonhava de mim, pensando vai-se levantar e vai-te bater, ele não seria capaz de a pôr fora por medo de perder o emprego, pensando anda, põe-te lá em pé, anda, bate-me lá, para ele eu estava em primeiro lugar, pensando parva, estás a querer que ele te beije. Ele contorceu a boca, tinha os olhos desorbitados, deitou a beata para o chão e calcou-a. Amalia tinha o seu orgulho, não me enganas duas vezes, e ele olhou-a com ansiedade: se esse tipo não tivesse morrido, juro-te que o matava, Amalia. Agora é que ele se ia atrever, agora é que sim. Sim, levantou-se de um salto, e a qualquer outro que se lhe atravessasse no caminho, e viu-o aproximar-se decidido, com a voz um pouco rouca: porque tu és a minha mulher, mete isto na. Não se mexeu, deixou que ele a levantasse pelos ombros e então empurrou-o com toda a força e viu-o tropeçar e rir-se, Amalia, Amalia, e tentar agarrá-la outra vez. Estavam naquilo, às correrias, aos empurrões, aos safanões, quando a porta se abriu e apareceu a cara de Ludovico, tristíssima.

 

Apagou o cigarro, acendeu outro, cruzou a perna, os ouvintes avançavam as cabeças para não perderem uma palavra, e ele ouviu a sua própria voz cansada: tinha-se declarado feriado o dia 26, tinham-se dado instruções aos directores dos colégios e das escolas oficiais para levarem os alunos à Plaza, isso garantiria já uma boa assistência, e a Sr.” Heredia havia de estar a ver a manifestação de uma varanda da Câmara, tão alta, tão séria, tão branca, tão elegante, e, entretanto, ele estaria já na casa de campo a convencer a criada: mil, dois mil, três mil soles, Quetita? Mas, claro, sorriu e entreviu todos a sorrirem, o que se pretendia bem, três mil, espere aqui e escondê-lo-ia atrás de um biombo. Também se calculava que assistissem empregados das repartições públicas, embora isso não significasse muita gente, e ele ali, imóvel, oculto, às escuras, esperaria olhando as alcatifas de vicunha e os quadros e a larga cama de dossel e tules. Tossiu, descruzou a perna: além disso, tinha-se organizado a propaganda. Anúncios na imprensa e na rádio locais, automóveis e camionetas com altifalantes percorreriam os bairros lançando panfletos e isso atrairia mais gente e ele contaria os minutos, os segundos e sentiria que se lhe derretiam os ossos e gotas geladas a escorrer-lhe pelas costas e por fim: lá estaria ela, lá viria a entrar. Mas, e inclinou-se e encarou com simpatia e humildade os homens apinhados, já que Cajamarca era um centro agrícola, esperava-se que o grosso dos manifestantes viesse do campo e isso dependia dos senhores. Então vê-la-ia, alta, branca, elegante, séria, entraria vogando sobre a alcatifa de vicunha e ele ouvi-la-ia que cansada que eu estou e chamaria a sua Quetita. Dá-me licença, D. Cayo, disse o senador Heredia, Remigio Saldívar, que é o presidente da comissão da recepção e uma das figuras mais representativas dos agricultores cajamarquinos, tem qualquer coisa a dizer a respeito da manifestação e ele viu um homem corpulento, torrado como um tição, enforcado por uma espessa papada, pôr-se de pé na segunda fila. E então viria a Quetita e ela dir-lhe-ia estou cansada, quero-me deitar, ajude-me e a Quetita ajudá-la-ia, lentamente despi-la-ia e ele veria, sentiria que cada poro do seu corpo se inflamava, que milhões de minúsculas crateras da sua pele começavam a supurar. Hão-de-me desculpar, e principalmente o Sr. Bermúdez, pigarreou D. Remigio Saldívar, ele era um homem de acção e não de discursos, quero eu dizer que não falo bem como o Pulga Heredia e o senador soltou uma gargalhada e houve um estrépito de risos. Ele abriu a boca, enrugou a cara, e ali estaria, branca, nua, séria, elegante, imóvel, enquanto a Quetita delicadamente lhe tiraria as meias enroladas aos pés, e todos celebravam com risos as proezas de oratória de D. Remigio Saldívar sobre a sua falta de poder de oratória, e ouvia: ao assunto, Remigio, Cajamarca é assim mesmo, D. Remigio: enrolá-las-ia