O portão abriu-se, um homem atravessou-o e encaminhou-se na direcção de Mitridates. O rei ficou contente ao ver que o romano era um homem pequeno, se comparado consigo: sim, porque ele era um homem muito alto! No entanto, logo reparou que Sila era um homem bem constituído. Trazia uma armadura de aço adaptada ao seu torso, a saia dupla de tiras de couro a que chamavam pteryges, uma túnica escarlate, e uma capa igualmente escarlate. De cabeça descoberta, o seu cabelo louro-arruivado resplandecia ao sol, agitado por uma ligeira brisa. Mitridates não conseguia despegar os olhos daquele cabelo, pois nunca tal cor vira na sua vida, nem mesmo entre os Galácios Celtas. Tal como nunca vira uma pele tão branca, branca como o gelo, visível entre a bainha da saia e as botas, que chegavam a meio das barrigas das pernas, muito musculadas, visível nos seus braços, visível também no pescoço e no rosto. Branco como o gelo. Não havia na pele dele uma partícula que fosse de cor!
Até que Lúcio Cornélio Sila se abeirou o bastante para que o rei pudesse ver o seu rosto, os seus olhos. Mitridates tremeu da cabeça aos pés. Apolo. Apolo disfarçado de romano. O rosto era tão forte, tão semelhante ao de um deus, tão terrível na sua majestade - não, aquele não era o rosto mole e idiota de uma estátua grega, mas o rosto de um deus: um deus teria forçosamente de ter aquele aspecto, tanto tempo depois da sua criação. Um homem-deus no máximo da sua força, cheio de energia e poder. Um romano. Um romano.
Sila avançara para aquele encontro completamente seguro de si, pois Caio Mário tinha-lhe descrito a sua entrevista com o rei do Ponto. Mas não lhe tinha ocorrido que a sua aparência pudesse deixar o rei tão perturbado - nem compreendera exactamente porquê. A razão exacta, porém, não interessava. O que lhe interessava era aproveitar aquela inesperada vantagem.
- Que fazes na Capadócia, rei Mitridates? - perguntou.
- A Capadócia pertence-me - respondeu o rei, mas não com o vozeirão com que pretendia falar antes de verificar que tinha à sua frente o Apolo romano; a voz que lhe saiu era frágil, desmaiada, e odiou-se por isso.
- A Capadócia pertence aos Capadócios.
- Capadócios e Pontos são um e o mesmo povo.
- Como pode isso ser verdade, se os Capadócios têm os seus próprios reis há tantas centenas de anos como os Pontos?
- Os reis da Capadócia têm sido estrangeiros.
- Estrangeiros?
- Selêucidas da Síria. Sila encolheu os ombros.
- É muito estranho, rei Mitridates, mas a verdade é que o rei capadócio que se encontra no meu acampamento não se parece nada com os Selêucidas da Síria. Nem contigo! A genealogia dele não é síria, selêucida ou outra. O rei Ariobarzanes é um capadócio, e foi escolhido pelo seu próprio povo para substituir o filho de Mitridates do Ponto, Ariárates Eusébio.
Mitridates ficou estupefacto. Górdio nunca lhe dissera que Mário tinha descoberto quem era o rei Ariárates Eusébio; a afirmação de Sila não lhe parecia natural; era como se o romano tivesse o dom da presciência: sim, aquela era mais uma prova de que aquele romano era Apolo reencarnado.
- O rei Ariárates Eusébio morreu durante a invasão lançada pelos arménios - retorquiu Mitridates, com a mesma voz frágil e esbatida.
- Os Capadócios agora têm um rei capadócio. Chama-se Górdio e eu estou aqui para assegurar que Górdio continue a ser o rei da Capadócia.
- Górdio é um fantoche teu, rei Mitridates, o que não admira, pois é teu sogro, pai da rainha do Ponto - replicou Sila calmamente. - Górdio não é o rei escolhido pelos Capadócios, mas sim o rei que escolheste por intermédio do teu genro Tigranes. Ariobarzanes é o rei legítimo.
Mas aquele homem sabia tudo! Quem poderia ele ser, senão Apolo!
- Ariobarzanes é um intrujão!
- Não é o que o Senado e o Povo de Roma pensam - disse Sila, aproveitando a sua vantagem. - E o Senado e o Povo de Roma mandaram-me à Capadócia com a missão de entregar o trono a Ariobarzanes e de expulsar o Ponto - e a Arménia! - das terras capadócias.
- Roma nada tem a ver com o que se passa aqui! - exclamou o rei, ganhando coragem, a coragem que conseguia reunir.
- Tudo o que se passa no mundo interessa a Roma - disse Sila, e achou que aquele era o momento certo para desferir o golpe derradeiro.
- Volta para casa, rei Mitridates.
- A Capadócia é tanto minha casa como o Ponto!
- De modo nenhum. Volta para tua casa, volta para o Ponto!
- E és tu que me vais obrigar a voltar para o Ponto, com o teu patético exército? - perguntou o rei com um sorriso desdenhoso; era visível agora que estava furioso. - Olha para ali, Lúcio Cornélio Sila! Cem mil homens!
- Cem mil bárbaros - disse Sila com desdém. - Vou aniquilá-los facilmente.
- Podes estar certo de que vou atacar! Aviso-te desde já: vou atacar o teu acampamento!
Sila virou-se ligeiramente, fazendo crer que se ia embora. Por sobre o ombro, atirou-lhe:
- Ora, rei Mitridates, deixa-te de fanfarronices e vai para casa! e encaminhou-se para o portão. Quando lá chegou, virou-se e disse mais alto: - Vai para casa, rei Mitridates. Dentro de oito dias, avançarei sobre Eusebeia Mazaca a fim de sentar o rei Ariobarzanes no trono que lhe pertence. Se tu te opuseres, aniquilarei o teu exército e matarte-ei a ti. Nem o dobro dos homens que trazes contigo chegará para me deter.
- Nem sequer tens soldados romanos! - gritou o rei. Sila pôs um sorriso terrível.
- São romanos que chegue - disse. - Foram armados e treinados por um romano, e combaterão como romanos. Podes estar certo do que te digo. Volta para casa!
Furioso, o rei voltou num ápice para a sua tenda imperial: era tal a sua ira que ninguém se atreveu a falar-lhe. Nem mesmo Neoptólemo. Mitridates seguiu imediatamente para o seu quarto, onde se sentou no assento real, a capa púrpura caindo-lhe sobre a cabeça. Não, Sila não era Apolo. Sila era apenas um romano. Mas que homens eram os romanos, que podiam parecer-se com Apolo? Ou, como Caio Mário, ter um ar tão importante, tão régio, que nunca duvidavam do seu poder e autoridade? Vira romanos na Província da Ásia: entre eles, ao longe, o governador; embora arrogante, tinham-lhe parecido homens vulgares. Porém, só tinha falado com dois romanos: Caio Mário e Lúcio Cornélio Sila. Qual desses dois tipos correspondia ao verdadeiro romano? O seu bom-senso dizia-lhe que era o romano da Província da Ásia. Mas o seu íntimo respondia-lhe: Mário e Sila. No fim de contas, ele era um grande rei, descendia de Héracles, e de Dário da Pérsia. Por isso, aqueles que se lhe opunham só podiam ser grandes.
Porque não conseguia ele comandar um exército? Porque não conseguia ele entender aquela arte? Porque tinha ele de deixar a chefia do exército a homens como os seus primos Arquelau e Neoptólemo? Havia alguns filhos seus que prometiam - no entanto, tinham mães ambiciosas. Para quem poderia virar-se, em quem poderia confiar? Como poderia enfrentar os chefes romanos, aqueles que derrotavam centenas de milhar de soldados?
A fúria dissolveu-se em lágrimas; o rei chorou em vão, até que o desespero deu lugar à resignação, e tanto o desespero como a resignação eram sentimentos estranhos à sua natureza. Tinha de aceitar que os chefes romanos não podiam ser derrotados. E as suas ambições não podiam realizar-se - a menos que os deuses favorecessem o Ponto, atraindo os romanos para guerras mais próximas de Roma. Só avançaria quando os Romanos enviados para o Ponto fossem homens vulgares. Até lá, a Capadócia, a Bitínia e a Macedónia teriam que esperar. Despiu a capa púrpura, levantou-se.
Górdio e Neoptólemo estavam à espera na divisão exterior da tenda; quando o rei apareceu à porta do seu quarto, os dois homens saltaram das cadeiras.
- Comuniquem ao exército que vamos regressar ao Ponto - disse o rei. - O romano que ponha Ariobarzanes de novo no trono da Capadócia! Eu sou novo. Tenho tempo. Aguardarei até que Roma esteja ocupada com outros problemas, e então avançarei para ocidente.
- Mas... e eu? - lamentou-se Górdio.
Mordendo no indicador, o rei olhou fixamente para Górdio.
- Acho que chegou a altura de me ver livre de ti, sogro - disse ele. Erguendo o queixo, gritou: - Guardas! Guardas!
Os guardas irromperam imediatamente pela tenda dentro.
- Levem-no e matem-no - disse o rei, apontando para o aterrorizado Górdio. Depois, virou-se para Neoptólemo, que tremia, muito pálido.
- De que estás à espera? - perguntou. - Manda dispersar o exército! Já!
- Muito bem! - disse Sila para o filho. - O nosso homem vai-se embora.
Estavam os dois na torre de vigia junto do portão principal, que dava para o lado norte do acampamento de Mitridates.
O jovem Sila sentia-se um pouco triste; um pouco, apenas, porque, no fundo, estava muito contente.
- É melhor assim, pai, não é?
- Nesta altura, parece-me que é.
- Não o conseguíamos vencer, pois não?
- Claro que conseguíamos! - retorquiu vivamente Sila. - Achas que eu trazia o meu filho para uma campanha, se achasse que não ia vencer? Ele vai-se embora por uma única razão: porque sabe que nós teríamos vencido. O nosso Mitridates pode ser um bocado atrasado, mas uma coisa é certa: é capaz de reconhecer a superioridade militar de um exército e a superioridade de um homem mesmo que os veja pela primeira vez. Para nós é bom que ele esteja tão isolado. O único modelo que estes ditadores orientais têm é Alexandre, o Grande, o qual, segundo os critérios militares romanos, está irremediavelmente ultrapassado.
- Como é o rei do Ponto? - perguntou o filho, curioso.
- Como é o rei do Ponto? - Sila pensou por um momento antes de responder. - Olha que não sei como te responder! Mas pareceu-me muito inseguro, logo facilmente manipulável. Não faria grande figura no Fórum, mas isso não admira porque é estrangeiro. Tal como qualquer tirano, fez sempre o que quis, desde criança. Creio que se tivesse de defini-lo com uma só palavra, chamar-lhe-ia campónio. Mas ele domina tudo e todos, é perigoso e aprende depressa. Não tem a sofisticação de Aníbal, nem teve contactos com Jugurta. Mas não perdeu nada por isso. Julgo que estava satisfeito consigo mesmo até encontrar Caio Mário, e até me encontrar a mim. Agora já não está. Mas o nosso amigo Mitridates não vai ficar parado! Prevejo que há-de procurar as melhores formas de nos derrotar no nosso próprio jogo. É um homem muito orgulhoso. E muito presumido. Não descansará enquanto não medir forças com Roma. Mas só correrá esse risco quando se sentir completamente seguro de que poderá vencer. Por ora não se sente. A retirada foi uma decisão inteligente, meu filho! Eu tê-lo-ia destroçado a ele e ao seu exército.
O jovem Sila fitou o pai fascinado, espantado com a segurança do pai, com a sua convicção.
- Apesar de ele ter tantos soldados?
- Os números não querem dizer nada, meu filho - disse Sila, preparando-se para deixar a torre de vigia. - Eu dispunha de pelo menos uma dúzia de maneiras de o derrotar. Ele pensa em números. Mas ainda não chegou à verdadeira questão, que consiste em usar aquilo que se tem como uma unidade isolada. Se ele tivesse decidido lutar e eu tivesse mandado avançar as minhas forças, ele teria muito simplesmente ordenado uma investida. Todos os seus soldados teriam corrido na nossa direcção. Em massa. É tão fácil lidar com uma situação dessas! Quanto a ocupar o meu acampamento - impossível! Mas ele é perigoso. Sabes por que te digo isto, meu filho?
- Não - retorquiu o filho, perfeitamente confuso.
- Porque ele decidiu regressar a casa - retorquiu Sila. - Voltará para casa e começará a pensar em tudo isto. Só parará de ruminar o problema quando entender o que devia ter feito. Cinco anos, meu filho! Dou-lhe cinco anos. Daqui a cinco anos, Roma terá grandes problemas com o rei Mitridates.
Mórsimo encontrou-se com eles ao fundo da torre: tal como o jovem Sila, também ele parecia simultaneamente triste e contente.
- Que vamos fazer agora, Lúcio Cornélio? - perguntou.
- Exactamente o que disse a Mitridates. Dentro de oito dias, avançamos para Mazaca e devolvemos o trono a Ariobarzanes. Por ora, ele estará em segurança. Não creio que Mitridates regresse tão cedo à Capadócia, porque eu ainda não ajustei contas com ele. Não voltamos já para Tarso - disse Sila, com um sorriso perverso.
Mórsimo respirou fundo.
- Vamos avançar sobre o Ponto? Sila riu-se.
- Não! Vamos tratar de Tigranes.
- Tigranes? Tigranes da Arménia!
- Esse mesmo.
- Mas porquê, Lúcio Cornélio?
Os olhos dos dois jovens fixaram-se no rosto de Sila, à espera de uma resposta; nem um nem outro faziam a mínima ideia do que Sila iria dizer.
- Porque nunca vi o Eufrates - disse Sila, com uma expressão que revelava toda a sinceridade do seu desejo.
Uma resposta que nenhum dos seus ouvintes esperava; mas foi o jovem Sila, que já conhecia muito bem o pai, que desatou a rir. Mórsimo continuou a coçar a cabeça.
Claro que Sila teve uma inspiração. Na Capadócia não ia haver problemas, disso estava ele certo; Mitridates, para já, não deixaria o Ponto. Mas precisava de um novo meio de dissuasão. Sila não tinha travado até então nenhuma batalha, não deparara com nenhuma oportunidade de obter ouro ou tesouros. Sila, aliás, não pensava que o reino da Capadócia fosse suficientemente rico para lhe dar fosse o que fosse. As riquezas que pudesse ter havido em Eusebeia Mazaca já há muito que tinham ido parar aos cofres de Mitridates - a menos que Sila estivesse enganado a respeito do rei do Ponto, e Sila não acreditava que se enganasse neste particular.
As suas ordens eram específicas. Afastar Mitridates e Tigranes da Capadócia, devolver o trono a Ariobarzanes, e cessar depois todas as actividades fora das fronteiras da Cilícia. Como pretor - apesar dos poderes proconsulares - não tinha outra alternativa senão obedecer. No entanto... Tigranes não dera sinal de vida; neste caso específico, Tigranes não apoiara o rei do Ponto. O que significava que continuava no seu palácio das montanhas da Arménia, ignorando os desejos de Roma, e pouco impressionado com Roma porque nunca vira um romano na sua vida.
Ninguém poderia esperar que os desejos de Roma fossem transmitidos com exactidão a Tigranes caso o único mensageiro fosse Mitridates. Ora isso obrigava o governador da Cilícia a encontrar-se com Tigranes e a transmitir-lhe pessoalmente as directivas de Roma. E, quem sabe?, talvez algures no caminho para a Arménia, um saco de ouro caísse aos pés de Sila. Um saco de ouro de que precisava desesperadamente. Desde que o saco de ouro destinado ao governador fosse acompanhado por outro saco de ouro destinado ao Tesouro de Roma, uma tal apropriação de riquezas não seria mal vista; as acusações de extorsão ou traição ou suborno só surgiam quando o Tesouro nada recebia, ou, como no caso do pai de Mânio Aquílio, quando o governador vendia algo pertencente ao Estado e metia os lucros na sua própria bolsa. Fora isso o que sucedera com a Frigia.
Passados os oito dias de espera, Sila abandonou, com as suas quatro legiões, a fortaleza que tinha construído; talvez um dia viesse a usá-la, pois duvidava que Mitridates a destruísse caso regressasse um dia à Capadócia. Seguiu assim para Mazaca com o filho e o exército, e na sala de recepção do palácio viu Ariobarzanes sentar-se no trono a que tinha direito; a mãe do rei e o jovem Sila assistiram, radiantes, à cena. Era óbvio que os Capadócios estavam também radiantes; vieram todos para a rua saudar o rei.
- Seria sensato se começasse já a recrutar e treinar um exército - disse Sila ao rei, ao despedir-se. - Roma pode não estar em condições de intervir.
O rei prometeu que se entregaria ardorosamente a tal tarefa; Sila tinha as suas dúvidas. Em primeiro lugar, porque o dinheiro faltava na Capadócia; em segundo, porque os Capadócios não eram, por natureza, guerreiros. Um camponês romano dava um soldado maravilhoso. Um pastor capadócio, nem pensar. De qualquer modo, o aviso fora dado, e ouvido. Mais do que isso Sila não podia fazer.
Os batedores de Sila informaram-no de que Mitridates tinha atravessado o grande rio de Hális e avançava já pela primeira estrada pôntica a caminho de Zela. O que nenhum batedor lhe podia dizer, naturalmente, era se Mitridates tinha ou não enviado alguma mensagem a Tigranes da Arménia. Não que isso tivesse grande importância. Mitridates, caso enviasse alguma mensagem a Tigranes, nunca daria de si uma má imagem; a verdade só viria ao de cima quando Tigranes se encontrasse com Sila.
Por isso Sila saiu de Mazaca com o seu pequeno exército, atravessou as montanhas da Capadócia e rumou ao rio Eufrates, projectando atravessá-lo em Metilene. A Primavera ia já avançada e, conforme informaram Sila, todas as estradas, excepto as que rodeavam Ararat, estavam abertas. No entanto, se quisesse rodear Ararat, tais caminhos já estariam disponíveis quando ele chegasse à zona. Sila nada disse ao filho nem a Mórsimo; não sabia ao certo para onde ia, mas sabia que queria atingir o Eufrates.
Entre Mazaca e Dalanda ficavam as montanhas do Anti-Tauro, não tão difíceis de atravessar como Sila pensara; embora os picos fossem altos, a estrada era boa, não havia neve nem perigo de desmoronamentos. Avançaram então através de uma série de desfiladeiros de cores muito vivas, no fundo dos quais corriam rios límpidos e serpeantes, e os camponeses cultivavam as ricas terras de aluvião durante a breve estação de cultivo. Eram povos antigos os que lá viviam; isolados, nunca haviam deixado as suas terras, nem integrado nenhum exército: demasiado insignificantes, ninguém cobiçava as suas terras. Sila mostrava-se cortês, comprava tudo o que precisava pagando com artigos de uso diário ou alimentos, e exortava os seus homens a que não causassem danos nos campos; era uma região magnífica para emboscadas, mas os seus batedores mostravam-se extremamente activos, e nada indicava que Tigranes tivesse mobilizado as suas tropas e estivesse à sua espera deste lado do Eufrates.
Metilene era apenas uma região, não havia nela qualquer cidade, mas os campos eram planos e muito ricos - uma parte da planície do Eufrates, bastante vasta, rodeada de montanhas. Vivia aí mais gente, mas tão primitiva quanto a de Ararat, gente que por certo nunca vira um exército; nem mesmo Alexandre, o Grande, nas suas tortuosas deambulações, passara por Metilene. Nem encontrara Tigranes na sua marcha rumo à Capadócia, conforme apurara Sila; preferira seguir pela estrada do norte, ao longo da nascente do Eufrates, fazendo um percurso mais curto, a partir de Artaxata, do que o de Sila.
Finalmente Sila chegou ao portentoso rio de margens escarpadas; não era tão largo como o Ródano, mas corria muito mais depressa.
Sila examinou as águas velozes com um ar pensativo, espantado com a cor do rio, um azul leitoso esverdeado. O seu braço estreitava o filho, que amava cada vez mais. Que companhia perfeita!
- Conseguiremos atravessá-lo? - perguntou Sila a Mórsimo. Mas o ciliciano não sabia mais do que ele, e limitou-se a abanar a cabeça com um ar dubitativo.
- Talvez mais tarde, depois de todas as neves terem derretido, se isso alguma vez suceder, Lúcio Cornélio. O povo de cá diz que o Eufrates é mais fundo do que largo; se assim é, o seu caudal será o maior do mundo.
- E pontes, não há? - perguntou Sila, ansioso.
- Nesta zona, não. Os povos desta região não teriam capacidade para construir uma ponte tão grande. Sei que Alexandre, o Grande, construiu uma ponte, mas numa zona mais próxima da nascente, e numa época do ano mais tardia.
- Ou seja, são precisos romanos.
- Com efeito.
Sila suspirou, encolheu os ombros.
- Bom, eu não trouxe engenheiros comigo e, além disso, não tenho tempo. Temos de chegar ao nosso destino antes que a neve encerre as estradas e nos impeça de voltar para trás. Embora creia que vamos regressar pelo Norte da Síria e pelo monte Amano.
- Para onde vamos, pai? Agora já viste o imenso Eufrates... disse o jovem Sila, sorrindo.
- Oh, o que estou a ver do Eufrates não me chega! É por isso que seguiremos para sul, ao longo desta margem, até encontrarmos uma passagem suficientemente segura - disse Sila.
Em Samosata, a corrente era ainda demasiado forte, embora a população local oferecesse barcaças; depois de as examinar, Sila recusou.
- Continuaremos para sul - disse.
O ponto de passagem seguinte era Zeugma, para lá da fronteira, já em território sírio.
- Como vai a Síria agora que Gripo morreu e Ciziceno reina sozinho? - perguntou Sila a um habitante local que falava grego.
- Não sei, senhor - retorquiu o homem.
Quando o exército se preparava já para voltar para trás, o grande rio acalmou-se. Sila decidiu-se.
- Atravessamos aqui, enquanto é possível - anunciou.
Uma vez na outra margem, sentiu-se incomparavelmente melhor, embora se apercebesse de que os seus soldados estavam agora com mais receio, como se tivessem atravessado uma imaginária Estige, e penetrassem agora nas terras dos mortos. Sila chamou por isso os oficiais e fez-lhes uma prelecção acerca dos processos a seguir para manter os soldados tranquilos e contentes. O filho ouviu também a prelecção.
- Não vamos voltar já para casa - disse Sila. - Por isso será melhor que nos instalemos calmamente e que nos divirtamos um pouco. Duvido que haja algum exército capaz de nos derrotar num raio de várias centenas de quilómetros, se é que há algum exército a essa distância. Digam aos soldados que quem os chefia é Lúcio Cornélio Sila, um general muito mais capaz do que Tigranes ou do que qualquer grão-vizir parto. Digam-lhes que somos o primeiro exército romano a leste do Eufrates, e que só isso já é protecção que chegue.
Dada a aproximação do Verão, Sila não tencionava descer às planícies síria e mesopotâmia; o calor e a monotonia desmoralizariam os seus soldados muito mais depressa do que o medo do desconhecido. Por isso, rumou de novo a leste, na direcção de Amida, junto ao Tigre. Essa era a região fronteiriça entre o Norte da Arménia e o Sul e o Leste do reino dos Partos. Apesar de fronteiriça, tal região não dispunha nem de fortalezas, nem de tropas. O exército de Sila atravessou campos de papoulas carmesins, vigiando cuidadosamente as provisões, pois, apesar de cultivarem a terra, as gentes locais pareciam ter pouco nos celeiros para vender.
Havia pequenos reinos na região (Sofena, Gordiana, Osdroena e Comagena), cada um deles limitado a imensos picos cobertos de neve, mas a marcha era fácil porque podiam evitar as montanhas. Em Amida, uma cidade rodeada por muralhas escuras nas margens do Tigre, Sila encontrou-se com os reis de Comagena e Osdroena, que se decidiram a procurá-lo quando souberam da presença daquela estranha, embora pacífica, força romana.
Sila achou que os nomes deles eram perfeitamente impronunciáveis, mas cada um possuía um epíteto grego para glorificar o respectivo nome; por isso, Sila chamava Epifânio ao rei de Comagena e Filoromaio ao rei de Osdroena.
- Honrado Romano, deves saber que te encontras na Arménia disse o rei de Comagena muito sério. - O poderoso rei Tigranes pensará que invadiste o seu reino.
- E o rei Tigranes não se encontra longe - acrescentou o rei de Osdroena, tão sério como o outro.
Sila mostrou-se mais atento que receoso.
- Não se encontra longe? - perguntou, visivelmente interessado.
- Onde está ele?
- O rei Tigranes quer construir uma nova capital para o Sul da Arménia, e por isso instalou-se no local destinado à edificação dessa cidade. Vai chamar-lhe Tigranocerta - informou o rei de Osdroena.
- Onde?
- A leste de Amida, um pouco para norte, talvez a uns quinhentos stades de Amida - retorquiu o outro.
Sila fez uma rápida divisão por oito.
- Ou seja, cerca de noventa e seis quilómetros.
- Não tencionas lá ir, pois não?
- Porque não? - perguntou Sila. - Não matei ninguém, não saqueei nenhum templo, não roubei provisões. Venho em paz, só pretendo falar com o rei Tigranes. Aproveito, aliás, para lhes pedir um favor: enviem mensagens ao rei Tigranes para que ele saiba que vou ter com ele a Tigranocerta - e que vou em paz!
As mensagens foram efectivamente enviadas. Tigranes deu-se conta do avanço de Sila, mas mostrou-se relutante em travar esse avanço. Que fazia Roma a leste do Eufrates? É claro que Tigranes não confiava nas intenções pacíficas de Sila, mas um exército tão pequeno nunca poderia desencadear uma invasão séria. A questão básica consistia em saber se deveria ou não atacar: tal como Mitridates, também Tigranes temia o nome de Roma. Por isso, resolveu que só atacaria se fosse atacado. Entretanto, sairia com o seu exército ao encontro de Sila.
Tivera notícias de Mitridates, como seria de esperar. Uma carta sombria, informando-o, com breves palavras, que Górdio tinha morrido e que a Capadócia estava uma vez mais sob o domínio do fantoche romano, o rei Ariobarzanes. Um exército romano tinha vindo da Cilícia e o seu chefe (não nomeado) aconselhara-o a regressar ao Ponto. Mitridates afirmava ter achado prudente desistir do seu plano para invadir a Cilícia após subjugar a Capadócia de uma vez por todas. Por isso, insistia junto de Tigranes para que abandonasse o seu plano de marchar para oeste, rumo à Síria, e encontrar-se com o sogro nas férteis planícies aluviais de Cilícia Pedia.
Nenhum dos reis alguma vez imaginara que, depois de ter concluído com êxito a sua missão na Capadócia, o romano Lúcio Cornélio Sila não regressaria imediatamente a Tarso; e quando Tigranes acreditou no que os seus espiões lhe contavam (que Sila se encontrava nas margens do Eufrates, à procura de uma passagem), decidiu-se a enviar mensagens para Mitridates, que estava em Sinope; mas Sila penetrou na Arménia antes que tais mensagens chegassem ao destinatário. Por isso, Tigranes comunicou o avanço de Sila aos seus suseranos partos, em Seleucia-no-Tigre; a jornada destes, embora demorada, seria fácil.
O rei da Arménia encontrou-se com Sila junto ao Tigre, alguns quilómetros a oeste do local destinado à construção da nova capital; quando Sila chegou à margem ocidental, deparou com o acampamento de Tigranes na outra margem. Comparado com o Eufrates, o Tigre era um regato, mais raso e mais lento, castanho, talvez com metade da largura do Eufrates. O Tigre nascia no outro lado do Anti-Tauro, e não tinha sequer um décimo dos afluentes do Eufrates, nem recebia as neves derretidas e a água das nascentes permanentes que alimentavam o Eufrates. Cerca de mil e seiscentos quilómetros para sul, na zona à volta de Babilónia e Ctesifonte e Seleucia-no-Tigre, os dois rios corriam separados apenas por cerca de cinquenta quilómetros; tinham sido cavados canais do Eufrates para o Tigre, a fim de que este último encontrasse mais facilmente o seu caminho para o mar Persa.
Quem vai ter com quem?, perguntou Sila para si mesmo, sorrindo perversamente enquanto instalava o seu exército num acampamento extremamente fortificado. Sentado na margem ocidental, Sila esperava para ver quem cederia primeiro e atravessaria o rio. Foi Tigranes quem cedeu, motivado, não pelo medo ou pela agressão, mas pela curiosidade. O rei já não conseguia esperar mais: muitos dias tinham passado sem que Sila se tivesse mostrado e a expectativa de Tigranes fora crescendo. Sila pôde ver então a barcaça real, uma barcaça de fundo chato, com adornos a ouro, impulsionada por varas em vez de remos, protegida do calor por um dossel dourado e púrpura franjado com barras douradas; sob o dossel, num estrado, via-se um dos tronos menores do rei, uma magnífica obra em ouro, marfim e uma infinidade de pedras preciosas.
O rei foi transportado até ao atracadouro de madeira num carro dourado de quatro rodas; tão dourado era, tão resplandecente, que feria os olhos dos observadores que se encontravam na outra margem; no carro, atrás do rei, encontrava-se um escravo segurando um guarda-sol dourado, cheio de pedras preciosas, por sobre a cabeça real.
- Como é que ele fará agora? - perguntou Sila ao filho, no seu esconderijo atrás de uma parede de escudos.
- O que quer dizer, pai?
- Dignitasl - exclamou Sila, sorrindo. - Não acredito que ele vá sujar os pés naquele atracadouro de madeira, mas a verdade é que ainda não vi nenhuma carpete para ele andar.
O enigma não demorou a encontrar solução. Dois possantes escravos afastaram aquele que segurava o guarda-sol ao subirem para o carro; aí deram os braços em forma de cadeira e esperaram. Delicadamente, Tigranes sentou as suas reais nádegas sobre os braços dos escravos, e assim foi transportado até à barcaça e gentilmente instalado no trono. Enquanto o lento navio avançava pelo lento rio, o rei, sentado, imóvel, não parecia ver a multidão na margem ocidental. A barcaça chocou contra a margem, já que não dispunha agora de atracadouro. Repetiu-se então todo o cerimonial que se verificara na outra margem. Os escravos pegaram no rei e esperaram enquanto o trono era levado para uma rocha alta e chata e o escravo que segurava no guarda-sol subia à mesma rocha para dar sombra ao trono. Só então o rei foi levado para o seu trono, e não foi tarefa fácil para os escravos.
- Oh, muito bem feito! - exclamou Sila.
- Bem feito? - perguntou o jovem Sila, aprendendo avidamente.
- Apanhou-me bem apanhado, meu filho! Onde quer que eu me sente, ou mesmo de pé, ele vai ficar mais alto que eu.
- Que podes fazer?
Bem escondido do rei, Sila chamou o seu escravo pessoal.
- Ajuda-me a tirar isto - disse ele, debatendo-se com as correias da sua couraça.
Já sem a armadura, despiu também a roupa de baixo, de cabedal, e a túnica escarlate, e vestiu uma outra, grosseiramente tecida, prendeu-a com uma corda, pôs uma capa de camponês ruça por sobre os ombros, e o chapéu de palha na cabeça.
- Se o sol nos aparece, melhor sermos caverna - disse ele ao filho com um sorriso arreganhado.
Sila deixou então os seus guardas e encaminhou-se para o local onde Tigranes estava sentado no trono, tal e qual uma estátua. Com aquela roupa, Sila mais parecia um miserável camponês da região.
Com efeito, o rei imaginou que aquele homem não passaria de um mero aldeão, e continuou a fitar as hostes de Sila, com uma expressão intrigada.
- As minhas melhores saudações, rei Tigranes. O meu nome é Lúcio Cornélio Sila - disse Sila em grego, ao chegar à base da rocha onde estava instalado o trono. Tirou o chapéu e olhou para cima, de olhos muito abertos pois o guarda-sol do rei estava entre ele e o sol.
O rei fitou Sila espantado, primeiro por causa da cor do cabelo do romano, e depois por causa da cor dos olhos. Para quem estava habituado a ver unicamente olhos castanhos (e considerava maravilhosos os olhos amarelados da rainha), os olhos de Sila eram um horror, bocados arrancados ao céu.
- Este exército é teu, romano? - perguntou Tigranes.
- Assim é, rei Tigranes.
- E que faz ele nas minhas terras?
- Viemos ver-te, rei Tigranes.
- Estás por certo a entender-me. O que se passa?
- Nada de especial! - retorquiu Sila com expressão ligeira, as sobrancelhas subidas, os horríveis olhos dançando. - Vim ver-te, rei Tigranes, e já te vi. Logo que te disser o que me ordenaram que te dissesse, pegarei no meu exército e voltarei com ele para Tarso.
- E que te ordenaram que me dissesses, romano?
- O Senado e o Povo de Roma pedem-te que não saias das tuas fronteiras, rei. A Arménia não interessa a Roma. Mas se a Arménia invadir a Capadócia, a Síria ou a Cilícia, Roma sentir-se-á ofendida. E Roma é poderosa, domina todas as terras em torno do mar Central, muito mais vastas do que o território da Arménia. Os exércitos romanos concentram um número infindo de soldados e nunca foram derrotados. Mantém-te, pois, dentro das fronteiras da Arménia. A isso te exorta Roma.
- Eu estou dentro das minhas fronteiras. Quem não está, é Roma
- replicou o rei, perturbado com conversa tão directa.
- Só aqui estou para te transmitir as minhas ordens, rei Tigranes. Não passo de um mensageiro - disse Sila, impassível. - Espero que me tenhas ouvido bem.
- Ora! Francamente! - disse o rei, erguendo uma mão. Os escravos voltaram a dar os braços, o rei sentou-se e regressou à barcaça. De costas para Sila. E a barcaça lá foi, puxada a varas, com Tigranes no seu trono, imóvel que nem uma estátua.
- Sim senhor! Que estranhos são estes reis orientais, meu filho!
- disse Sila, esfregando as mãos de contente. - Que intrujão! Todo inchado! Mais inchado que uma bexiga cheia! - Olhou à sua volta e chamou por Mórsimo.
- Aqui estou, Lúcio Cornélio.
- Voltamos para casa.
- Por que caminho?
- Seguiremos para Zeugma. Duvido que tenha mais problemas com Ciziceno da Síria do que com este presumido que agora atravessa o rio. Têm todos medo de Roma. Não o admitem, mas têm. Isso agrada-me. Só é pena que eu não tenha ficado mais alto que ele.
Sila decidiu ir para sul, na direcção de Zeugma, não só por ser esse o caminho mais curto, e menos montanhoso, para Cilícia. Pedia; é que as provisões eram poucas, e os cereais dos planaltos ainda estavam verdes. Ao passo que nas terras baixas da alta Mesopotâmia, poderia comprar cereais acabados de colher. Os seus homens estavam a ficar cansados dos frutos e legumes: a tal se resumia a sua dieta desde que tinham deixado a Capadócia; não admira que ansiassem por um naco de pão. Teriam por isso que suportar o calor das planícies sírias.
Assim, quando desceu dos montes rochosos de Amida até às planícies de Osdroena, o tempo das colheitas já tinha passado e o pão abundava. Em Edessa, visitou o rei Filoromaio que de bom grado deu ao romano desconhecido tudo o que ele queria. Bem como algumas notícias alarmantes.
- Lúcio Cornélio, parece que o rei Tigranes reuniu o seu exército e resolveu seguir-te - disse o rei Filoromaio.
- Eu sei - retorquiu Sila, impassível.
- Mas ele vai atacar-te! E atacar-me a mim!
- Deixa o teu exército sossegado, rei Filoromaio, e avisa o teu povo para que não se meta no caminho de Tigranes. É a minha presença que o incomoda. Quando ele tiver a certeza de que vou mesmo voltar para Tarso, logo regressará a Tigranocerta.
Esta tranquila confidência contribuiu muito para acalmar o rei de Osdroena, que logo mandou embora Sila com uma generosa oferta de trigo e um objecto que Sila desesperara já de ver - um saco enorme de moedas de ouro, com a efígie, não do rei de Osdroena, mas sim do rei Tigranes.
Tigranes seguiu Sila até Zeugma, mas demasiado afastado, de forma a que Sila não decidisse, em nenhuma altura, preparar-se para a batalha; essa era uma medida de precaução, nada tinha de agressivo. Mas logo que atravessou o rio em Zeugma - e era muito mais fácil atravessá-lo aí do que em Samosata -, teve a visita de um grupo de cinquenta dignitários, todos vestidos num estilo muito estranho aos olhos dos romanos: pequenos chapéus altos, redondos, cheios de pérolas e contas de ouro, colares de ouro em espiral, à volta do pescoço e descendo até ao peito, casacos bordados a ouro, e saias compridas, bordadas também a ouro, tão compridas que quase lhes tapavam os sapatos igualmente de ouro.
Sila não ficou surpreendido quando lhe disseram que aquela era uma embaixada do rei dos Partos; só os Partos tinham tanto ouro para usar. Que excitante! Além do mais, poderia encontrar um objectivo para aquela visita não projectada e não autorizada a leste do Eufrates. Tigranes da Arménia estava sob o domínio dos Partos, isso sabia ele; talvez conseguisse convencer os Partos a aquietarem Tigranes, a impedirem-no de ceder à sedução de Mitridates.
Desta feita, não iria olhar de baixo para Tigranes - nem para os Partos.
- Vou encontrar-me com os Partos que falam grego e com o rei Tigranes depois de amanhã, nas margens do Eufrates, num local para onde os dignitários serão conduzidos pelos meus homens - disse Sila a Mórsimo. Os membros da embaixada ainda não o tinham visto, embora ele tivesse conseguido examiná-los cuidadosamente; já que tanto Mitridates como Tigranes tinham ficado impressionados, e intimidados, com a sua aparência, Sila decidiu que haveria também de causar sensação junto dos Partos.
Com o seu talento nato de actor, montou o palco com escrupulosa atenção a todos os pormenores. Com lajes polidas de mármore branco que trouxera do templo de Zeus em Zeugma, mandou construir um alto estrado. Depois, sobre este estrado, construiu um outro, suficientemente largo para receber uma cadeira de curul, bem mais alta que o resto da plataforma, e coberto com um tecto de mármore púrpura que pertencera ao plinto da estátua de Zeus. Belos assentos de mármore com braços e costas em forma de grifos e leões, esfinges e águias, foram retirados de toda a cidade, e colocados no estrado principal, um grupo de seis de cada lado, e um assento isolado, um belíssimo espécime, formado pelas costas de dois leões alados, destinado a Tigranes. Sobre o estrado de mármore mais pequeno, colocou a sua cadeira de marfim de curul, uma cadeira que, comparada com as outras, sobressaía por ser alta, elegante, de uma simplicidade notável de linhas. E por sobre esta estrutura mandou colocar um toldo feito com a tapeçaria dourada e cor de púrpura que servia de cortina a Zeus no templo de Zeugma.
No dia marcado, às primeiras horas da manhã, um guarda de Sila escoltou seis dos embaixadores partos até à sua plataforma e pediu-lhes que se sentassem nas seis cadeiras juntas; os outros embaixadores ficaram de fora, mas convenientemente sentados e protegidos do sol. Tigranes, naturalmente, queria subir ao pódio púrpura; no entanto, firme, mas cortesmente, foi convencido a sentar-se no seu assento real, mesmo em frente do semicírculo das seis cadeiras. Deste modo, os partos olhavam para Tigranes, Tigranes olhava para os partos, e todos olhavam para o pódio púrpura.
Quando todos já estavam sentados, apareceu Lúcio Cornélio Sila, vestido com a sua toga praetexta, bordada a púrpura, e trazendo a simples vara de marfim que era símbolo das suas funções, uma ponta descansando na palma da mão, a outra no côncavo do cotovelo. Com o cabelo resplandecendo, tanto ao sol como à sombra, Sila, sem virar a cabeça para a direita ou para a esquerda, subiu os degraus do estrado, depois mais um degrau para a cadeira de curul, e sentou-se sem encostar as costas, um pé para a frente e o outro para trás, na pose clássica. Um Romano dos melhores.
Não estavam divertidos os convidados, especialmente Tigranes, mas nada podiam fazer. De facto, tinham sido conduzidos aos seus assentos com tal dignidade que não faria sentido insistirem em que os sentassem à mesma altura que Sila.
- Representantes do rei dos Partos, rei Tigranes, meus senhores, dou-vos as boas-vindas a estas conversações - disse Sila do alto da sua cadeira, deliciado porque os seus estranhos e luminosos olhos os deixava a todos perturbados.
- Estas conversações não és tu que as convocas, Romano! - atirou-lhe Tigranes. - Eu é que convoquei os meus suseranos!
- Desculpa, rei Tigranes, mas estas conversações foram convocadas por mim, logo são as minhas conversações - disse Sila com um sorriso nos lábios. - O rei Tigranes deslocou-se, a meu convite, a um local que me pertence. E então, sem dar tempo a Tigranes para responder, virou-se para os embaixadores partos e mostrou-lhes o seu mais venenoso sorriso. - Quem de entre vós, nobres partos, é o chefe desta delegação? Como seria de esperar, o chefe da delegação era o homem mais velho: sentado na primeira das cadeiras, com um ar muito digno, acenou com a cabeça.
- Sou eu, Lúcio Cornélio Sila. O meu nome é Orobazo, sou sátrapa de Seleucia-no-Tigre. Apenas devo obediência ao rei dos reis, Mitridates dos Partos, que lamenta que o tempo e a distância não lhe tenham permitido estar aqui hoje.
- O rei encontra-se no seu palácio de Verão em Ecbátana, não é verdade? - perguntou Sila.
Orobazo pestanejou.
- Estás bem informado, Lúcio Cornélio Sila. Não sabia que Roma estava tão a par dos nossos movimentos.
- Podes tratar-me por Lúcio Cornélio - disse Sila. Debruçou-se um pouco para a frente, mantendo a coluna absolutamente direita: a sua pose era uma fusão perfeita da graciosidade e do poder, como convinha a um romano chefiando tão importante reunião. - Hoje, aqui, nobre Orobazo, estamos a fazer história. De facto, é a primeira vez que embaixadores do reino dos Partos se encontram com um embaixador de Roma. É significativo que este nosso encontro se dê precisamente junto ao rio que constitui a fronteira entre os nossos dois mundos.
- Sem dúvida, nobre Lúcio Cornélio - concordou Orobazo.
- Dispensa o nobre, peço-te, trata-me apenas por Lúcio Cornélio
- disse Sila. - Em Roma, não há nobres nem reis.
- Ouvimos dizer que assim era, mas isso parece-nos estranho. Roma segue pois o modelo grego. E como é que Roma se tornou tão grande, se não tem nenhum rei a governá-la? O caso dos Gregos, nós entendemos. Nunca foram um povo muito poderoso porque nunca tiveram um rei que os governasse a todos. Fragmentaram-se numa miríade de pequenos estados e depois entraram em guerra uns contra os outros. Ao passo que Roma age como se houvesse um rei a governá-la e a todas as suas possessões. Como explicas que, apesar da ausência de um rei, Roma tenha tanto poder, Lúcio Cornélio? - perguntou Orobazo.
- Roma é o nosso rei, nobre Orobazo, embora Roma para nós seja do género feminino. Os Gregos subordinavam-se a um ideal. Vocês subordinam-se a um homem, o rei. Mas nós, Romanos, subordinamo-nos a Roma, apenas a Roma. O nosso amo e senhor não é um ser humano nem a abstracção de um ideal. Roma é o nosso deus, o nosso rei, as nossas próprias vidas. E embora cada Romano lute por firmar a sua reputação, lute por conquistar o apreço e admiração dos outros Romanos, a longo prazo está a lutar para firmar o nome e a grandeza de Roma. Nós veneramos uma terra, nobre Orobazo. Não um homem. Não um ideal. Os homens nascem e morrem, a sua existência neste mundo é algo de impalpável, de flutuante. E os ideais mudam e passam ao sabor dos ventos filosóficos. Mas uma terra, uma terra pode ser eterna enquanto aqueles que nela vivem a amem, a desenvolvam, a engrandeçam. Eu, Lúcio Cornélio Sila, sou um grande Romano. Mas no final da minha vida, tudo o que eu tiver feito servirá para aumentar o poder e a majestade da minha terra, de Roma. Hoje, aqui, não é em meu nome que falo, nem em nome de qualquer outro homem, mas sim em nome da minha terra, de Roma. Se assinarmos um tratado, esse tratado será depositado no templo de Júpiter Ferétrio, o mais velho templo de Roma, e aí permanecerá. Não será minha propriedade, não trará sequer o meu nome. Será muito simplesmente um testamento, um testamento que possa engrandecer Roma.
Sila falara bem, pois o seu grego era ático, muito belo, muito superior ao grego dos Partos ou de Tigranes. E todos eles o escutavam fascinados, fazendo obviamente um esforço para entender um conceito que lhes era inteiramente alheio. Uma terra mais importante que um homem? Uma terra mais importante que a produção mental de um homem?
- Mas uma terra, Lúcio Cornélio, é apenas uma colecção de objectos!
- contestou Orobazo. - Se é uma cidade, é uma colecção de edifícios. Se é um santuário, uma colecção de templos. Se é o campo, é uma colecção de árvores e rochas e terras lavradas ou não. Como pode uma terra gerar tais sentimentos, tamanha nobreza? Olham os Romanos para uma colecção de edifícios, e eu sei que Roma é uma grande cidade, e é a pensar nesses edifícios que praticam todas as suas acções?
Sila apontou com a sua vara de marfim.
- Isto é Roma, nobre Orobazo. - Tocou com a vara no musculoso antebraço, muito branco, de um branco de neve. - Isto é Roma, nobre Orobazo. - E afastou as pregas da sua toga para mostrar o xis curvo das pernas da sua cadeira. - Isto é Roma, nobre Orobazo. - E, com a mão esquerda, pegou num pedaço da toga. - Isto é Roma, nobre Orobazo.
- Parou então para fitar todos os olhos que para ele se erguiam, até que, por fim, disse: - Eu sou Roma, nobre Orobazo. Tal como todos os Romanos são Roma. Roma nasceu há mil anos, quando um refugiado troiano chamado Eneias chegou às costas do Lácio e fundou uma raça que, há seiscentos e sessenta e dois anos, fundou uma cidade chamada Roma. E durante algum tempo Roma foi de facto governada por reis. Até que os homens de Roma rejeitaram o conceito de que um homem podia ser mais poderoso do que a terra que o viu nascer. Nenhum homem romano é superior a Roma. Roma é a terra que produz grandes homens. Mas aquilo que eles são e aquilo que eles fazem destina-se unicamente à glória de Roma. São as suas contribuições para a história, para a evolução de Roma. E podes estar certo, nobre Orobazo, de que Roma viverá enquanto os Romanos amarem mais Roma do que a si mesmos, do que aos seus filhos, do que aos seus feitos e famas. - Sila fez uma nova pausa, respirou fundo. - Enquanto os Romanos amarem mais Roma do que um ideal ou um homem.
- Mas o rei, Lúcio Cornélio, é a manifestação de tudo aquilo que dizes - contestou Orobazo.
- Um rei não pode ser isso - disse Sila. - Um rei preocupa-se, em primeiro lugar, consigo mesmo, um rei acredita que está mais perto dos deuses do que todos os outros homens. Alguns reis crêem que são deuses. Tudo se resume a uma questão pessoal, nobre Orobazo. Os reis utilizam os seus países para se alimentarem a si próprios. Roma utiliza os Romanos para se alimentar a si mesma.
Orobazo ergueu as mãos, num gesto de quem desistia.
- Não consigo entender o que dizes, Lúcio Cornélio.
- Nesse caso, vejamos as razões que nos levaram a reunir-nos hoje aqui, nobre Orobazo. Trata-se de uma ocasião histórica. Em nome de Roma, faço-lhes uma proposta. Que as terras que ficam a leste do rio Eufrates fiquem unicamente sob a alçada do rei dos Partos. E que as terras que ficam a oeste do rio Eufrates fiquem sob a alçada de Roma, dos homens que agem em nome de Roma.
Orobazo ergueu as suas espessas sobrancelhas grisalhas.
- Isso quer dizer, Lúcio Cornélio, que Roma pretende governar todas as terras a oeste do rio Eufrates? Que Roma tenciona destronar os reis da Síria e do Ponto, da Capadócia e da Comagena, e de muitas outras terras?
- De modo nenhum, nobre Orobazo. Roma pretende muito simplesmente assegurar a estabilidade das terras a oeste do Eufrates, impedir que alguns reis se expandam à custa de outros, impedir, enfim, alterações das fronteiras nacionais. Sabe o meu nobre amigo por acaso por que razão me encontro precisamente aqui hoje?
- A razão exacta, desconheço-a, Lúcio Cornélio. O nosso vassalo, rei Tigranes da Arménia, enviou-nos uma mensagem em que afirmava que o exército romano se deslocava na sua direcção. Até agora não conseguiu o rei Tigranes explicar-me por que motivo o exército romano não tomou qualquer iniciativa agressiva. Tu e o teu exército deslocaram-se inicialmente para leste do Eufrates. Agora, ao que parece, deslocam-se de novo para ocidente. O que te trouxe aqui, Lúcio Cornélio? Por que razão conduziste o teu exército até à Arménia? E porque não tomaste qualquer iniciativa agressiva?
Sila virou a cabeça para fitar Tigranes, descobrindo que a margem denteada da sua tiara, decorada, por sobre o diadema, com uma estrela de oito pontas e um quarto crescente formado por duas águias, revelava a forte calvície do rei. Tigranes, que odiava estar numa posição inferior, ergueu o queixo para lançar um olhar furioso a Sila.
- O quê? Então o rei nada disse ao seu suserano? - perguntou Sila. Como não recebia resposta, virou-se para Orobazo e outros partos que falavam grego. - Nobre Orobazo, Roma está seriamente interessada em que certos reis da ponta leste do mar Central não se expandam em detrimento de outros reis. Roma está perfeitamente satisfeita com o status quo prevalecente na Ásia Menor. Mas o rei Mitridates do Ponto nutre desígnios expansionistas em relação ao reino da Capadócia e a outras regiões da Anatólia. Incluindo a Cilícia que, voluntariamente, se entregou à protecção de Roma, agora que o rei da Síria não é suficientemente poderoso para a proteger. Mas o vosso vassalo rei Tigranes apoiou Mitridates, e, a certa altura, não há muito tempo, invadiu mesmo a Capadócia.
- Ouvi falar disso - disse Orobazo com uma expressão rígida.
- Imagino que poucas coisas escaparão à atenção do rei dos Partos e dos seus sátrapas, nobre Orobazo! Contudo, depois de ter feito o trabalho sujo que o rei do Ponto lhe pediu, o rei Tigranes regressou à Arménia, e, desde então, não lançou qualquer nova movimentação a leste do Eufrates. - Sila aclarou a voz e prosseguiu. - Cumpri o triste dever de expulsar o rei do Ponto da Capadócia. Cumpri assim uma ordem do Senado e do Povo de Roma que me foi dada no início deste ano. Contudo, ocorreu-me que a minha tarefa só ficaria completa quando falasse com o rei Tigranes. Por isso, decidi-me a procurá-lo depois de ter deixado a cidade de Eusebeia Mazaca.
- Com o teu exército, Lúcio Cornélio? - perguntou Orobazo. Sila ergueu as sobrancelhas pontiagudas.
- Mas é evidente! Repara, nobre Orobazo, que eu praticamente não conheço esta zona do mundo. Por isso, unicamente por razões de precaução, levei comigo o meu exército. Tanto eu como os meus homens comportámo-nos como o maior decoro, e estou certo de que sabes disso: não atacámos ninguém, não saqueámos nada, não assaltámos uma única casa, nem sequer pisámos as plantações dos camponeses. Comprámos tudo aquilo de que precisávamos. E continuamos a fazer isso. Nobre Orobazo, peço-te que vejas o meu exército como um grande guarda-costas. É que eu sou um homem importante, nobre Orobazo! A minha posição no governo de Roma não atingiu ainda o seu zénite. Subirei ainda mais do que já subi. Por isso, convém-me, e convém a Roma, que Lúcio Cornélio Sila seja rodeado de todos os cuidados.
Orobazo acenou para que Sila parasse.
- Um momento, Lúcio Cornélio. Tenho comigo um certo caldeu, o Nabopolassar, que vem, não da Babilónia, mas da própria Caldeia, onde o delta do Eufrates corre para o mar Persa. Ele é meu vidente e astrólogo, e o irmão dele serve precisamente o rei Mitridates dos Partos. Nós - todos nós, os de Seleucia-no-Tigre - acreditamos no que ele diz. Permite que ele veja a tua palma da mão e o teu rosto? Gostaríamos de saber desse modo se és realmente o grande homem que afirmas ser.
Sila encolheu os ombros com um ar indiferente.
- Não tenho nada contra, nobre Orobazo. Chama o teu servidor, se isso te satisfaz! Ele está cá? Queres que ele faça já o seu trabalho? Ou deverei deslocar-me a local mais adequado?
- Deixa-te ficar onde estás, Lúcio Cornélio. O Nabopolassar virá ter contigo. - Orobazo fez um sinal e disse qualquer coisa aos observadores partos sentados no chão.
De entre estes observadores, saiu um que em tudo se parecia com os outros, com o seu chapeuzinho cheio de pérolas, e o colar em espiral, e as vestes adornadas a ouro. Com as mãos cobertas pelas mangas, avançou para o estrado, subiu rapidamente os degraus, parando no degrau a meio caminho entre o pódio de Sila e o principal estrado da plataforma. Estendeu então a mão e pegou na mão direita de Sila; e, durante longos minutos, examinou as linhas da mão e o rosto de Sila. Fez uma pequena vénia, e voltou para trás, sempre virado para Sila; só quando se abeirou de Orobazo, desviou o olhar do chefe romano.
O homem demorou algum tempo a comunicar as suas informações; Orobazo e os outros escutaram com um ar sério, com rostos impassíveis. No fim de tudo, virou-se de novo para Sila, fez-lhe uma vénia de todo o tamanho, e abandonou a plataforma sem nunca ter mostrado a Sila mais do que o cocuruto da cabeça, o que era sinal de extremo respeito.
O coração de Sila batera apressadamente enquanto o Nabopolassar dava o seu veredicto; agora, ao vê-lo deixar a plataforma, era de alegria que o seu coração batia. O que quer que ele tivesse dito, tinha sem dúvida confirmado as suas palavras, ou seja, que ele, Sila, era um grande homem. E a vénia que lhe fizera, poderia tê-la feito na presença do seu próprio rei.
- Diz o Nabopolassar, Lúcio Cornélio, que és o homem mais poderoso em todo o mundo, que ninguém te igualará, enquanto viveres, desde o rio Indo ao rio do Oceano no longínquo oeste. Temos de crer no que ele diz, porque ele incluiu o nosso próprio rei Mitridates entre os teus inferiores, e por isso colocou em perigo a sua cabeça - disse Orobazo, com um novo tom na voz.
Sila reparou que até mesmo Tigranes o fitava agora com respeito.
- Podemos reatar as nossas conversações? - perguntou Sila sem mudar de pose, expressão ou tom de voz.
- Faz o favor, Lúcio Cornélio.
- Muito bem. Chegado a este ponto da minha exposição, creio que já expliquei a presença do meu exército, mas não o que vim dizer ao rei Tigranes. Em poucas palavras, solicitei-lhe que permanecesse do seu lado do rio Eufrates, e adverti-o de que não deveria apoiar as ambições do seu sogro, o rei do Ponto, quer elas envolvam a Capadócia, a Cilícia ou a Bitínia. Depois de lhe ter dito isto, deixei-o, com a intenção de retornar à Cilícia.
- Diz-me, Lúcio Cornélio: crês que as ambições do rei do Ponto ultrapassam a própria Anatólia?
- Creio que as suas ambições envolvem todo o mundo, nobre Orobazo! Ele já domina todo o Euxino oriental, desde Ólbia, junto ao Hípanis, até à Cólquida, junto ao Fásis. Conquistou a Galácia assassinando todos os seus chefes, e matou pelo menos um dos reis capadócios. Tenho a certeza de que comandou a invasão da Capadócia desencadeada pelo rei Tigranes. E, abairando-me agora da razão do nosso encontro - Sila debruçou-se um pouco para a frente, com um brilho muito forte nos seus estranhos olhos -, a distância entre o Ponto e o reino dos Partos é muito menor do que a distância entre o Ponto e Roma. Considero por isso que o rei dos Partos devia ter todo o cuidado com as suas fronteiras enquanto o rei do Ponto nutrir desígnios expansionistas. E devia também vigiar atentamente o seu vassalo, o rei Tigranes da Arménia. - Sila pôs um sorriso encantador, com os caninos bem escondidos. - Nada mais tenho a dizer, nobre Orobazo.
- Falaste muito bem, Lúcio Cornélio - disse Orobazo. - Firmarás o teu tratado. Toda a região a oeste do Eufrates será vigiada por Roma. Toda a região a leste do Eufrates será vigiada pelo rei dos Partos.
- Isso implica, suponho, que a Arménia não lançará mais incursões a ocidente, não é verdade?
- Sem a mínima dúvida, Lúcio Cornélio - disse Orobazo, mirando o irado e desapontado Tigranes.
Finalmente, pensou Sila enquanto os embaixadores partos abandonavam o estrado, seguidos por um Tigranes que não tirava os olhos do chão de mármore branco, finalmente percebo como Caio Mário- se deve ter sentido quando Marta, a profetisa síria, predisse que ele seria cônsul de Roma sete vezes, e que lhe chamariam o Terceiro Fundador de Roma. Mas Caio Mário ainda está vivo! E no entanto, eu fui considerado o maior homem do mundo! De todo o mundo, desde a índia ao oceano Atlântico!
Nos dias seguintes, Lúcio Cornélio não revelou a nenhum outro homem o mínimo vestígio de alegria; o filho, que fora autorizado a seguir as conversações à distância, apenas sabia o que os seus olhos tinham visto, já que, de tão longe, nada pudera ouvir; na realidade, nenhum dos homens de Sila ouvira fosse o que fosse. E Sila, após as conversações, referira unicamente que tinha feito um tratado com os Partos.
Este acordo ficaria escrito numa enorme pedra que Orobazo tencionava colocar no local onde estivera a plataforma de Sila, que entretanto fora desmantelada, tendo os seus preciosos materiais regressado às respectivas origens. A pedra em causa era um obelisco em forma de paralelepípedo e cada um dos lados deste exibia o acordo escrito numa língua diferente: Latim, Grego, Parto e Médio. Foram feitas do tratado duas cópias em pergaminho, uma que Sila levaria para Roma, e a outra que Orobazo levaria para Seleucia-no-Tigre. Acreditava Orobazo que o rei Mitridates dos Partos ficaria extremamente satisfeito com o tratado.
Logo que se viu livre dos seus suseranos, Tigranes escapou-se furtivamente com ar de cão açoitado, retornando à sua nova cidade de Tigranocerta, agora com as ruas vigiadas. Logicamente, o seu primeiro impulso levou-o a escrever a Mitridates do Ponto; no entanto, resolveu aguardar algum tempo. Quando finalmente escreveu a Mitridates, fê-lo com alguma satisfação, em consequência das notícias que recebera de um amigo que se encontrava na corte de Seleucia-no-Tigre.
Presta atenção a Lúcio Cornélio Sila, meu valoroso e poderoso sogro. Em Zeugma, junto ao Eufrates, Sila concluiu um tratado de amizade com o sátrapa Orobazo de Seleucia-no-Tigre, que representava o meu suserano, o rei Mitridates dos Partos.
Sila e Orobazo deixaram-me de mãos atadas, querido rei do Ponto. De acordo com o tratado que concluíram, sou obrigado a permanecer a leste do Eufrates, e não posso desobedecer - pelo menos enquanto o velho e impiedoso tirano estiver sentado no trono dos Partos. Pelo meu regresso teve o meu reino do pagar com setenta vales. Se desobedecer, terei que pagar com mais setenta vales.
Mas não devemos desesperar. Como me disseste, somos ambos jovens, temos tempo para sermos pacientes. Este tratado entre Roma e o reino dos Partos levou-me a tomar uma resolução. Expandirei a Arménia. Quanto a ti, deverás atentar nos domínios que referiste: Capadócia, Paflagónia, a Província da Ásia, a Cilícia, a Bitínia, a Macedónia. Eu tratarei das regiões a sul: a Síria, a Arábia e o Egipto. Isto para não mencionar o reino dos Partos. Porque um dia, talvez não muito distante já, o velho Mitridates dos Partos morrerá. E prevejo que haverá então uma guerra de sucessão, pois ele domina tanto os filhos como me domina a mim, e não favorece nenhum deles, e atormenta-os com ameaças de morte, e chegou mesmo a matar filhos seus para intimidar os outros. Por isso nenhum dos seus filhos pode dizer que tem a primazia sobre os outros, e isso é perigoso quando morre um rei velho. Assim te juro, mui honrado e estimado sogro, que, quando houver uma guerra interna entre os filhos do rei dos Partos, aproveitarei a oportunidade e avançarei sobre a Síria, a Arábia, o Egipto, a Mesopotâmia. Até lá, dedicar-me-ei à construção de Tigranocerta.
Mas tenho de te falar de algo que sucedeu durante a reunião entre Orobazo e Lúcio Cornélio Sila. Orobazo pediu ao vidente caldeu, o Nabopolassar, que examinasse a palma da mão e o rosto do romano. Acontece que eu conheço bem este Nabopolassar, cujo irmão é vidente do próprio rei dos reis. E garanto-te, forte e sábio sogro, que o caldeu é um verdadeiro vidente, nunca se engana. Depois de ter visto a mão e o rosto de Lúcio Cornélio Sila, o Nabopolassar todo se dobrou perante o romano: tal vénia só o vi fazer perante o rei dos reis. Depois, disse a Orobazo que Lúcio Cornélio Sila era o homem mais poderoso do mundo! Desde o rio Indo ao rio do Oceano, como ele disse. Confesso que fiquei com muito medo. Tal como Orobazo. E com razão. De regresso a Seleucia-no-Tigre, Orobazo e os outros encontraram o rei dos Partos a residir nessa cidade; por isso, Orobazo pôde contar imediatamente ao rei o que se passara. E contou-lhe tudo, incluindo pormenores que o romano lhe revelara sobre as nossas actividades, poderoso rei do Ponto. E também o aviso do romano de que o meu caro sogro estaria interessado em conquistar o reino dos Partos. E o rei dos Partos tomou as suas medidas. Mandou-me espiões, que não me largam. No entanto - e esta é a única notícia que me alegra - mandou executar Orobazo e o Nabopolassar por descreverem o romano como um homem superior ao rei deles. Isso não o impediu, porém, de honrar o tratado, e para tal escreveu a Roma. Parece que o velho lamenta nunca ter visto Lúcio Cornélio Sila. Se o tivesse visto, por certo teria mandado chamar o carrasco. É pena que, por altura das conversações, ele se encontrasse em Ecbátana.
Só o futuro poderá revelar-nos os nossos destinos, meu muito querido e admirado sogro. Pode ser que Lúcio Cornélio Sila não volte para o oriente, que o seu poder se vire para ocidente. Pode ser que eu venha um dia a assumir o título de rei dos reis. Isto nada significa para ti, eu sei. Mas para alguém que cresceu nas cortes de Ecbátana, Susia e Seleucia-no-Tigre, significa tudo.
A minha querida esposa, e tua filha, está muito bem. Os nossos filhos estão bem. Daria tudo para poder dizer-te que os nossos planos estão a ir bem. Mas isso é impossível. Por ora.
Dez dias depois das conversações com Orobazo, Lúcio Cornélio Sila recebeu a sua cópia do tratado, e foi convidado para estar presente na inauguração do monumento junto ao grande rio azul-leitoso. Deslocou-se ao local vestido com a sua toga praetexta, tentando ignorar o facto de que o sol estival provocaria danos na pele do seu rosto; naquela ocasião, não poderia usar o chapéu de palha. Tudo o que podia fazer era besuntar-se com óleo e esperar que as muitas horas ao sol não o queimassem demasiado.
Claro que queimaram, e o filho aprendeu a lição, pois jurou que não mais largaria o seu chapéu. Sila sofreu com o escaldão. Depois de fazer bolhas, a pele caiu-lhe, fez novas bolhas, caiu-lhe outra vez; das feridas, saiu água e pus, mas Sila não resistia a coçar-se. Contudo, quando ele e o seu pequeno exército chegaram a Tarso, quarenta dias depois, a pele de Sila estava finalmente a cicatrizar e já não lhe causava nenhuma comichão. Mórsimo tinha encontrado um creme de cheiro muito agradável numa feira junto ao rio Píramo; logo que pôs o creme, Sila sentiu um grande alívio. E a pele cicatrizou sem deixar marcas, facto que muito agradou a Sila, que era vaidoso.
Sila não falou a ninguém (incluindo o filho) nem da predição do Nabopolassar, nem dos sacos de ouro que recebeu. Para além do saco que lhe fora dado pelo rei de Osdroena, recebeu mais cinco, oferta do parto Orobazo. Estas moedas de ouro exibiam o perfil de Mitrádates II dos Partos, um velho de pescoço curto e com um nariz que daria um óptimo gancho para a pesca, um cabelo cuidadosamente encaracolado e barba pontiaguda, e na cabeça o pequeno chapéu redondo e sem abas que os seus embaixadores usavam, excepto que o seu ostentava a faixa do diadema e tinha orelhas e uma protecção para a nuca.
Em Tarso, Sila trocou as moedas de ouro por dinheiro romano: quarenta milhões de sestércios. Tinha mais do que duplicado a sua fortuna! Claro que não saiu do banco de Tarso carregado de sacos de moedas de ouro; em vez disso, recorreu à permutatio e saiu do banco apenas com um pequeno rolo de pergaminho escondido na toga.
O ano findava, o Outono ia já avançado, e era altura de pensar em regressar a casa. O seu trabalho estava feito - e bem feito. O Tesouro não se queixaria, pois Sila recebera mais dez sacos de ouro: dois de Tigranes da Arménia, cinco do rei dos Partos, um do rei de Comagena e dois, imagine-se, do rei do Ponto. Isto significava que Sila podia perfeitamente pagar ao seu exército e dar a Mórsimo um bónus generoso, aplicar depois mais de dois terços desse montante nos seus fundos de guerra, agora muito mais elevados do que quando começara. Sim, aquele tinha sido um bom ano! A sua fama em Roma cresceria e agora já tinha dinheiro bastante para disputar o cargo de cônsul.
Tinha já os baús preparados e o navio à espera no Cidno quando recebeu uma carta de Públio Rutílio Rufo, datada de Setembro.
Espero que recebas esta carta a tempo, Lúcio Cornélio. E faço votos para que o teu ano tenha sido melhor do que o meu. Mas disso falarei depois.
Adoro de facto escrever para aqueles que estão longe, contando-lhes o que se passa em Roma. A falta que isso me fará! E quem me irá escrever? Mas adiante.
Em Abril elegemos um novo par de censores. Cneu Domício Aenobarho Pontifex Maximus e Lúcio Licínio Crasso Orador. Um duo pouco recomendável. O irascível aliado ao imutável - Hades e Zeus -, o conciso de braço dado com o loquaz - uma harpia e uma musa. Toda a Roma está a tentar encontrar uma descrição perfeita para o mais imperfeito duo do mundo. É claro que Crasso Orador e o meu querido Quinto Múcio Cévola é que deviam ter sido eleitos, mas tal não aconteceu. Cévola recusou-se a participar nas eleições. Diz que está demasiado ocupado. Ou demasiado cauteloso, diria eu! Depois de toda a confusão que os últimos censores criaram - culminando com a lex Licinia Mucia -, quer-me parecer que Cévola achou por bem fugir a mais complicações.
É claro que os tribunais especiais criados pela lex Licinia Mucia estão já bem defuntos. Caio Mário e eu conseguimos que eles fossem desmantelados no princípio do ano, invocando o facto de constituírem uma carga financeira que os lucros não justificavam. Felizmente toda a gente concordou. A nossa proposta foi aprovada sem problemas tanto no Senado como nos Comitia. Contudo, as cicatrizes permanecem, e que terríveis cicatrizes são estas, Lúcio Cornélio. As quintas e villas de dois dos juizes mais detestáveis, Cneu Cipião Nasica e Catulo César, foram reduzidas a cinzas; e outros viram as suas colheitas destruídas, as vinhas arrancadas, as cisternas de água envenenadas. Pratica-se agora, um pouco por todo o lado, um novo desporto nocturno
- encontrar um cidadão romano e deixá-lo meio-morto de pancada. Claro que ninguém - nem mesmo Catulo César - admite que todos estes desastres privados têm a ver com a lex Licinia Mucia.
Quinto Servílio Cepião, esse odioso jovem, teve entretanto o descaramento de levar Escauro Princeps Senatus ao tribunal de concussão, acusando-o de ter aceite um suborno monumental do rei Mitridates do Ponto. Imaginas por certo o que sucedeu. Escauro apareceu no local onde o tribunal reuniu, no baixo Fórum, mas não para responder a acusações! Foi direito a Cepião e deu-lhe duas valentes bofetadas, uma em cada face! Tenho a impressão de que em tais momentos Escauro cresce uns bons centímetros. Parecia muito mais alto que Cepião, quando, na verdade, têm praticamente a mesma altura.
”Como te atreves?”, berrou ele. ”Como te atreves, seu miserável verme, seu porco?! Retira imediatamente esta acusação, ou arrepender-te-ás de ter nascido! Tu, um Servílio Cepião, membro de uma família famosa pelo seu amor ao ouro, como podes atrever-te a acusar-me, a mim, Marco Emílio Escauro, Princeps Senatus, de ficar com ouro? Tu metes-me nojo, Cepião!”
Dito isto, Escauro abandonou o Fórum, saudado por vivas, aplausos e assobios, que ele ignorou. Cepião ficou de pé, com as marcas das bofetadas na cara, fazendo o possível por não olhar para os cavaleiros que tinham sido convocados para a selecção do júri. Mas depois daquela cena, o júri teria sempre absolvido Escauro, mesmo que Cepião apresentasse as melhores provas do mundo.
”Retiro a acusação”, disse Cepião, e foi a correr para casa.
E assim se calam todos os que gostariam de acusar Marco Emílio Escauro, actor sem igual, fingidor de primeira, príncipe de todos os bons tipos! Quanto a mim, admito que fiquei encantado. Há tanto tempo que Cepião persegue Marco Lívio Druso que, no Fórum, toda a gente o sabe. Ao que parece, Cepião achava que o meu sobrinho devia ter tomado o seu partido quando foi descoberto o caso da minha sobrinha com Catão Saloniano, e como as coisas não lhe correram de feição, Cepião reagiu o mais malevolamente possível. Ainda não se calou com a história do anel!
Mas chega de Cepião, assunto demasiado sujo para encher uma carta. Temos mais uma lei pronta a sair, graças ao tribuno da Plebe, Cneu Papírio Carbão. Ora aqui está uma família que não tem tido sorte nenhuma desde que os seus membros decidiram renunciar ao estatuto de patrícios! Dois suicídios na última geração, e agora um grupo de jovens Papírios que adora fazer das suas. Seja como for, Carbão convocou uma contio na Assembleia da Plebe há alguns meses atrás - no princípio da Primavera. Como o tempo passa! Crasso Orador e Aenobarbo Pontifex Maximus tinham acabado de apresentar as suas candidaturas a censores. O que Carbão estava a tentar fazer era levar a Assembleia da Plebe a aprovar uma versão modernizada da lei dos cereais de Saturnino. Mas os participantes na reunião descontrolaram-se de tal maneira que dois ex-gladiadores foram mortos, alguns senadores feridos, e tudo acabou num verdadeiro motim. Crasso Orador viu-se envolvido nisso tudo por causa da campanha eleitoral: saiu de lá com a toga suja e mais branco que a cal. Por isso promulgou um decreto que prevê que o magistrado que convoca uma reunião é o único responsável pela manutenção da ordem durante essa reunião. O decreto foi saudado como uma brilhante peça legislativa, e aprovado pela Assembleia do Povo. Se a reunião convocada por Carbão se tivesse realizado já depois de aprovada a lei de Crasso Orador, o nosso tribuno da plebe teria sido acusado de incitamento à violência e punido com uma pesada multa.
Mas passemos agora às notícias mais interessantes...
Já não temos censores!
Mas que aconteceu, Públio Rutílio?, oiço-te perguntar. Pois eu vou contar. De início, todos pensámos que eles se iam dar bem, apesar das manifestas diferenças de carácter. Adjudicaram os contratos do Estado, examinaram os registos dos senadores e dos cavaleiros, e depois disto aprovaram um decreto que expulsou de Roma quase todos os professores de Retórica: quase todos, pois ainda ficou uma meia dúzia deles, absolutamente irrepreensíveis. O seu furor incidiu especialmente sobre os professores de Retórica latina, mas os que ensinavam em grego não ficaram muito melhor. Conheces por certo estes professores, Lúcio Cornélio. Por um punhado de sestércios por dia, garantem que transformarão os filhos de membros da Terceira ou da Quarta Classe, pobres mas em ascensão social, em advogados; estes advogados aparecem depois no Fórum e a todo o momento solicitam casos, atirando-se, como aves de rapina, sobre a populaça romana, que é ingénua, mas adora litígios. A maior parte daqueles professores não se dá ao trabalho de ensinar em grego, pois é o latim a língua das leis e dos processos judiciais. E - toda a gente o admite!
- estes pretensos professores de Retórica achincalham a lei e os advogados, enganam os mal informados e desfavorecidos, ficam-lhes com o pouco dinheiro que têm, e não glorificam, bem pelo contrário, o nosso Fórum. Pois foram-se todos embora, eles mais as suas bagagens! Fartaram-se de amaldiçoar Crasso Orador e Aenobarbo Pontifex Maximus, mas de nada lhes valeram as pragas. Só ficaram os professores de Retórica com grande reputação e clientela de primeira.
Até aqui, as coisas corriam bem. Toda a gente elogiava os censores. Era de crer que continuassem no bom caminho, que tomassem ainda melhores medidas. Nada disso: começaram a guerrear-se. Oh, e que discussões! Em público! Culminando com uma curiosa troca de grosserias, ouvida pelo menos por meia Roma, ou seja, a meia Roma (a que eu pertenci, admito-o com toda a franqueza!) que resolveu deambular nas vizinhanças da tenda dos censores e assim ouviu o que lhe foi possível ouvir.
Não sei se sabes, mas Crasso Orador dedica-se à exploração de viveiros de peixe, actividade comercial que agora é considerada digna de um homem com a posição social de um senador. Por isso, mandou abrir vastos lagos nas suas propriedades e tem feito uma fortuna com a venda de enguias, lúcios, carpas e outros peixes; compradores não faltam: por exemplo, o colégio dos epulones, antes de todas as grandes festas públicas. Mal sabíamos nós o que nos esperava quando Lúcio Sérgio Orata se lançou na exploração de viveiros de ostras nos lagos de Baias! E que, de facto, das ostras às enguias vai apenas um pequeno passo, meu caro Lúcio Cornélio.
Oh, que falta me fará toda esta deliciosa agitação romana! Mas adiante. Voltemos a Crasso Orador e aos seus peixes. Nas propriedades dele, os peixes constituem uma actividade puramente comercial. Mas, sendo ele quem é, ou seja, Crasso Orador, acabou por se apaixonar pelos seus peixes. De modo que aumentou o tamanho do lago no seu peristilo da casa de Roma e encheu-o com uns quantos habitantes exóticos e dispendiosos. Sentava-se no muro que cerca o lago, mexia na água com os dedos, e lá vinham os seus queridos à procura das migalhas de pão. Especialmente uma carpa, uma criatura enorme cor de estanho, brilhante, com uma bela cara, para peixe. Era tão mansa a carpa que corria para a superfície mal Crasso Orador entrava no jardim. Francamente, não o posso censurar por ter ganho tanto afecto ao peixe.
O pior é que o peixe morreu e Crasso Orador ficou num estado miserável. Ninguém o viu durante uma quantidade de dias; àqueles que se aventuravam a bater-lhe à porta, respondiam os criados que o amo estava de cama, sofrendo de prostração, tal era o pesar. Finalmente, reapareceu em público, com um ar muito abatido, e, como seria de prever, a primeira coisa que fez foi ir ter com o seu colega, o Pontifex Maximus, à tenda que possuem no Fórum - aliás, estavam prestes a mudar-se para o Campo de Marte a fim de darem início a um muito necessário censo de toda a populaça.
”Ah!”, exclamou Aenobarbo Pontifex Maximus mal viu Crasso Orador. ”O quê? Não trazes toga pulla? Não vens de luto, Lúcio Licínio? Estou espantado! É que ouvi dizer que quando cremaste o teu peixe, contrataste um actor para pôr a máscara de cera do defunto e fizeste-o nadar até ao templo de Vénus Libitina! Disseram-me também que mandaste fazer um armário para guardar a máscara do peixe e que tencionas usá-la em todos os funerais dos Licínios Crassos como se a carpa pertencesse à família!”
Crasso Orador empertigou-se majestaticamente - bom, como qualquer Licínio Crasso, ele tem corpo para isso! - e, por sobre o seu volumoso nariz, mirou o seu colega censor.
”É verdade, Cneu Domício”, disse Crasso Orador com expressão altiva, ”que chorei pela morte do meu peixe. O que faz de mim um homem muito melhor que tu! Porque, até agora, morreram-te três mulheres, e tu nem uma lágrima choraste por elas!”
E desta forma, Lúcio Cornélio, terminou o reinado de Lúcio Licínio Crasso Orador e Cneu Domício Aenobarbo Pontifex Maximus.
É pena, pois não teremos um novo censo da população nos próximos quatro anos. Ninguém pensa em eleger novos censores.
E agora vamos às más notícias. Escrevo-te esta carta na véspera da minha partida para Esmirna, que será a minha terra de exílio. Sim, vejo que ficaste surpreendido! Públio Rutílio Rufo, o mais inofensivo e vertical dos homens, condenado ao exílio? É verdade. Há pessoas em Roma que não se esqueceram do magnífico trabalho que eu e Quinto Múcio Cévola fizemos na Província da Ásia - homens como Sexto Perquitienus, que já não pode confiscar valiosas obras de arte a gente que não pagou impostos. E como eu sou o tio de Marco Lívio Druso, ganhei também a inimizade dessa horrorosa criatura que dá pelo nome de Quinto Servílio Cepião. E, através dele, ganhei também a inimizade desse excremento humano que se chama Lúcio Márcio Filipe, que continua a tentar ser eleito cônsul. Claro que ninguém tentou apanhar Cévola: ele é demasiado poderoso. Por isso, decidiram atirar-se a mim. E se bem o decidiram, melhor o fizeram. No tribunal de concussão, onde apresentaram provas visivelmente fabricadas de que eu - eu, - extorqui dinheiro aos infelizes cidadãos da Província da Ásia. O procurador era um tal Apício, um indivíduo que se vangloria de ser cliente de Filipe. É claro que muita gente se ofereceu para me defender - a começar pelo próprio Cévola, e também Crasso Orador, e António Orador, e até mesmo o velho Cévola, o Augure, apesar dos seus noventa e dois anos. Aquele rapaz tremendamente precoce que põe toda a gente à sua volta no Fórum, Marco Júlio Cícero, de Arpino, também se ofereceu para me defender.
Mas eu já tinha percebido que tudo o que fizesse seria em vão. O júri tinha recebido uma fortuna (aurum Tolosanum?) para me declarar culpado. Por isso recusei todas as ofertas e defendi-me sozinho. Com elegância e dignidade, disso me posso gabar. Serenamente. O meu único assistente foi o meu querido sobrinho Caio Aurélio Cota, o mais velho dos três filhos de Marco Cota, e meio-irmão da minha querida Aurélia. Um outro meio-irmão dela, Lúcio Cota, que foi pretor no ano da lex Licinia Mucia, teve a desfaçatez de assistir o procurador! O tio dele, Marco Cota, deixou de lhe falar, e Aurélia fez o mesmo.
O resultado era inevitável. Consideraram-me culpado de extorsão, retiraram-me a cidadania, e condenaram-me ao exílio para um local que distasse de Roma pelo menos quinhentas milhas. Não me foram, porém, retirados os bens - creio que perceberam que se fizessem alguma coisa nesse sentido acabariam linchados. As minhas últimas palavras ao tribunal foram para acentuar que iria viver para junto do povo pelo qual fora condenado - os cidadãos da Província da Ásia e em particular os de Esmirna.
Não mais voltarei a Roma, Lúcio Cornélio. E não digo isto por ressentimento ou orgulho ferido. É que não quero voltar a ver uma cidade e um povo que consentem tão manifesta injustiça. Três quartos de Roma choram a injustiça, mas isso não altera o facto de eu, que sou a vítima, já não possuir a cidadania romana e ter de ir para o exílio. Não descerei ao ponto (isso só alegraria aqueles que me condenaram) de sujeitar o Senado a uma avalancha de petições para que a minha sentença seja revogada e a minha cidadania devolvida. Provarei que sou um verdadeiro Romano. Ficarei quieto, obedecerei, como um bom cão romano, à sentença de um tribunal romano legalmente escolhido.
Recebi já uma carta do etnarca de Esmirna - muito contente, ao que parece, com a perspectiva de ter um novo cidadão chamado Públio Rutílio Rufo. Parece que vão organizar uma festa em minha honra, uma festa que será celebrada mal eu desembarque. Estranha gente que assim recebe quem alegadamente a roubou!
Não me lastimes, porém, demasiado, Lúcio Cornélio. Ao que parece, vou ser muito bem tratado. Esmirna decidiu mesmo conceder-me uma pensão extremamente generosa, e uma casa, e bons criados. Ficam em Roma suficientes Rutílios para que o nosso clã dê nas vistas - o meu filho, os meus sobrinhos, e os meus primos do ramo Rutílio Lupo. Mas terei de usar a chlamys e as sandálias gregas, porque já não estou autorizado a usar toga. Poderás dispor de algum tempo e passar por Esmirna quando regressares a Roma? Espero que todos os meus amigos que agora se encontram no extremo oriental do mar Central me venham visitar a Esmirna! Será um pequeno consolo para um exilado.
Decidi começar a escrever seriamente. Acabaram-se os compêndios de logística, táctica e estratégia militar. Em vez disso, tornar-me-ei biógrafo. Tenciono começar com uma biografia de Metelo Numídico Suíno, incluindo alguns pormenores saborosos que deixarão o Bacorinho rangendo as presas de raiva. Depois, passarei para Catulo César, e mencionarei certas revoltas que aconteceram no Ádige, quando os Germanos andavam pelas bandas de Tridento. Oh, o que eu me vou divertir! Portanto cá te espero, Lúcio Cornélio! Preciso de informações que só tu me podes dar!
Sila nunca sentira grande afecto por Públio Rutílio Rufo. Contudo, quando arrumou o enorme rolo, reparou que tinha os olhos cheios de lágrimas. E nesse momento fez uma promessa solene: quando fosse o Primeiro Homem de Roma, o mais poderoso homem em todo o mundo, trataria de castigar devidamente homens como Cepião e Filipe. E aquela criatura nojenta que dava pelo nome de Sexto Perquitienus.
No entanto, quando o jovem Sila e Mórsimo entraram no seu gabinete, Sila tinha já os olhos secos e um ar perfeitamente sereno.
- Estou pronto - disse ele a Mórsimo. - Mas lembra-me para dizer ao comandante do navio que pararemos primeiro em Esmirna. Tenho de ir visitar um velho amigo e prometer-lhe que o manterei a par dos acontecimentos em Roma.
Enquanto Lúcio Cornélio Sila se encontrava no Oriente, Caio Mário e Públio Rutílio Rufo conseguiram fazer aprovar uma lei que suspendia os tribunais especiais previstos na lex Licinia Mucia. Marco Lívio Druso recuperou o ânimo.
