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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COROA DE ERVA - P.3 / Colleen McCullough
COROA DE ERVA - P.3 / Colleen McCullough

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Quando deixei o nosso Princeps Senatus, ele ia também escrever-te; não preciso, por isso, de te narrar a terrível catástrofe que atingiu Caio Mário. Limitar-me-ei a manifestar os meus medos e esperanças em relação ao futuro; pelo menos, posso esperar vir a vestir a minha toga praetexta e sentar-me na minha cadeira curul quando for cônsul, já que o Senado determinou que os seus magistrados curuis se vestissem a preceito no seguimento da vitória de Caio Mário (dele e minha!) sobre os Marsos de Silão. Espero que isto signifique o fim de todos os gestos idiotas e vazios de luto e alarme.

Parece-me muitíssimo provável que os cônsules do próximo ano sejam Lúcio Pórcio Catão Liciniano e - mas que horrível perspectiva!

- Cneu Pompeu Estrabão. Que par mais horrendo! Um eu de gato cheio de pregas e um bárbaro arrogante que está sempre a olhar para a cana do nariz ou, pelo menos, assim parece. Confesso que, por mais que tente, não consigo entender como, ou por que razões, certos homens chegam a cônsules. É evidente que não basta ter sido um bom pretor, urbano ou não. Ou ter uma folha de serviços militar tão extensa e ilustre como a do rei Ptolemeu. Estou a chegar à conclusão de que o único factor realmente importante é alinhar com a Ordo Equester. Se os cavaleiros não gostam de uma pessoa, nem que essa pessoa seja Rómulo não terá nunca uma oportunidade nas eleições consulares. Os cavaleiros sentaram Caio Mário na cadeira de cônsul por seis vezes, três das quais in absentia. E continuam a gostar dele! Ele é bom nos negócios. Claro, também apreciam que um homem tenha antepassados dignos - mas não o suficiente para votarem nele; a menos que ele lhes tenha dado bom dinheiro, ou prometido todo o tipo de atractivos, como sejam empréstimos mais fáceis ou a divulgação de informações confidenciais sobre tudo o que o Senado tencione fazer.

 

 

 

 

Eu devia ter sido cônsul há muitos anos atrás. Se tivesse sido pretor na altura certa. Sim, foi o nosso Princeps Senatus quem me impediu. Mas fê-lo, aliciando os cavaleiros; e rebanhos inteiros de cavaleiros foram atrás dele, balindo como cordeirinhos. É por isso que gosto cada vez menos da Ordo Equester. Pergunto a mim mesmo se não seria uma maravilha poder fazer-lhes o que muito bem me apetecesse. Ah, o que eu os faria sofrer, Públio Rutílio! Também tu serias vingado.

A propósito de Pompeu Estrabão. O homem não se tem cansado de contar, a toda a gente, em Roma, os seus feitos gloriosos no Piceno. Em minha opinião, o verdadeiro responsável pelos seus relativamente desprezíveis êxitos é Públio Sulpício, que trouxe um exército da Gália Italiana e infligiu uma tremenda derrota a uma força conjunta de pincentinos e pelignos, antes de ter qualquer contacto com Pompeu Estrabão. O nosso amigo vesgo, esse grande estupor, passou o Verão no maior conforto, fechado a sete chaves em Firmo Picentino. E agora que abandonou a residência de Verão, ei-lo reivindicando para si todos os louros pela vitória sobre Tito Lafrénio, que morreu com os seus homens no campo de batalha. De Públio Sulpício (que estava lá e que fez a maior parte do trabalho), nada diz. E como se isso não chegasse, os agentes de Pompeu Estrabão em Roma descrevem a sua batalha como qualquer coisa de muito mais importante que as acções de Caio Mário contra os Marrucinos e os Marsos.

A guerra está a um passo da reviravolta. Sinto-o.

Estou certo de que não é preciso descrever-te, em pormenor, a nova lei de alargamento da cidadania que Júlio César tenciona promulgar em Dezembro. A carta de Escauro não deve falar de outra coisa. Dei a notícia ao Princeps Senatus há apenas algumas horas, pensando que ele ia ficar furibundo. Em vez disso, manifestou o maior contentamento. Acha que a ideia tem muito mérito, desde que a cidadania não seja alargada àqueles que pegaram em armas contra Roma. Crê que os conflitos na Etrúria e na Úmbria se esbaterão, a partir do momento em que todos os Etruscos e Úmbrios tenham direito a voto. Por muito que tentasse, não consegui convencê-lo de que a lei de Lúcio Júlio vai ser apenas o princípio - e de que, dentro de pouco tempo, todos os Italianos serão cidadãos romanos, mesmo que nas suas espadas haja ainda restos de sangue dos nossos soldados. Por isso te pergunto, Públio Rutílio: para que serve esta guerra? Para que lutamos nós?