em câmara lenta e ele veria as mãos da criada tão grandes, tão morenas, tão rústicas, a descer, a descer, pelas pernas brancas, tão brancas, e D. Remigio Saldívar adoptou uma expressão hierática: entrando no assunto queria dizer-lhe que não se preocupasse, Sr. Bermúdez, eles tinham pensado, discutido e tomado medidas. Agora ela ter-se-ia estendido na cama e ele divisá-la-ia jazendo branca e perfeita por trás dos tules, e ouvi-la-ia: tu também, Queta, despe-te, vem, Quetita. Inclusivamente não era preciso irem os alunos das escolas nem os funcionários públicos, a Plaza não chegava para tanta gente, Sr. Bermúdez: que ficassem muito simplesmente a estudar e a trabalhar. A Quetita despir-se-ia e ela depressa, depressa, e vê-la-ia alta, escura, dura, elástica, vulgar, a encolher-se para tirar a blusa e a mexer os pés, depressa, depressa, e os sapatos cair-lhe-iam sem barulho sobre a alcatifa de vicunha. D. Remigio Saldívar fez um gesto enérgico: a gente para a manifestação arranjamo-la nós, e não o Governo, os cajamarquinos queriam que o presidente levasse uma boa impressão da nossa terra. Agora a Quetita correria, voaria, os seus compridos braços estender-se-iam e afastariam os tules e o seu grande corpo tisnado silenciosamente desceria sobre os lençóis: note bem, Sr. Bermúdez. Tinha substituído o seu tom risonho e os seus gestos rústicos por uma voz grave e soberba e por gestos solenes e todos o escutavam: os agricultores do departamento tinham colaborado magnificamente nos preparativos, e também os comerciantes e liberais, note bem. E ele sairia de trás do biombo e aproximar-se-ia, o seu corpo seria um archote, chegaria junto dos tules, veria e o seu coração agonizaria: saiba que poremos quarenta mil homens na Plaza, se não mais. Ali estariam sob os seus olhos a abraçarem-se, a cheirarem-se, a transpirarem-se, a unirem-se e D. Remigio Saldívar fez uma pausa para puxar de um cigarro e procurar os fósforos, mas o deputado Azpilcueta acendeu-lho: não era um problema de gente nem pouco mais ou menos, Sr. Bermúdez, mas sim de transporte, como já tinha explicado ao Pulga Heredia, risadas e ele automaticamente abriu a boca e franziu a cara. Não podiam reunir a quantidade de camiões que seria precisa para transportar o pessoal das herdades e levá-lo de volta, e D. Remigio Saldívar expeliu uma baforada de fumo que lhe esbranquiçou a cara: contratámos uns vinte autocarros e camiões, mas precisamos de muitos mais. Ele avançou na cadeira: por esse lado não tinham de se preocupar, Sr. Saldívar, podiam contar com todas as facilidades. As mãos brancas e as morenas, a boca de lábios grossos e a de lábios tão finos, os mamilos ásperos inchados e os pequenos e cristalinos e suaves, as coxas curtidas e as transparentes de veias azuis, os pêlos negríssimos lisos e os alourados encaracolados: o comando militar facultar-lhes-ia todos os camiões de que precisassem, Sr. Saldívar, e ele óptimo, Sr. Bermúdez, era o que lhe íamos pedir, com transportes encheriam completamente a Plaza como nunca se viu na história de Cajamarca. E ele: podem contar com isso, Sr. Saldívar. Mas havia ainda outro assunto de que lhes queria falar.

 

- Apanhaste-me tão de surpresa que não tive tempo de me irritar - disse Santiago.

 

- O velho anda escondido - disse o Chispas, pondo-se sério.

 

- O pai do Popeye levou-o para a herdade dele. Vim avisar-te.

 

- Escondido? - perguntou Santiago. - Por causa dos sarilhos de Arequipa?

 

- Há um mês que o estupor do Bermúdez nos tem a casa cercada

 

- disse o Chispas. - Os informadores seguem o velho dia e noite. O Popeye teve de o levar às escondidas, no carro dele. Enfim, suponho que não se lembrarão de o ir procurar à fazenda do Arévalo. Queria que soubesses isto, pelo sim, pelo não.

 

- O tio Clodomiro tinha-me contado que o velho entrou para a Confederação, que se tinha pegado com o Bermúdez - disse Santiago. - Mas não sabia que as coisas estavam assim tão mal.