- Creio que isto arruma a questão - disse ele a Mário e Rutílio Rufo, pouco depois de a medida ter entrado em vigor. - No final deste ano, disputarei o lugar de tribuno da plebe. E, no princípio do próximo ano, levarei a Assembleia da Plebe a aprovar uma lei concedendo a cidadania a todos os homens em Itália.
Tanto Mário como Rutílio Rufo puseram uma expressão dubitativa, embora nenhum deles manifestasse a sua oposição àquelas palavras; Druso tinha razão quando dizia que não tinham nada a perder se tentassem, e que o tempo não contribuiria necessariamente para abrandar as posições de Roma. Com a suspensão dos tribunais especiais, acabavam-se as vergastadas nas costas. Acabavam-se os sinais visíveis da desumanidade de Roma.
- Marco Lívio, tu já foste edil. Podias disputar um lugar de pretor agora - disse Rutílio Rufo. - Tens a certeza de que queres ser tribuno da plebe? Quinto Servílio Cepião pretende ser eleito pretor, o que significa que terás de combater no Senado um inimigo que disporá de muito poder. Mas há mais: Filipe vai de novo disputar o consulado, e se tiver êxito - e provavelmente terá êxito, pois os eleitores já estão fartos de o ver, ano após ano, de toga cândida -, terás de enfrentar um cônsul aliado a um pretor. Se fores eleito tribuno da plebe, Filipe e Cepião tudo farão para coarctar os teus movimentos.
- Eu sei - retorquiu firmemente Druso. - Mesmo assim, é minha intenção disputar o cargo de tribuno da plebe. Peço-lhes apenas que não digam nada a ninguém. Tenho um plano para ganhar a eleição e,
de acordo com esse plano, é preciso que as pessoas pensem que a minha decisão foi tomada à última hora.
A condenação e o exílio de Públio Rutílio Rufo no princípio de Setembro constituiu um rude golpe para Druso, para quem o apoio do tio no Senado era absolutamente necessário. Agora só poderia contar com Caio Mário, um homem a quem não estava muito ligado, e que não poderia substituir um familiar. E, no seio da sua família, Druso ficava sem confidentes: o irmão, Mamerco, tornara-se seu amigo, mas as suas tendências políticas apontavam para Catulo César e o Bacorinho. Druso nunca falara com ele do delicado tema do alargamento da cidadania à Itália. Nem queria. E Catão Saloniano tinha morrido. Eleito pretor após a morte de Lívia Drusa, Catão Saloniano encontrara algum alívio na sua intensa actividade (fora encarregado dos tribunais que tratavam de casos de assassínio, peculato, fraude e usura); mas quando a agitação na Hispânia levou o Senado a enviar um governador especial para a Gália Transalpina, Catão Saloniano ofereceu-se imediatamente, pois essa era uma maneira de se manter ocupado. A sogra, Cornélia Cipião, e o cunhado, Druso, tomariam conta dos seus filhos. Durante o Verão desse mesmo ano, Druso recebeu a notícia de que Catão Saloniano caíra do cavalo, sofrendo um ferimento na cabeça que, na altura, não parecera grave. Pouco tempo depois, porém, tivera um ataque epiléptico, que o levara à paralisia, ao coma, e à morte. Para Druso, aquela notícia era como uma porta que se fechava. Agora, tudo o que lhe restava da irmã eram os sobrinhos.
Era por isso compreensível que, após a partida do tio para o exílio, Druso escrevesse a Quinto Popaedius Silão, convidando-o a visitá-lo. Os tribunais especiais da lex Licinia Mucia já não funcionavam, e o Senado decidira que o maciço registo de cidadãos do censo António-Flaco seria pura e simplesmente ignorado até que se realizasse novo censo. Não havia pois nenhum obstáculo à visita de Silão. E Druso ansiava por falar com alguém em quem pudesse confiar acerca da sua futura actividade como tribuno.
Tinham passado já três anos e meio sobre o último encontro dos dois amigos em Boviano.
- Só Cepião sobrevive, e ele recusa-se a ver os seus filhos legítimos
- disse Druso a Silão, enquanto se sentavam no gabinete, à espera do jantar. - Dos dois que são Pórcios Catões Salonianos, só posso dizer
que são órfãos. Felizmente que não se lembram da mãe, e do pai, só Pórcia tem uma vaga recordação. Neste mar traiçoeiro e revolto em que as duas crianças se vêem perdidas, a minha mãe é o seu único porto de abrigo. Catão Saloniano, evidentemente, não tinha fortuna para deixar. Apenas a propriedade em Túsculo, e uma outra na Lucânia. Farei o que for preciso para que o rapaz disponha de bens suficientes para entrar para o Senado quando chegar a altura, e para que a rapariga tenha um dote condigno. Imagino que Lúcio Domício Aenobarbo, que está casado com a tia da rapariga, a irmã de Catão Saloniano, pensa casar Pórcia com o filho dele, Lúcio. O meu testamento está feito. E estou certo de que o de Cepião também. Quer queira quer não, Cepião não poderá deserdar os filhos. A única coisa que pode fazer é recusar-se a vê-los. Miserável!
- Pobres crianças - comentou Silão, que também era pai. - O menino, Catão, nem sequer do pai tem recordações.
Druso pôs um curioso sorriso.
- Oh, esse menino é de facto muito estranho! Magro que nem um fuso, com um pescoço muito alto e o nariz mais extraordinariamente adunco que alguma vez vi em criança tão pequena. Faz-me lembrar um abutre depenado. Por muito que me esforce, não consigo gostar dele. Não tem sequer dois anos, mas anda por aí pela casa toda com a cabeça caindo-lhe do pescoço e o nariz, ou parte dele!, apontado para o chão. E grita! Não, não chora: grita! Não consegue dizer nada num tom normal de voz. Berra. E trata mal toda a gente. Sempre que o vejo, fujo, apesar de toda a compaixão que me possa inspirar.
- E que é feito da espia... Servília?
- Ah, porta-se muito bem. Muito obediente, muito educada. Mas não se pode confiar nela, Quinto Popaedius. Mais uma que eu detesto
- disse Druso, com alguma tristeza.
Silão lançou-lhe um olhar incisivo.
- Mas há alguma criança nesta casa de quem gostes? - perguntou.
- Gosto do meu filho, Druso Nero. Uma criança encantadora. Tem oito anos. Infelizmente, é menos inteligente que adorável. Tentei convencer a minha mulher de que era imprudente adoptar um bebé, mas não consegui demovê-la, ela não pensava noutra coisa. Também gosto muito do jovem Cepião, embora não acredite que ele seja filho de Cepião! Ele é a cara de Catão Saloniano, e, nas brincadeiras e no comportamento, é muito parecido com o irmão mais novo. Quanto a
Lila e a Pórcia, são duas óptimas meninas. Embora as raparigas, para mim, sejam sempre um mistério.
- Anima-te, Marco Lívio! - disse Silão, sorrindo. - Um dia, todos eles serão homens e mulheres e pelo menos nessa altura poderás detestá-los à vontade pelo que eles façam ou deixem de fazer. Porque não me levas a vê-los? Confesso que gostaria de ver o abutre depenado e a espiazinha. É terrível, mas a verdade é que o que mais nos atrai são sempre as imperfeições da natureza humana.
O resto desse primeiro dia foi dedicado a encontros de carácter social. Por isso, só no dia seguinte Druso e Silão puderam falar da situação italiana.
- Tenciono disputar as eleições para tribuno da plebe no início de Novembro - confidenciou Druso.
Silão pestanejou, o que, num marso, não era habitual.
- Depois de teres sido edil? - perguntou. - Devias antes disputar o cargo de pretor.
- Claro - retorquiu calmamente Druso.
- Então porque queres ser tribuno da plebe? Não me digas que estás a pensar em dar a cidadania a toda a Itália, depois de eleito tribuno da plebe?
- É exactamente isso que eu penso fazer. Esperei pacientemente, Quinto Popaedius. Os deuses são minhas testemunhas. A paciência com que esperei todos estes anos! Se há uma altura certa para agir, essa altura é agora, enquanto a lex Licinia Mucia continua fresca em todas as memórias. E indica-me um membro do Senado com a idade apropriada e que, como tribuno da plebe, tenha a dignitas e a auctoritas que eu tenho... Há dez anos que estou no Senado, dez longos anos, sou paterfamilias há quase vinte anos, a minha reputação não tem mancha alguma, e a única mania que me é conhecida é a defesa da cidadania integral para os homens de Itália. Fui edil da plebe, e organizei jogos grandiosos. Tenho uma fortuna impressionante, uma multidão de clientes, sou conhecido e respeitado em toda a Roma. Por isso, quando virem que eu disputo o cargo de tribuno da plebe e não o de pretor, todos concluirão que as minhas razões são por certo muito fortes. Fui famoso como advogado, sou famoso como orador. Ainda sei falar, apesar de ter estado calado dez anos no Senado. Nos tribunais, basta o meu nome para atrair multidões. Sinceramente, Quinto Popaedius, quando me virem disputar o cargo de tribuno da plebe, todos os Romanos, desde os mais poderosos aos mais humildes, concluirão que os meus motivos são tão válidos quanto meritórios.
- Uma coisa é certa: a tua decisão vai dar muito que falar! comentou Silão. - Mas não me parece que tenhas hipóteses de êxito. Creio que seria mais acertado da tua parte se te tornasses pretor e, passados dois anos, cônsul.
- Na cadeira de cônsul nada poderei fazer - retorquiu firmemente Druso. - Esse tipo de legislação só pode vir da Assembleia da Plebe, promulgada por um tribuno da plebe. Se tentasse a aprovação de tais leis como cônsul, elas seriam automaticamente vetadas. Como tribuno da plebe, poderei controlar os meus colegas, coisa que o cônsul nem sempre pode fazer. E tenho autoridade em relação ao cônsul, devido ao meu poder de veto. Se necessário, negociarei. Caio Graco vangloriava-se de ter usado brilhantemente os seus poderes de tribuno da plebe. Mas podes ter a certeza, Quinto Popaedius, de que ninguém me igualará! Eu tenho a idade, a inteligência, os clientes e as influências. E tenho também um programa legislativo que irá muito mais longe do que a mera cidadania para toda a Itália. De facto, tenciono reestruturar a globalidade do edifício público romano.
- Que a grande Serpente luminosa te proteja e guie, Marco Lívio, é tudo o que posso dizer.
Com um olhar determinado, e um porte que sugeria que acreditava em si mesmo e no que dizia, Lívio Druso inclinou-se para a frente.
- Chegou a hora, Quinto Popaedius. Não posso permitir um estado de guerra entre Roma e Itália, e suspeito que tu e os teus amigos planeiam a guerra. Se forem para a guerra, perderão. E Roma perderá também, ainda que vença, e eu creio que vencerá. Roma nunca perdeu uma guerra, meu amigo. Batalhas, sim. E nos primeiros dias de uma guerra, a Itália sair-se-ia muito melhor do que se pensa, de um modo geral, em Roma. Mas Roma vencerá! Porque Roma vence sempre. E no entanto... que falsa vitória essa! As consequências económicas, por si só, seriam catastróficas. Conheces tão bem como eu o velho ditado: não traves nunca uma guerra na tua própria casa. A haver guerra, que seja a casa do vizinho a sofrer.
A mão de Druso apertou o antebraço de Silão.
- Deixa-me fazer as coisas à minha maneira, Quinto Popaedius! Pacificamente, logicamente: só assim chegaremos a algum lado.
Silão aquiesceu convictamente. Não havia sombra de dúvida nos seus olhos.
- Meu caro Marco Lívio, podes contar com o meu apoio devotado! Faz o que pretendes fazer! Não interessa que eu pense que tal missão não terá êxito. Se não for uma pessoa com a tua posição e fama a tentar, como poderá a Itália saber até que ponto Roma se opõe a uma emancipação geral? Concordo agora contigo que falsificar o censo foi uma estupidez. Julgo que nenhum de nós acreditou que esse estratagema resultasse. Acabou por ser uma maneira de dizer ao Senado e ao Povo de Roma o que nós, Italianos, sentimos. O problema é que tal aventura nos obrigou a recuar. Também tu recuaste. Por isso, avança agora! A Itália fará tudo o que estiver ao seu alcance para te ajudar: quanto a isso, podes contar com o meu compromisso solene.
- Preferia que todos os Italianos fossem meus clientes! - disse Druso pesarosamente, e riu-se. - Uma vez emancipada a Itália, poderia fazer prevalecer a minha vontade em Roma se todos os Italianos fossem meus clientes.
- Mas isso é possível, Marco Lívio! - disse Silão, surpreendido.
- Se o teu projecto resultar, tornar-te-ás patrono de todos os Italianos que beneficiarem da tua acção.
Druso franziu os lábios, fazendo o possível por controlar o júbilo que o invadia.
- Sim, em teoria isso seria possível. Mas na prática...
- Não, pelo contrário! Até seria fácil! - exclamou logo Silão. Tudo o que é preciso é que eu e Caio Pápio Mutilo e os outros dirigentes de Itália peçam a todos os Italianos que façam um juramento solene. E que diria esse juramento? Que se tu conseguisses a emancipação geral para toda a Itália, todos os Italianos te seguiriam e obedeceriam em qualquer circunstância, e até à morte.
Assombrado, Druso fitou Silão boquiaberto.
- Um juramento? Mas será que eles estão preparados para fazer um tal juramento?
- Estão. Desde que o juramento não vincule os descendentes deles ou os teus - disse Silão calmamente.
- Não é preciso envolver os descendentes - disse Druso lentamente.
- Tudo o que preciso é de tempo e de um apoio macivo. Quanto a mim, farei o que tenho a fazer.
Todos os Italianos seus clientes! Esse era o sonho de qualquer nobre romano: ter um número de clientes suficiente para formar um exército inteiro. Se todos os Italianos fossem seus clientes, nada seria impossível.
- O juramento não demorará, Marco Lívio - disse Silão animadamente. - Tens razão em querer que todos os Italianos sejam teus clientes. Porque a emancipação geral será apenas o princípio. Silão riu-se, um riso sonoro, áspero. - Que triunfo! Ver um homem tornar-se o Primeiro Homem de Roma - não, o Primeiro Homem de toda a Itália! - graças à influência daqueles que, neste momento, não têm qualquer influência nos assuntos de Roma. - Silão libertou suavemente o seu antebraço da mão de Druso, que continuava a apertá-lo.
- Agora diz-me o que tencionas fazer.
Mas Druso não conseguia ordenar os seus pensamentos; as implicações daquele plano eram imensas, eram demasiado grandiosas. Todos os Italianos seus clientes!
Como fazê-lo? Como. Entre os grandes vultos do Senado, só Caio Mário o apoiaria, e Druso sabia que o apoio de Mário não chegaria. Precisava de Crasso Orador, de Cévola, de António Orador e de Escauro Princeps Senatus. As eleições para o tribunado aproximavam-se, e Druso sentia-se quase que desesperado; continuava à espera do momento certo, e o momento certo parecia nunca mais vir. A candidatura a tribuno da plebe permanecia um segredo que só Silão e Mário conheciam, e o seu desmedido anseio continuava a ser uma miragem.
Até que, certa manhã de fins de Outubro, Druso encontrou Escauro Princeps Senatus, Crasso Orador, Cévola, António Orador e Aenobarbo Pontifex Maximus reunidos junto à fonte dos Comitia; era evidente que estavam a falar da condenação e do exílio de Púbio Rutílio Rufo.
- Marco Lívio, fica connosco! - chamou Escauro, abrindo o círculo.
- Estávamos precisamente a discutir a melhor maneira de arrebatar os tribunais à Ordo Equester. A condenação de Públio Rutílio Rufo foi uma medida absolutamente criminosa. Os cavaleiros perderam o direito a dirigir seja que tribunal for!
- Concordo inteiramente - disse Druso. Por um momento, fitou Cévola. - Era a ti, Cévola, que eles realmente queriam, e não Públio Rutílio Rufo.
- Nesse caso, porque não me processaram a mim? - perguntou Cévola, que continuava muito preocupado.
- É que tu tens muitos amigos, Quinto Múcio.
- E Públio Rutílio tem poucos, ou pelo menos não tem o número suficiente. É uma verdadeira calamidade. Não podemos permitir a perda de um homem como Públio Rutílio! Ele sempre foi um homem íntegro, e isso é raro - comentou, furioso, Escauro.
- Não creio que consigamos alguma vez arrebatar por completo os tribunais aos cavaleiros - opinou Druso, falando com todo o cuidado.
- A lei de Cepião, o Cônsul, não foi aprovada e por isso não vejo nenhuma hipótese de aprovar outra lei que preveja a devolução dos tribunais ao Senado. A Ordo Equester está habituada a dirigir os tribunais, há trinta anos que o faz. Os cavaleiros gostam do poder que isso lhes dá sobre o Senado. Além disso, sentem que, com esse poder, ninguém se atreverá a tocar-lhes. A lei de Caio Graco não diz especificamente que um júri constituído por cavaleiros pode ser considerado culpado de suborno. Os cavaleiros, por outro lado, insistem que a lex Sempronia diz que não podem ser processados por suborno ao assumirem as funções de jurados.
Crasso Orador fitava Druso alarmado.
- Marco Lívio, tu és, de longe, o candidato com mais possibilidades de obter um cargo de pretor! - exclamou. - Ora se és tu precisamente quem diz tais coisas, que hipóteses terá o Senado?
- Eu não disse que o Senado deveria perder as esperanças e desistir, Lúcio Licínio - retorquiu Druso. - Disse apenas que os cavaleiros se recusariam a abandonar os tribunais. Mas atenção: nós temos a possibilidade de os conduzir a uma situação em que eles não teriam outra hipótese senão partilhar os tribunais com o Senado... Os plutocratas ainda não governam Roma, e eles sabem-no perfeitamente. Por isso... por que razão não damos nós o primeiro passo? Porque não há-de propor um de nós uma nova lei regulamentadora dos principais tribunais, uma lei que preveja para os tribunais tantos membros do Senado como da Ordo Equester!
Cévola respirou fundo.
- Dar o primeiro passo! Não será fácil aos cavaleiros encontrar razões convincentes para recusarem tal proposta, que, aos olhos deles, parecerá por certo um ramo de oliveira senatorial. De facto, poderá haver algo mais justo que metade dos membros serem cavaleiros e a outra metade membros do Senado? O Senado não poderá ser acusado de tentar controlar os tribunais, não é verdade?
- Ah! - exclamou Crasso Orador, com um sorriso arreganhado. Dentro do Senado, temos as fileiras cerradas. Mas, como todos nós, senadores, sabemos, há sempre uns quantos cavaleiros em qualquer júri que não se importariam nada de entrar para a Cúria Hostília... Se o júri é constituído exclusivamente por cavaleiros, estão-se marimbando... Mas se o júri tiver apenas cinquenta por cento de cavaleiros, poderá haver algum membro da Ordo Equester a fazer pender a balança... Muito inteligente, Marco Lívio!
- Podemos argumentar que nós, senadores, possuímos tal cabedal de conhecimentos legais que a nossa presença irá forçosamente enriquecer os tribunais - comentou Aenobarbo Pontifex Maximus. - Além disso, é preciso ver que controlámos exclusivamente os tribunais durante quase quatrocentos anos! Actualmente, podemos argumentar ainda, uma tal exclusividade não faria sentido. Mas isso não implica que o Senado seja excluído.
Para Aenobarbo Pontifex Maximus, esta era uma argumentação razoável; Aenobarbo tornara-se mais moderado desde que fora juiz em Alba, nos tempos da lex Licinia Mucia, embora Crasso Orador excitasse o que de pior havia nele. E, no entanto, ali estavam os dois juntos, unidos na defesa da sua classe e dos seus privilégios.
- Bem pensado - comentou António Orador, radiante.
- Concordo - disse Escauro. Virou-se para Druso e fitou-o. Tencionas lançar o teu projecto como pretor, Marco Lívio? Ou estás a pensar noutra pessoa?
- Não, Princeps Senatus, é de facto em mim que estou a pensar, mas não na qualidade de pretor - respondeu Druso. - Tenciono candidatar-me ao tribunato da plebe.
Todos ficaram boquiabertos de espanto, fitando atentamente Druso.
- Com a tua idade? - perguntou Escauro.
- A minha idade é uma vantagem evidente - retorquiu calmamente Druso. - Apesar de ter a idade suficiente para ser pretor, é o cargo de tribuno da plebe que vou disputar. Ninguém poderá acusar-me de imaturidade, inexperiência, precipitação, do desejo de agradar às massas, ou de qualquer outro dos motivos que normalmente levam as pessoas a disputar o cargo de tribuno da plebe.
- Então por que razão queres ser tribuno da plebe? - perguntou Crasso Orador, intrigado.
- Gostaria de promulgar algumas leis - disse Druso, ainda com uma expressão calma.
- Podes promulgá-las como pretor - disse Escauro.
- Sim, mas não com a facilidade e a aceitação que são inerentes ao cargo de tribuno da plebe. Com a evolução da República, a promulgação de leis tornou-se um domínio do tribuno da plebe. E a Assembleia da Plebe gosta do seu papel legislador. Para quê perturbar o status quo, Princeps Senatus? - perguntou Druso.
- Tens por certo outras leis em mente - arriscou Cévola.
- Assim é, Quinto Múcio.
- Dá-nos uma ideia do que te propões fazer.
- Gostaria de duplicar o número de senadores - respondeu Druso. De novo, todos o fitaram boquiabertos; mas, desta feita, o espanto
associou-se a uma certa tensão.
- Marco Lívio, começas a parecer-te com Caio Graco... - disse Cévola cautelosamente.
- Percebo por que assim pensas, Quinto Múcio. Mas mesmo assim gostaria de aumentar a influência do Senado no nosso governo, e sou suficientemente tolerante para usar as ideias de Caio Graco, caso elas sirvam os meus objectivos.
- Mas como poderemos aumentar o domínio senatorial se enchermos o Senado de cavaleiros? - perguntou Crasso Orador.
- Isso era o que Caio Graco propunha - retorquiu Druso. - Eu proponho ligeiramente diferente. Em primeiro lugar, não vejo como se poderá argumentar contra o facto de o Senado já não ser suficientemente grande. Poucos são os senadores que comparecem às reuniões; muitas vezes, demasiadas vezes, nem temos quoro. Se viermos a fazer parte dos júris, quantos de nós não ficarão fartos dessas funções? Tens de admitir, Lúcio Licínio, que, nos tempos em que os tribunais nos pertenciam por inteiro, uma boa metade ou mais de metade dos senadores recusava-se a cumprir os seus deveres de jurados. Caio Graco queria encher o Senado de cavaleiros, mas eu quero enchê-lo com homens da nossa própria ordem senatorial, mais uns quantos cavaleiros, para que estes fiquem contentes. Todos nós temos tios ou primos ou mesmo irmãos mais novos que gostariam de entrar para o Senado e que têm bens que justificariam a sua presença no Senado. No entanto, não podem entrar porque o Senado está cheio. Estes homens, entrariam antes de qualquer cavaleiro. E que melhor maneira de levar certos cavaleiros a apoiar o Senado do que torná-los precisamente senadores? São os censores que nomeiam os novos senadores, e as suas escolhas não podem sofrer contestação. - Druso aclarou a voz e acrescentou: - Sei que neste momento estamos sem censores, mas podemos elegê-los no próximo mês de Abril, ou em Abril do próximo ano.
- A ideia agrada-me - comentou António Orador.
- E que outras leis te propões promulgar? - perguntou Aenobarbo Pontifex Maximus, ignorando a referência a ele próprio e a Crasso Orador, que deveriam ser ainda censores, não fosse a disputa que houvera entre eles.
Mas Druso pôs uma expressão vaga e respondeu apenas:
- Por ora ainda não sei, Cneu Domício. O Pontifex Maximus riu-se.
- Quer-me parecer que sabes! - comentou. Druso sorriu com inocente brandura.
- Bom, talvez saiba, Cneu Domício, mas não o suficiente para querer falar delas perante tão augusta companhia. Mas podes estar certo de que terás oportunidade de te pronunciar sobre essas leis.
- Hmm... - fez Aenobarbo Pontifex Maximus, com uma expressão céptica.
- O que eu gostava de saber, Marco Lívio, é há quanto tempo tu pensas disputar o tribunato da plebe... - disse Escauro Princeps Senatus.
- Sentia-me intrigado com o facto de não falares no Senado, depois de teres sido eleito edil plebeu. Suponho que, mesmo nessa altura, estavas a guardar o teu discurso inaugural para melhor ocasião... Não é verdade, Marco Lívio?
Druso abriu muito os olhos.
- Marco Emílio, como podes dizer uma coisa dessas?! Um edil não tem rigorosamente nada para dizer! Logo, para que havia eu de intervir?
- Hmm... - fez Escauro, encolhendo os ombros. - Seja como for, podes contar com o meu apoio, Marco Lívio. Gosto do teu estilo.
- Conta também com o meu apoio - disse Crasso Orador. Todos concordavam afinal em apoiar Druso.
Druso só anunciou a sua candidatura a tribuno da plebe na manhã das eleições. Uma tal decisão seria normalmente imprudente. Contudo, no seu caso, revelou-se brilhante. De facto, dessa forma não teve que responder a perguntas incómodas durante o período pré-eleitoral; por outro lado, dava a impressão de que, tendo verificado a pouca qualidade dos candidatos a tribunos, ficara tão exasperado que decidira apresentar-se às eleições unicamente para melhorar o nível destas. Os candidatos menos maus eram Séstio, Saufeio e Minício - nenhum deles nobre, nenhum deles susceptível de causar o mínimo entusiasmo entre os eleitores. Para além de Druso, havia mais vinte e dois candidatos.
Foi uma eleição tranquila. A afluência dos eleitores foi fraca: apareceram cerca de dois mil votantes, o que constituía uma percentagem mínima. Como à volta da fonte dos Comitia era possível reunir o dobro desses eleitores, não houve qualquer necessidade de recorrer a outro recinto, como o Cicrco Flamínio. O Presidente do Colégio de Tribunos da Plebe cessante deu início à votação, pedindo aos eleitores que se repartissem pelas respectivas tribos; o cônsul Marco Perperna, um plebeu, que era o escrutinador, seguia com um ar grave os trabalhos. Como a afluência era fraca, os escravos públicos que seguravam as cordas separando as diversas tribos não precisavam de mandar ninguém esperar fora do recinto dos Comitia.
Dado que se tratava de uma eleição, as trinta e cinco tribos depuseram os seus votos simultaneamente, e não por ordem, como acontecia na votação de uma lei ou na apreciação de um veredicto num julgamento. Os cestos em que eram depositadas as tábuas de cera com os votos encontravam-se numa plataforma provisória sob a tribuna; esta era ocupada pelos tribunos cessantes, pelos candidatos e pelo cônsul escrutinador.
A plataforma provisória, feita em madeira, fazia uma curva que encobria a zona mais baixa junto à fonte dos Comitia. Trinta e cinco estreitas passagens erguiam-se íngremes desde a fonte até ao local onde se encontravam os cestos, cerca de dois metros mais altos que o início das passagens; as cordas dividindo as tribos estendiam-se fazendo cunhas, ao longo do chão e subindo as bancadas da fonte, no lado oposto à tribuna. Cada votante chegava à sua passagem, recebia a tábua de cera das mãos de um dos custodes, parava para escrever o nome do candidato escolhido com o seu estilo, subia depois ao ponto mais alto da plataforma e depositava a sua tábua de cera no cesto tribal. Cumprido o dever eleitoral, o votante percorria a bancada mais alta em torno da fonte até deixar o recinto, de um ou do outro lado da tribuna. Os eleitores que se tinham dado ao trabalho de pôr a toga e de comparecer àquele acto eleitoral, só abandonavam o recinto depois de todos os votos contados; por isso, depois de terem votado, passeavam pelo baixo Fórum, conversando, petiscando, e vigiando de perto o que se passava no recinto dos Comitia.
Durante todo este processo, os tribunos cessantes permaneciam na parte de trás da tribuna e os candidatos mais perto da frente, ao passo que o Presidente do Colégio cessante e o cônsul escrutinador se sentavam num banco mesmo na frente da tribuna, acompanhando tudo o que se passava na zona consagrada à votação.
Algumas tribos - e em particular as quatro tribos urbanas - possuíam várias centenas de votantes, ao passo que outras tinham muito poucos: as tribos rurais mais distantes de Roma não passavam da dúzia ou das duas dúzias. No entanto, cada tribo tinha apenas um voto para lançar no cesto, e esse voto era o da maioria dos seus membros; este facto, obviamente, dava às tribos rurais uma importância exagerada.
Como os cestos só continham cerca de cem tábuas de cera, eram retirados para contagem logo que estavam cheios, sendo imediatamente substituídos por cestos vazios. A contagem era controlada integralmente pelo cônsul escrutinador; era realizada por trinta e cinco custodes e respectivos assistentes, numa mesa enorme, colocada na bancada superior, mesmo debaixo do olhar do cônsul escrutinador.
Quando todos os trabalhos terminaram, duas horas antes do pôr do Sol, o cônsul escrutinador leu os resultados na presença dos votantes que ainda permaneciam no local. Além disso, o cônsul escrutinador autorizava a publicação dos resultados numa folha de pergaminho que seria afixada numa parede do Fórum.
Marco Lívio Druso era o novo Presidente do Colégio: as trinta e cinco tribos tinham todas votado nele, o que era um fenómeno invulgar. Minício, Séstio e Saufeio tinham também sido eleitos, e mais seis candidatos, tão pouco conhecidos e tão desprovidos de tudo que, momentos depois, já ninguém se lembrava deles - aliás, nunca mais ninguém falou deles, pois nada fizeram durante o ano em que foram tribunos da plebe, ano que começou a 10 de Dezembro, cerca de trinta dias depois da eleição. Como seria de esperar, Druso ficou contente por não ter no Colégio nenhum adversário importante.
O Colégio dos Tribunos da Plebe encontrava-se instalado na Basílica Pórcia, no primeiro piso, na extremidade mais próxima da sala de reuniões do Senado. Consistia este quartel-general de uma vasta sala, umas quantas mesas e cadeiras de desarmar sem costas, e um número impressionante de pilares; sendo a mais velha das basílicas, a Basílica Pórcia era também a que revelava uma construção mais defeituosa. Nos dias em que não havia assembleias, os tribunos da plebe reuniam-se na Basílica Pórcia a fim de escutarem aqueles que pretendiam apresentar-lhes problemas, queixas, sugestões.
Druso desejava ardentemente entregar-se às suas novas funções e não pensava noutra coisa senão no seu discurso inaugural no Senado. Podia contar com a oposição dos magistrados mais velhos do Senado, já que Filipe fora eleito cônsul júnior ao lado de Sexto Júlio César o primeiro Júlio César a sentar-se na cadeira de cônsul em quatrocentos anos. Cepião fora eleito pretor, embora nesse ano os pretores fossem oito, em vez dos seis habituais; por vezes, o Senado considerava que seis pretores não chegavam e recomendava a eleição de oito. Fora isso o que sucedera naquele ano.
Era intenção de Druso começar a legislar antes de qualquer dos outros tribunos da plebe. Porém, quando o novo Colégio foi empossado, o campónio que dava pelo nome de Minício, mal as cerimónias terminaram, anunciou, numa vozinha estridente, que convocava uma primeira contio para discutir uma lei urgente. No passado, gritou Minício, concedia-se o estatuto do pai aos filhos de um casamento entre um cidadão romano e uma não-cidadã. Demasiado fácil!, exclamou Minício. Demasiados romanos híbridos!, gritou Minício. Para acabar com esta indesejável brecha na cidadela romana, Minício anunciou a promulgação de uma nova lei, proibindo a cidadania romana a todos os filhos de um casamento misto, mesmo no caso de o pai ser cidadão romano.
Esta lex Minicia de liberis constituiu para Druso uma triste surpresa, pois foi saudada nos Comitia com gritos de aprovação: não havia dúvida que a grande massa dos eleitores tribais continuava a sentir que a cidadania romana não podia de forma nenhuma cair nas mãos de todos aqueles que eram considerados inferiores - ou seja, do resto da humanidade.
Como seria de esperar, Cepião aprovou a lei, ainda que, no seu íntimo, desejasse que ela nunca tivesse sido proposta; de facto, Cepião era há pouco tempo amigo de um novo senador, um cliente de Aenobarbo Pontifex Maximus que o próprio Cepião, durante o seu mandato como censor, fizera entrar para o Senado. Muito rico - em grande parte à custa dos seus irmãos Hispânicos -, este amigo de Cepião tinha um nome imponente: Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis.
Compreensivelmente, preferiam que o tratassem apenas por Quinto Vário; o apelido de Severo, ganhara-o devido mais à crueldade do que à severidade do seu temperamento; o Hybrida era a prova provada de que um dos seus progenitores não era cidadão romano, e o Sucronensis indicava que tinha nascido na cidade de Sucrão, na Hispânia Tarraconense. Tendo de romano muito pouco, mais estrangeiro do que qualquer homem nascido em Itália, Quinto Vário estava decidido a tornar-se um dos mais importantes homens de Roma. Como haveria de conquistar tal posição, pouco lhe interessava. O que lhe interessava era chegar lá.
Apresentado a Cepião, Vário colou-se a ele como lapa à rocha. Exímio na lisonja, incansável nos pequenos favores e atenções, Vário teve, junto de Cepião, mais êxito do que alguma vez poderia esperar, e a razão era simples: embora não o soubesse, Vário elevava assim Cepião ao nível em que Cepião costumava pôr Druso nos velhos tempos.
Nem todos os amigos de Cepião gostaram de Quinto Vário. No entanto, Lúcio Márcio Filipe recebeu-o de braços abertos, já que Vário estava sempre disposto a ajudar financeiramente um aspirante a cônsul pouco feliz, e depressa prescindia do pagamento da dívida. Quinto Cecílio Metelo Pio, o Bacorinho, detestou Vário desde o instante em que o viu.
- Quinto Servílio, como é que tu consegues suportar criatura tão desprezível? - perguntou-lhe certo dia o Bacorinho, sem gaguejar. Uma coisa te digo: se Vário tivesse estado em Roma na altura em que o meu pai morreu, teria acreditado no físico Apolodoro e num instante saberia quem envenenou o grande Metelo Numídico!
Disse mais tarde o Bacorinho a Aenobarbo Pontifex Maximus:
- Porque é que os teus principais clientes mais não são que um monte de merda? Francamente, é isso mesmo que eles são! Com os plebeus Servílios da família Augure e este que dá pelo nome de Vário, vais ficar conhecido como o patrono dos proxenetas, da escória, do lixo, enfim, da mais desprezível bicharia!
Hybrida significa bastardo (N. do T.)
Um comentário que deixou Aenobarbo Pontifex Maximus de boca aberta, incapaz de responder fosse o que fosse.
Nem todos os olhos viam Quinto Vário tão claramente como os do Bacorinho; os crédulos e pouco informados ficariam encantados com ele. Em primeiro lugar, porque era um homem extremamente bem-parecido, de uma forma muito masculina - alto, bem constituído, moreno o suficiente, de olhos muito vivos e traços agradáveis. Era também bem-falante, ainda que apenas ao nível da mera conversação. A sua oratória deixava muito a desejar e seria sempre afectada pelo seu acento hispânico muito pronunciado; no entanto, seguindo os conselhos de Cepião, Vário procurava afincadamente melhorar as suas capacidades oratórias, bem como o seu latim. E enquanto o fazia, corriam as mais desvairadas opiniões sobre o homem que ele realmente era.
”Vário tem uma qualidade rara: é um homem sensato”, dizia Cepião.
”Não passa de um parasita”, comentava Druso.
”É um homem extremamente generoso e encantador”, comentava Filipe.
”É falso como as cobras”, dizia o Bacorinho.
”É um cliente que merece todo o respeito”, dizia Aenobarbo Pontifex Maximus.
”Esse homem não é romano”, comentava, com o maior desdém, Escauro Princeps Senatus.
Naturalmente, esse encantador e sensato Vário, merecedor de todo o respeito, segundo Aenobarbo, não se sentia nada bem com a nova lex Minicia de liberis. Com efeito, esta lei punha em causa o seu estatuto de cidadão. Infelizmente, só agora se apercebia da estupidez de Cepião; nada do que pudesse dizer chegava para convencer Cepião a retirar o seu apoio à lei de Minício.
- Não te preocupes com a lei, Quinto Vário - dizia-lhe Cepião.
- Não é retroactiva.
Druso era quem mais inquieto estava com a nova lei, ainda que ninguém em Roma se apercebesse disso. A lex Micinia de liberis constituía uma indicação clara de que, pelo menos dentro dos limites de Roma, havia um sentimento muito forte contra o alargamento do estatuto de cidadão.
- Terei de reorganizar o meu programa legislativo - disse ele a Silão durante uma das visitas deste, pouco antes do final desse ano.
- O sufrágio universal terá de ser adiado para o fim do meu tribunato.
Era minha intenção começar precisamente com o sufrágio universal, mas vejo agora que é absolutamente impossível.
- Nunca conseguirás, Marco Lívio - retorquiu Silão, abanando a cabeça. - Eles não te deixarão.
- Conseguirei porque eles deixarão - replicou Druso, mais determinado do que nunca.
- Bom, Marco Lívio, posso oferecer-te algum consolo no meio de tanta tristeza - disse Silão, com um sorriso de todo o tamanho. Falei com os outros dirigentes italianos e todos eles afinam pelo meu diapasão. Todos nós achamos que, se conseguires dar-nos a cidadania, merecerás que todos os Italianos sejam teus clientes. Redigimos um juramento que será aprovado em todas as nações italianas até ao final do próximo Verão. Por isso, talvez seja bom não começares o teu tribunato com a lei do sufrágio universal.
Druso sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. Custava-lhe a crer que teria, não apenas um exército de clientes, mas nações de clientes!
Com entusiasmo, Druso avançou com o seu programa de leis, promulgando em primeiro lugar a medida que tinha por objectivo a partilha dos principais tribunais pelo Senado e pela Ordo Equester. Seguiu-se-lhe um decreto que previa o alargamento do Senado. O seu primeiro público, contudo, não foi a Assembleia da Plebe; de facto, Druso apresentou as suas medidas no Senado, pedindo que este o autorizasse a levá-las à Assembleia da Plebe para ratificação, acompanhadas da aprovação senatorial.
- Não sou um demagogo - disse ele para os senadores que, em silêncio, o escutavam na Cúria Hostília. - Em mim, podem ver o tribuno da plebe do futuro: um homem com a idade e a experiência suficientes para reconhecer que a tradição é o caminho certo, um homem que defenderá com todas as suas forças a auctoritas do Senado. Nada do que eu possa fazer nos Comitia apanhará de surpresa os membros desta Casa, porque passarei primeiro por aqui, solicitando a vossa aprovação. Nada do que vos pedir será indigno de vós, nada do que pedir a mim próprio será indigno de mim. Porque eu sou o filho de um tribuno da plebe que sentia em relação aos seus deveres o mesmo que eu sinto, porque eu sou o filho de um homem que foi cônsul e também censor, porque eu sou o filho de um homem que derrotou os Escordiscos na Macedónia tão claramente que o seu feito foi merecedor de um triunfo. Sou descendente de Emílio Paulo, de Cipião, o Africano, de Lívio Salinator. Tem o meu nome uma idade provecta. E tenho eu idade bastante para desempenhar cabalmente este cargo que agora assumi.
”Aqui, membros do Senado, neste edifício, nesta assembleia de nomes tão antigos e gloriosos, encontramos as raízes da lei romana, do governo romano, da administração romana. Será pois para esta assembleia, neste edifício, que falarei primeiro, esperando que todos possuam a sabedoria e a presciência suficientes para verem que tudo o que proponho é lógico, justificado, necessário.
No final do discurso, o Senado aplaudiu com uma gratidão que só podia ser sentida por homens que tinham testemunhado com os seus próprios olhos as acções do tribuno Saturnino. Sim, Druso era um tribuno da plebe completamente diferente - primeiro que tudo, era um senador, e só depois um servidor da plebe.
Os cônsules eram ainda os cessantes, ambos absolutamente liberais em ideias e ideais; quanto aos pretores cessantes, eram também homens independentes. Por isso, Druso conseguiu que o Senado apoiasse as suas duas leis com muito pouca oposição. Apesar de os novos cônsules não serem tão prometedores como os anteriores, Sexto César apoiou as medidas, e Filipe rendeu-se aos argumentos de Druso; só Cepião se opôs; ninguém lhe ligou, porém, pois toda a gente sabia o que ele sentia em relação ao seu antigo cunhado. A Assembleia da Plebe - na qual os cavaleiros tinham muita força - era onde Druso esperava encontrar oposição. Enganou-se: poucas foram as vozes discordantes. Talvez - pensou - porque apresentara as duas leis na mesma confio, levando alguns cavaleiros a detectar o engodo que a sua segunda lei prometia. A possibilidade de virem a sentar-se no Senado constituía um estímulo poderoso. Além disso, a lei que previa a partilha dos júris dos tribunais parecia-lhes perfeitamente justa, já que o homem a mais - o quinquagésimo primeiro jurado - seria um cavaleiro, em troca do que o presidente do tribunal seria um senador. A honra dos cavaleiros não sofria qualquer beliscadura.
O grande objectivo de Druso era a concórdia entre as duas ordens, senadores e cavaleiros - um apelo a ambas as partes para que apoiassem uma mudança. Ao mesmo tempo, Druso lamentava as acções de Caio Semprónio Graco tendo em vista uma separação artificial entre as ordens.
- Foi Caio Graco quem primeiro separou as duas ordens. Trata-se, na melhor das hipóteses, de um tipo artificial de distinção social. Porque, de facto, o que é um membro não-senatorial de uma família senatorial, mesmo agora, senão um cavaleiro? Se possui a categoria de cavaleiro, é inscrito no censo como um cavaleiro. Simplesmente porque há já demasiados membros da sua família no Senado. Os cavaleiros e os senadores pertencem ambos à Primeira Classe! Uma família pode ter muitos membros de ambas as ordens. No entanto, graças a Caio Graco, temos de suportar uma separação artificial. A diferenciação, a separação, está nas mãos dos censores. Logo que um homem entra para o Senado, deixa de poder participar em transacções comerciais que não envolvam bens fundiários. E isso sempre foi assim, disse Druso na Assembleia da Plebe, ainda que contando com a presença da maior parte dos senadores.
”É natural que não admiremos homens como Caio Graco ou que não aprovemos as suas acções - prosseguiu. - ”Mas não há nada de errado no facto de eu retirar, de entre o muito que ele fez de mal, aquilo que é digno de admiração e aprovação! Foi Caio Graco quem primeiro sugeriu o alargamento do Senado. Contudo, por causa da atmosfera que prevalecia na altura - a oposição do meu pai - e das partes menos recomendáveis do projecto de Graco, nada aconteceu. Retomo agora essa sugestão, pois, embora seja filho de quem se lhe opôs, considero que no nosso tempo uma tal medida seria extremamente útil e benéfica! Roma está a crescer. Crescem também os devedores públicos exigidos a todos os homens que se envolvem na vida pública. No entanto, as águas onde vamos buscar os nossos homens públicos encontram-se estagnadas, doentes. Falta-lhes uma torrente de água nova. Tanto o Senado como a Ordo Equester precisam de águas novas. As minhas medidas têm por objectivo ajudar ambas as partes, os homens que pescamos em ambas as águas.”
As leis foram aprovadas em meados de Janeiro do novo ano, apesar de Filipe ser já o cônsul júnior e Cepião um dos pretores sediados em Roma. E Druso pôde encostar-se na sua cadeira com um suspiro de alívio. Estava bem lançado. Até esse momento não tinha suscitado a inimizade de quem quer que fosse! As coisas estavam a correr melhor do que alguma vez esperara. Que traria o futuro? Continuaria tudo a correr tão bem como até aí?
No início de Março, Druso falou no Senado acerca da ager publicus, consciente de que a sua máscara poderia cair, de que alguns dos senadores ultraconservadores perceberiam que aquele filho de um
ultraconservador poderia tornar-se muito perigoso. Mas Druso tinha confiado em Escauro Princeps Senatus, em Crasso Orador, e em Cévola, e conseguira o apoio deles para os seus argumentos. E se conseguira esse apoio, então é porque tinha hipóteses de convencer todo o Senado. Levantou-se para falar com um porte e uma expressão diferentes, sinal de que algo de especial ia acontecer. Nunca Druso parecera tão retraído, tão grave, tão imaculado em modos e aparência.
- Há um demónio entre nós - disse Druso, falando do centro da sala, junto das grandes portas de bronze que, a seu pedido, tinham sido fechadas. Fez uma pausa, percorrendo lentamente com o olhar todo o Senado, usanto o seu talento de levar cada um dos seus ouvintes a acreditar que estava a olhar e a falar unicamente para ele.
- Há um demónio entre nós. Um demónio terrível. Um demónio que nós próprios criámos! Sim, de facto fomos nós que o criámos! Pensando, como tantas vezes sucede, que aquilo que estávamos a fazer era admirável, positivo, correcto. Porque tenho consciência disso, porque pelos nossos antepassados só posso sentir respeito, não critico aqueles que criaram esse demónio, não censuro, seja de que maneira for, aqueles que, em tempos longínquos, frequentaram este augusto edifício.
”Mas que demónio é este que vive no nosso seio? perguntou retoricamente Druso, as sobrancelhas erguidas mesmo durante a breve pausa. - É a ager publicus, ilustres membros deste Senado. A ager publicas. Esse é o demónio que entre nós vive. Sim, é de facto um demónio! Tirámos as melhores terras aos nossos inimigos, italianos, sicilianos e estrangeiros, e a essas terras passámos a chamar a ager publicus de Roma. Convencidos de que estávamos a aumentar a riqueza de Roma, de que colheríamos os benefícios de tanta terra boa, de tanta abundância conquistada ao inimigo. Mas as coisas não correram bem assim... Em vez de mantermos a terra confiscada como a encontrámos, ou seja, dividida em pequenas parcelas, aumentámos a extensão dos lotes que arrendámos - e isto porque pretendíamos diminuir a carga de trabalho imposta aos nossos funcionários públicos e porque queríamos impedir que a administração romana se transformasse numa burocracia grega. Desta forma, porém, tornámos a nossa ager publicus muito pouco atractiva para os agricultores que a tinham cultivado, assustámo-los com a extensão dos lotes imposta, e, devido aos elevados alugueres, liquidámos todas as esperanças de que eles continuassem a explorá-la. A ager publicus transformou-se num exclusivo dos ricos, num exclusivo daqueles que podem pagar o aluguer e explorar grandes propriedades. Tais terras, noutros tempos, contribuíram fortemente para a alimentação de toda a Itália. Agora, produzem apenas o mínimo. Noutros tempos, eram bem tratadas e cultivadas. Agora, são desmedidas extensões, escassamente cultivadas, frequentemente desprezadas.”
Os rostos para que Druso olhou naquele momento estavam imóveis; teve a sensação de que o seu coração abrandava e lutava por recuperar o ritmo normal; a sua respiração, sentia-o claramente, tornava-se mais difícil; tinha de fazer um esforço para manter a expressão calma, o tom grave. Ninguém o tinha interrompido até então. Ainda não estavam fartos dele. Tinha pois de continuar como se nada tivesse mudado, tanto nele como naqueles que o ouviam.
- Mas isso, ilustres Senadores, foi apenas um primeiro passo para a criação desse ente demoníaco que vive entre nós. Foi isso o que Tibério Graco viu quando visitou os latifúndios da Etrúria e verificou que o trabalho era feito por escravos estrangeiros e não pelos homens bons de Itália e de Roma. Foi isso também o que Caio Graco viu quando, dez anos depois, prosseguiu o trabalho do irmão, entretanto falecido. O que eles viram, também eu vejo. Mas eu não sou um Semprónio Graco. Não considero as razões invocadas pelos irmãos Graco como suficientemente graves para perturbarem a mós maiorum, os nossos costumes e tradições. Nos tempos dos irmãos Graco, eu teria estado ao lado do meu pai.
Fez nesse momento uma pausa para passear uma vez mais o seu olhar pelos senadores, um olhar brilhava de absoluta sinceridade.
- Sim, ilustres Senadores, nos tempos de Tibério Graco, nos tempos de Caio Graco, eu teria, sem a mínima dúvida, apoiado o meu pai. Ele tinha razão. Mas os tempos mudaram. Com efeito, desenvolveram-se entretanto outros factores que alimentaram esse demónio nascido com a ager publicus. Em primeiro lugar, devo referir as perturbações na nossa Província da Ásia; perturbações que começaram com Caio Graco, quando legislou no sentido de que os impostos pagos nessa região fossem cobrados por companhias privadas. Isso já sucedia há bastante tempo com os impostos de Itália, mas estes nunca foram tão significativos como os pagos pela Província da Ásia. Em consequência deste apagamento das responsabilidades senatoriais e do papel cada vez mais forte desempenhado na administração pública por facções várias da Ordo Equester, um governo exemplar da Província da Ásia foi alvo de pressões e violentamente atacado. Até que, no julgamento do nosso muito estimado ex-cônsul Públio Rutílio Rufo, essas mesmas facções nos deram a entender que seria melhor que nós, os membros do Senado de Roma!, não os importunássemos mais. Pois bem: eu comecei por recusar esse tipo de intimidação, fazendo com que a Ordo Equester e o Senado partilhassem o controlo dos tribunais. Por outro lado, encontrei um paliativo para os danos de que se queixavam os cavaleiros, alargando precisamente o Senado. No entanto, o demónio de que vos falei permanece entre nós. Alguns dos rostos já não estavam propriamente imóveis; a referência ao tio, Públio Rutílio Rufo, fora um bom trunfo, tal como a referência à administração exemplar de Quinto Múcio Cévola na Província da Ásia.
- A esse demónio, ilustres Senadores, outro se juntou. Quantos de vós saberão que novo ente maligno é este? Muito poucos, julgo eu. Estou a referir-me a um demónio criado por Caio Mário - embora conceda que esse eminente cônsul, que o foi por seis vezes, não o criou conscientemente. Pois esse é precisamente o problema! Quando entre nós um demónio é lançado, ele não o é, bem pelo contrário! É, muito simplesmente, o resultado de uma mudança, da necessidade, de equilíbrios mutáveis no seio dos nossos sistemas de governo e dos nossos exércitos. Nós estávamos sem soldados. E porquê? Entre as muitas razões, uma há que não pode ser separada do problema da ager publicas. Com efeito, a criação da ager publicus acabou com os pequenos agricultores. Estes, como seria de esperar, deixaram de ter tantos filhos como era costume e, por isso, deixaram de abastecer o exército em homens como até então. Caio Mário não podia ter feito outra coisa: integrou no exército os capite censi. Foi buscar soldados às massas proletárias, que não tinham dinheiro para comprar o seu equipamento de soldados, que não provinham de famílias proprietárias de terras, que, na realidade, não tinham nas suas bolsas mais do que ar.
Druso prosseguiu numa voz mais baixa: todos os pescoços se esticaram, todos os ouvidos se esforçaram por ouvi-lo claramente.
- Pouco lucro nos traz o exército. Os despojos da guerra com os Germanos foram risíveis. Caio Mário e os seus sucessores, incluindo os seus lugares-tenentes, tinham ensinado os proletários a combater, a distinguir as duas pontas de uma espada, a sentir que, como Romanos, eram homens valorosos e dignos. E acontece que, neste particular, eu concordo com Caio Mário! Não podemos agora pegar neles e atirá-los para as suas miseráveis ruelas urbanas, para as suas miseráveis cabanas rurais. Fazer isso equivaleria a criar um novo tipo de demónio, uma massa de homens bem treinados com as bolsas vazias, completamente desocupados, e cada vez mais furiosos com o tratamento que os homens da nossa classe lhes reservariam. A resposta de Caio Mário, lançada quando ele estava ainda em África, lutando contra o rei Jugurta, consistiu em instalar esses veteranos do exército sem meios em terra pública estrangeira. O pretor urbano do ano transacto, Caio Júlio César, pôs em prática tal medida nas ilhas de Sirte: foi demorado o seu trabalho, e digno de louvor. A minha opinião - e exorto-vos, membros desta Casa, a considerar aquilo que digo muito simplesmente como uma salvaguarda para o nosso futuro! -, a minha opinião é que Caio Mário tinha razão, e que devemos continuar a instalar os veteranos proletários na ager publicus estrangeira.
Desde que iniciara o seu discurso, Druso permanecera sempre no mesmo sítio. E assim continuou. Havia aqueles que, mal ouviram o nome de Caio Mário, puseram um ar irado, mas Mário permaneceu sentado na sua cadeira, com exemplar dignidade e uma expressão impassível. Na fila do meio, no lado oposto à posição central de Mário, encontrava-se o ex-pretor Lúcio Cornélio Sila, regressado da Cilícia, e muito interessado no discurso de Druso.
- Nada disto, porém, tem a ver com o demónio entre todos mais terrível e premente: a ager publicus da Itália e da Sicília. Algo tem de ser feito! Porque enquanto este ente maligno permanecer entre nós, a nossa moral, a nossa ética, a nossa integridade, a própria mós maiorum, sofrerão, e muito. Actualmente, a ager publicus italiana pertence àqueles que, entre nós e entre os cavaleiros da Primeira Classe, estão interessados na exploração dos latifundia. A ager publicus da Sicília pertence a alguns latifundiários do trigo que, na sua maior parte, vivem em Roma e deixam as suas terras sicilianas ao cuidado dos capatazes e dos escravos. Crêem que esta é uma situação estável? Então meditem nisto! Desde que Tibério e Caio Semprónio Graco lançaram a ideia, a ager publicus da Itália e da Sicília corre o risco de ser cortada em fatias e arrebatada por muitas mãos, e por motivos que poderão ser os mais diversos. Serão os generais do futuro homens honrados? Limitar-se-ão, como Caio Mário, a instalar os seus veteranos em terras públicas, ou aliciá-los-ão com promessas de terra italiana? Os tribunos da plebe do futuro serão homens honrados? Não surgirá outro Saturnino, aliciando os pobres com promessas de terras na Etrúria, na Campânia, na Úmbria, na Sicília? E os plutocratas do futuro, serão homens honrados? E se as suas terras crescerem ainda mais? E se chegarmos a um ponto em que apenas um, ou dois, ou três homens, sejam proprietários de metade da Itália, ou de metade da Sicília? De facto, de que vale dizermos que a ager publicas é propriedade do Estado, se o Estado a arrenda, e se os homens que dirigem o Estado podem, com as suas leis, fazer o que muito bem entendem com essa terra?
Druso respirou fundo, afastou muito as pernas, e avançou no seu discurso.
- Libertem-se das amarras da terra, é o que eu proponho! Acabemos com as terras pretensamente públicas da Itália e da Sicília! Tenhamos a coragem para fazer aquilo que deve ser feito: dividir as terras públicas e distribuí-las pelos pobres, pelos necessitados, pelos soldados veteranos, por todos os que se proponham cultivá-las! Comecemos pelos mais ricos e mais aristocratas de entre nós: proponho-lhes que dêem a cada um dos homens aqui presentes os dez iugera de ager publicus que deveriam ser seus, que dêem a cada cidadão romano os seus escassos dez iugera. Para alguns de nós, essa porção de terra não terá valor algum. Para outros, porém, será o bem mais precioso. Repartam a terra, é o que vos proponho! Repartam todo o cereal! Não deixem nada que os homens desonestos do futuro possam usar para nos destruir a nós, à nossa classe, à nossa riqueza e poder. A esses esbanjadores, devemos apenas deixar caelum aut caenum! Jurei que o havia de fazer, e fá-lo-ei, ilustres Senadores! Da ager publicus romana, só ficará o lodo que cobre os pântanos que para nada prestam! Não porque eu esteja especialmente preocupado com a sorte dos nossos veteranos proletários! Não porque eu inveje os senadores e os cavaleiros que dispõem dessas terras! Mas apenas porque as terras públicas de Roma constituem um perigo, uma ameaça de desastre! Porque pode aparecer um general que com elas recompense as suas tropas. Porque pode aparecer um tribuno da plebe demagógico para quem a ager publicus não passe de um meio para se tornar o Primeiro Homem de
Nota: Medida agrária correspondente à porção de terra lavrada por uma junta de bois durante um dia. (N.do T.)
Céu e lodo. (N.do T.)
Roma. Porque podem aparecer dois ou três plutocratas para quem a ager publicus seja muito simplesmente um meio para conseguirem a posse de toda a Itália ou da Sicília!
Druso não tinha dúvida de que as suas palavras tinham sido atentamente escutadas e eram agora motivo de reflexão; Filipe nada disse, e quando Cepião pediu para falar, Sexto César recusou, afirmando apenas que já muita coisa tinha sido dita e que, por isso, a sessão prosseguiria no dia seguinte.
- Saíste-te muito bem, Marco Lívio - disse-lhe Mário ao passar por ele a caminho da saída. - Prossegue o teu programa com este espírito e pode ser que te tornes o primeiro tribuno da plebe de toda a história de Roma a conquistar o Senado.
Porém, para grande surpresa de Druso, que mal o conhecia, foi Lúcio Cornélio Sila quem mais o assediou.
- Acabo de regressar do Oriente, Marco Lívio, e quero saber tudo o que se tem passado. Quero conhecer as duas leis que já promulgaste, e tudo o que pensas acerca da ager publicus - disse o estranho homem, agora com um rosto mais curtido pelo sol.
Sila estava de facto interessado nas opiniões de Druso, já que era um dos poucos membros do Senado suficientemente inteligente para perceber que Druso não era um radical, nem um verdadeiro reformador, mas sim um indivíduo profundamente conservador, preocupado basicamente em defender os direitos e privilégios da sua classe, em manter Roma como Roma sempre tinha sido.
Pararam junto à fonte dos Comitia, onde se abrigaram da noite invernosa. Aí, pôde Sila conhecer e absorver todas as opiniões de Druso. De quando em quando fazia uma pergunta, mas a maior parte do tempo foi Druso quem falou, grato pelo facto de pelo menos um patrício Cornélio estar disposto a escutar afirmações que, para a maior parte dos patrícios Cornélios, mais não eram que traição. No final da conversa, Sila cumprimentou-o, sorridente, e agradeceu sinceramente a Druso.
- Votarei a teu favor no Senado, já que na Assembleia da Plebe não poderei votar - disse Sila.
Seguiram juntos na direcção do Palatino, mas nenhum deles sugeriu que continuassem a conversa em casa, à secretária do escritório de um deles, celebrando com um jarro cheio de vinho; não havia entre eles o afecto ou a estima capazes de conduzirem a um tal convite. Quando Druso chegou a casa, Sila despediu-se dele com uma carinhosa palmada nas costas e desceu de imediato a colina de Clivus Victoriae, a caminho de casa. Estava ansioso por falar com o filho, cujos conselhos valorizava cada vez mais, ainda que não houvesse neles qualquer vestígio da sabedoria que só a maturidade proporciona. O jovem Sila era, para o pai, uma caixa de ressonância fiel. Para quem tinha poucos clientes e escassas hipóteses de vir a ter muitos, o jovem Sila era um tesouro de valor incalculável.
Mas em casa esperavam-no más notícias. O filho, disse-lhe Élia, estava de cama com uma forte constipação. Havia um cliente que insistira em esperar por ele, afirmando ser portador de notícias urgentes. A doença do filho, porém, fez com que Sila se esquecesse da presença do cliente; correu, não para o escritório, mas para a confortável sala de estar onde Élia instalara o filho, pois o quarto dele, em sua opinião, era pouco arejado e não recebia muita luz. O doente tinha febre, dor de garganta, e fungava constantemente. Água corria também dos olhos que fitavam, com adoração, o pai. Sila acalmou-se, beijou o filho, confortou-o dizendo-lhe:
- Se tratares da maleita, tens para dois mercados; se não tratares, em dezasseis dias estarás curado. Deixa que Élia cuide de ti. Acho que é o melhor que tens a fazer.
Seguiu depois para o escritório, irritado com a ideia de que tinha alguém à sua espera; os seus clientes não costumavam preocupar-se tanto com ele, o que não admirava, pois a generosidade não era o seu forte. A maior parte dos seus clientes eram soldados e centuriões, ou agricultores pobres, a quem ajudara e que lhe tinham pedido que os aceitasse como seus clientes. E muito poucos eram os que viviam na cidade de Roma.
O ”cliente” era Metróbio. Deveria ter percebido que só poderia ser Metróbio, mas a verdade é que nunca tal lhe passara pela cabeça: sinal de que tinha conseguido esquecê-lo por completo. Que idade tinha agora? Pouco mais de trinta, talvez trinta e dois ou trinta e três. Que era feito do tempo em que tinham sido amantes? Caíra no poço fundo do esquecimento. Mas Metróbio era sempre Metróbio, e o beijo que deu a Sila não dizia outra coisa senão que continuava a ser seu, inteiramente seu. Algo, porém, fez estremecer Sila: da última vez que Metróbio o visitara, Julilla tinha morrido. Metróbio não trazia sorte, ainda que considerasse o amor um substituto para a sorte. Para Sila, o amor não era substituto para coisa nenhuma. Afastou-se resolutamente de Metróbio e foi sentar-se à secretária.
- Não devias ter vindo - limitou-se a dizer Sila.
Metróbio suspirou, sentou-se graciosamente na cadeira de cliente, e pôs os braços cruzados sobre a secretária, fitando Sila com os seus belos olhos tristes.
- Eu sei que não devia ter vindo, Lúcio Cornélio, mas acontece que eu sou teu cliente! Conseguiste para mim a cidadania, sem que eu tivesse o estatuto de liberto. Sou, legitimamente, Lúcio Cornélio Metróbio, da tribo Cornélia. Imagino que o chefe dos teus criados ficará preocupado com a raridade das minhas visitas: se sou teu cliente, deveria aparecer mais. A sério, Lúcio Cornélio, nada faço ou digo que possa pôr em perigo a tua preciosa reputação! Nunca falei o teu nome aos meus amigos e colegas do teatro, aos meus amantes, aos teus criados. Por favor, confia em mim, pois não há razão alguma para que desconfies!
Os olhos de Sila encheram-se de lágrimas que rapidamente controlou.
- Eu sei, Metróbio. E agradeço-te. - Com um suspiro, levantou-se para ir buscar vinho. - Um pouco de vinho?
- Obrigado.
Sila colocou o copo de prata na secretária, depois deixou que os seus braços caíssem sobre os ombros de Metróbio, e encostou o queixo ao espesso cabelo negro do antigo amante. Porém, mal Metróbio ergueu as mãos para apertar os braços de Sila, este desviou-se e foi sentarse de novo na sua cadeira.
- Que assunto urgente te traz cá? - perguntou.
- Conheces um indivíduo chamado Censorino?
- Qual Censorino? O jovem e perverso Caio Mário Censorino, ou o Censorino que costuma frequentar o Fórum e que, apesar de não ter um sestércio, aspira a ser senador?
- O segundo espécime. Nunca pensei que conhecesses tão bem os teus concidadãos romanos, Lúcio Cornélio.
- Desde a última vez que te vi, fui pretor urbano. Fiquei a conhecer muita coisa graças a esse cargo.
- Estou a ver que sim.
- Que se passa então com esse Censorino?
- Vai processar-te por traição, alegando que recebeste uma elevada maquia dos Partos, e que em troca traíste os interesses de Roma no Oriente.
Sila pestanejou.
- Por todos os deuses! Nunca pensei que houvesse em Roma alguém que soubesse, com tanto pormenor, o que se passou comigo no Oriente! Pois se ninguém me encorajou sequer a descrever as minhas aventuras no Senado... Censorino? Como pode ele saber o que se passou a leste do Eufrates, se não sabe sequer o que se passa a leste do Fórum Romano? E como é que tu descobriste as intenções dele, se aos meus ouvidos nada chegou?
- Censorino é doido por teatro, e o seu principal passatempo consiste em dar festas para que convida actores e em que os actores gostam de se pavonear. Quanto mais trágico for o actor, melhor. É por isso que vou às festas dele habitualmente - disse Metróbio, sorrindo sem vestígio algum de admiração por Censorino. - Não, Lúcio Cornélio, Censorino não é meu amante! Detesto-o. Mas adoro festas. As tuas eram as melhores, mas infelizmente acabaram. No entanto, Censorino esforça-se por dar boas festas. Vão lá as pessoas do costume, gente que conheço bem, gente de quem gosto. O vinho é bom e a comida não lhe fica atrás. - Metróbio fez uma pausa, franziu os lábios vermelhos com um ar pensativo. - Porém, não deixei de reparar que, nos últimos meses, têm aparecido umas criaturas estranhas nas festas dele. Além disso, tenho-o visto com um monóculo feito de uma única esmeralda, de uma esmeralda pura: o tipo de jóia que ele nunca conseguiria comprar, ainda que tenha dinheiro suficiente para o censo senatorial. Quer dizer, seria natural que um Ptolemeu do Egipto usasse tal jóia, mas nunca um frequentador do Fórum!
Sila sorveu um pouco de vinho, e, lentamente, sorriu.
- Mas essa é uma história fascinante! Estou a ver que tenho de cultivar a amizade desse Censorino; depois do julgamento, ou mesmo antes. Tens alguma ideia?
- Suponho que ele é agente de alguém... não sei! Talvez dos Partos, ou de outro povo oriental. Os convidados a que me referi há pouco têm algo de oriental, disso não há dúvida. Cheios de ouro e jóias, e sempre com dinheiro à espera de uma mão romana.
- Não, não são os Partos - retorquiu Sila sem qualquer dúvida. Os Partos não se preocupam com o que acontece a oeste do Eufrates. E Mitridates. Ou Tigranes da Arménia. Mas inclino-me mais para Mitridates do Ponto. Que interessante! - exclamou Sila, esfregando as mãos de contente. - Portanto, Caio Mário e eu deixámos o rei do Ponto francamente preocupado, não é verdade? E parece que ele está mais preocupado comigo do que com Mário! Deve ser porque eu falei com Tigranes e concluí um tratado com os sátrapas do rei dos Partos. Muito interessante.
- Que vais fazer? - perguntou, ansioso, Metróbio.
- Oh, não te inquietes por minha causa - disse Sila animadamente, levantando-se para fechar as persianas. - Homem prevenido vale por dois, não há dúvida. Esperarei pelo momento certo, esperarei até Censorino avançar. E então...
- E então...? Que farás? Sila sorriu maliciosamente.
- Farei com que ele deseje não ter nascido. - Encaminhou-se para a porta do átrio, correu o ferrolho; depois, fez o mesmo à porta que dava para a colunata do peristilo. - Entretanto, o maior amor da minha vida, para além do meu filho, está aqui comigo. E se o mal está feito, então aproveitemos. Não te vou deixar sair assim sem mais nem menos.
- Nem eu sairia.
Abraçaram-se então, os queixos repousando nos ombros um do outro.
- Ainda te lembras? Já passou tanto tempo... - disse Metróbio, com um ar sonhador, os olhos cerrados, um sorriso nos lábios.
- Tu com aquela absurda saia amarela, já muito descorada entre as pernas? - Sila sorriu também, uma mão caminhando pela ondulada cabeleira, e a outra descendo voluptuosamente pelas costas de Metróbio.
- E tu trazias aquela peruca com cobrazinhas vivas.
- Bom, mas eu era Medusa!
- Tal e qual Medusa, sem sombra de dúvida.
- Falas demasiado - disse Sila.
Metróbio deixou-o passado mais de uma hora; ninguém na casa manifestou o mínimo interesse pela sua visita, embora Sila tivesse dito a Élia, a sua dedicada e sempre afectuosa esposa, que lhe tinham dado a notícia de que iam processá-lo por traição.
Élia estremeceu, surpreendida.
- Oh, Lúcio Cornélio!
- Não te preocupes, minha querida - disse Sila, com um ar despreocupado. - Não vai dar em nada, prometo-te.
Élia parecia ansiosa.
- Sentes-te bem?
- Acredita no que te digo: há muito tempo que não me sentia tão bem, ou com tanta vontade de fazer amor contigo - disse Sila, abraçando-a pela cintura. - Vem, vem para a cama.
Sila não precisou de fazer mais perguntas acerca de Censorino, dado que, no dia seguinte, Censorino atacou. Apareceu no tribunal do pretor urbano, o picentino Quinto Pompeu Rufo, propondo-se processar Lúcio Cornélio Sila por traição. Afirmava que Sila fora subornado pelos Partos para trair Roma.
- Tens provas? - perguntou Pompeu Rufo com uma expressão grave.
- Tenho.
- E que prova é essa?
- Não o direi por ora, Quinto Pompeu. Fá-lo-ei no tribunal. Trata-se de uma acusação capital. Não estou a pedir a aplicação de uma multa. Por outro lado, a lei não me obriga a revelar-te as provas ou outros elementos do processo - retorquiu Censorino, mexendo na esmeralda debaixo da toga. A jóia era demasiado preciosa para ficar em casa, mas dava demasiado nas vistas para que a exibisse em público.
- Muito bem - disse Pompeu Rufo, com o mesmo ar grave. Pedirei ao presidente do quaestio de maiestate que reúna o seu tribunal junto ao lago Cúrcio, dentro de três dias.
Pompeu Rufo ficou a ver Censorino afastando-se na direcção do bairro de Argileto: Censorino quase corria. Depois, chamou o seu assistente, um senador júnior da família Fânio.
- Trata-me da loja, se fazes favor. Tenho uns assuntos a tratar disse ele, levantando-se da sua cadeira.
Pompeu Rufo localizou Lúcio Cornélio Sila numa taberna da Via Nova, uma tarefa que não se revelou especialmente difícil; como qualquer bom pretor urbano, Rufo sabia a quem perguntar. O companheiro de mesa de Sila era nem mais nem menos do que Escauro Princeps Senatus, um dos poucos membros do Senado que manifestara interesse pelas proezas de Sila no Oriente. Estavam sentados a uma pequena mesa ao fundo da taberna. Esta taberna era um local muito procurado por personagens tão augustas como os Senadores. No entanto, nem por isso o dono deixou de arregalar os olhos quando viu uma terceira toga praetexta no seu estabelecimento: o Princeps Senatus e dois pretores urbanos, imagine-se só! O que os seus amigos não diriam quando soubessem!
- Vinho e água, Cloácio - atirou-lhe Pompeu Rufo ao passar pelo balcão. - Uma boa colheita, ha!
- Referes-te ao vinho ou à água? - perguntou Públio Cloácio com um ar inocente.
- Refiro-me a ambos, meu monte de lixo. Uma boa colheita, ou não tarda estás no tribunal - disse Pompeu Rufo, com um sorriso franco, enquanto se sentava à mesa de Sila e Escauro.
- Censorino - disse Sila a Pompeu Rufo.
- Acertaste à primeira - disse o pretor urbano. - Deves ter melhores fontes do que eu, porque, sinceramente, para mim foi uma surpresa completa.
- Sim, de facto tenho boas fontes - retorquiu Sila, sorridente; Sila gostava do homem de Piceno. - É traição, não é?
- É. E ele diz que tem provas.
- Tal e qual como os que acusaram Públio Rutílio Rufo.
- Bom, quanto a mim, vou acreditar em Censorino quando vir as ruas de Barduli pavimentadas a ouro - disse Escauro, escolhendo a cidade mais pobre de toda a Itália para a sua comparação.
- É óbvio - concordou Sila.
- Há alguma coisa que possa fazer para te ajudar? - perguntou Pompeu Rufo, pegando numa taça e enchendo-a de vinho e água. Fez uma careta, olhou para o dono da taberna. - Vinho e água, não sei qual é a pior colheita! - gritou. - Verme!
- Pois experimenta encontrar melhor na Via Nova! - disse Públio Cloácio sem ressentimento, afastando-se, sem grande convicção, para um local onde não poderia ouvir o que os três homens diziam.
- Eu trato sozinho do caso - disse Sila, que não parecia perturbado.
- Marquei a audiência para daqui a três dias, junto ao lago Cúrcio. Felizmente que agora temos a lex Lívia, pelo que poderás contar com um júri em que metade dos jurados são senadores, o que é muito melhor do que um júri inteiramente constituído por cavaleiros. Ah, o ódio que eles têm aos senadores pelo facto de estes poderem enriquecer à custa de outras pessoas! Mas quando são eles a enriquecer não há problema, é claro - comentou Pompeu Rufo, com uma expressão de repulsa.
- Porque é que ele acusa Sila de traição? - perguntou Escauro. Deveria acusar-te de suborno, já que só fala de suborno.
- Censorino alega que Sila aceitou o suborno em troca de traição aos nossos interesses no Oriente - respondeu o pretor urbano.
- Trouxe comigo um tratado - disse Sila a Pompeu Rufo.
- Um feito notável! Um feito notável! - comentou Escauro com entusiasmo.
- Mas será que o Senado virá algum dia a reconhecer o valor desse tratado? - perguntou Sila.
- Não tenho a mínima dúvida, Lúcio Cornélio. Dou-te a minha palavra - disse Escauro.
- Ouvi dizer que tinhas obrigado os Partos e o rei da Arménia a sentarem-se mais baixo do que tu - disse o pretor urbano, rindo satisfeito.
- Muito bem feito, Lúcio Cornélio! Esses ditadores orientais precisam que os tratem mal!
- Oh, creio que Lúcio Cornélio tenciona seguir as pisadas de Popílio Lenas - disse Escauro, sorrindo. - Da próxima, aposto que vai metê-los em círculos de onde os pobres coitados não poderão sair... Mas vamos ao que interessa. O que eu gostava de saber é como é que Censorino conseguiu obter informações sobre coisas que se passaram junto ao rio Eufrates?
Sila mexeu-se na cadeira. Uma coisa o preocupava: não sabia se Escauro continuava a pensar que Mitridates do Ponto era inofensivo.
- Julgo que Censorino é muito simplesmente um agente de um dos reis orientais.
- De Mitridates do Ponto - acrescentou Escauro imediatamente.
- Desiludido? - perguntou Sila, com um sorriso arreganhado.
- Gosto de acreditar que todas as pessoas têm um lado bom, Lúcio Cornélio. Mas não sou idiota - disse Escauro, levantando-se. Atirou um denário para o dono da taberna que, com mãos hábeis, apanhou a moeda. - Dá-lhes um pouco mais das tuas magníficas colheitas, Cloácio!
- Se as minhas colheitas são assim tão más, porque é que não ficam em casa a beber os vossos Quios e Falernos? - gritou Publio Cloácio enquanto Escauro se afastava: apesar de tudo, Cloácio continuava de bom humor.
A única resposta de Escauro foi um gesto obsceno. Cloácio desatou à gargalhada.
- O tratante do velho! - disse ele, levando mais vinho para Sila e Rufo. - Que faríamos nós sem ele?
Sila e Pompeu acomodaram-se melhor nas suas cadeiras.
- Não vais hoje ao tribunal? - perguntou Sila.
- Não. Fânio ficou a substituir-me. Faz-lhe bem ter de enfrentar a populaça romana, que não é para brincadeiras - disse Pompeu Rufo.
Lentamente e sem trocar palavra, beberam o vinho que, na realidade, e como toda a gente sabia, era de boa qualidade. Não se sentiam constrangidos. No entanto, a presença de Escauro deixá-los-ia mais à vontade.
Finalmente, Pompeu Rufo disse:
- Tencionas disputar o cargo de cônsul no final deste ano, Lúcio Cornélio?
- Não creio - respondeu Sila, com ar sério. - Cheguei a pensar nisso, pois acreditei que a conclusão de um tratado com o rei dos Partos que beneficia grandemente Roma deixaria todos os Romanos boquiabertos de admiração! Em vez disso, o vazio! O pântano do Fórum nem buliu, quanto mais o esgoto do Senado! Se eu tivesse ficado em Roma a aprender danças eróticas, por certo falariam mais de mim! Não sei, por isso, se tenho alguma hipótese de ser eleito. Sinto-me inclinado a pensar que, se concorrer às eleições, estarei perdendo o meu dinheiro. Pessoas como Rutílio Lupo podem oferecer dez vezes mais aos nossos queridos eleitores.
- Eu quero ser cônsul - disse Pompeu Rufo, também com um ar sério. - Mas duvido das minhas hipóteses, pois sou de Piceno.
Sila abriu muito os olhos.
- Ora essa! Então não te elegeram pretor urbano? Isso tem alguma importância, não sei se sabes!
- Tu também foste eleito pretor urbano já lá vão dois anos retorquiu Pompeu Rufo. - E, no entanto, também achas que tens poucas hipóteses. E se um patrício Cornélio que já foi pretor urbano pensa nisso, que há-de então pensar um... um homem de Piceno?
- Sim, é verdade que sou um patrício Cornélio. Mas o meu último nome não é Cipião, e Emílio Paulo não foi meu avô. Nunca fui um grande orador e, antes de me tornar pretor urbano, os frequentadores do Fórum não me distinguiriam de um eunuco de Magna Mater. Pus todas as minhas esperanças nesse tratado histórico com os Partos e no facto de ter chefiado o primeiro exército romano que atravessou o Eufrates. E no fim de contas vim encontrar o Fórum muito mais fascinado com as acções de Druso.
- Ele será cônsul quando decidir disputar o cargo.
- Se o opuserem a Cipião, o Africano, e Cipião Emiliano, de certeza que ganha. Mas atenção, Quinto Pompeu, sinto-me fascinado com o que ele tem feito.
- Mas eu também, Lúcio Cornélio.
- Achas que ele tem razão?
- Acho.
- Óptimo! Eu também.
Seguiu-se um novo silêncio, interrompido apenas por Públio Cloácio que servia clientes acabados de chegar. Estes não deixavam de lançar de vez em quando um olhar respeitoso para os homens de toga debruada a púrpura.
- Diz-me uma coisa... - começou Pompeu Rufo, mexendo na sua taça, olhando para ela. - Que tal se esperasses mais uns anos, e concorresses comigo? Ambos somos pretores urbanos, ambos temos uma boa folha de serviços militar, ambos temos já alguma idade, ambos temos algum dinheiro para distribuir... Os eleitores gostam de um par que se apresente unido, é um bom augúrio para as relações consulares durante o ano que dura o cargo. Creio que juntos teremos mais hipóteses do que sozinhos. Que achas, Lúcio Cornélio?
Os olhos de Sila fixaram-se no rosto corado de Pompeu Rufo, nos seus olhos azuis muito brilhantes, nos seus traços regulares e ligeiramente celtas, no cabelo ruivo encaracolado.
- Sim, nós daríamos um par de primeira! - disse Sila. - Dois ruivos ocupando lugares opostos na ordenação senatorial, dois ruivos de aspecto magnífico... enfim, um par perfeito! Atrairemos sem dúvida as mentulae perversas, extravagantes! Gente que adora uma boa piada, e nós proporcionaremos uma quantidade de boas piadas: dois cônsules ruivos, com a mesma altura, com o mesmo físico, mas com origens e posições completamente diferentes! - Estendeu a mão a Pompeu Rufo.
- Vamos em frente, meu amigo! Felizmente, nenhum de nós tem manchas grisalhas ou ameaça calvície!
Apressando-se a manifestar a sua alegria, Pompeu Rufo apertou a mão de Sila.
- Negócio feito, Lúcio Cornélio! - exclamou, radiante.
- De acordo, Quinto Pompeu! - Sila pestanejou, lembrando-se de súbito da imensa riqueza de Pompeu Rufo e do que isso poderia significar para ele, Sila. - Tens um filho? - perguntou.
- Tenho.
- Que idade tem?
- Faz vinte e um, este ano.
- Casamento previsto?
- Não, ainda não.
- Eu tenho uma filha. Patrícia, tanto por minha parte como por parte da mãe. Fará dezoito anos no mês de Junho após a nossa disputa do consulado. Concordarias com o casamento entre a minha filha e o teu filho dentro de três anos, no mês de Julho?
- Claro que concordo, Lúcio Cornélio!
- O dote dela é bom. O avô legou-lhe a fortuna da mãe antes de morrer. Ainda são uns quarenta talentos de prata. O que dá um milhão e qualquer coisa de sestércios. Que tal? Satisfaz-te?
Pompeu Rufo acenou com a cabeça, visivelmente contente.
- É melhor começarmos já a falar da nossa candidatura no Fórum, não achas?
- Excelente ideia! Os eleitores ficarão tão habituados à ideia que, quando chegar a hora, votarão automaticamente em nós.
- Ah! Ah! - atroou uma voz à entrada.
Era Caio Mário. A toda a pressa passou por uma mesa de bebedores embasbacados, sem sequer se dar conta deles.
- O nosso venerado Princeps Senatus disse-me que te encontraria aqui, Lúcio Cornélio - disse Mário, sentando-se. Virou-se então para Cloácio: - O vinagre do costume, Cloácio!
- Não me espanta que peças vinagre - retorquiu Públio Cloácio, descobrindo entretanto que o jarro de vinho que servira a Sila e a Rufo já estava vazio. - De facto, o que é que vocês, Italianos, sabem sobre vinho?
Mário sorriu bem disposto.
- Mas que modos são esses, Cloácio? Cuidadinho com a língua! Ora, vai dar uma volta, está bem?
Chegava de brincadeira. Caio Mário queria falar de assuntos sérios. Ainda bem, pensou, que Pompeu Rufo ali estava.
- Gostava de saber o que é que vocês pensam do novo lote de leis de Marco Lívio - disse Mário.
- Temos ambos a mesma opinião - retorquiu Sila que, desde o seu regresso, procurara por várias vezes Caio Mário sem qualquer êxito. Não tinha qualquer razão para pensar que tal tratamento era propositado - claro, em princípio não seria, deveria talvez concluir que ele é que tinha escolhido mal os momentos. No entanto, da última vez que batera à porta de Mário, jurara que não voltaria a procurá-lo. Por isso, não lhe contara ainda o que sucedera no Oriente.
- E essa opinião qual é? - perguntou Mário, aparentemente sem consciência de que ofendera Sila.
- Achamos que ele tem razão.
- Óptimo. - Mário encostou-se um pouco para trás, de forma a que Públio Cloácio pudesse servi-lo. - Ele precisa de todo o apoio possível no que toca à lei agrária, e eu já decidi que falaria a favor dele.
- Vai ser uma boa ajuda - disse Sila, sem saber que mais dizer. Mário virou-se para Pompeu Rufo.
- Tu és um bom pretor urbano, Quinto Pompeu. Quando é que pensas disputar o cargo de cônsul?
Pompeu Rufo ficou com um ar excitado.
- Era precisamente disso que eu e Lúcio Cornélio estávamos a falar! - exclamou. - Tencionamos apresentar-nos juntos dentro de três anos.
- Muito bem pensado! - disse Mário num tom apreciativo, percebendo imediatamente os motivos de uma candidatura conjunta.
- De facto, vocês formam um par perfeito! - exclamou, rindo. Mantenham a vossa determinação. Será fácil serem eleitos.
- É o que pensamos - disse Pompeu Rufo, satisfeito. - Aliás, selámos o nosso pacto com um contrato de casamento.
A sobrancelha direita de Mário ergueu-se.
- Ah, sim?
- A minha filha com o filho dele - disse Sila, um tanto na defensiva; por que razão Mário conseguia perturbá-lo, por que razão Mário tinha esse poder que mais ninguém tinha? Seria o carácter de Mário ou a sua própria insegurança?
Caio Mário soltou um profundo suspiro de alívio.
- Ah, esplêndido! Óptimo! - atroou a sua voz. - Isso resolve magnificamente o dilema da família! Desde Júlia a Aurélia, passando por Élia, todas ficarão satisfeitas.
Sila franziu o sobrolho.
- Que raio é que queres dizer com isso?
- O meu filho e a tua filha - disse Mário, sem o mínimo tacto.