Escreve depressa. Diz-me como hei-de lidar com raparigas.

Sila incluiu esta carta na encomenda enviada pelo Princeps Senatus para Esmirna, por correio especial. O que significava que Rutílio Rufo receberia a encomenda passados três ou quatro mercados, e que a sua resposta, trazida pelo mesmo correio, demoraria a chegar a Roma praticamente o mesmo tempo.

De facto, em fins de Novembro, Sila recebeu a resposta de Rutílio Rufo. Continuava na Campânia, apoiando o convalescente Lúcio César, a quem o Senado, sempre bajulador, concedera um triunfo pela vitória sobre Mutilo em Acerras; o Senado preferiu ignorar o facto de que os dois exércitos tinham regressado a Acerras e de que, por altura do decreto relativo ao triunfo, travavam novas batalhas. Acentuara o Senado que a razão para conceder o triunfo era apenas uma: o facto de as tropas de Lúcio César o terem aclamado imperador no campo de batalha. Quando Pompeu Estrabão soube do caso, houve tal confusão em Roma, provocada obviamente pelos seus agentes, que o Senado se viu forçado a decretar, também, um triunfo para Pompeu Estrabão. Até onde desceremos?, perguntava Sila para si mesmo. É que triunfar sobre Italianos não é triunfo nenhum.

Aquela honra simbólica não provocou qualquer excitação em Lúcio César. Quando Sila lhe perguntou como queria que as cerimónias fossem organizadas, Lúcio César pôs uma expressão de surpresa, e respondeu:

- Como não há despojos, não é preciso organizar nada. Limitar-me-ei a conduzir o meu exército pelas ruas de Roma. Nada mais.

O hiato provocado pelo Inverno começara, entretanto, e Acerras não parecia muito perturbada com a presença de dois poderosos exércitos às suas portas. Enquanto Lúcio César fazia os primeiros rascunhos da sua lei de alargamento da cidadania, Sila seguiu para Cápua, a fim de ajudar Catulo César e Metelo Pio, o Bacorinho, a reorganizar as legiões, mais do que dizimadas pela segunda acção no desfiladeiro de Melfa; e foi em Cápua que recebeu a carta de Rutílio Rufo.

Meu caro Lúcio Cornélio, porque será que os pais nunca sabem lidar com as suas filhas? Francamente! Não que eu tenha tido problemas com a minha filha. Longe disso. Quando a casei com Lúcio Calpúrnio Pisão, ela estava perfeitamente apaixonada. Sem dúvida porque não era nenhuma beldade e o seu dote erafracote; a sua grande preocupação era que o tatá lhe arranjasse um marido, fosse ele qual fosse. Se lhe tivesse proposto aquele repelente filho de Sexto Perquitieno, estou certo de que teria desfalecido. De modo que, para ela, Lúcio Pisão deve ter parecido um presente dos deuses. Desde então, não tem parado de me agradecer o que fiz por ela. E a união tem sido tão feliz, que parece que a próxima geração planeia fazer o mesmo - a filha do meu filho casará com o filho da minha filha logo que tenham idade. Sim, sim, sei muito bem o que o velho avô César costumava dizer, mas estes serão os primeiros primos direitos a casar em ambas as famílias. Terão magníficas criancinhas.

A resposta ao teu dilema, Lúcio Cornélio, é ridiculamente simples. Tudo o que precisas é da conivência de Élia, pois tens de dar a impressão de que não estás a mexer em nenhum cordelinho. Deixa que Élia sugira à rapariga que mudaste de ideias acerca do casamento, que estás a pensar em procurar-lhe outro marido. Élia deve referir alguns nomes, nomes de criaturas absolutamente repulsivas, como o filho de Sexto Perquitieno. A rapariga ficará, no mínimo, horrorizada.

O estado de saúde de Caio Mário facilitará as coisas, pois o jovem Mário não poderá casar-se enquanto o paterfamilias se encontrar incapacitado. É essencial que Cornélia Sila tenha a oportunidade de se encontrar em privado com o jovem Mário. Depois de saber que o seu marido poderá ser muito pior que o jovem Quinto Pompeu. Deixa que Élia vá com a rapariga visitar Júlia numa altura em que o jovem Mário esteja em casa, e que não impeça de modo nenhum que os dois se encontrem - claro, seria preferível que Júlia soubesse o que se passa!