 

- Já sabes o que se passa em Arequipa - disse o Chispas. - Os Arequipenhos estão firmes. Greve geral, até que o Bermúdez renuncie. E vão correr com ele, caralho. Imagina que o velho estava para ir a essa reunião, o Arévalo é que o demoveu à última hora.

 

- Mas, não percebo - disse Santiago. - O pai de Popeye também se pegou com o Odría? Não continua ele a ser o líder odriista no senado?

 

- Oficialmente, continua - disse o Chispas. - Mas lá no fundo também está farto destas merdas. Portou-se muito bem com o velho. Melhor que tu, sabichão. Nem com o velho a passar tão mal o foste ver.

 

- Esteve doente? - perguntou Santiago. - O tio Clodomiro não me...

 

- Doente não, mas com a corda na garganta - disse o Chispas.

- Não sabes que, depois da partidinha que lhe pregaste, fugindo de casa, lhe caiu em cima outra ainda pior? O filho da puta do Bermúdez pensou que ele tinha estado metido na conspiração do Espina e andou a ver se o fodia.

 

- Ah, bom, sim - disse Santiago. - O tio Clodomiro contou-me que tinham tirado ao laboratório a concessão que tinha com os estabelecimentos dos Institutos Armados.

 

- Isso ainda não é nada, o pior é a Construtora - disse o Chispas. - Não nos voltaram a dar um centavo, suspenderam todas as livranças, e nós temos de continuar a pagar as letras. E exigem-nos que as obras avancem com o mesmo ritmo e ameaçam-nos com uma acção por violação de contrato. Uma guerra de morte contra o velho, para o arruinar. Mas o velho é de antes quebrar que torcer e não se fica, isso é o que ele tem de formidável. Meteu-se na Confederação e...

 

- Ainda bem que o velho se pegou com o Governo - disse Santiago. - E que tu também já não és odriista.

 

- Quer dizer que ainda bem que estamos a ir a pique - sorriu o Chispas.

 

- Fala-me da mamã, da Teté - disse Santiago. - O tio Clodomiro diz que ela anda com o Popeye, é verdade?

 

- Quem anda feliz com a tua fuga é o tio Clodomiro - riu-se o Chispas. - Com o pretexto de dar notícias tuas, encafua-se três vezes por semana lá em casa. Anda com o sardento, anda, já lhe dão um bocadinho mais de liberdade, até a deixam ir jantar com ele, aos sábados. Acho que acabam por se casar.

 

- A mamã deve estar feliz - disse Santiago. - Desde que a Teté nasceu que ela anda a tramar esse casamento.

 

- Bom, e agora responde-me tu - disse o Chispas, querendo parecer jovial, mas enrubescendo. - Quando é que te deixas de patetices, quando é que voltas para casa?

 

- Nunca mais volto lá para casa, Chispas - disse Santiago. É melhor mudarmos de assunto.

 

- E porque é que não voltas lá para casa? - fingindo-se admirado, Zavalita, tentando fazer-te crer que não te acreditava. - Que é que os velhos te fizeram para não quereres viver com eles? Deixa-te de armar em parvo, homem.

 

- Não vamos pôr-nos a discutir - disse Santiago. - Faz-me antes um favor. Leva-me a Chorrillos, tenho de ir buscar um colega de trabalho, vamos fazer uma reportagem juntos.

 

- Não vim cá para discutir, mas a ti não há quem te perceba disse o Chispas. - Foges de casa de um dia para o outro, sem que ninguém te tenha feito nada, não voltas a dar sinal de vida, zangas-te com a família toda, sem mais nem menos, porque te dá na cabeça. Como é que queres que eu te entenda, caralho?

 

- Não me entendas e leva-me a Chorrillos, que se me faz tarde disse Santiago. - Tens tempo, não?

 

- Está bem - disse o Chispas. - Está bem, sabichão, eu levo-te. Ligou o carro e o rádio: estavam a dar notícias da greve de Arequipa.

 

- Desculpem, não queria incomodar, mas tenho de vir buscar a minha roupa, vou agora mesmo de viagem - e a cara e a voz de Ludovico eram tão amargas como se a viagem fosse para o túmulo. Olá, Amalia.