- Parece que gostam muito um do outro. Mas o velho César determinou que nunca poderia haver casamentos entre primos, e eu devo dizer que concordo com ele. Mas isso não impediu o meu filho e a tua filha de fazerem uma quantidade de promessas um ao outro.
Aquela notícia era um choque para Sila, que nunca sonhara com uma tal união, e que estava tão pouco com a filha que esta nunca tivera oportunidade de lhe falar do jovem Mário.
- Pois é, Caio Mário, o meu problema é que tenho estado demasiado tempo ausente de Roma. Há anos que digo isso.
Pompeu Rufo escutou aquele diálogo com algum desalento.
- Se há algum problema, Lúcio Cornélio, não te preocupes com o meu filho - disse ele timidamente.
- Não há qualquer problema, Quinto Pompeu - retorquiu firmemente Sila. - Eles são primos direitos e cresceram juntos. Pelo que Caio Mário disse, deves ter percebido que nunca foi nossa intenção casá-los. O acordo que fizemos hoje acaba com essa história. Não estás de acordo, Caio Mário?
- Claro que estou, Lúcio Cornélio. É demasiado sangue patrício e além disso são primos direitos. Ah, e o velho César proibiu tais casamentos.
- Já pensaste numa esposa para o jovem Mário? - perguntou Sila curioso.
- Já. Quinto Múcio Cévola tem uma filha que, dentro de quatro ou cinco anos, estará em idade de casar. Falei já no caso, e ele não é contra. - Mário não pôde impedir-se de dar uma boa gargalhada. Eu serei um rústico italiano que nem grego aprendeu, mas a verdade é que poucos aristocratas romanos resistiriam à fortuna que o jovem Mário herdará um dia!
- Sem dúvida! - disse Sila, rindo tanto como Mário. - Bom, agora resta-me a mim encontrar uma esposa para o jovem Sila, e não pode ser nenhuma das filhas de Aurélia!
- Que tal uma das filhas de Cipião? - perguntou Mário, maliciosamente. - Pensa só na quantidade de ouro que vão herdar os filhos dele!
- É uma hipótese, Caio Mário. São duas, não são? Vivem com Marco Lívio, ao que creio.
- Precisamente. A Júlia gostava mais da velha para o jovem Mário, mas eu acho que, do ponto de vista político, uma Múcia será melhor para ele. - Por uma vez, Mário procedia com alguma diplomacia. – A tua situação é diferente, Lúcio Cornélio. Uma Servília Cepião seria o ideal para o teu filho.
- De acordo. Vou pensar no caso.
Mas Sila deixou de pensar no casamento do filho a partir do momento em que informou a filha de que estava prometida ao filho de Quinto Pompeu Rufo. Cornélia Sila, ao ouvir o pai, mostrou claramente que era filha de Julilla: abriu a boca e desatou aos gritos.
- Berra à vontade, minha filha. Isso não vai alterar nada - disse Sila friamente. - Farás o que te mandarem. O teu marido está escolhido.
- Vai-te embora, Lúcio Cornélio! - exclamou Élia, torcendo as mãos de desespero. - O teu filho quer falar contigo. Deixa-me a sós com Cornélia Sila, por favor!
Sila foi ver o filho, embora se sentisse furioso. O jovem Sila não tinha melhorado; continuava de cama, com dores e muita tosse.
- Isso há-de acabar, meu rapaz - disse Sila, num tom ligeiro, sentando-se na beira da cama e beijando a testa quente do filho. - Eu sei que o tempo está frio, mas este quarto está quente.
- Quem está a gritar? - perguntou o jovem Sila, respirando com dificuldade.
- A tua irmã. Que Mormólice a leve!
- Porquê? - perguntou o jovem Sila, que adorava a irmã.
- Acabei de lhe dizer que vai casar com o filho de Quinto Pompeu Rufo. Ela pensava que ia casar com o primo, com o jovem Mário.
- Ah! Mas todos nós pensávamos que ela ia casar com o jovem Mário! - exclamou o filho de Sila, chocado.
- Nunca ninguém o sugeriu, nunca ninguém o desejou. O teu avô César era contra o casamento entre primos. Caio Mário está de acordo com essa norma. E eu também - retorquiu Sila, com um ar intrigado.
- Não me digas que queres casar com uma das Júlias!
- O quê? Com Lia? Com Ju-Ju? - replicou o jovem Sila, rindo a bom rir até ao momento em que a tosse o obrigou a parar. O violento acesso de tosse só abrandou quando o jovem conseguiu expectorar uma massa fétida. - Não, tatá - disse ele por fim. - Pior do que isso não poderia haver! Mas quem é que me está destinada?
- Não sei, meu filho. Mas uma coisa te prometo. Perguntar-te-ei Primeiro se gostas dela - disse Sila.
- Não perguntaste à Cornélia. Sila encolheu os ombros.
- Ora, meu filho, Cornélia é uma rapariga. E as raparigas fazem muito simplesmente o que lhes mandam. Um paterfamilias gasta dinheiro e bens com as suas filhas com uma única intenção: a intenção de as utilizar para promover a sua carreira, ou a carreira do filho. Se assim não fosse, de que servia alimentá-las e vesti-las durante dezoito anos? Têm de ter bons dotes, mas a família do pai nada recebe. Não, meu filho, uma rapariga interessa-nos na medida em que nos possa proporcionar vantagens. Embora, depois de ouvir os gritos da tua irmã, eu tenha ficado na dúvida se a solução dos velhos tempos, quando afogávamos as meninas recém-nascidas no Tibre, não seria mais adequada.
- Não me parece justo, tatá.
- Porquê, meu filho? - perguntou Sila, surpreendido com a persistente estupidez do filho. - As fêmeas são seres inferiores, jovem Lúcio Cornélio. Tecem os seus padrões em tecidos, e não no tear do tempo. Não têm qualquer importância no mundo. Não fazem história. Não governam. Cuidamos delas porque é esse o nosso dever. Protegemo-las das preocupações, da pobreza, das responsabilidades. E por isso que vivem mais tempo do que nós, desde que não morram de parto. Em contrapartida, devem-nos respeito e obediência.
- Estou a ver - retorquiu o jovem Sila, aceitando aquela explicação unicamente como uma descrição factual.
- Agora tenho de ir. Tenho que fazer - disse Sila, levantando-se.
- Tens comido?
- Um pouco, mas custa-me a engolir.
- Voltarei mais tarde.
- Não te esqueças, tatá. Estarei acordado.
Em primeiro lugar, Sila tinha de comportar-se normalmente, sair com Élia para jantar em casa de Quinto Pompeu Rufo, que estava ansioso por promover relações amistosas entre as duas famílias. Felizmente, Sila não tinha dito a Rufo que levaria a filha; Cornélia Sila já não gritava, mas retirara-se para o seu quarto, dizendo que não comeria.
Nenhuma reacção de protesto poderia ter perturbado mais Sila; o olhar que lançou a Élia era, literalmente, um gelo que queimava.
- Isto vai ter de acabar! - berrou, e, antes que Élia conseguisse impedi-lo, já Sila se encaminhava a toda a pressa para o quarto da filha.
Irrompeu pelo quarto e, num ápice, tirou a filha da cama, indiferente ao terror da jovem. Pegando-lhe pelo cabelo, obrigava-a a manter-se de pé. Desatou então a esbofeteá-la. Cornélia Sila não gritava, limitava-se a emitir uns gemidos que quase não se ouviam, mais aterrada com a expressão do pai do que com a violência de que era vítima. Sila tê-la-á esbofeteado uma dúzia de vezes, após o que a atirou para cima da cama como se ela fosse uma boneca, tão irado que nem se preocupava com o facto de tamanha violência poder ser fatal.
- Não faças o que estás a fazer, rapariga - disse ele então, num tom muito brando. - Não tentes fazer chantagem comigo, recusando-te a comer! Não que a tua fome me preocupe especialmente. Até me via livre de ti! A tua mãe quase morreu por se recusar a comer. Mas deixa-me explicar-te uma coisa: eu não quero que tu me faças uma desfeita destas! Deixa-te morrer à fome, ou sufoca com a comida que eu vou obrigar-te a comer! Faças o que fizeres, podes ter a certeza de uma coisa: casarás com o jovem Quinto Pompeu Rufo, e fá-lo-ás com um sorriso nos lábios e a mais alegre das expressões. Porque se não o fizeres, mato-te. Mato-te, Cornélia. Ouviste?
O rosto da jovem ardia, os olhos estavam negros, os lábios inchados e feridos, do nariz jorrava sangue, mas a dor que a feria no coração era muito, muito pior. Cornélia Sila nunca imaginara que tamanha violência fosse possível. Nunca temera o pai, nunca se preocupara com a sua segurança física.
- Ouvi, pai - murmurou.
Élia estava à espera do outro lado da porta, o rosto molhado pelas lágrimas. Quando ia a entrar, Sila pegou-lhe num braço e arrastou-a para fora do quarto.
- Por favor, Lúcio Cornélio, por favor! - chorou Élia, aterrorizada enquanto mulher e angustiada como mãe.
- Deixa-a sozinha - disse Sila.
- Ela precisa de mim! Deixa-me ficar com ela!
- Ela ficará onde está! Não precisa de companhia!
- Então deixa-me ficar em casa, por favor! - pediu Élia. Apesar de todos os esforços que fazia para se conter, o certo é que as lágrimas não paravam.
A fúria de Sila esbateu-se nesse instante. Sentia o coração bater, as lágrimas quase lhe inundavam os olhos, embora fossem lágrimas furiosas, e não de pesar.
- Muito bem, fica em casa - disse ele num tom áspero. Respirou fundo, nervosamente, e acrescentou: - Ao jantar, falarei da alegria que a família sente ante a perspectiva deste casamento. Mas não lhe vás fazer companhia, Élia, ou receberás o mesmo tratamento que ela recebeu.
Sila seguiu assim sozinho para a casa de Quinto Pompeu Rufo, que ficava no Palatino, mas dava para o Fórum Romano; e deixou uma boa impressão na família de Pompeu Rufo, incluindo as mulheres, encantadas com a ideia de o jovem Quinto vir a casar com uma patrícia júlio-corneliana. O jovem Quinto era um belo rapaz, de olhos verdes e cabelo castanho-arruivado, alto e gracioso, mas Sila depressa se apercebeu que a inteligência dele era metade da do pai. O que era uma boa coisa: viria a ser cônsul, seguindo as pisadas do pai, faria filhos ruivos a Cornélia Sila, e seria um bom marido, fiel e obsequioso. De facto, pensou Sila, sorrindo intimamente, o jovem Quinto Pompeu Rufo daria um marido muito mais agradável e dócil do que o filho de Caio Mário, um menino mimado, arrogante e presumido.
Como os Pompeus Rufos eram gente do campo (no fundo, ainda o eram, apesar de tudo), o jantar terminou ainda de dia, embora estivessem no pino do Inverno. Sabendo que tinha uma outra tarefa a realizar antes de ir para casa, Sila subiu os Degraus dos Ourives, que conduziam à Via Nova e ao Fórum Romano, e contemplou a vista com um ar indeciso. Era demasiado longe para ir ver Metróbio, e demasiado perigoso. Onde havia de passar aquela hora?
A resposta ocorreu-lhe no momento em que os seus olhos pousaram no fumarento declive do bairro de Subura - iria a casa de Aurélia, claro. Caio Júlio César estava de novo ausente, era o novo governador da Província da Ásia. Desde que Aurélia estivesse adequadamente acompanhada, que mal havia em visitá-la? Desceu os degraus com a rapidez e a maleabilidade de um homem muito mais novo, e seguiu na direcção do Clivus Orbius, o caminho mais rápido para Subura Minor e a ínsula de Aurélia.
Eutico deixou-o entrar, ainda que com alguma relutância; Aurélia acolheu-o como sempre.
- Os teus filhos estão acordados? - perguntou Sila. Aurélia pôs um sorriso irónico.
- Infelizmente, estão. Parece que criei corujas, em vez de cotovias. Odeiam ir para a cama cedo, e odeiam sair da cama de manhã.
- Nesse caso, porque não lhes proporcionas um pequeno divertimento? - disse ele, sentando-se num confortável divã. - Diz-lhes para virem até cá. Serão a melhor companhia para uma mulher casada que recebe outro homem em sua casa.
Aurélia pôs uma expressão mais alegre.
- Tens toda a razão, Lúcio Cornélio.
Aurélia trouxe então os filhos para a sala, instalando-os num canto afastado. As duas raparigas estavam muito crescidas, o que não admirava, pois rondavam já a puberdade; quanto ao rapaz, estava também muito crescido, mas esse era o seu destino, crescer mais do que todos os outros.
- É agradável estar contigo - disse Sila, ignorando o vinho que o criado lhe servira.
- Posso dizer o mesmo de ti.
- Mas hoje estamos melhor do que da última vez... Aurélia riu-se.
- Ah, sim! Nessa altura, eu estava com sérios problemas com o meu marido, Lúcio Cornélio.
- Foi o que me pareceu! Mas porquê? Não há no mundo esposa mais leal e casta do que tu, e eu sei-o por experiência própria.
- O problema não era desse tipo, Lúcio Cornélio. Os problemas que há entre mim e Caio Júlio são mais... teóricos - retorquiu Aurélia.
- Teóricos? - perguntou Sila, com um sorriso imenso.
- Ele não gosta dos vizinhos. Não gosta da minha actividade de senhoria. Não gosta de Lúcio Decúmio. E não gosta da forma como eu tenho educado os nossos filhos, que tanto sabem falar o calão local como o latim do Palatino. Além de falarem três tipos diferentes de grego, aramaico, hebreu, gálico arverniense, gálico eduano, gálico tolosano, e lício.
- Lício?
- Agora temos uma família lícia no terceiro andar. Os meus filhos andam por onde querem e aprendem línguas com uma facilidade espantosa. Não sabia que os Lícios tinham uma língua própria. E incrivelmente antiga. É parecida com a língua dos Pisidas.
- Foi feia, essa discussão com Caio Júlio? Aurélia encolheu os ombros, pôs um ar triste.
- Bastante feia.
- Bastante feia porque o teu comportamento não é próprio de uma senhora, e vai contra todas as normas romanas - disse ternamente Sila, que, horas antes, espancara a filha em nome dessas normas. Mas Aurélia era Aurélia, e Aurélia tinha os seus próprios padrões e normas de comportamento, como muita gente reconhecia com admiração, tão forte era o seu fascínio.
- Não há dúvida que segui as minhas próprias normas - disse ela, e não parecia especialmente triste com o que sucedera. - De facto, saí-me tão bem dessa maneira que o meu marido acabou por perder a disputa. - Subitamente havia tristeza nos seus olhos. - E isso foi o pior de tudo, como decerto compreenderás, Lúcio Cornélio. Nenhum homem com o estatuto de Caio Júlio gosta de sair derrotado de uma disputa com a mulher. Por isso, remeteu-se a uma espécie de indiferença e nem sequer pôs a hipótese de uma desforra, apesar de todos os meus esforços nesse sentido. Enfim, lamentável!
- Deixou de te amar?
- Não me parece. Quem me dera! Tornar-me-ia a vida muito mais fácil quando ele cá está - disse Aurélia.
- De maneira que agora és tu quem veste a toga.
- Receio bem que sim. E debruada a púrpura.
Sila comprimiu os lábios, aquiesceu com um ar sábio.
- Devias ter nascido homem, Aurélia. Nunca pensara nisso, mas é a pura verdade.
- Tens razão, Lúcio Cornélio.
- De maneira que ele ficou contente por ir para a Província da Ásia e tu ficaste contente por ele se ter ido embora.
- Tens de novo razão, Lúcio Cornélio.
Sila começou então a falar da sua viagem ao Oriente, e com isso ganhou mais um ouvinte; o jovem César subiu para o divã da mãe e escutou avidamente a descrição dos encontros de Sila com Mitridates, Tigranes, e os embaixadores partos.
O rapaz estava quase com nove anos. E mais belo do que nunca, pensou Sila, que não conseguia desviar os olhos daquele rosto encantador. Tão parecido com o jovem Sila! Mas ao mesmo tempo completamente diferente. Já passara a fase das perguntas; agora estava na fase em que escutava tudo atentamente. Encostado a Aurélia, os olhos brilhando, os lábios ligeiramente entreabertos, o seu rosto era uma visão que a todo o momento mudava, reflectindo o que se passava no seu cérebro.
Quando Sila se calou, o jovem César fez-lhe uma série de perguntas, revelando mais inteligência do que Escauro, mais educação do que Mário, e mais interesse do que qualquer dos dois. Como é que ele sabe tudo isto?, perguntou Sila para si mesmo, reparando que estava a falar com um menino de oito anos precisamente ao mesmo nível a que falara com Escauro e Mário sobre idêntico tema.
- Que achas que vai acontecer? - perguntou Sila, não por paternalismo, mas simplesmente porque estava intrigado.
- Guerra contra Mitridates e Tigranes - respondeu o filho de Aurélia.
- E não com os Partos.
- Não haverá guerra com os Partos ainda durante bastante tempo. Mas se vencermos a guerra contra Mitridates e Tigranes, o Ponto e a Arménia ficarão sob o nosso domínio, e então os Partos começarão a inquietar-se com Roma, tal como sucede agora com Mitridates e Tigranes.
Sila aquiesceu.
- Tens toda a razão, jovem César.
Conversaram ainda durante mais uma hora, até que Sila se levantou e se despediu da criança afagando-lhe a cabeça. Aurélia acompanhou-o até à porta, fazendo sinal a Eutico para que se encarregasse de levar as crianças para a cama.
- Como estão todos lá por casa? - perguntou Aurélia, deixando que Sila abrisse a porta que dava para a Vicus Patricius, ainda cheia de gente, apesar de a noite ir já adiantada.
- O jovem Sila está com uma constipação muito forte, e Cornélia Sila com a cara num bolo - disse ele, despreocupadamente.
- Quanto ao jovem Sila, compreendo... mas a tua filha? Que lhe aconteceu?
- Dei-lhe uma surra.
- Ah, estou a ver! E que crime cometeu ela, Lúcio Cornélio?
- Parece que ela e o jovem Mário tinham decidido casar quando tivessem idade para tal. Mas eu prometi-a ao filho de Quinto Pompeu Rufo. De modo que ela decidiu mostrar a sua independência recusando-se a comer fosse o que fosse.
- Ecastorl Suponho que a pobre rapariga não sabia que a mãe fez actos idênticos.
- Não.
- Mas agora já sabe.
- Claro que sabe.
- Bom, eu conheço mais ou menos o filho de Pompeu Rufo e tenho a certeza de que ela será muito mais feliz com ele do que com o jovem Mário.
Sila riu-se.
- É exactamente isso que eu penso.
- E Caio Mário? Que pensa ele?
- Caio Mário também não quer tal casamento. - O lábio superior de Sila ergueu-se um pouco, mostrando os seus dentes.
- Pretende a filha de Cévola.
- Ah, isso vai ser fácil - comentou Aurélia, saudando uma mulher velha que parecia querer falar com ela.
Sila despediu-se então, deixando Aurélia encostada à porta a falar com a velha.
Sila nunca tivera qualquer receio em atravessar o bairro de Subura à noite, e Aurélia nunca ficara preocupada ao vê-lo partir de noite. Ninguém molestava Lúcio Cornélio Sila. Quem olhasse para ele, dificilmente se atreveria a fazê-lo: depressa concluiria que Sila tinha muita prática em enfrentar assaltos ou arruaças. O que intrigou Aurélia naquela noite foi o facto de Sila ter subido a Vicus Patricius, em vez de a ter descido na direcção do Fórum Romano e do Palatino.
Sila ia visitar Censorino, que vivia na colina Viminal, na rua que conduzia à macieira púnica. Era um respeitável bairro de cavaleiros, mas não tão luxuoso que albergasse no seu seio o proprietário de tão valiosa esmeralda.
No primeiro instante, Sila teve a sensação de que o criado de Censorino o ia impedir de entrar. Mas essa era uma situação que Sila enfrentava facilmente. Limitou-se a lançar um olhar pouco simpático ao criado e este, automaticamente, deixou-o entrar. Com um sorriso no mínimo perverso, Sila atravessou o estreito corredor que conduzia à sala de estar do apartamento. Enquanto isso, o criado corria, num passo miudinho, à procura do amo.
Ah, mas que bela sala!, pensou Sila. Os frescos eram recentes, executados segundo a última moda: painéis a vermelho, ricamente trabalhados, descrevendo os acontecimentos que levaram à entrega de Briseida a Agamémnon pelo Príncipe de Fitia, Aquiles; emolduravam os painéis pedras requintadamente pintadas, imitando a ágata, e estas pedras fundiam-se num esplêndido plinto verde-escuro, também pintado, e não um plinto verdadeiro. O chão era de mosaicos de várias cores, as cortinas, de um roxo muito escuro, só podiam ser de Tiro, e os divãs estavam cobertos com tapeçarias douradas e púrpura, feitas decerto pelos melhores tecelões. Enfim, um cenário nada mau para um membro mediano da Ordo Equester, pensou Sila.
Nesse momento irrompeu pela sala Censorino, naturalmente furioso, e desconcertado com o comportamento do criado.
- O que é que pretendes? - perguntou Censorino.
- A tua esmeralda.
- A minha quê?
- A esmeralda que te deram os agentes do rei Mitridates, Censorino.
- Rei Mitridates? O que é que queres dizer com isso? Eu não tenho esmeralda nenhuma!
- Ora, ora, claro que tens. Vá, dá-me a esmeralda. Censorino parecia abafar. O seu rosto, de início arroxeado, estava agora pálido.
- Dá-me já a tua esmeralda, Censorino!
- A única coisa que te vou dar é a condenação e o exílio! Antes que Censorino pudesse mexer-se, já Sila estava tão perto dele que, quem os visse e não soubesse o que se estava a passar, pensaria que os dois iam estreitar-se num abraço perfeitamente cómico; mas as mãos de Sila depressa caíram sobre os ombros de Censorino, embora sem qualquer intenção afectuosa. De facto, eram mãos que abocanhavam, que feriam, eram garras de ferro.
- Ouve-me com atenção, verme miserável. Pensa que já matei homens muito melhores do que tu - disse Sila num tom muito brando, num tom que parecia amoroso. - Desiste do processo, ou morrerás. Estou a falar a sério, Censorino! Desiste deste ridículo processo, ou dentro em breve estarás morto. Tão morto como um homem lendário pela sua força e que se chamava Hércules Atlas. Tão morto como uma mulher que acabou por partir o pescoço sob os penhascos de Circeios. Tão morto como um milhar de germanos. Tão morto como todos os que me ameaçam a mim e aos meus. Tão morto como Mitridates estará, se eu decidir que ele tem de morrer. Podes dizer-lhe isso quando o vires. Ele acreditará em ti! Ele meteu o rabo entre as pernas e fugiu da Capadócia quando eu lhe disse para se pôr a mexer. Porque ele sabia. Agora tu também sabes, não sabes?
Censorino não respondeu, nem tentou sequer libertar-se daquele cruel abraço. Paralisado, só se lhe ouvia a respiração. De olhos esbugalhados, fitava o rosto de Sila, encostado ao seu, como se nunca tivesse visto aquele homem na sua vida, e não soubesse rigorosamente o que fazer.
Uma das mãos de Sila largou o ombro de Censorino e introduziu-se na túnica dele, procurando algo que estava preso a um resistente fio de couro; a outra mão de Sila largou também o ombro de Censorino e desceu até ao escroto deste, esmagando-o com toda a força. Enquanto Censorino berrava tão estridentemente como um cão atropelado por um carro, Sila arrancou o fio de couro tão facilmente como se fosse de lã, e guardou a esmeralda dentro da toga. Ninguém apareceu acudindo a quem gritava. Sila deu meia volta e encaminhou-se para a porta sem qualquer pressa.
- Oh, já me sinto melhor! Já me sinto melhor! - exclamou enquanto abria a porta, soltando de seguida tão portentosa gargalhada que Censorino só deixou de a ouvir quando ele fechou a porta.
Esquecida a raiva e a frustração que sentira perante o comportamento da filha, Sila seguiu para casa com uma expressão absolutamente radiosa e um passo tão ligeiro como o de uma criança. A expressão de felicidade morreu-lhe no rosto mal abriu a porta de casa e encontrou, em vez do ambiente silencioso e tenuemente iluminado de uma casa onde todos dormissem, todas as lamparinas acesas, um amontoado de jovens de ar estranho, um criado limpando as lágrimas.
- O que é que se passa? - perguntou Sila, estupefacto.
- O teu filho, Lúcio Cornélio! - exclamou o criado.
Sila correu para a sala onde Élia instalara o filho. Élia estava à porta da sala, com um xaile pelas costas.
- O que se passa? - perguntou uma vez mais Sila, ofegante.
- O nosso filho está muito mal - murmurou ela. - Chamei os médicos há duas horas.
Sila entrou, afastou os médicos, e abeirou-se da cama do filho com um expressar descontraído.
- Mas o que é isto, meu filho? Resolveste pregar um susto a toda a gente?
- Pai! - exclamou o jovem Sila, sorrindo.
- O que é que se passa?
- Sinto tanto frio, pai! Posso tratar-te por tatá em frente de estranhos?
- Claro que podes.
- É uma dor horrível!
- Onde, meu filho?
- Debaixo do esterno, tatá. Sinto tanto frio!
A respiração do jovem era ruidosa, aflitiva; aos olhos de Sila, aquela cena parecia uma paródia do estertor de Metelo Numídico, o Suíno, e talvez por isso Sila não conseguisse acreditar que o filho estava a morrer. E no entanto, o jovem Sila parecia estar a um passo do fim. Impossível!
- Não fales, meu filho. Consegues deitar-te? - perguntou-lhe Sila porque os médicos tinham decidido sentá-lo.
- Deitado não consigo respirar. - Os olhos do rapaz, cercados por manchas que se assemelhavam a equimoses negras, fitaram o pai desesperados. - Tatá, não te vás embora, por favor!
- Eu estou aqui, Lúcio. Não, não te vou deixar um só momento. Porém, logo que possível, Sila chamou Apolodoro Sículo a um canto, a fim de lhe perguntar o que se passava com o filho.
- É uma inflamação dos pulmões, Lúcio Cornélio. Uma inflamação sempre difícil de tratar, mas ainda mais difícil no caso do teu filho.
- Mais difícil porquê?
- Porque o coração também parece estar afectado. Não sabemos com exactidão qual a importância do coração, embora eu seja de opinião que o coração ajuda ao funcionamento do fígado. Os pulmões do jovem Lúcio Cornélio estão cheios de fluidos, e transmitiram alguns desses fluidos ao invólucro que envolve o coração. Por isso, o coração fica comprimido. - Apolodoro Sículo parecia assustado; a sua fama tinha um preço que era obrigado a pagar em ocasiões como aquela, em momentos em que tinha de dizer a esta ou aquela personalidade romana que o doente não encontraria salvação nas mãos dos médicos.
- O prognóstico é grave, Lúcio Cornélio. Receio que nem eu nem qualquer outro médico possa fazer seja o que for.
Aparentemente, Sila aceitou bem as palavras do físico; por outro lado, conseguiu ser razoável ao ponto de admitir que o médico estava a ser completamente sincero, que o médico não curaria o jovem Sila porque, rigorosamente, lhe era impossível curá-lo. Apolodoro era um bom médico, ao contrário da maior parte dos seus colegas, que não passavam de charlatães. Bastava pensar na forma como Apolodoro investigara a morte do Suíno. Mas toda a gente estava sujeita a males que os médicos não conseguiam dominar, apesar das suas lanceias, dos seus clisteres, cataplasmas, poções, ervas mágicas. Era uma questão de sorte. E Sila compreendia agora que o seu amado filho não tinha sorte. A deusa Fortuna não o amava.
Voltou então para a cama, afastou as almofadas e sentou-se ao lado do filho, encostando-o contra si.
- Assim sinto-me melhor, tata! Muito melhor! Não me deixes!
- Vou estar quieto aqui ao teu lado, meu filho. Amo-te mais que tudo no mundo.
Durante muitas horas, Sila esteve sentado ao lado do filho, segurando-o contra si, o queixo encostado ao cabelo molhado, escutando a penosa respiração, as arfadas regulares, resultado da impiedosa dor. Os médicos não conseguiam já convencer o jovem a tossir: ele não aguentava a agonia em que a tosse o deixava. Também não o conseguiam convencer a beber: os seus lábios estavam cheios de feridas de febre, a língua, sarrenta, escura. De quando em quando falava, sempre para o pai, numa voz cada vez mais fraca; as palavras que dizia iam-se tornando menos lúcidas, menos razoáveis, até ao momento em que, abandonando a lógica e a razão, o filho de Sila entrou num mundo demasiado estranho ao entendimento.
Trinta horas depois morria nos braços dormentes do pai. Sila não se mexera uma única vez, excepto a pedido do filho; não comera nem bebera, não aliviara a bexiga ou os intestinos, mas não sentia qualquer desconforto, pois sabia que para o filho era muito importante que ele estivesse ali. Sila talvez se tivesse sentido mais confortado se o filho o tivesse reconhecido à hora da morte. Mas o jovem Sila retirara-se para um mundo muito longínquo, e morrera sem se dar conta do que se passava com ele ou à sua volta.
Toda a gente estava com receio do que Lúcio Cornélio Sila pudesse fazer. Foi por isso com muito medo que quatro médicos libertaram o jovem Sila do abraço do pai; ajudaram depois Sila a levantar-se e deitaram o rapaz na cama. Mas Sila nada disse ou fez que fosse susceptível de inspirar receio; comportou-se como o mais são, o mais admirável dos homens. Quando recuperou o uso dos músculos entorpecidos, ajudou os médicos a lavarem o filho e a vesti-lo com a toga debruada a púrpura da infância; em Dezembro daquele ano, na festa de Juventas, o jovem Sila ter-se-ia tornado um homem. Para que os escravos, de lágrimas incontroláveis nos olhos, pudessem mudar a cama, Sila pegou no corpo sem vida do filho; depois de os escravos terem feito a cama de novo, Sila deitou o filho, encostou-lhe os braços ao corpo, pôs as moedas sobre as pálpebras para que os olhos permanecessem fechados, e, com as mãos meigas, introduziu-lhe a moeda na boca, para pagar a Caronte o custo daquela derradeira viagem.
Élia não tinha saído do vão da porta durante todas aquelas longas horas; Sila foi ter com ela e conduziu-a até uma cadeira junto à cama, para que ela pudesse contemplar o menino que criara como se fosse seu filho. Cornélia Sila estava presente, o rosto num estado lastimável; e Júlia, Caio Mário e Aurélia também não tinham demorado a aparecer.
Sila saudou-os com a sua máscara de sensatez, de homem racional; aceitou as sentidas condolências, sorriu mesmo um pouco, e respondeu a perguntas constrangidas com uma voz firme e clara.
- Vou tomar banho e mudar de roupa - disse ele então. - Está a nascer o dia. Dentro em pouco terei de comparecer no tribunal. Embora a morte do meu filho pudesse constituir uma justificação legítima para a minha ausência, não vou dar tal satisfação a Censorino. Importas-te de me acompanhar, Caio Mário?
- De bom grado, Lúcio Cornélio - respondeu a voz profunda de Mário, que não parava de limpar as lágrimas. Nunca como naquele momento Mário sentira tanta admiração por Sila.
Antes de tomar banho, Sila foi à modesta latrina da sua casa. Depois de ter finalmente evacuado, deixou-se ficar sentado num dos assentos do banco de mármore, escutando o profundo som da água que corria em baixo, as mãos mexendo e remexendo nas dobras desalinhadas da sua toga, que não despira antes da derradeira vigília com o filho. Os seus dedos, intrigados, encontraram a certa altura um objecto; retirou-o para o ver à luz da manhã, reconhecendo-o vagamente, como se se tratasse de algo muito longínquo, pertencente a outra vida. Era a esmeralda de Censorino! Já pronto para sair, Sila virou-se para o banco de mármore e atirou a valiosa jóia para o vazio. Não a ouviu sequer cair, tal era o barulho que a água fazia.
Quando apareceu no átrio, onde Caio Mário o esperava, dir-se-ia que, por artes mágicas, Sila recuperara toda a beleza da sua juventude. Resplandecia. Todos o fitavam estupefactos.
Em silêncio, Sila e Caio Mário encaminharam-se para o lago Cúrcio, onde várias centenas de cavaleiros se tinham juntado para oferecerem os seus préstimos como membros do júri, e os funcionários do tribunal se preparavam para sortear esses membros; seriam sorteados oitenta e um jurados, mas trinta seriam recusados, quinze a pedido da acusação, e outros tantos a pedido da defesa. O júri seria constituído por vinte e seis cavaleiros e vinte e cinco senadores. Esse cavaleiro a mais era o preço que o Senado tinha de pagar para que os tribunais pudessem ser presididos por um senador.
O tempo foi passando. Procedeu-se ao sorteio dos jurados. Não aparecendo Censorino, a defesa, conduzida por Crasso Orador e Cévola, foi autorizada a retirar os seus quinze jurados. Realizada esta operação, Censorino continuava sem aparecer. Pelo meio-dia, o Presidente do Tribunal, perante a agitação do tribunal, e sabendo já que o acusado abandonara o leito de morte do filho pouco tempo antes, enviou um mensageiro a casa de Censorino. Passado algum tempo, o funcionário voltou com a notícia de que Censorino tinha partido para destino desconhecido no dia anterior, levando consigo os haveres que lhe era possível transportar.
- A sessão está encerrada - disse o Presidente. - Lúcio Cornélio, aceita as nossas mais sinceras desculpas, bem como as nossas condolências.
- Eu vou contigo, Lúcio Cornélio - disse Mário. - Que caso mais estranho! Que terá sucedido a Censorino?
- Obrigado, Caio Mário, eu prefiro estar sozinho - retorquiu calmamente Sila. - Quanto a Censorino, suponho que foi pedir asilo ao rei Mitridates - acrescentou, com um sorriso horrendo. - É que eu ontem tive uma conversinha com ele.
Sila encaminhou-se rapidamente na direcção da Porta Esquilina. Para lá das muralhas servias, e ocupando quase por completo o Campo Esquilino, ficava a necrópole de Roma, uma verdadeira cidade de túmulos - alguns humildes, outros magníficos, a maior parte discretos -, abrigando as cinzas dos habitantes de Roma, cidadãos e não-cidadãos, escravos e homens livres, nativos e forasteiros.
Na parte leste de uma grande encruzilhada, a algumas centenas de metros das muralhas servias, ficava o templo de Vénus Libitina, a deusa que comandava a extinção da força vital. Era um belo edifício, rodeado por uma infinidade de ciprestes, pintado num tom de verde muito vivo, com colunas roxas, os capitéis jónicos dourados e vermelhos, e o telhado do pórtico amarelo. O pavimento dos inúmeros degraus era de um rosa forte, e o frontão retratava os deuses e as deusas do Além em cores vívidas; no alto do telhado do templo via-se uma magnífica estátua dourada de Vénus Libitina, conduzindo um carro puxado por ratos, os animais que anunciavam a morte.
Nesse local, entre os ciprestes, estava instalada a Corporação dos Agentes Funerários; estes travavam entre si uma competição permanente, sempre à procura de negócio, e a sua actividade não era, por isso, nem lúgubre, nem triste, nem silenciosa. Os comerciantes dos serviços fúnebres, mal viam um cliente, não o largavam: argumentavam, tentavam persuadi-lo por todos os meios, perseguiam-no, adulavam-no, espicaçavam-no, enfim, procuravam impingir-lhe o seu produto, atraí-lo irremediavelmente para o seu produto. De facto, os serviços fúnebres constituíam um negócio como qualquer outro e ali, entre os ciprestes, situava-se o mercado dos negociantes da morte. Sila passou como um fantasma entre as várias tendas. O seu misterioso poder de afastar importunos permitiu-lhe chegar sem qualquer percalço à tenda da firma que sempre tratara das cerimónias fúnebres dos Cornélios. Explicou então como pretendia que decorressem as exéquias do filho.
Os actores compareceriam na sua casa no dia seguinte, a fim de receberem instruções; todos eles deveriam preparar-se de forma magnificente para o funeral, que se realizaria passados três dias; de acordo com a tradição da família Cornélio, o jovem Sila seria inumado, e não cremado. Sila pagou integralmente o funeral, com uma nota promissória no valor de vinte talentos de prata, o que era um preço para um funeral de que Roma falaria durante algum tempo. Ele, que normalmente se mostrava tão cuidadoso, ou retraído, nas despesas, dessa feita não pensou um segundo no dinheiro que ia gastar.
Regressando a casa, pediu a Élia e a Cornélia Sila que deixassem a sala onde jazia o filho e sentou-se na cadeira de Élia, de olhos postos no corpo devastado do filho. Não sabia o que sentia, não sabia como se sentia. A dor, a perda, o sentido de tudo aquilo, pesavam-lhe como uma gigantesca esfera de chumbo; tudo o que podia fazer era suportar essa terrível carga, esse peso hediondo: não poderia, não saberia, naquele momento, entender os seus sentimentos, já que não lhe restava uma réstea de entendimento para tal. Ali, à sua frente, jazia a ruína da sua casa, o cadáver do seu mais querido amigo, o companheiro da sua idade madura, o herdeiro do seu nome, da sua fortuna e reputação, da sua carreira pública. Desaparecera no espaço de trinta horas: não era por certo a decisão de um deus, tão pouco um capricho do destino. O resfriamento piorara, os pulmões tinham ficado inflamados, o coração, oprimido, parara. Uma doença idêntica a tantas outras. Não fora por culpa de ninguém, nenhum desígnio produzira aquele resultado. Fora, muito simplesmente, um acidente. Para o filho, que já não podia entender nada de nada, que já não podia sentir fosse o que fosse, aquilo era, pura e simplesmente, o fim da vida. Nada mais. Para aqueles que ficavam, e que sabiam, e que sentiam, a morte do jovem Sila era o prelúdio de um vazio que só cessaria quando a vida cessasse. O seu filho estava morto. O seu amigo desaparecera para sempre.
Quando Élia voltou à sala duas horas mais tarde, Sila foi para o seu escritório, onde logo tratou de escrever uma mensagem a Metróbio.
O meu filho morreu. Da última vez que vieste a minha casa, morreu a minha mulher. Dada a tua arte, deverias ser o arauto da alegria, o deus ex machina do contentamento. Em vez disso, és o arauto da tristeza, o mensageiro das trevas.
Não voltes nunca mais a minha casa. Entendo agora que a minha benfeitora, a deusa da Fortuna, não admite rivais. Porque eu amei-te e aquilo que te dei de mim, Fortuna considera que é só seu. Para mim, tu foste um ídolo. Aos meus olhos, transformaste-te na personificação do amor perfeito. Mas ela exige que eu a veja como te vi. E ela é fêmea, princípio e fim de todos os homens.
Se um dia Fortuna me abandonar, chamar-te-ei. Até lá, nada. O meu filho era um bom filho, um filho como deve ser. Um Romano. Agora está morto, e eu estou só. Não te quero.
Sila selou a carta cuidadosamente, chamou o criado, e explicou-lhe onde deveria levar aquela carta. Depois, pôs-se a olhar para a parede, onde - que estranha que a vida era! - Aquiles surgia sentado na beira de um esquife, segurando Pátroclo nos seus braços. Obviamente influenciado pelas máscaras trágicas das grandes peças, o artista tinha dado ao rosto de Aquiles uma expressão de agonia e estupor. Sila considerava tal ideia absolutamente errada, uma incursão presunçosa num mundo de sofrimento privado que não deveria ser nunca exibido. Bateu as palmas, e, mal o criado apareceu, comunicou-lhe que aquela pintura teria de ser retirada no dia seguinte.
- Lúcio Cornélio, o lectus funebris encontra-se já no átrio - anunciou o criado, chorando.
Depois de examinar o caixão, magnificamente trabalhado e dourado, com tecidos e almofadas negras, Sila indicou aos funcionários dos serviços fúnebres que não tinha nada a opor àquela escolha. Ele próprio levou o corpo do filho para o caixão, sentindo já nele a rigidez da morte; as almofadas tinham sido entretanto colocadas no caixão, de forma a que o cadáver pudesse ficar numa posição sentada, sendo os braços suportados por outras almofadas. Sila permaneceria no átrio até que oito homens vestidos de negro pegassem no lectus funebris e o levassem para a procissão fúnebre.
Ao terceiro dia, realizou-se o funeral do jovem Sila. Em sinal de cortesia para com um homem que fora pretor urbano e que, segundo todas as probabilidades, viria a ser cônsul, as actividades públicas tinham sido suspensas no Fórum Romano; os participantes nessas actividades esperavam pelo cortejo, todos vestidos com a toga pulla, a toga preta do luto. Por causa dos carros, a procissão descia a Clivus Victoriae até ao Velabrum, virava depois para a Vicus Tuscus, e entrava no Fórum Romano entre o templo de Castor e Pólux e a Basílica Semprónia. À frente seguiam dois funcionários dos serviços fúnebres, de togas negras; atrás deles, vinham músicos, vestidos também de negro, tocando trombetas militares, trompas, e flautas feitas com as tíbias de inimigos de Roma mortos em batalha. A música que tocavam era solene: não primava, longe disso, pela beleza melódica. Com os músicos vinham as mulheres vestidas de negro que ganhavam a vida como carpideiras profissionais, entoando os seus próprios cantos e batendo no peito. Todas elas choravam lágrimas verdadeiras. Seguia-se um grupo de bailarinos, executando movimentos rituais mais velhos que a própria Roma, e agitando ramos de cipreste. Atrás deles, vinham os actores com as cinco máscaras de cera dos antepassados de Sila, cada um deles num carro negro puxado por dois cavalos igualmente negros; surgia depois o esquife, levado aos ombros por oito libertos, homens que em tempos haviam sido escravos da madrasta de Sila, Clitumna, e que, libertados pelo testamento desta, tinham passado a ser clientes de Sila. Este vinha atrás do féretro, com a toga negra puxada para cima, de forma a velar-lhe o rosto; com ele, seguiam o seu sobrinho, Lúcio Nónio, Caio Mário, Sexto Júlio César, Quinto Lutácio César e os seus dois irmãos, Lúcio Júlio César e Caio Júlio César Estrabão, todos eles de rosto velado; e atrás dos homens surgiam as mulheres, vestidas de negro, mas de rosto descoberto e cabeleiras desgrenhadas.
Ao chegarem aos rostros, os músicos, as carpideiras profissionais, os bailarinos e os funcionários dos serviços fúnebres foram postar-se
Nota: Os rostros: tribuna para os oradores na praça pública ou Fórum, ornada com os esporões dos navios conquistados aos Volscos de
Âncio durante a guerra latina; rostrum significa precisamente esporão. (N. do T.)
junto ao muro das traseiras do Fórum, enquanto os actores, guiados por criados, subiram os degraus até ao topo dos rostros, sentando-se depois nas cadeiras curuis. Vestiam a toga debruada a púrpura do antepassado de Sila que alcançara, entre todos, a mais elevada posição social: o Sila que fora flamen Dialis. O caixão foi depois colocado nos rostros, e os parentes - todos eles, excepto Lúcio Nónio e Élia, ligados de alguma forma à casa Juliana - subiram até lá a fim de ouvirem o panegírico. O próprio Sila fez o panegírico do filho: foram breves as suas palavras.
- Hoje, enterro o meu único filho - disse Sila para a multidão silenciosa. - Ele era membro da gens Cornélia, de um ramo com mais de duzentos anos, contendo cônsules e sacerdotes, homens notáveis. Em Dezembro, também ele passaria a ser um homem da gens Cornélia. Mas estava destinado que tal não aconteceria. O meu filho morreu pouco tempo antes de fazer quinze anos.
Sila virou-se para fitar os seus parentes: o jovem Mário, de toga negra, com a cabeça velada, pois já era um homem (o seu novo estatuto colocava-o bastante longe de Cornélia Sila, que o mirava com uns olhos tristes num rosto ferido e inchado); ali estava Aurélia, e Júlia, mas enquanto Júlia chorava e apoiava fisicamente Élia, Aurélia mantinha-se muito direita e os seus olhos não vertiam uma lágrima. A sua expressão parecia mais severa que triste.
- O meu filho era um belo rapaz, um jovem muito amado e objecto de todos os cuidados por parte dos progenitores. A mãe morreu era ele muito novo, mas a madrasta foi para ele uma verdadeira mãe. Se a morte não o tivesse vindo buscar, teria sido, sem sombra de dúvida, o legítimo descendente de uma nobre casa patrícia, pois era educado, inteligente, interessado, corajoso. Quando me desloquei ao Oriente para conferenciar com os reis do Ponto e da Arménia, ele foi comigo, e sobreviveu a todos os perigos que as terras estrangeiras apresentam. Ele pôde assistir à minha reunião com os enviados partos, e, entre todos os homens da sua geração, Roma escolhê-lo-ia por certo quando fosse necessário enviar alguém a tais paragens. Era o meu melhor companheiro, o meu mais leal seguidor. Era seu destino que a doença o viesse a afastar de Roma para sempre. Roma ficará mais pobre, tal como eu e toda a minha família ficaremos mais pobres. Enterro-o
Nota: Sacerdote de Júpiter. (N. do T.)
agora com grande amor e mais tristeza, e ofereço-vos gladiadores para os jogos fúnebres.
As cerimónias nos rostros estavam concluídas; toda a gente se levantou e o cortejo retomou a sua caminhada na direcção da Porta Capena, pois Sila escolhera um túmulo na Via Ápia, onde a maior parte dos Cornélios estavam enterrados. À porta do túmulo, o jovem Sila foi retirado do caixão pelo pai, e colocado dentro de um sarcófago de mármore montado sobre uma armação. A tampa do sarcófago foi depois colocada pelos homens que tinham transportado o caixão, e a armação retirada. Sila fechou então a grande porta de bronze. Fechava assim uma parte de si mesmo. Perdera o filho. Nada voltaria a ser como dantes. Nunca mais.
Alguns dias depois do funeral do jovem Sila, a lex Lívia agraria foi aprovada. Foi para a Assembleia da Plebe depois de aprovada pelo Senado (apesar da denodada oposição de Cepião e Vário), e deparou com uma inesperada resistência nos Comitia. Druso não tinha contado com um factor - a oposição dos Italianos. Embora as terras em questão não lhes pertencessem, a verdade é que as terras italianas, na sua maior parte, confinavam com a ager publicas romana, e, em muitos casos, a avaliação das superfícies das terras não estava feita. Muitos marcos tinham sido sub-repticiamente mudados, muitas propriedades de italianos continham terra que não pertencia a Italianos. Teria de se proceder agora a uma nova e vasta avaliação das superfícies das propriedades, tendo em vista a divisão das terras públicas em lotes de dez iugera, e as discrepâncias seriam automaticamente rectificadas. As terras públicas da Etrúria pareciam ser as mais afectadas, provavelmente porque Caio Mário era um dos maiores latifundiários da região, e Caio Mário pouco se preocupava com o facto de os seus vizinhos etruscos lhe roubarem um pouco de terra. A Umbria também se mostrava inquieta; em contrapartida, a Campânia não se manifestava.
Druso, no entanto, estava muito contente. Por isso, escreveu a Silão que tudo estava a correr bem. Escauro, Mário e Catulo César tinham ficado impressionados com os argumentos de Druso acerca da ager publicus, e trataram de convencer o cônsul júnior, Filipe, a manter uma posição reservada. Ninguém conseguia calar Cepião, mas às suas palavras pouca gente ligava, não só porque era um mau orador, mas também porque corriam boatos muito persistentes acerca de certas pessoas que tinham herdado quantidades apreciáveis de ouro - e em Roma ninguém perdoaria aos Servílios Cepiões a existência de uma tal mancha na família.
Por isso, Quinto Popaedius, vê o que podes fazer para convencer os Etruscos e os Úmbrios a deixarem de se queixar. A última coisa que me podia acontecer era ter de enfrentar os protestos daqueles que possuíam inicialmente as terras que estou a tentar distribuir.
Mas a resposta de Silão não foi encorajadora.
Infelizmente, Marco Lívio, disponho de muito pouca influência na Úmbria ou na Etrúria. São povos muito difíceis - muito convencidos da sua própria autonomia, além do que desconfiam dos Marsos. Prepara-te para dois incidentes. Um deles é abertamente referido no Norte. Quanto ao outro, ouvi falar dele por acaso, e preocupa-me muito mais.
Vamos ao primeiro incidente. Os grandes proprietários etruscos e Úmbrios estão a pensar marchar sobre Roma, a fim de protestarem contra a divisão da ager publicus romana. O pretexto deles (é evidentemente que não vão admitir que mexeram nos marcos e ocuparam terras que, por lei, não lhes pertenciam) é que a ager publicus romana da Etrúria e da Úmbria existe há já tanto tempo que acabou por moldar a economia e a população. Um afluxo de pequenos proprietários arruinará a Etrúria e a Úmbria, dizem eles. As cidades, acrescentam, não possuem o tipo de lojas e mercados que normalmente abastecem os pequenos proprietários - as lojas dessas cidades são grandes armazéns, pois os proprietários e administradores dos latifundia compram a granel. Além disso - acentuam -, os proprietários dos latifundia libertariam os escravos que trabalham nas suas terras, sem se preocuparem minimamente com as consequências. Com o resultado de que milhares de escravos libertados permaneceriam inactivos naquelas regiões, provocando desacatos, e mesmo roubando e saqueando. Por isso, acrescentam, a Etrúria e a Úmbria acabariam por ter de mandar esses antigos escravos para as suas terras de origem, e isso não lhes sairia nada barato. E assim por diante. Prepara-te desde já para a comissão que irá falar contigo em Roma!
O segundo incidente é potencialmente mais perigoso. Algumas das personalidades mais impetuosas do Sâmnio concluíram que não há já qualquer esperança de obter a cidadania ou a paz com Roma, e vão mostrar a Roma o seu descontentamento durante a celebração da festa de Júpiter Latiaris, no monte Albano. Planeiam assassinar os cônsules Sexto César e Filipe. O plano está bem elaborado - atacarão os cônsules no regresso destes, de Bovilas a Roma e serão em número suficiente para dominar todos os celebrantes que participam nos pacíficos festejos.
Faz o que podes para acalmar os proprietários úmbrios e etruscos, e esmaga o plano dos Samnitas enquanto é tempo. Mas no meio disto tudo sempre há uma notícia agradável: toda a gente a quem propus o juramento de obediência à tua pessoa, fê-lo de muito bom grado. Nunca como agora tiveste tantos clientes potenciais. E o número não pára de aumentar.
Sim, de facto aquela era uma boa notícia! No meio de tanta desgraça... Com uma expressão tensa, Druso tratou de reflectir acerca das passagens menos agradáveis da carta de Silão. Quanto aos italianos da Etrúria e da Úmbria, pouco podia fazer: talvez um discurso de choque para quando eles aparecessem no Fórum. Quanto ao plano para assassinar os cônsules, não tinha outra hipótese senão avisar os cônsules. Que por certo o pressionariam para que revelasse a sua fonte, e não aceitariam respostas evasivas - especialmente Filipe.
Por isso, Druso decidiu visitar Sexto César, e não Filipe, e, com a maior naturalidade, revelou as suas fontes.
- Recebi uma carta do meu amigo Quinto Popaedius Silão, o marso de Marrúbio - disse ele a Sexto César. - Parece que um bando de samnitas descontentes concluiu que a única forma de levar Roma a admitir a lógica do alargamento da cidadania a toda a Itália, consiste em demonstrar a Roma que toda a Itália está decidida a conquistar esse direito. E para eles só a violência levará Roma a entender isso. Tu e Lúcio Márcio serão atacados por um grupo numeroso e bem armado de samnitas, algures entre Bovilas e Roma, quando regressarem do Festival Latino.
Sexto César não estava num dos seus melhores dias, bem pelo contrário; a sua respiração arquejante era perfeitamente audível, os seus lábios e os lóbulos das orelhas estavam ligeiramente azulados. No entanto, tinha-se habituado à sua doença e conseguira chegar ao consulado apesar dela - e vencera mesmo o primo, Lúcio César, que tinha sido pretor antes dele.
- Conceder-te-ei um voto de agradecimento no Senado, Marco Lívio - retorquiu o cônsul sénior. - E diz ao nosso Princeps Senatus que escreva a Quinto Popaedius Silão a agradecer-lhe em nome do Senado.
- Sexto Júlio, eu preferia que não adoptasses esse procedimento! Não me parece a melhor solução - replicou imediatamente Druso. Acho que será melhor não dizer nada a ninguém, convocar umas quantas coortes de Cápua e tentar com elas capturar os samnitas. De outro modo, os samnitas ficarão a saber que a sua conjura foi descoberta, e por isso, obviamente, não a porão em prática. Além disso, o teu colega Lúcio Márcio ficará a pensar que não havia conjura nenhuma. Para salvaguardar a minha reputação, preferia que os samnitas fossem apanhados em flagrante delito. Dessa forma poderíamos dar uma lição a toda a Itália, aniquilando todos os conspiradores. Seria uma maneira de dizermos à Itália que a violência não leva a lado nenhum.
- Tens razão, Marco Lívio. Vou fazer como dizes - concordou Sexto Júlio César.
Druso prosseguiu assim a sua obra, enfrentando os revoltados proprietários italianos e os conspiradores samnitas. Os etruscos e os úmbrios apareceram de facto. Felizmente, revelaram-se tão agressivos e arrogantes que acabaram por irritar homens que, de outra forma, talvez os tivessem apoiado. Depressa os mandaram de regresso às suas terras. Em Roma, deixavam muita desconfiança e escassa simpatia. No que toca à conjura dos Samnitas, Sexto César actuou exactamente como Druso lhe tinha pedido. Por isso, quando os samnitas atacaram o cortejo aparentemente pacífico em que seguiam os dois cônsules, tiveram a surpresa de deparar com algumas coortes de legionários que se tinham escondido atrás dos túmulos, do outro lado da Via Ápia. Alguns morreram em combate, mas a maior parte foi capturada, chicoteada e executada.
O que interessava a Druso era que a sua lex agraria estava aprovada, o que implicava que todos os cidadãos romanos receberiam dez iugera das terras públicas. O Senado e o resto da Primeira Classe receberiam as suas parcelas em primeiro lugar; os capite censi seriam os últimos a recebê-las. Embora houvesse milhões de iugera de terra pública em Itália, Druso duvidava que, quando chegasse a vez da massa proletária, ainda restasse alguma para distribuir. E, como toda a gente sabia, não era boa política alimentar conflitos com os capite censi. Teriam de receber alguma compensação em vez da terra. E só uma compensação era possível - cereais do Estado, a um preço reduzido, a um preço que teria de se manter estável mesmo em épocas de fome. Oh, que terrível batalha teria de travar para levar o Senado a aprovar uma lex frumentaria, uma lei que previsse a venda permanente de cereais baratos ao povo miúdo!
Para aumentar os seus problemas, a tentativa de assassínio durante o Festival Latino tinha deixado Filipe alarmado, levando-o a consultar todos os amigos que tinha em Itália; em Maio, anunciou ao Senado que a Itália estava inquieta e que alguns homens falavam de guerra com Roma. Filipe não tinha o comportamento de um homem assustado, pelo contrário: aparentemente, o que ele achava era que os Italianos deviam levar uma boa lição, um susto que os intimidasse de uma vez por todas. Propôs por isso que fossem enviados dois pretores, um para as regiões a sul de Roma, o outro para as regiões a norte, a fim de descobrirem, em nome do Senado e do Povo de Roma, o que se estava a passar em Itália.
Catulo César, que tanto tinha sofrido em Esérnia durante a época em que presidira ao tribunal especial de inquérito previsto pela lex Licinia Mucia, achou a ideia de Filipe excelente. A intervenção de Catulo César não deixou de impressionar um bom número de senadores, que logo trataram de apoiar a proposta de Filipe. Depressa foram escolhidos os pretores: Sérvio Sulpício Galba conduziria as investigações a sul de Roma, ao passo que o pretor Quinto Servílio, da família do Augure, iria para norte. Ambos podiam escolher um assistente, dispunham de autoridade proconsular e era-lhes dado todo o dinheiro necessário para viajarem nas melhores condições (o que incluía a possibilidade de contratarem uma pequena força de ex-gladiadores que seriam os seus guarda-costas).
A notícia de que o Senado tinha nomeado dois pretores para investigarem aquilo a que Catulo César chamava a ”questão italiana”, não agradou rigorosamente nada a Silão. Mutilo do Sâmnio, furioso com a execução de duzentos dos seus mais corajosos compatriotas, sentia-se inclinado a considerar esta iniciativa como um acto de guerra.
Druso desatou então a escrever cartas a ambos os homens, pedindo-lhes que lhe dessem uma oportunidade, rogando-lhes que esperassem.
Entretanto, Druso preparou-se para a batalha do Senado: era preciso que este aprovasse a venda de cereais a preços reduzidos. Tal como a distribuição da ager publicus, os cereais baratos eram uma benesse que nunca poderia ser dada apenas às classes mais baixas. Qualquer cidadão romano disposto a ir para a longa fila de espera junto à tenda dos edis perto do Porticus Minúcia, podia obter o seu bilhete oficial que lhe dava direito a cinco modii de trigo público; depois, apresentava-se com esse bilhete nos celeiros do Estado, situados no monte Aventino, e levava o cereal para casa. Havia alguns homens de grande prestígio e riqueza que se aproveitavam deste privilégio dos cidadãos - metade porque eram avarentos incuráveis, e a outra metade por uma questão de princípio. Mas de um modo geral, a maior parte dos homens que se podiam dar ao luxo de mandar o criado comprar cereais aos celeiros privados da Vicus Tuscus, normalmente não recorriam, pelo menos pessoalmente, ao cereal mais barato oferecido pelo Estado. Comparada com os custos de outros produtos - a renda, por exemplo, que era sempre muito elevada -, a soma de cinquenta ou cem sestércios por mês e por pessoa, desembolsada para comprar cereais privados, era pouca coisa. Por isso, a grande maioria dos homens que recorriam aos bilhetes do Estado eram ou cidadãos necessitados da Quinta Classe, ou capite censi.
- A terra não chegará para todos eles - disse Druso no Senado.
- No entanto, não podemos esquecer-nos deles, não podemos dar-lhes motivos que os levem a pensar que foram uma vez mais desprezados. Caros Senadores: a manjedoura de Roma é suficientemente grande para que todas as bocas a ela possam comer! Se não podemos dar terra aos capite censi, então teremos de lhes dar cereais baratos. A um preço fixo de cinco sestércios o modius, todos os anos, haja abundância ou escassez. Desta forma, a carga financeira que o Tesouro tem de aguentar será de algum modo mais leve - sempre que há excedentes de cereais, o Tesouro compra-o a um preço que vai dos dois aos quatro sestércios o modius. Vendendo o cereal a cinco sestércios, o Tesouro poderá, apesar de tudo, obter algum lucro, que facilitará a sua tarefa em anos de escassez. Por essa razão, sugiro que o Tesouro mantenha uma conta separada para os cereais. Não devemos cometer o erro de recorrer aos rendimentos gerais para financiar esta lei.
- E de que modo pagaremos esta magnífica dádiva, Marco Lívio?
- perguntou Lúcio Márcio Filipe, no seu jeito arrastado.
Druso sorriu.
- Já pensei nisso tudo, Lúcio Márcio. Está prevista na minha lei a desvalorização de algumas das nossas tiragens de moeda.
O Senado agitou-se, murmurou; ninguém gostava de ouvir a palavra ”desvalorização”, pois a maior parte dos senadores mostrava-se fortemente conservadora perante problemas dofiscus. Roma não tinha por hábito adulterar a cunhagem: tal procedimento era considerado como um vício grego. Praticamente, só durante a primeira e a segunda das guerras púnicas é que Roma recorrera a essa medida, e a maior parte das vezes porque era necessário padronizar o peso das moedas. Embora a outros níveis fosse um radical, Caio Graco tinha aumentado o valor das moedas de prata.
Não havia motivo para alarmes, explicou Druso.
- Um em cada oito denarii será feito de bronze misturado com um pouco de chumbo, de forma a que tal moeda tenha o mesmo peso de uma moeda de prata. Depois, esse denarius será revestido de prata. Fiz os meus cálculos seguindo o mais conservador dos raciocínios. Nomeadamente, parti do princípio de que teremos, em matéria de cereais, cinco anos fracos para cada dois anos bons, e, como sabem, a visão conservadora desta questão é extremamente pessimista. Na realidade, são mais os anos bons do que os maus. No entanto, não podemos excluir um outro período de fome, como o que se registou aquando da guerra com os escravos da Sicília. Por outro lado, revestir uma moeda de prata envolve mais trabalho do que cunhar prata pura. Por isso, o meu programa aponta para uma proporção de um para cada oito denarii, embora a verdadeira proporção se aproxime mais de um para cada dez denarii. O Tesouro, como por certo entenderão, não pode perder. Por outro lado, esta medida não se revelará incómoda para os homens de negócios que negoceiam com papel. A carga mais pesada será suportada por aqueles que estão limitados ao uso de moedas. Finalmente, e creio que este é o factor mais importante, esta medida evita o ódio que uma tributação directa provocaria.
- E porque havemos de nos dar ao trabalho de revestir de prata uma em cada oito moedas de cada tiragem, quando podíamos muito simplesmente revestir uma em cada oito tiragens? - perguntou o pretor Lúcio Lúcilio, que (como era costume na sua família) tinha mais vocação para as palavras do que para a aritmética e as coisas práticas.
- Porque - explicou pacientemente Druso - é vital, creio, que a maior parte das pessoas que usam moedas não consiga distinguir a moeda verdadeira da que é apenas revestida de prata. Se saísse uma tiragem só de moedas de bronze, ninguém quereria gastá-las.
Embora parecesse milagre, o certo é que Druso conseguiu que a sua lex frumentaria fosse aprovada. Pressionado pelo Tesouro (que fizera as suas contas e chegara às mesmas conclusões de Druso, ou seja, que só teria a ganhar com a desvalorização), o Senado sancionou a promulgação da lei na Assembleia da Plebe. Nesta, os cavaleiros mais poderosos depressa perceberam que tal lei pouco os incomodaria, pois não eram muitas as transacções em que recorriam ao numerário. Claro que todos sabiam que a lex frumentaria afectava toda a gente, que a distinção entre dinheiro verdadeiro e papel era, na melhor das hipóteses, especiosa; mas eram homens pragmáticos e sabiam perfeitamente que o único valor verdadeiro que o dinheiro tinha (fosse qual fosse o dinheiro) era a confiança que o povo depositava nele.
Em fins de Junho, a lei entrava em vigor. Os cereais públicos seriam vendidos, nos anos futuros, a cinco sestércios o modius, e os questores ligados ao Tesouro programavam já a primeira tiragem de moedas desvalorizadas, associados aos viri monetales que iriam supervisionar as operações de cunhagem. Tudo isto demoraria o seu tempo, mas os funcionários responsáveis calculavam que em Setembro um em cada oito novos denarii em circulação teria um revestimento de prata. Entretanto havia quem não estivesse contente. Cepião nunca deixara de protestar, os cavaleiros não estavam inteiramente satisfeitos com Druso, e as classes mais baixas suspeitavam que os seus dirigentes as estavam a enganar. Mas Druso não era nenhum Saturnino, e o Senado sentia-se grato por isso. Quando realizava uma contio na Assembleia da Plebe, insistia na moderação e na legalidade; se moderação e legalidade corriam riscos, suspendia a reunião imediatamente. Por outro lado, Druso não hostilizava os augures, nem recorria a tácticas agressivas.
O fim do mês de Junho significava uma paragem forçada no programa de Druso: era a pausa oficial do Verão. O Senado interrompeu as reuniões, o mesmo sucedendo com os comitia. Contente com tal pausa - sentia-se cada vez mais cansado pelo facto de ter cada vez menos actividade -, também Druso deixou Roma. Mandou a mãe e as seis crianças que estavam ao cuidado dela para a sua sumptuosa villa de Miseno, e foi visitar Silão e Mutilo, com quem efectuou depois uma viagem por toda a Itália.
Durante essa viagem, Druso apercebeu-se claramente de que as nações italianas da península central estavam preparadas para se lançar numa guerra; certo, num caminho poeirento, longe de aquartelamentos romanos ou latinos, viu legiões inteiras, extremamente bem equipadas, realizando manobras. Nada disse a Silão e a Mutilo, não lhes perguntou nada. No fundo, acreditava que aqueles preparativos nunca teriam uma aplicação prática. Ou seja, não acreditava que viesse a haver guerra. Com uma produção legislativa sem precedentes, conseguira convencer o Senado e a Assembleia da Plebe de que eram necessárias reformas nos principais tribunais, no Senado, na ager publicus, e na distribuição de cereais. Ninguém - nem Tibério Graco, nem Caio Graco, tão pouco Caio Mário ou Saturnino - conseguira fazer o que ele fizera: promulgar legislação tão polémica sem violência, sem a oposição do Senado, sem a rejeição dos cavaleiros. Porque acreditavam nele, porque o respeitavam, porque confiavam nele. Sabia agora que quando revelasse publicamente as suas intenções sobre a concessão da cidadania a toda a Itália, tanto senadores como cavaleiros deixariam que ele conduzisse o processo, mesmo que não estivessem totalmente de acordo. E a concessão da cidadania a toda a Itália seria uma realidade! E em consequência disso, ele, Marco Lívio Druso, passaria a contar com um número imenso de clientes: um quarto da população do mundo romano. De facto, o juramento de obediência e fidelidade tinha deparado com a adesão de muita gente, de uma ponta à outra da península. Até mesmo na Etrúria e na Umbria, Druso teria clientes.
Cerca de oito dias antes da reabertura do Senado, nas Calendas de Setembro, Druso chegou à sua villa de Miseno, a fim de descansar um pouco. O convívio com a mãe era para ele motivo de grande alegria. Além disso, a sua presença era indubitavelmente reconfortante - a mãe era uma mulher espirituosa, inteligente, culta, serena, quase masculina na sua apreciação de um universo que, no fim de contas, era basicamente masculino. Interessava-se muito por política, e acompanhara o programa de leis de Druso com orgulho e satisfação. O seu passado familiar (liberal, porque era uma Cornélia) predispunha-a a um certo radicalismo, embora mesclado de um conservadorismo que a levava a aprovar a notável visão que o filho tinha das realidades do Senado e do Povo. Nada de força, nada de violência, nada de ameaças: as únicas armas eram uma voz de ouro e uma língua de prata. Assim é que deviam ser os grandes políticos! Marco Lívio Druso era assim, e ela sentia-se feliz porque o filho herdara dela essas faculdades: dela e não do pai, esse homem teimoso, orgulhoso, amigo da discórdia.
- Bom, não há dúvida que te portaste brilhantemente no que toca à lei, à terra e às classes pobres - disse ela. - Que vem a seguir?
Druso respirou fundo e fitou-a directamente, com um olhar grave.
- Vou propor a cidadania romana para todos os homens que vivem em Itália.
Mais pálida que o seu vestido cor de osso, Cornélia Cipião exclamou:
- Oh, Marco Lívio! Até agora deixaram-te fazer tudo o que querias. Mas isso não to vão permitir!
- Porque não? - perguntou ele, surpreendido; Druso habituara-se já à ideia de que era capaz de fazer aquilo que mais ninguém conseguia.
- A defesa da cidadania é uma tarefa de que os deuses incumbiram Roma - disse ela, ainda pálida. - Não, a tua proposta será rejeitada! Eles nunca a aceitariam! Nem mesmo que o próprio Quirino aparecesse no meio do Fórum e lhes ordenasse que a aprovassem! Desiste, Marco Lívio! Não tentes fazer uma coisa dessas! - Cornélia Cipião tremia.
- Peço-te por tudo, desiste dessa ideia!
- Jurei que havia de fazê-lo, mãe. E podes crer que vou fazê-lo! Durante um longo momento, os olhos de Cornélia, exprimindo todo o receio que sentia pela sorte do filho, procuraram os olhos negros dele. Depois, suspirou, encolheu os ombros.
- Bom, está visto que não consigo demover-te dessa tua ideia. Por alguma razão és sobrinho-bisneto de Cipião Africano. Oh, meu filho, meu filho, eles vão matar-te!
Druso fitou-a com uma expressão dubitativa.
- Matar-me? Matar-me porquê, mãe? Eu não sou Caio Graco. Não sou Saturnino. Tudo o que faço, faço-o de acordo com a lei. Não ameaço nenhum homem, não ameaço a mós maiorum.
Demasiado inquieta para prosseguir aquela conversa, Cornélia levantou-se num ápice.
- Anda, vem ver as crianças, têm saudades tuas.
Não havia grande exagero naquelas palavras. De facto, Druso tornara-se extraordinariamente popular entre as crianças da sua casa.
Quando já estavam perto da sala de jogos das crianças, aperceberam-se de que havia uma briga.
- Vou matar-te, Catão! - gritava Servília quando os dois adultos entraram.
- Pára já com isso, Servília! - exclamou Druso num tom severo, sentindo que havia algo de sério no tom em que Servília dizia aquilo.
- Catão é teu meio-irmão. Não tocas nele!
- Toco nele, sim. Basta que estejamos sós o tempo suficiente foi a sinistra resposta de Servília.
- Nunca ficarás sozinha com ele, Nariz de Batata! - replicou o jovem Cepião, pondo-se entre ela e o jovem Catão.
- Eu não tenho nariz de batata! - exclamou Servília furiosa.
- Tens, sim! - retorquiu o jovem Cepião. - É um narizinho horrível com uma batata horrível na ponta. Uh! Que porcaria de nariz!
- Calados! - exclamou Druso. - Será que vocês fazem alguma coisa para além de brigarem?
- Sim! - disse o jovem Catão bem alto. - Discutimos!
- Com ele aqui, que se há-de fazer? - disse Druso Nero.
- Cala-te, Nero Preto! - disse o jovem Cepião, decidido a defender Catão.
- Eu não sou preto!
- És preto, és! És preto! - gritou o jovem Catão, de punhos cerrados.
- Tu não és um Servílio Cepião! - disse Servília ao jovem Cepião.
- És o descendente de um escravo gaulês ruivo, impingiram-nos a tua pessoa, a nós, que somos Servílios Cepiões!
- Nariz de batata! Nariz de batata! Que nariz mais horroroso!
- Tace! - gritou Druso.
- Filho de um escravo! - atirou Servília.
- Filha de um imbecil! - gritou Pórcia.
- Porca sardenta! - exclamou Lila.
- Senta-te, meu filho - disse Cornélia Cipião, muito pouco perturbada com toda aquela gritaria. - Quando acabarem, prestar-nos-ão atenção.
- É costume invocarem a genealogia nestas discussões? - perguntou Druso, bem alto por causa dos gritos.
- Com Servília aqui, era inevitável - retorquiu a avó.
Com treze anos, um corpo de rapariga feita, e um rosto encantador, reservado, Servília deveria ter sido afastada das outras crianças dois ou três anos antes, em consequência do castigo que Druso decidira aplicar-lhe. Mas tal não sucedera. E depois de assistir àquela discussão, Druso apercebeu-se de que tinha sido um erro não a afastar dos outros.
Lila, que acabara de fazer doze anos, também já estava muito crescida. Mais bonita que Servília, embora não tão atraente, o seu rosto moreno, a sua expressão franca e travessa, mostravam a toda a gente que género de pessoa ela era. O terceiro membro do grupo dos mais velhos, e muito ligado a ele contra o grupo dos mais novos, era o filho adoptivo de Druso, Marco Lívio Druso Nero Claudiano; tinha nove anos e as bonitas feições dos Cláudios, normalmente reservados e melancólicos. Não era inteligente, mas simpático e dócil.
Vinham depois os filhos de Catão, pois Druso não conseguia admitir que o jovem Cepião fosse filho de Cepião, por muito que Lívia Drusa tivesse insistido. Era extraordinariamente parecido com Catão Saloniano: o mesmo corpo elegantemente musculado, a promessa de que viria a ser alto, a mesma cabeça, as mesmas orelhas, um pescoço alto, braços e pernas longos, e o cabelo muito ruivo. Embora fossem castanhos- claros, os seus olhos só nesse pormenor se assemelhavam aos de Cepião, pois eram uns olhos grandes, rasgados, e fundos. Das seis crianças, o jovem Cepião era o favorito de Druso. Havia nele uma força, uma tendência para assumir responsabilidades, que atraíam Druso; embora ainda não tivesse feito seis anos, o jovem Cepião falava com Druso como um homem maduro e extraordinariamente sensato. Tinha uma voz muito profunda, uma expressão sempre séria e pensativa nos olhos avermelhados. Pouco sorria, excepto quando o seu irmão mais novo, o jovem Catão, fazia alguma coisa que ele achava divertida ou comovente; o seu afecto pelo irmão era tão grande que, quem os visse, seria levado a pensar que o menino de seis anos tinha em relação ao outro uma atitude paternalista. Fosse como fosse, o certo é que Cepião nunca se separava de Catão.
Pórcia, ou Porcela, como lhe chamavam, ia fazer quatro anos. Não era bonita e começava a ter uma imensidão de sardas, sardas enormes, castanhas, que lhe valiam as diatribes constantes das meias-irmãs mais velhas. Servília e Lila detestavam-na e transformavam a sua vida numa verdadeira tortura: beliscavam-na, davam-lhe pontapés e bofetadas, mordiam-lhe, arranhavam-na. O nariz adunco, típico dos Catões, era de facto muito feio; no entanto, os seus olhos, cinzentos-escuros, eram belíssimos, e, quanto a simpatia e bondade, eram qualidades que não lhe faltavam.
O jovem Catão tinha quase três anos. Era um verdadeiro monstro, tanto no físico como de índole. O nariz parecia crescer mais depressa que o resto do corpo: com uma ponta em forma de batata, parecia nada ter a ver com o rosto, que era extremamente belo - uma boca delicada, olhos cinzentos-claros, enormes, luminosos, maçãs do rosto bem desenhadas, um queixo harmonioso. Embora os ombros largos sugerissem que talvez viesse a ter um belo corpo, Catão era extremamente magro, pois não mostrava o mínimo interesse pela comida. Era por natureza irritantemente intrometido, o tipo de mentalidade que Druso mais abominava; uma resposta lúcida e razoável a uma das suas agressivas e detestáveis perguntas servia apenas para suscitar mais e mais perguntas, podendo por isso concluir-se que ou era estúpido, ou demasiado teimoso para entender qualquer outro ponto de vista. A sua característica mais cativante - e ele bem precisava de ter uma! - era a profunda devoção ao jovem Cepião. Recusava-se pura e simplesmente a separar-se do irmão. Quando o seu comportamento se tornava absolutamente intolerável, bastava dizer-lhe que o iam separar do irmão: ficava mais dócil que um cordeiro.
Pouco tempo após o segundo aniversário do jovem Catão, Silão fizera a sua última visita a Druso; Druso era agora um tribuno da plebe, e Silão considerava imprudente mostrar a Roma que a sua amizade era tão forte como dantes. Silão, que também era pai, gostava sempre de ir ver as crianças quando estava em casa de Druso. Por isso prestara alguma atenção a Servília, a pequena espia, embora conseguisse ter o desprendimento necessário para se rir do desprezo com que ela o tratava. Adorava as quatro crianças do meio, brincava mesmo com elas. Mas detestava o jovem Catão, embora não fosse capaz de encontrar um motivo lógico para tal sentimento em relação a uma criança de dois anos.
- Quando estou com ele, sinto-me tal e qual como um animal irracional - dizia Silão a Druso. - Sinto que ele é um inimigo, não sei porquê. É uma reacção instintiva, inexplicável.
Era a resistência espartana da criança que o irritava, ainda que pudesse considerar admirável tal traço de carácter. Quando via aquele minúsculo ser não deitar uma lágrima e manter a mais firme das expressões depois de ter sido maltratado, física ou mentalmente, Silão ficava positivamente fora de si. Porque é que ele reage assim?, perguntava a si mesmo, e não conseguia encontrar uma resposta que o satisfizesse. Talvez porque o jovem Catão nunca se preocupara em esconder o seu desprezo pelos Italianos. Claro que isso era resultado da maligna influência de Servília. No entanto, quando Servília o tratava com desprezo, por ele não ser um Romano puro, o jovem Catão conseguia reagir com indiferença. Enfim, concluía Silão, indiferença era um sentimento que o jovem Catão nunca suscitaria.
Certo dia, furioso com as perguntas impertinentes com que o filho de Catão Saloniano atormentava Druso (e sem compreender como era possível Druso mostrar tanta paciência e amabilidade), Silão pegou no menino e suspendeu-o de uma janela que dava para um jardim cheio de pedras aguçadas.
- Porta-te bem, jovem Catão, ou um dia destes deixo-te cair! disse-lhe Silão.
A criança deixou-se ficar quieta, obstinadamente silenciosa, mais rebelde e segura do que nunca; Silão abanava-o, fingia que ia deixá-lo cair, mas o jovem Catão permanecia mudo e determinado. Até que Silão acabou por pô-lo no chão, reconhecendo a derrota, abanando a cabeça para Druso.
- Ainda bem que ele é um bebé - comentou. - Se fosse um adulto, a Itália nunca conseguiria convencer os Romanos!
Noutra ocasião, Silão perguntou ao jovem Catão de quem é que ele gostava.
- Do meu irmão - respondeu a criança.
- E a seguir ao teu irmão? - perguntou Silão.
- O meu irmão.
- Mas de quem é que gostas mais depois do teu irmão?
- Do meu irmão.
Silão virou-se para Druso.
- Mas ele não gosta de mais ninguém? Não gosta de ti? Não gosta da avó?
Druso encolheu os ombros.
- Parece que ele só gosta do irmão, Quinto Popaedius.
A reacção de Silão ao comportamento do jovem Catão era idêntica à reacção da maior parte das pessoas; aquele menino não despertava, de facto, grandes afectos.
As seis crianças tinham-se dividido sempre em dois grupos, aliando-se os mais velhos contra os filhos de Catão Saloniano. Por isso, a sala onde brincavam mais fazia lembrar um campo de batalha, onde a todo o momento se ouviam berros e guinchos. Era natural e lógico que os Servílio-Livianos dominassem os filhos de Catão Saloniano; porém, depois de ter feito dois anos, o jovem Catão começou a participar nas brigas e os Catonianos ganharam ascendência. Ninguém conseguia vencê-lo ou submetê-lo, fosse de que maneira fosse. O jovem Catão podia não ter muita inteligência, mas era, sem sombra de dúvida, a quinta-essência do adversário nato - infatigável, constante, impertinente, insistente, cruel, monstruoso.
- Não há dúvida, mãe - disse Druso, resumindo o que via na sala de jogos. - Juntaram-se aqui todos os defeitos de Roma.
Mas não foram só Druso e os dirigentes italianos que trabalharam durante esse Verão; Cepião tinha pressionado assiduamente os cavaleiros; por outro lado, associado a Vário, conseguiu reforçar a resistência dos Comitia a Druso; quanto a Filipe, cujas posições eram sempre determinadas pela bolsa, acabou por ser subornado por um grupo de cavaleiros e senadores cujos latifúndios representavam a principal percentagem dos seus bens.
Claro que ninguém sabia o que estava para acontecer, mas o Senado tinha conhecimento de que Druso iria falar na reunião das calendas de Setembro, e fervilhava de curiosidade. Muitos dos senadores, fascinados pelos dons oratórios de Druso na primeira metade desse ano, lamentavam agora que Druso tivesse falado tão bem; a adesão inicial dos senadores tinha-se dissipado, e, por isso, os homens que se reuniram na Cúria Hostília, no primeiro dia de Setembro, estavam decididos a resistir à magia de Druso.
Sexto Júlio César presidia à reunião, pois Setembro era um dos meses em que lhe competiam tais funções, o que implicava que os ritos preliminares fossem escrupulosamente observados. Os senadores sentaram-se e logo desataram num murmúrio inquieto, enquanto eram consultados os presságios, ditas as orações e realizada a missa sacrificial. E quando finalmente o Senado se lançou ao trabalho, tudo o que antecedia o discurso do tribuno da plebe foi rapidamente resolvido.
Chegara finalmente o momento tão esperado. Druso levantou-se do banco tribunício, sob a plataforma onde se sentavam os cônsules, os pretores e os edis curuis, e encaminhou-se para o seu lugar de eleição, junto às grandes portas de bronze, as quais, tal como sucedera noutras ocasiões, se encontravam fechadas a seu pedido.
- Veneráveis dirigentes do nosso país, membros do Senado de Roma - começou ele, num tom brando. - Há alguns meses, falei nesta casa de um demónio terrível que existia no nosso seio - o demónio da ager publicus. Hoje, tenciono falar de um demónio muito mais terrível do que a ager publicus. Um demónio que, se não o esmagarmos, acabará por nos aniquilar. Por provocar o fim de Roma. Estou a falar, naturalmente, do povo que connosco vive nesta península. Do povo a que chamamos Italianos.
Um rumor circulou de uma ponta à outra do Senado, parecendo mais o som de um vento repentino agitando os ramos das árvores ou de um enxame de vespas ao longe do que o som de vozes humanas. Druso ouviu-o, compreendeu o que ele significava, mas prosseguiu como se nada se tivesse passado.
- Nós tratamos esses milhares de homens como cidadãos de terceira classe. Literalmente! O cidadão de primeira classe é o Romano. O cidadão de segunda classe é aquele que beneficia dos Direitos Latinos. E o cidadão de terceira é o Italiano. Ou seja, aquele que consideramos indigno de participar no nosso congresso romano. Aquele que tem de pagar impostos, e que é açoitado, multado, expulso, espoliado, explorado. Aquele a cujos filhos, a cuja mulher, a cuja propriedade, não proporcionamos qualquer expectativa de segurança. Aquele que é convocado para combater nas nossas guerras e que tem de financiar as tropas com que nos ajuda, embora deva consentir que as suas tropas sejam comandadas por nós. Aquele que, se nós tivéssemos cumprido as nossas promessas, não teria de suportar as colónias romanas e latinas nas suas terras, pois nós prometemos total autonomia às nações italianas em troca de tropas e impostos, e depois enganámo-las, implantando as nossas colónias dentro das suas fronteiras, ou seja, retirando-lhes o melhor que eles tinham e negando-lhes a entrada e participação no nosso mundo, na nossa vida.
O barulho crescia, mas a voz de Druso era ainda audível; era como uma tempestade que se aproximava, um enxame cada vez mais perto. Druso sentiu a boca seca e parou para beber água com a maior naturalidade possível. Não podia mostrar-se nervoso. Avançou com o discurso.
- Nós, em Roma, não temos nenhum rei. No entanto, no território da Itália, qualquer um de nós age como se fosse um rei. Porque gostamos dessa sensação, gostamos de ver os nossos inferiores rastejar sob os nossos narizes reais. Gostamos de brincar aos reis! Esta seria uma tendência desculpável se o povo de Itália fosse verdadeiramente inferior a nós. Mas a verdade é que os Italianos não são inferiores a nós, se virmos a questão em termos da sua e da nossa natureza. Eles são sangue do nosso sangue. Se não fossem sangue do nosso sangue, como poderia alguém nesta Casa lançar diatribes contra outro membro desta Casa por causa do seu ”sangue italiano”? Chamam Italiano ao grande e glorioso Caio Mário. E no entanto, foi Caio Mário quem derrotou os Germanos! Chamam ínsubre ao nobre Lúcio Calpúrnio Pisão. No entanto, o seu pai morreu corajosamente em Burdígala! Criticaram o grande Marco António Orador porque casou em segundas núpcias com a filha de um italiano. No entanto, Marco António Orador derrotou os piratas e foi censor!
- Sim, de facto foi censor - interveio Filipe. - E enquanto censor, permitiu que milhares e milhares de italianos se apresentassem no censo como cidadãos romanos!