Agora repara: o filho de Caio Mário é um rapaz muito estragado, demasiado mimado, além do que só pensa em si mesmo. Acredita: nada do que ele faça ou diga será capaz de prender a tua fogosa filha. Para além da doença do pai, o nosso jovem só pensa numa coisa: saber quem será o comandante que terá a honra de o incluir na sua equipa de cadetes. Ele é suficientemente inteligente para perceber que, seja qual for esse comandante, não terá um décimo das oportunidades que teve com o pai - embora alguns comandantes sejam mais indulgentes que outros. Pelo que me diz Escauro na sua carta, parece que ninguém o quer, que ninguém o quer convidar pessoalmente, e que a sua sorte depende inteiramente dos caprichos da comissão contubernalis. A minha pequena rede de informadores diz-me que o jovem Mário se tem entregue, e de que maneira, a dois prazeres chamados Mulheres e Vinho, não necessariamente por esta ordem. Mais uma razão para ele não ficar doido de amores por Cornélia Sila, uma relíquia da sua infância, uma menina por quem sentia alguma inclinação quando tinha quinze ou dezasseis anos e de cuja simplicidade de carácter abusou, provavelmente, sem que ela tivesse dado por isso. Ele não está muito diferente do que era então. A diferença é que ele pensa que está muito diferente, e ela pensa que não. Crê no que te digo, Lúcio Cornélio: ele cometerá todas as asneiras possíveis e ficará doido com ela, mas de irritação.

Depois desta entrevista com o jovem Mário, pede a Élia que lhe diga uma boa série de vezes que, em sua opinião, tu és muito capaz de desistir da aliança com Pompeu Rufo. E que precisas do apoio de um cavaleiro muito rico.

E agora vou contar-te um segredo inestimável acerca das mulheres, Lúcio Cornélio. Uma mulher pode ter decidido, com toda a sua força, que não quer determinado pretendente - mas se esse pretendente se retrai subitamente pelo simples facto de ela olhar com desprezo para o seu traje, uma coisa sucederá pela certa: ela acabará inevitavelmente por atentar no peixe que, de repente, se afasta a toda a pressa.

E afinal... a tua filha ainda nem sequer viu o peixe que a espera! Élia terá de inventar um motivo importante para convencer Cornélia Sila a estar presente num jantar em casa de Quinto Pompeu Rufo o pai está em Roma de licença, ou a mãe está doente, enfim uma história qualquer. Dessa forma, jantando na presença do seu desprezado peixe, Cornélia Sila terá uma oportunidade única de engolir a sua antipatia. Garanto-te, Lúcio Cornélio, que ela concordará com o jantar. E como eu conheço o peixe em questão, tenho a certeza de que a tua filha mudará de ideias. Ele é exactamente o tipo de homem capaz de a atrair. Porque ela será sempre mais esperta do que ele, e não terá a menor dificuldade em impor-se como chefe da casa. Irresistível! E tão parecida contigo... nalguns aspectos.

Confuso, Sila suspendeu a leitura. Simples! Que descaramento chamar simples a um plano tão tortuoso! As manobras militares eram menos complexas! Mas valia a pena tentar. Tentaria tudo. Um pouco mais animado, e ansioso por saber que mais dizia Rutílio Rufo, Sila prosseguiu a leitura da carta.

As coisas não correm bem no meu pequeno canto do nosso vasto mundo. Suponho que em Roma ninguém agora tem tempo ou interesse para acompanhar os acontecimentos da Ásia Menor. Mas já deve ter chegado um relatório sobre o assunto ao Senado e o nosso Princeps Senatus já o deve ter visto. Também deve ter visto a carta que lhe mandei por este mesmo correio.

No trono da Bitínia está um fantoche do Ponto. Sim, o rei Mitridates invadiu a Bitínia mal Roma virou as costas! Aparentemente, o chefe da invasão foi Sócrates, o irmão mais novo do rei Nicomedes III - e por isso a Bitínia continua a proclamar-se um país livre, depois de ter trocado o rei Nicomedes pelo rei Sócrates. Um rei chamado Sócrates? Que contradição! És capaz de imaginar Sócrates de Atenas coroado rei? Bom, seja como for, o certo é que na Província da Ásia ninguém tem ilusões quanto à ”liberdade” da Bitínia. A Bitínia é agora um feudo de Mitridates do Ponto, o qual deve estar furioso com o comportamento pouco empenhado do rei Sócrates! E que Sócrates deixou fugir Nicomedes! Apesar de velho, Nicomedes atravessou o Helesponto com a agilidade de uma cabra; corre, aqui em Esmirna, o boato de que está a caminho de Roma, afim de se queixar da perda do trono, onde o Senado e o Povo de Roma lhe permitiram que se sentasse. Vê-lo-ás, em Roma, antes do fim do ano, carregado com uma grande parte do conteúdo do tesouro bitiniano.