 

Sem a olhar, como se ela fosse uma coisa que Ludovico tivesse visto toda a vida no quarto; Amalia sentia uma vergonha atroz. Ludovico tinha-se ajoelhado ao pé da cama e puxava uma mala. Começou a meter lá dentro a roupa pendurada nos cabides da parede. Nem lhe chamou a atenção ver-te, parva, sabia que tu cá estavas, Ambrosio devia-lhe ter pedido o quarto emprestado para, não tinham nada que se encontrar, era mentira. Ludovico veio cá por acaso. Ambrosio parecia pouco à vontade. Tinha-se sentado na cama e fumando via Ludovico arrumar camisas e meias na mala.

 

- Levam-nos, trazem-nos, mandam-nos - praguejava Ludovico, consigo mesmo. - Digam-me cá se isto é vida.

 

- E onde é a viagem? - perguntou Ambrosio.

 

- Arequipa - murmurou Ludovico. - Os da Confederação vão fazer lá uma manifestação contra o Governo e parece que vai haver sarilho. Com esses serranos nunca se sabe, as coisas começam em manifestação e acabam em revolução.

 

Atirou uma camisola para dentro da mala e suspirou, oprimido. Ambrosio olhou para Amalia e piscou-lhe o olho, mas ela desviou a vista.

 

- Tu ris-te, negro, porque estás de fora - disse Ludovico. - Já por cá passaste e nem te queres lembrar dos que continuam na polícia. Gostava era de te ver na minha pele, Ambrosio.

 

- Não vejas as coisas assim, amigo - disse Ambrosio.

 

- Chamarem-te no teu dia de folga, o avião parte às cinco - voltou-se para olhar para Ambrosio e Amalia com angústia. - Nem se sabe por quanto tempo, nem se sabe o que vai acontecer lá.

 

- Não há-de acontecer nada e ficas a conhecer Arequipa - disse-lhe Ambrosio. - Faz de conta que é uma passeata, Ludovico. Vais com o Hipólito?

 

- Vou - disse Ludovico, fechando a mala. - Ah, negro, que boa vida quando trabalhávamos com D. Cayo, hei-de lamentar que me tenham transferido até à morte.

 

- Mas se a culpa foi tua - riu-se Ambrosio. - Não te queixavas tanto de que não tinham tempo para nada? Não foste tu e o Hipólito que pediram transferência?

 

- Bom, a casa é vossa - disse Ludovico e Amalia não soube para onde havia de olhar. - Fica com a chave, negro, quando te fores embora, deixa-a à D. Carmen, aí à entrada.

 

Fez-lhes um adeus compungido da porta e saiu. Amalia sentiu a cólera subir-lhe pelo corpo todo, e Ambrosio, que se tinha posto de pé e se aproximava, ficou imóvel, ao ver a cara que ela fazia.

 

- Sabia que eu estava cá, não ficou admirado de me ver - os seus olhos, as suas mãos ameaçavam-no -, não estavas nada à espera dele, mentira, pediste-lhe o quarto emprestado para...

 

- Não ficou admirado porque eu lhe disse que és minha mulher

- disse Ambrosio. - Não posso vir aqui com a minha mulher quando muito bem me apetecer?

 

- Não sou, nunca fui, nem sou - gritava Amalia. - Obrigaste-me a fazer uma linda figura com o teu amigo, pediste-lhe emprestado o...

 

- O Ludovico é como se fosse meu irmão, esta casa é como se fosse minha - disse Ambrosio. - Não sejas pateta, eu aqui faço o que quero.

 

- Deve pensar que eu sou uma desavergonhada, nem sequer me estendeu a mão, nem olhou para mim. Deve pensar que...

 

- Se calhar, não te apertou a mão porque sabe que eu sou ciumento - disse Ambrosio. - Se calhar, não olhou para ti para eu não me zangar. Não sejas pateta, Amalia.