- Queres dar a entender, Lúcio Márcio, que fui conivente com essa infracção? - perguntou António Orador, num tom ameaçador.
- Sem sombra de dúvida, Marco António! António Orador levantou-se, enorme, corpulento.
- Nesse caso vem cá repetir-me isso ao ouvido! - berrou.
- Ordem! Marco Lívio está no uso da palavra! - disse Sexto César, que já estava com problemas respiratórios. - Lúcio Márcio e Marco António, sentem-se e calem-se! Não estão no uso da palavra!
Druso retomou o discurso.
- Repito o que disse. Os Italianos são sangue do nosso sangue. Contribuíram fortemente para os nossos êxitos, tanto dentro de Itália como no estrangeiro. São bons soldados. São bons agricultores. São bons comerciantes. Têm riquezas. Têm uma nobreza tão antiga quanto a nossa, dirigentes tão educados como os nossos, mulheres tão cultas e refinadas como as nossas. Vivem no mesmo tipo de casas que nós. Comem o mesmo género de comida que nós. Têm tantos peritos em vinhos como nós. São em tudo parecidos connosco.
- Ora! Disparate! - exclamou desdenhosamente Catulo César, apontando para Cneu Pompeu Estrabão, de Piceno. - Reparem-me neste! Nariz arrebitado e cabelo cor de areia! Os Romanos podem ter cabelo ruivo, louro ou branco, mas nunca cor de areia! Ele é um gaulês, não um romano! E se mandasse a minha vontade, ele e todos os outros cogumelos não romanos que crescem na escuridão da nossa querida Cúria Hostília não mais pisariam este local! Caio Mário, Lúcio Calpúrnio Pisão, Quinto Vário, Marco António por ter casado com uma mulher que lhe é inferior, todos os Pompeus que vieram de Piceno com uma palhinha entre os dentes, todos os Dídios da Câmpania, todos os Pédios da Câmpania, todos os Saufeios e Labienos e Apuleios: temos de nos ver livres de toda essa gente!
Um verdadeiro alvoroço percorreu todo o Senado. Fosse por inferência, fosse porque os nomeara, Catulo César conseguira insultar pelo menos um terço dos senadores; mas o que dissera fora muito bem recebido pelos restantes dois terços, nem que fosse pelo facto de Catulo César lhes ter lembrado a sua superioridade. Só Cepião não estava tão exultante como seria de prever - Catulo César tinha nomeado Quinto Vário.
- Terão de me ouvir! - gritou Druso. - Nem que tenhamos de esperar pela noite!
- Eu não te ouvirei! - berrou Filipe.
- Nem eu! - gritou Cepião.
- Marco Lívio está no uso da palavra! Aqueles que se recusarem a permitir que ele fale, serão expulsos desta casa! - gritou Sexto César. - Funcionário! Mande entrar os meus lictores!
O funcionário saiu a correr, logo trazendo os doze lictores de Sexto César, com os fasces aos ombros.
- Mantenham-se aqui no estrado curul! - disse Sexto César bem alto. - Esta assembleia está ingovernável, e é muito provável que vos tenha de pedir para pôr na rua certos homens. - Acenou para Druso.
- Continua, Lívio Druso.
- É minha intenção apresentar um projecto de lei ao concilium plebis cedendo a cidadania romana a todos os homens desde o rio Arno à cidade de Régio, desde o Rubicão até Vereio, desde o mar Toscano até ao mar Adriático! - gritou Druso, bem alto para que o ouvissem.
- É tempo de nos libertarmos desse demónio assustador! É tempo de acabarmos com esta separação entre os homens de Itália! De acabarmos com esta separação entre homens supostamente superiores e homens supostamente inferiores! É tempo de acabarmos com a sobranceria de Roma! Caros Senadores, Roma é Itália! E Itália é Roma! Admitamos de uma vez por todas esse facto! Que todos os homens de Itália sejam considerados iguais, que todos tenham os mesmos direitos e deveres!
A assembleia ficou literalmente frenética. Homens gritavam, ”Não! Não! Não!”, outros batiam com os pés, outros soltavam’ berros de ultraje, outros assobiavam e vaiavam. Cadeiras voavam e iam cair ao pé de Druso. Por todo o lado, punhos cerrados ameaçavam Druso.
Mas Druso permaneceu onde estava, pouco impressionado.
- Hei-de conseguir! - gritou. - Hei-de conseguir a aprovação desta lei!
- Por cima do meu cadáver! - berrou Cepião do estrado. Nesse instante, Druso moveu-se. Virou-se ligeiramente a fim de fitar Cepião.
- Se necessário, será sobre o teu cadáver, grande cretino! Alguma vez falaste com italianos para saber que tipos de homens são? - gritou Druso, tremendo de raiva.
- Na tua casa, Druso, na tua casa. E na tua casa eles falaram de revolta! Uma quantidade deles, uma quantidade de porcos italianos! Silão e Mutilo, Egnácio e Vidacílio, Lampónio e Durónio!
- Isso nunca aconteceu na minha casa! Nunca na minha casa se falou de revolta!
Cepião levantou-se, as faces arroxeadas.
- És um traidor, Druso! Uma desonra para a tua família, uma úlcera no rosto puro de Roma! Levar-te-ei a tribunal por isto!
- Não, meu canalha, tu é que irás responder a tribunal! Que aconteceu ao ouro de Tolosa, Cepião? Conta a esta Casa o que sucedeu a esse ouro! Conta a esta Casa por que razão as tuas empresas estão tão prósperas! Conta a esta Casa todas as ilegalidades que cometeste! gritou Druso.
- Vão permitir que ele fique impune depois de me fazer tais acusações? - berrou Cepião, virando-se para todos os lados da assembleia, as mãos esticadas num gesto de súplica. - Ele é que é o traidor! Ele é que é a víbora!
Entretanto, Sexto César e Escauro Princeps Senatus não se cansavam de pedir ordem à assembleia. Sexto César foi o primeiro a desistir: chamou os lictores, ajustou a toga e, num passo largo e pomposo, abandonou a sala precedido da escolta, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. Alguns dos pretores seguiram-no, mas Quinto Pompeu Rufo saltou do estrado na direcção de Catulo César, no preciso momento em que Cneu Pompeu Estrabão se aproximava também de Catulo. De punhos cerrados e expressão ameaçadora, era indubitável que a vontade de qualquer deles era matar Catulo. Contudo, antes que Pompeu conseguisse atingir o rosto escarninho e arrogante de Catulo César, já Caio Mário se interpunha entre os contendores. Enquanto ele agarrava e dominava por completo os punhos furiosos de Pompeu Estrabão, Crasso Orador sustinha Pompeu Rufo. Os Pompeus foram então levados, sem qualquer cerimónia, para fora da sala, contando então Mário e Crasso Orador com a ajuda de Druso e António Orador. Catulo César, por seu turno, deixou-se ficar de pé, ao lado do seu banco, com um sorriso nos lábios.
- Eles não gostaram do que ouviram - comentou Druso, respirando fundo.
O grupo reunira-se junto à fonte dos Comitia, onde podia abrigar-se e recompor-se; ao fim de algum tempo, rodeava-o já uma pequena multidão de partidários furiosos e indignados.
- Como se atreve Catulo César a dizer uma tal coisa de nós, Pompeus! - gritou Pompeu Estrabão, agarrando-se ao seu remoto primo Pompeu Rufo como se ele fosse um mastro num mar tempestuoso. Se eu tivesse que achar uma cor para o seu cabelo, só poderia ser cor de areia!
- Quin taces. Todos calados! - disse Mário, procurando em vão Sila; de facto, Sila fora até então um dos mais entusiásticos apoiantes de Druso, não perdera uma única assembleia em que Druso falara. Por onde andaria? Tê-lo-iam desencorajado os acontecimentos daquele dia? Estaria a bajular Catulo César? Tudo isso era improvável, mas a verdade é que nem mesmo Mário tinha previsto tanta violência. E onde estava Escauro Princeps Senatus?
- Como se atreve esse licencioso e ingrato Filipe a sugerir que falsifiquei o censo? - perguntou António Orador, com o rosto, já de si corado, muito vermelho. - Aquele verme calou-se quando eu o convidei a dizer-me isso ao ouvido!
- Quando ele te acusou, Marco António, estava também a acusar-me a mim! - disse Lúcio Valério Flaco, abandonando o seu torpor habitual. - Ele pagará por isso, juro que pagará!
- Eles não gostaram do que ouviram - repetia Druso, incapaz de pensar noutra coisa.
- Por certo não esperavas que gostassem, Marco Lívio - disse Escauro, ao fundo do grupo.
- Ainda me apoias, Princeps Senatus? - perguntou Druso quando viu Escauro avançar para o centro do grupo.
- Sim! Claro! - gritou Escauro, agitando as mãos. - Concordo que é tempo de fazermos o que é lógico, nem que seja para evitar uma guerra - disse. - Infelizmente a maior parte das pessoas recusa-se a acreditar que os Italianos poderão desencadear uma guerra contra Roma.
- Descobrirão que estão completamente enganados - disse Druso.
- Sim, descobrirão - disse Mário. Voltou a procurar à sua volta.
- Onde está Lúcio Cornélio Sila?
- Desapareceu - disse Escauro.
- Para as bandas da oposição?
- Não. Foi-se embora, pura e simplesmente - disse Escauro, suspirando. - Quer-me parecer que, desde a morte do filho, não há nada que o entusiasme.
- É verdade - concordou Mário, aliviado. - Mesmo assim, pensava que esta confusão fosse capaz de estimulá-lo.
- Só o tempo poderá curá-lo e estimulá-lo - retorquiu Escauro, que perdera também um filho, de uma forma mais dolorosa que Sila.
- Onde vais depois disto, Marco Lívio? - perguntou Mário.
- Para a Assembleia da Plebe - retorquiu Druso. - Convocarei uma contio para daqui a três dias.
- Encontrarás uma oposição ainda mais forte - disse Crasso Orador.
- Isso pouco me importa - replicou Druso, obstinado. - Jurei que havia de fazer aprovar esta legislação e hei-de consegui-lo!
- Entretanto, Marco Lívio, nós continuaremos a fazer o nosso trabalho no Senado - disse Escauro, tentando confortá-lo.
- Terão de fazer melhor trabalho junto daqueles que Catulo César insultou - comentou Druso com um sorriso amarelo.
- Infelizmente, muitos deles serão os adversários mais tenazes do alargamento da cidadania - disse Pompeu Rufo, com um sorriso arreganhado. - Terão de voltar a falar com os seus primos e tios italianos, depois de terem andado a fingir que não tinham nenhum familiar italiano.
- Parece que já esqueceste o insulto! - atirou-lhe Pompeu Estrabão, que obviamente não tinha esquecido.
- Não, não me esqueci - retorquiu Pompeu Rufo, sorrindo ainda.
- Limitei-me a guardá-lo, a fim de o devolver àqueles que me insultaram. Não faz sentido virar a minha ira contra esta gente boa que aqui está.
Druso realizou a sua contio no quarto dia de Setembro. Os membros da Assembleia da Plebe não faltaram, já que estavam à espera de uma reunião excitante, mas segura; com Druso a presidir, não haveria violência. Contudo, ia ainda Druso nas suas observações preliminares quando apareceu Lúcio Márcio Filipe, escoltado pelos seus lictores e seguido por um vasto grupo de jovens cavaleiros e filhos de senadores.
- Esta assembleia é ilegal! Exijo por isso que seja dissolvida! gritou Filipe, abrindo caminho entre a multidão, atrás dos seus lictores.
- Vá, fora daqui! Ordeno-lhes que dispersem!
- Lúcio Márcio Filipe, permite que te diga que não tens qualquer autoridade para dissolver uma reunião da Plebe legalmente convocada.
- disse Druso, impávido e sereno. - Retorna por isso aos teus assuntos, cônsul júnior.
- Eu sou um plebeu, por isso tenho direito a aqui estar - retorquiu Filipe.
Druso olhou-o com um sorriso brando nos lábios.
- Nesse caso, Lúcio Márcio, comporta-te como um plebeu e não como um cônsul! Assiste à reunião como todos os outros plebeus.
- Esta reunião é ilegal! - teimou Filipe.
- Os augúrios foram declarados auspiciosos, eu segui escrupulosamente a lei para convocar esta contio, e tu estás muito simplesmente a roubar-nos um tempo precioso - disse Druso, logo secundado pelos aplausos da audiência, que talvez não estivesse de acordo com o que Druso proporia, mas que nem por isso deixava de reprovar a interferência de Filipe.
Esse, porém, foi o sinal para os jovens que acompanhavam Filipe começarem a empurrar a multidão, ordenando que se fossem todos embora. Entretanto, esses mesmos jovens iam tirando das togas ameaçadoras mocas.
Vendo as armas, Druso decidiu-se a agir.
- Esta contio está encerrada! - gritou ele dos rostra. - Não permitirei a ninguém que transforme uma reunião ordeira numa mortandade!
Mas nem todos os plebeus o quiseram ouvir; alguns homens começaram, por sua vez, a empurrar os jovens acompanhantes de Filipe, e a confrontação parecia inevitável; Druso teve de descer dos rostra e ir para o meio da multidão, a fim de tentar convencer os membros da assembleia a dispersarem pacificamente.
Nesse instante, porém, um cliente italiano de Caio Mário, amargamente desapontado, não resistiu à ira que dele se apossara. Antes que alguém pudesse detê-lo - incluindo os apáticos lictores do cônsul júnior -, já ele tinha esmurrado o nariz de Filipe; um segundo depois, tinha desaparecido, deixando Filipe agarrado a um nariz que não parava de sangrar, encharcando a imaculada toga.
- É muito bem feito - disse Druso, com um sorriso de todo o tamanho, e logo partiu.
- Procedeste muito bem, Marco Lívio - disse Escauro Princeps Senatus, que tinha visto tudo dos degraus do Senado. - Que temos nós agora?
- Agora? Agora regressamos ao Senado - retorquiu Druso.
Druso regressou de facto ao Senado no sétimo dia de Setembro. Para sua surpresa, a recepção foi melhor; os seus aliados consulares tinham feito um bom trabalho, disso não havia a mínima dúvida.
- Aquilo que o Senado e o Povo de Roma têm de entender - disse Druso, numa voz sonora, firme, impressionantemente séria - é que se continuarmos a negar a cidadania ao povo de Itália, haverá forçosamente guerra. Creiam que não digo isto levianamente! E antes que algum de vós comece a ridicularizar a ideia de que o povo de Itália é um inimigo de respeito, lembrarei que os Italianos participam, ao nosso lado, nas nossas guerras, há quatrocentos anos. Ao nosso lado, e não só: nalguns casos, contra nós. Eles sabem como nós nos comportamos na guerra. Eles sabem como nós lutamos e lutam tal e qual como nós. No passado, foi com grande dificuldade que Roma venceu uma ou duas das nações italianas. Haverá aqui alguém que já tenha esquecido Canas? Mas a derrota de Canas foi-nos inflingida por uma só nação italiana: Sâmnio. Antes de Arausio, Canas constituiu a mais terrível derrota sofrida por Roma. Imaginemos agora que as várias nações italianas decidem unir-se e declarar-nos guerra. A questão que ponho a mim mesmo, e a todos vós, num tal caso, é esta: Roma conseguirá vencê-las?
Uma onda de inquietação varreu o Senado de uma ponta à outra, como um vento percorrendo uma floresta de frágeis árvores, um vento a que se assemelhava também o suspiro colectivo que se ouviu.
- Eu sei que a grande maioria de vós crê que a guerra é absolutamente impossível. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque não acreditam que os Aliados Italianos consigam chegar a um entendimento para se unirem contra um inimigo comum; em segundo lugar, porque não acreditam que nenhuma nação em Itália, exceptuando naturalmente Roma, esteja preparada para a guerra. Mesmo entre aqueles que me apoiam activamente, há homens que não conseguem acreditar que os Aliados Italianos estejam preparados para a guerra. Aliás, talvez não fosse inexacto se eu dissesse que nenhum dos que me apoiam activamente acredita que a Itália está preparada para a guerra. Onde estão as armas e as armaduras?, perguntam. Onde está o equipamento? Onde estão os soldados? E eu respondo: os soldados estão preparados, equipados, armados. A Itália está preparada para a guerra. Se não concedermos a cidadania à Itália, a Itália destruir-nos-á na guerra.
Fez uma pausa, abriu os braços.
- Suponho, caros Senadores, que entendem que uma guerra entre Roma e Itália será uma guerra civil! Será um conflito entre irmãos! Um conflito na terra a que chamamos nossa, e a que eles chamam sua. Como vamos justificar, perante os nossos netos, a ruína da nossa riqueza, das suas heranças? Com as débeis razões que oiço nesta assembleia sempre que ela se reúne? Numa guerra civil, não há vitória. Não há despojos. Não há escravos para vender. Pensem naquilo que vos peço com o maior cuidado, com o maior desprendimento! Este não é um problema susceptível de ser julgado emocionalmente. Não é um problema que se possa abordar com preconceitos ou com ligeireza. O meu discurso tem um único objectivo: tentar salvar a minha querida Roma dos horrores da guerra civil.
Desta feita, o Senado escutava-o. Druso começava a nutrir algumas esperanças. Até mesmo Filipe que, com um ar furioso, murmurava algo de indistinto de quando em quando, não o interrompeu. Tal como não o interrompeu o malévolo e vociferante Cepião - e isso talvez fosse ainda mais significativo. A menos que ambos tivessem congeminado novas tácticas durante aquele intervalo de seis dias. No caso de Cepião, era muito provável que ele quisesse, pura e simplesmente, evitar ficar com um nariz inchado e ferido como o de Filipe.
Depois de Druso ter falado, foi a vez de intervirem Escauro Princeps Senatus, Crasso Orador, António Orador e Cévola, que, como se esperava, apoiaram Druso. E o Senado escutou atentamente todos esses discursos.
Mas quando Caio Mário se levantou para falar, a paz acabou. No preciso momento em que Druso pensava ter ganho aquela causa. Mais tarde, Druso foi levado a concluir que Filipe e Cepião tinham de facto planeado a sua actuação.
Filipe ergueu-se de imediato.
- Basta! - gritou, saltando do estrado curul. - Basta! Quem és tu, Marco Lívio Druso, para corromper a mente e os princípios de homens tão notáveis como o nosso Princeps Senatus? Que o italiano Mário esteja do teu lado, é inevitável, mas o presidente do Senado? Ah, os meus ouvidos! Os meus ouvidos! Será que os meus ouvidos ouviram realmente aquilo que alguns dos nossos mais veneráveis ex-cônsules disseram hoje aqui?
- O teu nariz! O teu nariz! Será que ele cheira tão mal como tu, Filipe? - atirou-lhe, sarcástico, António Orador.
- Tace, amante de italianas! - gritou Filipe. - Cala essa boca miserável! Recolhe esses cornos italianos!
Mal ouviu tal insulto, António Orador levantou-se do seu banco, pronto a atirar-se a Filipe. Mário e Crasso Orador, no entanto, foram a tempo de detê-lo.
- Terão de me ouvir! - berrou Filipe. - Prestem bem atenção ao que vos foi dito! Não se deixem conduzir como um rebanho! Guerra! Como poderá haver guerra? Os italianos não têm armas nem homens! Como poderiam travar uma guerra com um rebanho de ovelhas: mesmo com um rebanho como este que vejo no Senado?
Sexto César e Escauro Princeps Senatus pediam silêncio e ordem desde que Filipe começara a falar; Sexto César, porém, acabou por chamar os seus lictores que, por precaução, se encontravam dentro do edifício do Senado. No entanto, antes que os lictores conseguissem abeirar-se de Filipe, já este tinha despido a toga debruada de púrpura, atirando-a de seguida a Escauro.
- Fica com ela, Escauro! Fica com ela, traidor! Fiquem com ela, vocês todos! Eu vou para Roma procurar outro governo!
- E eu - disse Cepião, deixando o estrado - vou para os Comitia, a fim de reunir todo o Povo, patrícios e plebeus!
Uma verdadeira anarquia apoderou-se então de todo o Senado. Os senadores das filas de trás puseram-se a andar de um lado para outro, sem paragem nem sentido, Escauro e Sexto César continuavam a pedir ordem na sala, e a maior parte dos que se sentavam nas filas do meio e da frente correram atrás de Filipe e Cepião.
A parte baixa do Fórum Romano estava cheia de gente esperando por notícias sobre aquela reunião do Senado. Cepião encaminhou-se imediatamente para os rostra, e daí pediu a todo o povo romano que se reunisse nas suas tribos. Sem se preocupar com formalidades nem com o facto de a reunião do Senado não ter sido legalmente encerrada, o que implicava que não podiam ser convocados Comitia -, Cepião lançou-se numa diatribe contra Druso, que, nesse momento, se encontrava já ao seu lado nos rostra.
- Olhem para ele, o traidor! - gritou Cepião. - O seu objectivo é dar a nossa cidadania, a cidadania romana, aos porcos dos Italianos, a todos eles, a todos os pastores samnitas, esses miseráveis pastores que são enxames de pulgas, a todos os rústicos picentinos, essa gente mentalmente atrasada, a todos os miseráveis bandidos e salteadores da Lucânia e de Brútio! E o nosso Senado é tão idiota que está prestes a permitir que este traidor faça o que quer! Mas eu não deixarei que o Senado faça isso! Eu não permitirei que este traidor ponha em prática o seu plano!
Druso virou-se para os outros nove tribunos da plebe que o tinham acompanhado aos rostra; estivessem ou não de acordo com a proposta de Druso, a verdade é que nenhum deles ficara satisfeito com as afirmações do patrício Cepião. Cepião tinha convocado a Assembleia de Todo o Povo, é certo, mas fizera-o sem que o Senado tivesse concluído a sua reunião; além disso, usurpara o território dos tribunos da plebe da forma mais arrogante possível; até mesmo Minício estava irritado.
- Vou acabar de vez com esta farsa - disse Druso, com uma expressão determinada. - Estão todos comigo?
- Todos estamos contigo - respondeu-lhe Saufeio, que era um dos seus partidários.
Druso avançou.
- Esta assembleia foi ilegalmente convocada e por isso veto o seu prosseguimento!
- Desaparece da minha assembleia, traidor! - gritou Cepião. Druso ignorou-o.
- Regressem a casa, homens desta cidade! Opus o meu veto a esta assembleia porque ela não é legal! O Senado, oficialmente, encontra-se ainda reunido!
- Traidor! Povo de Roma, com que direito te dá ordens um homem que pretende vender ao desbarato o teu mais precioso bem? - gritou Cepião.
Druso perdeu a paciência.
- Prendam este imbecil, tribunos da plebe! - exclamou, acenando para Saufeio.
Nove homens rodearam Cepião e dominaram-no facilmente; Filipe, que se encontrava em baixo, seguindo com atenção o que se passava nos rostra, lembrou-se de repente que tinha assuntos urgentes a tratar e, num ápice, desapareceu.
- Já chega, Quinto Servílio Cepião! - disse Druso, numa voz que podia ser ouvida em todo o baixo Fórum. - Eu sou um tribuno da plebe, e tu impediste-me de cumprir os meus deveres! Presta atenção, porque não te aviso mais. Desiste de uma vez por todas, ou farei com que te atirem da rocha Tarpeia!
A fonte dos Comitia era um feudo de Druso, e Cepião entendeu isso ao reparar no brilho dos olhos de Druso; o velho rancor entre patrícios e plebeus emergia claramente naquela situação. Se Druso ordenasse aos membros do seu Colégio que atirassem Cepião da rocha Tarpeia abaixo, Druso seria obedecido.
- Ainda não venceste! - gritou Cepião, depois de se libertar das mãos que o prendiam. Num instante, desapareceu, perguntando a toda a gente onde estava Filipe.
- Será que Filipe já está farto do seu hóspede? - disse Druso a Saufeio, enquanto observavam a desajeitada correria de Cepião.
- Quanto a mim, já estou farto dos dois - retorquiu Saufeio, suspirando tristemente. - Crês, Marco Lívio, que o Senado teria aprovado a tua proposta caso a reunião tivesse ido até ao fim?
- Não tenho a mínima dúvida. Porque achas que Filipe teve aquele repentino acesso de cólera? Mas que péssimo actor que ele me saiu!
- disse Druso, rindo-se. - Até despiu a toga! Que mais fará ele?
- Não te sentes decepcionado?
- Muitíssimo. Mas não é assim que me vão fazer parar. Enquanto viver, lutarei pelas minhas ideias.
O Senado retomou as suas deliberações nos Idos, oficialmente um dia de descanso, e, por isso, um dia para o qual não podiam ser convocados Comitia. Cepião não teria qualquer desculpa para abandonar a sessão.
Sexto César tinha um ar exausto. A sua respiração ofegante ouvia-se em todo o Senado. Porém, mal terminaram as cerimónias iniciais, levantou-se para falar.
- Não voltarei a tolerar acontecimentos como os que se passaram na última reunião do Senado - disse ele, com voz clara, arrebatadora.
- O facto de a principal fonte de problemas se encontrar precisamente no pódio curul torna toda esta situação ainda mais humilhante. Lúcio Márcio e Quinto Servílio Cepião, terão de comportar-se de acordo com a dignidade dos vossos cargos! Dignidade que, permitam-me que vos informe, nenhum de vocês possui! Qualquer um de vocês aviltou o cargo que ocupa! Caso persistam nesse comportamento ilegal e sacrílego, mandarei osfasces para o templo de Vénus Libitina, e porei a questão à consideração dos eleitores nas respectivas Centúrias. Acenou para Filipe. - Encontras-te no uso da palavra, Lúcio Márcio. Mas ouve-me bem! Estou farto de incidentes! Tal como o presidente desta Casa.
- Não te agradeço, Sexto Júlio, tal como não agradeço ao presidente do Senado, nem a todos os outros senadores que se mascaram de patriotas - disse Filipe sem qualquer pejo. - Como pode um homem dizer que é patriota se, ao mesmo tempo, pretende dar a nossa cidadania aos Italianos? A resposta é simples: um patriota não pode cometer tal acto! A cidadania romana é para os Romanos. Não poderá ser facultada a quem não esteja, por laços familiares, pela sua linhagem, e por imperativos legais, autorizado a tê-la. Nós somos os filhos de Quirino. Os Italianos não o são. E isto, cônsul sénior, é tudo o que tenho a dizer. Nada mais há a dizer.
- Há muito mais a dizer! - contrapôs Druso. - Sim, é indiscutível que nós somos os filhos de Quirino. No entanto, Quirino não é um deus romano! Quirino é um deus dos Sabinos, e por isso encontra-se no Quirinal, local onde, outrora, se situava a cidade dos Sabinos. Por outras palavras, Lúcio Márcio, Quirino é um deus italiano! Rómulo introduziu-o no nosso seio. Rómulo fê-lo romano. Mas Quirino pertence também ao povo de Itália. Como podemos trair Roma se a tornamos mais poderosa? Porque tornaremos Roma mais poderosa se dermos a cidadania a toda a Itália. Roma será Itália, e poderosa. Itália será Roma, e poderosa. Aquilo que possuímos enquanto descendentes de Rómulo será nosso para sempre, exclusivamente nosso. Isso nunca poderá pertencer a outro povo. Mas aquilo que Rómulo nos deu não foi a cidadania! A cidadania, já nós a demos a muitos que não podem dizer que são filhos de Rómulo, a muitos que não são nativos da cidade de Roma. Se é a Romanidade que está em causa, então por que razão está sentado neste augusto Senado um homem como Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis? Reparei, Quinto Servílio Cepião, que tanto tu como Lúcio Márcio se abstiveram de referir esse nome quando pretenderam impugnar a Romanidade de certos membros desta Casa! E no entanto Quinto Vário não é de modo nenhum um Romano! Quinto Vário nunca viu esta cidade, nem falou latim nas nossas reuniões, antes dos vinte anos! E no entanto, ei-lo sentado, pela graça de Quirino, no Senado de Roma. Um homem que é muito menos Romano nos seus pensamentos, no seu discurso, no seu modo de ver as coisas, do que qualquer Italiano! Se fizermos o que Lúcio Márcio Filipe propõe, se limitarmos a cidadania de Roma àqueles, de entre nós, que podem usufruí-la devido aos laços familiares, à linhagem, aos imperativos legais, então o primeiro homem a abandonar esta Casa e a cidade de Roma terá de ser Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis! Ele é que é o estrangeiro!
A intervenção de Druso suscitou as mais variadas imprecações de Vário, apesar de, na sua qualidade de pedarius, não ter autorização para falar.
Sexto César fez apelo a todas as suas forças e tão alto gritou, pedindo ordem e silêncio, que Vário não demorou um segundo a calar-se.
- Marco Emílio, presidente desta Casa, vejo que pretendes falar. Por favor.
Escauro estava furioso.
- Não permitirei que esta Casa desça ao nível da arena só porque, desgraçadamente, temos entre nós magistrados curuis que nem para limpar o vomitado das ruas prestam! Também não me referirei ao direito que qualquer homem tem de se sentar neste augusto Senado! Tudo o que quero dizer é isto: se esta Casa quiser sobreviver, e se Roma quiser sobreviver!, teremos de nos mostrar tão liberais em relação aos Italianos, no que toca à cidadania, como temos sido em relação a certos homens que hoje estão sentados nesta Casa.
Mas Filipe estava já levantado.
- Sexto Júlio, quando autorizaste o presidente desta Casa a falar, não te deste conta de que eu queria falar. Na minha qualidade de cônsul, tenho o direito de falar em primeiro lugar.
Sexto César pestanejou, surpreso.
- Pensei que já tinhas acabado, Lúcio Márcio. Não acabaste, então, o teu discurso?
- Não.
- Fazias então o favor de concluí-lo? Importas-te de esperar pela conclusão do discurso do cônsul júnior, Princeps Senatus?
- Claro que não - respondeu afavelmente Escauro, sentando-se imediatamente.
- Proponho - disse Filipe, num tom grave - que esta Casa revogue todas as leis que Marco Lívio Druso promulgou. Nenhuma delas foi legalmente aprovada.
- Nunca ouvi maior disparate na minha vida! - exclamou Escauro indignado. - Nunca houve na história do Senado um tribuno da plebe como Marco Lívio Druso no que toca ao rigoroso cumprimento dos procedimentos legais!
- Apesar disso, as suas leis não são válidas - retorquiu Filipe, cujo nariz deveria estar a latejar, pois não parava de mexer na informe bola que tinha no meio da cara. - Os deuses manifestaram o seu desacordo.
- As assembleias que convoquei contaram com a aprovação dos deuses - retorquiu categoricamente Druso.
- Essas assembleias são sacrílegas. Os acontecimentos ocorridos na Itália nos últimos dez meses provam-no claramente - disse Filipe.
- Toda a Itália tem sido devastada por manifestações da ira dos deuses!
- Ora, francamente, Lúcio Márcio! A Itália sempre foi devastada por manifestações da ira dos deuses! - comentou Escauro, já sem paciência para o ouvir mais.
- Mas nunca como este ano! - exclamou Filipe. Depois de respirar fundo, o cônsul júnior prosseguiu: - Proponho que o Senado recomende à Assembleia de Todo o Povo a anulação das leis de Marco Lívio Druso, pelo facto de os deuses terem demonstrado claramente a sua indignação. Agradecia, Sexto Júlio, que pusesses a minha proposta à votação.
Escauro e Mário fitavam Filipe com uma expressão intrigada. Sentiam que aquela moção escondia qualquer coisa, mas não entendiam o quê. Que Filipe seria derrotado, era mais que certo. Porque insistia então numa votação, depois de discurso tão breve e tão pouco inspirado?
O Senado votou. Filipe perdeu por larga maioria. Ficou completamente fora de si, desatou a arengar, aos berros; tamanha era a sua fúria que, enquanto gritava, saía-lhe da boca uma verdadeira chuva de cuspo. O pretor urbano, Quinto Pompeu Rufo, que estava a seu lado no estrado, cobriu ostensivamente a cabeça para não apanhar com o cuspo.
- Ingratos! Gananciosos! Imbecis! Carneiros! Insectos! Lixo! Rebotalho! Vermes! Pederastas! Viciados na felação! Violadores de meninas! Carne putrefacta! Remoinhos de avareza! - Foram alguns dos nomes com que Filipe brindou os seus colegas do Senado.
Sexto César deixou-o gritar até se cansar. Depois, mandou o chefe dos lictores bater com os feixes no chão, o que provocava sempre um ruído impressionante.
- Basta! - gritou por fim. - Senta-te e acalma-te, Lúcio Márcio, ou terei de te expulsar desta assembleia!
Filipe sentou-se, arquejante. Caía-lhe do nariz um líquido cor de palha.
- Sacrilégio! - berrou de novo, num tom sinistro. Sentou-se então de novo. Aparentemente, tinha terminado.
- Qual é a ideia dele? - perguntou Escauro a Mário, numa voz sumida.
- Dava tudo para saber! - retorquiu Mário. Crasso Orador levantou-se então.
- Posso falar, Sexto Júlio?
- Podes falar, Lúcio Licínio.
- Não quero falar dos Italianos, nem da cidadania romana, que todos tanto prezamos, nem das leis de Marco Lívio - disse Crasso Orador, com a sua bela e sedutora voz. - Vou falar do cargo de cônsul, e começarei por dizer que sou senador há muito tempo e nunca vi tal cargo ser tão ofendido, degradado e rebaixado como nos últimos dias. E o responsável por isso é Lúcio Márcio Filipe. Um homem que assim trata tal cargo - o mais elevado em todo o mundo!
- deveria ser impedido de o assumir! Contudo, quando os eleitores escolhem um homem, o comportamento deste não é determinado por nenhuma lei, mas unicamente pela sua inteligência e educação, e pelos muitos exemplos que lhe oferecem a mós maiorum.
”Ser cônsul de Roma é ficar a pouca distância dos deuses e muito mais alto do que qualquer rei. O cargo de cônsul é livremente atribuído e não depende de posições de força ou do poder punitivo. Durante um ano, o cônsul é a suprema autoridade, o seu poder sobrepõe-se ao de qualquer governador. Ele é o comandante-chefe dos exércitos, o chefe do governo, o dirigente do Tesouro, e é a figura de proa de tudo o que a República de Roma representa! Seja ele patrício ou um Homem Novo, seja ele fabulosamente rico ou relativamente pobre, o que conta, o que é importante, é que ele é o cônsul. Só um homem o iguala: o outro cônsul. Os seus nomes ficam inscritos nosfasíi consulares, onde resplandecem por toda a eternidade.
”Eu já fui cônsul. Cerca de trinta homens aqui presentes terão sido já cônsules, e alguns deles foram também censores. Quero perguntar-lhes como se sentem neste momento. Como se sentem neste momento, antigos cônsules, depois de tudo o que Lúcio Márcio Filipe tem feito desde o início do mês? Sentem-se como eu? Emporcalhados? Humilhados? Acham bem que este cônsul, eleito à terceira tentativa, passe sem uma censura? Acham mal? Óptimo! Eu também acho mal, estimados ex-cônsules!”
Crasso Orador virou as costas às filas da frente e lançou um olhar penetrante a Filipe.
- Lúcio Márcio Filipe, tu és o pior de todos os cônsules que já conheci! Se eu estivesse sentado na cadeira de Sexto Júlio, não teria um décimo da paciência que ele demonstra ter! Como te atreves a passear pelas vici da nossa querida cidade, acompanhado pela tua escolta de doze lictores, intitulando-te cônsul? Tu não és um cônsul! Tu não prestas nem para lamber as botas de um cônsul! De facto, se me permitem que cite o presidente deste Senado, tu não prestas nem para limpar o vomitado das ruas! Em vez de seres um modelo para os mais novos, tanto os que estão presentes nesta assembleia como os que se encontram lá fora no Fórum, comportas-te como o maior dos demagogos que alguma vez arengou dos rostra, como a criatura mais desbocada e inoportuna que alguma vez apareceu entre as multidões do Fórum! Como te atreves a aproveitar a tua posição para lançar vitupérios a membros desta Casa? Como te atreves a deduzir que outros homens agiram ilegalmente? - Apontou para Filipe, respirou fundo e deixou que a sua sonora voz atroasse em todo o Senado. - Já te suportei demasiado, Lúcio Márcio Filipe! Por isso, aconselho-te: comporta-te como um cônsul, ou então fica em casa!
Quando Crasso Orador regressou ao seu lugar, o Senado aplaudiu vibrantemente; Filipe não tirava os olhos do chão: ninguém lhe via o rosto. Quanto a Cepião, os seus olhos, indignados, não largavam Crasso Orador.
Sexto César pigarreou.
- Obrigado, Lúcio Licínio, por me teres lembrado a mim, e a todos os que desempenharam este cargo, o que significa ser cônsul. Espero que Lúcio Márcio tenha prestado tanta atenção às tuas palavras como eu prestei. E como parece que nenhum de nós, na presente atmosfera, poderá comportar-se decentemente, dou por encerrada esta assembleia. O Senado voltará a reunir dentro de oito dias. Estamos no meio dos ludi Romani e considero que é nossa obrigação encontrar um meio mais adequado de saudar Roma e Rómulo do que estas reuniões tempestuosas do Senado. Desejo-lhes por isso umas boas férias, veneráveis Senadores. Divirtam-se com os Jogos.
Escauro Princeps Senatus, Druso, Crasso Orador, Cévola, António Orador e Quinto Pompeu Rufo seguiram dali para a casa de Caio Mário, a fim de discutirem os acontecimentos do dia e beberem um copo de vinho.
- Esmagaste-o por completo. Lúcio Licínio! Foi um belo discurso!
- comentou Escauro, extremamente satisfeito, enquanto bebia sofregamente o vinho, tanta era a sua sede.
- Memorável, sem dúvida - acrescentou António Orador.
- Também tenho de te agradecer, Lúcio Licínio - disse Druso, sorridente.
Crasso Orador ouviu todos aqueles elogios com conveniente modéstia. Limitou-se a responder:
- Sim, mas a verdade é que aquele louco estava mesmo a pedir uma tareia!
Como estava ainda muito calor em Roma, todos tinham tirado a toga, indo depois para o jardim, onde se instalaram confortavelmente.
- O que eu gostava de saber é o que Filipe anda a congeminar disse Mário, sentado na beira do lago do peristilo.
- Também eu - disse Escauro.
- Mas porque haveria ele de andar a congeminar alguma coisa? perguntou Pompeu Rufo. - Filipe é apenas um indivíduo grosseiro, mal-educado e estúpido. Sempre foi assim.
- Não - retorquiu Mário. - Tenho a certeza de que há um plano qualquer naquela cabeça imunda. Hoje, por um instante, tive a sensação de perceber que plano era esse. Mas a minha perspicácia não durou muito tempo e agora não consigo lembrar-me do que me passou pela cabeça nesse momento.
Escauro suspirou.
- Pois bem, Caio Mário, de uma coisa podes ter a certeza: acabaremos por descobrir que plano é esse! Provavelmente na próxima assembleia.
- É capaz de ser uma reunião interessante - comentou Crasso Orador, estremecendo de repente. Doía-lhe o ombro esquerdo: massajou-o. - Mas por que é que eu ando tão cansado e cheio de dores ultimamente? O discurso nem sequer foi longo. Bom, não foi longo, de facto, mas foi um discurso furioso, disso não há dúvida.
Aquela noite viria a revelar que Crasso Orador pagara bem caro o seu discurso. A sua esposa, a jovem Múcia, filha de Cévola, o Augure, acordara ao nascer do dia cheia de frio; aconchegando-se ao marido, descobriu que ele estava horrivelmente gelado. Tinha morrido horas antes, no auge da sua carreira, no zénite da fama.
A morte de Crasso Orador foi uma catástrofe para Druso, Mário, Escauro, Cévola e todos os seus partidários; para Filipe e Cepião, era mais um argumento a seu favor. Com renovado entusiasmo, Filipe e Cepião não largavam os pedarii do Senado, tentando convencê-los da justeza da sua posição. E depois dos ludi Romani, quando o Senado voltou a reunir, a sua posição era sem dúvida excelente.
- É minha intenção voltar a pedir uma votação acerca das leis de Marco Lívio Druso - disse Filipe num tom suave, aparentemente decidido a comportar-se como um cônsul modelar. - Compreendo que muitos de vós estejam cansados de toda esta oposição às leis de Marco Lívio, e estou consciente de que a maior parte dos membros do Senado crê que as leis de Marco Lívio são absolutamente válidas. Notem, porém, que eu nunca disse que os auspícios religiosos não foram observados, que não foram cumpridos os preceitos legais no que toca aos Comitia, que não foi obtido o assentimento do Senado antes de as leis terem sido aprovadas nos Comitia.
Filipe avançou para o extremo frontal do estrado, e então falou mais alto.
- No entanto, há de facto um impedimento religioso! Um impedimento religioso tão forte, um aviso tão claro, que nenhum de nós, em consciência, poderá ignorá-lo. Não saberei explicar por que razão os deuses recorrem a tais artifícios. Não sou perito na matéria. Mas a verdade é que enquanto os augúrios eram interpretados favoravelmente antes de todas as reuniões da Assembleia da Plebe conduzidas por Marco Lívio, por toda a Itália surgiam sinais dos deuses que revelavam a sua tremenda ira. Eu próprio sou um augure, veneráveis Senadores. E é muito claro aos meus olhos que foi cometido um sacrilégio.
Filipe estendeu a mão, e o seu assistente passou-lhe um rolo de pergaminho que ele desdobrou.
- No décimo quarto dia antes das Calendas de Janeiro, o dia em que Marco Lívio fez aprovar no Senado a sua lei regulamentando os tribunais e alargando o Senado, os escravos públicos deslocaram-se ao templo de Saturno a fim de o prepararem para as festas do dia seguinte. O dia seguinte, se bem se lembram, era o dia de abertura das Saturnais. Ora esses escravos encontraram as faixas de lã que cobrem a estátua de madeira de Saturno empapadas de óleo. Havia uma poça de óleo no chão e o interior da estátua estava seco. Não havia dúvida que tal derramamento era recente. Saturno, como toda a gente concordou na altura, estava zangado com qualquer coisa!
”No dia em que Marco Lívio Druso fez aprovar as suas leis sobre os tribunais e o alargamento do Senado na Assembleia da Plebe, o escravo-padre de Nemi foi assassinado por outro escravo, o qual, de acordo com os costumes aí prevalecentes, se tornou o novo escravo-padre. Mas o nível das águas do lago sagrado de Nemi baixou subitamente um palmo, e o novo escravo-padre morreu sem explicação, o que é um terrível presságio.
”No dia em que Marco Lívio Druso promulgou no Senado a sua lei sobre a ager pitblicus, houve uma chuva de sangue na ager Campânias, e uma tremenda praga de rãs na ager publicus da Etrúria.
”No dia em que a lex Lívia agraria foi aprovada na Assembleia da Plebe, os padres de Lanúvio descobriram que os escudos sagrados tinham sido roídos por ratos: um presságio absolutamente assustador. Por isso, levaram imediatamente os escudos para o nosso Colégio de Pontífices em Roma.
”No dia em que o Conselho dos Cinco do tribuno da plebe Saufeio deu início ao emparcelamento da ager publicus da Itália e da Sicília, o templo da deusa Piedade, no Campo de Marte, perto do Circo Flamínio, foi atingido pelos raios, ficando muito danificado.
”No dia em que a lei dos cereais de Marco Lívio Druso foi aprovada na Assembleia da Plebe, verificou-se que a estátua da deusa Angerona tinha suado profusamente. As faixas que lhe atavam a boca tinham escorregado e houve quem jurasse que a tinha ouvido murmurar o secreto nome de Roma, feliz por poder finalmente falar.
”Nas calendas de Setembro, dia em que Marco Lívio Druso apresentou nesta Casa a sua proposta de lei visando dar aos Italianos a nossa preciosa cidadania, um terrível terramoto destruiu por completo a cidade de Mutina, na Gália Italiana. O vidente Públio Cornélio Culéolo interpretou este presságio. Para ele, significa que toda a Gália Italiana está furiosa com o facto de a cidadania não lhe ser concedida. Uma indicação, veneráveis Senadores, de que se concedermos a cidadania à Itália peninsular, todas as outras possessões de Roma a reinvidicarão também.
”No dia em que publicamente me censurou nesta Casa, o eminente ex-cônsul Lúcio Licínio Crasso Orador faleceu misteriosamente na sua cama, e de manhã estava já gelado.
”Há muitos outros presságios, veneráveis Senadores”, prosseguiu Filipe, sem precisar de elevar a voz, pois o silêncio era total. ”Referi apenas aqueles que se verificaram nos dias em que as leis de Marco Lívio Druso foram promulgadas ou ratificadas. Mas dar-vos-ei agora uma nova lista.
”Um raio danificou a estátua de Júpiter Lacial, no monte Albano: um presságio terrível. No último dia dos ludi Romani, recentemente realizados, uma chuva de sangue caiu sobre o templo de Quirino e em mais nenhum sítio. Que tremendo sinal este! As lanças sagradas de Marte mexeram-se. Um tremor de terra derrubou o templo de Marte, em Cápua. A fonte sagrada de Hércules, em Ancona, secou pela primeira vez, e não há seca na região. Uma ravina de fogo abriu-se de repente numa das ruas de Putéolos. Todos os portões das muralhas da cidade de Pompeia fecharam-se sozinhos, súbita e misteriosamente.
”E há mais, veneráveis Senadores, muitos mais sinais da ira dos deuses! Afixarei a lista de todos estes presságios nos rostra, para que todos os Romanos possam ver, com os seus próprios olhos, que os deuses condenam inexoravelmente estas leis de Marco Lívio Druso. Porque os deuses condenam essas leis! Reparem nos deuses que se manifestaram! A deusa Piedade, a deusa da lealdade e dos deveres familiares. Quirino, o deus das assembleias dos homens romanos. Júpiter Lacial, que é o Júpiter latino. Hércules, o protector do poder militar romano e patrono dos generais romanos. Marte, deus da guerra. Vulcano, que controla os lagos de fogo que existem sob a terra italiana.
Angerona, que conhece o secreto nome de Roma - o qual, se for dito, poderá levar Roma à ruína. Saturno, que mantém intacta a riqueza de Roma, e que preside à nossa permanência através dos tempos.”
- No entanto - disse Escauro Princeps Senatus lentamente -, todos esses presságios poderão indicar, pelo contrário, que a Itália e Roma passarão por tremendos horrores se as leis de Marco Lívio Druso não forem mantidas nas tábuas.
Filipe ignorou-o, enquanto devolvia o rolo ao seu assistente.
- Afixa-o nos rostra imediatamente - disse. Desceu do estrado curul e foi postar-se em frente do banco tribunício. - Pretendo que esta Casa vote. Todos os que defendem que as leis de Marco Lívio Druso são inválidas colocar-se-ão à minha direita. Todos os que defendem que as leis de Marco Lívio Druso devem permanecer nas tábuas, colocar-se-ão à minha esquerda. Proponho que procedamos a esta divisão imediatamente.
- Eu serei o primeiro, Lúcio Márcio - disse Aenobarbo Pontifex Maximus, levantando-se. - Na minha qualidade de Pontifex Maximus, devo dizer que os teus argumentos me convenceram por completo.
Um Senado silencioso abandonou as bancadas. Muitos dos rostos estavam tão brancos como as togas. A maior parte dos senadores foi-se colocar à direita de Filipe, de olhos postos no chão de laje.
- Esta divisão é concludente - disse Sexto César. - O Senado acaba de aprovar que as leis do tribunato de Marco Lívio Druso sejam retiradas dos nossos arquivos e que as tábuas sejam destruídas. Para tal convocarei a Assembleia de Todo o Povo para daqui a três dias.
Druso foi o último homem a retirar-se para o seu lugar. Quando percorreu a curta distância que o separava do banco tribunício, manteve a cabeça levantada.
- É evidente, Marco Lívio, que tens o direito de opor o teu veto.
- disse Filipe, afavelmente, quando Druso passou por ele; todos os senadores pararam para ver.
Druso, muito pálido, lançou a Filipe um olhar furioso.
- Não, Lúcio Márcio, eu nunca faria uma coisa dessas - retorquiu ele, num tom também afável. - Eu não sou um demagogo! Os meus deveres enquanto tribuno da plebe são sempre cumpridos com o consentimento desta assembleia, e os meus pares nesta assembleia declararam as minhas leis nulas e sem valor. Como é meu dever, respeitarei a decisão do Senado.
- Aquela resposta acabou por dar a vitória ao nosso querido Marco Lívio! - disse Escauro a Cévola, cheio de orgulho, quando a reunião terminou.
- Disso não há dúvida - concordou Cévola, dando aos ombros com um ar infeliz. - O que é que tu realmente achas dos presságios?
- Acho duas coisas. Em primeiro lugar, nunca vi ninguém preocupar-se em fazer uma lista de desastres naturais com tanta eficácia. Em segundo lugar, acho que os presságios significam que haverá guerra com Itália se as leis de Marco Lívio forem anuladas. Se é que significam alguma coisa.
Cévola, naturalmente, tinha votado com Escauro e com os outros apoiantes de Druso; se o não fizesse, dificilmente manteria aquelas amizades. No entanto, era evidente que estava perturbado.
- Sim, mas... - retorquiu, hesitante.
- Quinto Múcio, não me digas que acreditas! - exclamou, incrédulo, Mário.
- Não, não, eu não estou a dizer isso! - retorquiu Cévola irritado, sem saber como equilibrar o bom senso e a superstição. - No entanto... como explicam o suor de Angerona, e a faixa que lhe caiu da boca?
- Os seus olhos encheram-se de lágrimas. - Ou a morte do meu primo e muito querido amigo Crasso?
- Quinto Múcio, eu acho que Marco Emílio tem razão - disse Druso, que se tinha juntado ao grupo. - Todos estes presságios são um sinal do que acontecerá se as minhas leis forem anuladas.
- Quinto Múcio, tu és um membro do Colégio de Pontífices disse Escauro Princeps Senatus pacientemente. - Tudo começou com o único fenómeno crível, o óleo derramado pela estátua de madeira de Saturno. Mas há anos que nós esperamos que isso aconteça! É por isso que a estátua é enfaixada! Quanto à deusa Angerona, diz-me uma coisa: não é fácil entrar no seu pequeno santuário, tirar-lhe as faixas e dar-lhe um banho de uma qualquer substância gordurosa que, pela certa, deixará algumas gotas escorrendo? Todos sabemos que os raios atingem normalmente os pontos mais altos de uma região. Ora, não era esse o caso do pequeno templo da deusa Piedade? Quanto aos tremores de terra e às ravinas de fogo e às chuvas de sangue e às pragas de rãs... histórias, só histórias! Recuso-me até a discuti-las! Lúcio Licínio morreu na sua cama. Diz-me uma coisa: não foi um fim feliz? Não desejamos todos um tal fim, sem sofrimento?
- Sim... mas... - protestou Cévola, que ainda não estava convencido.
- Olhem-me só para ele! - exclamou Escauro. - Se Cévola se deixou iludir, como poderemos censurar todos os outros idiotas, para quem a superstição é tudo?
- Tu não acreditas nos deuses, Marco Emílio? - perguntou Cévola, apavorado.
- Sim, sim, claro que acredito! Mas não acredito nas maquinações e nas interpretações de homens que afirmam agir em nome dos deuses! Nunca encontrei um presságio ou uma profecia que não pudesse ser interpretada de duas formas diametralmente opostas! E Filipe será um perito, um grande conhecedor da matéria em causa? Só porque é um augure? Isso é pouca coisa. Ainda que tropeçasse num presságio e este lhe mordesse naquele desgraçado nariz, ele não o reconheceria! Quando ao velho Públio Cornélio Culéolo, o seu nome diz-nos tudo sobre ele: tomates é coisa que não tem! Aposto contigo, Quinto Múcio, que se um tipo mais esperto tivesse estado atento aos desastres naturais e aos chamados fenómenos não naturais que ocorreram durante o segundo tribunato de Saturnino, teria por certo apresentado uma lista tão impressionante como a de Filipe! Cresce, Quinto Múcio! Por favor, põe algum do teu saudável cepticismo na análise deste caso!
- Devo dizer que Filipe me surpreendeu - disse Mário num tom desanimado. - Em tempos, comprei-o. Mas nunca me apercebi de que este cunnus fosse tão esperto.
- Oh, lá esperto é ele - disse logo Cévola, ansioso por dar uma outra imagem de si a Escauro. - Imagino que ele vinha preparando isto há já algum tempo. - Riu-se e acrescentou: - De uma coisa podemos estar certos: a ideia não foi de Cepião! É demasiado engenhosa para ser dele!
- Como te sentes, Marco Lívio? - perguntou Mário.
- Como me sinto? - Druso tinha uma expressão amargurada e exausta. - Oh, Caio Mário, francamente já não sei como me sinto. O que posso dizer é que de facto Filipe fez um excelente trabalho.
- Devias ter oposto o teu veto - comentou Mário.
- Era o que tu terias feito no meu lugar. E eu não te censuraria por isso - retorquiu Druso. - Mas tenta comprender a minha posição: eu tenho de cumprir o que me prometi no início do meu tribunato. E prometi que levaria em conta os desejos dos meus pares no Senado.
- Agora já não haverá alargamento da cidadania - disse Escauro.
- Porque não? - perguntou Druso, francamente surpreendido.
- Porque anularam todas as tuas leis, Marco Lívio! Ou vão anular!
- E que diferença faz isso? O alargamento da cidadania ainda não foi debatido pela Assembleia da Plebe, limitei-me a pôr o problema ao Senado. Que aprovou que tal medida não fosse recomendada à Plebe. Mas eu nunca prometi ao Senado que só levaria uma lei à Assembleia da Plebe se o Senado a recomendasse. O que eu disse foi que, antes de a apresentar à Plebe, tentaria obter a recomendação do Senado. Fiz essa promessa e cumpri-a. Mas não posso nem vou parar, só porque o Senado disse que não. O processo não terminou ainda. A Assembleia da Plebe terá de dizer de sua justiça: e eu procurarei convencê-la a aprovar a lei - disse Druso, sorridente.
- Por todos os deuses, Marco Lívio, tu mereces ganhar! - disse Escauro.
- Sou da mesma opinião - disse Druso. - Mas agora, se me dão licença, deixá-los-ei. Tenho algumas cartas para escrever aos meus amigos italianos. Tenho de convencê-los a não declararem a guerra, pois a batalha ainda não terminou.
- Mas eles estão preparados para declarar já a guerra? Não, não acredito! - exclamou Cévola. - Eu acredito que os Italianos pensem em termos de guerra, caso lhes recusemos a cidadania. E porque acredito nisso, votei como votei. Mas para nos declararem guerra, vão precisar ainda de muitos anos. Ainda não estão preparados para uma guerra!
- Aí é que tu te enganas, Quinto Múcio. Os Italianos estão já melhor preparados para a guerra do que Roma - retorquiu Druso.
Alguns dias depois, o Senado e o Povo de Roma ficaram a saber que pelo menos os Marsos estavam preparadíssimos para a guerra, já que Quinto Popaedius Silão avançava pela Via Valéria, na direcção de Roma, à frente de duas imponentes legiões, devidamente equipadas e armadas. O Princeps Senatus, perfeitamente estupefacto, convocou uma reunião urgente do Senado, a que compareceram muito poucos senadores; nem Filipe, nem Cepião, estavam presentes, e nenhum deles mandou qualquer mensagem a explicar as razões da sua ausência. Druso recusara-se também a assistir à reunião, mas explicara porque não ia: sentia que não podia estar presente enquanto os seus pares discutiam uma ameaça de guerra lançada por um velho amigo seu.
- Os ratos! - exclamou Escauro para Mário, contemplando as bancadas vazias. - Meteram-se todos nos seus buracos, aparentemente porque pensam que, ficando lá, os homens maus vão-se embora.
Mas Escauro não acreditava que os Marsos fossem mesmo desencadear uma guerra, e tentou convencer os seus poucos ouvintes de que para enfrentar tal ”invasão” o melhor seria recorrer a métodos pacíficos.
- Cneu Domício, tu és um eminente ex-cônsul, foste censor e és Pontifex Maximus - disse ele a Aenobarbo Pontifex Maximus. - Estarias de acordo se te propusesse que fosses ter com este exército como um Popílio Lenas, acompanhado apenas por lictores? Tu foste iudex no tribunal especial da lex Licinia Mucia que funcionou em Alba há alguns anos, por isso os Marsos conhecem-te - e, pelo que sei, respeitam-te muito, graças à tua clemência. Tenta descobrir por que razão este exército se pôs a caminho, e que pretendem os Marsos de nós.
- Muito bem, Princeps Senatus, serei outro Popílio Lenas - retorquiu Aenobarbo. - Desde que me concedas total autoridade proconsular. De outro modo, não estarei em condições de dizer ou de fazer aquilo que acho necessário por ora. E também quero as machadinhas nos meus fasces.
- Terás o que pedes - retorquiu Escauro.
- Os marsos chegarão aos arrabaldes de Roma amanhã - disse Mário, com um esgar. - Sabes que dia é, suponho.
- Sei - disse Aenobarbo. - É véspera das Nonas de Outubro, o aniversário da batalha de Arausio, na qual os marsos perderam uma legião inteira.
- Eles planearam a coisa para chegarem a Roma nesse dia comentou Sexto César, que estava a gostar da reunião, apesar da atmosfera não ser nada alegre; mas acontece que Filipe e Cepião não estavam presentes. De facto, só tinham comparecido os senadores que ele considerava serem verdadeiros patriotas.
- É por isso, veneráveis Senadores, que não creio que os Marsos estejam efectivamente a pensar em guerra - comentou Escauro.
- Funcionário, vai chamar os lictores das trinta curiae - disse Sexto César. - Terás autoridade proconsular, Cneu Domício, logo que cheguem os lictores. E contar-nos-ás tudo o que sucedeu numa sessão especial depois de amanhã - propôs.
- Nas Nonas? - perguntou Aenobarbo, incrédulo.
- É uma emergência, Cneu Domício. Reuniremos nas Nonas retorquiu firmemente Sexto César. - Espero que compareça mais gente! A que estado chegou Roma, quando um caso tão urgente apenas traz ao Senado meia dúzia de homens?
- Eu sei porque é que eles não vieram, Sexto Júlio - disse Mário.
- Não vieram porque não acreditam nas ameaças. Decidiram todos que esta é uma crise forjada.
Nas Nonas de Outubro o Senado tinha mais gente, mas ainda não estava cheio. Druso estava presente, ao contrário de Filipe e Cepião, que tinham decidido que a sua ausência seria um sinal do que pensavam daquela ”invasão”.
- Conta-nos o que aconteceu, Cneu Domício - disse o único cônsul presente, Sexto César.
- Encontrei-me com Quinto Popaedius Silão não muito longe das portas de Roma - começou Aenobarbo Pontifex Maximus. - Ele comandava de facto um exército, digamos duas legiões: pelo menos dez mil soldados, um número adequado de não combatentes, oito peças de excelente artilharia de campo, e um pelotão de cavalaria. Silão vinha a pé, tal como os seus oficiais. Não vi sinal de carros com equipamentos; presumo, por isso, que os seus homens vieram todos em marcha ligeira - suspirou, e logo prosseguiu: - Ah, veneráveis Senadores, que exército magnífico aquele! Soldados corpulentos, em óptima condição física, perfeitamente disciplinados. Enquanto conversava com Silão, permaneceram vigilantes, ao sol, sem trocarem palavra. Todos, sem excepção, se comportaram assim.
- Poderás dizer-nos, Pontifex Maximus, se as suas cotas de malha e as armas eram novas? - perguntou Druso, ansioso.
- Sim, Marco Lívio. Tudo era novo, e da melhor qualidade - retorquiu Aenobarbo.
- Obrigado.
- Continua, Cneu Domício - pediu Sexto César.
- Parámos à distância necessária para nos saudarmos, eu e os meus lictores, de um lado, Quinto Popaedius Silão e as suas legiões, do outro. Então, Silão e eu avançámos a pé para um local onde ninguém nos poderia ouvir.
”A que se deve esta expedição marcial, Quinto Popaedius?”,
perguntei-lhe eu, muito cortesmente, e com a maior calma. ”Viemos a Roma, porque tal nos foi ordenado pelos tribunos da plebe”, retorquiu Silão, com igual cortesia. ”Os tribunos da plebe?”, perguntei-lhe eu. ”Ou um tribuno da plebe? Não foi Marco Lívio Druso que lhes deu tal ordem?” ”Os tribunos da plebe”, insistiu ele. ”Todos?”, perguntei eu. ”Todos”, respondeu Silão.
”Mas por que razão te chamaram a Roma os tribunos da plebe?”, perguntei-lhe então.
”Os tribunos da plebe chamaram-me a Roma para que eu assumisse a cidadania romana, e tomasse todas as medidas necessárias para que a cidadania romana fosse concedida a todos os Italianos”, respondeu ele.
Recuei um pouco, e olhei para as suas legiões. ”Recorrendo à força?”, perguntei.
”Se necessário”, disse ele.
Dadas as circunstâncias, recorri à minha autoridade proconsular para fazer uma afirmação que de outro modo não poderia ter feito, dado o teor das recentes sessões do Senado. Uma afirmação que me pareceu a mais adequada naquela situação. Disse a Silão: ”O recurso à força, Quinto Popaedius, não se revelará necessário.”
A resposta de Silão foi uma gargalhada irónica. ”Ora Cneu Domício, não me faças rir!”, disse ele. ”Esperas que eu acredite nisso? Há muitas gerações que nós, os Italianos, esperamos pela concessão da cidadania. Nunca pegámos em armas, sempre nos mostrámos pacientes. E qual foi a resposta de Roma? Sempre negativa. Compreendemos agora que só pela força alcançaremos a cidadania.”
Como é natural, as afirmações de Silão deixaram-me profundamente inquieto. Disse-lhe então: ”Quinto Popaedius, Quinto Popaedius, garanto-te que já não falta muito para que a cidadania vos seja concedida! Por favor, manda dispersar o teu exército, embainhem as espadas, regressem às terras dos Marsos! Prometo-te solenemente que o Senado e o Povo de Roma concederão a todos os Italianos a cidadania romana.”
Silão fitou-me durante um longo momento, sem dizer palavra. Finalmente, retorquiu: ”Muito bem, Cneu Domício, levarei o meu exército para longe daqui. Mas não para muito longe. E apenas o tempo necessário para saber se falas ou não verdade. Vou ser muito claro, Pontifex Maximus: se o Senado e o Povo de Roma não concederem à Itália a integral cidadania romana enquanto estiver em funções o actual Colégio dos Tribunos da Plebe, voltarei a marchar sobre Roma. E toda a Itália marchará comigo sobre Roma. Presta bem atenção, Pontifex Maximus! Toda a Itália se unirá para destruir Roma.”
Dito isto, Silão virou-me as costas e foi-se embora. As suas tropas deram meia volta, mostrando como estavam bem treinadas, e afastaram-se. Regressei então a Roma. E durante toda a noite, veneráveis Senadores, reflecti. Vocês conhecem-me bem. Conhecem-me há muito tempo. Não tenho reputação de homem paciente ou mesmo compreensivo. Mas sou perfeitamente capaz de distinguir um rato de um touro! E digo-lhes claramente: ontem vi um touro, não um rato! Um touro com palha à volta dos cornos, e fogo jorrando das narinas. A promessa que fiz a Quinto Popaedius Silão tem de ser cumprida! Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que o Senado e o Povo de Roma concedam a cidadania a toda a Itália.
Um murmúrio percorreu o Senado; muitos olhos fitavam espantados o Pontifex Maximus: Aenobarbo era famoso pela sua natureza intratável e intolerante e uma tão profunda mudança de atitude era, no mínimo, impressionante.
- Voltaremos a reunir amanhã - disse Sexto César, com um ar satisfeito. - É tempo de procurarmos de novo uma resposta para esta questão. Os dois pretores que, por instigação de Lúcio Márcio, empreenderam uma viagem por Itália, demoram a comunicar-nos as suas impressões. Temos de voltar a debater o assunto. Mas quero que estejam cá as pessoas que, ultimamente, não se têm dado ao trabalho de comparecer - e, em particular, o meu colega cônsul e o pretor Quinto Servílio Cepião.
Filipe e Cepião compareceram na reunião seguinte, e, como seria de esperar, ambos conheciam já todos os pormenores da missão de Aenobarbo; no entanto - pelo menos foi o que pareceu a Druso, a Escauro e a todos os outros que queriam vê-los de novo no Senado nenhum deles tinha um ar inquieto ou mesmo preocupado. Caio Mário, inexplicavelmente acabrunhado, deixou que os seus olhos vagueassem pelos rostos dos seus colegas membros do Senado. Sila não tinha faltado a uma única assembleia desde que Druso era tribuno da plebe: no entanto, nada fizera no sentido de ajudar Druso; a morte do filho obstava a que tivesse uma participação activa: evitava todos os contactos, inclusivamente com Quinto Pompeu Rufo, seu possível colega num futuro consulado. Sentava-se e escutava, perfeitamente impassível. Desaparecia mal a reunião terminava; em resumo: ninguém dava por ele, era como se não existisse. Significativamente, votara a favor da manutenção das leis de Druso, o que levava Mário a pensar que Sila continuava no seu campo. Mas era praticamente impossível falar com ele. Quanto a Catulo César, parecia um pouco perturbado, provavelmente por causa da defecção do seu poderoso aliado, Aenobarbo Pontifex Maximus.
Notou-se alguma agitação na sala; o motivo era que os fasces estavam, durante o mês de Outubro, nas mãos de Filipe: por isso, era Filipe, e não Sexto César, quem presidia à reunião. Trazia consigo um outro documento, um documento que, ao contrário do outro, não confiara ao seu assistente. Concluídas as formalidades, Filipe levantou-se para falar.
- Marco Lívio Druso - disse Filipe, clara e friamente. - Quero ler para todo o Senado um documento muito mais importante do que a invasão que não chegou a sê-lo, protagonizada pelo teu grande amigo Quinto Popaedius Silão. Porém, antes de o ler, gostaria que todos os senadores te ouvissem dizer que estás presente e que escutarás o que vou dizer.
- Estou presente, Lúcio Márcio, e escutarei o que vais dizer disse Druso, num tom tão claro e frio como o de Filipe.
Druso estava com um ar perfeitamente exausto, pensou Caio Mário. Como se há muito tempo tivesse esgotado as suas energias, e mantivesse a sua luta graças unicamente à força de vontade. Perdera muito peso nas últimas semanas; tinha o rosto encovado, os olhos muito fundos e rodeados de sombras escuras.
Porque me sinto como se fosse um escravo condenado a fazer girar a roda do moinho?, perguntou-se Mário. Porque estou tão crispado, tão desesperadamente ansioso e apreensivo? Druso não possui a minha força; por outro lado, eu estou plenamente convicto de que tenho razão, ao contrário do que sucede com ele. Ele é demasiado correcto, demasiado razoável, mostra-se demasiado inclinado a atentar nos argumentos das duas partes. Acabarão por matá-lo, mentalmente, ou mesmo fisicamente. Por que razão nunca me apercebi de que este Filipe era verdadeiramente perigoso? Por que nunca me apercebi de que ele era um homem brilhante?
Filipe desenrolou a folha e colocou-a à distância de um braço, entre a mão esquerda e a direita.
- Não farei qualquer comentário a este documento, veneráveis Senadores - disse. - Limitar-me-ei a lê-lo, e deixarei que tirem as vossas próprias conclusões. Eis o que reza este documento:
”Juro, por Júpiter Optimus Maximus, por Vesta, por Marte, por Sol Indígete, por Terra, pelos deuses e heróis que deram origem e acompanharam o povo de Itália nas suas lutas, que considerarei como meus amigos e inimigos aqueles que Marco Lívio Druso considera seus amigos e inimigos. Juro que trabalharei para o bem-estar e benefício de Marco Lívio Druso e de todos aqueles que prestarem este juramento, mesmo que isso me custe a vida, e a perda dos meus filhos, pais e propriedades. Se, graças à lei de Marco Lívio Druso, eu me tornar um cidadão de Roma, juro que venerarei Roma como minha única nação, e que ficarei ligado a Marco Lívio Druso como seu cliente. Assumo também a responsabilidade de dar a conhecer este juramento ao maior número possível de italianos. Juro tudo isto lealmente, sabendo que a minha lealdade será recompensada com o justo prémio. E se eu quebrar este juramento, que me seja tirada a vida, bem como os meus filhos, pais e propriedades. Que assim se faça, pois assim o juro.”
Nunca o Senado estivera tão silencioso. Filipe olhou para os senadores que atentamente o escutavam: Escauro estava boquiaberto, e Mário fitava-o com um esgar furioso; Cévola comprimia os lábios e, quanto a Aenobarbo, o seu rosto ganhara um tom arroxeado; se a expressão de Catulo César era de horror, a de Sexto César era de sofrimento; e se no rosto de Metelo Pio, o Bacorinho, se lia consternação, no de Cepião estava estampada a alegria.
Então, Filipe retirou a mão direita e a folha voltou a enrolar-se com um sonoro ruído; meio Senado saltou das bancadas e cadeiras.
- Este, veneráveis Senadores, é o juramento que milhares e milhares de italianos fizeram o ano passado. E foi por causa deste juramento, veneráveis Senadores, que Marco Lívio Druso trabalhou tão duramente, tão persistentemente, tão entusiasticamente, para que os seus amigos italianos ganhassem o inestimável prémio da cidadania romana! Abanou a cabeça, como que cansado. - Não porque se preocupe minimamente com as terras dos Italianos! Não porque acredite na justiça - ainda que numa justiça pervertida! Não porque sonhe com uma carreira que, de tão luminosa, deixaria o seu nome inscrito na História! Mas porque, veneráveis membros do Senado, a grande maioria dos italianos jurou que faria parte do seu rol de clientes! Ou seja: se concedêssemos à Itália a cidadania, a Itália passaria a pertencer a Marco Lívio Druso! Imaginem só! Cliente de Marco Lívio Druso desde o Arno até Régio, desde o mar Toscano até ao Adriático! Os meus parabéns, Marco Lívio! Que prémio magnífico! Era motivo de sobra para que trabalhasses infatigavelmente! Uma clientela mais vasta que uma centena de exércitos!
Filipe virou-se então, desceu do estrado curul, e encaminhou-se, com passada certa, até à extremidade do banco tribunício, onde Druso estava sentado.
- Marco Lívio Druso, é verdade que toda a Itália fez este juramento?
- perguntou Filipe. - É verdade que, em troca deste juramento, juraste lutar pela cidadania para todos os Italianos?
Com o rosto mais pálido que o branco da toga, Druso levantou-se cambaleante, entontecido, estendendo a mão, num gesto de súplica ou de defesa, ninguém o poderia saber. A sua boca abriu-se como se procurasse uma resposta. Uma resposta que não chegou a ouvir-se, pois nesse preciso instante o corpo de Druso caiu inerte nas velhas lajes brancas e pretas do chão do Senado. Filipe afastou-se imediatamente com um ar enfastiado, mas Mário e Escauro já estavam de joelhos ao lado de Druso.
- Está morto? - perguntou Escauro, enquanto Filipe convocava nova reunião para o dia seguinte.
De ouvido encostado ao peito de Druso, Mário abanou a cabeça.
- Um forte colapso - respondeu, respirando fundo, aliviado.
A síncope durou tanto tempo que Druso começou a ficar com manchas na cara; a certa altura, os seus braços e pernas começaram a mexer-se, sacudidas por espasmos violentos, enquanto da sua boca saíam sons aterradores.
- Estás a ter um ataque! - exclamou Escauro.
- Não, não me parece - disse Mário que, graças à sua experiência militar, tinha já visto todo o tipo de reacções físicas próprias do ser humano. - Quando um homem desmaia durante tanto tempo, é normal que tenha convulsões deste género. Mas as convulsões marcam precisamente o fim do desmaio. Em breve voltará a si.
Filipe parou para ver, mas suficientemente longe, não fosse Druso vomitar e sujar-lhe a toga.
- Levem esse patife daqui! - exclamou com desprezo. - Se vai morrer, que morra em local não consagrado.
Mário ergueu a cabeça.
- Mentulam caco, cunne! - disse para Filipe, bem alto, para que todos os que estavam por perto pudessem ouvir.
Filipe prosseguiu o seu caminho, apressando o passo; se havia um homem que temia no mundo, esse homem era Caio Mário.
Aqueles que se sentiam de algum modo ligados a Druso esperaram ainda bastante tempo até que ele voltasse a si; extremamente satisfeito, Mário viu que, entre eles, estava Lúcio Cornélio Sila.
Ao recuperar a consciência, Druso parecia não saber onde estava, nem o que tinha acontecido.
- Mandei buscar a liteira de Júlia - disse Mário a Escauro. - Ele que descanse aqui até chegar o carro. - Mário despiu então a toga, e com ela fez uma almofada para a cabeça de Druso e um cobertor para os seus membros frios.
- Estou perfeitamente confuso! - exclamou Escauro, empoleirado na ponta do estrado curul. - Francamente, nunca esperei tal coisa deste homem!
Mário soltou um risinho irónico.
- Ora, Marco Emílio! Não seria de esperar tal coisa de um nobre romano? O contrário é que eu não esperaria! Por Júpiter, como vocês se enganam a vós mesmos!
Os olhos verdes começaram a dançar.
- Por Júpiter, digo eu, meu labrego italiano! Como te atreves a pôr a nu as nossas fraquezas! - exclamou Escauro, muito direito.
- É preciso que alguém o faça, meu esquelético monte de ossos velhos! - retorquiu afavelmente Mário, sentando-se ao lado do Princeps Senatus e olhando para os três homens que restavam: Cévola, António Orador e Lúcio Cornélio Sila. - Muito bem, meus senhores - disse ele, estirando as pernas e meneando os pés. - Que fazemos agora?
- Nada - disse Cévola.
- Oh, Quinto Múcio, Quinto Múcio, por favor! Perdoa ao nosso pobre e inanimado tribuno da plebe a sua tão romana fraqueza! Por favor! - exclamou Mário, agora rindo tão desabridamente como Escauro.
Cévola ofendeu-se.
- Pode ser que seja uma fraqueza romana, Caio Mário, mas é fraqueza que eu não tenho! - atirou.
- Não, provavelmente não. E é por isso, meu amigo, que nunca chegarás aos calcanhares dele - disse Mário, apontando com um pé para Druso.
Cévola olhou para Mário com uma expressão de profundo desagrado.
- Francamente, Caio Mário, és impossível! E quanto a ti, Princeps Senatus, pára de rir que isto não é caso para rir!
- Ainda nenhum de nós respondeu à interessante pergunta de Caio Mário - disse António, tentando pacificar os ânimos. - Que fazemos agora?
- Não nos cabe a nós decidir - retorquiu Sila, falando pela primeira vez. - É evidente que a decisão só pode ser dele.
- Muito bem dito, Lúcio Cornélio! - exclamou Mário, levantando-se porque vira já o rosto do chefe dos homens que costumavam levar a liteira de sua esposa espreitando timidamente pela grande porta de bronze. - Vá lá, meus melindrosos amigos, vamos levar este pobre homem a casa.
O pobre homem continuava a delirar quando foi entregue aos cuidados da mãe que, numa atitude sensata, se recusou a chamar os médicos.
- Os médicos quererão sangrá-lo e purgá-lo, e ele precisa de tudo menos disso - disse ela friamente. - O problema dele é não comer. Logo que recupere do choque, dou-lhe vinho quente com mel, fica logo bom. Sobretudo, se conseguir dormir.
Cornélia Cipião levou o filho para a cama e obrigou-o a beber uma taça cheia de vinho quente com mel.
- Filipe! - gritava ele, tentando sentar-se na cama.
- Não te preocupes com esse verme. Espera até te sentires melhor. Druso voltou a beber e conseguiu sentar-se.
- Aconteceu uma coisa terrível, mãe! Uma coisa terrível! Filipe descobriu o juramento.
Escauro tinha-a posto a par da situação, e por isso Cornélia não precisou de lhe perguntar nada.
- Não me digas que não esperavas que Filipe indagasse. E se não fosse ele, seria outro qualquer.
- Já me tinha esquecido do maldito juramento! Já foi há tanto tempo!
- Marco Lívio, isso não é importante - retorquiu ela, aproximando a sua cadeira da cama, e pegando na mão do filho. - Aquilo que tu fazes é muito mais importante do que as razões por que o fazes. Esta é uma regra que se aplica a tudo na vida! As razões que te levam a fazer uma coisa constituem apenas um bálsamo para o teu ego. Os motivos nada têm a ver com o resultado. Aquilo que se faz é o que importa, nada mais, e estou certa de que um saudável amor-próprio é o caminho para alcançarmos aquilo que queremos. Por isso alegra-te, meu filho! O teu irmão está cá, ansioso por te ver. Anima-te, peço-te!
- Vão odiar-me por isto.
- Alguns vão, sem dúvida. A maior parte vai odiar-te por uma questão de inveja. Outros, porém, sentirão por ti uma tremenda admiração
- retorquiu a mãe. - Ao que parece, o caso não produziu qualquer perturbação nos amigos que te trouxeram.
- Quem? - perguntou ele, ansioso.
- Marco Emílio, Marco António, Quinto Múcio, Caio Mário disse ela. - Ah, e aquele homem fascinante, Lúcio Cornélio Sila! Se eu fosse mais nova...
Agora que conhecia bem a mãe, Druso não ficava aborrecido com tais observações; pelo contrário, o comentário da mãe fê-lo sorrir.
- É estranho que gostes dele! - disse. - Não há dúvida que ele parece muito interessado nas minhas ideias.
- Foi o que achei. Mas diz-me uma coisa: Sila tinha um filho que morreu há pouco tempo, não tinha?
- Sim, tinha. O seu único filho.
- Basta olhar para ele para se ver isso - disse Cornélia Cipião, levantando-se. - Bom, Marco Lívio, vou dizer ao teu irmão para entrar. E atenção, trata de comer. O único remédio de que precisas é de comer bem. Vou dizer na cozinha para prepararem uma refeição saborosa e suculenta, e Mamerco e eu não sairemos daqui enquanto não comeres.
Já a noite tinha caído quando Druso ficou sozinho com os seus pensamentos. Sentia-se muito melhor, era verdade, mas aquele terrível cansaço mantinha-se, e, por outro lado, o sono parecia não querer vir, apesar de ter bebido muito vinho quente com mel. Há quanto tempo não dormia profundamente, satisfatoriamente? Há meses.
Filipe tinha descoberto tudo. Alguém acabaria por descobrir, claro, e esse alguém iria ter com ele, Druso, ou com Filipe. Ou com Cepião.
Um facto interessante: Filipe nada tinha dito ao seu querido amigo Cepião! Se o tivesse feito, Cepião teria tomado a iniciativa, pois não desejaria que os louros fossem todos para Filipe. Por isso Filipe nada dissera a Cepião. Ah, esta noite, nem tudo vai ser abraços na casa de Filipe!, pensou Druso, sorrindo apesar de tudo.
E agora que o seu consciente aceitara o facto, Druso podia descansar. A mãe tinha razão. A divulgação do juramento não podia afectar o seu trabalho; afectaria, quando muito, o seu orgulho. Teria alguma importância o facto de certas pessoas acreditarem que ele fizera tudo aquilo porque pretendia atrair um número impressionante de clientes? Porque haveria de querer que todos pensassem que os seus motivos eram totalmente altruísticos? Não seria próprio de um Romano desprezar vantagens pessoais... e ele era Romano! Noutras circunstâncias (apercebia-se disso agora muito claramente), os seus colegas do Senado, os chefes da Plebe, talvez a maior parte dos membros das classes mais baixas, teriam pressentido que se um homem se comprometesse a conquistar a cidadania para várias centenas de milhar de homens, estes comprometer-se-iam, por sua vez, a tornar-se seus clientes. O facto de ninguém se ter apercebido da eventualidade de tais acontecimentos era sintomático da emotividade e da ausência de um raciocínio lógico na abordagem do problema do alargamento da cidadania. Esta questão provocara uma tal tempestade emocional que as pessoas tinham acabado por esquecer todos os aspectos práticos da mesma. Não fazia sentido esperar que as pessoas encontrassem um fio lógico em todo o seu trabalho, pois toda a Roma se sentia emocionalmente envolvida no caso, de tal maneira que a ninguém ocorrera a hipótese de os Italianos virem a ser clientes dele. Se ninguém pensara nessa hipótese, então não era de esperar que as pessoas raciocionassem logicamente: disso estava ele certo.
As suas pálpebras fecharam-se, e Druso adormeceu. Foi um sono profundo, revigorante.
Na manhã seguinte, na Cúria Hostília, Druso sentiu-se como novo, perfeitamente apto a enfrentar Filipe, Cepião e outros que tais.
Presidindo à reunião, Filipe ignorou todos os outros assuntos, incluindo a marcha dos marsos: abordou imediatamente o caso de Druso e o juramento dos Italianos.
- O texto que li ontem está correcto, Marco Lívio? - perguntou Filipe.
- Pelo que pude saber, Lúcio Márcio, está correcto. Embora eu nunca tenha ouvido ou lido tal juramento.
- Mas sabias da sua existência.
Druso pestanejou, compondo uma expressão de surpresa.
- Mas é claro que sabia, cônsul júnior! Como poderia alguém desconhecer algo que era tão vantajoso para si, e para Roma? Se tu fosses o defensor do alargamento da cidadania a toda a Itália, não saberias da existência desse documento?
Druso defendia-se atacando. Filipe teve de fazer uma pausa para recuperar o balanço perdido.
- A única coisa que eu defenderia para os Italianos seriam umas boas chicotadas! - retorquiu Filipe, altivamente.
- Então ainda és mais idiota do que eu pensava! - exclamou Druso. - Porque aquilo que me propus fazer é positivo a todos os níveis, veneráveis Senadores! Acabar com uma injustiça que persistiu durante gerações! Dar ao nosso país uma hegemonia o mais genuína possível! Destruir algumas das mais terríveis barreiras que separam homens de diferentes classes! Acabar com a ameaça de uma guerra iminente! Iminente, repito! E ver todos estes novos cidadãos romanos ligados por um juramento a Roma e a um Romano dos melhores! E esta última medida é de uma importância vitall Implica, com efeito, que todos os novos cidadãos sejam adequadamente conduzidos, ou seja, conduzidos segundo um ponto de vista rigorosamente romano. Significa que todos eles saberão como votar e em quem votar, significa que eles serão levados a eleger Romanos genuinamente romanos e não homens das suas próprias nações!
Aquelas palavras mereciam reflexão; Druso podia aperceber-se disso nos rostos daqueles que o escutavam atentamente, e todos os escutavam atentamente. Druso sabia perfeitamente qual era o principal receio dos senadores - que um número excessivo de novos cidadãos romanos, integrados nas trinta e cinco tribos, afectasse fortemente o conteúdo romano das eleições, e significasse que os Italianos iriam disputar as eleições para cônsul, pretor, edil, tribuno da plebe, e questor, ou que iriam entrar em massa para o Senado, decididos, todos eles, a passar o Senado das mãos de Roma para as mãos de Itália. Isto para não falar dos diversos comitia. Mas se estes italianos estavam ligados por um juramento - e que terrível juramento! - tanto a Roma como a um Romano dos melhores, então teriam de votar conforme lhes indicassem que deviam votar, tal e qual como qualquer outro grupo de clientes.
- Os Italianos são homens honrados, tanto como nós - disse Druso.
- E mostraram-no, com este juramento! Em troca da oferta da nossa cidadania, agirão segundo os desejos de verdadeiros Romanos. De verdadeiros Romanos!
- Agirão de acordo com os teus desejos! - gritou Cepião, furibundo.
- Sim, porque nós, que também somos Romanos, e Romanos verdadeiros, limitar-nos-emos a aceitar um ditador não oficial!