 

Apareceu um criado com um copo de água e ele teve de se calar, uns segundos. Bebeu um gole, tossiu: o Governo estava reconhecido a todos os Cajamarquinos, muito especialmente aos senhores da comissão de recepção, pelo seu empenho em que a visita constituísse um acontecimento, e conseguiu decidir e ver por baixo dos tules uma cadeia de súbitas substituições: mas tudo isto exigiria despesas e não seria lógico que, além da perda de tempo, das preocupações, a viagem do presidente ocasionasse também gastos. O silêncio acentuou-se e ele conseguia ouvir a suspensa respiração dos ouvintes, entrever a curiosidade, a malícia das suas pupilas, fixas nele: ela e a Hortênsia, ela e a Maclovia, ela e a Carmincha, ela e a índia. Tossiu novamente, franziu a custo a cara: de modo que tinha instruções do Ministério para pôr à disposição da comissão uma quantia destinada a aliviá-los, e a figura de D. Remigio Saldívar dominou bruscamente a sala, ela e Hortênsia: alto lá, Sr. Bermúdez. Peles que se confundiam entre elas e com os lençóis e os tules, cabelos tão negros que se enredavam e desenredavam e sentiu na boca uma massa de saliva morna e espessa como sémen. Já quando se formou a comissão, o prefeito tinha informado que subvencionaria um auxílio para as despesas de recepção, e D. Remigio Saldívar fez um gesto majestoso e soberbo, e já então rejeitámos categoricamente a oferta. Murmúrios de aprovação, um orgulho provinciano e desafiador nas caras e ele abriu a boca e franziu os olhos: mas mobilizar a gente do campo ia-lhes custar dinheiro, Sr. Saldívar, estava muito bem que arcassem com as despesas do banquete, das recepções, mas não com os outros gastos e ouviu rumores ofendidos, movimentos recriminatórios e D. Remigio Saldívar tinha aberto os braços com arrogância: não aceitavam um centavo, era o que faltava. Iam acolher o presidente do seu próprio bolso, tinham-no decidido por unanimidade, com o fundo reunido chegava e sobrava, Cajamarca não precisava de auxílio para homenagear Odría, alto lá. Ele levantou-se, anuindo, e as silhuetas desvaneceram-se como se fossem feitas de fumo: não insistia, não queria ofendê-los, em nome do presidente agradecia esse cavalheirismo, essa generosidade. Mas ainda não conseguiu sair porque os criados se tinham precipitado para o salão com aperitivos e bebidas. Misturou-se com as pessoas, bebeu uma laranjada, aplaudiu piadas franzindo a cara. Para que fique a conhecer os Cajamarquinos, Sr. Bermúdez, e D. Remigio Saldívar apresentou-o a um homem de cabelos brancos e nariz enorme: o Dr. Lanusa, tinha mandado fazer quinze mil bandeirinhas a expensas suas, além de contribuir como os restantes para o fundo da comissão, Sr. Bermúdez. E não pense que ele teve esse gesto por ter conseguido que a estrada passe mesmo em frente da herdade dele, riu-se o deputado Azpilcueta. Aplaudiram-no, até o Dr. Lanusa se riu, ah, estas línguas de Cajamarca. Não restam dúvidas de que os senhores fizeram as coisas em grande, ouvia-se ele dizer. E o Sr. Bermúdez vá preparando o fígado, entreviu os olhos titilantes do deputado Mendieta por detrás de um copo de cerveja, vai ver como o recebem. Olhou para o relógio, já tão tarde? Lamentava muito, mas tinha de se ir embora. Caras, mãos, até breve, muito prazer. O senador Heredia e o deputado Mendieta acompanharam-no até à escada, onde o esperava um mulatinho rústico de olhos respeitosos. O Sr. Eng.° Lama, D. Cayo, e ele pensou um emprego, uma recomendação, um negócio?: membro da comissão de recepção e primeiro agrónomo do departamento, Sr. Bermúdez. Muito prazer, em que é que lhe podia ser útil. Um sobrinhito, desculparia nesta altura, a mãe estava como louca e tinha insistido tanto que. Encorajou-o sorrindo, tirou um bloco do bolso, que tinha feito o rapaz? Tinham-no mandado para a Universidade de Trujillo com muito sacrifício, senhor, deviam-lhe ter dado maus conselhos por lá, as más companhias, antes nunca se tinha metido em política. Muito bem, Sr. Engenheiro, ocupar-se-ia pessoalmente, como se chamava o rapaz, estava preso em Trujillo ou em Lima? Desceu as escadas e as luzes do Passeo Cólon já estavam acesas. Ambrosio e Ludovico conversavam fumando junto à porta. Deitaram fora os cigarros ao vê-lo: para San Miguel.

 

- Vira na primeira à direita - disse Santiago, apontando. Aquela casa amarela, a velha. Sim, aqui.