- Francamente, Quinto Servílio, que disparate! Alguma vez desobedeci à vontade do Senado desde que sou tribuno da plebe? Alguma vez me preocupei mais com a minha situação que com a situação desta Casa? Alguma vez me mostrei indiferente aos desejos de todas as camadas que constituem o Povo de Roma? Poderiam os homens de Itália encontrar melhor protector do que eu, sendo filho de quem sou, sendo um Romano dos melhores, sendo um homem essencialmente conservador e claramente ponderado?
Druso virou-se para o outro lado do Senado e, abrindo os braços, prosseguiu:
- Prefeririam outro patrono para estes milhares de novos cidadãos, veneráveis Senadores? Marco Lívio Druso ou Lúcio Márcio Filipe? Marco Lívio Druso ou Quinto Servílio Cepião? Marco Lívio Druso ou Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis? Porque será melhor que se habituem à ideia, membros do Senado de Roma: Os homens de Itália conquistarão a cidadania! Eu jurei que o faria - e fá-lo-eil Retiraram das tábuas as minhas leis, roubaram ao meu tribunato da plebe os propósitos e as realizações. Mas o meu ano neste cargo ainda não terminou, e comportei-me honradamente no meu relacionamento convosco, colegas senadores! Depois de amanhã, levarei a minha proposta de alargamento da cidadania a toda a Itália à Assembleia da Plebe, e a questão será discutida em sucessivas contiones, sempre religiosamente correctas, sempre conduzidas com o devido respeito pela lei, de forma pacífica e ordeira. Porque, para além dos outros juramentos, há um, muito importante, que agora faço perante todos vós: não terminarei o meu tribunato da plebe sem ver uma lex Lívia nas tábuas. Uma lei prevendo que todos os homens desde o Arno a Régio, desde o Rubicão a Vereio, desde o Tuscano ao Adriático, serão cidadãos de Roma a cem por cento! Se os homens de Itália fizeram um juramento em relação à minha pessoa, eu tenho também um juramento a fazer em relação a eles - que, durante o exercício do meu cargo, lhes concederei a cidadania. E fá-lo-ei! Acreditem que o farei!
Druso tinha vencido, toda a gente o sabia.
- O que houve de mais brilhante na actuação de Druso é que ele conseguiu levá-los a pensar que o alargamento da cidadania é inevitável
- comentou António Orador. - Eles estão habituados a abater homens, e não a ser abatidos. Mas Druso abateu-os, dominou-os por completo, Princeps Senatus! Garanto-te que os dominou!
- Sem dúvida - disse Escauro, que parecia extremamente satisfeito.
- Sabes, Marco António, eu pensava que já nada poderia surpreender-me nos governos de Roma, que já tudo tinha sido feito, e mais bem feito. Mas Marco Lívio é uma criatura única. Roma nunca viu um homem assim. E suspeito que não voltará a ver.
Druso cumpriu o que prometera. Levou a questão do alargamento da cidadania a toda a Itália ao concilium plebis, rodeado de uma aura de indomabilidade que suscitava a admiração de todos. A sua fama crescera e espalhara-se, ele era tema de conversa em todas as camadas sociais; o seu sólido conservadorismo, a sua férrea determinação em fazer tudo legalmente, sempre de acordo com as regras vigentes, transformavam-no num novo tipo de herói. Todas as classes que constituíam Roma eram essencialmente conservadoras, incluindo os proletários, capazes de apoiarem um Saturnino, mas incapazes de matarem os seus chefes por causa desse mesmo Saturnino. A mós maiorum - todos os costumes e tradições que o tempo fora sedimentando - teria sempre o seu peso, mesmo para os proletários. E Roma tinha finalmente um chefe para quem a mós maiorum contava tanto como a justiça. Marco Lívio Druso começava a assumir aí aparência de um semi-deus; e isso significava que as pessoas; começavam a acreditar que tudo o que ele queria estaria forçosamente certo.
Impotentes, Filipe, Cepião, Catulo César e os seus seguidores, com Metelo Pio, o Bacorinho, aproximando-se indeciso deles, viram Druso conduzir as suas contiones durante a segunda metade de Outubro” e em Novembro. De início as reuniões foram algo tempestuosas, mas com tais tempestades podia ele bem: permitir a todos os homens que: falassem, permitia mesmo que muitos falassem ao mesmo tempo, mas nunca sucumbia à tirania ou à sedução da multidão. Quando uma assembleia aquecia demasiado, encerrava-a. De início, Cepião tentara interromper as reuniões com métodos violentos, mas essa técnica não resultara com Druso, que parecia ter um instinto natural para detectar as situações potencialmente violentas; antes que elas ocorressem, dava a reunião por encerrada.
Seis contiones, sete, oito. Cada vez mais tranquilas. Uma audiência que aceitava cada vez mais a inevitabilidade daquela lei. Água mole em pedra dura: assim Druso foi cansando os seus adversários, mantendo sempre o seu encanto e dignidade, a sua admirável serenidade, a sua constante sensatez. Em comparação com ele, os seus inimigos pareciam indivíduos grosseiros, mal-educados, imbecis.
- Esta é a única maneira de levar a água ao meu moinho - disse ele a Escauro Princeps Senatus após a oitava contio, enquanto desciam a escadaria do Senado. - O que falta ao político romano de ascendência nobre é a paciência. Felizmente é uma qualidade que não me falta. Eu tenho paciência para todos os que me vêm escutar, e eles gostam disso. Gostam de mim. A recompensa para a minha paciência é a confiança deles.
- És o primeiro homem desde Caio Mário de quem eles gostam genuinamente - comentou Escauro.
- Eles lá tinham as suas razões para gostarem de Caio Mário retorquiu Druso. - Sentem que podem confiar nele também. Gostam dele porque ele é um indivíduo directo, com muita energia. Além disso, parece igual a qualquer um deles, não se dá ares de aristocrata. Eu não possuo as suas vantagens naturais; não posso deixar de ser quem sou, um aristocrata romano. Mas a minha paciência venceu, Marco Emílio. Eles aprenderam a confiar em mim.
- E achas que chegou a altura de proceder a uma votação?
- Sim, acho que essa altura chegou.
- Nesse caso, podemos reunir-nos hoje. Podíamos jantar em minha casa.
- Hoje, Marco Emílio, acho que devemos jantar em minha casa disse Druso. - Amanhã o meu destino ficará marcado de uma maneira ou de outra.
Escauro apressou-se a procurar Mário, Cévola e António Orador. Quando viu Sila, chamou-o também.
- Trago-te um convite de Marco Lívio para jantares hoje em casa dele. De acordo, Lúcio Cornélio?
Vendo que a expressão de Sila revelava, uma vez mais, a sua arreigada aversão a acontecimentos sociais, Escauro não se conteve e acrescentou:
- Por favor, Lúcio Cornélio, vem! Não haverá nenhum chato por perto!
A expressão de desagrado desapareceu por completo. Sila acabou mesmo por sorrir.
- Está bem, Marco Emílio, eu irei.
No início de Setembro, os seis homens teriam feito a caminhada sozinhos, pois, embora Druso tivesse muitos clientes, estes não tinham por hábito seguir o seu protector até casa depois de encerrados os trabalhos do Fórum. Normalmente, era às primeiras horas da manhã que os clientes se reuniam à porta do patrono. Contudo, naquele dia em que decorrera a oitava comio, a comitiva de Druso era tão numerosa que ele e os seus cinco companheiros acabaram por se ver no meio de uma excitada multidão de quase duzentas pessoas. Em tal escolta não seguiam homens importantes ou ricos. Eram homens da Terceira e da Quarta Classes, ou mesmo alguns proletários, que queriam manifestar a sua admiração por aquele homem íntegro e indomável. Desde a segunda contio que Druso era acompanhado a casa por uma escolta que todos os dias aumentava. Naquele dia, a excitação ainda era maior já que a votação estava prevista para o dia seguinte.
- Então a votação sempre é amanhã - disse Sila a Druso enquanto caminhavam.
- Sim, Lúcio Cornélio. Eles conhecem-me e confiam em mim, todos eles, desde os cavaleiros que detêm o poder plebeu até estes homens de baixo estrato que agora nos rodeiam. Creio que não fará sentido adiar por mais tempo a votação. Chegou o momento certo. Se eu tiver de vencer, vencerei amanhã.
- Não há dúvida que vencerás, Marco Lívio - disse Mário com uma expressão feliz. - E eu serei o primeiro a votar em ti.
A caminhada era curta: bastava atravessar o baixo Fórum até às Escadas de Vesta, virar depois à direita para a Clivus Victoriae, e logo surgia a casa de Druso.
- Venham, meus amigos, venham! - disse Druso alegremente para a multidão. - Venham até ao átrio. Aí me despedirei de vós. – Para Escauro, disse em voz baixa: - Leva os outros para o meu escritório. Esperem lá por mim. Tenho de falar a esta gente antes de a mandar embora. É uma questão de cortesia.
Enquanto Escauro e os outros quatro nobres seguiam rapidamente para o escritório de Druso, este conduziu a sua vasta escolta através do jardim, até às grandes portas duplas na extremidade da parede traseira da colunata. Para lá dessas portas ficava o átrio, um belíssimo espaço, extremamente colorido, mas sombrio àquela hora porque o Sol já se tinha posto. Druso permaneceu algum tempo no meio dos seus admiradores, rindo e contando piadas, exortando-os a votar certo no dia seguinte: minutos depois, os homens, em pequenos grupos, começaram a despedir-se dele, até que só ficou um número muito reduzido. O crepúsculo ia dando lugar à noite, e as sombras desses breves instantes, imediatamente antes de as luzes serem acesas, impunham aos muitos recantos do átrio uma escuridão impenetrável.
Óptimo!, pensou Druso. Os últimos homens iam-se embora. Naquela escuridão, um dos homens, ao despedir-se, quase chocava com Druso que, nesse momento, sentiu cair a prega superior da toga; logo a seguir, sentiu uma dor aguda, como que uma queimadura, na virilha direita; uma dor que quase o fazia gritar: refreou-se, porém, pois aqueles homens eram estranhos, apesar de serem seus admiradores. Viu-os afastarem-se rapidamente; diziam que a noite caíra num instante e que estavam ansiosos por chegar a casa antes que a noite semeasse os seus perigos pelas ruas de Roma.
Meio cego pela dor, Druso deixou-se ficar no vão da porta, olhando para o jardim, o braço esquerdo erguido, estorvado pelas múltiplas dobras da toga; esperou que o criado acompanhasse os homens até à porta de saída, na extremidade do peristilo, e encaminhou-se depois para o escritório, onde os amigos o esperavam. Porém, ao dar o primeiro passo, aquela dor inexplicável e estonteante explodiu num furor desesperado. Não podia conter o grito, um grito que lhe rasgou todo o corpo, tão inclemente e penetrante como uma harpia. De repente, sentiu que algo de quente e líquido lhe escorria pela perna direita. Que sensação horrível!
Quando Escauro e os outros saíram a correr do escritório, Druso estava de pé com as pernas já vacilantes, a mão cravada na anca direita; retirou a mão e olhou para ela espantado, pois estava coberta de sangue. Do seu sangue. Sem força nos joelhos, deixou-se cair lentamente no chão, como um balão perdendo lentamente o ar. A dor era cada vez mais forte. De olhos esbugalhados, Druso arfava penosamente.
Foi Mário, e não Escauro, quem tomou o controlo da situação. Libertou a anca direita de Druso das dobras da toga, até que o mistério para aquela dor tremenda encontrou uma solução: o cabo de uma faca espetada na parte superior da virilha.
- Lúcio Cornélio, Quinto Múcio, Marco António, cada um de vós vá procurar um médico diferente - disse Mário energicamente.
- Princeps Senatus, diz para acenderem as luzes imediatamente. Todas as luzes!
Nesse instante, Druso voltou a soltar um grito horrendo, um grito que voou até ao céu pintado do tecto do átrio e aí ficou a pairar como um morcego esvoaçando às cegas de viga em viga; todo o átrio se encheu de gente - os escravos que corriam de um lado para o outro, aos gritos. Cratipo, o criado, que ajudava Escauro a acender as luzes. Cornélia Cipião, encaminhando-se apressada para ao pé do filho, com as seis crianças atrás dela, ajoelhando por fim num chão que o sangue já manchava.
- Assassino! - disse Mário.
- Vou mandar chamar o irmão - disse a mãe, levantando-se, com a saia empapada em sangue.
Ninguém reparou nas seis crianças que, furtivamente, tinham conseguido aproximar-se; boquiabertas, observavam a cena: o sangue derramado que se ia espalhando pelo chão, o rosto horrivelmente contorcido do tio, o cabo da faca, visível na virilha. Druso gritava agora a todo o instante; a dor aumentava à medida que a hemorragia interna comprimia os grandes feixes nervosos que percorriam a perna; a cada grito de agonia, as crianças estremeciam de medo, e choramingavam, até que o jovem Cepião conseguiu ter a calma suficiente para puxar para si o seu esquelético irmão, Catão; com ternura, encostou a cabecita trémula do irmão contra o seu peito, obstando assim a que aqueles olhos esbugalhados de terror continuassem a ver o tio esvaindo-se em sangue.
Cornélia Cipião só deu pelas crianças quando voltou ao átrio. Uma criada, chorosa e trémula, levou-as para o seu quarto. A mãe de Druso ajoelhou-se de novo ao pé do filho, frente a Mário, e tão impotente quanto ele.
Sila apareceu nesse momento, arrastando literalmente Apolodoro Sículo, e atirando-o por fim para o chão, para junto de Mário.
- Este mentula não tem coração! Calculem que não queria deixar o jantar a meio!
- Para eu o examinar, têm de o levar para a cama - disse o médico greco-siciliano, esbaforido ainda.
Mário, Sila, Cratipo e mais dois criados ergueram Druso do chão e levaram-no para a cama, para a mesma cama onde ele e Servília Cepião tinham tentado durante tantos anos dar filhos à sua ligação. O quarto, um quarto pequeno, tinha tanta luz, que parecia dia e não noite.
Outros médicos chegaram entretanto; Mário e Sila deixaram-nos realizar o seu trabalho, juntando-se aos outros no átrio, onde se ouviam claramente os gritos constantes de Druso. Quando Mamerco chegou, Mário apontou para o quarto de Druso, mas não fez qualquer movimento para acompanhar o irmão da vítima.
- Não podemos ir embora - disse Escauro, com um ar envelhecido.
- Não, não podemos - concordou Mário, sentindo-se envelhecido.
- Nesse caso, voltemos para o escritório. Atrapalhamos menos propôs Sila, que tremia ainda por causa do choque e do esforço dispendido para obrigar o médico a abandonar o divã onde jantava.
- Por Júpiter, ainda não estou em mim! - exclamou António Orador.
- Terá sido Cepião? - perguntou Cévola, arrepiado.
- Inclino-me mais para Vário, para esse patife que veio da Hispânia!
- exclamou Sila, mostrando os dentes furioso.
Instalaram-se no escritório, sentindo-se perfeitamente inúteis, impotentes; parecia-lhes que tinham ainda nos ouvidos os gritos terríveis de Druso. Porém, ao fim de alguns minutos no escritório descobriram que Cornélia Cipião era um verdadeiro membro do formidável clã dos Cipiões, pois, apesar da terrível provação por que estava a passar, conseguiu arranjar tempo para lhes mandar vinho e comida, ordenando a um escravo que ficasse ao serviço deles.
Quando os médicos removeram finalmente a faca, depressa concluíram que esta era o instrumento ideal para o objectivo pretendido: era uma faca de sapateiro, de lâmina curva e larga.
- Uma faca destas revolve tudo por dentro - disse Apolodoro Sículo a Mamerco, fazendo ouvir a sua voz apesar dos berros tremendos de Druso.
- O que é que isto significa? - perguntou Mamerco, suando por causa das muitas velas e lamparinas acesas, incapaz de imaginar que implicações poderia ter aquela ferida que torturava o irmão.
- Significa que tudo aquilo que a faca rasgou não pode ser reparado. Os vasos sanguíneos, os nervos, a bexiga e mesmo o intestino, quer-me parecer.
- Não lhe pode dar nada para as dores?
- Já lhe dei xarope de papoulas, mas vou dar-lhe mais. Infelizmente não creio que ajude.
- E o que é que ajuda? - perguntou Mamerco.
- Nada.
- Estás a dizer que o meu filho vai morrer! - perguntou, incrédula, Cornélia Cipião.
- Sim, domina - retorquiu o médico, com um ar digno. - Marco Lívio tem hemorragias internas e externas, e nós não temos meios para detê-las, tanto umas como outras. Sim, ele vai morrer.
- Com tantas dores? Não podes fazer nada para aliviar as dores?
- perguntou a mãe.
- Não há, na nossa farmacopeia, droga mais poderosa que o xarope de papoulas da Anatólia. Se isso não o ajudar, nada o ajudará.
Durante toda a noite, Druso permaneceu na cama, gritando, gritando, gritando a todo o momento. Os sons da sua agonia penetravam em todos os recantos da magnífica casa, chegavam aos ouvidos das seis crianças, que se tinham juntado no quarto de jogos; o pequeno Catão escondia ainda a cabeça nos braços do irmão, e todas choravam: perseguia-as a visão do tio jazendo por terra, perseguia-as mais uma entre tantas tragédias que os seus olhos tinham presenciado.
Mas o jovem Cepião não deixava de embalar o seu irmãozito, e beijava-lhe o cabelo.
- Eu estou aqui, repara! Nada de mal poderá acontecer-te!
Na Clivus Victoriae, as pessoas não paravam de juntar-se. A certa altura, a multidão espalhava-se já num comprimento de trezentos passos, em ambas as direcções; mesmo na rua, ouviam-se os gritos de Druso, acompanhados pelos suspiros e soluços de Roma, por gritos abafados, que também eram de dor.
Os senadores tinham-se reunido entretanto no átrio. Cepião e Filipe, no entanto, não tinham aparecido, o que era, sem dúvida, uma decisão prudente; Lúcio Cornélio Sila foi o primeiro a reparar que Quinto Vário também não viera. A certa altura, Sila viu uma figura movendo-se na escuridão, perto da saída para a loggia; silenciosamente, aproximou-se. Era uma rapariga, com treze ou catorze anos, morena, bonita.
- Que queres daqui? - perguntou Sila, aparecendo de repente à frente da jovem, iluminado por uma lamparina que se encontrava atrás dele.
A rapariga fitou boquiaberta a auréola ígnea de cabelo louro-arruivado, chegando a pensar, por um momento, que era o falecido Catão Saloniano quem estava à sua frente; por isso havia ódio nos seus olhos, um ódio que só ao fim de algum tempo se esbateu.
- E quem és tu para me perguntar isso? - atirou-lhe ela, arrogante, altiva.
- Lúcio Cornélio Sila. Quem és tu?
- Servília.
- Volta para a cama, rapariga. Isto não é lugar para ti.
- Ando à procura do meu pai - retorquiu ela.
- Quinto Servílio Cepião?
- Sim, sim, o meu pai!
Sila riu-se, pouco preocupado em poupá-la.
- Porque haveria ele de estar aqui, minha parvinha, quando meio mundo suspeita que ele mandou matar Marco Lívio?
Os olhos dela brilharam de novo, desta feita de alegria.
- Ele vai mesmo morrer?
- Vai, sim.
- Óptimo! - retorquiu ela, como louca, abriu a porta e desapareceu. Os gritos davam agora lugar a gemidos esporádicos, quase inaudíveis;
os homens que se encontravam no escritório entenderam o significado dessa mudança e, num passo apressado, abriram caminho entre os senadores que enchiam o átrio.
Druso jazia inerte na cama, a pele tão branca como os lençóis, o rosto transformado numa máscara em que alguma entidade diabólica tinha colocado dois olhos escuros, enormes, cheios de brilho e vida, belíssimos. A seu lado, estavam Cornélia Cipião e Mamerco Emílio Lépido Liviano, ambos sem lágrimas, ambos hirtos e crispados. Os médicos tinham-se ido todos embora.
- Meus amigos, chegou a hora de partir - disse Druso.
- Nós sabemos - disse Escauro, afavelmente.
- O meu trabalho ficará por fazer.
- Não, o teu trabalho será concluído - emendou Mário.
- Mas para me deterem tiveram de fazer isto - disse Druso, soltando um grito abafado de dor.
- Quem foi? - perguntou Sila.
- Um daqueles sete homens. Não os conheço. São homens vulgares. Da Terceira Classe, suponho. Não, não eram proletários.
- Tinhas recebido ameaças? - perguntou Cévola.
- Não. Nenhuma - respondeu Druso, voltando a gemer.
- Descobriremos o assassino - disse António Orador.
- Ou o homem que pagou ao assassino - contrapôs Sila. Deixaram-se ficar aos pés da cama, em silêncio, pois não queriam que Druso gastasse as poucas energias que lhe restavam. Porém, no último momento, respirando penosamente, embora a dor já não fosse tão forte, Druso conseguiu sentar-se e, com olhos toldados, fitou os amigos.
- Ecquandone! - perguntou em voz alta, distinta - Ecquandone similem mei eivem habebit rés publica? Quem poderá alguma vez socorrer a República como eu?
Os seus olhos esplêndidos encontravam-se agora cobertos por uma fina película: ganhavam um brilho dourado, opaco. Druso acabava de morrer.
- Ninguém, Marco Lívio - respondeu-lhe Sila. - Ninguém.
Quinto Popaedius Silão soube da morte de Druso através de uma carta de Cornélia Cipião; recebeu a carta em Marrúvio, menos de quarenta e oito horas após a morte do amigo: por aí se via a notável coragem e presença de espírito da mãe de Druso. Cornélia Cipião tinha prometido ao filho que informaria Silão tão depressa quanto possível: Druso queria evitar que o amigo soubesse da sua morte por outras vias.
Silão chorou ao ler a carta, mas não ficou surpreendido nem chocado. Pouco depois, já se sentia mais leve, cheio de ideias; o tempo da expectativa e das dúvidas tinha acabado: finalmente tinha acabado. Com a morte de Marco Lívio Druso, esboroavam-se todas as esperanças de os Italianos conquistarem pacificamente a cidadania.
Silão enviou imediatamente cartas para Caio Pápio Mutilo, dos Samnitas, Hério Asínio, dos Marrucinos, Públio Presenteio, dos Pelignos, Caio Vidacílio, dos Picentinos, Caio Pontídio, dos Frentanos, Tito Lafrénio, dos Vestinos, e também para quem quer que governasse na altura os Hirpinos, um povo famoso por estar constantemente a mudar de pretores. Mas onde haveriam de encontrar-se? Todas as nações italianas sabiam que por essa altura viajavam pela península dois pretores romanos, investigando a ”questão italiana”; suspeitavam, por isso, de todos os locais que tivessem um estatuto romano ou latino. O ideal seria um local central para a maior parte dos dirigentes, não frequentado por romanos, mas servido por uma boa estrada - ou seja, por uma estrada romana. Silão não demorou muito tempo a encontrar uma resposta: uma cidade situada nos Apeninos Centrais, de difícil acesso, defendida por altas muralhas, e com água por perto: Corfínio, servida pela Via Valério e situada perto do rio Aterno, uma cidade dos Pelignos que fazia fronteira com as terras dos Marrucinos.
Poucos dias após a morte de Druso, os dirigentes de oito nações italianas (os Marsos, os Samnitas, os Marrucinos, os Vestinos, os Pelignos, os Frentanos, os Picentinos e os Hirpinos) reuniram-se em Corfínio, acompanhados por muitos dos seus partidários. Entusiasmados e determinados.
- É a guerra! - disse Mutilo, e essas foram praticamente as primeiras palavras pronunciadas na reunião. - Temos de ir para a guerra, irmãos italianos! Roma recusa-se a conceder-nos a dignidade e o estatuto que os nossos feitos e o nossos poder implicam. Construiremos um país independente sem qualquer negociação prévia com Roma ou com os Romanos, ocuparemos as colónias romanas e latinas fundadas dentro das nossas fronteiras, determinaremos o nosso futuro com os nossos próprios homens e com o nosso próprio dinheiro!
Esta declaração aguerrida foi imediatamente saudada com vivas e um ruidoso bater de pés, uma reacção que Mutilo considerou estimulante e Silão encorajadora; porque o primeiro estava cheio de ódio a Roma, e o segundo não acreditava já no que os Romanos pudessem fazer.
- Acabaram-se os impostos para Roma! Não mais soldados para Roma! Não mais terras para Roma! Não mais costas italianas para os romanos açoitarem! Acabou-se a servidão a que nos condenam as dívidas! Acabaram-se as vénias, as saudações, as humilhações perante Roma! - gritou Mutilo. - Seremos um poder de que só nós beneficiaremos! Nós substituiremos Roma! Porque Roma, companheiros italianos, ficará reduzida a cinzas!
Esta assembleia realizou-se na praça do mercado de Corfínio, pois a cidade não tinha nenhum edifício ou Fórum suficientemente grande para albergar dois mil homens; por isso, os vivas que saudaram a segunda parte do breve discurso de Mutilo ergueram-se nos ares e flutuaram para lá das muralhas da cidade, formando uma imensa onda sonora que afugentou os pássaros e fez tremer a população.
E pronto, está tudo feito, pensou Silão enquanto escutava os participantes. Todas as decisões tinham sido tomadas.
Na realidade, porém, havia ainda muitas decisões a tomar. Em primeiro lugar, encontrar um nome para o novo país.
- Itália! - gritou Mutilo.
Depois, um nome para a nova capital de Itália, até esse momento Corfínio.
- Itálica! - gritou Mutilo. Depois, um governo.
- Um conselho de quinhentos homens, onde estejam equitativamente representadas todas as nações que formam a Itália - disse Silão, a quem Mutilo tinha dado de bom grado a palavra; Mutilo era o coração de Itália, Silão o seu cérebro. - Todas as nossas leis, incluindo a Constituição, serão elaboradas e aplicadas por este conciliam Italiae, o qual terá a sua sede permanente na nossa nova capital, Itálica. Porém, como todos sabem, teremos de lutar contra Roma antes que a Itália se torne uma realidade. Portanto, enquanto a guerra com Roma não tiver terminado - e terminará com a nossa vitória! -, a Itália disporá de um conselho de guerra, formado por doze pretores e dois cônsules. Sim, eu sei, são denominações romanas, mas para o caso servem. Agindo sempre com o conhecimento e o consentimento do concilium Italiae, este conselho de guerra será responsável pela condução das operações de guerra contra Roma.
- Ninguém em Roma irá acreditar! - gritou Tito Lafrénio, dos Vestinos. - Dois nomes? É tudo o que temos para oferecer? Um nome para um país que não existe e um nome novo para uma cidade velha!
- Roma irá acreditar - retorquiu calmamente Silão. - Quando nós começarmos a cunhar moeda e a chamar arquitectos para desenharem o centro de uma cidade magnífica, Roma irá acreditar! A nossa primeira moeda mostrará as oito nações fundadoras, simbolizadas por oito homens empunhando espadas com que sacrificam o porco, Roma; no outro lado, mostrará o rosto de uma nova deusa do panteão italiano: a deusa Itália! O nosso animal será o touro samnita. O nosso deus padroeiro será Líber, o Pai da Liberdade, e ele conduzirá uma pantera pela coleira, pois Roma será essa pantera quando nós a domarmos! E antes que passe um ano, a nossa nova capital terá um Fórum tão grande como o de Roma, uma sede para as reuniões do conselho, capaz de albergar quinhentos homens, um templo a Itália, maior que o templo de Ceres em Roma, e um templo a Júpiter Italiae maior que o templo de Júpiter Optimus Maximus em Roma! Não ficaremos atrás de Roma, como Roma depressa verá.
Os vivas fizeram-se de novo ouvir; Silão esperou, com um sorriso feliz, que o silêncio voltasse.
- Roma não nos encontrará divididos! - disse. - Juro-o perante todos os homens aqui presentes, perante todos os homens de uma Itália livre. Juntaremos todos os nossos recursos, sejam eles homens ou dinheiro, comida ou quaisquer outros artigos! E aqueles que vão conduzir a guerra contra Roma, em nome de Itália, trabalharão como um corpo unido, como um só corpo, mais unidos e solidários do que todos os comandantes que já houve na história da guerra! Por toda a Itália, os nossos soldados aguardam que os convoquemos para a guerra! Temos cem mil homens prontos a avançar dentro de dias, e mais virão, muitos mais! - Fez uma pausa, e riu-se bem alto. - Dentro de dois anos, meus amigos italianos, serão os Romanos que suplicarão o estatuto de cidadãos de Itália!
Porque a causa era tão justa quanto digna e tão amada quanto imperiosa, não houve praticamente escaramuças pelo poder, e não se verificou qualquer guerra intestina; o conselho dos quinhentos lançou-se no cumprimento dos seus deveres cívicos naquele mesmo dia, ao passo que o conselho de guerra realizou a sua primeira reunião para discutir os preparativos bélicos.
Os magistrados do conselho de guerra tinham sido eleitos pelo sistema grego de mão levantada, e incluíam mesmo dois pretores de nações que ainda não tinham adendo ao projecto chamado Itália: a Lucânia e a Venúsia. Mas os eleitores estavam convictos de que Lucanianos e Venusinos viriam a juntar-se à nova nação.
Os dois cônsules eram Caio Pápio Mutilo, dos Samnitas, e Quinto Popaedius Silão, dos Marsos. Entre os pretores, contavam-se Hério Asínio, dos Marrucinos, Públio Vétio Escalo, dos Marsos, Públio Presenteio, dos Pelignos, Caio Vidalício, dos Picentinos, Mário Egnácio, dos Samnitas, Tito Lafrénio, dos Vestinos, Tito Herénio, dos Picentinos, Caio Pontídio, dos Frentanos, Lúcio Afrânio, dos Venusinos, e Marco Lampónio, dos Lucanianos.
O conselho de guerra, instalado na pequena sala de reuniões públicas da cidade de Corfínio/Itálica, lançou-se imediatamente ao trabalho.
- Temos de atrair às nossas hostes os Etruscos e os Umbrios disse Mutilo. - Se eles não se juntarem a nós, nunca conseguiremos isolar Roma do Norte. E se não conseguirmos isolar Roma do Norte, Roma continuará a utilizar os recursos da Gália Italiana.
- Os Etruscos e os Umbrios são povos muito peculiares - disse Escalo. - Nunca se consideraram Italianos da mesma forma que nós; e, no fim de contas, Roma trata-os miseravelmente!
- Eles organizaram uma marcha de protesto contra a divisão da ager publicus - disse Hério Asínio. - Julgo que isso indica que eles nos apoiarão.
- Eu creio que é precisamente o contrário - disse Silão, com uma expressão dubitativa. - De todos os povos italianos, os Etruscos são os mais ligados a Roma. E os Umbrios limitam-se a seguir cegamente os Etruscos. Digam-me, por exemplo, que dirigentes etruscos ou úmbrios conhecemos nós? Algum de nós mantém relações de amizade com esses dirigentes? Ninguém! O problema é que os Apeninos sempre os separaram de nós; por outro lado, têm a Gália Italiana a norte, e Roma e o Lácio a sul. Eles vendem a madeira de pinho e os porcos a Roma, e não às outras nações italianas.
- Quanto aos pinheiros, percebo que tenham importância, mas os porcos... - comentou Vidacílio, representante dos Picentinos.
Silão pôs um esgar mal-disposto.
- Há porcos e porcos, Caio Vidacílio! Não te esqueças que é da pele do porco que se faz a cota de malha.
- Pisa e Populónia! - disse Vidacílio. - Estou a ver onde queres chegar.
- Bom, a Etrúria e a Úmbria são uma questão a resolver num futuro próximo - disse Mário Egnácio. - Sugiro que escolhamos os membros mais persuasivos do conselho dos quinhentos e que os enviemos para conversações com os dirigentes etruscos e úmbrios, enquanto nós nos concentramos na nossa especialidade: a guerra. Como vamos começar esta guerra?
- Que achas, Quinto Popaedius? - perguntou Mutilo.
- A primeira medida a tomar, naturalmente, é convocar os nossos soldados e prepará-los para as primeiras batalhas. Mas enquanto fazemos isso, sugiro que enviemos uma delegação ao Senado de Roma, para pedir uma vez mais a cidadania. Claro que esta delegação servirá apenas para tranquilizar Roma.
Mário Egnácio não estava nada de acordo.
- Ora, deixa-os usar a cidadania deles da mesma forma que os Gregos usam os rapazes bonitos!
- Sim, claro - disse Silão, divertido. - Mas é preciso que sejam os nossos exércitos a dizerem-lhes isso! Nós estamos prontos para a guerra, é certo, mas demoraremos pelo menos um mês a proceder à mobilização. Eu sei que em Roma quase toda a gente pensa que nós estamos longe de reunir as condições para avançar. Para quê desiludi-los? Se mandarmos uma delegação, eles continuarão a pensar que nós não estamos minimamente preparados.
- Concordo inteiramente, Quinto Popaedius - disse Mutilo.
- Óptimo. Nesse caso, sugiro que escolhamos um segundo grupo de homens com capacidade de persuasão, entre os nossos quinhentos conselheiros. Mas penso que será melhor que esta embaixada a Roma seja conduzida por pelo menos um membro do conselho de guerra.
- De uma coisa estou certo - disse Vidacílio. - É que se queremos ganhar esta guerra, teremos de agir rapidamente. Temos de atacar os Romanos depressa e em força, em tantas frentes quanto possível. Temos tropas muito bem treinadas, e não nos falta material bélico. Temos óptimos centuriões. - Fez uma pausa e, com um ar muito triste, acrescentou: - No entanto, não temos generais.
- Discordo! - disse Silão com firmeza. - Se com isso queres dizer que não temos um Caio Mário à nossa disposição, então acho que tens toda a razão. Mas Caio Mário já está velho. Que outros generais têm os Romanos? Quinto Lutácio Catulo César, que se vangloria de ter derrotado os Germanos Címbricos na Gália Italiana, quando todos sabemos que o autor dessa proeza foi Caio Mário? Têm Tito Dídio, mas Tito Dídio não é nenhum Mário, longe disso. Mais importante ainda, os Romanos têm as suas legiões em Cápua: quatro legiões, e todas elas veteranas. Os seus melhores generais actualmente em funções são Sêncio e Brútio Sara, que se encontram na Macedónia, mas ninguém se atreveria a chamá-los a Roma, porque estão demasiado ocupados.
- Se Roma se vir ameaçada por gente como nós - disse Mutilo, num tom amargo -, pedirá auxílio a todas as províncias e todos os seus homens regressarão para combater. É por isso que temos que lançar e vencer esta guerra rapidamente!
- Tenho mais uma coisa a dizer a respeito dos generais - disse pacientemente Silão. - Não creio que seja realmente importante saber quem são ou deixam de ser os actuais generais romanos. Porque Roma comportar-se-á como sempre se comportou: os cônsules do ano serão os comandantes operacionais. Julgo que não iremos enfrentar Sexto Júlio César e Lúcio Márcio Filipe: estão prestes a abandonar os seus cargos. Quem serão os cônsules do próximo ano, não faço ideia. Mas suponho que já devem ter eleito alguém. É por tudo isto que discordo de ti, Caio Vidacílio, e de ti, Caio Pápio. Todos nós que aqui estamos, temos tanta experiência militar como qualquer dos candidatos a cônsul em Roma. Eu, por exemplo, participei já em várias batalhas importantes e tive o privilégio de assistir à horrível derrota de Roma em Arausio!
O meu pretor Escaulo, tu próprio, Caio Vidacílio, Caio Pápio, Hério Asínio, Mário Egnácio, ora, não há um homem nesta sala que não tenha participado em pelo menos seis campanhas! Conhecemos os procedimentos de chefia tão bem como qualquer chefe que os Romanos escolham.
- E temos uma grande vantagem - disse Presenteio. - Conhecemos a região melhor que os Romanos. Há anos que treinamos homens em toda a Itália. A experiência militar romana fez-se no estrangeiro, não em Itália. Os legionários vão para o estrangeiro mal saem das escolas de recrutas de Cápua. É pena que as tropas de Dídio não tenham embarcado também, mas essas quatro legiões de veteranos são afinal as tropas de que Roma dispõe actualmente, caso não chame as legiões que se encontram nas províncias.
- Públio Crasso não trouxe tropas da Hispânia Ulterior quando celebrou o seu triunfo? - perguntou Hério Asínio.
- Trouxe, de facto, mas todas essas tropas voltaram à Hispânia porque houve mais uma revolta dos povos locais - disse Mutilo, que se encontrava em melhores condições para saber o que se passava em Cápua. - As quatro legiões de Tito Dídio ficaram em Cápua para o caso de serem necessárias na Província da Ásia e na Macedónia.
Nesse instante, entrou na sala um mensageiro com uma nota dos conselheiros; Mutilo recebeu a nota, leu-a calmamente várias vezes e depois desatou à gargalhada.
- Muito bem, generais do conselho de guerra! Parece que os nossos amigos que estão lá fora na praça do mercado, se mostram tão decididos como nós! Tenho aqui um documento informando que todos os membros do concilium Italiae determinaram que qualquer cidade importante de Itália se associe a outra cidade de importância idêntica de outro estado italiano, a fim de que troquem reféns - cinquenta crianças de todas as classe sociais!
- Eu diria que isso revela desconfiança - comentou Silão.
- Sim, creio que tens razão. De qualquer modo, trata-se também de uma prova física de dedicação e determinação. Preferia chamar-lhe um acto de fé, porque, reparem, todas as cidades de Itália irão pôr em perigo as vidas de cinquenta das suas crianças - disse Mutilo. - As cinquenta de Marrúvio irão naturalmente para Boviano. Pelo que vejo, já há trocas decididas: Ásculo do Piceno trocará com Sulmona, e Sepino com Teate. Muito bem!
Silão e Mutilo abandonaram então a sala, a fim de conferenciarem com o conselho dos quinhentos; quando regressaram, pouco tempo depois, verificaram que os seus colegas do Conselho de Guerra tinham estado a discutir estratégia na sua ausência.
- Marcharemos sobre Roma em primeiro lugar - disse Tito Lafrénio.
- Sim, mas não utilizaremos todas as nossas forças nessa investida
- disse Mutilo, sentando-se. - Partindo do princípio de que não conseguiremos a ajuda da Etrúria e da Úmbria, e julgo que será melhor pensarmos nesses termos, nada poderemos fazer a norte de Roma, pelo menos por ora. E não podemos esquecer que o Norte do Piceno se encontra sob o controlo dos Pompeus e que, por isso, dificilmente nos ajudará. Estão de acordo comigo, Caio Vidacílio, Tito Herénio?
- Temos de concordar - disse Vidacílio, num tom sombrio. - O Norte do Piceno é romano. Só Pompeu Estrabão tem mais de metade do território; e o que não é dele, é de Pompeu Rufo. Nós temos uma cunha entre Sentino e Camerino, nada mais.
- Muito bem, teremos de abandonar quase totalmente o Norte disse Mutilo. - A leste de Roma, estamos em muito melhores condições. E no sul da península temos uma excelente oportunidade de separar por completo Roma de Tarento e Brindísio. Se Marco Lampónio integrar a Lucânia na Itália, e estou certo de que ele o fará, então conseguiremos também isolar Roma de Régio. Fez uma pausa, e pôs um ar preocupado.
- No entanto, temos ainda as terras baixas da Campânia, que se estendem através do Sâmnio e até ao Adriático Apulo. E é aí que temos de atacar com mais força, por várias razões. Basicamente porque Roma pensa que a Campânia está exausta e que é, por fim, inegavelmente romana. Mas isso não é verdade! É possível que eles se agarrem a Cápua e a Putéolos. Mas creio que conseguiremos subtrair o resto da Campânia ao poder romano! E, se o fizermos, ficaremos com os melhores portos de mar do extremo sul, que são vitais para Roma, tirar-lhes-emos as melhores terras da zona, do ponto de vista agrícola, e isolaremos Cápua. Logo que obriguemos Roma a uma posição meramente defensiva, a Etrúria e a Úmbria passar-se-ão para o nosso lado. Temos de controlar todas as estradas que dão acesso a Roma, e teremos de fazer um esforço suplementar para controlar também a Via Flamínia e a Via Cássia. Claro, logo que a Etrúria passe a apoiar-nos, todas as estradas romanas ficarão sob o nosso controlo. Se necessário, faremos com que Roma morra à fome.
- Estás a ver, Caio Vidacílio? - perguntou Silão, com uma expressão triunfante. - Quem disse que não temos generais?
Vidacílio ergueu as mãos num gesto de rendição.
- Perfeitamente de acordo, Quinto Popaedius! Não há dúvida que Caio Pápio é um general.
- Julgo que não será preciso sairmos desta sala para encontrarmos uma dúzia de bons generais - retorquiu Mutilo.
No mesmo dia em que a nova nação foi formada e os seus mais proeminentes homens reuniram em Itálica, a nova capital, o pretor Quinto Servílio, da família Augure, deixou a cidade portuária de Firmo Picentino, regressando finalmente a Roma pela Via Salária. Desde Junho que patrulhava as terras a norte de Roma, tendo começado por percorrer os férteis montes da Etrúria, até ao rio Arno, que formava a fronteira da Gália Italiana; daí, seguiu para leste, para a Umbria, depois para sul, até Piceno, acompanhando por fim a costa adriática. Sentia que tinha realizado na perfeição a sua tarefa. Movera céu e terra para descobrir uma conspiração astuciosamente elaborada - e se não a tinha descoberto, é porque não havia nenhuma conspiração astuciosamente preparada, disso estava ele certo.
A sua viagem fora em tudo digna de um rei. Dotado de autoridade proconsular, desfrutara da magnificente prerrogativa que consistia em ser permanentemente acompanhado por doze lictores, com os seus trajes carmesins e os seus cintos pretos com fivela de bronze, empunhando os fasces. Cavalgando um palafrém branco como a neve, vestido com uma armadura chapeada a prata, com uma túnica roxa por baixo, Quinto Servílio, sem o saber, imitara mesmo o rei Tigranes da Arménia, ordenando que um escravo o acompanhasse permanentemente, de sombrinha na mão, a fim de o proteger do sol. Se Lúcio Cornélio Sila o tivesse visto, por certo teria ficado perdido de riso. E por certo tê-lo-ia obrigado a desmontar aquele cavalo mais próprio para meninas e a esfregar a cara na poeira do chão.
Todos os dias, um grupo de criados de Quinto Servílio seguia à sua frente, a fim de procurar as melhores acomodações para o senhor, normalmente a villa de um magnata ou de um magistrado locais; em contrapartida, Quinto Servílio manifestava a maior indiferença relativamente às condições em que os seus homens viajavam. Para além dos lictores e de um vasto grupo de escravos, era ainda escoltado por vinte soldados fortemente armados e dotados de possantes cavalos. Só porque precisava de companhia naquela vagarosa deambulação italiana, Quinto Servílio levara consigo um assistente, um tal Ponteio, um indivíduo que só a riqueza tornara notado, a riqueza e o facto de ter dado a filha, Fonteia, de sete anos (acompanhada, naturalmente, de um fabuloso dote), ao Colégio das Virgens Vestais.
Achava Quinto Servílio que os senadores tinham feito demasiado barulho por nada; não ia, contudo, queixar-se, pois vira mais de Itália do que alguma vez imaginara ser possível, e em circunstâncias invulgarmente agradáveis. Em todos os lugares que visitou, foi alvo das melhores recepções e dos mais opíparos banquetes; a sua arca dos dinheiros estava mais do que meio cheia, devido à generosidade dos seus anfitriões e ao facto de a sua autoridade proconsular impressionar qualquer um; por isso, Quinto Servílio terminaria o seu ano como pretor com a bolsa bem recheada - e tudo à custa do Estado.
A Via Salária era a velha estrada do sal, a via que conduzira Roma à prosperidade nos tempos antes dos reis, quando o sal extraído das terras baixas de Ostia era transportado pelos mercadores-soldados latinos. Agora, contudo, a importância da Via Salária era diminuta, de tal forma que o Estado desprezava a sua manutenção, como Quinto Servílio pôde verificar pouco depois de ter deixado Firmo Piceno. Em muitos pontos, a estrada encontrava-se coberta de terra de desmoronamentos causados por inundações; por outro lado, a sua superfície estava tão deteriorada que era frequente verem-se as pedras redondas das fundações - e, para cúmulo, quando se preparava para entrar na cidade seguinte, Ásculo Picentino, encontrou a estrada completamente obstruída por um desmoronamento. Os seus homens demoraram um dia e meio a desobstruir a via; Quinto Servílio passou esse dia e meio no maior desconforto, e a ausência de conforto deixava-o horrorizado.
A viagem a partir da costa era feita a grande altitude, sobre escarpas, pois o litoral oriental era estreito, acompanhado de perto pelos Apeninos. Contudo, Ásculo Picentino era a maior e a mais importante cidade de todo o Sul do Piceno, rodeada por uma assustadora muralha, muito alta, fazendo quase que uma circunferência, imitando os assustadores picos das montanhas que cercavam a cidade. O rio Truentio corria perto da cidade; naquela altura do ano, pouca água tinha, mas os espertos e diligentes Asculanos iam buscar a sua água a uma camada de cascalho situada muito abaixo do leito do rio.
Quando por fim chegou às portas de Ásculo Picentino, Quinto Servílio verificou que a sua guarda avançada de criados tinha feito o trabalho que dela esperava; de facto, foi recebido por um pequeno grupo de prósperos mercadores, que falavam latim em vez de grego, e que usavam todos as togas da cidadania romana.
Quinto Servílio desceu do alvo palafrém, prendeu o manto roxo sobre o ombro esquerdo, e recebeu a comissão de boas-vindas com graciosa condescendência.
- Esta cidade não é uma colónia romana, nem latina, pois não? perguntou ele num tom vago, pois os seus conhecimentos em tais matérias deixavam muito a desejar, para mais tendo em conta que era um pretor romano viajando por toda a Itália.
- Não, Quinto Servílio. Mas vivem aqui cerca de cem comerciantes romanos - disse o chefe da comissão, de seu nome Públio Fabrício.
- E onde é que estão os dirigentes picentinos? - perguntou Quinto Servílio com um ar indignado. - Então os nativos não me vêm receber?
Fabrício pôs um ar de quem pedia sinceras desculpas.
- Há meses que os Picentinos nos evitam, a nós, Romanos, Quinto Servílio. Não sei porquê! O que sei é que os sentimentos deles em relação a nós não são os mais acolhedores. Além disso, hoje há uma festa em honra de Picus.
- Picus? - perguntou Quinto Servílio, espantado. - Têm uma festa em honra de um pica-pau?
O grupo entrava agora numa pequena rua ornamentada com grinaldas de flores outonais. As ruas estavam juncadas de pétalas de rosas e minúsculos malmequeres.
- Nestas regiões, Picus é uma espécie de Marte picentino - disse Fabrício. - Picus foi o rei da velha Itália, crêem eles, e conduziu os Picentinos das terras dos Sabinos, onde viviam inicialmente, para estas terras a que agora chamamos Piceno. Quando aqui chegaram, Picus transformou-se num pica-pau e definiu as fronteiras do país picando nas árvores.
- Oh... - disse Quinto Servílio, perdendo todo o interesse pelo assunto.
Fabrício conduziu Quinto Servílio e o lugar-tenente deste, Ponteio, para a sua magnífica mansão, situada no ponto mais alto da cidade, depois de ter arranjado alojamentos confortáveis para os lictores e os soldados, e de ter mandado os escravos de Servílio para as casas ocupadas pelos seus próprios escravos. Perante tratamento tão respeitoso e luxuoso, Quinto Servílio ficou mais alegre e expansivo. Especialmente depois de ter visto o seu quarto, sem dúvida o melhor naquela bela casa. O dia estava quente, o sol brilhava intenso no céu; os dois romanos tomaram banho, e foram ter depois com o seu anfitrião, que estava na extensa loggia da casa, a qual dominava toda a cidade, as muralhas impressionantes, e as montanhas ainda mais impressionantes. Aquela casa tinha de facto uma vista soberba, uma vista muito mais grandiosa do que era costume em casas citadinas.
- Se quiseres, poderemos ir ao teatro esta tarde, Quinto Servílio
- propôs Fabrício quando os seus convidados apareceram. - A peça é As Báquides, de Flauto.
- Parece-me uma óptima ideia - retorquiu Quinto Servílio, sentado numa bela cadeira almofadada e coberta. - Não vou ao teatro desde que saí de Roma. Soltou um voluptuoso suspiro. - Reparei que há flores por todo o lado, mas não se vê ninguém na rua. Será por causa dessa festa do pica-pau?
Fabrício franziu o sobrolho.
- Não. Parece que isso tem a ver com uma nova política, sem dúvida muito peculiar, que os Italianos adoptaram. Cinquenta crianças de Ásculo, todas elas italianas, foram enviadas para Sulmona esta manhã, e Ásculo vai receber cinquenta crianças de Sulmona.
- Mas isso é extraordinário! Quem tal ouvir, até é capaz de pensar que estão trocando reféns - disse Quinto Servílio, instalando-se confortavelmente na cadeira. - Estarão os Picentinos a pensar declarar guerra aos Marrucinos? Até dá a impressão que é isso, não é?
- Não ouvi nenhum rumor acerca de uma eventual guerra - retorquiu Fabrício.
- Mas se eles mandaram cinquenta crianças para uma cidade dos Marrucinos e estão à espera de cinquenta crianças marrucinas, não há dúvida que isso sugere, no mínimo, que as relações entre os Picentinos e os Marrucinos não estão muito boas. - Quinto Servílio soltou um risinho, e acrescentou: - Ah, não seria uma maravilha se eles se envolvessem numa guerra? Pelo menos, esqueciam-se da questão da cidadania. - Sorveu o vinho e olhou para o seu anfitrião com um ar espantado. - Meu caro Públio Fabrício! Vinho gelado?
- Uma óptima ideia, não é verdade? - disse Fabrício, particularmente satisfeito por conseguir surpreender agradavelmente um pretor romano com um nome tão antigo, tão famoso, e tão patrício, como Servílio.
- Envio uma expedição às neves todos os meses, e por isso disponho sempre de neve suficiente para gelar o meu vinho durante todo o Verão e todo o Outono.
- Delicioso - disse Quinto Servílio, recostando-se na cadeira. - A que ramo do comércio te dedicas, Públio Fabrício? - perguntou inopinadamente.
- Tenho um contrato exclusivo com a maior parte dos fruticultores da região - respondeu Públio Fabrício. - Compro todas as suas maçãs e pêras, e marmelos também. A fruta de melhor qualidade, envio-a para Roma, onde é vendida. Quanto à restante, uso-a para fazer geleia na minha pequena fábrica, geleia que mando depois para Roma. E também tenho um contrato para a comercialização do grão-de-bico.
- Muito bem! Muito bem! - comentou Quinto Servílio.
- De facto tenho-me saído muito bem - disse Fabrício, sem esconder a vaidade. - Sabes, é típico dos Italianos, quando vêem um homem com cidadania romana começar a viver melhor do que eles, desatarem a criticar os monopólios e a dizer que as nossas práticas comerciais são injustas, enfim, não se calam com as suas disparatadas lamúrias. A verdade, porém, é que eles não querem trabalhar, e aqueles que trabalham não têm queda para o negócio! Se as coisas dependessem deles, pode crer que todos os produtos agrícolas acabariam por apodrecer no chão. Não vim para este buraco frio e desolado para lhes roubar o comércio! Quando comecei, não sabiam o que me haviam de fazer, eram de uma gratidão extrema. Agora, todos os italianos de Ásculo me consideram persona non grata. E isso acontece com todos os meus amigos romanos, Quinto Servílio.
- Já ouvi essa história muitas vezes, Públio Fabrício, de Satúrnia a Arímino - retorquiu o pretor encarregado de estudar a ”questão italiana”.
Quando o calor começou a abrandar, Públio Fabrício e os seus distintos convidados puseram-se a caminho do teatro, uma estrutura provisória de madeira, encostada à muralha da cidade, o que permitia que todos os espectadores ficassem à sombra durante a representação. Talvez houvesse já no teatro cinco mil picentinos, embora não ocupassem as duas filas da frente daquela estrutura semicircular; essas duas filas estavam reservadas para os romanos.
Fabrício tinha introduzido alguns melhoramentos de última hora na primeira fila, precisamente a meio: mandara erigir um agradável estrado coberto com um dossel. O estrado era suficientemente grande para albergar a cadeira curul de Quinto Servílio, a cadeira de Ponteio, e uma terceira cadeira para Fabrício. Pouco se preocupara com o facto de tal construção tapar a vista das pessoas que se sentavam nas filas imediatamente atrás. O seu convidado era um pretor romano dotado de autoridade proconsular, logo muito mais importante do que todos aqueles italianos juntos.
O grupo entrou no auditório através de um túnel sob a cavea, aparecendo num corredor situado a cerca de doze filas do estrado, que ficava em frente do espaço reservado aos músicos, um semicírculo desocupado entre a audiência e o palco. À frente surgiram os lictores, muito empertigados, com os fasces aos ombros; depois, foi a vez de aparecerem o pretor e o seu lugar-tenente, com um Fabrício radiante caminhando a passo rápido a seu lado; atrás deste trio, vinham os vinte soldados. A mulher de Fabrício - a quem os visitantes romanos não tinham sido apresentados - sentou-se com as amigas à direita do estrado, mas na fila de trás; a fila da frente destinava-se exclusivamente a homens cidadãos romanos.
Mal o grupo apareceu no teatro, um grande murmúrio percorreu as filas onde estavam sentados os picentinos, os quais, para poderem ver alguma coisa, tinham de erguer bem alto o pescoço; o murmúrio transformou-se num resmungo, e o resmungo num urro, acompanhado de vaias e assobios. Embora intimamente espantado e desanimado com recepção tão hostil, Quinto Servílio, da família Augure, avançou com um ar grave e arrogante na direcção do estrado e instalou-se regiamente na sua cadeira de marfim, imaginando-se o patrício Servílio que não era. Ponteio e Fabrício seguiram-no, ao passo que os lictores e os soldados se distribuíram pelas filas da frente, segurando lanças e fasces entre os joelhos nus.
A peça começou, e era uma das melhores e mais divertidas peças de Flauto - e uma das mais deliciosamente musicais que tinha escrito. A companhia, ainda que ambulante, era boa, com actores de origens diversas: alguns eram romanos, outros latinos, outros ainda italianos; não havia qualquer grego no elenco, pois aquela companhia tinha-se especializado nas comédias latinas. Costumavam parar todos os anos em Ásculo Picentino por altura da festa de Picus. Naquele ano, porém, o público parecia-lhes diferente. Os sentimentos anti-romanos eram a causa dessa diferença e constituíam algo de inteiramente novo. Por isso, os actores lançaram-se ao trabalho com redobrado vigor, procurando acentuar ainda mais os aspectos divertidos da peça. Estavam decididos a acabar com o soturno humor dos Picentinos.
Infelizmente, também entre os actores havia divisões; enquanto que os romanos actuavam despudoradamente para os homens que se encontravam no estrado, os latinos e os italianos concentraram-se no público asculano. Depois do prólogo, veio a definição da intriga, alguns diálogos hilariantes entre as principais personagens, e um belo dueto cantado com acompanhamento à flauta. Surgiu depois o primeiro canticum, uma magnífica ária de tenor, acompanhada pelos belos tons da lira. O cantor, um italiano de Sâmnio, tão famoso pela sua voz como pela sua habilidade em alterar o texto original, avançou com passos decididos para a boca de cena e cantou directamente para o estrado de honra.
Saudações, pretor romano! Saudações, e vai para casa! Pois não será desumano
Tanto brilho, tanta farsa? Olhem só! Mas que arrogante! Não há nada que o espante! Não está certo, ora não? Que esteja nesta prisão! Vamos correr com o sabujo! Que se dane o porco sujo! Mas que altiva figura Na cadeira de marfim! Vamos dar-lhe com fartura!
Vamos fazê-lo em pudim! Um pontapé no Romano Nos tomates do magano! Ele que lamba os nossos Depois de levar nos ossos!
A canção inventada não passou daí. Um dos guarda-costas de Quinto Servílio pegou na sua lança e, sem se dar sequer ao trabalho de se levantar, lançou-a com força; o tenor samnita caiu morto: a lança tinha-o trespassado. No seu rosto, ficou a expressão com que cantara a canção: uma expressão do mais profundo desprezo.
Um silêncio absoluto instalou-se na sala. Os espectadores picentinos não acreditavam no que viam e não sabiam o que fazer. Perante a apatia do público, o actor latino Saunio, que era extremamente popular, entrou no palco e começou a falar febrilmente, enquanto quatro dos seus colegas levavam o cadáver e os dois actores romanos desapareciam num ápice.
- Meus caros picentinos, eu não sou um romano! - exclamou Saunio, agarrando-se a um pilar como se fosse um macaco, subindo e descendo o pilar, a máscara balançando-lhe na mão. - Peço-vos por tudo, não me confundam com aqueles indivíduos! - E apontou para o estrado romano. - Eu não passo de um latino, meus caros picentinos! Eu também tenho de suportar osfasces com que eles se passeiam pela nossa querida Itália! Também eu deploro os actos destes arrogantes predadores romanos!
Nesse momento, Quinto Servílio levantou-se da sua cadeira de marfim, desceu do estrado, atravessou o espaço destinado aos músicos e subiu ao palco.
- Se não queres levar também com uma lança, desaparece, actor!
- disse Quinto Servílio a Saunio. - Nunca na minha vida ouvi tais insultos! Dêem-se por felizes, miseráveis italianos, por eu não mandar os meus homens matá-los a todos!
Quinto Servílio virou-se para os espectadores. A acústica do teatro era tão boa que, mesmo falando num tom normal, a sua voz era ouvida no ponto mais alto da cavea.
- Eu não esquecerei o que foi dito aqui! - atirou-lhes. - A auctoritas romana foi mortalmente ofendida! Os cidadãos deste esterco italiano pagarão caro a afronta, disso podem estar certos!
O que aconteceu a seguir foi de tal modo rápido que ninguém soube mais tarde explicar como tudo se precipitara; os cinco mil picentinos presentes na sala desceram, como uma massa turbulenta e furiosa, até às duas filas da frente, saltaram para o semicírculo desocupado da orquestra e caíram sobre soldados, lictores e cidadãos romanos, como uma sólida muralha de corpos frenéticos e de mãos que nada conseguiria deter. Nem uma lança foi erguida, nem uma espada empunhada, nem uma machada retirada dos feixes de varas; soldados e lictores, homens de toga e respectivas esposas, todos foram literalmente destroçados. As primeiras filas do teatro transformaram-se num tumulto de sangue, e bocados de corpos eram atirados, como bolas, de um lado para o outro da orquestra. A multidão berrava como louca, chorava de alegria e ódio. Num instante, reduzira quarenta militares e duzentos comerciantes romanos a pedaços de carne ensaguentada. Ponteio e Fabrício foram dos primeiros a perecer às mãos dos italianos.
Quinto Servílio, da família Augure, também não escapou. Alguns espectadores subiram ao palco antes que ele conseguisse pensar na melhor maneira de fugir, e, com estranhos requintes, cortaram-lhe as orelhas, puxaram-lhe o nariz até o partirem, arrancaram-lhe os olhos, arracaram-lhe os dedos picando-os cruelmente com os seus anéis. Por fim, e perante os gritos incessantes do pretor romano, ergueram-no pelos pés, mãos e cabeça, e puxaram com toda a força que tinham até o transformarem em seis bocados soltos.
Quando tudo acabou, os picentinos de Ásculo deram vivas e dançaram. Depois, juntaram todos os restos dos cadáveres romanos numa pilha no Fórum, e correram pelas ruas arrastando os romanos que não tinham ido ver a peça. Quando a noite caiu, não havia em Ásculo Picentino um único cidadão romano vivo. A cidade fechou então as suas portas e começou a discutir como iria abastecer-se e sobreviver. Ninguém lamentou a loucura que deles se apoderara; era como se a acção tivesse curado um terrível abcesso de ódio que estava a miná-los. Agora, podiam gozar esse ódio, podiam aspirar a não mais tolerar Roma.
As notícias dos acontecimentos de Ásculo Picentino chegaram a Roma quatro dias depois. Os dois actores romanos tinham-se escondido, perfeitamente aterrorizados, e assistido à terrível matança; finalmente, tinham conseguido sair da cidade segundos antes de as portas terem sido fechadas. Levaram quatro dias a chegar a Roma. Parte do caminho, fizeram-no a pé, outra parte em carroças ou a cavalo, quando encontraram homens dispostos a partilhar as suas montadas. Só falaram do que sucedera em Ásculo Picentino quando se sentiram em total segurança. Como eram actores, a sua descrição revelou-se perfeitamente fiel; toda a cidade de Roma reagiu horrorizada, o Senado decretou o luto pela morte do pretor Quinto Servílio, e as Virgens Vestais fizeram uma oferenda em intenção de Ponteio, o pai da mais recente das suas aquisições.
Felizmente para o Senado as eleições tinham-se já realizado, pelo que os senadores estavam livres de Filipe: pelo menos essa provação não tinham de suportar. Lúcio Júlio César e Públio Rutílio Lupo eram os novos cônsules: um homem bom, amarrado, por necessidades económicas, a um homem rico, presunçoso e incompetente como era Lupo. Aquele era um ano de oito pretores, com a habitual mistura de patrícios e plebeus, competentes e incompetentes; o irmão mais novo de Lúcio Júlio César, César Estrabão, era edil curul. Entre os questores contava-se nada mais nada menos do que Quinto Sertório, o qual, depois de ter conquistado a Coroa de Erva na Hispânia, teria facilmente acesso a qualquer cargo. Caio Mário, primo de sua mãe, conseguira já que Sertório possuísse o censo senatorial; quando fosse eleito um novo par de senadores, era mais que certo que Sertório entraria para o Senado. Pouco saberia de tribunais, mas, para um homem tão novo, o seu nome era já muito famoso, e, por outro lado, havia nele uma capacidade de seduzir o povo que só em Caio Mário parecia encontrar paralelo.
Num conjunto invulgarmente impressionante de tribunos da plebe, havia um nome hediondo, Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis, o qual prometia perseguir todos os que tinham apoiado a cidadania para os Italianos. As notícias do massacre de Ásculo Picentino constituíam para ele uma óptima arma; embora ainda não tivesse assumido o seu cargo, não largava os cavaleiros e os frequentadores do Fórum à procura de apoio para o seu projecto de vingança na Assembleia da Plebe. Para o Senado, exasperado com as azedas censuras de Filipe e Cepião, o ano velho nunca mais acabava.
Pouco tempo depois do massacre de Ásculo Picentino, chegou a Roma uma delegação de vinte nobres italianos, vindos de Itálica, a nova capital, embora nunca referissem os nomes de Itálica ou do novo país, Itália; pediam muito simplesmente uma audiência ao Senado, a propósito da concessão da cidadania a todos os homens que viviam a sul, não do Arno ou do Rubicão, mas do rio Pó, na Gália Italiana! Apontando esse novo limite, pretendiam suscitar a oposição de toda a gente em Roma, desde o Senado aos proletários, pois os dirigentes da nova nação já não queriam a concessão da cidadania. O que queriam era a guerra.
Fechado no Senaculum (um pequeno edifício situado ao lado do templo de Concórdia) com esta delegação, Marco Emílio Escauro Princeps Senatus tentou rodear tão ousada proposta. Partidário leal de Druso, depois da morte deste Escauro não via qualquer razão para continuar a defender o alargamento da cidadania; Escauro gostava de estar vivo.
- Podem dizer aos vossos dirigentes que não haverá negociações enquanto o massacre de Ásculo Picentino não tiver sido devidamente reparado - disse Escauro com desdém. - O Senado não vos receberá.
- Ásculo Picentino é apenas a prova provada de tudo aquilo que a Itália sente neste momento - disse o chefe da delegação, Públio Vétio Escaulo, representante dos Marsos. - De qualquer modo, não nos cabe a nós pedir seja o que for à cidade de Ásculo Picentino. Essa decisão cabe por inteiro aos Picentinos.
- Essa decisão é Roma que há-de tomar - retorquiu Escauro com azedume.
- Renovamos o nosso pedido de que o Senado nos receba - disse Escaulo.
- O Senado não os receberá - disse Escauro, peremptório.
Os vinte homens levantaram-se então e encaminharam-se para a porta. Nenhum deles parecia desanimado, reparou Escauro. Último a sair, Escaulo entregou um documento a Escauro.
- Por favor, Marco Emílio, recebe este documento. Entrego-to em nome dos Marsos.
Escauro só desdobrou o rolo quando chegou a casa. A leitura daquele documento deixou-o perfeitamente estupefacto.
Ao princípio da manhã, convocou uma reunião do Senado, que contou com poucos participantes, pois não houvera tempo para avisar toda a gente; como de costume, Filipe e Cepião não se deram ao trabalho de aparecer. Mas estavam presentes Sexto César, todos os novos cônsules e pretores, todos os tribunos da plebe cessantes e a maior parte dos novos tribunos - com a óbvia excepção de Vário. Os antigos cônsules também estavam presentes; Sexto César verificou, com algum alívio, que havia quoro.
- Tenho aqui um documento assinado por três dirigentes dos Marsos
- principiou Escauro Princeps Senatus. - São eles: Quinto Popaedius Silão, que se autodenomina cônsul, Públio Vétio Escaulo, que se autodenomina pretor, e Lúcio Frauco, que se autodenomina conselheiro. Vou ler-vos o documento em questão.
Para o Senado e o Povo de Roma. Nós, os representantes eleitos da nação dos Marsos, declaramos, em nome do nosso povo, que renegamos o estatuto de aliados de Roma. Que não pagaremos a Roma mais nenhum imposto, tributo, taxa ou direito. Que não forneceremos tropas a Roma. Que retomaremos a posse da cidade de Alba e de todas as suas terras. Considerem este documento como uma declaração de guerra.
Um murmúrio percorreu o Senado; Caio Mário estendeu a mão para que Escauro lhe desse o documento. Lentamente, a mensagem dos Marsos foi passando de mão em mão, até que todos puderam confirmar que se tratava de um documento genuíno e inequívoco.
- Parece que temos mesmo uma guerra em perspectiva - disse Mário.
- Uma guerra com os Marsos? - perguntou Aenobarbo Pontifex Maximus. - Eu sei que quando falei com Silão junto à Porta Colina, ele me disse que haveria guerra. Só que os Marsos nunca poderiam derrotar-nos! Eles não têm gente suficiente para lançar uma guerra contra Roma! As duas legiões que ele trazia devem ser o máximo que os Marsos conseguem juntar.
- De facto é muito estranho - admitiu Escauro.
- A menos que - disse Sexto César - haja outras nações italianas envolvidas.
Mas ninguém, nem mesmo Mário, acreditaria nisso. A reunião foi encerrada sem ter chegado a uma conclusão, excepto que seria prudente vigiar de perto a Itália - mas não com outro par de pretores itinerantes! Sérvio Sulpício Galba, o pretor encarregado de investigar ”a questão italiana” a sul de Roma, escrevera a dizer que o seu regresso estava para breve. Quando chegou, o Senado achou que estaria em melhores condições para decidir o que fazer. Guerra com Itália? Talvez. Mas ainda era cedo.
- Eu sei que enquanto Marco Lívio foi vivo, acreditei piamente que a guerra com a Itália estaria para muito breve - disse Mário a Escauro mal a reunião terminou. - Mas agora que ele já não está entre nós, não consigo acreditar que tal possa acontecer! E pergunto-me se, no fundo, não me deixei influenciar por ele, acabando assim por acreditar que haveria guerra. Agora, francamente, não sei. Os Marsos estarão sozinhos nesta trama? Devem estar, por certo! E no entanto... nunca me pareceu que Quinto Popaedius Silão fosse um louco!
- Penso exactamente o mesmo que tu, Caio Mário - disse Escauro.
- Mas porque é que eu não li aquele documento enquanto Escaulo ainda cá estava? Os deuses estão a brincar connosco, disso não tenho a mínima dúvida.
Claro que a época do ano não predispunha os senadores a abordarem questões exteriores a Roma, por muito sérias e intrigantes que elas fossem; ninguém queria tomar decisões numa altura em que um par de cônsules terminava o seu mandato, e o novo par estava ainda a apalpar o terreno no que toca às alianças que poderiam fazer no Senado.
Por isso, durante o mês de Dezembro, tanto o Senado como o Fórum não discutiram outra coisa senão assuntos internos; os incidentes mais triviais, dada a sua proximidade e também porque eram essencialmente romanos, fizeram esquecer a declaração de guerra dos Marsos. Um dos casos mais triviais foi a eleição de um sacerdote para ocupar o lugar deixado vago após a morte de Marco Lívio Druso. Embora tivessem passado já muitos anos, Aenobarbo Pontifex Maximus continuava a achar que o lugar dado a Druso deveria ter sido dele; por isso, propôs rapidamente o nome do filho mais velho, Cneu, casado havia pouco tempo com Cornélia Cina. O pontificado deveria ser entregue a um plebeu, já que Druso fora um plebeu. Terminado o prazo de apresentação de candidaturas, o rol de pretendentes mais parecia uma lista de honra plebeia. Incluía Metelo Pio, o Bacorinho, outro homem consumido pelo ressentimento, pois o lugar ocupado pelo pai fora parar, por eleição, às mãos de Caio Aurélio Cota. Porém, no último momento, Escauro Princeps Senatus espantou toda a gente ao apresentar um nome patrício - Mamerco Emílio Lépido Liviano, o irmão de Druso.
- Isso não é legal por duas razões! - atirou-lhe Aenobarbo Pontifex Maximus. - Em primeiro lugar, ele é um patrício. Em segundo lugar, é um Emílio, e tu, Marco Emílio, já és pontífice, e não poderá haver dois Emílios sacerdotes.
- Ora! Que disparate! - retorquiu Escauro. - Eu não estou a defender a candidatura dele por se tratar de um Emílio, ainda que adoptado, mas sim porque ele é irmão de sangue do falecido sacerdote. Ele é um Lívio Druso, e eu acho que é ele que deve ser eleito.
O Colégio dos Pontífices acabou por concordar que Mamerco devia ser considerado um Lívio Druso, aceitando por isso que o seu nome fosse incluído na lista de candidatos. Depressa se tornou óbvio que os eleitores continuavam a adorar Druso; Mamerco teve o apoio de todas as tribos de Roma e ocupou o lugar que pertencera ao irmão.
Um caso mais sério - ou assim parecia na altura - era o comportamento de Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis. Mal o novo Colégio dos Tribunos da Plebe assumiu funções, no décimo dia de Dezembro, Quinto Vário propôs a aprovação de uma lei prevendo o julgamento, por traição, de todos os homens que haviam apoiado o alargamento da cidadania aos Italianos. Os seus nove colegas vetaram imediatamente a discussão de tal proposta. Mas Vário seguiu o exemplo de Saturnino, encheu os Comitia de gente comprada, e conseguiu intimidar os seus colegas do Colégio, de tal forma que estes acabaram por retirar os seus vetos. Conseguiu aliás calar toda e qualquer oposição, com o resultado que, no Ano Novo, havia já um tribunal especial para aqueles casos de alegada traição. Roma chamava-lhe a Comissão Vária. O âmbito de acção deste tribunal era definido de forma tão vaga que, no fundo, qualquer pessoa poderia ser por ele citada. Por outro lado, o júri era unicamente composto por cavaleiros.
- Ele vai usar este tribunal para perseguir os seus inimigos, e os inimigos de Filipe e Cepião - disse Escauro Princeps Senatus, que não fazia segredo da sua opinião. - Esperem só para ver! Esta é a lei mais desgraçada que alguma vez nos impingiram!
Escauro tinha razão: Vário demonstrou-o quando escolheu a sua primeira vítima, Lúcio Aurélio Cota, um indivíduo ultra conservador, de opiniões e comportamentos muito rígidos, pretor cinco anos antes, e meio-irmão de Aurélia. Não tendo sido nunca um ardente defensor do alargamento da cidadania, Cota, no entanto, andara lá por perto tal como tantos outros membros do Senado - durante a época em que Druso lutara denodadamente pelos seus ideais; e fizera-o em grande parte porque detestava Filipe e Cepião. Cometera o erro de deixar de falar a Quinto Vário.
Lúcio Aurélio, o mais velho Cota da sua geração, era uma excelente escolha para o papel de primeira vítima da Comissão Vária: de facto, o seu estatuto não era tão elevado como o dos ex-cônsules, nem tão baixo como o dos pedarii. Se Vário conseguisse condená-lo, o seu tribunal transformar-se-ia num instrumento de terror para o Senado. A primeira audiência mostrou claramente a Lúcio Cota que destino o esperava, já que o júri estava cheio de gente que odiava o Senado, e o presidente do tribunal, o poderoso cavaleiro-plutocrata Tito Pompónio, não prestara a mínima atenção às intervenções da defesa recusando os jurados.
- O meu pai faz mal - comentou o jovem Tito Pompónio, no meio da multidão que se concentrara para assistir ao julgamento.
O seu interlocutor era outro membro do pequeno grupo de acólitos de Cévola, o Augure: Marco Túlio Cícero, quatro anos mais novo que Tito Pompónio, ainda que quarenta anos mais velho do ponto de vista intelectual, ou mesmo do ponto de vista do senso comum.
- Que queres dizer com isso? - perguntou Cícero, que se tornara amigo do jovem Tito Pompónio após a morte do filho de Sila. Essa fora, aliás, a primeira tragédia da vida de Cícero; muitos meses passados, continuava a chorar a morte do seu muito querido amigo.
- Esta obsessão que o meu pai tem de entrar para o Senado retorquiu o jovem Tito Pompónio com uma expressão triste. - Ele está completamente obcecado, Marco Túlio! Tudo o que faz é determinado por essa obsessão. Incluindo o facto de ter ido atrás da proposta lisonjeira de Quinto Vário para que fosse presidente deste tribunal. Mordeu bem o isco, não há dúvida. É claro que a anulação das leis de Marco Lívio Druso reduziu a pó todas as suas esperanças de entrar rapidamente para o Senado, e Quinto Vário aproveitou essa situação para o atrair a este tribunal e às funções que agora desempenha. Prometeu-lhe que se se portasse bem, entraria para o Senado logo que os novos censores fossem eleitos.
- Mas o teu pai tem negócios - objectou Cícero. - Se se tornar senador, terá de desistir de tudo, excepto da propriedade da terra.
- Ah, mas ele desistirá de tudo! - disse o filho de Tito Pompónio, num tom amargo. - É que eu, que ainda nem tenho vinte anos, já estou a fazer neste momento a maior parte do trabalho da firma, e olha que ele nem sequer me agradece! No fundo, sente-se envergonhado por ser um homem de negócios!
- E o que é que tudo isso tem a ver com o que disseste? Que o teu pai fazia mal? - perguntou Cícero.
- Tem tudo a ver, meu parvo! - retorquiu o jovem Tito. - Ele quer entrar para o Senado! Mas faz mal em querer ser senador à força. Ele é um cavaleiro, um dos dez mais importantes cavaleiros de Roma. Não vejo nada de errado nisso. Ele tem o Cavalo Público, legá-lo-á a mim, toda a gente lhe pede opinião, dispõe de um poder considerável nos Comitia, e é consultor dos tribunos do Tesouro. E apesar de tudo isto, o que é que ele quer ser? Um senador! Quer ser um daqueles palermas da fila de trás que nunca têm oportunidade de falar, quanto mais de falar bem!
- Ou seja, o teu pai é um homem que quer subir na escala social - disse Cícero. - Não vejo nada de mal nisso. Eu também quero subir.
- Mas o meu pai tem já um estatuto social elevadíssimo, Marco Túlio! Tanto pelo nascimento como pela riqueza. Há muitas gerações que os Pompónios estão intimamente ligados aos Cecílios do ramo Pílio. Para quem não é patrício, não pode haver melhor. - Nascido no seio da mais alta nobreza, o jovem Tito acrescentou, sem se dar conta de que as suas palavras poderiam magoar o amigo: - Posso entender que tu queiras subir socialmente, Marco Túlio. Quando entrares para o Senado, serás um Homem Novo, e se chegares a cônsul enobrecerás a tua família. O que significa que terás de cultivar a amizade do maior número possível de homens famosos, plebeus e patrícios. Ao passo que o meu pai, ao tornar-se um senador pedarius, estará de facto a dar um passo atrás.
- Entrar para o Senado nunca será um passo atrás! - disse Cícero, que sofria com aquele tipo de observações. Ultimamente, os comentários do jovem Tito pareciam mais venenosos; Cícero acabara por perceber que o facto de dizer que era natural de Arpino lhe valera o mesmo tipo de tratamento agressivo que era reservado ao mais famoso cidadão de Arpino, Caio Mário. Se Caio Mário era um italiano sem instrução grega, Marco Túlio Cícero teria forçosamente de ser uma nova versão de Caio Mário, ainda que com mais instrução. Os Túlios Cíceros nunca se tinham dado muito bem com os Mários, apesar dos casamentos ocasionais entre os clãs. Porém, desde que chegara a Roma, o jovem Marco Túlio Cícero aprendera a odiar Caio Mário. E a odiar a terra onde nascera.
- De qualquer modo - disse o jovem Tito Pompónio -, quando eu for paterfamilias, conformar-me-ei com o meu destino de cavaleiro. Podem os censores pôr-se de joelhos e implorar-me que eu vá para o Senado, que eu não irei! Juro-te, Marco Túlio, nunca na minha vida serei senador! Nunca!
Entretanto, o desespero de Lúcio Cota era cada vez mais notório. No dia seguinte, ninguém ficou surpreendido quando o tribunal anunciou que Lúcio Aurélio Cota preferia o exílio voluntário ao inevitável veredicto de DAMNO. Pelo menos o exílio voluntário permitia à vítima reunir a maior parte dos seus bens e levá-los consigo para o degredo; se esperasse pelo veredicto e fosse condenado, o tribunal confiscar-lhe-ia todos os bens, e o exílio seria, por isso mesmo, muito mais penoso.
Aquela era uma má altura para vender bens valiosos, pois, enquanto o Senado soçobrava na mais total descrença e os Comitia se viam absorvidos pelas acções de Quinto Vário, a comunidade comercial e financeira sentia que algo de terrível estava para acontecer e tomava por isso as medidas apropriadas. O dinheiro era guardado em esconderijos seguros, as acções vacilavam, as companhias mais pequenas convocavam reuniões de emergência. Produtores e importadores de bens de luxo debatiam a hipótese de surgirem leis restritivas caso houvesse guerra, e projectavam mudar de ramo, passando a dedicar-se à produção e importação de material bélico.
Nada sucedia que fosse susceptível de convencer o Senado de que a declaração de guerra dos Marsos era sincera; não havia nenhuma indicação de que algum exército se encaminhasse para Roma, não havia nenhum sinal de preparativos marciais em qualquer das nações italianas. A única coisa preocupante era que Sérvio Sulpício Galba, o pretor encarregado de investigar a situação no sul da península, não regressara ainda a Roma. Pelo contrário: caíra num silêncio absoluto.
A Comissão Vária ganhava força. Lúcio Calpúrnio Béstia foi condenado e mandado para o exílio, e as suas propriedades foram confiscadas. O mesmo sucedeu a Lúcio Mémio, que foi para Delos. Em meados de Janeiro, António Orador foi também acusado de traição, mas fez um tal discurso, e foi tão aplaudido pela multidão que se concentrava no Fórum, que o júri, prudentemente, decidiu absolvê-lo. Furioso com tão volúvel comportamento, Quinto Vário desforrou-se, chamando ao banco dos réus Marco Emílio Escauro Princeps Senatus.
Escauro apareceu sozinho para responder à acusação, vestindo a sua toga praetexta e irradiando uma impressionante aura de dignitas e auctoritas. Impassível, ouviu Quinto Vário enumerar as múltiplas acusações de que era alvo. Quando Vário finalmente concluiu a leitura da lista, Escauro, rindo com desdém, virou-se, não para o júri, mas para a multidão.
- Ouviram isto, Quirites! - perguntou, com sonora voz. - Um novo-rico mestiço de Sucrão, na Hispânia, acusa Escauro, Princeps Senatus, de traição! Escauro nega a acusação! Em quem acreditam?
- Em Escauro! Em Escauro! Em Escauro! - gritou a multidão. O júri acabou por associar-se aos gritos da multidão, e, no fim de tudo, pegou em Escauro e levou-o em ombros, numa parada triunfante pelo baixo Fórum.
- O imbecil! - comentou Mário, pouco depois, em conversa com Escauro. - Será que ele alguma vez acreditou que conseguiria condenar-te por traição? E os cavaleiros, terão acreditado?
- Depois de terem condenado o pobre Públio Rutílio, suponho que os cavaleiros ficaram a pensar que poderiam condenar qualquer um - respondeu Escauro, compondo a toga, que ficara um tanto ou quanto desalinhada depois do turbulento passeio.
- Vário devia ter começado comigo, e não contigo, a sua campanha contra os mais importantes dos antigos cônsules - disse Mário. - A absolvição de Marco António continha uma mensagem muito clara. Uma mensagem que agora encontrou plena confirmação! Prevejo que Vário suspenderá as suas actividades por algumas semanas, após o que recomeçará com os seus julgamentos - mas com vítimas menos augustas. Béstia pouco peso tinha, e o pobre Lúcio Cota não dispunha de suficiente influência. Sim, os Aurélios Cotas são poderosos, mas não gostam de Lúcio, gostam dos rapazes que o seu tio Marco Cota teve de Rutília.
- Mário fez uma pausa, as sobrancelhas movendo-se numa dança estranha.
- Claro, o verdadeiro problema de Vário é que ele não é romano. Tu és. Eu também. Mas ele não é. E não entende isso.
Escauro recusou-se a engolir o isco.
- Filipe e Cepião também não entendem - disse ele com desdém.
O mês previsto por Silão e Mutilo para a mobilização chegou e sobrou. No entanto, no final desse mês, nenhum exército italiano se pôs em marcha. Havia duas razões para isso. Uma, Mutilo entendia; a outra, porém, deixava-o perfeitamente desesperado. As negociações com os dirigentes da Etrúria e da Úmbria avançavam a passo de caracol, e ninguém no conselho de guerra ou no grande conselho dos quinhentos queria ir para a frente antes de se conhecerem os resultados dessas conversações; isso, Mutilo podia entender. Mas havia também uma curiosa relutância em ser o primeiro a avançar - e não era por uma questão de medo, mas sim devido a um sentimento de respeito Por Roma, um sentimento muito entranhado e velho de séculos; e isso, Mutilo só podia deplorar.
- Vamos esperar que Roma dê o primeiro passo - propôs Silão no conselho de guerra.
- Vamos esperar até que Roma dê o primeiro passo - disse Lúcio Frauco no grande conselho.
Mutilo ficara furioso ao saber que os Marsos tinham entregue uma declaração de guerra ao Senado: pensara então que Roma se mobilizaria imediatamente. Mas Silão não se mostrara minimamente arrependido.
- O que nós fizemos está certo - afirmava. - Há leis que presidem à guerra, tal como há leis para todos os aspectos do comportamento humano. Roma não pode dizer que não foi avisada.
E, depois disso, nada do que Mutilo dissesse ou fizesse poderia influenciar os outros dirigentes italianos: todos eles achavam que Roma deveria ser o primeiro agressor.
- Se avançássemos agora, dávamos cabo deles! - exclamava Mutilo no conselho de guerra, e o mesmo fazia o seu deputado Caio Trebácio no grande conselho. - Quanto mais tempo dermos a Roma para se preparar, menos possibilidades temos de vencer este conflito! O facto de ninguém em Roma se preocupar com as nossas acções é o nosso maior trunfo! Temos de avançar! Temos de avançar amanhã! Se adiamos, perdemos!
Mas, à excepção de Mário Egnácio, também samnita, todos os outros abanavam solenemente a cabeça; mesmo Silão recusava tal proposta, ainda que admitisse que o raciocínio de Mutilo era perfeitamente lógico.
- Não estaria certo - era a resposta que os Samnitas recebiam sempre, por muito que insistissem.
O massacre de Ásculo Picentino também não teve grandes consequências; Caio Vidacílio, dos Picentinos, recusou-se a enviar uma força para a cidade, a fim de a ajudar a suportar as represálias romanas - as represálias romanas, dizia ele, estavam demoradas, e, provavelmente, nunca viriam.
- Temos de avançar! - gritava Mutilo. - Os camponeses dizem todos que este Inverno será breve e suave, por isso não há qualquer razão para adiarmos a guerra até à Primavera! Temos de avançar!
Mas ninguém queria avançar, e ninguém avançou.
Foi por essa altura que se registaram os primeiros sinais de revolta entre os Samnitas. Ninguém, tanto de um lado como do outro, considerava os acontecimentos de Ásculo Picentino como uma revolta; a opinião generalizada era que a cidade tinha sido vítima de múltiplos e insuportáveis abusos e que, por isso, acabara por explodir. Ao passo que, na Campânia, a vasta comunidade samnita, inextricavelmente misturada com romanos e latinos, começara espontaneamente a ferver, ao fim de gerações e gerações de permanente ebulição.
Sérvio Suplício Galba levou para Roma as primeiras notícias concretas, quando finalmente chegou, no maior desalinho e transtorno, e sem escolta, durante o mês de Fevereiro.
O novo cônsul sénior, Lúcio Júlio César, convocou imediatamente o Senado para que ouvisse as informações de Galba.
- Estive prisioneiro em Nola durante seis semanas - disse Galba para um Senado silencioso. - Tinha acabado de enviar a minha mensagem informando-vos de que em breve estaria de volta, quando cheguei à cidade de Nola. Não tinha pensado visitar Nola, mas como estava perto e como Nola possui uma população samnita muito forte, decidi lá ir no último momento. Fiquei em casa de uma velha senhora que era a melhor amiga de minha mãe, uma romana, naturalmente. Informou-me ela de que estavam a acontecer coisas muito estranhas na cidade, que, de repente, os romanos e os latinos não encontravam ninguém que quisesse prestar-lhes serviços, ou vender-lhes produtos, fossem eles quais fossem, incluindo comida! Os criados dela tinham de ir a Acerras comprar os géneros de primeira necessidade. Quando passeava pela cidade, com os meus lictores e militares, era vaiado e assobiado constantemente. No entanto, nunca conseguimos encontrar os responsáveis por tais actos.
Galba tinha um ar profundamente infeliz, consciente como estava de que a sua narrativa não era propriamente agradável.
- Durante a primeira noite que passei em Nola, os samnitas fecharam as portas da cidade e ocuparam todos os seus principais pontos. Todos os romanos e latinos foram feitos prisioneiros nas suas próprias casas. Incluindo os meus lictores, militares e criados. Eu próprio dei comigo fechado na casa da minha anfitriã, com guardas samnitas nas portas da frente e de trás. E nessa casa permaneci até há três dias; consegui fugir porque a minha anfitriã distraiu os guardas da porta de trás. Vestido de mercador samnita, passei as portas da cidade antes que a perseguição começasse.
Escauro inclinou-se um pouco para a frente.
- Enquanto estiveste prisioneiro, viste alguém que detivesse alguma autoridade em Nola, Sérvio Sulpício?
- Não, não vi nenhum dirigente - disse Galba. - Apenas conversei com os guardas da porta da frente.
- E que disseram eles?
- Disseram apenas que Sâmnio se tinha revoltado, Marco Emílio. Eu não sabia se isso era ou não verdade; por isso, quando consegui fugir passei um dia a esconder-me de todos os indivíduos que parecessem samnitas. Só quando cheguei a Cápua é que fiquei a saber que não havia revolta nenhuma, pelo menos naquela zona da Campânia. Na realidade, ninguém sabia o que se estava a passar em Nola! Durante o dia, os Nolenses mantinham uma das portas da cidade aberta e faziam de conta que não se passava nada de especial na cidade. Por isso, quando contei aos romanos de Cápua o que me sucedera,, eles ficaram positivamente estupefactos. E alarmados, devo acrescentar! Os duumviri de Cápua pediram-me que dissesse ao Senado que lhes enviasse instruções.
- Deram-te de comer durante o cativeiro? E a tua anfitriã? Permitiram-lhe ir às compras a Acerras? - perguntou Escauro.
- Comida, havia pouca. A minha anfitriã podia fazer as suas compras em Nola, mas havia racionamento e os preços eram exorbitantes. Nemhum romano ou latino podia sair da cidade - explicou Galba.
Desta feita, o Senado estava cheio; o tribunal de Vário servira pelo menos para uma coisa: fortalecera a solidariedade entre os senadores, fazia com que estes ansiassem por um acontecimento suficientemente dramático, capaz de roubar à Comissão Vária o peso que estava a ter na vida política romana.
- Posso falar? - perguntou Caio Mário.
- Poderás, se nenhum dos teus superiores quiser falar - respondeu o cônsul júnior, Públio Rutílio Lupo, friamente. Era ele quem presidia às reuniões do Senado durante o mês de Fevereiro, e Lupo nunca fora partidário das posições de Mário.
Ninguém pediu para falar antes de Mário.
- Se Nola prendeu os seus cidadãos romanos e latinos e os olbrigou a privações, então não pode haver dúvidas: Nola revoltou-se contra Roma. Pensem um pouco no seguinte: em Junho do ano passado, o Senado mandou dois dos seus pretores investigar aquilo a que o estimado ex-cônsul Quinto Lutácio chamou ”a questão italiana”. Há cerca de três meses, o pretor Quinto Servílio foi assassinado em Ásculo Picentino, o mesmo acontecendo a todos os cidadãos romanos da cidade. Há cerca de dois meses o pretor Sérvio Sulpício foi feito prisioneiro em Nola, tendo igual sorte todos os cidadãos romanos da cidade.
”Dois pretores, um viajando pelo Norte e o outro pelo Sul, e dois incidentes terríveis, um no Norte, e o outro no Sul. Toda a Itália mesmo nos locais mais remotos! - conhece e entende o significado, a importância, do pretor romano. E no entanto, veneráveis Senadores, houve um assassínio. E um cativeiro que só não foi mais longo porque o preso fugiu. E porque ele fugiu, não podemos saber que sorte lhe estava reservada. No entanto, quer-me parecer que também Sérvio Sulpício seria assassinado. Dois pretores de Roma, ambos dotados de autoridade proconsular! Atacados, ao que parece, sem medo de retaliações. Que podemos concluir de tudo isto? Creio que só há uma conclusão a tirar: Ásculo Picentino e Nola sentiram-se encorajadas a fazer o que fizeram porque se sentem seguras relativamente à possibilidade de represálias! Por outras palavras, Ásculo Picentino e Nola crêem que, antes que Roma possa retaliar, haverá guerra entre Roma e as respectivas nações.”
O Senado estava preso às palavras de Mário. Fazendo uma breve pausa, o antigo cônsul olhou para vários rostos, como que procurando: talvez Lúcio Cornélio Sila, cujos olhos brilhavam, ou Quinto Lutácio Catulo César, em cuja expressão se notava uma curiosa atitude de respeito.
- Sou culpado do mesmo crime que todos vós, veneráveis Senadores. Depois da morte de Marco Lívio Druso, ninguém me veio dizer, ninguém insistiu junto de mim que haveria guerra. Cheguei mesmo a pensar que Druso estava errado. Como não sucedeu mais nada depois da marcha de Silão sobre Roma, também eu comecei a pensar que tal marcha não passava de mais um truque dos Italianos para conquistarem a cidadania. Quando o representante dos Marsos entregou ao nosso Princeps Senatus uma declaração de guerra, eu não lhe atribuí qualquer importância porque provinha de uma só nação italiana, ainda que, na delegação, estivessem representadas oito nações. E - admito-o com toda a franqueza! - nunca então me passou pela cabeça que qualquer das nações italianas fosse realmente lançar-se numa guerra contra Roma.
Caio Mário deu alguns passos, até ficar em frente das portas (nesse dia fechadas), de onde poderia ver todo o Senado.
- Aquilo que Sérvio Sulpício nos disse hoje altera tudo, para além de lançar uma nova luz sobre os acontecimentos de Ásculo Picentino. Ásculo é uma cidade dos Picentinos. Nola é uma cidade dos Samnitas Campanianos. Nenhuma delas é uma colónia romana ou latina. Creio que agora podemos concluir que os Marsos, os Picentinos e os Samnitas estão unidos contra Roma. E é possível que as oito nações que nos enviaram a delegação estejam todas unidas para combater Roma. É possível, creio, que, ao entregarem ao presidente do Senado uma declaração formal de guerra, os Marsos estivessem a avisar-nos da eventualidade de uma guerra. Marco Lívio Druso repetiu, quantas vezes?, que os Aliados Italianos estavam a um passo da guerra. Agora acredito nele. Só acho que os Aliados Italianos já deram esse passo.
- Acreditas sinceramente que estamos perante um estado de guerra?
- perguntou Aenobarbo Pontifex Maximus.
- Acredito, Cneu Domício.
- Prossegue, Caio Mário - disse Escauro. - Gostaria de te ouvir até ao fim antes de falar.
- Pouco mais tenho a dizer, Marco Emílio. Excepto que devemos tratar quanto antes da mobilização das nossas forças. Que temos de saber qual a importância dessa união das nações italianas. Que temos de pôr os nossos soldados a proteger as estradas e os acessos à Campânia. Que temos de descobrir o que sentem os Latinos em relação a nós, e como vão sobreviver as nossas colónias em regiões hostis caso a guerra comece. Como sabes, possuo grandes extensões de terra na Etrúria, tal como Quinto Cecílio Metelo Pio, e outros membros da gens Cecília. Quinto Servílio Cepião possui também vastas propriedades na Úmbria. E Cneu Pompeu Estrabão e Quinto Pompeu Rufo dominam o Norte do Piceno. Por isso, creio que a Etrúria, a Úmbria e o Norte do Piceno poderão manter-se do nosso lado, se tratarmos imediatamente de negociar com os dirigentes locais. Embora, no que toca ao Norte do Piceno, os seus dirigentes se encontrem neste Senado.
Mário fez uma vénia em intenção de Escauro Princeps Senatus.
- Não valerá a pena dizer, Princeps Senatus, que estou inteiramente à disposição de Roma.
Escauro levantou-se.
- Concordo em absoluto com tudo o que Caio Mário disse, veneráveis Senadores. Não podemos permitir-nos perder tempo. E embora estejamos ainda em Fevereiro, proponho que a presidência do Senado passe para o cônsul sénior. É o cônsul sénior que deve conduzir o Senado em assuntos tão sérios como este.
Rutílio Lupo mostrou-se profundamente indignado com tal proposta, mas a verdade é que a sua popularidade no Senado era diminuta; insistiu numa votação formal, mas perdeu por larga maioria. Furibundo, teve de ceder o seu lugar a Lúcio Júlio César, o cônsul sénior. Cepião, amigo de Lupo, estava presente; mas os seus outros dois amigos, Filipe e Quinto Vário, não se tinham dignado comparecer.
Lúcio Júlio César depressa provou que a confiança depositada nele pelo chefe supremo do Senado tinha razão de ser; de facto, nesse dia, foram tomadas as decisões mais importantes. Ambos os cônsules participariam na campanha, deixando o governo de Roma nas mãos do pretor urbano, Lúcio Cornélio Cina. As primeiras medidas tomadas diziam respeito às províncias. Sêncio permaneceria na Macedónia; os governadores da Hispânia manteriam também os seus cargos. Lúcio Lucílio iria governar a Província da Ásia. Porém, para que o rei Mitridates não aproveitasse aquela crise doméstica, Públio Servílio Vátia iria para a Cilícia, a fim de assegurar a normalidade nessa região da Anatólia. E (esta era a mais importante das medidas relativas às províncias) Caio Célio Caldo abandonaria as suas funções de pretor junto dos tribunais romanos e ficaria a governar a Gália Transalpina e a Gália Italiana.
- Porque é evidente - disse Lúcio Júlio César - que se a Itália se revoltar contra Roma, nós não encontraremos um número suficiente de soldados nas nações da península que permanecerem fiéis. A Gália Italiana tem muitas colónias latinas e algumas romanas. Caio Célio instalar-se-á na Gália Italiana e aí recrutará e treinará soldados para nós.
- Se me é permitida a sugestão - interveio Caio Mário, com a sua voz sonora -, gostaria que o questor Quinto Sertório fosse com Caio Célio. A actividade de Quinto Sertório, este ano, tem a ver com a área fiscal. Por outro lado, ele ainda não é membro do Senado. Mas, como por certo todos os presentes sabem, Quinto Sertório é um militar completo, um verdadeiro militar. Permitam-lhe que ele faça a sua experiência do fiscus de uma forma tão militar quanto possível.
- De acordo - retorquiu imediatamente Lúcio César.
Naturalmente, Roma tinha de enfrentar tremendos problemas financeiros. O Tesouro dispunha de recursos superiores ao normal, mas...
- Se esta guerra for mais vasta ou mais demorada do que se crê, precisaremos de mais dinheiro do que o que temos - disse Lúcio César.
- Preferia que agíssemos já. Sugiro que reinstauremos a tributação directa sobre todos os cidadãos romanos e detentores dos Direitos Latinos.
Esta proposta, como seria de esperar, provocou uma oposição furiosa da parte de muitos senadores, mas António Orador e Escauro Princeps Senatus fizeram dois belos discursos e, no fim de tudo, a medida foi aprovada. O tributam nunca fora aplicado constantemente, mas apenas em épocas de necessidade; depois da vitória de Emílio Paulo sobre o rei Perses da Macedónia, o tributum fora abolido e substituído por um imposto pago pelos não-Romanos.
- Se tivermos de manter mais de seis legiões em campanha, os nossos rendimentos externos não chegarão para pagar as despesas disse o tribuno que dirigia o Tesouro. - Toda a carga que implica armar essas legiões, alimentá-las, pagar-lhes e mantê-las em campanha, cairá agora sobre Roma e sobre o Tesouro de Roma.
- Adeus, Aliados Italianos! - disse Catulo César, dramaticamente.
- Tendo em conta que talvez tenhamos de manter, digamos, quinze legiões em campanha, que valor deverá ter o tributum? - perguntou Lúcio César, que não gostava nada de questões financeiras.
O tribuno-chefe do Tesouro, após demorada conferência com os seus assistentes, esclareceu:
- Um por cento dos rendimentos declarados.
- Os proletários, como de costume, não são abrangidos por tal medida! - protestou Cepião.
- Os proletários - disse Mário, com penetrante ironia - vão ter de aguentar a maior parte da guerra, mas no campo de batalha, Quinto Servílio!
- Enquanto estamos a abordar questões financeiras - disse Lúcio Júlio César, ignorando aquele diálogo -, seria bom que mandássemos alguns dos nossos membros mais velhos inquirir sobre os abastecimentos do exército, em particular no que toca a armaduras e armas. Normalmente é o praefectus fabrum quem trata dessas coisas, mas, por ora, não fazemos ideia de como serão distribuídas as nossas legiões, nem de quantas legiões precisaremos. Acho que é preciso que o Senado trate dos abastecimentos militares, pelo menos para já. Temos quatro legiões de veteranos prontas para a luta em Cápua, e mais duas legiões que estão a ser treinadas para o serviço nas províncias, mas isso agora está posto de parte. As tropas que estão nas províncias neste momento vão ter de chegar.
- Lúcio Júlio - disse Cepião -, isto é absolutamente ridículo! Por causa de dois incidentes em duas cidades, decidimos reimpor o tributum, propomo-nos enviar quinze legiões para o campo de batalha, delegar nuns quantos senadores a organização da compra de milhares e milhares de armaduras e espadas e tudo o mais, enviar homens para governar províncias a que ainda nem chamamos províncias oficialmente. Só falta propor a mobilização de todos os cidadãos romanos ou latinos com menos de trinta e cinco anos!
- Essa proposta virá a seu tempo - retorquiu cordialmente Lúcio César. - No entanto, meu caro Quinto Servílio, não tens que te preocupar. Há muito que passaste os trinta e cinco. - Fez uma pausa, e acrescentou depois: - Pelo menos na idade aparente.
- Parece-me - disse Catulo César, com um ar altivo - que Quinto Servílio é capaz, eu disse: é capaz!, de ter razão. Devíamos contentar-nos com os homens que se encontram para já mobilizados, e tomar novas disposições à medida que formos avançando. Ou seja, tudo depende de sabermos se haverá ou não uma insurreição global.
- Quinto Lutácio, os nossos soldados têm de estar treinados e equipados quando forem chamados para a guerra! - retorquiu, irritado, Escauro. - Já deviam estar treinados - acrescentou, e virou-se para o homem que estava sentado à sua direita. - Caio Mário, quanto tempo é preciso para transformar um recruta num bom soldado?
- Num soldado em condições de travar uma guerra: cem dias. Ao fim desse prazo, nenhum homem pode ser um bom soldado, Marco Emílio. Para se ser um bom soldado, é preciso travar a primeira batalha
- respondeu Mário.
- Em menos de cem dias, nada feito?
- Não, em menos de cem dias é possível conseguir bons resultados. Mas é preciso que o material humano seja bom, melhor do que a média dos centuriões.
- Então seria boa ideia se procurássemos esses homens que são melhores do que a média dos centuriões - disse Escauro, num tom grave.
- Sugiro que regressemos ao assunto em discussão - disse Lúcio César resolutamente. - Estávamos a falar de um praefectus fabrum senatorial que trataria do equipamento e do apetrechamento das legiões de que ainda não dispomos. Acho que devíamos sugerir vários nomes para esse lugar. O senador eleito escolheria depois a sua equipa: uma equipa formada por senadores, naturalmente. Sugiro que proponhamos apenas homens que, por uma razão ou outra, não reunam condições para a participação directa na campanha. Agradecia portanto que propusessem nomes.
O cargo foi atribuído ao filho do lugar-tenente de Caio Cássio, que morrera em Burdígala, vítima da emboscada montada pelos Germanos - Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino. Pisão tinha a perna esquerda gravemente afectada, em consequência de uma estranha doença que atingia as crianças no Verão; por causa disso, fora dado como incapacitado para o serviço militar. Casado com a filha de Públio Rutílio Rufo, exilado em Esmirna, Pisão era um homem inteligente que sofrera muito com a morte prematura do pai, em especial no que dizia respeito ao dinheiro. Os seus olhos ganharam um brilho novo quando soube que ficaria a dirigir as operações de equipamento militar e que poderia escolher a sua própria equipa. Se não conseguisse servir Roma e servir-se a si mesmo simultaneamente, então não há dúvida que merecia mergulhar para sempre na obscuridade! Mas Pisão, sorridente e calmo, tinha a certeza de que estava à altura desses dois objectivos.
- Chegamos agora à questão dos comandos e do planeamento disse Lúcio César; começava a sentir-se cansado, mas não tinha a mínima intenção de encerrar a reunião sem que este último assunto fosse abordado.
- Qual a melhor maneira de nos organizarmos? - perguntou. Lúcio César deveria ter feito aquela pergunta directamente a Caio
Mário. Mas Lúcio César não era, longe disso, um admirador de Caio Mário, e, por outro lado, achava que Caio Mário, devido à doença e à idade, já não era o mesmo homem. Além disso, Mário já tinha falado; por certo, dissera já o que tinha a dizer. Os olhos de Lúcio César viajaram pelos rostos daqueles homens, procurando, interrogando-se; e apressou-se a falar, não fosse Mário responder à sua pergunta.
- Lúcio Cornélio, de apelido Sila, gostaria de ouvir a tua opinião.
- disse o cônsul sénior, sublinhando o apelido, pois o pretor urbano era também um Lúcio Cornélio, mas de apelido Cina.
Sila ficou surpreendido, mas a surpresa não o impedia de dar uma resposta imediata.
- Se os nossos inimigos forem as oito nações que enviaram a delegação a Roma, então é muito possível que sejamos atacados em duas frentes: a partir do leste, ao longo da Via Salária e da Via Valéria, com as suas duas ramificações; e a partir do sul, onde a influência samnita se estende desde o Adriático ao Toscano, no golfo de Crater. Vejamos em primeiro lugar o caso do Sul. Se os Ápulos, os Lucanos e os Venusinos se juntarem aos Samnitas, aos Hirpinos e aos Frentanos, o Sul transformar-se-á num claro e ameaçador teatro de guerra. Podemos chamar ao segundo teatro de guerra, ou teatro do Norte, envolvendo territórios a norte e a leste de Roma, ou teatro central, envolvendo igualmente territórios a norte e a leste de Roma. Os Marsos, os Pelignos, os Marrucinos, os Vestinos e os Picentinos são os povos envolvidos neste teatro do Norte ou central. Repararam, por certo, que, por ora, não incluo a Etrúria, a Úmbría ou o Norte do Píceno nesta abordagem.
Sila respirou fundo, e prosseguiu enquanto toda a questão brilhava como cristal na sua cabeça.
- No Sul, os nossos inimigos não se pouparão a esforços para nos isolar de Brundísio, Tarento e Régio. No Centro ou Norte, os nossos inimigos tentarão isolar-nos da Gália Italiana, certamente ao longo da Via Flamínia, possivelmente ao longo da Via Cássia também. Se tiverem êxito, então o nosso único acesso à Gália Italiana será através da Via Aurélia e da Via Emiliana Scauri até Dertona, e a partir daí até Placência.
Lúcio César interrompeu-o.
- Deixa o teu lugar, Lúcio Cornélio Sila, e vem falar para o centro da sala.
Sila desceu até ao centro da sala, com uma vaga piscadela de olhos para Mário; pouca alegria lhe dava estar a reproduzir uma análise do velho mestre. O facto de o estar a fazer tinha razões complexas uma combinação de um amargo ressentimento pelo facto de Mário ter um filho e ele ter perdido o seu, de um persistente sentimento de indignação pelo facto de, após o seu regresso da Cilícia, ninguém no Senado, incluindo Mário, o ter convidado a apresentar um relatório circunstanciado das suas actividades no Oriente, e da certeza de que se falasse bem naquele momento, poderia ir muito longe, e rapidamente. É pena, Caio Mário, pensou. Eu não te queria magoar, mas alguma vez teria que ser.
- Creio - prosseguiu Sila, já no centro da sala - que vamos precisar de manter os dois cônsules em campanha, tal como Lúcio Júlio sugeriu.
Um dos cônsules terá de ir para o sul por causa de Cápua, que é um ponto vital para nós. Se perdermos Cápua, perderemos as nossas melhores instalações para a preparação e treino de soldados, bem como uma cidade com imensa experiência no que toca ao apoio aos militares, tanto a nível de preparação destes como ao nível do seu abastecimento. Naturalmente, terá de haver um chefe consular em Cápua, encarregado do treino e do recrutamento dos soldados, para além do cônsul que será o comandante das tropas em campanha. Seja qual for o cônsul que ficar na região sul, ele terá de estar preparado para todos os golpes que os Samnitas e os seus aliados lançarem contra ele. O que os Samnitas tentarão fazer será seguir para oeste, através dos seus velhos locais de refúgio, à volta de Acerras e de Nola, até aos portos de mar na parte sul do golfo de Crater. Estábias, Salerno, Surrento, Pompeios e Herculano. Se conseguirem conquistar algum destes portos, ou todos eles, disporão de facilidades portuárias no mar Toscano, muito mais interessantes e prometedoras do que tudo o que os portos do Adriático, a norte de Brundísio, lhes possam oferecer. Além disso, poderão isolar-nos, dessa forma, do extremo sul.
Sila não era um grande orador, pois tinha tido uma preparação mínima no que toca à retórica, e passara a maior parte da sua carreira em sucessivas guerras. Mas aquilo não era um exercício de oratória. Sila precisava apenas de uma coisa naquele momento: falar claro.
- O teatro central ou do Norte é mais difícil. Temos de partir do princípio de que todas as terras entre o Norte do Piceno e a Apúlia, incluindo os Apeninos, se encontram nas mãos dos nossos inimigos. Os Apeninos são o nosso maior obstáculo. Se precisamos de alianças com a Etrúria e a Úmbria, então teremos de ficar bem vistos junto desses povos italianos desde o início da nossa campanha. Se não o fizermos, a Etrúria e a Úmbria juntar-se-ão ao inimigo, e nós perderemos as nossas estradas e a Gália Italiana. O comando deste teatro de guerra terá de ser assegurado por um cônsul.
- Teremos certamente de ter um comandante-geral - disse Escauro.
- Não podemos, Princeps Senatus. As nossas próprias terras separam os dois teatros de guerra que defini - retorquiu firmemente Sila. - O Lácio é uma longa extensão e vai até ao norte da Campânia, provavelmente a zona da Campânia que se deverá mostrar fiel a Roma. Duvido que o Sul da Campânia mantenha a sua lealdade caso os revoltosos vençam alguma batalha. O Sul da Campânia está demasiado povoado de samnitas e hirpinos. Basta pensar no exemplo de Nola. A leste do Lácio, os Apeninos são um obstáculo intransponível, e temos, além disso, que contar com os Pauis Pontinos. Um comandante-geral teria de andar constantemente a saltar de um lado para o outro, e isso seria verdadeiramente desesperante, pois as duas zonas de conflito encontram-se muito longe uma da outra, e ele não conseguiria vigiar convenientemente as duas. Na realidade, estaria a combater em duas frentes separadas! Ou mesmo três. O Sul poderá exigir uma única campanha pois a zona onde o Sâmnio, a Apúlia e a Campânia se tocam corresponde ao sopé dos Apeninos. No entanto, no teatro do Norte ou Central é muito possível que venha a haver dois teatros: o teatro do Norte e o teatro Central. E a culpa é dos Apeninos, que atingem nessa zona a sua altitude mais elevada. As terras dos Marsos, dos Pelignos e possivelmente dos Marrucinos formam um teatro separado das dos Picentinos e dos Vestinos. Não vejo como poderemos deter todos os Italianos limitando-nos a combater no centro. Provavelmente vai ser necessário enviar um exército para as zonas rebeldes do Piceno, através da Úmbria e do Norte do Piceno. Entretanto, teremos de seguir para leste de Roma, na direcção das terras dos Marsos e dos Pelignos.
Sila calou-se por um momento; não podia deixar de sentir o que sentia, mas odiava-se por sucumbir a tal fraqueza. Como se sentia Caio Mário naquele momento? Se não gostava daquilo que Sila estava a dizer, tinha, naquele breve espaço de tempo uma oportunidade para o dizer. E Caio Mário falou. Sila ouviu-o tenso.
- Continua, por favor, Lúcio Cornélio - disse o velho mestre. Eu não teria explicado melhor a situação que temos de enfrentar.
Os olhos muito claros de Sila encheram-se de um brilho súbito, um ténue sorriso aflorou-lhe os lábios, e logo desapareceu. Encolheu os ombros.
- Creio que nada mais tenho a dizer. Claro, as minhas afirmações partem do princípio de que a insurreição envolveria pelo menos oito nações italianas. Não creio que seja da minha competência indicar quem deve ir ocupar as diversas posições. No entanto, julgo que aqueles que forem para o teatro de operações norte-centro deveriam ter muitos clientes na região. Por exemplo, se Cneu Pompeu Estrabão participar na guerra na zona do Piceno, disporá já de uma boa base nessa região, porque possui milhares de clientes. O mesmo pode ser dito de Quinto Pompeu Rufo, embora numa escala inferior, eu sei. Na Etrúria, há um grande proprietário de terras, Caio Mário, que também dispõe aí de milhares de clientes. O mesmo sucede com os Cecílios Metelos. Na Úmbria, Quinto Servílio Cepião é senhor supremo. Se estes homens ficassem ligados às operações no teatro do Norte ou Central, seria já uma boa ajuda.
Sila fez uma vénia em intenção de Lúcio Júlio César e regressou ao seu lugar no meio de murmúrios de (assim pensou ele) admiração. Tinham-lhe pedido opinião sobre tão momentoso assunto, a ele e a mais ninguém! Em tais circunstâncias, a sua intervenção constituía, sem dúvida, um primeiro passo para se tornar famoso. Um primeiro passo ou, talvez, um primeiro salto. Incrível! Estaria finalmente a caminho da notoriedade e do poder? Estaria finalmente a trilhar o seu caminho?
- Todos temos de agradecer a Lúcio Cornélio Sila uma análise tão penetrante e séria - disse Lúcio César, sorrindo para Sila de um jeito que era já uma promessa de futuras distinções. - Concordo inteiramente com o que ele disse. Mas que tem o Senado a dizer? Alguém tem outras ideias, ideias diferentes?
Aparentemente, ninguém tinha ideias diferentes. Escauro Princeps Senatus pigarreou ruidosamente.
- É altura de tomares as tuas disposições, Lúcio Júlio - disse. Se os veneráveis Senadores estiverem de acordo, gostaria apenas de dizer que, no meu caso pessoal, preferia ficar em Roma.
- Penso que serás preciso em Roma, tanto mais que os dois cônsules vão estar ausentes - disse Lúcio César, afavelmente. - O nosso pretor urbano, Lúcio Cornélio, de apelido Cina, precisará indubitavelmente dos teus préstimos - olhou de relance para o seu colega, Lupo, e acrescentou: - Públio Rutílio Lupo, estarias de acordo em ficar com o comando do Norte e do Centro? - perguntou. - Na minha qualidade de cônsul sénior, considero essencial que seja eu a comandar a região onde se encontra Cápua.
Lupo ficou de súbito animado e inchado.
- Assumirei o comando do Norte e do Centro com todo o prazer, Lúcio Júlio César.
- Nesse caso, e se o Senado não tem qualquer objecção a pôr, ficarei com o comando das operações na Campânia. Como primeiro lugar-tenente, escolho Lúcio Cornélio, de apelido Sila. Para chefiar as operações em Cápua propriamente dita e supervisionar toda a actividade da zona de Cápua, nomeio o ex-cônsul Quinto Lutácio Catulo César.
Como meus lugares-tenentes, para além de Lúcio Cornélio Sila, nomeio Públio Licínio Crasso, Tito Dídio e Sérvio Sulpício Galba - disse Lúcio César. - E tu, Públio Rutílio Lupo, quem escolhes?
- Cneu Pompeu Estrabão, Sexto Júlio César, Quinto Servílio Cepião e Lúcio Pórcio Catão Liciniano - respondeu Lupo bem alto.
Houve de repente um silêncio, um silêncio que pareceu demorar uma eternidade. Alguém tem de quebrar este silêncio!, pensou Sila e, de repente, deu consigo a falar, sem desejar falar, sem querer falar.
- E Caio Mário? Não acham que o devem escolher? - perguntou, num tom ríspido.
Lúcio César pestanejou.
- Devo confessar que não escolhi Caio Mário porque, tendo em conta o que disseste, Lúcio Sila, pensei, naturalmente, que deveria ser Públio Rutílio, o meu colega cônsul, a escolher Caio Mário!
- Não, de modo nenhum, não o quero! - exclamou Lupo. - Não, não mo vão impingir! Ele que fique em Roma tal como todos os outros doentes e velhos. Caio Mário está demasiado velho e doente para participar numa guerra.
Ao ouvir isto, Sexto Júlio César levantou-se.
- Posso falar, cônsul sénior? - perguntou.
- Faz favor, Sexto Júlio.
- Eu não sou velho - disse Sexto César, com voz rouca -, mas sou um homem doente, como todos os presentes sabem. Tenho asma. Tive uma óptima experiência militar na minha juventude, em particular com Caio Mário, em África, e nas Gálias, contra os Germanos. Também combati em Arausio, onde a minha doença acabou por me salvar a vida. No entanto, com a aproximação do Inverno, pouco poderei fazer numa campanha nos Apeninos. Estou mais velho e o meu peito é fraco. Cumprirei naturalmente o meu dever. Sou um romano pertencente a uma grande família. Porém, em todos os discursos que ouvi, não foi feita uma única referência à cavalaria. E vamos precisar da cavalaria. Gostaria de pedir ao Senado que me dispensasse das funções de comandante na campanha das montanhas. Em vez disso, proponho que me deixe reunir uma frota de transportes e que me permita passar os meses mais frios organizando as forças de cavalaria da Numídia, da Gália Transalpina e da Trácia. Posso também recrutar Para a nossa infantaria cidadãos romanos vivendo no estrangeiro. É um trabalho para o qual me sinto qualificado. Depois, quando voltar, aceitarei de bom grado qualquer comando em campanha que me queiram destinar. - Sexto César pigarreou, ligeiramente ofegante. - Para ocupar o meu posto de lugar-tenente, sugiro ao Senado que considere o nome de Caio Mário.
- Ora! Cunhados! - gritou Lupo, saltando da cadeira. - Não, Sexto Júlio, assim não pode ser! O teu discurso não me convence! Depois de te ouvir durante anos e anos, chego à conclusão de que a tua doença só te ataca quando te convém! É uma doença que tanto aparece como desaparece! Repara, eu também sou capaz de fingir que tenho dificuldade em respirar! - E Lupo pôs-se a inspirar ruidosamente.
- Podes estar farto da minha chiadeira, Públio Lupo, mas a verdade é que nunca escutaste com atenção - retorquiu afavelmente Sexto César. - A minha chiadeira não é ao inspirar, mas sim ao expirar.
- Estou-me marimbando para saber se é ao inspirar ou ao expirar!
- gritou Lupo. - Não, não vais deixar de cumprir o teu dever, porque eu não vou substituir-te por Caio Mário!
- Um momento, por favor - disse Escauro Princeps Senatus, levantando-se. - Gostaria de abordar este problema. - Escauro olhou para Lupo com a mesma expressão que pusera quando Vário o acusara de traição. - Públio Lupo, tu não és das pessoas de quem mais gosto, longe disso! Na realidade, dói-me muito que tenhas o mesmo nome que o meu querido amigo Públio Rutílio, de apelido Rufo. Bom, é possível que vocês sejam parentes, mas a verdade é que não há qualquer semelhança entre os dois! Rufo, o Ruivo, foi uma das personalidades mais cordiais, mais adoráveis, deste Senado. Faz-nos muitíssima falta. Lupo, o Lobo, é uma das mais perniciosas úlceras desta Casa!
- Estás a insultar-me! - explodiu Lupo. - Não podes fazer uma coisa dessas! Eu sou um cônsul!
- E eu sou o presidente do Senado, Públio Homem Lobo, e acho que, com a idade que tenho, já provei bem provado que posso fazer o que me apetecer, porque quando faço alguma coisa, Públio Homem Lobo, tenho boas razões para o fazer, e é a pensar nos interesses de Roma que o faço! Portanto, miserável verme, deixa-te estar quieto e calado! Quem pensas tu que és? Tu estás sentado nessa cadeira unicamente porque tiveste dinheiro suficiente para comprar o eleitorado!
Roxo de raiva, Lupo abriu a boca para falar.
- Não digas nada, Lupo! - atirou-lhe Escauro. - Está quieto e calado!
Escauro virou-se então para Caio Mário, que estava muito direito no seu banco; pela sua expressão, ninguém poderia saber como ele se sentia pelo facto de o seu nome ter sido omitido.
- Aqui está um homem excepcional - disse Escauro. - Só os deuses sabem quantas vezes o amaldiçoei! Só os deuses sabem quantas vezes desejei que ele nunca tivesse existido! Mas à medida que o tempo se vai escoando implacável, à medida que a minha vida se vai transformando num fio cada vez mais frágil, é cada vez menor o número de homens que lembro com afeição. E não é apenas a iminência da morte que explica isto. É a acumulação de experiência que me leva a recordar com afecto certos homens, e não outros. Agora, não sinto nada por alguns dos homens de quem mais gostei. Pelo contrário, sinto agora o maior afecto por alguns dos homens que mais detestei.
Sabendo perfeitamente que, nesse momento, Mário lhe piscaria o olho se olhasse para ele, Escauro evitou resolutamente tal situação; se o fizesse, desataria à gargalhada, e aquele discurso vinha-lhe do fundo do espírito e do coração. Um forte sentido de humor podia, de facto, transformar-se num problema terrível!
- Caio Mário e eu atravessámos todo um mundo juntos - disse Escauro, fitando o lívido Lupo. - Ele e eu estivemos sentados lado a lado neste Senado e olhámo-nos com desdém durante muitos anos, muito mais anos do que aqueles que tem essa toga de adulto que tu usas, Homem Lobo! Muito discutimos, muito brigámos, muito lutámos um contra o outro. Mas lutámos juntos contra inimigos da República. Juntos fitámos os cadáveres dos homens que teriam arruinado Roma. Aí estivemos juntos, lado a lado. E rimo-nos os dois, e chorámos os dois. Repito o que disse! Ele é um grande homem, um homem excelente. Um grande, um notável Romano.
Escauro encaminhou-se para as portas e parou em frente delas.
- Tal como Caio Mário, tal como Lúcio Júlio, tal como Lúcio Cornélio Sila, estou hoje convencido de que nos espera uma guerra terrível. Ontem não estava convencido. Porquê a mudança? Só os deuses o sabem! Quando a ordem estabelecida nos diz que as coisas seguirão um determinado rumo porque é esse rumo que seguem há muito, muito tempo, é-nos difícil alterar o que sentimos, e os nossos sentimentos toldam-nos o intelecto. Até que, num lapso de tempo brevíssimo, os nossos olhos começam a ver claramente. Foi isso que me aconteceu hoje. E que aconteceu hoje a Caio Mário. Provavelmente, aconteceu à maior parte dos membros deste Senado. Apercebemo-nos hoje de mil e um pequenos sinais que ontem não descortinávamos.
”Eu escolhi ficar em Roma porque sei que servirei melhor Roma se permanecer no seio das suas instituições políticas. Mas isso não se aplica a Caio Mário. Os homens que, como eu, discordaram dele muito mais vezes do que concordaram com ele, ou aqueles que, como Sexto Júlio, estão ligados a ele por amizade ou laços familiares, enfim, todos nós, todos os que estão presentes nesta assembleia, têm de admitir, como eu admito!, que Caio Mário possui um talento e uma experiência militares muito superiores aos talentos e experiências de todos nós juntos. Pouco me importaria se Caio Mário tivesse já noventa anos e houvesse sobrevivido a três tromboses! Mesmo assim, eu diria aquilo que vos estou a dizer agora: se este homem consegue ligar as palavras e as ideias da forma como ele o faz, então temos de usá-lo no meio onde ele mais brilha - em campanha! Na guerra! Cuidado com a vossa intolerância, veneráveis Senadores! Caio Mário tem a mesma idade que eu, sessenta e sete anos apenas, e a única trombose que o acometeu sucedeu há dez anos. Na minha qualidade de Princeps Senatus, digo-vos com toda a firmeza: Caio Mário deve ser primeiro lugar-tenente de Públio Lupo, e dar aos seus múltiplos talentos o melhor uso.”
Ninguém falou. Aliás, parecia que ninguém respirava. Nem mesmo Sexto César. Escauro sentou-se entre Mário e Catulo César. Lúcio César olhou para os três, e depois o seu olhar percorreu toda a fila até chegar a Sila. Os seus olhos encontraram-se com os de Sila; e Lúcio César apercebeu-se de que o seu coração batia mais depressa. Que diziam os olhos de Sila? Tantas, tantas coisas, que era impossível dizer.
- Públio Rutílio Lupo, ofereço-te a oportunidade de aceitares voluntariamente Caio Mário como teu primeiro lugar-tenente. Caso recuses, proporei uma votação ao Senado.
- Está bem! Está bem! - gritou Lupo. - Mas proponho que ele partilhe esse lugar com Quinto Servílio Cepião!
Mário desatou à gargalhada.
- De acordo! - gritou. - O Cavalo de Outubro atrelado a um jumento!
Júlia estava naturalmente à espera de Mário, tão ansiosa como qualquer esposa devotada de um político. Mário sempre se sentira fascinado pelo facto de Júlia parecer saber instintivamente em que ocasiões o Senado abordava questões muito importantes. De manhã, antes de seguir para a Cúria Hostília, Caio Mário não fazia a mínima ideia do que se iria passar. Mas Júlia sabia que aquela seria uma reunião decisiva!
- É a guerra, não é? - perguntou ela.
- É.
- E as perspectivas, são muito más? São só os Marsos, ou há mais?
- Eu diria que são metade dos Aliados Italianos, provavelmente com o apoio de mais alguns. Eu já devia ter percebido há muito tempo! Escauro é que explicou bem o problema. As emoções impedem-nos de ver os factos. Druso sabia. Ah, se ao menos ele estivesse entre nós, Júlia! Se não o tivessem morto, os Italianos teriam agora a cidadania. E a guerra não bateria à nossa porta.
- Marco Lívio morreu porque há homens que nunca permitirão o alargamento da cidadania a toda a Itália.
- Sim, claro, tens toda a razão - retorquiu Mário, mudando imediatamente de assunto. - Achas que o nosso cozinheiro tem uma apoplexia se lhe pedirmos que faça um jantar sumptuoso amanhã para uma quantidade de gente?
- Pelo contrário. Diria antes que ele ficará em êxtase. Está sempre a queixar-se de que recebemos pouco.
- Óptimo! Porque de facto convidei uma tribo inteira para o jantar de amanhã.
- Porquê, Caio Mário?
Ele abanou a cabeça, com um ar triste.
- Talvez porque tenho o estranho pressentimento de que, para muitos de nós, este será o nosso último jantar juntos, mea vitae. Meum mel. Amo-te, Júlia.
- E eu amo-te a ti - retorquiu ela, tranquilamente. - Bom, mas agora diz-me lá quem é que convidaste para jantar?
- Quinto Múcio Cévola, que, assim o espero, será o sogro do nosso filho. Marco Emílio Escauro. Lúcio Cornélio Sila. Sexto Júlio César. Caio Júlio César. E Lúcio Júlio César.
Júlia estava com um ar um tanto intimidado.
- E as respectivas esposas também?
- Sim, as esposas também.
- Só que isso levanta um problema...
- Que problema?
- A mulher de Escauro, Dalmática! E Lúcio Cornélio!
- Ora, isso já foi há tanto tempo! - retorquiu Mário desdenhosamente.
- Pomos os homens nos divãs estritamente de acordo com a hierarquia, e depois tu arrumas as mulheres de maneira a que perturbem o menos possível o ambiente. Que achas?
- Está bem - retorquiu Júlia, com um ar ainda dubitativo. - O melhor será pôr Dalmática e Aurélia em frente de Lúcio e de Sexto Júlio, e Élia e Licínia em frente do lectus medius. Cláudia e eu ficaremos em frente de Caio Júlio e de Lúcio Cornélio. - Soltou um risinho e acrescentou: - Não creio que Lúcio Cornélio tenha dormido com Cláudia!
As sobrancelhas de Mário agitaram-se numa estranha dança.
- Queres dizer com isso que ele afinal sempre foi para a cama com Aurélia?
- Não! Francamente, Caio Mário, às vezes deixas-me furiosa!
- O mesmo posso eu dizer de ti! - contrapôs Caio Mário. - Mas já agora diz-me... onde é que pensas pôr o teu filho? Não te esqueças de que ele já tem dezanove anos!
Júlia colocou o jovem Mário no lectus imus, o último divã, o que correspondia à mais baixa posição que um homem podia ocupar em tais circunstâncias. O filho não levantou quaisquer objecções; é que, logo a seguir a ele, vinham dois pretores urbanos, os seus tios Caio Júlio e Lúcio Cornélio. Todos os outros homens tinham já sido cônsules
- e o pai tinha dirigido mais dois consulados do que todos os outros juntos. O facto de o pai ter sido várias vezes cônsul era realmente algo de reconfortante. Mas poderia ele nutrir a esperança de bater o recorde do pai? A única forma de o fazer seria tornar-se cônsul ainda jovem, mais novo ainda que Cipião Africano ou Cipião Emiliano.
O jovem Mário sabia que havia um casamento à sua espera, precisamente com a filha de Cévola. Não conhecia Múcia, pois ela era demasiado jovem para ir a festas, mas ouvira dizer que era muito bonita. O que não admirava; a mãe, Licínia, ainda era uma mulher belíssima. Casada agora com Metelo Célere, filho de Metelo Baleárico. Adultério. Múcia tinha por isso dois meios-irmãos, dois Cecílios Metelos. Cévola casara com uma segunda Licínia, menos bela; foi esta Licínia que o acompanhou à festa, uma festa que considerou extremamente agradável.
No entanto, como escreveu Lúcio Cornélio Sila a Públio Rutílio Rufo, que se encontrava ainda em Esmirna,
Aquela foi uma festa pavorosa. Só não se transformou em catástrofe porque Júlia estava lá, porque Júliafez com que todos os homens se dispusessem na sala inteiramente de acordo com o protocolo, e arrumou as mulheres de forma a que estas não pudessem perturbar o ambiente. Com o resultado de que de Aurélio e da mulher de Escauro, Dalmática, só lhes vi as costas.
Sei que Escauro te escreveu, porque as nossas cartas vão pelo mesmo correio, e por isso não vou repetir as notícias sobre a guerra iminente com os Italianos, nem vou fazer um resumo do discurso que Escauro fez no Senado em louvor de Caio Mário - tenho a certeza absoluta de que Escauro te mandou uma cópia! Vou dizer-te apenas que achei a actuação de Lupo uma desgraça e que não pude calar-me quando me apercebi de que Lupo recusava o nosso velho mestre. O que mais me irrita é que um burro como o Lupo - lá lobo é que ele não é! - fique a comandar todo um teatro de guerra, enquanto Caio Mário vai ter de desempenhar funções subalternas. O que há de mais intrigante nisto tudo é a afabilidade com que Caio Mário reagiu à notícia de que teria de partilhar o seu posto de lugar-tenente com Cepião. Por isso pergunto: quais serão os planos da raposa de Arpino para esse outro burro? Ou me engano muito, ou o nosso Caio Mário vai-lhe montar uma bela armadilha.
Bom, afastei-me um pouco do tema inicial, mas a ele vou voltar, pois eu e Escauro concordámos quanto ao seguinte: primeiro, cada um de nós escrevia uma longa carta, e segundo, dividiríamos o assunto entre nós. Eu fiquei com as bisbilhotices, o que não é nada justo. Para bisbilhotices não há melhor que Escauro, tirando o destinatário desta carta. Cévola foi convidado porque Caio Mário está a ver se casa o jovem Mário com a filha de Cévola e da primeira das suas duas Licínias. Múcia (Múcia Tércia chamada, Para se distinguir das duas Mucias filhas de Cévola, o Augure) anda agora pelos treze anos. Tenho pena da rapariga. O jovem Mário não me agrada nada: é um fedelho arrogante, presumido, ambicioso. Vai causar problemas a muita gente. Enfim, não tem nada a ver com o meu querido filho.
Públio Rutílio, eu nunca soube muito bem o que era ter família, tanto em rapaz como em adulto. Por isso, o meu filho era, para mim, um bem infinitamente precioso. Amei-o desde a primeira vez que o vi, um bebé risonho, todo nu, no quarto das crianças. Achei nele o companheiro perfeito. Tudo o que eu fazia ele admirava. À minha viagem ao Oriente ele deu toda uma dimensão de interesse e entusiasmo. Pouco interessava que ele não estivesse em condições de dar conselhos a um adulto como eu. O que interessava é que ele entendia, compreendia sempre tudo. Mostrava-se sempre compreensivo, solidário. Depois, bom, depois morreu. Tão de repente, tão inesperadamente! Se eu tivesse tido tempo para preparar-me, dizia eu a mim mesmo... Mas como pode um pai preparar-se para a morte do filho?
Desde que ele morreu, meu velho amigo, o mundo ficou cinzento e triste. Acho que já não sou o mesmo, que as coisas já não me interessam como me interessavam. Passou já quase um ano e suponho que, de certo modo, aprendi a enfrentar a sua ausência. De certo modo apenas... porque na realidade nunca aprenderei a aceitar a ausência do meu filho. É uma parte de mim que me falta. É um vazio que nunca poderá ser preenchido. Sinto-me totalmente incapaz de falar dele com quem quer que seja, omito o seu nome como se ele nunca tivesse existido. Porque a dor é excessiva, insuportável. Estou a escrever-te sobre ele, e choro.
Mas a verdade é que não estava nas minhas previsões escrever-te sobre o meu rapaz. Eu devia era escrever sobre aquele maldito jantar! É possível que um factor relacionado com o jantar me tenha levado a pensar nele (embora eu nunca deixe de pensar nele): a presença de Cecília Metela Dalmática, a mulher de Escauro. Julgo que terá agora vinte e oito anos, ou à volta disso. Casou-se com Escauro aos dezassete
- no início do ano em que vencemos os Cimbros, se bem me lembro. Ela tem já uma filha de dez anos e um rapaz de cinco. Ambos filhos de Escauro, sem a mínima dúvida, eu vi os pobrezitos: tão lisos como uma das quintas de Catão, o Censor. Escauro já fala em casar afilha com o filho do grande amigo de Cévola, o Augure, Mânio Acílio Glabrião. Embora eles tenham há já muito tempo a dignidade consular, escapando por isso a qualquer contaminação do homo novis, a verdade é que neste caso não é a genealogia que está em causa. É mais a riqueza da família, quase tão grande como a dos Servílios Cepiões, imagino eu. Mas eu estou-me marimbando para os Acílios Glabriões, ainda que o avô deste Mânio Acílio Glabrião tenha morrido ao lado de Caio Graco. Tal como todos os outros que estiveram ao lado de Caio Graco, morreu pela causa por que lutou! Mas adiante. Acho que esta é uma boa bisbilhotice, não achas? Ai não? Então que Lâmia te leve!
Dalmática é uma bela mulher. Como ela me enfeitiçou da primeira vez que disputei o cargo de pretor! Lembras-te? É impressionante: já passaram dez anos. Já estou nos cinquenta, Públio Rutílio, e tenho agora poucas possibilidades de me vir a tornar cônsul como nos tempos de Subura. É caso para pensar no que Escauro lhe terá feito em consequência daquelas idiotices que se passaram há nove anos. O que quer que ele lhe tenha feito, ela esconde-o bem. Tudo o que recebi dela quando nos encontrámos na sala de jantar foi um frio ave e um frígido sorriso. Não me olhou nos olhos. Não a censuro por isso. Suponho que ficou aterrorizada pelo simples facto de Escauro poder achar a sua conduta censurável. E o terror determinou o seu comportamento. De modo que, depois de sentada, nunca mais lhe vi a cara: Escauro só poderia ter aprovado tão grande contenção. Já o mesmo não posso dizer da nossa muito querida, da nossa mais que querida Aurélio, que pôs toda a gente tonta pois não parou quieta um segundo. Bom, ela agora sente-se de novo feliz porque Caio Júlio partirá muito em breve para outra expedição. Vai acompanhar o irmão, Sexto Júlio, numa missão que tem por objectivo trazer cavalaria da África e dos confins da Gália para Roma.
Não quero ser malicioso, embora essa seja a minha fama - e merecida, sem dúvida. Ambos conhecemos muito bem Aurélio e o que poderia dizer-1 e acerca dela nunca seria para ti uma surpresa. Há amor bastante entre ela e o marido. Mas não é um amor feliz, não é um amor satisfatório. Ele corta-lhe as asas, e ela não gosta disso. A noite passada, como sabia que ele ia estar fora durante pelo menos alguns meses, Aurélio estava animada, ria, não era a mulher prosaica e igual a muitas outras que o casamento quis que ela fosse. Caio Júlio, que estava ao meu lado, apercebeu-se perfeitamente dessa mudança de humor! Porque a questão é esta, Públio Rutílio: quando Aurélio está bem, animada, divertida, os homens à sua volta mudam por completo! Helena de Tróia perderia no confronto com ela. Imagina (se conseguires) o nosso Princeps Senatus comportando-se como um adolescente tonto! Isto para não falar de Cévola, ou mesmo de Caio Mário. Tal é o efeito que ela tem. Nenhuma das outras mulheres era de molde a deixar um homem indiferente. Algumas delas eram, aliás, muito belas. Mas nem mesmo Júlia ou Dalmática podiam competir com ela, um facto de que Caio Júlio se apercebeu rapidamente. Aposto que houve discussão quando chegaram a casa.
Sim, de facto foi um jantar muito estranho, um jantar muito constrangedor. Mas então porque é que houve jantar?, perguntarás tu. Não sei ao certo o motivo, mas fiquei com a impressão de que Caio Mário teve um pressentimento. O pressentimento de que nós, os que estávamos presentes naquela sala, não mais voltaríamos a encontrar-nos em circunstâncias similares. Caio Mário falou de ti, com muita tristeza, lamentou que a festa não pudesse ser realmente festa sem a tua presença. Foi também com tristeza que falou de si mesmo. E de Escauro. Até mesmo do filho! Quanto a mim, bom, quanto a mim, parece que lhe inspirava toda a tristeza deste mundo! Embora nos tenhamos afastado muito desde a morte de Julilla, não consigo compreender tal reacção. Estamos perante uma guerra que vai ser decerto muito difícil, e por isso suponho que Caio Mário e eu iremos trabalhar juntos segundo o nosso velho acordo. A única conclusão a que consigo chegar, enfim, a única conclusão lógica, é que ele teme pela sua vida. Teme não sobreviver a esta guerra. E teme que todos nós venhamos a sofrer após o seu desaparecimento.
Respeitando o acordo que fiz com Escauro, não falarei da guerra. No entanto, há um episódio extremamente interessante que não resisto a contar-te. Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino, que foi encarregado dos problemas de armamentos e abastecimentos para as nossas novas legiões, visitou-me há dias. Não é ele que está casado com a tua filha? Julgo que sim, que e ele. Bom, seja como for, o certo é que ele tinha uma história muito curiosa para me contar. É pena que os Apeninos nos separem tão fortemente da Gália Italiana, em particular na sua extremidade adriática. É altura de transformarmos a Gália Italiana numa província digna desse nome, e de enviarmos regularmente governadores para lá e para a Gália Transalpina. Como vai haver guerra, enviámos um homem para governar ambas as Gálias, mas esse homem irá para a Gália Italiana - é o pretor Caio Célio Caldo. Quinto Sertório é o seu questor, o que constitui sem dúvida um dado tranquilizador. Pelos vistos, há imenso sangue militar nos Mários: Sertório é um Mário pelo lado da mãe. E além disso é um Sabino.
Mas estou a afastar-me da questão. Pisão Cesonino fez uma rápida viagem ao Norte, a fim de encomendar armas e armaduras para os nossos soldados. Começou pelos sítios do costume: Populónia e Pisas. Porém, em qualquer uma dessas duas cidades, ouviu boatos acerca de novos centros ligados à fundição, situados na parte oriental da Gália Italiana, mas dirigidos por uma firma com sede em Placência. De maneira que ele foi a Placência. De nada lhe valeu! Quer dizer, é verdade que a firma estava lá. Mas as pessoas que trabalhavam na firma é que não lhe disseram nada: tudo de boca fechada, pareciam mudos. De modo que ele seguiu para leste, para Patávio e Aquileia, onde descobriu uma nova indústria. Descobriu também que estas fundições tinham produzido armas e armaduras para os Aliados Italianos, de acordo com um contrato exclusivo válido por cerca de dez anos! Cesonino achou o caso inocente. Os ferreiros tinham nas mãos um contrato exclusivo, pagaram-lhes rapidamente, de modo que eles fizeram o que tinham a fazer: produziram! Embora as oficinas de fundição sejam propriedade de indivíduos isolados, as cidades foram construídas por um proprietário fundiário que tudo possui excepto os negócios propriamente ditos. Um proprietário fundiário que, segundo os habitantes locais, é um senador romano! E para que o caso fique ainda mais estranho, parece que os proprietários das fundições pensavam que estavam a produzir armas para Roma, e que o homem que com eles firmara o contrato era um praefectus fabrum romano! Quando Pisão Cesonino insistiu junto deles para que descrevessem esse homem misterioso, eles pintaram o retrato chapado de nada mais nada menos do que Quinto Popaedius Silão, dirigente dos Marsos!
Ocorreu-me imediatamente a seguinte questão: como é que Silão soube da existência daquela indústria, se ninguém em Roma estava a par do caso? E dei a mim mesmo uma resposta muito curiosa: uma resposta difícil de provar, creio. Por isso não falei nisso a Pisão Cesonino. Quinto Servílio Cepião viveu durante muito tempo em casa de Marco Lívio Druso. Só deixou essa casa quando a mulher o trocou por Marco Catão Saloniano. Ora, na altura em que eu fiz a minha primeira campanha para o cargo de pretor, Cepião saiu de Roma para fazer uma longa viagem. Garantiste-me, em cartas anteriores, que o ouro de Tolosa já não se encontra em Esmirna, que Cepião foi a Esmirna e o retirou, para grande pesar dos bancos locais. Acontece Que Silão era a visita habitual de Marco Lívio Druso. Druso dava-se muito melhor com ele do que com Cepião. Não terá Silão ouvido por acaso que Cepião ia investir algum do seu dinheiro na criação de cidades ligadas à fundição na região oriental da Gália Italiana? Silão podia, dessa forma, antecipar-se a Roma, levando essas novas cidades a produzir, em exclusivo, para os Marsos, antes mesmo que as oficinas fundidoras precisassem de angariar clientes.
Aposto que Cepião é o senador romano que possui aquelas terras e que a companhia sediada em Placência é dele. Mas duvido que consiga prová-lo, Públio Rutílio. Seja como for, Pisão Cesonino pressionou, de alguma forma, as oficinas da região, e estas comprometeram-se a não produzir mais armas ou armaduras para os Italianos. Em vez disso, trabalharão para nós.
Roma prepara-se para a guerra. Mas há algo de sinistro nestes preparativos, sabendo nós quem o inimigo é. Ninguém se sente bem a lutar em Itália, incluindo, assim creio, o inimigo. O qual, segundo as minhas informações, já nos podia ter atacado há três meses. Ah, esqueci-me de te dizer que ando muito ocupado a organizar uma rede de espionagem - e juro, desde já, que as nossas informações sobre os movimentos deles serão muito melhores que as informações deles sobre os nossos movimentos.
Ah, a propósito, esta parte da minha carta é posterior à primeira. O correio de Escauro, afinal, ainda não partiu.
Para já, conseguimos deter a Etrúria e a Úmbria. Sim, claro que há motins e arruaças, mas os indivíduos que estão por detrás desses acontecimentos não possuem influência suficiente para levar a Etrúria e a Úmbria à secessão. Graças, em larga medida, à economia de latifúndio. Caio Mário não tem parado de um lado para o outro, tanto recrutando como pacificando - e, para fazer justiça a Cepião, devo dizer que este se tem mostrado muito activo na Úmbria.
Os veneráveis Senadores ficaram na maior aflição quando a minha espionagem veio com a notícia de que os Italianos têm vinte legiões preparadas e armadas. Como eu dispunha de provas, não tiveram outro remédio senão acreditar. E aqui estamos nós com seis legiões! Felizmente temos armas e armaduras para, pelo menos, mais dez legiões, graças a essas criaturas que nós mandamos vistoriar os campos de batalha para trazerem todo o material bélico que os nossos mortos e os do inimigo deixaram no terreno. E também o material dos inimigos prisioneiros. Está tudo armazenado em Cápua, num sem-número de armazéns. O pior é recrutar e treinar novas tropas, com o pouco tempo que temos. Não sei como será isso possível.
Devo dizer-te que, em fins de Fevereiro, o Senado decidiu que devíamos dar uma lição a Ásculo Picentino, uma lição no estilo da que demos a Numância. Ora, vai haver um teatro do Norte, bem como um teatro central. O comando do Norte foi entregue a Pompeu Estrabão. E foi-lhe definido um alvo imediato: Ásculo Picentino. E disseram-lhe que em Maio devia estar pronto para marchar sobre a cidade. Maio é quase o princípio da Primavera, assim o diz o calendário, mas, pelo menos este ano, o nosso lento Pontifex Maximus intercalou um período extra de vinte dias no final de Fevereiro, e é por isso que esta última parte da minha carta tem ainda a data de Março. A propósito, agora estou sozinho nesta actividade epistolar - Escauro diz que não tem tempo! Como se eu tivesse! Não, Públio Rutílio, escrever-te não é nenhum incómodo. Porque, em tempos idos, quando eu estava longe de Roma, as tuas cartas tiveram para mim uma importância inexcedível. Não faço mais do que pagar-te com a mesma moeda.
Lupo é daqueles comandantes que não fazem nada que considerem abaixo da sua dignidade. De modo que, quando se determinou que ele e Lúcio César dividiriam entre si as quatro legiões de veteranos de Tido Dídio, bem como as duas legiões de novatos, Lupo não lhe apeteceu deixar Carseólos (onde estabeleceu o seu quartel-general para a campanha do teatro do Centro) e ir a Cápua buscar a sua metade das tropas. Como era uma tarefa demasiado fatigante, mandou Pompeu Estrabão. Ele não gosta de Pompeu Estrabão, mas, vendo bem as coisas, quem é que gosta de Pompeu Estrabão?
Acontece, porém, que Pompeu Estrabão lhe pagou da mesma moeda! Foi, de facto, a Cápua, buscar as duas legiões de veteranos mais a outra legião de novatos, só que, depois, dirigiu-se para Roma. Lupo tinha-lhe ordenado que seguisse primeiro para Carseólos, onde deixaria as duas legiões de veteranos, e em seguida para Piceno, acompanhado da legião de novos soldados. O que Pompeu Estrabão acabou por fazer, deixou Escauro a rir durante uma semana. Entregou o comando da legião de novatos a Caio Perperna e mandou-a para Carseólos, enquanto ele avançava pela Via Flamínia com as duas legiões de veteranos! Mas fez mais! De facto, quando Catulo César chegou a Cápua a fim de assumir o comando da zona, descobriu que Pompeu Estrabão tinha também esvaziado os armazéns, levando consigo armas e armaduras que davam para quatro legiões! Escauro ainda se ri desta história. Mas eu não consigo. De facto, que poderemos fazer agora? Nada, rigorosamente nada! Rompeu Estrabão precisa que o vigiem. Há demasiada Gália nele.
Quando Lupo percebeu que tinha sido enganado, e de que maneira, pediu a Lúcio César que lhe desse uma das suas duas legiões veteranas! É claro que Lúcio César se recusou a dar-lhe a legião, dizendo-lhe que não conseguia controlar os seus lugares-tenentes, então que não fosse queixar-se ao cônsul sénior. Infelizmente, Lupo resolveu vingar-se em Mário e Cepião, obrigando-os a recrutar e treinar soldados com redobrado vigor. Quanto a ele, deixou-se ficar quieto e amuado em Carseólos.
Célio e Sertório, entretanto, movem montanhas na Gália Italiana para arranjar armas, armaduras e tropas, e não há, em todo o território romano, balança ou fundição que não esteja mais ocupada que um sardenho solitário destroçando uma escolta. Suponho, por isso, que não teve qualquer importância o facto de as cidades de Cepião terem trabalhado para os Italianos durante todos estes anos. Fosse como fosse, não teríamos sido suficientemente inteligentes para lhes propor que trabalhassem para nós. Agora estão a trabalhar para nós, e não nos podemos queixar.
Antes de Maio temos de ter dezasseis legiões em campanha. Ou seja, temos de arranjar mais dez legiões. Claro, vamos conseguir! Se há uma coisa em que Roma é boa, é em realizar os seus objectivos quando tudo está contra ela! Surgem voluntários de todo o lado e de todas as classes, e as comunidades abrangidas pelos Direitos Latinos mostram-se leais a Roma. Devido à nossa pressa, nada foi feito para separar voluntários latinos dos romanos, de modo que até parece que, involuntariamente, estabelecemos uma espécie de hegemonia. O que eu estou a tentar dizer é que não haverá legiões auxiliares nesta guerra. Todas serão consideradas romanas.
Lúcio Júlio César e eu partiremos para Câmpania no início de Abril, aos oito dias desse mês, provavelmente. Quinto Lutácio Catulo César encontra-se já a comandar as actividades em Cápua; acho que se vai sair bem dessa tarefa. Fico profundamente satisfeito com o facto de ele não comandar nenhum exército. A nossa legião de novatos será dividida em duas unidades de cinco coortes cada - eu e Lúcio César achamos que será necessário destacar uma guarnição tanto para Nola como para wEsêrnia. Estas tropas poderão fazer isso, não têm de ser ganhadoras de coroas para tarefa tão simples. Esêrnia é um posto avançado em território inimigo. Até agora, tem sido leal a Roma. Cipião Asiático e Lúcio Acílio - ambos lugares-tenentes júniores (e ambos muito fracos) - vão levar cinco coortes imediatamente para Esêrnia. O pretor Lúcio Postúmio levará as outras cinco coortes para Nola. Para um Postúmio, é um tipo bastante estável. Gosto dele. Isso é porque ele não é um Albino, dirás tu...
E é tudo por ora, meu caro Públio Rutílio. O correio de Escauro está prestes a chegar. Quando tiver uma oportunidade, escrevo-te de novo, mas receio que tenham de recorrer às tuas correspondentes caso queiras saber notícias com alguma regularidade. Júlia prometeu que te iria escrever com bastante frequência.
Sila arrumou a pena com um suspiro. Uma carta enorme, mas que tinha algo de catártico. Valia a pena tal esforço, ainda que lhe tivesse tirado o sono. Sila estava consciente de quem era o destinatário, nunca se esquecera disso, mas a verdade é que naquela carta fora capaz de dizer coisas que nunca conseguira dizer a Públio Rutílio Rufo pessoalmente. A razão é que Públio Rutílio Rufo estava demasiado longe para significar qualquer tipo de ameaça.
No entanto, não tinha referido a sua súbita ascensão no seio do Senado, graças à intervenção de Lúcio Júlio César. Esse era um facto demasiado recente e demasiado incerto para que Sila falasse dele: não queria ofender a deusa Fortuna. Aliás, Sila estava certo de que tal situação fora provocada por um mero acidente: como não gostava de Caio Mário, Lúcio César procurara muito simplesmente outra pessoa. Em princípio, deveria ter perguntado a Tito Dídio ou a Públio Crasso, ou a qualquer outro triunfador. Mas o seu olhar pousara em Sila e a sua cabeça decidira que Sila servia. Claro que Lúcio César não estava à espera de uma resposta tão perfeita; porém, confrontado com tal situação, Lúcio César fez uma coisa que não era propriamente invulgar: escolheu Sila como seu assistente no Senado para as questões militares. Ter de consultar um Mário ou um Crasso não era nada bom para o cônsul: fazia-o parecer um novato que, a todo o momento, tinha de fazer perguntas aos mestres. Ao passo que pedir conselho a uma personalidade relativamente desconhecida como Sila fazia pensar num golpe de génio do cônsul. Lúcio César podia dizer que tinha ”descoberto” Sila. E, ao depender dos pareceres de Sila, estava de certo modo a assumir o papel de seu protector.
Para já, Sila estava satisfeito com tal situação. Se se comportasse de um modo atencioso e deferente com Lúcio César, obteria os comandos e as tarefas de que precisava para eclipsar o mesmo Lúcio César. O qual, como Sila rapidamente descobrira, tinha uma clara tendência para um pessimismo mórbido, além de não possuir tanta confiança na sua competência como à primeira vista parecia. Quando partiram os dois para Campânia, no princípio de Abril, Sila deixou as decisões e disposições militares para Lúcio César, enquanto ele se lançava, com um entusiasmo e uma energia dignos dos maiores louvores, nas tarefas de recrutamento e treino de novas legiões. Entre os centuriões das duas legiões veteranas de Cápua, havia muitos que tinham servido sob as ordens de Sila, e mais ainda, entre os centuriões na reserva que se tinham apresentado para treinar tropas. Graças à sua actividade neste campo específico, a fama de Sila não parou de crescer. Agora, precisava apenas que Lúcio César cometesse alguns erros, ou que se afundasse tanto no decorrer da campanha que não tivesse outra hipótese senão dar rédea livre a Sila. Sila estava absolutamente determinado a não cometer o mínimo erro: assim, seria muito mais fácil colher os frutos, quando eles viessem.
Melhor preparado que qualquer dos outros comandantes, Pompeu Estrabão equipou duas novas legiões formadas por soldados das suas vastas terras do Norte do Piceno; com a ajuda dos centuriões das duas legiões veteranas que levava consigo, bastaram-lhe cinquenta dias para pôr esses soldados em condições de afrontar a guerra. Durante a segunda semana de Abril, partiu de Cíngulo com quatro legiões - duas veteranas, e as outras duas constituídas por soldados sem experiência de guerra. Uma boa proporção. Embora a sua carreira militar não tivesse nada de extraordinário, Pompeu Estrabão possuía a experiência necessária a um cargo de comando, e ganhara, além disso, a reputação de ser um homem particularmente duro.
Um incidente sucedido quando era questor na Sardenha (tinha ele nessa altura trinta anos) contribuíra muito para o desprezo e para o isolamento a que era votado pelos seus colegas do Senado. Pompeu Estrabão escrevera da Sardenha pedindo ao Senado que o autorizasse a impugnar o mandato do seu superior, o governador Tito Ânio Albúcio, e a levá-lo a tribunal quando regressassem a Roma. Conduzido por Escauro, o Senado respondera com uma carta contundente do pretor Caio Mémio, que nela incluíra uma cópia do discurso de Escauro - e Escauro chamava-lhe positivamente tudo, desde cogumelo venenoso a estúpido, passando por outros termos semelhantes, como bovino, mal-educado, presunçoso, imbecil e grosseiro. Pompeu Estrabão achava que tinha procedido de forma correcta ao pedir o julgamento do seu superior; porém, para Escauro e os outros chefes do Senado da altura, o que Pompeu Estrabão tinha feito era imperdoável. Ninguém acusava um superior! E quem acusasse um superior nunca poria a hipótese de o levar a tribunal! Posteriormente, Lúcio Márcio Filipe transformou o caso em motivo de chacota permanente, sugerindo ao Senado que escolhesse um outro vesgo para presidir à acusação no julgamento que Tito Albúcio teria forçosamente de enfrentar. O vesgo nomeado acabou por ser César Estrabão.
Havia muito sangue dos reis celtas em Pompeu Estrabão, embora ele clamasse que era completamente romano. O argumento que mais utilizava para defender a sua romanidade era o facto de pertencer à tribo Clustumina, uma tribo rural razoavelmente antiga cujos cidadãos viviam na região oriental do vale do Tibre. Mas eram poucas as personalidades romanas que não sabiam que os Pompeus se encontravam no Piceno muito antes da data da conquista romana dessa região. A tribo criada para os novos cidadãos picentinos era a tribo Velina, e a maior parte dos vassalos que viviam nas terras dos Pompeus, no Norte do Piceno e na Úmbria Oriental, pertenciam a essa tribo. Diziam essas personalidades, cuja opinião contava em Roma, que os Pompeus eram Picentinos e possuíam já vassalos muito antes de Roma ter alguma influência nessa zona de Itália; posteriormente, teriam comprado o seu acesso a uma tribo melhor que a tribo Velina. Era uma zona de Itália onde os Gauleses se tinham instalado profusamente após a malograda invasão da Itália Central e de Roma pelo rei Breno, trezentos anos antes. E como, fisicamente, os Pompeus tinham todos os traços dos Celtas, a opinião prevalecente em Roma era a de que os Pompeus eram pura e simplesmente gauleses.
Fossem ou não gauleses, o certo é que, setenta anos antes, um Pompeu tinha feito finalmente a inevitável viagem até Roma, e, passados vimte anos, fora eleito cônsul, depois de, sem o mínimo escrúpulo, ter subornado os eleitores. De início, este Pompeu - que tinha mais a ver com Quinto Pompeu Rufo do que com Pompeu Estrabão - tivera terríveis disputas com o grande Metelo Macedónico; no entanto, acabaram por vencer as suas divergências e chegaram mesmo a partilhar o censorato. O que, tudo somado, significava que os Pompeus tinham definitivamente assentado arraiais em Roma.
O primeiro Pompeu do ramo Estrabão a instalar-se em Roma fora o pai de Pompeu Estrabão, o qual conseguira um lugar no Senado e casara com a irmã do famoso autor satírico Caio Lucílio. Os Lucílios eram Campanianos que há muitas gerações se haviam tornado cidadãos romanos; eram muito ricos, e tinham cônsules na família. Uma temporária falta de dinheiro transformara o pai de Pompeu Estrabão num marido desejável (e não só a falta de dinheiro, já que Lucília, de bela, não tinha nada). Infortunadamente, o pai de Estrabão morrera antes de conseguir um cargo de magistrado sénior - mas vivera o suficiente para assistir ao nascimento de Cneu Pompeu, o vesgo Cneu Pompeu, imediatamente apelidado de Estrabão. Lucília tivera outro filho, de seu nome Sexto, mas que morrera também demasiado jovem para poder ter algum êxito na política. Por tudo isto, as esperanças da família acabaram, necessariamente, por recair todas em Pompeu Estrabão.
Estrabão não tinha qualquer tendência para os estudos; embora dispusesse de magníficos professores, era com muita dificuldade que aprendia fosse o que fosse. Confrontado com as ideias e os ideais gregos, o jovem Pompeu Estrabão taxara-os imediatamente de disparates produzidos por ociosos e recusara-os terminantemente, por os achar completamente impraticáveis. Gostava dos senhores da guerra e dos intrusos internacionais que enxameavam a história romana. Enquanto contubernalis -.cadete - servindo sob as ordens de vários comandantes, Pompeu Estrabão não se tornara popular entre os seus pares - homens como Lúcio César, Sexto César, o medíocre Pompeu Rufo, seu primo, Catão Liciniano, Lúcio Cornélio Cina. Tinham feito dele o alvo preferido da sua chacota, não só por causa dos seus olhos atrozmente estrábicos, mas também porque era de uma grosseria, de uma estupidez que nem a melhor instrução romana conseguiria atenuar. Os seus primeiros anos no exército tinham sido uma verdadeira desgraça, e a sua actuação como tribuno dos soldados não fora melhor. Ninguém gostava de Pompeu Estrabão!
Tudo isto viria ele a contar mais tarde ao filho, um violento partidário do pai. Esse filho (então com quinze anos) e uma filha, Pompeia, eram fruto de mais um casamento luciliano; seguindo o precedente aberto pelo pai, Pompeu Estrabão casou-se também com uma feia Lucília, filha de Caio Lucílio Hirro, o irmão mais velho do famoso autor satírico. Felizmente, o sangue pompeu conseguira vencer a fealdade luciliana, pois nem Estrabão nem o filho eram feios, tirando o pormenor do estrabismo no caso do pai. Tal como várias gerações de Pompeus antes deles, tinham tez clara, olhos azuis, nariz curto e achatado. No ramo Rufo, o cabelo era arruivado; no ramo Estrabão, era de um louro dourado.
Quando avançou com as suas legiões para sul através do Piceno, Estrabão deixou o filho em Roma com a mãe, a fim de que o jovem prosseguisse a sua instrução. Mas o filho, que também não era nenhum intelectual e que fora, por outro lado, muito influenciado pelo pai, fez as malas e foi para a sua casa no Norte do Piceno; aí chegado, apresentou-se aos centuriões que tinham ficado a treinar clientes de Pompeu, e submeteu-se a um rigoroso programa de treino militar, muito antes de poder vestir a toga de homem adulto. Ao contrário do pai, porém, o jovem Pompeu foi alvo da adoração generalizada de colegas e superiores militares. Dizia chamar-se Cneu Pompeu, sem apelido. Ninguém nesse ramo da família usava apelido: a excepção era precisamente o seu pai, e o jovem Pompeu não podia adoptar o apelido Estrabão porque não era estrábico. Os olhos do jovem Pompeu eram muito grandes, muito azuis, e em tudo perfeitos. Os olhos, dizia a mãe babada, de um poeta.
Enquanto o jovem Pompeu esperava impacientemente em casa, Pompeu Estrabão prosseguia a sua marcha para sul. Porém, ao atravessar o rio Tina, perto de Falerno, foi vítima de uma emboscada montada por seis legiões de picentinos, sob as ordens de Caio Vidacílio, e viu-se limitado a uma acção defensiva em que, por causa do rio, tinha muito pouca margem de manobra. Para as coisas ficarem piores, apareceu também Tito Lafrénio com duas legiões de vestinos e, passado pouco tempo, foi a fez de Públio Vétio Escalo com duas legiões de marsos! Os Italianos queriam todos participar na primeira batalha.
Strabo significa ”vesgo”, ”estrábico”. (N. do T.)
Não se pode dizer que tivesse havido um vencedor. Com muito menos homens que os italianos, Pompeu Estrabão conseguiu abandonar o rio praticamente intacto e, a toda a velocidade, conduziu o seu exército para a cidade costeira de Firmo Picentino, onde se preparou para aguentar um demorado cerco. Os italianos poderiam tê-lo aniquilado facilmente. Só que não tinham ainda aprendido uma lição muito importante: é que havia uma característica dos militares romanos que nunca falhava, e essa característica era precisamente a velocidade. Vendo as coisas por esse prisma - e a velocidade, naquela situação, era um dado absolutamente vital -, Pompeu Estrabão fora o vencedor, ainda que a vitória tivesse de ser atribuída oficialmente aos Italianos.
Vidacílio deixou Tito Lafrénio a guardar as muralhas de Firmo Picentino e partiu com Escalo para outras batalhas. Entretanto, Pompeu Estrabão conseguiu enviar uma mensagem para Célio, que se encontrava na Gália Italiana, pedindo que lhe enviasse reforços, tão depressa quanto possível. A sua situação não era desesperada; tinha acesso ao mar e a uma pequena frota romana do Adriático de que ninguém se tinha lembrado. Firmo Picentino era uma colónia latina, e leal a Roma.
Logo que souberam que Pompeu Estrabão avançara com o seu exército, os Italianos sentiram a sua honra satisfeita: Roma era o agressor. No grande conselho, Mutilo e Silão dispunham agora de todo o apoio que queriam. Silão permaneceu em Itália e mandou Vidacílio, Lafrénio e Escalo para norte, ao encontro de Pompeu Estrabão, ao passo que Caio Pápio Mutilo, à frente de seis legiões, marchou sobre Esérnia. Nenhum posto avançado latino iria impedir a autonomia de Ilália! Esérnia tinha de cair.
Os dois lugares-tenentes júniores de Lúcio César revelaram imediatamente de que massa eram feitos: com efeito, Cipião Asiático e Lúcio Acílio disfarçaram-se de escravos e fugiram da cidade antes da chegada dos samnitas. Tal comportamento em nada perturbou a cidade de Esérnia. Magnificamente fortificada e muito bem abastecida, a cidade fechou as suas portas e guarneceu as suas muralhas com as cinco coortes de recrutas que os lugares-tenentes de Lúcio César lhe tinham deixado (e tal era a ânsia dos dois em fugir, que nem um soldado levaram consigo). Mutilo compreendeu desde logo que aquele seria um cerco prolongado, e, por isso, deixou Esérnia sob um poderoso ataque lançado por duas das suas legiões, e, com as restantes quatro, tomou a direcção do rio Vulturno, que separava as regiões oriental e ocidental da Campânia.
Quando chegou ao conhecimento dos romanos que os samnitas tinham avançado, Lúcio César mudou-se para Nola, onde as cinco coortes de Lúcio Postúmio tinham dominado a insurreição popular.
- Enquanto não souber quais são os planos de Mutilo, será melhor instalar também em Nola as nossas legiões veteranas - disse ele a Sila quando se preparava para deixar Cápua. - Prossegue o teu trabalho. Há um dado terrível, que temos de enfrentar: eles têm muito mais soldados do que nós. Logo que possas, manda algumas tropas para Venafro, conduzidas por Marcelo.
- Já mandei - retorquiu laconicamente Sila. - A Campânia sempre foi a região preferida dos veteranos depois de passarem à reserva, e, de facto, há um sem-número desses veteranos que se apresentaram já para combater. Precisam apenas de um capacete na cabeça, de uma cota de malha, de uma espada e de um escudo. Logo que consiga equipá-los, escolho os mais experientes para servirem como centuriões, e envio-os para os locais que pretendes ver defendidos. Públio Crasso e os seus dois filhos mais velhos foram para Lucânia ontem, com uma legião de veteranos na reserva.
- Devias ter-mo dito! - observou Lúcio César, um tanto irritado.
- Não, Lúcio Júlio, não devia - retorquiu firme e calmamente Sila. - Estou aqui para pôr em prática os teus planos. Tu dizes-me quem deve ir para determinado local, e com quem, e eu trato de cumprir as tuas ordens. Não precisas de me perguntar, tal como eu não preciso de te contar o que fiz ou deixei de fazer.
- Quem mandaste, então, para Benevento? - perguntou Lúcio César, consciente de que as suas fraquezas começavam a tornar-se visíveis; as exigências do seu cargo eram excessivas para ele.
Mas não eram excessivas para Sila que, naturalmente, não deixou que o outro percebesse a sua satisfação. Mais tarde ou mais cedo as coisas tornar-se-iam demasiado complicadas para Lúcio César - e então seria a sua vez. Deixou Lúcio César ir para Nola, sabendo que tal medida seria tão temporária quanto fútil. Como seria de esperar, quando soube do assalto a Esérnia, Lúcio César regressou a Cápua, decidindo então que o melhor seria marchar sobre Esérnia, a fim de tentar libertar a cidade. Mas as zonas centrais da Campânia, à volta do Vulturno, tinham-se revoltado, havia legiões samnitas por todo o lado, e corria o boato de que Mutilo se encaminhava agora para Benevento.
A parte norte da Campânia era ainda uma região segura, dado que mais romana; Lúcio César, à frente das suas duas legiões veteranas, seguiu por Teano dos Sidicinos e por Interamna, cidades fiéis: essa seria talvez a melhor maneira de se aproximar de Esérnia sem grandes problemas. Mas o que ele não sabia era que Públio Vétio Escaulo, dos Marsos, tinha abandonado o cerco a Pompeu Estrabão em Firmo Picentino, e avançava também sobre Esérnia, contornando o lago Fucino. Os dois exércitos encontram-se entre Atina e Casino.
Nenhum dos exércitos estava à espera de tal encontro. Nada naquela batalha fora organizado, tanto de um lado como do outro. Para mais, a batalha foi travada num desfiladeiro, o que complicou ainda mais as coisas. Lúcio César acabou por ser derrotado. Retirou-se então para Teano dos Sidicinos, deixando dois mil preciosos veteranos mortos no campo de batalha. Escaulo, por seu turno, continuou a sua marcha em direcção a Esérnia. Desta feita, os Italianos podiam indubitavelmente clamar vitória, e foi isso que fizeram.
Nunca tendo aceite por completo o domínio romano, as cidades do Sul da Campânia, incluindo Nola e Venafro, declararam todas o seu apoio à nova nação, Itália. Marco Cláudio Marcelo e as suas tropas fugiram, por isso, de Venafro antes que chegasse o exército samnita; porém, em vez de retirarem para uma cidade segura como Cápua, Marcelo e os seus homens preferiram ir para Esérnia. Deram com os italianos - os marsos, chefiados por Escaulo, e os samnitas cercando a cidade. Marcelo, porém, não deixou de aproveitar a fraca vigilância dos italianos. Durante a noite, todos os romanos conseguiram entrar na cidade. E assim Esérnia ficou com um comandante corajoso e capaz, e com dez coortes de legionários romanos.