 

Tocou a campainha, meteu a cabeça e viu Carlitos no cimo da es- cada, em calças de pijama, com uma toalha ao ombro: descia num instante, Zavalita. Voltou ao automóvel.

 

- Se tens pressa, deixa-me aqui, Chispas. Seguimos para o Callao de táxi. A Crónica paga-nos as deslocações.

 

- Eu levo-os - disse o Chispas. - Suponho que agora nos continuaremos a ver, não? A Teté também te quer ver, suponho que a posso trazer, ou também estás zangado com ela?

 

- Claro que não - disse Santiago. - Não estou zangado com ninguém, nem com os velhos. Em breve os irei ver. Só quero que se habituem à ideia de que continuarei a viver sozinho.

 

- Nunca se hão-de habituar e tu sabe-lo muito bem - disse o Chispas. - Estás-lhes a fazer a vida num inferno. Não continues com esse projecto absurdo, sabichão.

 

Mas calou-se porque estava ali Carlitos, a olhar desconcertado para o automóvel, para a cara do Chispas. Santiago abriu-lhe a porta: entra, apresento-te o meu irmão, ele leva-nos. Aqui à frente, disse o Chispas, cabiam os três à vontade. Arrancou, seguindo a linha do eléctrico, e durante um bom bocado não falaram. O Chispas ofereceu cigarros e o Carlitos olhava-nos de soslaio, pensa, e explorava o painel niquelado, o flamante tapete, e a elegância do Chispas.

 

- Nem sequer reparaste que o carro é novo - disse o Chispas.

 

- É verdade - disse Santiago. - O velho vendeu o Buick?

 

- Não, este é meu - o Chispas soprou as unhas. - Ando a pagá-lo a prestações. Ainda nem tem um mês. E que vão vocês fazer ao Callao?

 

- Entrevistar o director da Alfândega - disse Santiago. O Carlitos e eu andamos a fazer uns artigos sobre o contrabando.

 

- Ah, que interessante - disse o Chispas; e depois de um momento. - Sabias que, desde que começaste a trabalhar, compramos a Crónica todos os dias? Mas nunca sabemos o que é que tu escreves. Porque é que não assinas os teus artigos? Sempre te ias tornando conhecido.

 

Lá estavam os olhos zombeteiros e estupefactos do Carlitos, Zavalita, o mal-estar que tu sentias. O Chispas atravessou Barranco, Miraflores, virou pela Avenida Pardo e meteu pela Costanera. Falavam com longas pausas incómodas, só Santiago e o Chispas, Carlitos observava-os de soslaio, com uma expressão intrigada e irónica.

 

- Deve ser interessantíssimo ser jornalista - disse o Chispas. Para mim, não dava, sou uma negação até para escrever cartas. Mas tu estás no teu elemento, Santiago.

 

Periquito estava à espera deles à porta da Alfândega, com as máquinas fotográficas a tiracolo, e, um pouco mais adiante, a camioneta do jornal.

 

- Procuro-te um dia destes à mesma hora - disse o Chispas. Com a Teté, de acordo?

 

- Está bem - disse Santiago. - Obrigado por nos teres trazido, Chispas.

 

O Chispas ficou um momento indeciso, com a boca entreaberta, mas não disse nada, limitou-se a dizer adeus com a mão. Viram o carro ^afastar-se pelos paralelepípedos encharcados.

 

- É mesmo teu irmão? - Carlitos abanava a cabeça, incrédulo.

- A tua família é podre de rica, não?

 

- Segundo o Chispas, estão à beira da falência - disse Santiago.

 

- Eu só queria era estar assim à beira da falência - disse Carlitos.

 

- Há meia hora que estou à espera, seus vivaços - disse Periquito. - Ouviram as notícias? Junta militar, por causa dos sarilhos de Arequipa. Os Arequipenhos apanharam o Bermúdez. É o fim do Odría.

 

- Não faças tanta festa - disse Carlitos. - O fim do Odría é o princípio, de quê?

 

No domingo seguinte, Ambrosio encontrou-se com ela às duas, foram a uma matinée, lancharam perto da Plaza de Armas e deram um longo passeio. É hoje, pensava Amalia, hoje é que vai ser. Ele ficava às vezes a olhar para ela e ela percebia que ele também estava a pensar vai ser hoje. Há um restaurante na Francisco Pizarro que é bom, disse Ambrosio quando...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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