Lambendo as suas feridas em Teano dos Sidicinos, tão taciturnamente como um cão velho que acabasse de perder a sua primeira batalha. Lúcio Júlio, deprimido e desanimado, viu-se bombardeado por uma sucessão imparável de más notícias; Venafro perdida, Esérnia fortemente atacada, Nola com dois mil soldados romanos prisioneiros, incluindo o pretor Lúcio Postúmio, e Públio Crasso e os seus dois filhos encerrados na cidade de Grumento pelos Lucanos, agora também participando na revolta, e muito bem conduzidos por Marco Lampónio. Para cúmulo, a espionagem de Sila informava que os Ápulos e os Venusinos estavam prestes a declarar o seu apoio à Itália.
Mas tudo isso era muito pouca coisa, se comparado com as provações por que passava Públio Rutílio Lupo a leste de Roma. Tudo começou quando Caio Perperna chegou com uma legião de recrutas em vez de duas legiões veteranas; depois disso, tudo foi de mal a pior. Enquanto Mário se entregava ao trabalho de recrutamento e equipamento de homens e Cepião fazia exactamente o mesmo, Lupo lançava-se numa batalha epistolar com o Senado romano. Havia elementos insurrectos no seio das suas próprias forças e mesmo entre os seus lugares-tenentes, escrevinhava Lupo furiosamente: que ia fazer o Senado a esses elementos? Como podia ele conduzir uma guerra se tinha inimigos no seu próprio exército? Roma queria ou não queria que ele protegesse Alba? Como podia ele proteger Alba se não tinha um único legionário com experiência? E quando é que chamavam Pompeu Estrabão a Roma? E quando é que o julgavam por traição? E quando é que o Senado lhe dava as duas legiões de veteranos que Pompeu Estrabão lhe roubara? E quando é que o livravam daquele intolerável insecto que dava pelo nome de Caio Mário?
Lupo e Mário encontravam-se acampados na Via Valéria, nas cercanias de Carséolos, e protegidos por boas fortificações (graças a Mário, que pusera os recrutas a cavar; sempre que Lupo se queixava de que os recrutas estavam a cavar, em vez de estarem a treinar, Mário respondia-lhe que aquela era uma excelente maneira de exercitarem os músculos). Cepião ficou numa posição mais recuada, nas cercanias da cidade de Vária, mas também na Via Valéria. Lupo não estava enganado quanto a um pormenor: ninguém se entenderia na equipa que comandava. Cepião mantinha-se longe de Carséolos e do seu chefe, porque, dizia ele, não suportava a atmosfera tensa que se vivia na tenda de comando. E Mário - que supunha que o seu comandante marcharia contra os Marsos logo que visse um número suficiente de soldados nas paradas - não parava de se queixar. Aquelas tropas, dizia, não tinham a mínima experiência, precisariam de pelo menos cem dias de treino para enfrentarem fosse que batalha fosse, uma grande parte do equipamento era mau, o melhor era Lupo aceitar as coisas, tal como elas eram, em vez de estar constantemente a bater no caso de Pompeu Estrabão e das legiões roubadas.
Mas se Lúcio César era um comandante indeciso, Lupo era um comandante perfeitamente incompetente. Tinha uma experiência militar diminuta, e pertencia àquela escola de generais de gabinete que acreditava que qualquer legião inimiga estava derrotada mal visse uma legião romana. Além disso, nutria um profundo desprezo pelos Italianos: para ele, um italiano era sempre um camponês e um patife. Não mais do que isso. Em sua opinião, poderiam avançar logo que Mário tivesse reunido e armado quatro legiões. No entanto, esquecia-se das posições de Mário. E Caio Mário pensava que os soldados só deveriam entrar em acção quando estivessem adequadamente treinados. Por isso, quando Rufo ordenou a Mário que avançasse sobre Alba, Mário, pura e simplesmente, recusou. E dada a recusa de Mário, todos os outros lugares-tenentes recusaram também.
Rufo enviou então mais cartas para Roma. Acusava os seus lugares-tenentes de revolta. Já não era só insubordinação. E Caio Mário era o responsável.
Deste modo, Lupo não ordenou qualquer movimentação até fins de Maio, altura em que reuniu um conselho e mandou Caio Perperna pegar na legião de recrutas capuanos e na melhor legião a seguir a essa, e avançar com elas ao longo da Via Valéria, até às terras dos Marsos. O seu objectivo era Alba, cidade que deveria libertar, caso os marsos a tivessem cercado, ou guarnecer, para o caso de os marsos a atacarem. Mário opôs-se, uma vez mais, mas desta feita a sua opinião foi derrotada; os recrutas, disse Lupo com razão, já tinham acabado o seu período de treino. Perperna e as suas duas legiões avançaram então pela Via Valéria, em direcção a Alba.
As tropas tinham de seguir por um desfiladeiro rochoso, a mil e duzentos metros de altitude, e as neves do Inverno não se tinham ainda inteiramente derretido. As tropas começaram a queixar-se do frio e Perperna, mais preocupado com o conforto do que com a vida dos seus soldados, esqueceu-se de distribuir sentinelas pelos pontos altos da região que atravessavam. Públio Presenteio atacou a coluna romana, numa altura em que ela se encontrava inteiramente cercada pelas ravinas, conduzindo quatro legiões de pelignos que estavam positivamente loucos por obter uma vitória. E a vitória foi deles, uma vitória tão saborosa quanto total. Quatro mil soldados romanos morreram às mãos dos pelignos, deixando-lhes todas as suas armas e armaduras; aliás, os pelignos ficaram também com as armaduras dos seis mil homens que sobreviveram, pois estes, para correram mais depressa, viram-se obrigados a despi-las. Perperna foi, aliás, um dos corredores mais rápidos das hostes fugitivas romanas.
Em Carséolos, Lupo destituiu Perperna e mandou-o para Roma, condenando-o à mais terrível das desonras.
- Foi uma perfeita estupidez - disse Mário, que há muito deixara de tratar o comandante por Públio Rutílio; custava-lhe muito tratar, por um nome que lhe era tão querido, uma pessoa que, de modo nenhum, o merecia. - Não podes atribuir todas as culpas a Perperna, ele não passa de um amador nas coisas militares. O erro é teu, e de mais ninguém. Eu bem te disse: os homens não estavam preparados. E, além disso, deviam ter sido comandados por alguém que entendesse alguma coisa de soldados inexperientes - ou seja, deviam ter sido comandados por mim.
- Trata da tua vida e deixa-me em paz! - atirou-lhe Lupo. - E não te esqueças de que só uma coisa te deve preocupar: dizer que sim a tudo o que eu te mando fazer!
- Não te vou dizer que sim, se me quiseres dar o teu rabo! atirou-lhe Mário, as sobrancelhas tocando-se por sobre a cana do nariz, o que lhe dava um ar ainda mais agressivo. - És um idiota, um incompetente chapado!
- E eu mando-te já para Roma! - gritou Lupo.
- Como podes mandar-me para Roma, se nem autoridade tens para mandar a tua avó dar um passeio ao quarteirão? - exclamou Mário com desprezo. - Quatro mil homens mortos, quatro mil homens que um dia poderiam vir a ser soldados decentes, e seis mil sobreviventes nus que deviam ter sido açoitados! Não culpes Caio Perperna, culpa-te unicamente a ti! - Mário abanou a cabeça, bateu com a palma da mão na sua flácida bochecha esquerda. - Ah, tenho a sensação de que recuei vinte anos no tempo! Estás a fazer o mesmo que todos os outros loucos do Senado: estás a matar homens que poderiam ser bons soldados!
Lupo pôs-se muito direito, mas nem mesmo assim conseguia ter um ar imponente.
- Eu não sou apenas o cônsul, sou também o comandante-chefe deste teatro de guerra - disse ele altivamente. - Dentro de precisamente oito dias - hoje, lembro-te, são as Calendas de Junho - ambos marcharemos em direcção a Nursas, aproximando-nos das terras dos Marsos, pelo norte. Avançaremos em duas colunas, cada uma com duas legiões, e atravessaremos o Velino separadamente. Há apenas duas pontes entre esta região e Reate, e nenhuma delas é suficientemente larga para comportar oito homens, lado a lado. É por isso que teremos de avançar em duas colunas. De outro modo, demoraríamos demasiado tempo a atravessar o rio. Usarei a ponte que fica mais perto de Carséolos, ao passo que tu usarás a que fica perto de Clitérnia. Reunir-nos-emos junto ao rio Himela, para lá de Nursas, entraremos na Via Valéria, imediatamente antes de Antino. Entendido, Mário?
- Entendido - disse Mário. - É uma estupidez, mas está entendido. O problema, Lupo, é que é muito provável que haja legiões italianas a oeste das terras dos Marsos.
- Não há nenhuma legião italiana a oeste das terras dos Marsos
- retorquiu Lupo. - Os pelignos que montaram a emboscada a Perperna voltaram para leste.
Mário encolheu os ombros.
- Faz como quiseres. Mas não digas que não te avisei. Puseram-se a caminho oito dias depois, Lupo à frente com as suas duas legiões, Mário seguindo-o até chegar a altura de avançar sozinho para norte, deixando Lupo a pouca distância da ponte sobre o veloz e frio Velino, cujo caudal engrossara, graças ao degelo das neves. Logo que a coluna de Lupo desapareceu do horizonte, Mário conduziu os seus soldados para uma floresta situada perto e ordenou-lhes que acampassem aí, sem fazerem fogo.
- Vamos seguir o Velino até Reate. Do outro lado do rio há montanhas muito altas - disse ele ao seu primeiro lugar-tenente, Aulo Plócio. - Se eu fosse um italiano astucioso e decidido a vencer Roma nesta guerra, e sabendo já da tremenda desordem que grassa entre as nossas forças, poria os meus homens de vista mais apurada no alto dessas montanhas, vigiando eventuais movimentos de tropas deste lado do rio. Os Italianos devem saber que Lupo tem estado parado há meses em Carséolos, por isso é natural que estejam à espera que ele avance e, neste momento, estão por certo a vigiar os seus movimentos. Aniquilaram o seu último esforço. Agora, estão à espera do esforço seguinte. Por isso, ficaremos nesta bela floresta até chegar a noite e depois avançaremos o melhor que pudermos até nascer o dia; nessa altura, voltaremos a esconder-nos numa floresta. Não vou expor os meus homens enquanto eles não atravessarem aquela ponte, a toda a velocidade.
Plócio era jovem, mas não tão jovem que não tivesse participado, como tribuno júnior, na guerra contra os Cimbros, na Gália Italiana; estivera sob as ordens de Catulo César, mas, como toda a gente que servira nessa campanha, sabia que os louros da vitória iam todos para Mário. E, enquanto escutava as palavras de Mário, apercebia-se do seu contentamento pelo facto de ter tido a sorte de ficar com Mário e não com Lupo. Antes de deixarem Carséolos, lamentara, em tom de brincadeira, a sorte do lugar-tenente de Lupo, Marco Valério Messala, que também preferia ir na coluna de Mário.
Caio Mário chegou, finalmente, à sua ponte no décimo segundo dia de Junho, depois de avançar a um ritmo tremendamente lento, porque não havia luar nem havia estradas, a não ser um caminho serpenteante que desde logo recusara. Tomou as suas disposições cuidadosamente, e com o conhecimento seguro de que ninguém estava a observá-los das montanhas da outra margem, pois, sem ser visto, vigiara atentamente as eventuais movimentações no outro lado do rio. As duas legiões mostravam-se animadas e prontas a fazer tudo o que Mário lhes mandasse fazer; aqueles soldados eram exactamente o mesmo tipo de homens que tinham avançado com Perperna e que tanto se tinham queixado do frio e do nulo conforto da expedição; vinham aliás das mesmas cidades e das mesmas terras que os soldados de Perperna. No entanto, os soldados de Mário sentiam-se confiantes, prontos para tudo, incluindo a batalha, e obedeciam, à risca, às ordens que lhes eram dadas. E porque, pensou Plócio, são homens de Mário, ainda que isso signifique que têm de ser também as mulas de Mário. Porque, como de costume, Mário marchava sem carros para o transporte de bagagens ou equipamento, ao contrário de Lupo, que levara um verdadeiro comboio.
Plócio, já do outro lado do rio, procurou um ponto elevado, de onde pudesse observar aqueles valentes soldados que atravessavam a ponte, fazendo-a balançar. O rio corria bem cheio, fazendo um barulho ensurdecedor. Plócio instalou-se então, num pequeno promontório que se elevava sobre o estreito leito do rio. A certa altura, reparou que, do lado sul desse promontório, havia uma pequena baía cheia de remoinhos e de corpos. De início, quase nem ligou aos corpos, mas depois, subitamente, apercebeu-se com horror de que aqueles eram os cadáveres de soldados! Duas ou três dezenas de cadáveres boiando nas águas dos rios! E as plumas que tinham nos capacetes indicavam que aqueles eram soldados romanos.
Correu, imediatamente, na direcção de Mário que, mal olhou para o triste espectáculo, compreendeu o que se passara.
- Lupo - disse ele num tom grave. - O inimigo atacou-o deste lado da ponte. Dá-me uma ajuda, Plócio.
Plócio ajudou, então, Mário a puxar um dos cadáveres para a margem do rio. Mário virou o cadáver e fitou aquele rosto branco como a cal, marcado pelo terror.
- Foi ontem - disse ele, e deixou o corpo regressar às águas. Gostaria de parar e de dar sepultura condigna a estes pobres homens, mas não temos tempo, Aulo Plócio. Junta as tropas à saída da ponte, em ordem de marcha de batalha. Eu falar-lhes-ei logo que tudo esteja pronto. E despacha-te! Julgo que os italianos não sabem que estamos aqui. É por isso possível que consigamos vingar, pelo menos em parte, esta carnificina.
Públio Vétio Escalo, conduzindo duas legiões de marsos, tinha deixado os arredores de Esérnia um mês antes. Dirigiu-se para Alba, a fim de se encontrar com Quinto Popaedius Silão, que cercava essa cidade (que dispunha do estatuto concedido pelos Direitos Latinos), poderosamente fortificada e decidida a resistir. Silão resolvera permanecer em território marso, a fim de manter o esforço de guerra no seu máximo, mas a espionagem já há muito que o tinha informado de que os romanos estavam a treinar tropas em Carséolos e Vária.
- Vai até lá ver como estão as coisas - disse ele, então, a Escaulo. Escalo encontrou Presenteio e os seus soldados pelignos perto de Antino. Presenteio informou-o da fragorosa derrota de Perperna; vencidos os romanos, voltava agora para leste, a fim de entregar os despojos da batalha à campanha de recrutamento dos Pelignos. Escaulo seguiu então para oeste e fez precisamente o que Mário previra que qualquer italiano astucioso faria; dispôs homens de vista apurada nos cumes das montanhas do outro lado do rio Velino. Entretanto, montou um acampamento naquela margem do rio, a meio caminho entre as duas pontes, e começava justamente a pensar que deveria aproximar-se mais de Carséolos, quando lhe apareceu um mensageiro, anunciando que um exército romano atravessava, naquele momento, a ponte situada a sul.
Deliciado e estupefacto, o próprio Escalo viu Lupo conduzindo os seus soldados através da ponte, e cometendo todos os erros possíveis. Ainda antes de entrarem na ponte, permitiu que os soldados desfizessem as filas ordenadas em que seguiam desde o início da marcha; depois de terem atravessado a ponte, deixou-os andar às voltas pela praia, na maior desordem. A única coisa com que Lupo realmente se preocupava era com o comboio das bagagens. Encontrava-se ainda na ponte, vestido unicamente com uma túnica, quando Escalo e os marsos caíram sobre o seu exército. Oito mil legionários morreram no campo de batalha, incluindo Públio Rutílio Lupo e o seu lugar-tenente, Marco Valério Messala. Cerca de dois mil conseguiram fugir, atirando os carros puxados por bois para o rio, e deixando na ponte as suas cotas de malha, as espadas e os capacetes. O seu destino só podia ser um: Carséolos. Era o décimo primeiro dia de Junho.
A batalha, se assim se lhe podia chamar, deu-se ao fim da tarde. Escalo decidiu, então, ficar onde estava, em vez de mandar os seus homens para o acampamento, para passarem a noite. Ao princípio da manhã, tratariam de recolher os cadáveres, empilhando-os e queimando-os depois, e de conduzir para a margem os carros abandonados. Havia, por certo, nesses carros cereais e outras rações. Levariam também consigo os armamentos capturados. Que magníficos despojos! Lutar com romanos era tão fácil como lutar com um bebé, pensou Escaulo, complacentemente. Nem sequer sabiam proteger-se quando executavam manobras em território inimigo! O que era, sem dúvida, muito estranho. Como tinham eles conseguido conquistar metade do mundo e manter a outra metade num estado de perpétuo temor?
Estava prestes a encontrar resposta para tal pergunta. Mário avançava já, e agora seria a vez de Escaulo sofrer um ataque, com os seus soldados em total desordem.
Mário encontrara primeiro o acampamento marso, completamente deserto. Levou tudo o que havia no acampamento: bagagens, muita comida, imenso dinheiro. Mas essa operação, ainda que fácil, decorreu da forma mais ordenada possível. De facto, Mário deixou o seu pessoal não combatente no acampamento, efectuando tal operação, enquanto avançava com as suas legiões ao encontro dos marsos. Cerca do meio-dia, estava perante as tropas marsas que, por essa altura, se dedicavam à tarefa de tirar as armaduras dos cadáveres.
- Ah, óptimo! - gritou ele para Aulo Plócio. - Os meus homens vão começar da melhor maneira: impondo uma tremenda derrota ao inimigo! Dá-lhes confiança! Vão ser veteranos antes do tempo!
De facto, aquela batalha proporcionou aos romanos uma vitória impressionante. Escaulo fugiu a toda a pressa para as montanhas, deixando atrás de si dois mil marsos mortos, bem como tudo o que o seu exército possuía. Mas as honras, pensou Mário com alguma tristeza, iam ainda, todas, para os Italianos que, em termos de soldados mortos, tinham, no cômputo das duas batalhas, vencido claramente. Tantos meses de recrutamento e treino para nada, pensou Mário. Oito mil homens mortos porque eram conduzidos por um louco.
Encontraram os corpos de Lupo e Messala junto à ponte.
- Lamento a sorte de Marco Valério. Creio que teria feito uma bela carreira - disse Mário a Plócio. - Mas fico profundamente satisfeito por a deusa Fortuna ter abandonado Lupo! Se ele tivesse escapado, perderíamos muito mais homens.
Plócio não lhe respondeu.
Mário enviou os corpos do cônsul e do lugar-tenente para Roma, sob escolta do seu único esquadrão de cavalaria. Com tal cortejo, seguiu também uma carta em que explicava como tudo acontecera. Era tempo, pensou com amargura Caio Mário, de Roma apanhar um bom susto. Caso contrário, nunca ninguém iria acreditar que se travava uma guerra contra as nações italianas. E nunca ninguém iria acreditar que os Italianos eram magníficos soldados.
Escauro Princeps Senatus enviou-lhe duas respostas, uma em nome do Senado, e a outra em seu próprio nome.
Lamento sinceramente que a resposta oficial diga o que diz, Caio Mário. Não foi por influência minha, disso podes estar certo. O problema, meu velho, é que não tenho já a energia necessária para manobrar sozinho um corpo de trezentos homens. Fi-lo há mais de vinte anos, relativamente ao caso de Jugurta - mas o que conta são precisamente os últimos vinte anos. Não que haja, agora, trezentos homens no Senado. Haverá cem, quando muito. Os senadores com menos de trinta e cinco anos estão todos integrados no serviço militar
- tal como alguns dos mais velhos, incluindo uma certa pessoa chamada Caio Mário.
Foi um espectáculo terrível quando o teu pequeno comboio fúnebre chegou a Roma. Toda a cidade desatou a gritar e a arrancar o cabelo, ou mesmo a bater no peito, com tanta força, que por certo as feridas abundavam. É que, de repente, a guerra tornou-se real. Talvez fosse esta a única maneira de os levar a perceber isso. O nosso moral foi por água abaixo. Num ápice, mais depressa que um relâmpago. Antes de o cadáver do cônsul ter chegado ao Fórum, creio que toda a gente em Roma - incluindo os senadores e cavaleiros! - pensava que esta guerra não passava de uma sinecura. O desmentido chamava-se Lupo, morto por um italiano, num campo de batalha a poucos quilómetros de Roma. Foi um momento terrível, quando saímos todos da Cúria Hostília e, estupefactos, fitámos os corpos de Lupo e Messala - disseste à escolta para descobrir os corpos antes de chegarem ao Fórum? Aposto que disseste!
Seja como for, toda a Roma está de luto: por todo o lado se vê gente vestindo de negro. Todos os homens que ficaram no Senado vestem o sagum em vez da toga, e uma estreita faixa de cavaleiro nas suas túnicas, em vez do lactus clavus. Os magistrados curuis desfizeram-se de todas as suas insígnias, e na Cúria e nos tribunais sentam-se, agora, em vulgaríssimos bancos de madeira. Fala-se já em aprovar leis sumptuárias. Roma passou do alheamento total ao extremo oposto. Por todo o lado se ouve a interrogação: será que vamos perder a guerra?
Como verás, a resposta oficial incide sobre dois assuntos diversos e tem, por isso, duas partes distintas. Quanto à primeira parte, devo dizer que, pessoalmente, a deploro, mas a verdade é que me obrigaram a calar-me, em nome da ”emergência nacional”. A saber: em toda e qualquer guerra futura, os mortos, desde o mais insignificante soldado ao general, terão um funeral e todas as exéquias possíveis no campo. Nenhum cadáver voltará a Roma, porque se teme que um tal retorno possa afectar gravemente o moral dos Romanos. Enfim, um disparate pegado! Mas foi assim que eles quiseram.
A segunda parte, Caio Mário, é muito pior. Conhecendo-te como te conheço, sei que vais ler a resposta oficial em frente de todos os teus oficiais. Digo-te, por isso, sem mais delongas, que o Senado se recusou a dar-te o supremo comando. Quer dizer, não te afastaram propriamente - não tiveram a coragem necessária para o fazer. Em vez disso, obrigam-te a partilhar o comando com Cepião. Não podiam ter tomado medida mais asinina, estúpida e ineficaz. Aliás, teria sido mais inteligente pôr Cepião à tua frente no comando. Mas suponho que lidarás com esta situação, no teu inimitável jeito.
Ah, a raiva com que eu fiquei! Mas o problema é que as criaturas que ficaram no Senado são tal e qual os bocadinhos de merda ressequida que ficam dependurados do cu da ovelha. A lã, a boa lã, está em campanha - ou então, como é o meu caso, ficou em Roma porque tinha um trabalho afazer. Em Roma, é muito pouca a lã, se comparada com a merda ressequida. Nesta altura, sinto-me perfeitamente a mais. Quem manda é Filipe. És capaz de imaginar a situação? Já era uma tristeza ter de aguentá-lo como cônsul naqueles dias terríveis que conduziram ao assassínio de Marco Lívio, mas agora ele está pior. E os cavaleiros, nos Comitia, vão-lhe comer à mão. Escrevi a Lúcio Júlio, pedindo-lhe que regressasse a Roma a fim de escolher um cônsul suffectus para o lugar de Lupo, mas ele respondeu-me que tínhamos de nos aguentar como estávamos, porque ele não podia deixar a Campânia, um dia só que fosse. Eu faço o que posso, mas a verdade, Caio Mário, é que já estou muito velho.
Claro que Cepião vai ficar insuportável quando souber as notícias. Mas eu arranjei as coisas para que tu fosses o primeiro a saber. Terás tempo para te preparares para enfrentar o pavão. Um único conselho te posso dar: trata do caso à tua maneira.
No entanto, quem acabou por tratar do caso foi Fortuna - e de uma maneira brilhante, decisiva, irónica. Cepião aceitou o comando partilhado, com extrema confiança, pois tinha posto em fuga uma legião de marsos em Vária, enquanto Mário vencia Escalo nas margens do Velino. Equiparando o seu pequeno êxito à vitória de Mário, informou o Senado de que fora ele quem obtivera a primeira vitória da guerra: precisamente no dia 10 de Junho, ao passo que a vitória de Mário ocorrera passados três dias. E, entre essas duas datas, houvera uma terrível derrota, cuja responsabilidade Cepião atribuía a Mário e não a Lupo.
Para seu grande vexame, Mário pareceu não ficar nada preocupado com a questão dos louros da primeira vitória ou com o que Cepião pretendia fazer em Vária. Quando Cepião lhe ordenou que regressasse a Carséolos, Mário, pura e simplesmente, ignorou-o. Depois de ter ocupado o acampamento de Escalo junto ao Velino, fortificou-o poderosamente, e pôs todos os homens de que dispunha a treinar e a retreinar as suas tropas. Entretanto os dias iam passando e Cepião manifestava o seu agastamento por lhe ser negada a hipótese de invadir as terras dos Marsos. Para além de ter herdado os sobreviventes das tropas de Lupo, cerca de cinco coortes, Mário dispunha de dois terços dos seis mil homens que haviam fugido ao exército de Presenteio; todos estes homens encontravam-se agora reequipados. Mário podia, Pois, contar com um total de três legiões muito fortes. Segundo afirmara numa carta, só avançaria com aqueles soldados quando eles estivessem a seu gosto, e não ao gosto de um qualquer cretino que nem era capaz de distinguir a vanguarda das alas.
Cepião dispunha de legião e meia, que redistribuíra de forma a obter duas unidades pouco seguras. Não sentia a confiança suficiente para avançar. Por isso, enquanto Mário treinava incansavelmente os seus homens, Cepião aguardava, quieto e furioso, em Vária. Junho passou, veio Julho, e Mário continuava a treinar os seus homens, enquanto Cepião nada vazia em Vária, a não ser dar largas à sua raiva. Tal como sucedera com Lupo, também Cepião passava uma boa parte do seu tempo a escrever queixas ao Senado, onde Escauro e Aenobarbo Pontifex Maximus e Quinto Múcio Cévola e mais uns quantos homens intransigentes nas suas posições faziam gorar todas as tentativas de Lúcio Márcio Filipe para afastar Caio Mário do comando.
Em meados de Julho, Cepião teve uma visita. Nada mais nada menos do que Quinto Popaedius Silão, dirigente dos Marsos.
Silão chegou ao acampamento de Cepião com dois escravos com um ar perfeitamente aterrorizado, um burro muitíssimo carregado, e dois bebés, aparentemente gémeos. Avisado da chegada de tais visitas, Cepião dirigiu-se ao fórum do acampamento, onde deparou com Silão, vestido de armadura completa, e com a pequena comitiva uns passos atrás. Os bebés, ao colo da escrava, estavam envoltos em cobertores roxos bordados a ouro.
Quando viu Cepião, o rosto de Silão alegrou-se.
- Quinto Servílio, mas que bom que é voltar a ver-te! - exclamou, avançando com a mão direita estendida.
Consciente de que muitos olhos seguiam aquela cena, Cepião pôs um ar muito altivo e ignorou a mão que o dirigente italiano lhe estendia.
- Que pretendes? - perguntou Cepião com o maior desprezo. Silão deixou cair o braço, conseguindo que nesse seu gesto não
houvesse o mínimo traço de humilhação.
- Procuro a protecção de Roma - disse. - E, em atenção a Marco Lívio Druso, preferi entregar-me a ti e não a Caio Mário.
Ligeiramente acalmado por esta resposta - e consumido pela curiosidade -, Cepião mostrou-se hesitante.
- Porque precisas da protecção de Roma? - perguntou ele, os seus olhos percorrendo todos os actores daquela cena, desde Silão aos bebés, e dos escravos ao burro.
- Como sabes, Quinto Servílio, os Marsos apresentaram a Roma uma declaração formal de guerra - retorquiu Silão. - O que tu não sabes é que foi graças aos Marsos que as nações italianas demoraram tanto tempo a lançar a sua ofensiva, após essa declaração de guerra. Nas assembleias realizadas em Corfínio, que ora se chama Itálica, pedi constantemente o adiamento da ofensiva e, secretamente, sempre nutri a esperança de que não haveria guerra. Porque considero esta guerra uma guerra sem sentido, uma guerra odiosa, uma guerra ruinosa. A Itália não pode vencer Roma! Alguns membros do conselho começaram a acusar-me de simpatias romanas, o que eu neguei. Foi então que Públio Vétio Escalo, o meu pretor!, regressou a Corfínio, após a batalha com Lupo, o cônsul, que venceu, e a batalha com Mário, em que saiu derrotado. Escalo acusou-me de conluio com Caio Mário, e toda a gente acreditou nele. Subitamente todos me tratavam como um proscrito! Só não fui morto devido ao facto de o júri ter uma imensidão de membros, precisamente os quinhentos conselheiros do grande conselho italiano. Enquanto deliberavam, deixei a cidade e, a toda a pressa, segui para a minha terra natal, Marrúvio. Sabendo, porém, que Escaulo me perseguia, concluí que as terras dos Marsos não poderiam ser para mim um abrigo seguro. Por isso peguei nos meus filhos gémeos, Itálico e Mársico, e com eles fugi, esperando obter a protecção de Roma.
- E que te leva a pensar que aceitaremos proteger-te? - perguntou Cepião, cheirando à sua volta. Mas que cheiro estranho aquele! pensou.
- Nada fizeste por Roma.
- Fiz, sim, Quinto Servílio! - disse Silão, apontando para o burro.
- Roubei o tesouro dos Marsos e quero oferecê-lo a Roma. O burro traz apenas uma pequena porção desse tesouro. Uma porção ínfima! A alguns quilómetros daqui, bem escondidos num vale, há mais trinta burros, todos eles carregados com pelo menos tanto ouro como o que este traz.
Ouro! Era a ouro que lhe cheirava! Toda a gente insistia que o ouro não tinha cheiro; mas Cepião sabia que tinha, tal e qual como o pai dele. Todos os Quintos Servílios Cepiões sabiam que o ouro tinha um odor muito particular.
- Deixa-me ver - disse ele, aproximando-se do burro.
Os cestos estavam bem escondidos sob uma capa que Silão retirou. Sim, lá estava ele, o ouro. Ouro. Cinco lingotes grosseiros em cada cesto, resplandecendo ao sol. E todos os lingotes marcados com a cobra dos Mansos.
- Cerca de três talentos - disse Silão, cobrindo de novo os cestos, olhando à sua volta ansioso, com medo de que alguém estivesse a ver. Depois de bem amarrada a capa que cobria os cestos, Silão fitou Cepião com os seus belos olhos verdes-amarelados, uns olhos em que Cepião, estupefacto, confuso, julgava ver saltitar pequenas chamas. Este burro é teu - disse Silão. - E talvez possas ficar com mais dois ou três, se me deres a tua protecção pessoal, bem como a de Roma.
- Tens a minha protecção, e a de Roma - retorquiu imediatamente Cepião, com um sorriso de ganância. - Mas ficarei com cinco burros.
- Como queiras, Quinto Servílio. - Silão soltou um sentido suspiro.
- Ah, que cansado estou! Há três dias que corro.
- Então descansa - disse Cepião. - Amanhã conduzir-me-ás a esse tal vale. Quero ver todo esse ouro!
- Será melhor que leves o teu exército - disse Silão enquanto se encaminhavam para a tenda do comandante, a escrava atrás com os bebés. Eram uns bebés muito sossegados: não choravam, não se mexiam sequer. - A esta hora já eles sabem o que é que eu fiz, e são muito capazes de manter a perseguição. Suponho que eles vão perceber que fim pedir asilo a Roma.
- Deixa-os perceber! - retorquiu Cepião, francamente contente. As minhas duas legiões estão à altura dos Marsos! - Abriu a tenda, deixando entrar primeiro o visitante. - Ah, claro, terás de deixar os teus filhos no acampamento enquanto estivermos fora.
- Eu compreendo - respondeu Silão com dignidade.
- Parecem-se contigo - disse Cepião quando a escrava deitou os bebés num divã a fim de lhes mudar as fraldas. E de facto pareciam-se com Silão: ambos tinham os seus olhos. Cepião estremeceu de surpresa.
- Mas o que é isto? Pára-me já com isso, rapariga! - disse ele para a escrava. - A minha tenda não é sítio para cagadelas de bebés! Espera que eu arranje uma tenda para o teu amo, depois poderás fazer o que tens a fazer.
Como fora decidido, quando Cepião partiu em busca do ouro na manhã seguinte, a escrava de Silão ficou no acampamento com os gémeos reais; o ouro ficou também no acampamento, bem escondido na tenda de Cepião.
- Sabias, Quinto Servílio, que Caio Mário, neste preciso momento, se encontra cercado por dez legiões de picentinos, pelignos e marrucinos? - perguntou Silão.
- Não me digas! - exclamou, surpreendido, Cepião, que seguia ao lado de Silão à frente das duas legiões. - Dez legiões? Será que ele vai vencer?
- Caio Mário vence sempre - retorquiu tranquilamente Silão.
- Hum! - fez Cepião.
Tinham percorrido um breve trecho da Via Valéria, dirigindo-se depois para sudoeste, ao longo do Ânio, na direcção de Subláceo. Silão insistia que era melhor seguirem a um ritmo que não sacrificasse demasiado a infantaria, mas Cepião, impaciente por ver o ouro, não queria perder um segundo.
- O ouro está seguro, não sai do esconderijo - disse Silão, tentando acalmá-lo. - Seria bom que as tuas tropas estivessem connosco, e em boas condições físicas, quando lá chegarmos. Seria bom para mim e para ti, Quinto Servílio.
A região era acidentada, mas não demasiado; não muito longe de Subláceo, Silão parou.
- É ali! - disse ele, apontando para um monte situado na outra margem do Ânio. - Atrás daquele monte, fica o vale secreto. Há uma boa ponte, não muito longe daqui. Podemos atravessá-la sem problemas.
De facto era uma boa ponte, larga e de pedra. Cepião ordenou ao seu exército que a atravessasse a toda a velocidade, mas permaneceu na dianteira. A estrada partia de Anágnia, na Via Latina, na direcção de Subláceo, atravessava o Ânio naquele local, e terminava em Carséolos. Atravessada a ponte, as tropas dispunham finalmente de uma boa estrada para andar. Por isso caminhavam agora mais depressa; enfim, estavam a gostar do passeio. Dada a disposição jovial de Cepião, tinham concluído que aquela saída mais não era que um passeio, sem nada de bélico; por isso, traziam os escudos às costas e usavam as lanças como cajados. O tempo ia passando, provavelmente teriam de acampar naquelas terras durante essa noite e não tinham trazido comida; mas, pelo menos, não vinham carregados e, além disso, a disposição do comandante sugeria que talvez aquele passeio lhes valesse um bom prémio.
Com as duas legiões caminhando em fila à volta do sopé do monte, Já que, nesse local, a estrada fazia uma curva para nordeste, Silão virou-se na sua sela para falar com Cepião.
- Agora vou eu à frente, Quinto Servílio - disse. - Só para ver se está tudo bem. Não quero que ninguém se assuste e desate a fugir.
Avançando agora mais devagar, Cepião viu o cavalo de Silão correndo a meio galope; ao fim de algumas centenas de metros Silão deixou a estrada e desapareceu atrás de um pequeno penhasco.
Os marsos caíram sobre a coluna de Cepião vindos de todo o lado: da frente, do local onde Silão desparecera; da rectaguarda, de ambos os lados da estrada, onde se tinham escondido atrás das rochas. Nenhum dos soldados romanos teve a mínima oportunidade de se organizar. Antes que conseguissem empunhar escudos e espadas e pôr os capacetes nas cabeças, viram-se completamente cercados e envolvidos por quatro legiões de marsos, os quais, perfeitamente à vontade, derrubavam homens como se se estivessem exercitando nas artes bélicas. No exército de Cepião, só um homem sobreviveu, e esse homem foi Cepião, feito prisioneiro no início do ataque, e obrigado a assistir à morte dos seus soldados.
Quando tudo acabou, quando todos os soldados romanos jaziam por terra, Quinto Popaedius Silão aproximou-se de Cepião, rodeado pelos seus lugares-tenentes, entre os quais se viam Escalo e Frauco. Exibia um sorriso de todo o tamanho.
- Então, Quinto Servílio, que me dizes agora?
Tremendo, o rosto muito pálido, Cepião reuniu todas as forças que tinha para responder a Silão.
- Esqueces-te, Quinto Popaedius - disse ele -, de que os teus filhos são meus reféns.
Silão desatou à gargalhada.
- Os meus filhos? Não! Não são meus filhos, são filhos dos escravos que vieram comigo. Mas eu vou lá buscá-los, a eles e ao meu burro. Não ficou ninguém no teu acampamento capaz de me impedir de os ir buscar. - Os olhos de Silão, eufóricos de alegria, brilhavam de um brilho frio, dourado. - Mas não me vou dar ao trabalho de procurar a carga do burro. Podes ficar com ela.
- É ouro! - exclamou Cepião, pasmado.
- Não, Quinto Servílio, não é ouro. É chumbo coberto com uma camada finíssima de ouro. Se tivesses arranhado a superfície dos lingotes, terias descoberto facilmente o truque. Mas eu sabia que o meu caro Cepião não faria isso! Não serias capaz de dar um arranhão no ouro, nem que a tua vida dependesse disso, e, neste caso, a tua vida dependia de facto desse arranhão. - Silão pegou na espada, desceu do cavalo Q avançou na direcção de Cepião.
Frauco e Escalo abeiraram-se do cavalo de Cepião e obrigaram o comandante romano a desmontar. Sem dizerem palavra, tiraram-lhe a armadura e a roupa interior de couro. Compreendendo o que lhe ia acontecer, Cepião desatou a chorar desoladamente.
- Gostaria de te ouvir suplicar que te poupassem a vida, Quinto Servílio Cepião - disse Silão, cada vez mais perto dele.
Mas Cepião era incapaz de o fazer. Em Arausio fugira, e desde então nunca mais se vira numa situação verdadeiramente perigosa, nem mesmo quando os marsos tinham lançado um breve ataque ao seu acampamento. Percebia agora por que motivo os marsos tinham lançado esse ataque; tinham perdido uma mão cheia de homens, mas tais perdas, do ponto de vista deles, tinham valido a pena. Silão ficara a conhecer a região, e, de acordo com esse conhecimento, estabelecera os seus planos. Se Cepião tivesse imaginado que poderia vir a passar por tais provações, talvez tivesse concluído que o melhor seria implorar que lhe poupassem a vida. Mas agora que Silão lhe dizia aquilo, sentia-se incapaz de suplicar que o poupassem. Um Quinto Servílio Cepião podia não ser o mais corajoso dos Romanos, mas nem por isso deixava de ser um Romano, e um Romano de elevado estatuto - um patrício, um nobre. Um Quinto Servílio Cepião podia chorar, e quem sabia se chorava pelo fim da sua vida, se por todo aquele ouro que acabava de perder? Mas um Quinto Servílio Cepião não podia suplicar.
Cepião ergueu o queixo, limpou a água que lhe velava os olhos, e olhou para o vazio.
- Isto é por Druso - disse Silão. - Foste tu quem o mandou matar.
- Não fui eu - respondeu Cepião, que parecia estar longe, muito longe dali. - Tê-lo-ia feito, mas não foi preciso. Quinto Vário organizou tudo. Foi uma boa coisa. Se Druso não tivesse sido morto, tu e todos os porcos dos teus amigos seriam agora cidadãos de Roma. Mas não são, nem serão nunca. Há muitos como eu em Roma.
Silão ergueu a espada até que a mão que a empunhava ficou ligeiramente mais elevada que o ombro.
- É por Druso - disse.
A espada caiu então fragorosa na região entre o pescoço e o ombro; um bocado enorme de osso saltou e bateu no rosto de Frauco, fazendo-lhe um corte. Um corte muito pouco profundo, se comparado com o que a espada de Silão produzira, pois este chegara ao topo do esterno, dilacerando veias, artérias e nervos. O sangue espalhava-se já por todo o lado. Mas Silão não tinha acabado ainda, e Cepião continuava de pé. Silão mexeu-se um pouco, ergueu uma segunda vez o braço, e repetiu o golpe, atingindo, desta feita, o outro lado do pescoço de Cepião. Cepião caiu então e Silão desferiu o terceiro golpe, com que lhe cortou a cabeça. Escalo pegou na cabeça e, com requintes de crueldade, enfiou-a pela garganta na ponta de uma lança. Silão montou, então, de novo, o seu cavalo e Escalo deu-lhe a lança com a cabeça. O exército dos Marsos encaminhou-se, depois, na direcção da Via Valéria, com a cabeça de Cepião à sua frente, como se servisse de bandeira.
Os marsos deixaram o resto do corpo de Cepião no meio dos cadáveres dos seus soldados; estavam em território romano e, por isso, competia aos romanos limparem o terreno. Para os marsos, naquele momento, o que interessava era fugir, antes que Caio Mário descobrisse o sucedido. Claro que a história que Silão contara a Cepião acerca de uma força de dez legiões que estaria a atacar Mário não passava de uma invenção: Silão quisera apenas ver como Cepião reagia. No entanto, Silão não deixou de ir buscar os escravos e os filhos destes, vestidos como se fossem filhos de reis. E o burro. Mas não o ”ouro”. Quando os romanos descobriram os lingotes na tenda de Cepião, pensaram que se tratava de uma pequena parte do ouro de Tolosa, e interrogaram-se sobre onde estaria o resto. Até que Mamerco apareceu, e pediu a alguém que confirmasse a sua história, ou seja, que fizesse um arranhão na superfície do ”ouro”: todos viram então que, por debaixo de uma finíssima camada de ouro, só havia chumbo.
De facto, Silão sentiu necessidade de informar alguém do que realmente se passara. Não por sua causa, mas unicamente por causa de Druso, pela estima que lhe tinha guardado. Por isso, decidiu escrever uma carta a Mamerco, irmão de Druso.
Quinto Servílio Cepião está morto. Ontem, conduzi-o a ele e ao seu exército a uma emboscada na estrada entre Carséolos e Subláceo, depois de lhe ter contado uma história falsa que o convenceu a deixar rapidamente Vária - contei-lhe que tinha traído o meu povo e que roubara o tesouro da nação marsa. Tinha comigo um burro, carregado com lingotes de chumbo com uma fina camada de ouro. Tu conheces bem as fraquezas dos Servílios Cepiões! Esquecem tudo o mais, se lhes mostrarmos ouro.
Todos os soldados romanos das legiões de Cepião estão mortos. Quanto a Cepião, não permiti que o matassem na batalha: matei-o com as minhas próprias mãos. Cortei-lhe a cabeça e levei-a na ponta de uma lança, à frente do meu exército. Fiz tudo isto por Druso. Por Druso, Mamerco Emílio. E pelos filhos de Cepião, que agora vão herdar o ouro de Tolosa, cabendo a maior parte da herança àquele menino ruivo, aquele bastardo ruivo que ficou no ninho de Cepião. Sempre se faz justiça. Se Cepião tivesse vivido até à idade adulta dos filhos, acabaria por encontrar uma maneira de os deserdar. Assim, as crianças vão herdar toda a sua riqueza. Fiquei satisfeito por ter feito o que fiz. Porque fi-lo por Druso, e Druso teria ficado muito satisfeito. Fiz tudo isto por Druso. Que a sua memória perdure na mente de todos os homens bons, romanos ou italianos.
Porque àquela pobre família nenhuma dor era poupada, a carta de Silão chegou poucas horas depois de Cornélia Cipião ter morrido, vítima de um colapso. Com as mortes de Cornélia Cipião e de Quinto Servílio Cepião, rompiam-se os últimos fios de uma possível estabilidade para as seis crianças que viviam em casa de Druso. Eram agora órfãos absolutamente desamparados, sem pais nem avós que lhes valessem. Mamerco, o tio, era o seu único parente vivo.
Tal facto implicaria em princípio que Mamerco as levasse para sua casa e completasse a educação de todas elas; além disso, aquelas crianças seriam uma agradável companhia para a única filha de Mamerco, Emília Lépida, ainda muito pequena. Após a morte de Druso, Mamerco afeiçoara-se a todas as crianças que viviam em casa do irmão, incluindo o medonho Catão, cujo carácter inflexível Mamerco não podia deixar de deplorar, e cujo amor pelo irmão, o jovem Cepião, enternecia Mamerco a ponto de o fazer chorar. Por isso nunca pusera a hipótese de negar a sua casa àquelas crianças até ao momento em que, depois de ter tratado das exéquias da mãe, falou do caso à sua esposa. Estavam casados há menos de cinco anos e Mamerco tinha por ela uma grande paixão. Já que não precisava de casar por dinheiro, escolhera uma mulher que amava, alimentando a terna ilusão de que também ela casava por amor. Nascida num dos ramos menos importantes da família Cláudia, o empobrecimento e o desespero justificavam que se tivesse positivamente colado a pretendente tão interessante. Mas a verdade é que Cláudia não o amava. E não gostava de crianças. Mesmo a própria filha achava-a maçadora, e deixava-a, por isso, na companhia das criadas, o que fazia com que Emília Lépida fosse já uma criança mimada e estragada, uma criança sem qualquer noção de disciplina.
- Essas crianças não vêm para a minha casa! - atirou-lhe Cláudia Mamerco, ainda antes que ele tivesse acabado de relatar todos os acontecimentos.
- Mas têm de vir! Não têm mais para onde ir senão para aqui! retorquiu Mamerco, reagindo a um novo choque, ele que ainda estava sob o choque da morte da mãe.
- Podem continuar a viver naquela casa fabulosa. Quem nos dera a nós uma casa assim! Além disso, o dinheiro não falta àquelas crianças! Contrata-lhes um exército de zeladores e professores e deixa-as ficar onde estão! - Havia uma ira evidente na expressão de Cláudia. - Tira isso da cabeça, Mamerco! Eles não vêm para aqui.
Pela primeira vez, Mamerco via que o seu ídolo tinha defeitos, e Cláudia não se apercebia disso. Mamerco fitava a esposa espantado, com uma expressão de dureza no rosto.
- Insisto em que eles venham, Cláudia - disse ele.
Cláudia ergueu muito as sobrancelhas e replicou imediatamente:
- Podes insistir até que a água se transforme em vinho, marido! Nada conseguirás. Essas crianças não vêm para a minha casa. Ou, se quiseres, põe as coisas deste modo: se elas vêm, vou-me eu embora.
- Mas tu não sentes um pouco de compaixão, Cláudia? Repara: aquelas crianças estão sozinhas no mundo!
- Compaixão? Compaixão porquê? Elas não vão morrer de fome. E não lhes faltará a instrução. Bom, e de qualquer modo, nenhum deles soube alguma vez o que era ter um pai ou uma mãe - retorquiu Cláudia Mamerco. - As duas Servílias são maldosas e presunçosas, Druso Nero é um idiota, e os outros são descendentes de um escravo. Deixa-os ficar onde estão.
- Mas eles precisam de um lar - disse Mamerco. - Um lar em condições.
- Esse lar já o têm.
O facto de Mamerco ter cedido não era sinal de fraqueza; revelava apenas que Mamerco era um homem prático e que entendia que, naquele caso, não valia a pena contrariar Cláudia. Se levasse as crianças para casa após aquela declaração de guerra, elas sofreriam muito mais do que se ficassem na casa que fora de Druso. Mamerco não podia estar em casa todo o dia, e, pela reacção de Cláudia, podia concluir que ela se vingaria nas crianças, caso tivesse de suportar a sua presença.
Mamerco resolveu então visitar Marco Emílio Escauro Princeps Senatus que, confessamente, não era um Emílio Lépido, mas era o mais velho Emílio de toda a gens. Escauro era também co-testamenteiro de Druso, e único testamenteiro de Cepião. Era, por isso, seu dever, fazer o que podia para apoiar as crianças. Mamerco sentia-se destroçado. A morte da mãe fora, para ele, um choque terrível, pois sempre vivera com a mãe até ao momento em que ela fora para casa de Druso recordava-se ele, agora, que a mãe fora para casa de Druso imediatamente após o seu casamento com Cláudia. Cornélia Cipião nunca censurara Cláudia em frente do filho. No entanto, pensava ele agora, a mãe deveria ter ficado extremamente contente por ter tido uma desculpa perfeita para mudar de casa.
Quando chegou a casa de Marco Emílio Escauro, Mamerco já não amava a esposa, e não corria o risco de substituir essa emoção por um tipo de amor mais tranquilo. Sempre tinha pensado que seria impossível deixar de amar alguém tão rapidamente, tão completamente; no entanto, ele era a prova viva de que tal era possível. Era um homem devastado pela morte da mãe e que, subitamente, deixara de amar a mulher da sua vida, aquele que batia à porta de Escauro.
Talvez por isso mesmo Mamerco não teve a mínima dificuldade em explicar a sua situação a Escauro da forma mais sombria possível.
Escauro Princeps Senatus recostou-se na sua cadeira, os seus luminosos olhos verdes fixos naquele rosto liviano, naquele rosto em que se salientavam o nariz adunco, os olhos negros, os ossos proeminentes. Mamerco era o último membro de duas famílias. Tinha, por isso, de ser apoiado e animado de todas as formas possíveis.
- Está claro que deves ter em conta os desejos da tua mulher, Mamerco. O que significa que terás de deixar as crianças na casa de Marco Lívio Druso. E isso implica que encontres uma pessoa de condição nobre para viver com elas.
- Quem?
- Deixa o caso comigo, Mamerco - retorquiu Escauro, determinado. ~ Eu vou tentar encontrar alguém.
Escauro tentou, de facto, dois dias depois. Satisfeito com a sua descoberta, foi ter com Mamerco.
- Lembras-te daquele Quinto Servílio Cepião que foi cônsul dois anos antes de o nosso ilustre parente Emílio Paulo ter lutado contra Perses da Macedónia, em Pidna? - perguntou Escauro.
Mamerco fitou-o com um sorriso franco.
- Não o conheço pessoalmente, Marco Emílio! Mas sei a quem te referes.
- Óptimo - retorquiu Escauro, sorrindo também. - Esse Quinto Servílio Cepião teve três filhos. O mais velho foi adoptado pelos Fábios Máximos, com nefastos resultados: Eburno e o seu desgraçado filho. - Escauro adorava tais questões; era um dos maiores especialistas de Roma em genealogia, capaz de descrever as ramificações genealógicas de qualquer nobre romano. - O filho mais novo, Quinto, foi pai do cônsul Cepião que roubou o ouro de Tolosa e perdeu a batalha de Arausio. Quinto teve também uma filha, Servília, que casou com o nosso estimado ex-cônsul Quinto Lutácio Catulo César. Quanto aos filhos de Cepião, o cônsul, temos o Cepião que foi morto por Silão, e a rapariga que casou com o teu irmão, Druso.
- Estás a esquecer-te do filho do meio - observou Mamerco.
- De propósito, Mamerco, de propósito! Porque é ele que me interessa. Chamava-se Cneu. No entanto, casou-se muito mais tarde que o seu irmão mais novo, Quinto, de modo que o seu filho, naturalmente um Cneu, chegou a questor quando o seu primo directo já deixara de ser cônsul: precisamente por altura da batalha de Arausio. O jovem Cneu era questor na Província da Ásia. Tinha-se casado, havia pouco tempo, com uma Pórcia Liciniana, uma jovem com um fraco dote, mas Cneu não precisava de uma mulher rica. Tal como todos os Servílios Cepiões, também Cneu era muito rico. Quando partiu para a Província da Ásia, o nosso questor Cneu tinha já uma criança, uma rapariga, a que chamarei Servília Cneia, para a distinguir de todas as outras Servílias. Infelizmente, a mulher de Cneu dera-lhe uma filha.
Escauro fez uma pausa para respirar. Estava positivamente radiante.
- Meu caro Mamerco, não são fascinantes todas estas tortuosas relações que ligam as nossas famílias?
- Eu diria que são assustadoras... - retorquiu Mamerco.
- Mas voltando à menina de dois anos, Servília Cneia - disse Escauro, afundando-se satisfeito na sua cadeira. - Eu usei a palavra ”infelizmente” e tinha as minhas razões. Prudentemente, Cneu Cepião tinha feito o seu testamento antes de partir para a Província da Ásia, mas imagino que nunca lhe passou pela cabeça que esse testamento viria a ser executado, como veio. Ora, de acordo com a lex Voconia de mulierum hereditatibus, Servília Cneia - uma mulher! - não podia herdar. De modo que a magnífica fortuna de Cneu foi toda para o seu primo directo Cepião, aquele que perdeu a batalha de Arausio e que roubou o ouro de Tolosa.
- Pareces não ter qualquer dúvida em relação ao que aconteceu com o ouro de Tolosa, Marco Emílio - assinalou Mamerco. - Toda a gente diz que foi Cepião quem o roubou, mas nunca ouvi ninguém com a tua auctoritas afirmar tal coisa, de forma tão inequívoca.
Escauro agitou uma mão impaciente.
- Ora, Mamerco, todos nós sabemos que foi ele quem o roubou! Como não és homem dado a intrigas, disso estou certo, acho que posso falar contigo com toda a franqueza.
- E podes, de facto.
- Está claro que se esperava que Cepião de Arausio e do ouro de Tolosa entregaria a fortuna a Servília Cneia, caso fosse ele a herdá-la. Naturalmente, Cneu Cepião deixara à jovem tudo o que a lei lhe permitia, uma coisa de nada, se comparada com toda a sua fortuna. E lá foi ele para a Província da Ásia, desempenhar as funções de questor. No regresso, o navio afundou-se e ele morreu afogado. Cepião de Arausio e do ouro de Tolosa herdou toda a fortuna do primo. Mas não a entregou a Servília Cneia. Pelo contrário, aumentou ainda mais a sua já colossal fortuna. E o tempo passou, e a herança de Servília Cneia acabou por ir parar às mãos de Cepião recentemente morto pelo marso Silão.
- Uma história nojenta - comentou Mamerco, com uma expressão severa.
- Inteiramente de acordo, Mamerco. Mas é a vida - disse Escauro.
- E que aconteceu a Servília Cneia? E à mãe dela?
- Sobreviveram, claro. Vivem muito modestamente na casa de Cneu Cepião. Cepião, o cônsul, e depois o seu filho, permitiram às duas mulheres ficar com aquela casa. Não legalmente, mas, enfim, elas precisam de morar nalgum sítio, não? Quando o testamento do falecido Quinto Cepião for autenticado - tarefa a que me dedico neste momento -, a casa figurará nele, naturalmente. Como sabes, tudo o que Cepião tinha, à excepção dos generosos dotes para as duas raparigas, vai para o miúdo ruivo, para o Cepião ruivo! Ah! Ah! Ah! Para minha grande surpresa, eu fui nomeado único testamenteiro de Cepião! Sempre pensei que seria nomeado um co-testamenteiro, sei lá, alguém como Filipe, mas enganei-me redondamente. Nunca conheci um Cepião que não defendesse com unhas e dentes a sua fortuna. O Cepião recentemente falecido deve ter pensado que, se nomeasse Filipe ou Vário como seus testamenteiros, uma boa parte da sua fortuna iria parar a mãos alheias. Uma decisão inteligente! Filipe ter-se-ia comportado como um porco atrás da bolota.
- Tudo isso é sem dúvida fascinante, Marco Emílio - disse Mamerco, sentindo pela primeira vez algum interesse pela genealogia. - Mas a verdade é que ainda não me sinto esclarecido.
- Paciência, Mamerco, paciência! Já não falta tudo! - retorquiu Escauro.
- Imagino, a propósito - disse Mamerco, lembrando-se do que o seu irmão Druso lhe dissera um dia -, que uma das razões por que foste nomeado testamenteiro tem a ver com o meu irmão, Druso. Ao que parece, Druso tinha informações sobre Cepião que revelaria caso este último não contemplasse convenientemente os filhos no seu testamento. É possível que Druso tenha estipulado que deverias ser tu o executor do testamento. Cepião tinha muito medo das informações que Druso dizia possuir, fossem elas quais fossem.
- O ouro de Tolosa, uma vez mais - disse Escauro complacentemente. - Só pode ser o ouro de Tolosa. As minhas investigações sobre os negócios de Cepião, apesar de não terem mais do que dois ou três dias, já me deixam completamente fascinado. Quanto dinheiro! As duas raparigas ficam com dotes de duzentos talentos cada uma. Mas isso não é nada, se comparado com o que poderia ter herdado, mesmo havendo uma lei como a lex Voconia. O nosso Cepião ruivo é o homem mais rico de Roma!
- Por favor, Marco Emílio! Termina a tua história!
- Ah, sim, claro, claro! Ah, a impaciência da juventude! Segundo as nossas leis, dado que o beneficiário é menor, sou obrigado a tomar em consideração coisas tão insignificantes como a casa onde vivem Servília Cneia, hoje com dezassete anos, e a mãe Pórcia Liciniana. Como é evidente, não faço a mínima ideia do tipo de pessoa que virá a ser o nosso Cepião ruivo quando crescer, e não quero de modo nenhum deixar ao meu filho dores de cabeça testamentárias. Pode acontecer que o jovem Cepião, em chegando a adulto, queira saber por que razão eu permiti que Servília Cneia e a mãe continuassem a viver naquela casa, sem pagar um tostão de renda. Quando Cepião for um homem, o proprietário original da casa não passará de uma figura longínqua, esquecida. É possível que ele nunca venha a saber quem foi esse proprietário. E legalmente a casa é dele, do nosso Cepião ruivo.
- Estou a ver onde queres chegar, Marco Emílio - disse Mamerco.
- Por favor, continua! Estou literalmente fascinado.
Escauro inclinou-se um pouco para a frente e prosseguiu.
- Sugiro-te, Mamerco, que ofereças um emprego a Servília Cneia. Não, à mãe não ofereces emprego nenhum! A pobre rapariga não tem rigorosamente dote nenhum. A magra herança que recebeu foi toda gasta para que ela e a mãe pudessem levar uma vida razoavelmente confortável nestes quinze anos que passaram sobre a morte do pai. Os Pórcios Licinianos, devo acrescentar, não estão em condições de ajudar. Ou não quererão ajudar, o que vem a dar no mesmo. Depois da nossa primeira conversa, resolvi visitar Servília Cneia e Pórcia Liciniana, na minha qualidade de executor do testamento de Cepião. E depois de lhes ter explicado a difícil situação em que me encontro, mostraram-se bastante perturbadas quanto ao que o futuro poderá reservar-lhes. Expliquei-lhes, em particular, que talvez tivesse de vender a casa para que a falta do dinheiro do aluguer nos últimos quinze anos não fosse notada nas contas.
- Ora aí está um estratagema tão inteligente quanto tortuoso. Não há dúvida: podes candidatar-te ao lugar de tesoureiro-mor do rei Ptolemeu do Egipto - comentou Mamerco, rindo a bom rir.
- Lá nisso tens razão, Mamerco! - retorquiu Escauro, respirando fundo. - Servília Cneia, como disse, está com dezassete anos. O que significa que, dentro de um ano, terá a idade com que normalmente as raparigas se casam. Infelizmente, porém, Servília Cneia não é nenhuma beldade. Na realidade, é mesmo muito feia, coitada. Sem dote, e ela não tem dote nenhum, nunca conseguirá um marido da sua classe. A mãe é um Catão Liciniano chapado: o que ela quer é que a filha case com um homem rico; pouco lhe importa que esse homem rico seja um cavaleiro grosseirão ou um rústico proprietário rural. Mas as coisas são como são: quando não há dote, quem manda é a necessidade!
Mas que homem mais tortuoso!, pensou Mamerco, preso às palavras de Escauro.
- Por tudo o que disse, Mamerco, sugiro-te que faças o seguinte. Como já receberam uma visita que as deixou inquietas, mãe e filha ouvir-te-ão por certo com toda a atenção. Sugiro-te que proponhas a Servília Cneia - à mãe, não, a mãe limitar-se-á a acompanhá-la! - que aceite a tarefa de cuidar das seis crianças que vivem na casa de Marco Lívio Druso. Receberá em troca dinheiro mais do que suficiente para o seu sustento e para as despesas correntes. Ato condição de que Servília Cneia permaneça solteira até que a mais nova das crianças atinja a idade adulta. Ora a criança mais pequena é Catão, que tem agora três anos. Dezasseis menos três dá treze. Portanto, Servília Cneia terá de permanecer solteira durante os próximos treze ou quatorze anos. Ou seja, terá cerca de trinta anos quando o contrato cessar. Com trinta anos ainda poderá casar! Em particular, se lhe ofereceres um dote tão bom como o das primas, as filhas de Lívia Drusa, quando ela terminar o seu trabalho. A fortuna dos Cepiões aguenta perfeitamente que lhe dês duzentos talentos, Mamerco. E para que tudo fique claro, acontece que eu já não sou propriamente um jovem e estas coisas têm de ser antecipadamente resolvidas, retirarei desde já esses duzentos talentos e investi-los-ei em nome de Servília Cneia. Até que ela faça trinta e um anos e desde que cumpra satisfatoriamente o contrato.
Um sorriso perverso dominava a expressão de Escauro.
- Ela não é nada bonita, Mamerco! Mas garanto-te que, quando chegar aos trinta e um, não terá grande dificuldade em escolher entre uma boa dúzia de candidatos interessantes da sua classe. Duzentos talentos são uma soma irresistível! - Brincou com a sua pena por um momento, após o que, com expressão grave, olhou Mamerco bem nos olhos. - Eu já não sou nenhum jovem. E sou o único Escauro que resta no seio dos Emílios. Tenho uma esposa jovem, uma filha que acabou de fazer onze anos, e um filho com cinco. E sou neste momento o único executor testamentário da maior fortuna privada de Roma. Se me acontecer alguma coisa antes de o meu filho chegar à idade adulta, a quem hei-de confiar as fortunas dos meus entes queridos, e as fortunas das três crianças da família Servília? Tu e eu somos os executores testamentários de Druso, o que significa que partilhamos a assistência devida às três crianças da família Pórcia. Por isso te pergunto: aceitarias ser o curador e executor testamentário da minha pessoa e dos meus, após a minha morte? Tu és por nascimento um Lívio, mas por adopção és um Emílio. Ficaria mais tranquilo, Mamerco, se me respondesses que sim. Só me sentirei bem se souber que tenho um homem honesto a meu lado.
Mamerco não hesitou.
- A minha resposta é sim, Marco Emílio.
E assim terminou aquela conversa. De casa de Escauro, Mamerco seguiu imediatamente para a casa onde viviam Servília Cneia e a mãe. O local era óptimo, na zona do Palatino junto ao Circus Maximus, mas Mamerco depressa concluiu que Cepião não devia ter gasto grande coisa na manutenção da casa. A pintura das paredes estucadas está já às escamas e o tecto do átrio tinha uma quantidade de manchas enormes de humidade; a um canto, a humidade era tanta que o estuque acabara por cair, deixando à vista as ripas de madeira. Os murais, outrora muito belos, haviam sido vítimas do tempo e da negligência: as cores tinham-se esbatido, as formas eram agora uma massa obscura. No entanto, pelo aspecto do jardim do peristilo, Mamerco podia concluir que as duas mulheres não eram de modo nenhum preguiçosas: de facto, não se via naquele jardim uma única erva daninha, e as flores abundavam, em quantidade e beleza.
Mamerco dissera que desejava ver mãe e filha, e ambas apareceram; lia-se na expressão de Pórcia que sentia uma tremenda curiosidade. Claro que Pórcia sabia que Mamerco era um homem casado; qualquer mãe romana com filha casadoura investigava cuidadosamente a situação dos jovens da sua classe.
Ambas as mulheres eram morenas, mas Servília Cneia era um pouco mais escura do que a mãe. E mais feia, apesar de a mãe ter um nariz claramente catoniano, extremamente aquilino, ao passo que o nariz da filha era pequeno. Servília Cneia sofria horrivelmente de acne; os seus olhos eram muito juntos e estavam algo remelosos; quanto à boca, era demasiado grande, embora os lábios fossem muito finos. A mãe tinha um ar muito orgulhoso, altivo. Quanto à filha, uma palavra resumia a sua expressão: tristeza; tinha um carácter de que estava ausente qualquer traço de graça, um carácter capaz de assustar homens muito mais corajosos do que Mamerco, e a Mamerco coragem era coisa que não faltava.
- Nós ainda somos parentes, Mamerco Emílio - disse a mãe, muito afável. - A minha avó era Emília Tércia, filha de Paulo.
- Sim, claro - retorquiu Mamerco, e sentou-se no divã que lhe indicaram.
- Também temos relações de parentesco por parte dos Lívios acrescentou Pórcia Liciniana enquanto se sentava no divã em frente do dele, com a filha ao lado, silenciosa.
- Eu sei - disse Mamerco, que não sabia como começar a explicar-lhes a razão da sua visita.
- Que deseja então? - perguntou Pórcia, resolvendo o dilema de Mamerco sem rodeios de espécie alguma.
Mamerco também não usou de rodeios para explicar os motivos da sua visita; apesar de a sua mãe ter sido uma Cornélia Cepião, Mamerco não era homem de palavra fácil. Pórcia e Servília Cneia escutaram-no com toda a atenção, sem revelarem, contudo, o que pensavam.
- Pede-nos, portanto, que vamos viver para casa de Marco Lívio Druso durante os próximos treze ou catorze anos. É isso, não é? perguntou Pórcia quando ele acabou.
- Sim, é isso.
- Após esse período, minha filha, dispondo de um dote de duzentos talentos, poderá casar-se. Certo?
- Certíssimo.
- E eu? Que proposta tem para mim?
Mamerco pestanejou, surpreendido. As mães normalmente ficavam a viver na casa do paterfamilias - só que a casa do paterfamilias era aquela casa, e Escauro tencionava vendê-la. E um homem precisaria de ter muita coragem para dizer àquela sogra para ir viver com ele!, pensou Mamerco, sorrindo para si mesmo.
- Aceitaria ir viver para uma villa alugada junto ao mar, em Miseno ou Cumas, recebendo ao mesmo tempo um subsídio adequado às necessidades de uma senhora de idade? - perguntou Mamerco.
- De acordo - retorquiu imediatamente Pórcia.
- Nesse caso, e se o nosso acordo é total, posso concluir que ambas aceitam a tarefa de cuidar das crianças?
- Claro que pode - respondeu Pórcia. - Mas diga-me: as crianças têm um pedagogo?
- Não. O rapaz mais velho tem apenas dez anos e frequenta a escola. O jovem Cepião não tem ainda sete, e Catão só tem três respondeu Mamerco.
- No entanto, Mamerco Emílio, considero da máxima importância que encontre um bom professor para as seis crianças - anunciou Pórcia.
- Repare que não há nenhum homem naquela casa. Embora, fisicamente, uma tal ausência não constitua um perigo, creio que, para bem das crianças, deveria haver naquela casa um homem com autoridade e sem o estatuto de escravo. Um pedagogo seria o ideal.
- Tem toda a razão, Pórcia. Tratarei disso imediatamente - disse Mamerco, despedindo-se.
- Iremos amanhã - disse Pórcia, acompanhando-o à porta.
- Já? Fico muito satisfeito com a vossa solicitude, mas não têm coisas que fazer nesta casa? Arrumações, por exemplo?
- A minha filha e eu nada possuímos, Mamerco Emílio. A não ser algumas roupas. Mesmo os criados que aqui vê pertencem a Quinto Servílio Cepião. - Pórcia abriu a porta. - Muito bom dia. E obrigada, Mamerco Emílio. Salvou-nos da penúria total.
Bom, pensou Mamerco, encaminhando-se, apressado, para o estabelecimento na Basílica Semprónia, onde contava comprar um pedagogo, que felicidade não ser uma daquelas seis pobres crianças! De qualquer modo, será melhor assim do que se fossem viver com Cláudia!
- Temos uns quantos homens de valor, Mamerco Emílio - disse Lúcio Durónio Póstumo, o proprietário de uma das duas melhores agências de pedagogos de Roma.
- Qual é o preço corrente para um pedagogo excepcional? perguntou Mamerco, que nunca tratara de tais assuntos.
Durónio franziu os lábios.
- Entre os cem mil e os trezentos mil sestércios; ou mesmo mais, se o produto for do melhor.
- Chiça! - exclamou Mamerco. - Catão, o Censor, não teria gostado!
- Catão, o Censor, era um sacana de um sovina - retorquiu Durónio.
- Mesmo nos tempos dele, um bom pedagogo custava muito mais do que uns miseráveis seis mil sestércios.
- Mas eu quero comprar um pedagogo para três dos seus directos descendentes!
- É pegar ou largar - disse Durónio, já aborrecido com a conversa. Mamerco conteve um suspiro. Cuidar daquelas seis crianças ia sair caro!
- Está bem, está bem, eu pego. Quando posso ver os candidatos?
- Logo que reúna todos os escravos disponíveis para venda em Roma, mandá-los-ei à tua casa. Qual é o teu limite, quanto a dinheiro?
- Não sei! O que são mais umas centenas de milhar de sestércios?
- exclamou Mamerco, erguendo os braços no ar. - Faz o teu pior, Durónio! Mas se me mandas um burro ou um maluco, podes ter a certeza de que te mando castrar a ti! E com que prazer!
Mamerco não disse a Durónio que tencionava libertar o pedagogo; isso levaria forçosamente a um aumento do preço. Não, quem quer que ele fosse, seria libertado privadamente e integrado na clientela de Mamerco. O que significava que o pedagogo não podia libertar-se do seu trabalho com a facilidade que teria se continuasse escravo. Um liberto cliente pertencia ao seu antigo proprietário.
Afinal, havia só um candidato - e naturalmente o mais caro. Durónio sabia do negócio. Como havia duas mulhers adultas em casa, sem um paterfamilias, o pedagogo tinha de ser um homem de grande integridade moral, mas também uma criatura afável e compreensiva. O candidato escolhido chamava-se Sarpédon, e provinha da Lícia, na região sul da Província da Ásia romana. Tal como a maior parte dos pedagogos, tornara-se voluntariamente escravo, pois assim tinha mais hipóteses de uma velhice confortável, se até lá estivesse ao serviço de uma alta personalidade romana. Ou conquistaria a liberdade, ou tratariam dele convenientemente. Apresentara-se, por isso, nos escritórios de Esmirna de Lúcio Durónio Póstumo, e fora aceite. Aquele seria o seu primeiro cargo - ou seja, seria vendido pela primeira vez. Tinha vinte e cinco anos, e era um indivíduo muito lido, tanto no que respeita aos autores gregos como no que toca aos autores latinos; o seu grego falado era ático do mais puro; quanto ao latim, era tão bom, que facilmente passaria por um romano. Mas nenhuma dessas qualidades explicava que tivesse ficado com o trabalho. Sarpédon fora escolhido por ser extremamente feio - tão pequeno, que mal chegava ao peito de Mamerco, quase esquelético, e cheio de cicatrizes de queimaduras sofridas em criança. A sua voz, contudo, era muito bela, e, no rosto estropiado, brilhavam uns olhos muito bonitos e meigos. Quando soube que seria liberto imediatamente e que por isso o seu nome passaria a ser Mamerco Emílio Sarpédon, considerou-se o mais afortunado dos homens; o seu salário subiria muito, além do que passaria a ser cidadão romano. Um dia poderia retirar-se para a sua cidade natal de Xanto e viver como um senhor.
- É um exercício dispendioso, não há dúvida - disse Mamerco a Escauro, deixando cair um rolo na secretária de Escauro. - E aviso-te de que, como executor do testamento de Servílio Cepião, não vais gastar menos do que nós dois como executores do testamento de Druso. Aqui está a conta, para já. Sugiro que a dividamos em partes iguais: metade será pago pela herança de Cepião, a outra metade pela de Druso.
Escauro pegou no rolo, desdobrou-o.
- Pedagogo... Quatrocentos mil!
- Vai falar com Durónio! - atirou-lhe Mamerco. - Eu fiz o trabalho, tu deste as ordens! Naquela casa, há duas nobres romanas cuja virtude tem de ser acautelada, por isso não podia ficar com um pedagogo bonito. Este que foi contratado é de uma fealdade absolutamente repulsiva.
Escauro riu-se.
- Está bem, está bem, se tu o dizes! Por todos os deuses, que preços estes! Está tudo pela hora da morte! - continuou a ler a lista.
- Dote para Servília Cneia, duzentos talentos. Bom, quanto a esta parcela não posso protestar, pois não? Fui eu que sugeri os duzentos talentos... Despesas da casa per annum, incluindo reparações e manutenção, cem mil sestércios... Bom, por acaso até é uma quantia modesta... Villa em Miseno ou Cumas? Mas para que raio precisamos de uma villa?
- Pórcia é que precisa, quando Servília Cneia ficar livre para casar.
- Oh, merda! Não tinha pensado nisso! Claro que fizeste bem. O homem que case com o estafermo da filha não quererá em casa tal sogra... Sim, sim, estou de acordo! Vamos dividir a conta ao meio.
Sorriram um para o outro. Escauro levantou-se.
- Uma taça de vinho, Mamerco, parece-me ideal para este momento! Que pena a tua mulher não cooperar! Ter-nos-ia poupado muitas despesas, enquanto executores dos dois testamentos.
- Como o dinheiro não sai dos nossos bolsos e as fortunas de Cepião e Druso aguentam perfeitamente com estas despesas, porque havemos de nos preocupar, Marco Emílio? A paz doméstica não tem preço. - Bebeu o vinho, e acrescentou: - De qualquer modo, estou de partida. Chegou a altura de cumprir os meus deveres militares.
- Compreendo - disse Escauro, sentando-se de novo.
- Enquanto minha mãe foi viva, considerei que o meu principal dever era permanecer em Roma e ajudá-la a tratar das crianças. Mas ela não estava bem desde a morte de Druso. A morte do meu irmão despedaçou-lhe o coração. Mas agora as crianças estão bem entregues, já não há qualquer razão para que continue em Roma. Por isso, parto.
- Quem vai ser o teu chefe?
- Lúcio Cornélio Sila.
- Uma boa escolha - disse Escauro. - Sila vai dar muito que falar. Esperam-no grandes êxitos.
- Achas que sim? Não é já um pouco velho?
- Caio Mário também era. E repara, Mamerco: quem temos nós em Roma? Neste momento, são poucos os grandes homens. Se não fosse Caio Mário, não teríamos uma única vitória até agora. Uma vitória de Pirro, como ele diz no seu relatório, e com toda a razão. Ele venceu. Mas a derrota de Lupo, no dia anterior, foi muito mais terrível.
- É verdade. Mas em relação a Lúcio Júlio, sinto-me desapontado. Julgava-o capaz de grandes feitos.
- Lúcio Júlio é um indivíduo muito complicado, demasiado hesitante.
- Ouvi dizer que o Senado já chama a esta guerra a guerra dos Marsos.
- Sim, parece que esta guerra ficará conhecida na História sob esse nome - disse Escauro num jeito malicioso. - É que, no fim de contas, não lhe podemos chamar guerra italianal Isso deixaria toda a gente em pânico, só de pensar que estávamos em guerra contra toda a Itália! E, além disso, é verdade que os Marsos nos entregaram uma declaração formal de guerra. Se nós lhe chamarmos guerra dos Marsos, parecerá uma guerra mais pequena, menos importante.
Mamerco fitou-o, atónito.
- E quem é que teve a ideia de lhe chamar guerra dos Marsos?
- Filipe, é claro.
- Ah, ainda bem que me vou embora! - disse Mamerco, levantando-se. - Se ficasse, talvez ainda fosse parar ao Senado!
- Mas já deves ter idade para disputar o cargo de questor.
- Tenho, Marco Emílio. Mas não vou disputar o cargo de questor. Esperarei pelo cargo de censor - retorquiu Mamerco Emílio Lépido Liviano.
Enquanto Lúcio César lambia as suas feridas em Teano dos Sidicinos, Caio Pápio Mutilo atravessava os rios Volturno e Calor. Quando chegou a Nola, foi saudado por uma multidão histérica de alegria. A cidade conseguira derrotar uma guarnição de dois mil soldados depois de Lúcio César ter partido, e, com todo o orgulho, mostrou a Mutilo uma prisão improvisada onde metera as coortes romanas. Era um pequeno cercado dentro das muralhas, onde os habitantes costumavam guardar as ovelhas e os porcos, antes do abate; mas a cerca agora era outra: um muro muito alto, de pedra, encimado por bocados de louça, e constantemente patrulhado. Os Nolanos tinham descoberto um processo eficaz para manter os romanos dóceis e em tudo obedientes: davam-lhes de comer uma vez por semana, e de beber de três em três dias.
- Muito bem feito! - disse Mutilo, obviamente satisfeito. - Eu próprio vou falar aos prisioneiros.
Para falar aos soldados romanos, Mutilo subiu à plataforma de madeira onde os Nolanos atiravam pão e água aos prisioneiros.
- O meu nome - gritou - é Caio Pápio Mutilo! Sou um samnita. E no final deste ano, estarei a governar toda a Itália, incluindo Roma! Vocês não têm qualquer hipótese de vencer esta guerra. São fracos! Estão gastos e cansados! Pois se os próprios habitantes da cidade vos venceram! E agora aqui estão vocês neste pardieiro, neste curral onde eram guardados os porcos e as ovelhas, embora vocês estejam muito mais apertados que esses animais! Dois mil homens num curral onde costumavam estar duzentos porcos! É desconfortável, não é? Vocês estão doentes. Vocês têm fome. Vocês têm sede. E aqui estou eu para vos dizer que as coisas vão piorar. A partir de agora, não receberão comida nenhuma, e só beberão água de cinco em cinco dias. Mas têm uma alternativa: juntem-se às legiões de Itália! Pensem bem no assunto.
- Ninguém vai pensar no assunto! - gritou Lúcio Postúmio, o comandante das tropas. - Aqui estamos e aqui ficaremos!
Pápio desceu da plataforma, sorridente.
- Dou-lhes dezasseis dias - disse. - Acabam por render-se.
As coisas corriam de feição para a Itália. Caio Vidacílio invadira a Apúlia sem derramamento de sangue: Larino, Lucéria, Ásculo e Teano da Apúlia, tinham aderido à causa italiana. Os seus homens corriam a alistar-se nas legiões italianas. E quando Mutilo chegou ao golfo de Cráter, as cidades portuárias de Salerno, Surrento e Estábias declararam-se todas a favor da Itália. O mesmo sucedeu com outra cidade portuária, embora fluvial: Pompeios.
Vendo-se na posse de quatro frotas de navios de guerra, Mutilo decidiu prosseguir a campanha no mar e lançou um ataque a Nápoles.
Mas Roma, no mar, tinha muito mais experiência que os italianos. O almirante romano, Otacílio, obrigou todos os navios italianos a regressar aos portos de origem.
Em todas as cidades onde a população italiana aderira à revolta, os cidadãos romanos tinham sido mortos. Entre essas cidades, contava-se Nola; a corajosa anfitriã de Sérvio Sulpício Galba morrera como todos os outros romanos. Embora tivessem sido informados desta matança, os esfomeados prisioneiros de Nola resistiram. Até que Lúcio Postúmio convocou uma assembleia, e uma assembleia, naquelas condições, era fácil de convocar e de reunir; de facto, dois mil homens metidos num curral que dava para duzentos porcos, eram praticamente obrigados a estar sempre de pé.
- Creio que todos os soldados devem render-se - disse Postúmio, olhando com os seus olhos cansados para aqueles rostos esgotados. Os Italianos vão matar-nos, disso podemos estar certos. E eu devo desafiá-los até à morte. Porque sou o comandante. É o meu dever. Ao passo que vocês, que são soldados, têm em relação a Roma um outro tipo de dever. Têm de permanecer vivos para lutar noutras guerras, em guerras contra o estrangeiro. Por isso, peço-vos: juntem-se aos Italianos! Se puderem desertar depois, façam-no. Mas, custe o que custar, têm de permanecer vivos. Têm de permanecer vivos por Roma. Unicamente por Roma. - Fez uma pausa para descansar. - Os centuriões devem também render-se. Sem os seus centuriões, Roma está perdida. Quanto aos meus oficiais, se desejam capitular, eu compreendê-los-ei. Se desejam morrer, contarão também com a minha compreensão.
Lúcio Postúmio precisou de muito tempo para convencer os soldados a fazer o que lhes pedira. Todos queriam morrer, nem que fosse para mostrar que os verdadeiros Romanos não se acobardavam perante os Italianos. Mas Postúmio acabou por vencer, e os legionários renderam-se. Contudo, por muito que tentasse, Postúmio não conseguiu persuadir os centuriões. Nem os seus quatro tribunos militares. Todos morreram - centuriões, tribunos militares, e Lúcio Postúmio.
Antes de morrer o último prisioneiro do curral de Nola, já Herculano tinha aderido à causa italiana, matando todos os seus cidadãos romanos. Inteiramente seguro de si, invadido por um júbilo imenso, Mutilo decidiu-se a reatar a guerra por mar. Atacou de novo Nápoles, e também Putéolos, Cumas e Tarracina; estas acções envolveram a costa do Lácio no conflito e exacerbaram ressentimentos já existentes entre Romanos, Latinos e Italianos do Lácio. O almirante Otacílio ripostou com firmeza, e com êxito suficiente para impedir os Italianos de ocuparem qualquer porto, para lá de Herculano; no entanto, muitos foram os portos destruídos e inúmeros os homens mortos.
Quando se tornou claro que toda a península sul da região norte da Campânia era já território italiano, Lúcio Júlio César chamou o seu primeiro lugar-tenente, Lúcio Cornélio Sila, para discutirem a situação.
- Estamos completamente isolados de Brundísio, Tarento e Régio, disso não há a mínima dúvida - disse Lúcio César com um ar soturno.
- Se assim é então o melhor é esquecermos - retorquiu Sila, num tom animado. - Penso que seria melhor se nos concentrássemos na parte norte da Campânia. Mutilo montou o cerco a Acerras, o que significa que se dirige para Cápua. Se Acerras se rende, Cápua irá atrás. É uma cidade com um estilo de vida perfeitamente romano, mas a verdade é que o seu coração está com a Itália.
Lúcio César pôs-se muito direito na cadeira, com uma expressão ofendida.
- Como podes estar tão... tão alegre, quando verificamos que não conseguimos deter Mutilo ou Vidacílio? - perguntou.
- Porque nós venceremos! - retorquiu, com firmeza, Sila. - Acredita no que te digo, Lúcio Júlio: nós venceremos. Isto não é uma eleição, Lúcio Júlio. Numa eleição, os primeiros votos constituem uma indicação relativamente ao resultado final. Mas na guerra, a vitória acaba por ir para o lado que não cede. Os Italianos lutam pela sua liberdade, dizem eles. Bom, numa análise rápida, superficial, esse poderá parecer o melhor dos motivos. Mas não é. E, muito simplesmente, algo de intangível. Um conceito, Lúcio Júlio, nada mais que um conceito, ao passo que Roma luta pela sua sobrevivência. E é por isso que Roma vencerá. Os Italianos não estão a lutar pela sua sobrevivência da mesma forma como nós lutamos pela nossa. Eles conhecem um modo de vida a que estão acostumados há muitas, muitas gerações. Pode não ser o modo de vida ideal, pode não ser o modo de vida por que eles anseiam. Mas é algo de tangível. Espera, Lúcio Júlio! Quando os Italianos se cansarem de lutar por um sonho, as coisas começarão a correr mal para a Itália. Os Italianos não são uma entidade. Não têm uma história e uma tradição como as nossas. Falta-lhes a mós maioruml Roma é real. A Itália não é real.
O cérebro de Lúcio César mostrava-se surdo a tais argumentos, ainda que os seus ouvidos funcionassem perfeitamente.
- Se não conseguirmos afastar os Italianos do Lácio, estamos perdidos. E não creio que consigamos afastá-los do Lácio.
- Afastá-los-emos do Lácio! - insistiu Sila, não deixando nunca de se mostrar confiante.
- Como? - perguntou o mórbido Lúcio César, na sua cadeira de general.
- Em primeiro lugar, Lúcio Júlio, deixa-me dizer-te que tenho boas notícias. O teu primo Sexto Júlio e Caio Júlio, seu irmão, desembarcaram em Putéolos. Os navios dos dois levam dois mil homens da cavalaria númida e vinte mil homens de infantaria. A maior parte dos soldados de infantaria são veteranos. A África deu-nos milhares de velhos soldados de Caio Mário, um pouco grisalhos nas têmporas, mas determinados a lutar pela pátria. A esta hora devem estar todos em Cápua, onde os vão equipar devidamente e submeter à preparação de que estão a precisar, pois não combatem há muito tempo. Quinto Lutácio acha que será melhor formar quatro boas legiões do que cinco legiões fracas, e eu só posso concordar com ele. Com a tua permissão, enviarei duas legiões para o Norte, para Caio Mário, agora que ele é comandante-chefe, e manteremos as outras duas na Campânia. - Sila suspirou, e pôs um sorriso de intenso júbilo.
- Seria melhor manter as quatro legiões aqui na Campânia - disse Lúcio César.
- Não creio que possamos fazer isso - disse Sila, afavelmente, mas com muita firmeza. - As perdas no Norte têm sido mais pesadas do que as nossas, e as duas únicas legiões com experiência de guerra encontram-se paradas em Firmo Picentino com Rompeu Estrabão.
- Creio que tens razão. - Lúcio César ocultava a sua decepção. Por muito que deteste Caio Mário, tenho de admitir que me sinto muito mais tranquilo agora que ele é comandante-chefe. É muito provável que as coisas melhorem no Norte.
- E aqui melhorarão também! - retorquiu, alegremente, Sila, ocultando, não a decepção, mas a exasperação. Por todos os deuses, haveria no mundo algum lugar-tenente com um general mais negativo, mais desmoralizado e desmoralizador do que aquele? Com os braços sobre a secretária de Lúcio César, inclinou-se um pouco mais para a frente, revelando uma expressão subitamente grave. - Temos de afastar Mutilo de Acerras, até que as novas tropas estejam prontas. E eu tenho um plano para o afastar de Acerras.
- Que plano?
- Deixa-me levar as duas nossas melhores legiões. Avançarei com elas sobre Esérnia.
- Tens a certeza de que resultará?
- Confia em mim, Lúcio Júlio! Confia em mim!
- Bom...
- Temos de correr com Mutilo de Acerras! Um ataque simulado contra Esérnia é o melhor processo para conseguirmos tal objectivo. Confia em mim, Lúcio Júlio! Eu fá-lo-ei, e não perderei os meus homens.
- Que trajecto seguirás? - perguntou Lúcio César, lembrando-se do desastre que fora o seu recontro com Escalo, no desfiladeiro de Atina.
- Seguirei o mesmo trajecto que tu. Irei pela Via Latina até Aquino, e depois atravessarei o desfiladeiro de Melfa.
- Montar-te-ão uma emboscada.
- Não te preocupes, estarei preparado para essa eventualidade retorquiu Sila jovialmente, concluindo que quanto mais Lúcio César se afundava na depressão, tanto mais ele rejubilava na fantasia.
No entanto, aos olhos do dirigente samnita Duílio, as duas garbosas legiões que surgiram na estrada de Aquino pareciam muito pouco preparadas para enfrentar uma emboscada. Ao fim da tarde, a cabeça da coluna romana entrava a um passo vivo no desfiladeiro. Duílio podia ouvir claramente os centuriões e os tribunos gritando para os soldados que se despachassem, pois acampariam ali antes que anoitecesse, e ameaçando-os mesmo com castigos, caso não fizessem como lhes mandavam.
Duílio seguia a cena do alto das fragas, de cenho franzido, mordendo mentalmente as unhas. Este atrevimento romano seria o cúmulo da idiotia, ou um truque brilhante? Logo que as fileiras romanas se tornaram inteiramente visíveis, Duílio ficou a saber quem as comandava - e comandava-as a pé: Lúcio Cornélio Sila. Só podia ser ele, com o seu enorme chapéu pendendo sobre a cabeça. E Sila não tinha nada fama de idiota, embora as suas actividades no campo de batalha tivessem sido, até então, mínimas. Atentando nas figuras que apressadamente se moviam no desfiladeiro, podia concluir-se que Sila projectava instalar um acampamento poderosamente fortificado, o que sugeria que o seu plano consistia em fixar-se no desfiladeiro e expulsar as tropas samnitas.
- Não vai conseguir nada - disse Duílio por fim, de cenho ainda franzido. - Mesmo assim, faremos o que nos for possível durante esta noite. É demasiado tarde para o atacarmos, mas posso fazer com que amanhã lhe seja impossível retirar-se, quando eu lançar o ataque. Tribuno, põe uma legião na estrada, na retaguarda dele, mas fá-lo sem alarido. Entendido?
Sila vigiava com o seu lugar-tenente a intensa actividade dos legionários.
- Espero que resulte - comentou o lugar-tenente, nada mais nada menos do que Quinto Cecílio Metelo Pio, o Bacorinho.
Após a morte do pai, Numídico Suíno, a afeição do Bacorinho por Sila não parara de crescer. Metelo Pio fora para sul, para Cápua, com Catulo César, e passara os primeiros meses de guerra ajudando aos preparativos de guerra naquela cidade. Aquela saída com Sila era a sua primeira comissão genuinamente bélica, desde a guerra contra os Germanos; ansiava dar o seu melhor e jurava, para si mesmo, que Sila nunca teria razões de queixa relativamente à sua conduta; fossem quais fosse as ordens do chefe, tencionava cumpri-las à letra.
As finíssimas sobrancelhas de Sila, sem qualquer maquilhagem naqueles tempos de guerra, ergueram-se muito.
- Vai resultar - retorquiu serenamente.
- Não seria melhor ficarmos aqui onde estamos e corrermos com os samnitas do desfiladeiro? Dessa forma, teríamos acesso permanente à zona leste - disse o Bacorinho, com uma expressão impaciente.
- Isso é que não resultaria, Quinto Cecílio. Sim, de facto podíamos libertar o desfiladeiro dos samnitas. Mas não dispomos das duas legiões de que precisaríamos para ocupar permanentemente o desfiladeiro. O que implicaria que os samnitas voltariam a ocupá-lo logo que o abandonássemos. Eles têm legiões a mais. Por isso, é mais importante mostrar-lhes que uma posição que parece inexpugnável não é forçosamente inexpugnável - retorquiu Sila, num tom satisfeito. Óptimo, já há escuridão bastante. Manda acender os archotes, e atenção!, é preciso que a cena pareça convincente.
Metelo Pio fez o que Sila lhe ordenou. E a cena era, de facto, convincente. Quem estivesse a observá-los do alto dos montes em volta, concluiria imediatamente que os soldados de Sila continuavam a trabalhar freneticamente na fortificação do acampamento.
- Não há dúvida! Decidiram disputar a posse do desfiladeiro disse Duílio. - Imbecis! Vão ficar aqui metidos durante toda a guerra.
- Pelo tom de voz, via-se que também Duílio estava satisfeito.
Porém, com o nascer do dia, Duílio verificou que se tinha equivocado. Atrás dos enormes montes de rochas e terra revolvidos pelos romanos, não se via nenhum soldado; o touro samnita tinha engolido o isco, e o lobo romano escapulira-se. Para leste, não para oeste. Do seu posto de observação, Duílio podia ver a retaguarda da coluna de Sila na estrada de Esérnia: tão longe estavam já os soldados romanos, que mais pareciam formigas. E Duílio nada podia fazer, porque as ordens que tinha eram explícitas; devia permanecer no desfiladeiro de Melfa, e não perseguir uma força inimiga poderosa, apesar de pequena, por planícies desabrigadas. Naquela situação, o melhor que podia fazer era mandar um aviso a Esérnia.
Mas mesmo essa acção se revelou inútil. Sila abriu um buraco nas linhas dos sitiantes e enfiou as suas legiões na cidade com muito poucas baixas.
”Ele é demasiado bom”, dizia a mensagem italiana seguinte, desta feita enviada por Caio Trebácio, que comandava o cerco samnita, para Caio Pápio Mutilo, então atacando Acerras. ”Esérnia é demasiado grande para ser cercada pelo reduzido número de homens que eu tenho; por isso, não pude espalhar-me o suficiente para impedir a sua entrada; além disso, não pude comprimir devidamente os meus homens, de modo a impedi-lo de espalhar os seus soldados. Finalmente, penso que não conseguirei impedi-lo de sair, sempre que ele o queira.”
Sila depressa descobriu que a cidade sitiada levava uma vida animada e despreocupada; dispunha de dez coortes de bons soldados: as coortes abandonadas por Cipião Asiático e Acílio, mais os refugiados de Venafro e Benevento. A cidade possuía, por outro lado, um comandante competente: Marco Cláudio Marcelo.
- Obrigado pelos abastecimentos e pelas armas que nos trouxeste - disse Marcelo. - Permitir-nos-ão sobreviver ainda durante muito tempo.
- Isso quer dizer que tencionas permanecer aqui? Marcelo aquiesceu, com um sorriso orgulhoso.
- É claro! Já que fui corrido de Venafro, agora estou decidido a não abandonar esta Esérnia latina. - O seu sorriso esbateu-se. - Todos os cidadãos romanos de Venafro e Benevento foram mortos pela População. O que eles nos odeiam, os Italianos! Especialmente os Samnitas.
- Não sem razão, Marco Cláudio. - Sila encolheu os ombros. Mas isso é o passado e agora temos de tratar do futuro. Só uma coisa nos deve preocupar: a vitória no campo de batalha. E a defesa das cidades que são postos avançados dos romanos num mar de Italianos. Esta também é uma guerra do espírito. Temos de ensinar aos Italianos que Roma e os Romanos são invioláveis. Saqueei todas as localidades entre o desfiladeiro de Melfa e Esérnia, ainda que algumas dessas localidades se resumissem a um par de quintas. E fi-lo para demonstrar aos Italianos que Roma pode actuar para lá das linhas inimigas e tirar os frutos do solo italiano para reabastecer cidades como Esérnia. Se conseguires aguentar-te aqui, meu caro Marco Cláudio, estarás também a dar uma lição aos Italianos.
- Enquanto puder, não deixarei Esérnia - retorquiu Marcelo, absolutamente determinado a defender a cidade.
Sila deixou a cidade tranquilo e confiante: Esérnia resistiria ao cerco. Avançou sem medo no interior do território italiano, confiando na sua sorte, nesse mágico elo que o unia à deusa Fortuna. Na realidade, Sila não fazia a mínima ideia de onde se encontravam as tropas samnitas ou picentinas. E a sorte nunca o abandonou, nem mesmo quando passou por cidades como Venafro e encorajou activamente os seus soldados a insultar, por palavras e gestos, os Italianos que os observavam das muralhas. Quando chegaram a Cápua, os seus soldados atravessaram os portões da cidade a cantar. E toda a Cápua veio para a rua saudá-los alegremente.
Lúcio César, soube entretanto Sila, tinha-se dirigido para Acerras depois de Mutilo ter mandado parte das suas tropas para Esérnia, por causa do que parecia ser uma importante acção contra o cerco montado à cidade; mas - assim determinava a sorte - Mutilo tinha ficado em Acerras. Deixando Catulo César em Cápua, com ordens para que os seus soldados gozassem de um bem merecido descanso, Sila montou uma mula e partiu à procura do seu general.
Encontrou-o de mau humor, e privado da cavalaria númida que Sexto César trouxera do outro lado do mar.
- Sabes o que Mutilo fez? - perguntou Lúcio César, mal viu Sila.
- Não - retorquiu Sila, encostando-se com um ar despreocupado a um pilar feito de lanças inimigas capturadas e preparando-se para ouvir uma litania de queixas.
- Quando Venúsia capitulou e os Venusinos aderiram à Itália, o chefe picentino Caio Vidacílio encontrou um refém inimigo em Venúsia. Eu tinha-me esquecido completamente de que ele estava lá. Aliás, suponho que já ninguém se lembrava do caso. O refém era Oxintas, um dos filhos do rei Jugurta da Numídia. Vidacílio mandou-o para aqui, para Acerras. Quando ataquei, usei a cavalaria númida como guarda avançada. Pois sabes o que Mutilo fez? Vestiu Oxintas com uma túnica púrpura, pôs-lhe um diadema na cabeça e obrigou-o a desfilar! Claro, os dois mil cavaleiros númidas, mal viram o príncipe, ajoelharam! Ajoelharam perante um inimigo de Roma! - As mãos de Lúcio César ergueram-se no ar, tão cerradas que as unhas lhe feriam, por certo, as palmas. - Quando penso no que gastámos para os trazer da Numídia! O que isso nos custou! Tudo em vão! Tudo em vão!
- Que fizeste?
- Chamei-os, obriguei-os a seguir a pé até Putéolos e mandei-os de volta para a Numídia. O rei que se entenda com eles!
Sila endireitou-se.
- Boa ideia, Lúcio Júlio - comentou, e estava a ser sincero, enquanto afagava a coluna de lanças capturadas. - Mas não há razão para tristezas, é óbvio que não tiveste nenhum desastre, apesar do aparecimento de Oxintas! Ganhaste uma batalha, Lúcio Júlio!
O pessimismo natural do cônsul começava a esbater-se, mas não o suficiente para o fazer sorrir.
- Sim, ganhei uma batalha. Nada de especial, porém. Mutilo atacou há três dias, julgo que depois de saber que tinhas furado, com êxito, o cerco a Esérnia. Eu enganei-o, fazendo sair as minhas forças pelas traseiras do nosso acampamento. Matámos seis mil samnitas.
- E Mutilo?
- Retirou imediatamente. Por ora, Cápua está em segurança.
- Excelente, Lúcio Júlio!
- Quem me dera pensar o mesmo - retorquiu Lúcio César, num tom pesaroso.
Reprimindo um suspiro, Sila perguntou-lhe:
- O que é que aconteceu mais?
- Públio Crasso perdeu o seu filho mais velho frente a Grumento, e ficou fechado na cidade durante um largo período. Mas os Lucanianos são tão caprichosos como indisciplinados, felizmente para Públio Crasso e o seu filho do meio. Lampónio conduziu os seus homens para outro sítio qualquer, e Públio e Lúcio Crasso puderam sair. - O comandante-chefe soltou um imenso suspiro. - Aqueles malucos em Roma queriam que eu deixasse tudo aqui e fosse a Roma, calcula, para supervisionar a escolha de um cônsul suffectus que substituirá Lupo até às eleições. Claro, mandei-os àquela parte. E recomendei-lhes que confiassem no pretor urbano: Cina pode muito bem resolver todos os assuntos em Roma. - Suspirou uma vez mais, fungou, lembrou-se de mais qualquer coisa. - Caio Célio, que está na Gália Italiana, mandou um magnífico pequeno exército, conduzido por Públio Sulpício, para ajudar Pompeu Estrabão a levantar o seu presumido rabo picentino das terras de Firmo. Só desejo boa sorte a Públio Sulpício para lidar com esse semi-bárbaro vesgo! Ah, a propósito, devo dizer, Lúcio Cornélio, que tu e Caio Mário estavam inteiramente certos quanto a Quinto Sertório. Ele agora está a governar a Gália Italiana completamente sozinho, e a verdade é que se está a sair muito melhor do que Caio Célio. Célio teve de ir a toda a pressa para a Gália Transalpina.
- O que é que se passa na Gália Transalpina?
- Os Salúvios desataram a caçar cabeças outra vez - disse Lúcio César com um esgar de asco. - Que esperança podemos ter de civilizar essa gente, quando várias centenas de anos de contactos com Gregos e Romanos não produziram qualquer resultado? Mal deram por nós distraídos, retomaram os velhos hábitos bárbaros. Caçadores de cabeças. Mandei uma mensagem pessoal a Caio Célio, dando-lhe ordens para que não mostrasse a mínima compaixão em relação a essa gente. Não nos podemos dar ao luxo de permitir uma revolta importante na Gália Transalpina.
- Então o jovem Quinto Sertório está a sair-se bem na Gália Italiana? - disse Sila. Revelava o seu rosto uma expressão invulgar, uma mistura de cansaço, impaciência e amargura. - Era de esperar, não? Ganhou a Coroa de Ervas antes dos trinta...
- Inveja? - perguntou Lúcio César, malicioso. Sila reagiu.
- Não, não sinto inveja nenhuma! Desejo-lhe os maiores êxitos! Eu gosto desse jovem. Conheço-o desde que serviu como cadete em África, sob as ordens de Mário.
Lúcio fez um barulho qualquer, incompreensível, e de novo mergulhou nos seus sombrios pensamentos.
- Aconteceu mais alguma coisa? - insistiu Sila.
- Sexto Júlio César pegou na sua metade das tropas que trouxe do ultramar e seguiu para Roma, pela Via Ápia. Julgo que tenciona passar o Inverno em Roma. - Lúcio César não tinha em grande apreço o primo. - Está doente, como de costume. Felizmente que Caio, o irmão, anda com ele. Os dois juntos são capazes de fazer um homem decente.
- Ah! Então a minha amiga Aurélia vai ter marido por uns tempos - comentou Sila com um sorriso terno.
- Não há dúvida que és uma criatura estranha, Lúcio Cornélio! Mas que importância é que tem no presente momento a vida da tua amiga Aurélia?
- Não tem a mínima importância. Mas quanto ao resto tens razão, Lúcio Júlio: sim, eu sou uma criatura estranha!
Lúcio César viu algo na expressão de Sila que o fez mudar imediatamente de assunto.
- Dentro de muito pouco tempo partiremos de novo os dois.
- Partimos? Para onde? Para que proeza?
- A tua acção em Esérnia convenceu-me de que Esérnia é a chave para todo este teatro de guerra. Mutilo dirige-se agora para lá, depois de ter perdido a batalha aqui; bom, pelo menos é o que me diz a tua espionagem. Acho que devemos fazer o mesmo. Esérnia não pode cair nas mãos dos Italianos.
- Oh, Lúcio Júlio! - exclamou Sila, desesperado. - Esérnia não passa de um espinho espiritual que incomoda a garra italiana! Enquanto Esérnia aguentar o cerco, os Italianos duvidarão da sua capacidade para vencer esta guerra. Mas, tirando isso, Esérnia não tem a mínima importância! Além do mais, a cidade encontra-se muito bem abastecida, e o seu comandante é um homem eficiente e determinado: é Marco Cláudio Marcelo. Deixa Esérnia ficar como está, não te preocupes com Esérnia! Se Mutilo retirou para o interior, a única via de que dispomos é o desfiladeiro de Melfa. Porque havemos de pôr em perigo a vida dos nossos preciosos soldados, num cenário perfeito para emboscadas?
Lúcio César ficou vermelho de raiva.
- Mas tu atravessaste-o!
- Sim, atravessei-o. Mas enganei-os. E o meu truque não vai resultar uma segunda vez.
- Pois eu atravessarei esse desfiladeiro - replicou Lúcio César, inflexível.
- Quantas legiões?
- Todas as que temos. Oito.
- Lúcio Júlio, por favor, esquece esse projecto! - suplicou Sila.
- Seria mais inteligente tentar expulsar os Samnitas da Campânia Ocidental de uma vez por todas! Com oito legiões funcionando como uma unidade, podemos conquistar todos os portos que Mutilo ocupou, reforçar Acerras, e reocupar Nola. Nola, para os Italianos, é mais importante do que Esérnia para nós!
Os lábios do general franziram-se: Lúcio César não conseguia esconder a sua irritação.
- Eu é que sou o comandante, e não tu, Lúcio Cornélio! E se eu digo que vamos para Esérnia, é porque vamos mesmo para Esérnia.
Sila encolheu os ombros, desistiu.
- Como queiras, Lúcio Júlio.
Sete dias depois, Lúcio Júlio César e Lúcio Cornélio Sila rumaram a Teano dos Sidicinos com oito legiões, ou seja, todas as forças disponíveis no teatro de guerra do Sul. Sila sentia-se enredado, perseguido, por todas as superstições, mas não tinha outra alternativa senão fazer o que lhe mandavam. Lúcio César era o general. Tanto pior, pensava Sila enquanto seguia à frente das suas duas legiões - as mesmas que conduzira até Esérnia - e observava a imensa coluna à sua frente, estirando-se, como uma serpente, pelos montes baixos da região. Lúcio César tinha colocado Sila na cauda da marcha, de forma a impedi-lo de participar nas suas conferências. Metelo Pio, o Bacorinho, fora honrado com uma promoção que não lhe agradava nada: era ele quem acompanhava agora Lúcio César, era com ele que Lúcio César conferenciava. Mas Metelo Pio preferia permanecer com Sila.
Em Aquino, o general mandou chamar Sila e, com profundo desdém, atirou-lhe uma carta. Assim caem os fortes!, pensou Sila, lembrando-se de que, em Roma, ainda antes da guerra, fora a ele que Lúcio César recorrera, transformando-o, de um momento para o outro, no seu ”conselheiro”. Agora, Lúcio César só via um especialista, um conselheiro: ele mesmo.
- Lê isso - atirou-lhe Lúcio César. - Acaba de chegar. É uma carta de Caio Mário.
Mandava, normalmente, a cortesia, que um homem que recebesse uma carta a lesse em voz alta, perante aqueles com quem desejava partilhá-la; consciente disso, Sila sorriu, ironicamente, para si mesmo e, sem mais demoras, começou a ler a carta.
Na minha qualidade de comandante-chefe do teatro do Norte, creio que chegou a hora, Lúcio Júlio, de te informar dos meus planos. Escrevo-te esta carta nas Calendas de Agosto, num acampamento perto de Reate.
É minha intenção invadir as terras dos Marsos. O meu exército encontra-se, finalmente, nas melhores condições, e estou absolutamente convencido de que combaterá tão esplendidamente como todos os meus exércitos de outros tempos, por amor a Roma e por amor ao seu general.
Ah! Sim senhor!, pensou Sila, atento, alerta. Nunca o nosso velho amigo se exprimiu nestes termos! ”Por amor a Roma e por amor ao seu general. O que é que se passará naquela cabecinha? Porque se associa ele pessoalmente a Roma? O meu exército! Não é o exército de Roma, mas o meu exército! Eu não teria dado por isso (todos nós dizemos o ”meu” exército...), se não fosse aquela referência ao ”amor” ao seu general... Esta carta irá para os arquivos da guerra. E nesta carta, Caio Mário coloca-se em pé de igualdade com Roma!
Sila ergueu num ápice a cabeça, olhou de relance para Lúcio César; mas, se tinha dado pela frase, o comandante-chefe do teatro do Sul fingia que não reparara em nada. Não, decidiu Sila, Lúcio César não era capaz de tais subtilezas. Voltou à leitura da carta.
Creio que concordarás comigo, Lúcio Júlio, quanto ao facto de que precisamos de uma vitória - uma vitória completa e decisiva - no meu teatro. Roma chamou a esta guerra a guerra dos Marsos. Se assim é, temos de derrotar os Marsos no campo de batalha, e, se possível, deixá-los sem qualquer possibilidade de recuperação.
Neste momento eu posso fazer isso, meu caro Lúcio Júlio. Mas, para o fazer, preciso dos serviços do meu velho amigo e colega Lúcio Cornélio Sila. E de mais duas legiões. Percebo perfeitamente que não te é fácil dispensar Lúcio Cornélio - e duas legiões. Mas eu não te pediria este favor se não considerasse imperativa uma tal ajuda. garanto-te que esta transferência não será permanente. É um empréstimo, não um presente. Preciso apenas de dois meses, não mais que dois meses.
Se te é possível aceder ao meu pedido, estou certo de que Roma te ficará grata pela tua amabilidade. Se a tua resposta for negativa, terei de voltar a montar o meu acampamento em Reate e de pensar noutra alternativa.
Sila ergueu a cabeça e fitou Lúcio César, as sobrancelhas bem altas.
- Que me dizes a isto? - perguntou, colocando cuidadosamente a carta na secretária de Lúcio César.
- Digo que deves ir ter com ele, Lúcio Cornélio - retorquiu Lúcio César com um ar indiferente. - Eu posso atacar Esérnia sem a tua ajuda. Caio Mário tem razão. Precisamos de uma vitória decisiva contra os Marsos. Seja como for, este teatro do Sul é a maior das confusões. É impossível conter os Samnitas e os seus aliados, tal como é impossível inflingir-lhes uma derrota decisiva, pois é muito difícil empurrar um número significativo dos seus soldados para um único local. Tudo o que posso fazer aqui é mostrar aos Italianos a força e a persistência dos nossos exércitos. Nunca haverá uma batalha decisiva no Sul. Essa batalha só poderá acontecer no teatro do Norte.
Sila continuava bem alerta. Um dos dois generais equiparava-se a Roma, o outro era a personificação do desalento, incapaz de ver uma luz que fosse, tanto a leste como a oeste ou a sul. Que felicidade ele poder ver uma luzinha de esperança brilhando no norte! Como poderemos vencer na Campânia com um homem como Lúcio César à frente das nossas tropas?, perguntava-se Lúcio Cornélio Sila. Por todos os deuses, por que não ascendi eu até agora a um cargo superior? Pois se sou melhor que Lúcio César! E talvez seja melhor que Caio Mário! Desde que entrei para o Senado, não tenho feito outra coisa senão servir homens inferiores - e mesmo Caio Mário é um homem inferior, porque não é um patrício Cornélio. Metelo Bacorinho, Caio Mário, Catulo César, Tido Dídio, e agora este, um homem descendente de uma casa antiquíssima, é certo, mas um doente, um indivíduo que sofre de uma depressão crónica! E afinal, quem é que tem cada vez mais poder, quem é que ganha a Coroa de Ervas, quem é que acaba a governar uma província apenas com trinta anos? Quinto Sertório. Um zé-ninguém sabino. Um primo de Mário - Lúcio César, nós vamos vencer! - disse Sila, muito sério. Sinto que a vitória já não está longe! Reduziremos os italianos a pó.
Podem derrotar-nos numa batalha ou duas, mas nunca nos derrotarão numa guerra! Ninguém pode derrotar Roma numa guerra! Roma é Roma, poderosa e eterna. Eu acredito em Roma!
- Também eu, Lúcio Cornélio, também eu! - retorquiu Lúcio César, irritado. - Mas agora vai-te embora! Vai ajudar Caio Mário. Podes ser-lhe útil, ao passo que aqui, francamente, a tua utilidade não é muita.
Sila levantou-se, e estava já à porta da casa onde Lúcio César se instalara, quando, subitamente, voltou para trás. Tinha prestado tanta atenção à carta de Caio Mário que nem reparara no aspecto físico de Lúcio César. Agora, de repente, sentia um medo novo. O general estava pálido, com um ar apático, tremia, suava.
- Lúcio Júlio, estás bem? - perguntou Sila.
- Estou bem, sim! Sila sentou-se de novo.
- Não estás nada bem, não mintas.
- Estou suficientemente bem, Lúcio Cornélio.
- Chama um médico!
- Nesta aldeia? Só se chamar alguma velha, capaz de me receitar decocções de esterco de porco e cataplasma de aranhas esmagadas.
- Eu vou passar por Roma. E mando-te o Siciliano.
- Então manda-o para Esérnia, Lúcio Cornélio, porque é aí que me vai encontrar. - A testa de Lúcio César brilhava do suor. Podes ir.
Sila ergueu muito os ombros, levantou-se.
- Toma muita atenção, Lúcio Júlio: tu estás com sezões!
Pois bem, deixá-lo!, pensou Sila ao transpor a porta. Lúcio César não estaria em condições de organizar fosse o que fosse, quando chegasse ao desfiladeiro de Melfa. Ia sofrer uma emboscada, e teria de retirar para Teano dos Sidicinos uma segunda vez. E muitos homens morreriam naquele traiçoeiro desfiladeiro. Mas porque eram todos tão teimosos, tão estúpidos?
Não muito longe da residência de Lúcio César, encontrou Metelo Pio, o Bacorinho, com um ar igualmente soturno.
- Tens um homem doente naquela casa - disse Sila, apontando para a residência de Lúcio César.
- Não me fales nisso! - exclamou Metelo Pio. - Se ele, normalmente, já é um tipo triste, agora imagina o que não será com um ataque de sezões... É de dar em doido! O que é que tu lhe fizeste para ele te pôr de parte, para ele te ignorar por completo?
- Disse-lhe que não pensasse em Esérnia e que tratasse de expulsar os Samnitas da Campânia Ocidental.
- No estado em que ele se encontra, seria de facto uma boa ideia não avançarmos sobre Esérnia - disse o Bacorinho, procurando pôr um sorriso.
A gaguez do Bacorinho sempre fascinara Sila. Por isso disse-lhe:
- Ultimamente, tens andado menos gago.
- Fran-fran-francamente, Lúcio Cornélio, porque me di-di-dizes uma dessas? Eu só fi-fi-fico gago quando pen-pen-penso nisso! Gran-gran-grande estupor!
- A sério? Mas isso é curioso. Tu não gaguejavas antes... antes de Arausio, não foi?
- Sim, antes de Arausio não gague-gue-gue-guejava. É uma cha-cha-cha-chatice! - Metelo Pio respirou fundo e tentou não pensar na sua gaguez. - Como vocês estão mal-mal-mal um com o outro, suponho que ele não te di-di-di-disse o que pensa fazer quando voltar a Roma?
- Não. O que é que ele tenciona fazer!
- Conceder a cidadania a todos os italianos que não tenham lutado contra nós.
- Estás a brincar comigo, Metelo Pio!
- Não estou, Lúcio Cornélio! Por causa dele, já me esqueci do que é brincar seja com o que for. É verdade, juro que é verdade. Logo que as coisas abrandem por aqui, ou seja, lá para fins do Outono, Lúcio Júlio despirá o seu traje de general e voltará a vestir a to-to-toga debruada a púrpura. O seu último acto como cônsul, diz ele, será conceder a cidadania a todos os italianos que não tenham participado na guerra contra Roma.
- Mas isso é traição! Quer dizer, então, que ele e os outros idiotas que estão à frente de tudo isto perderam milhares e milhares de homens numa luta que eles não têm a coragem de levar até ao fim? - Sila tremia. - Quer dizer então que ele vai levar seis legiões para o desfiladeiro de Melfa, sabendo que aqueles homens vão morrer para nada? Sabendo que tenciona abrir as portas das traseiras de Roma a todos os Italianos da península? Porque é isso que vai acontecer, Metelo Pio. Todos eles conseguirão a cidadania, todos, desde Silão e Mutilo até ao último homem livre que Silão e Mutilo tiverem entre a sua clientela! Ah, ele não pode fazer uma coisa dessas!
- De nada te vale gritares-me, Lúcio Cornélio! Porque eu lutarei contra o alargamento da cidadania até ao fim, mesmo que esse fim seja amargo.
- Tu nem terás oportunidade de combater contra o alargamento da cidadania, Quinto Cecílio. Porque estarás no campo de batalha, e não no Senado. Só lá estará Escauro para combater tal proposta, e Escauro é demasiado velho. - Furioso, Sila fitava a rua, sem nada ver à sua frente. - Filipe e o resto dos saltatrices tonsae é que decidirão. E concordarão com a proposta de Lúcio Júlio. Tal como os Comitia.
- Também tu estarás no campo de batalha, Lúcio Cornélio - disse o Bacorinho num tom triste. - Ouvi di-di-di-dizer que ias ajudar Caio Mário, aquele velho nabo italiano! Ele não rejeitará a lei de Lúcio Júlio, aposto!
- Não estou assim tão certo - disse Sila, e suspirou. - Uma coisa tens de admitir em relação a Caio Mário, Quinto Cecílio: ele é, antes de mais, um soldado. Quando ele deixar de participar nesta guerra, haverá muito poucos marsos vivos para exigirem a cidadania.
- Espero que sim, Lúcio Cornélio. Porque no dia em que Caio Mário entrar num Senado meio cheio de italianos, ele voltará a ser o Primeiro Homem em Roma. E será cônsul pela sétima vez.
- Só se eu não puder fazer nada contra... - retorquiu Sila.
No dia seguinte, as duas legiões de Sila, separaram-se das de Lúcio César, precisamente na altura em que estas entravam na estrada que conduzia ao rio Melfa. Sila prosseguiu a sua marcha pela Via Latina, atravessando o Melfa em direcção a Fregelas, reduzida a ruínas por Lúcio Opímio, em consequência da revolta da sua população, trinta e cinco anos antes. As legiões de Sila pararam junto aos pequenos vales tranquilos, cobertos de flores, criados pelas muralhas e torres, em ruínas, daquela que fora uma cidade. Sem disposição para vigiar os seus tribunos e centuriões, dirigindo a construção de algo tão fundamental como um acampamento fortificado, Sila resolveu dar um passeio sozinho pela cidade-fantasma.
Aqui está aquilo por que lutamos, pensou. É assim que tudo ficará, quando abafarmos por completo esta nova revolução, garantem-nos os burros do Senado. Demos o nosso tempo, os nossos impostos, as nossas vidas, para transformar a Itália numa vasta Fregelas. Dissemos que não pouparíamos uma única vida italiana. Que cresceriam papoulas vermelhas em terra vermelha do sangue italiano. Dissemos que as caveiras dos italianos ficariam tão brancas como aquelas rosas brancas e que pelas suas órbitas vazias espreitariam malmequeres, fitando, cegos, o sol, com os seus olhos amarelos. Para que lançámos esta guerra, se dela só resultará ruína? Para que morremos se, com a nossa morte, não nascerá vida? Ele aprovará a cidadania para os semi-rebeldes da Úmbria e da Etrúria. E depois disso, não poderá parar. A menos que alguém pegue no ceptro do império que ele deixará cair. Todos receberão a cidadania, com as mãos ainda sujas do nosso sangue. Para que lutamos, se lutamos para nada? Nós, os herdeiros dos Troianos, e que, por isso, devíamos saber na perfeição o que sentem os traidores dentro da cidade sitiada. Nós, que somos Romanos, e não Italianos. E ele fará com que eles se tornem Romanos. Ele e outros como ele destruirão tudo aquilo que Roma representa. A Roma deles não será a Roma dos seus antepassados, nem a minha Roma. Este mar de ruínas coberto de flores, estas ruínas italianas de Fregelas são a minha Roma, a Roma dos meus antepassados - suficientemente forte e segura para deixar crescer flores em ruas rebeldes, para entregar essas flores aos zunidos das abelhas e aos gorjeios dos pássaros.
Sila não sabia ao certo se a sua tristeza não seria também motivada pela luz difusa que vinha dos céus, ou pelas pedras que lhe magoavam os pés. Porém, ainda que a luz do dia fosse instável, Sila apercebeu-se, a certa altura, de uma forma que se aproximava, uma forma azul e maciça - um general romano aproximando-se de outro general romano. Até que a forma deixou de ser azul ou negra, ou uma massa brilhante de armadura e elmo. Caio Mário! Era Caio Mário, o Italiano.
Sila respirou fundo, nervosamente, o seu coração agitou-se. Parou, e esperou por Mário.
- Lúcio Cornélio.
- Caio Mário.
Nenhum deles se mexeu para cumprimentar ou tocar o outro, fosse de que modo fosse. Logo começaram a caminhar juntos, num silêncio sepulcral. Foi Mário quem, por fim, pigarreou, porque Mário não suportava calar emoções.
- Suponho que Lúcio Júlio vai a caminho de Esérnia. É isso, não é?
- Sim.
Devia ter ido antes para o golfo de Cráter, combater pela reconquista de Pompeios e Estábias. Otacílio está a organizar uma bela armada, agora que tem mais recrutas. A armada nunca surge em primeiro lugar entre as preferências do Senado. No entanto, ouvi dizer que o Senado vai recrutar todos os libertos de Roma, fisicamente aptos, a fim de formarem uma força especial que protegerá e defenderá as costas da alta Campânia e do baixo Lácio. Assim, Otacílio poderá integrar todas as milícias costeiras actuais na sua armada.
- Hum! - fez Sila. - E quando é que os veneráveis senadores tencionam reunir-se para aprovar essa lei?
- Sabe-se lá! Pelo menos já começaram a falar do assunto...
- Que maravilha!
- Que azedume, Lúcio Cornélio! Foi Lúcio Júlio que te deixou nesse estado? Não me espanta nada...
- Sim, Caio Mário, estou furioso - retorquiu Sila, extremamente calmo. - Antes de tu chegares, passeava por este belo caminho, pensando no destino de Fregelas, e no destino que espera os nossos actuais inimigos italianos. Não sei se sabes, mas Lúcio Júlio pretende aprovar o alargamento da cidadania a todos os italianos que tenham mantido uma atitude pacífica em relação a Roma. Não é um espanto?
Mário deteve-se por um momento, mas logo reatou a caminhada com a sua passada forte e decidida.
- Mas quando é que ele pretende aprovar essa lei? Antes ou depois de se esmagar contra os rochedos de Esérnia?
- Depois.
- Dá vontade de perguntar aos deuses para que estamos nós a lutar! - exclamou Mário, repetindo, sem o saber, as reflexões de Sila. Mas logo desatou a rir. - Bom, seja como for, a verdade é que eu gosto de tudo o que seja actividade militar. Espero que haja, ainda, uma ou duas batalhas, antes que o Senado e o Povo de Roma desistam por completo! Mas que reviravolta! Se tivéssemos podido ressuscitar Marco Lívio Druso nada disto teria acontecido. O Tesouro estaria cheio e não mais vazio do que a cabeça de um tonto, e a península estaria em paz, feliz e satisfeita, e repleta de cidadãos legalmente romanos.
- Claro.
Calaram-se. Dirigiam-se para o que restava do Fórum de Fregelas. Aqui e ali, por sobre as ervas e as flores, espreitavam colunas e lanços de escadas que não levavam a sítio nenhum.
- Tenho uma missão para ti - disse Mário, sentando-se numa pedra. - Pára, Lúcio Cornélio! Senta-te aqui ou deixa-te estar em pé, mas à sombra, e tira esse maldito chapéu, para que eu possa ler o que os teus olhos dizem.
Obedientemente, Sila procurou a sombra e, obedientemente, tirou o chapéu; mas não se sentou, nem falou.
- Por certo já te perguntaste porque vim ter contigo a Fregelas, em vez de esperar em Reate.
- Imagino que não me queres em Reate. Mário soltou uma sonora gargalhada.
- Descobres sempre os meus truques, Lúcio Cornélio! Tens toda a razão. Não te quero em Reate. - Mário já não sorria. - Mas também não queria descrever os meus planos numa carta. Quanto menos gente souber, melhor. Não que eu tenha motivos para desconfiar da existência de um espião na tenda de Júlio. Nada disso. Só que tenho o hábito de ser prudente.
- A única maneira de guardar um segredo é não o contar a ninguém.
- Claro, claro. - Mário soprou com tanta força que as correias e as fivelas da sua armadura rangeram. - Tu, Lúcio Cornélio, deixarás a Via Latina aqui. Passando por Sora, seguirás o curso do Líris até à nascente. Por outras palavras, quero-te na margem sul da nascente do Líris, a poucos quilómetros da Via Valéria.
- E qual será o teu papel?
- Enquanto sobes as margens do Líris, eu irei de Reate até à passagem ocidental na Via Valéria. Tenciono entrar na Via Valéria para lá de Carséolos. Carséolos está em ruínas e possui uma guarnição inimiga: soldados Marrucinos, segundo os meus informadores, comandados pelo próprio Hério Asínio. Se possível, obrigá-los-ei a travar uma batalha pela posse da Via Valéria, antes de chegar à passagem ocidental. Nesse momento, entrarás tu em acção, mas a sul da nascente do Líris.
- A sul da nascente do Líris, sem que o inimigo o saiba - disse Sila, que começava a perder a calma.
- Precisamente. Isso quer dizer que matarás todos os inimigos que te aparecerem pela frente. Toda a gente sabe que eu me encontro a norte da Via Valéria; por isso, nem os Marrucinos nem os Marsos, assim o espero, pensarão que há um outro exército no flanco sul. Vou tentar fazer com que os meus movimentos atraiam todas as atenções inimigas. - Mário sorriu. - Tu, é claro, encontras-te oficialmente com Lúcio Júlio, a caminho de Esérnia.
Não perdeste os teus talentos de chefe militar, Caio Mário.
Os fogosos olhos castanhos de Mário cintilaram.
Espero bem que não! Porque, Lúcio Cornélio, e vou ser franco contigo, se eu perdesse esses talentos, não haveria ninguém nesta obscura guerra capaz de ocupar o meu lugar. Acabaríamos por conceder a cidadania aos nossos inimigos, no campo de batalha.
Sila, em parte, estava preocupado com a questão da cidadania; mas havia outras questões que o preocupavam mais.
- E eu? Achas que não sou capaz de assumir uma chefia militar?
- disparou ele, de repente.
- Sim, sim, claro que és capaz - retorquiu Mário num tom conciliador. - Não o nego, nem por um momento. Mas as funções de comandante não são as que melhor se adequam à tua pessoa, Lúcio Cornélio.
- Pode-se aprender a ser um bom comandante - teimou Sila.
- Sim, pode-se aprender, de facto. Como tu fizeste. Aprendeste. Mas se a coisa não nasce connosco, como é o teu caso, Lúcio Cornélio, nunca passamos de bons comandantes - disse Mário, sem prestar a mínima atenção ao facto de que o que estava a dizer estava longe de constituir um elogio. - Por vezes não basta ser-se um bom comandante. É preciso ser-se um comandante inspirado. E isso, ou nasce connosco, ou faz parte da nossa personalidade, ou então nada feito.
- Um dia, Roma ficará sem ti, Caio Mário - disse Sila, com um ar pensativo. - E então, veremos! Serei eu quem assumirá o comando supremo.
Mário, ou não compreendia aquelas palavras, ou então não conseguia adivinhar o que se passava na cabeça de Sila. Em vez de reagir mal, soltou um risinho alegre.
- Bom, Lúcio Cornélio, só faço votos para que, quando esse dia chegar, Roma precise apenas de um bom general. Não estás de acordo comigo?
- O mais possível - retorquiu Lúcio Cornélio Sila.
O que irritava Sila era o facto de o plano de Mário ser perfeito. As duas legiões de Sila passaram Sora, sem terem encontrado qualquer força inimiga. Depois, numa breve escaramuça, derrotaram uma pequena força de picentinos, chefiada por Tito Herénio. Entre Sora e a nascente do Líris, Sila apenas encontrou camponeses latinos e sabinos, que o saudaram com tamanha alegria, que ele não se sentiu capaz de os matar, como Mário ordenara. Era mais que natural que os picentinos, que tinham escapado em Sora, referissem a sua presença, mas Sila dera a impressão de que a sua missão o levara apenas a Sora, por ordens de Lúcio César, e que, depois da missão cumprida, voltaria para junto de Lúcio César, a leste do desfiladeiro de Melfa. Era de crer que os sobreviventes da força de Tito Herénio e os Pelignos estivessem à espera de Sila no local errado.
Graças aos seus informadores, Sila sabia que Mário fizera o prometido: entrara na Via Valéria para lá de Carséolos. Hério Asínio e os seus Marrucinos tinham-no atacado imediatamente e sofrido uma derrota esmagadora, depois de Mário os ter levado a pensar que não queria travar uma batalha naquele local. O próprio Hério Asínio pereceu na batalha, tal como a maior parte dos seus soldados. Mário avançara depois na direcção da passagem ocidental, sem qualquer oposição. Dirigia-se agora para Alba, com quatro legiões formadas por homens que tinham a certeza da vitória - como poderiam perder, se tinham à sua frente a velha raposa de Arpino? Eram, todos eles, belíssimos soldados, soldados que pareciam ter anos e anos de experiência de guerra.
Sila e as suas duas legiões seguiram de perto Mário, ao longo da Via Valéria, até ao momento em que a nascente do Líris, que os separava, deu lugar à bacia do lago Fucino; mas, mesmo então, Sila manteve, entre as suas forças e as de Mário, uma distância de apenas quinze quilómetros, conseguindo esconder-se com a maior facilidade. Apesar dos problemas levantados por uma região montanhosa, Sila tinha razões para agradecer aos Marsos, pelo facto de gostarem de fazer o seu próprio vinho. A sul da Via Valéria, ficava uma região totalmente coberta de vinha; as videiras cresciam em latadas, ficando, assim, protegidas dos ventos que sopravam das montanhas, numa altura do ano em que as flores desabrochavam e os insectos precisavam de ares calmos para polinizar. Agora, Sila matava toda a gente que lhe aparecia pela frente, na sua maior parte mulheres e crianças; todos os homens, excepto os mais velhos, haviam abandonado aldeias e quintas, a fim de servirem no exército.
Sila apercebeu-se do momento em que começou a batalha entre Mário e os Marsos, pois, nesse dia, o vento soprava de norte, e espalhava.
Os ruídos dos combates tão claramente que os homens de Sila chegaram a pensar que a batalha se desenrolava ali mesmo ao lado, no meio das parreiras. Um mensageiro tinha vindo de madrugada para informar Sila de que a batalha seria travada, provavelmente, naquele dia; por isso, Sila colocou as suas forças numa formação de oito fileiras, atrás das altas cercas dos vinhedos, e aguardou.
Cerca de quatro horas depois de a batalha ter começado, os Marsos, em fuga, começaram a aparecer e a perecer, trespassados pelas espadas dos legionários de Sila, ansiosos por entrarem em acção. Nalguns locais, a luta foi renhida - aqueles eram homens desesperados -, mas os soldados de Sila não correram nunca qualquer perigo.
Como de costume, sou o lacaio de Caio Mário, enfim, um lacaio cheio de experiência e engenho, mas um lacaio, pensava Sila, enquanto observava a batalha. Fora Caio Mário quem concebera a estratégia, fora ele quem definira a táctica, fora ele quem determinara o êxito final da batalha. E aqui estou eu, no sítio errado, comendo os restos que ele deixou como o homem esfomeado que sou. Que bem ele se conhece a si mesmo - e que bem ele me conhece.
Terminada a batalha, e sem nenhuma vontade de mostrar o seu júbilo, Sila subiu para a mula e dirigiu-se para a Via Valéria, a fim de informar Caio Mário de que tudo tinha corrido de acordo com os seus planos, de que quase todos os marsos envolvidos na batalha tinham sido mortos.
- Sabes quem tive de enfrentar? Silão! Silão, calcula! - disse Mário, fazendo o alarido habitual após uma batalha, dando palmadinhas nas costas de Sila e conduzindo-o até à tenda de comando, com um braço por cima dos seus ombros. - Não há dúvida, eles estavam a dormir - acrescentou, radiante. - Também não admira, estavam em casa! Caí em cima deles como um trovão, Lúcio Cornélio! Parece que eles imaginavam que Asínio nunca poderia ser derrotado! Ninguém apareceu a informá-los de que Asínio tinha perdido a batalha, eles só sabiam que Asínio se pusera a caminho porque eu tinha, finalmente, abandonado Reate. Por isso, quando eu apareci, ficaram positivamente estupefactos. Eles iam juntar-se às forças de Asínio. Eu recuei apenas o suficiente para travar batalha, formei os meus homens em quadrado, e fiz o possível por dar a impressão de que me preparava para me defender, nunca para atacar.
”Se és, como dizem, um grande general, vem e luta comigo, Caio Mário!”, gritou Silão, montado num cavalo.
”E se tu és, como dizem, um grande general, então vem dar cabo de mim, Quinto Popaedius”, respondi-lhe eu.
- Nunca saberemos o que pretenderia ele fazer depois desta troca de mimos, porque os seus homens, nesse instante, tomaram o freio nos dentes e carregaram, sem esperarem pelas ordens do chefe. Facilitaram-me a vida... Eu sei o que devo ou não devo fazer, Lúcio Cornélio. Mas Silão não sabe. E digo ”não sabe” porque ele escapou ileso. Quando os seus homens começaram a debandar em pânico, ele desapareceu no seu cavalo; a única coisa que sei é que seguiu para leste. Duvido que pare até encontrar Mutilo. Seja como for, obriguei os marsos a retirar numa única direcção: os vinhedos. Sabendo que estavas lá à espera para acabares com eles. E acabaste mesmo com eles.
- Tudo muito bem feito, Caio Mário - disse Sila, e estava a ser absolutamente sincero.
Com um banquete, Mário, Sila e os seus oficiais comemoraram a vitória. Estava também presente o jovem Mário, cheio de orgulho pelos feitos do pai, a quem servia agora como cadete. Ah, temos cá o filhote do urso! Cuidado, que ele não perde pitada!, pensou Sila, recusando-se a olhar para o jovem.
A batalha foi repetidas vezes discutida, durante mais tempo do que aquele que demorou a ser travada; até que, havendo já pouco vinho nas amphorae, a conversa, inevitavelmente, se encaminhou para a política. O tema era a legislação prevista por Lúcio César: a notícia fora um verdadeiro choque para os oficiais de Mário; Mário não lhes contara a sua conversa com Sila em Fregelas. Foram variadas as reacções, ainda que todos estivessem contra tal concessão. É que aqueles homens eram soldados, e há já seis meses que combatiam, e tinham visto morrer milhares de camaradas - e, além disso, sentiam que os cobardes de Roma nem sequer lhes tinham dado a oportunidade de conhecer o sabor da vitória. Aqueles que estavam em Roma, seguros e tranquilos, não passavam, aos olhos dos militares, de um bando histérico de velhas virgens vestais; Filipe era o mais criticado, mas Lúcio César também não era poupado.
- Todos os Júlios Césares são indivíduos demasiado nervosos disse Mário, o rosto bem vermelho. - É pena que, nesta crise, tenhamos um cônsul sénior chamado Júlio César. Eu sabia que ele ia falhar.
- Quem te ouvir falar, pensará que preferias que não concedêssemos nada aos Italianos - disse Sila.
- Preferia que não - disse Mário. - Antes da guerra, as coisas eram diferentes. Mas a partir do momento em que um povo se declara inimigo de Roma, esse povo passa também a ser meu inimigo. Para sempre.
- É também isso o que eu penso - disse Sila. - No entanto, se Lúcio Júlio conseguir convencer o Senado e o Povo a aprovar a sua lei, isso diminuirá as possibilidades de a Etrúria e a Úmbria passarem para o outro lado. Ouvi dizer que houve novos motins em ambas as regiões.
- Claro. Foi por isso que Lúcio Catão Liciniano e Aulo Plótio pegaram nas tropas de Sexto Júlio e foram, o primeiro para a Etrúria e o segundo para a Úmbria - retorquiu Caio Mário.
- Que está, então, Sexto Júlio a fazer neste momento? O jovem Mário respondeu, e com voz bem sonora.
- Recupera em Roma; ”está com o peito numa lástima”, diz a minha mãe, na sua última carta.
O olhar de Sila deveria tê-lo esmagado, mas a verdade é que pouco efeito teve. Que raio!, pensou Sila, o facto de o pai dele ser o comandante-chefe não lhe dá o direito de se meter na conversa! Não passa de um contubernalis!
- Não tenho dúvidas de que a campanha etrusca de Catão Liciniano aumentará as suas hipóteses de se tornar cônsul no próximo ano disse Sila. - Desde que se saia bem. Julgo que sim, que tudo lhe correrá de feição.
- Também acho - disse Mário, arrotando. - É uma missão pequena, adequada ao tamanho de um pequenote como Catão Liciniano.
Sila sorriu.
- Francamente, Caio Mário, não me digas que não estás impressionado com Catão Liciniano...
Mário pestanejou.
- E tu, estás?
- Claro que não. - Sila bebera já demasiado vinho: era tempo de mudar para a água. - Entretanto, que vamos nós fazer? Já estamos bem no meio de Setembro e eu tenho de voltar à Campânia muito em breve. Gostaria de aproveitar ao máximo o tempo de que disponho, se tal for possível.
- Não posso crer que Lúcio Júlio se tenha deixado enganar por Egnácio no desfiladeiro de Melfa! - interrompeu o filho de Mário.
- Meu rapaz, tu ainda não tens idade suficiente para entender até que ponto pode ir a imbecilidade dos homens - disse Mário, aprovando o comentário, em vez de, pura e simplesmente, reprovar o facto de o filho ter falado. Virou-se então para Sila. - Não há nada a esperar de Lúcio Júlio, agora que ele voltou pela segunda vez para Teano dos Sidicinos, com um quarto do seu exército morto. Por isso, para que hás-de voltar para lá a correr, Lúcio Cornélio? Para consolar Lúcio Júlio? Imagino que Lúcio Júlio já tem lá muita gente a consolá-lo da derrota. Sugiro que continuemos juntos até Alba - disse ele, terminando com um som muito peculiar, algo que não se percebia bem se era uma gargalhada ou um vómito.
Sila teve um sobressalto.
- Sentes-te bem? - perguntou bruscamente.
Por um momento, as cores das faces de Mário passaram do roxo ao cinza. Depois, num segundo, recuperou; a gargalhada ouviu-se claramente.
- Perfeito, depois de um dia destes, Lúcio Cornélio! Mas como eu ia dizendo, iremos os dois libertar Alba, e depois de Alba, bom, depois de Alba, talvez um passeio pelo Sâmnio, não? Deixaremos que Sexto Júlio ataque Ásculo Picentino, enquanto nós trataremos da saúde ao touro samnita. Atacar cidades é uma chatice, não é nada o meu estilo.
- Soltou um risinho; estava completamente bêbedo. - Que tal aparecermos em Teano dos Sidicinos com um presente chamado Esérnia para Lúcio Júlio? Quão grato ele nos ficaria!
- Sim, Caio Mário, ficar-nos-ia muito grato.
A festa tinha acabado. Sila e o jovem Mário ajudaram o general a deitar-se. Depois, o jovem, lançando a Sila um olhar de poucos amigos, abandonou a tenda do pai. Sila deixou-se ficar junto à cama, examinando aquela montanha flácida que se preparava para dormir.
- Lúcio Cornélio - disse Mário, arrastando as palavras. - Agradecia que me acordasses amanhã de manhã. Quero falar em privado contigo. Esta noite não pode ser. Ah, o vinho, maldito vinho!
- Dorme bem, Caio Mário. Falaremos amanhã de manhã - retorquiu Sila.
Não chegaram, porém, a ter a conversa em privado que Mário desejava. Quando Sila - que também não se sentia muito bem – entrou no compartimento das traseiras da tenda do comando, encontrou a montanha exactamente como a tinha deixado. Intrigado, abeirou-se rapidamente da cama, sentindo-se invadir por um horrível calafrio. Não, Mário não estava morto; a sua respiração ouvia-se mesmo na parte da frente da tenda. Agora, observando de perto, Sila reparou que a mão direita de Mário se agarrava sem força ao lençol, e que os seus olhos esbugalhados estavam dominados por um profundo terror, um terror que raiava a loucura. Desde a face morta ao pé flácido, todo o lado esquerdo de Mário estava paralisado, abatido, imóvel. A gigantesca floresta caíra sem um murmúrio, incapaz de aguentar um golpe de que só se apercebera quando tudo estava já consumado.
- Trombose - murmurou Mário.
Sem querer, Sila começou a acariciar-lhe o cabelo molhado de suor; agora, Mário podia ser amado. Já não era o mesmo Mário.
- Oh, meu pobre amigo! - exclamou Sila, aproximando o seu rosto do de Mário, os seus lábios das lágrimas do general. - Meu pobre amigo! Agora é que é de vez.
Mas a resposta de Mário não demorou. Palavras horrivelmente distorcidas, mas perfeitamente audíveis para quem tinha o rosto colado ao dele.
- Não... ainda... não... é... desta... Sete... vezes... sete... vezes... Sila recuou, como se Mário se tivesse levantado da cama e lhe tivesse dado um murro. Enquanto limpava as suas próprias lágrimas, desatou num riso agudo, paroxístico, um riso que terminou tão bruscamente como começara.
- Se depender de mim, Caio Mário, será de vez agora!
- Não... não é o fim ainda... - retorquiu Mário, os olhos, ainda muito vivos, dominados agora pela ira e não pelo terror. - Sete... vezes...
Num ápice, Sila foi ao compartimento da frente e gritou por ajuda, com tanta força como se o cão de Hades viesse a correr atrás dele.
Só depois de terem saído todos os médicos do exército e de Mário ter sido instalado na cama tão confortavelmente quanto possível é que Sila convocou uma reunião dos oficiais para o fórum do acampamento. Entretanto, dera ordens para que o jovem Mário não entrasse na tenda. O filho de Caio Mário chorava, desolado, à porta da tenda.
Sila preferia realizar a reunião no fórum do acampamento, pois assim os soldados ficariam a pensar que já estava a ser feita alguma coisa, apesar de Mário estar doente; a notícia da doença de Mário espalhara-se num instante, e o jovem Mário não era o único a chorar naquele acampamento.
- Eu assumo o comando a partir de agora - disse, tranquilamente, Sila para os doze oficiais que o rodeavam.
Ninguém protestou.
- Regressamos ao Lácio imediatamente, antes que a notícia da doença de Mário chegue aos ouvidos de Silão ou Mutilo.
Um Marco Cecílio, do ramo Comuto, não se conteve.
- Mas isso é ridículo! - disse ele, indignado. - Estamos a pouco mais de trinta quilómetros de Alba e dizes que temos de voltar para trás?
Irado, Sila fez um gesto largo, abarcando os muitos grupos de soldados que, ao longe, observavam a reunião e choravam a doença do chefe.
- Olha para aqueles homens, idiota! - gritou Sila. - Queres ir para território inimigo com eles? Eles estão sem ânimo! Temos de consolá-los até estarmos em segurança dentro das nossas fronteiras, e depois teremos de encontrar outro general que eles possam amar pelo menos um décimo do que amaram Caio Mário!
Comuto abriu a boca para dizer mais qualquer coisa, mas logo a fechou, e encolheu os ombros, impotente.
- Mais alguém tem algo a dizer? - perguntou Sila. Parecia que não, que ninguém tinha nada a dizer.
- Muito bem. Levantem o acampamento. Já mandei uma mensagem às minhas legiões. Estarão à nossa espera na estrada.
- E Caio Mário? - perguntou Licínio, um oficial muito jovem. A viagem pode matá-lo!
A gargalhada de Sila deixou-os perfeitamente paralisados.
- Caio Mário! Nem com um machado sacrificial o conseguiriam matar! - Reparando na reacção dos homens, Sila resolveu que era melhor controlar-se antes de prosseguir. - Nada temam, meus senhores. Caio Mário garantiu-me há duas horas, nem tanto, que ainda está para durar. E eu acredito nele! Por isso levá-lo-emos connosco. Não faltarão voluntários para transportar a liteira.
- Vamos todos para Roma? - perguntou timidamente o jovem Licínio.
Só agora que conseguira controlar-se é que Sila se apercebia de que todos aqueles homens estavam assustados, desorientados; mas todos eles eram nobres romanos, e isso implicava que questionassem tudo, que avaliassem tudo em função das suas próprias posições. Sim, ele deveria tratá-los tão delicadamente como se trata um gatinho acabado de nascer.
- Não, não vamos todos para Roma - disse Sila, sem qualquer traço de delicadeza na voz. - Quando chegarmos a Carséolos, tu, Marco Cecílio Comuto, assumirás o comando do exército. Levá-lo-ás para o seu acampamento nos arredores de Reate. Eu e o jovem Mário levaremos Caio Mário para Roma, com uma guarda de honra formada por cinco coortes.
- Muito bem, Lúcio Cornélio, se é esse o teu desejo, assim faremos
- disse Comuto.
O olhar que os enigmáticos olhos claros de Sila lhe lançaram perturbou Comuto, tanto como se um milhar de larvas tivessem, de repente, entrado na sua boca.
- Sim, é isso mesmo, Marco Cecílio. O meu desejo é esse, e o meu desejo é para ser cumprido - disse Sila num tom brando, terno.
- E se não cumprires exactamente o que te ordenei, uma coisa te garanto: que desejarás não ter nascido! Entendido? Óptimo! Agora ponham-se a andar!
Quando chegou a Roma a notícia de que Lúcio César derrotara Mutilo em Acerras, os senadores sentiram-se, por um momento, mais animados. Foi mesmo aprovada uma proclamação segundo a qual já não era necessário os cidadãos romanos usarem o sagum. Algum tempo depois, quando chegou a notícia da segunda derrota de Lúcio César no desfiladeiro de Melfa (e o total de perdas romanas nesta batalha era quase idêntico ao número de baixas inimigas em Acerras), ninguém no Senado se atreveu a propor a revogação daquela proclamação: de facto, isso acabaria por dar um maior relevo à derrota sofrida.
- Essa proclamação foi um acto perfeitamente fútil - disse Marco Emílio Princeps Senatus aos poucos senadores que compareceram para discutir a questão. O seu lábio inferior tremia, mas Escauro controlou resolutamente o tique nervoso. - Aquilo que temos de enfrentar é algo de muito mais sério. O que temos de enfrentar é esta verdade: nós, Romanos, estamos a perder esta guerra.
Filipe não estava presente. Nem Quinto Vário, ocupado ainda com os seus julgamentos por traição; agora que abandonara as grandes personalidades como António Orador e Escauro Princeps Senatus, dedicava-se apenas a nomes pouco sonantes - por isso, a lista de vítimas do seu tribunal especial não parava de crescer.
Privado do estímulo da oposição, Escauro ficou sem qualquer vontade de falar, e sentou-se pesadamente no seu banco. Estou demasiado velho, pensou; como conseguirá Mário comandar um teatro de guerra, se tem precisamente a mesma idade que eu?
Para essa questão teve Escauro a resposta no final de Agosto, quando um mensageiro veio informar o Senado de que Caio Mário e as suas tropas tinham vencido Hério Asínio, infligindo aos Marrucinos sete mil mortos, entre os quais o próprio Hério Asínio. Mas era tal o desalento que se apoderara de Roma, que ninguém pôs, sequer, a hipótese de celebrar a vitória; em vez de celebrar, a cidade esperou pelas próximas notícias que, assim criam todos, seriam funestas. E de facto, alguns dias depois, um outro mensageiro apareceu no Senado. Os senadores, inquietos e tensos, sentaram-se para ouvir as más notícias. Entre os antigos cônsules, só Escauro estava presente.
Caio Mário tem o grande prazer de informar o Senado e o Povo de Roma de que, neste mesmo dia, ele e as suas tropas infligiram uma derrota esmagadora a Quinto Popaedius Silão e ao exército marso. Quinze mil marsos morreram, e cinco mil foram feitos prisioneiros.
Caio Mário deseja louvar o inestimável contributo de Lúcio Cornélio Sila para esta vitória, e pede ao Senado e ao Povo de Roma que esperem pela libertação de Alba para dele ouvirem uma descrição mais circunstanciada de todos os acontecimentos. Viva Roma!
À primeira leitura, ninguém acreditou. Sentiu-se um certo alvoroço no Senado, mas nada de especialmente impressionante, pois eram poucos os senadores presentes. Escauro, com a voz trémula, leu de novo a carta. E finalmente se ouviram os vivas. Ao fim de uma hora, toda a cidade de Roma comemorava a vitória. Caio Mário tinha conseguido! Caio Mário tinha acabado com a má sorte de Roma! Caio Mário! Caio Mário! Caio Mário!
- Ele é de novo o herói de toda a gente - disse Escauro ao flamen Dialis, Lúcio Cornélio Mérula, que não perdera uma única reunião do Senado desde que a guerra começara, apesar do elevado número de interdições que tolhiam a sua acção. Isolado entre os seus pares, o flamen Dialis nunca podia usar uma toga; em vez disso, usava um pesado manto de lã, a laena, e, na cabeça, punha um elmo de marfim adornado com os símbolos de Júpiter e encimado por um disco duro de lã trespassado por um cravo de marfim. Isolado entre os seus pares, este flamen Dialis era horrivelmente hirsuto, pois preferira deixar crescer interminavelmente o cabelo e a barba a ter de se submeter à tortura de o barbearem com osso ou bronze. O flamen Dialis não podia ter qualquer contacto físico com o ferro - o que significava que nunca poderia participar numa guerra. Impedido de cumprir os seus deveres militares, Lúcio Cornélio Mérula optara por assistir regularmente às reuniões do Senado.
Ao ouvir o comentário de Escauro, Mérula suspirou.
- Bom, Marco Emílio, por muito patrícios que sejamos, acho que é altura de admitirmos que o nosso sangue é já tão fraco que, por muito que façamos, não conseguimos dar a Roma um herói popular.
- Que disparate! - atirou-lhe Escauro. - Caio Mário é um aborto! - Sem ele, onde estaríamos nós?
- Em Roma, entre verdadeiros Romanos!
- Não estás contente com a vitória dele?
- Claro que estou! Só que preferia que o nome com que começa a carta fosse o de Lúcio Cornélio Sila!
- Sim, Lúcio Cornélio Sila foi um bom pretor, mas nunca ouvi dizer que fosse um Mário no campo de batalha - replicou Mérula.
- Enquanto Caio Mário não deixar o campo de batalha, como poderemos saber? Lúcio Cornélio Sila tem estado com Caio Mário desde... desde a guerra contra Jugurta. E o seu contributo para as vitórias de Caio Mário foi sempre apreciável. Mas é Mário quem fica com os louros.
- Sê justo, Marco Emílio! A carta de Caio Mário refere-se especificamente a Lúcio Sila! Parece-me que Caio Mário o elogia sem a mínima relutância. Por outro lado, não ouvi até agora um único comentário depreciativo em relação ao homem que finalmente atendeu às minhas orações - disse Mérula.
- Um homem atendeu às tuas orações, flamen Dialisl Mas que estranha maneira de pôr a questão!
- Os deuses não respondem directamente às nossas orações, Princeps Senatus. Se estão descontentes, produzem um qualquer fenómeno, e quando actuam, fazem-no por intermédio dos homens.
- Sei isso tão bem como tu! - exclamou Escauro, espicaçado. Eu amo Caio Mário tanto como o odeio. Seja como for, o que eu gostaria é que o nome com que começa a carta fosse o de outra pessoa!
Um dos funcionários do Senado entrou nesse momento na câmara, onde se encontravam apenas Escauro e Mérula.
- Princeps Senatus, uma mensagem urgente de Lúcio Cornélio Sila. Mérula soltou um risinho.
- Aí tens, Marco Emílio! Uma resposta às tuas preces! Uma carta que começa com o nome de Lúcio Sila!
Escauro respondeu-lhe com um olhar contundente, após o que pegou no pequeno rolo e o desdobrou. Estupefacto, reparou que a mensagem tinha apenas duas linhas e que o texto fora cuidadosamente escrito em maiúsculas, com pontos entre as palavras. Sila não queria que houvesse enganos.
CAIO • MÁRIO • ATINGIDO • POR • TROMBOSE • EXÉRCITO • SEGUIU • PARA • REATE • REGRESSO • A • ROMA • IMEDIATAMENTE • COM • MÁRIO • SI LA
Incapaz de dizer fosse o que fosse, Escauro Princeps Senatus passou o rolo a Mérula e deixou-se cair num banco.
- Edepoll - exclamou Mérula, sentando-se também. - Mas quando é que as coisas nos começam a correr de feição nesta guerra? Crês que Caio Mário está morto? É isso que Lúcio Sila quer dizer?
- Acho que ele está vivo, mas incapaz de comandar, e que as suas tropas sabem disso - retorquiu Escauro. Respirou fundo, e gritou: Escriba!
O escriba, que estava no vão da porta, correu, mal ouviu Escauro; o homem ardia de curiosidade.
- Convoca os arautos. Eles que proclamem a notícia de que Caio Mário teve uma trombose, e que o seu lugar-tenente, Lúcio Cornélio Sila, o traz para Roma.
O escriba, boquiaberto e pálido, desapareceu num ápice.
- Achas que fizeste bem, Marco Emílio? - perguntou o flamen Dialis.
- Só o Grande Deus sabe, Mérula, eu não sei. Tudo o que sei é que, se tivesse convocado o Senado para discutir o problema, o Senado aprovaria que a notícia fosse censurada. E com isso não posso pactuar
- retorquiu Escauro com firmeza. Levantou-se imediatamente e disse para o flamen Dialis: - Vem comigo, peço-te. Tenho de ir contar a Júlia o sucedido, antes que os arautos comecem a espalhar a notícia.
Depois de atravessarem a Porta Colina, as cinco coortes que escoltavam a liteira de Mário, com as suas lanças envoltas em ramos de cipreste, e as espadas e adagas viradas ao contrário em sinal de luto, entraram numa praça ornamentada com grinaldas e repleta de uma multidão silenciosa - parecia, ao mesmo tempo, uma festa e um funeral. Uma festa e um funeral desde a Porta Colina ao Fórum Romano, onde se viam flores por todo o lado, e uma multidão parada e silenciosa. As flores celebravam a grande vitória de Caio Mário; a sua derrota causara o silêncio.
Quando a liteira, com as cortinas cuidadosamente corridas, apareceu atrás dos soldados, espalhou-se no Fórum um tremendo murmúrio:
- Ele deve estar vivo! Ele deve estar vivo!
Sila e as suas coortes pararam no baixo Fórum, junto aos rostra, enquanto Caio Mário era levado pela Clivus Argentarius até sua casa. Marco Emílio Escauro Princeps Senatus subiu sozinho ao topo dos rostra.
- O Terceiro Fundador de Roma está vivo, Quirites! - gritou Escauro. - Como sempre, ele virou o curso da guerra a favor de Roma, e a gratidão que Roma lhe dedica nunca será bastante. Façam oferendas para que ele recupere, embora possa acontecer que tenha chegado a hora de Caio Mário nos deixar. O seu estado de saúde é grave. Mas graças a ele, Quirites, o estado da nossa nação melhorou muitíssimo.
Não se ouviu um único viva. Também ninguém chorara. As lágrimas ficariam para o seu funeral, para um momento em que a esperança já não era consentida. Escauro desceu então dos rostra e o povo começou a dispersar.
- Ele não vai morrer - disse Sila, com um ar muito cansado.
- Nunca pensei que morresse. Ainda não foi cônsul sete vezes, por isso não se vai deixar morrer.
- Foi exactamente assim que ele falou.
- O quê? Ele ainda consegue falar?
- Um pouco. A fala mantém-se intacta. Mário tem apenas alguma dificuldade em deitar as palavras cá para fora. Um dos médicos do exército disse-me que era assim, porque o lado afectado fora o esquerdo, e não o direito. Porque é assim, não sei. Aliás o médico também não sabe: limita-se a verificar que as afecções cerebrais produzem normalmente tais efeitos. Se a paralisia é do lado direito, o doente perde a capacidade de falar. Se é do lado esquerdo, essa capacidade não é afectada.
- Extraordinário! Porque será que os médicos da nossa cidade não nos dizem coisas dessas? - perguntou Escauro.
- Provavelmente porque não vêem muitas cabeças vitimadas por tromboses.
- Claro. - Escauro pegou afectuosamente no braço de Sila. - Vem a minha casa, Lúcio Cornélio. Bebes um copo e contas-me tudo o que aconteceu. Pensava que continuavas com Lúcio Júlio na Campânia.
Por muito que se esforçasse, Sila não poderia deixar de se sentir retraído perante tal convite.
- Preferia que fôssemos para minha casa, Marco Emílio. Estou ainda com a armadura posta e está calor.
Escauro suspirou.
- É tempo de esquecermos o que sucedeu há já tanto tempo disse ele, sinceramente. - A minha mulher está mais velha, mais sossegada, e muitíssimo ocupada com as crianças.
- Está bem. Vamos para tua casa.
Cecília Dalmática estava à espera deles no átrio, ansiosa por saber como estava Caio Mário. Agora, com vinte e oito anos de idade, tornara-se ainda mais bela; uma espectacular beleza morena, ainda que os olhos com que fitou Sila tivessem o cinzento do mar num dia de tempestade.
Não escapou a Sila que, embora Escauro estivesse radiante com a sincera afeição da esposa, Cecília Dalmática tinha medo do marido.
- Bem-vindo, Lúcio Cornélio - disse ela, num tom inexpressivo.
- Obrigado, Cecília Dalmática.
- As bebidas estão já no teu escritório, marido - disse ela a Escauro, no mesmo tom inexpressivo. - É verdade que Caio Mário vai morrer?
Sila respondeu-lhe, sorrindo sem dificuldade, pois vencera já o constrangimento inicial. Era muito diferente vê-la ali e vê-la no jantar em casa de Mário.
- Não, Cecília Dalmática. Posso garantir-te que ainda não é desta que perdemos Caio Mário.
Ela suspirou, aliviada.
- Bom, nesse caso, deixo-vos.
Os dois homens ficaram no átrio até ela desaparecer, após o que Escauro conduziu Sila ao seu tablinum.
- Queres comandar o teatro de guerra marso? - perguntou Escauro, servindo Sila.
- Duvido que o Senado me dê esse comando, Princeps Senatus.
- Para ser franco, essa é também a minha opinião. Mas, mesmo assim, queres esse comando?
- Não, não quero. A minha participação na guerra, até agora, tem tido por base a Campânia, à excepção deste episódio com Caio Mário. E, de facto, eu preferia permanecer no teatro que conheço. Lúcio Júlio está à minha espera - disse Sila, que sabia muito bem o que pretendia fazer quando fossem nomeados os novos cônsules, mas não queria, de modo nenhum, partilhar os seus planos com Escauro.
- São tropas tuas as que escoltam Mário?
- Sim. Mandei as outras quinze coortes directamente para a Campânia. Levarei as restantes comigo amanhã.
- Ah, gostaria muito que disputasses o cargo de cônsul! - disse Escauro. - Há meia geração que não temos cônsules em condições! Bem pelo contrário!
- Disputarei o cargo de cônsul com Quinto Pompeu Rufo, no final do próximo ano - retorquiu Sila com firmeza.
- Foi o que me disseram. É pena.
- Este ano não conseguiria vencer a eleição, Marco Emílio.
- Conseguias, se eu usasse a minha influência. Sila pôs um sorriso amargo.
- A oferta vem demasiado tarde. Estarei demasiado ocupado na Campânia para poder vestir a toga cândida. Além disso, não saberia antecipadamente quem seria o meu colega, ao passo que Quinto Pompeu e eu concorreremos como uma equipa. A minha filha vai casar-se com o filho dele.
- Nesse caso, retiro a oferta. Tens razão. Roma vai ter de aguentar o que lhe calhar em sorte para o ano que vem. Será muito agradável ver dois parentes no consulado no ano seguinte. A harmonia na presidência é uma coisa maravilhosa. E tu dominarás Quinto Pompeu tão facilmente quanto ele aceitará o teu domínio.
- É o que me parece, Princeps Senatus. Lúcio Júlio só me poderá dispensar na época das eleições, pois nessa altura tenciona abrandar as hostilidades, a fim de regressar a Roma. Julgo que casarei a minha filha com o filho de Quinto Pompeu, em Dezembro deste ano, apesar de ela não ter ainda dezoito anos. Ela está ansiosa por casar - mentiu calmamente Sila, sabendo perfeitamente que a filha contrariaria as suas intenções, mas confiando, como sempre, na deusa Fortuna.
Quando chegou a casa, passadas duas horas, pôde confirmar que a atitude de Cornélia Sila não se alterara minimamente. Élia anunciou-lhe, de facto, que Cornélia Sila tinha tentado fugir de casa.
- Felizmente que a criada dela ficou demasiado assustada e contou-me tudo - acrescentou Élia num tom triste, pois adorava a enteada e daria tudo para que ela casasse com o jovem que realmente amava: o filho de Caio Mário.
- Mas onde é que ela pensou que ia? Dar uma volta até à guerra?
- perguntou Sila.
- Não faço ideia, Lúcio Cornélio. Creio que ela também não fazia a mínima ideia. Foi apenas um impulso, julgo eu.
- Então quanto mais depressa for o casamento, melhor - disse Sila, num tom severo. - Vou falar com ela imediatamente.
- Aqui? No teu escritório?
- Aqui, Élia. No meu escritório.
Sabendo que o marido não gostava dela, nem gostava da sua simpatia por Cornélia Sila, Élia fitou o marido com um olhar que era um misto de medo e compaixão.
- Por favor, Lúcio Cornélio, não sejas demasiado severo com ela! Um pedido que Sila ignorou, virando-lhe as costas.
Cornélia Sila foi levada à presença do pai por dois escravos da casa: dir-se-ia refém na sua própria casa.
- Podem ir - disse ele aos guardas da filha. Friamente, fitou o rosto revoltado da filha, aquele rosto de uma beleza tão estranha, a beleza dos traços da mãe sobre a tez do pai; os olhos, porém, eram só dela, enormes, de um azul muito intenso. - Que tens a dizer em tua defesa, rapariga?
- Estou pronta para tudo, pai. Podes espancar-me até à morte. Tanto me faz! Porque não casarei com Quinto Pompeu, e não me podes obrigar!
- Casarás com Quinto Pompeu, nem que para isso tenha de te amarrar e drogar, minha filha - disse-lhe Sila, no tom brando que, nele, anunciava a violência.
Porém, apesar de todos os seus choros e fúrias, Cornélia era muito mais filha de Sila do que de Julilla. Naquele instante, enfrentando o pai, mantinha os pés bem firmes no chão, como se aguardasse a todo o momento um golpe demolidor. E, nos seus olhos, brilhavam frias safiras.
- Não casarei com Quinto Pompeu!
- Casarás, sim, Cornélia! Por todos os deuses, garanto-te que casarás!
- Não casarei!
Um atitude tão ousada teria desencadeado normalmente uma fúria incontrolável em Sila; mas agora, talvez por ter encontrado no rosto de Cornélia algo que lhe fazia recordar o falecido filho, Sila sentia-se incapaz de dar largas à sua ira. Limitou-se a bufar, ameaçador.
- Filha, sabes quem é Pietas? - perguntou.
- Claro que sei - respondeu Cornélia Sila, desconfiada. - Pietas é o Dever.
- Explica-te melhor, Cornélia.
- É a deusa do Dever.
- Que espécie de dever?
- Todos os deveres.
- Incluindo os deveres que os filhos têm perante os pais, não é verdade? - perguntou meigamente Sila.
- Sim - respondeu ela.
- Desafiar o paterfamilias é uma coisa terrível, Cornélia. É algo que ofende a deusa Pietas. E, por outro lado, as nossas leis dizem claramente que deves obedecer ao chefe de família. Eu sou o paterfamilias, Cornélia - disse Sila com uma expressão grave.
- O meu primeiro dever é obedecer a mim mesma - retorquiu ela heroicamente.
Os lábios de Sila começaram a tremer.
- Nada disso, minha filha. O teu primeiro dever é obedeceres ao teu pai. Tu estás nas minhas mãos.
- Esteja ou não nas tuas mãos, pai, uma coisa é certa: eu não trairei os meus sentimentos!
Os lábios deixaram de tremer, abriram-se; Sila desatou num gargalhar tremendo.
- Ah, vai-te embora, Cornélia! - disse ele quando pôde, e, rindo ainda, gritou-lhe: - Cumprirás o teu dever ou vender-te-ei como escrava! Nada me impedirá de fazê-lo, minha filha!
- Escrava já eu sou, pai! - retorquiu ela.
Que magnífico soldado ela teria dado!, pensou Sila. Já mais tranquilo, Sila sentou-se à secretária e começou a escrever mais uma carta a um tal Públio Rutílio Rufo, cidadão grego de Esmirna.
E foi precisamente assim que as coisas se passaram, Públio Rutílio. O estuporzinho obrigou-me a recuar! E deixou-me sem outra alternativa que não fosse ameaçá-la. E se cumpro tais ameaças, estarei a prejudicar os meus planos para disputar as eleições na companhia de Quinto Pompeu. A rapariga de nada me serve morta ou escrava - e o jovem Quinto Pompeu estará interessado em casar com uma mulher que só depois de amarrada e drogada comparece à cerimónia? Que hei-de fazer? Faço-te esta pergunta com a máxima gravidade e muito, muito desespero - que hei-de fazer? Lembro-me de que foste tu quem resolveu o dilema de Marco Aurélio Cota quando teve de escolher marido para Aurélio. Por isso, aqui tens outro dilema marital para resolver, meu admirado e estimado conselheiro.
Admito que as coisas aqui estão num estado tal que eu nem sequer teria parado para te escrever, se não fosse ver-me nestes assados com a minha filha. Mas agora já comecei - e na esperança de que encontres, entretanto, uma solução para o meu dilema, aproveito para te contar o que se tem passado ultimamente.
Quando deixei o nosso Princeps Senatus, ele ia também escrever-te; não preciso, por isso, de te narrar a terrível catástrofe que atingiu Caio Mário. Limitar-me-ei a manifestar os meus medos e esperanças em relação ao futuro; pelo menos, posso esperar vir a vestir a minha toga praetexta e sentar-me na minha cadeira curul quando for cônsul, já que o Senado determinou que os seus magistrados curuis se vestissem a preceito no seguimento da vitória de Caio Mário (dele e minha!) sobre os Marsos de Silão. Espero que isto signifique o fim de todos os gestos idiotas e vazios de luto e alarme.
Parece-me muitíssimo provável que os cônsules do próximo ano sejam Lúcio Pórcio Catão Liciniano e - mas que horrível perspectiva!
- Cneu Pompeu Estrabão. Que par mais horrendo! Um eu de gato cheio de pregas e um bárbaro arrogante que está sempre a olhar para a cana do nariz ou, pelo menos, assim parece. Confesso que, por mais que tente, não consigo entender como, ou por que razões, certos homens chegam a cônsules. É evidente que não basta ter sido um bom pretor, urbano ou não. Ou ter uma folha de serviços militar tão extensa e ilustre como a do rei Ptolemeu. Estou a chegar à conclusão de que o único factor realmente importante é alinhar com a Ordo Equester. Se os cavaleiros não gostam de uma pessoa, nem que essa pessoa seja Rómulo não terá nunca uma oportunidade nas eleições consulares. Os cavaleiros sentaram Caio Mário na cadeira de cônsul por seis vezes, três das quais in absentia. E continuam a gostar dele! Ele é bom nos negócios. Claro, também apreciam que um homem tenha antepassados dignos - mas não o suficiente para votarem nele; a menos que ele lhes tenha dado bom dinheiro, ou prometido todo o tipo de atractivos, como sejam empréstimos mais fáceis ou a divulgação de informações confidenciais sobre tudo o que o Senado tencione fazer.
Eu devia ter sido cônsul há muitos anos atrás. Se tivesse sido pretor na altura certa. Sim, foi o nosso Princeps Senatus quem me impediu. Mas fê-lo, aliciando os cavaleiros; e rebanhos inteiros de cavaleiros foram atrás dele, balindo como cordeirinhos. É por isso que gosto cada vez menos da Ordo Equester. Pergunto a mim mesmo se não seria uma maravilha poder fazer-lhes o que muito bem me apetecesse. Ah, o que eu os faria sofrer, Públio Rutílio! Também tu serias vingado.
A propósito de Pompeu Estrabão. O homem não se tem cansado de contar, a toda a gente, em Roma, os seus feitos gloriosos no Piceno. Em minha opinião, o verdadeiro responsável pelos seus relativamente desprezíveis êxitos é Públio Sulpício, que trouxe um exército da Gália Italiana e infligiu uma tremenda derrota a uma força conjunta de pincentinos e pelignos, antes de ter qualquer contacto com Pompeu Estrabão. O nosso amigo vesgo, esse grande estupor, passou o Verão no maior conforto, fechado a sete chaves em Firmo Picentino. E agora que abandonou a residência de Verão, ei-lo reivindicando para si todos os louros pela vitória sobre Tito Lafrénio, que morreu com os seus homens no campo de batalha. De Públio Sulpício (que estava lá e que fez a maior parte do trabalho), nada diz. E como se isso não chegasse, os agentes de Pompeu Estrabão em Roma descrevem a sua batalha como qualquer coisa de muito mais importante que as acções de Caio Mário contra os Marrucinos e os Marsos.
A guerra está a um passo da reviravolta. Sinto-o.
Estou certo de que não é preciso descrever-te, em pormenor, a nova lei de alargamento da cidadania que Júlio César tenciona promulgar em Dezembro. A carta de Escauro não deve falar de outra coisa. Dei a notícia ao Princeps Senatus há apenas algumas horas, pensando que...
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