E como se um fantoche não bastasse, o rei do Ponto tratou de instalar outro, desta feita no trono da Capadócia. Mitridates e Tigranes marcharam juntos sobre Eusebeia Mazaca e deram o trono a mais um filho de Mitridates, outro Ariárates, mas provavelmente não será o Ariárates com que Caio Mário falou. De qualquer modo, o rei Ariobarzanes mostrou-se tão ágil como Nicomedes da Bitínia. Também fugiu, muito antes de os seus perseguidores chegarem a Eusebeia Mazaca. E estará em Roma pouco depois de Nicomedes, e também ele levará a sua petição. Infelizmente para ele, é muito mais pobre que Nicomedes!

Lúcio Cornélio, estou convencido de que estão para acontecer graves conflitos na nossa Província da Ásia. E há muita gente na região que não esqueceu o apogeu dos publicani. Muita gente que odeia o nome de Roma. Por isso, o rei Mitridates tem despertado simpatias nalguns meios. Receio que a Província da Ásia o venha a receber de braços abertos, se (ou melhor, quando) ele der um passo para a ocupar.

Claro, que estes problemas não te compete a ti resolvê-los. Cairão todos sobre os ombros de Escauro. E Escauro não tem passado bem, diz-me ele na sua carta.

Por ora, estarás fortemente envolvido nos teus jogos guerreiros da Campânia. Concordo contigo, as coisas estão a mudar. Pobres Italianos! Cidadãos ou não, ninguém os poderá esquecer durante muitas gerações.

Vai-me contando a evolução da tua filha. Prevejo que o Amor acabará por triunfar.

Em vez de explicar o plano de Públio Rutílio Rufo a Élia, Sila limitou-se a mandar-lhe essa parte da carta, acompanhada de uma nota em que lhe dizia para fazer exactamente como Rutílio Rufo aconselhava - desde que percebesse alguma coisa de tão complicada trama.

Mas Élia não teve dificuldade em entender o plano de Rutílio Rufo. Quando Sila chegou a Roma com Lúcio César, reinava em sua casa a maior harmonia; e quanto a Cornélia, mostrava-se radiante, afectuosa, e não se cansava de falar do seu casamento.

- Tudo se passou como Públio Rutílio previra - disse Élia, muito feliz. - O jovem Mário portou-se com ela como um verdadeiro brutamontes. Pobrezinha! Quando fomos a casa de Caio Mário, ia cheia de amor e compaixão; estava certa de que Caio Mário cairia nos seus braços e choraria no seu ombro. Em vez disso, encontrou-o furibundo porque a comissão de cadetes do Senado lhe ordenou que permanecesse sob o mesmo comando. Possivelmente o general que substituirá Caio Mário será um dos novos cônsules, e o jovem Mário odeia-os a ambos. Creio que tentou que o pusessem sob as tuas ordens, mas a comissão respondeu-lhe friamente que não.

- Teria uma recepção bem mais fria se o tivessem mandado para mim - disse Sila num tom severo.

- Creio que o que mais o irrita é o facto de ninguém o querer. Claro que ele atribui à impopularidade do pai o que lhe está a acontecer, mas julgo que, no fundo, suspeita que a verdadeira razão são as suas próprias deficiências. - Élia soltou um risinho, algo triunfante. - Ele não queria a compreensão de Cornélia, nem tão pouco a adoração adolescente que ela nutria por ele. Por isso, a crer no que me disse Cornélia, portou-se muito mal com ela.

- E assim Cornélia decidiu casar-se com Quinto Pompeu.

- Não foi uma decisão imediata, Lúcio Cornélio! Primeiro, deixei-a chorar durante dois dias. Depois, disse-lhe que talvez gostasse de ir jantar a casa de Quinto Pompeu,. agora que não havia qualquer pressão da tua parte para que ela casasse com o filho dele. Já agora ficava a conhecê-lo. Satisfazia a sua curiosidade.

Sila sorria.

- Que aconteceu?

- Viram-se e gostaram do que viram. Durante o jantar ficaram um em frente do outro e falaram todo o tempo como se fossem velhos amigos. - Élia estava tão feliz que até pegou na mão do marido e a apertou. - Fizeste bem em não contar nada a Quinto Pompeu acerca da resistência dela em relação ao casamento. Toda a família ficou encantada com Cornélia.

Sila afastou a mão.

- O casamento está marcado?

Com uma expressão triste, Élia acenou que sim.

- Logo a seguir às eleições. - Com a desolação estampada no rosto, Élia olhou Sila nos olhos. - Porque não gostas de mim, Lúcio Cornélio? Eu faço tudo para que me queiras!

Sila afastou-se imediatamente, com cara de poucos amigos:

- Francamente, Élia, não gosto de ti simplesmente porque me aborreces - retorquiu, e desapareceu.

Élia ficou onde estava, imóvel, saboreando uma alegria vaga: sim, ele não tinha dito que se queria divorciar. Sim, o pão bolorento era preferível a pão nenhum.

A notícia de que Esérnia se tinha finalmente rendido aos Samnitas espalhou-se, pouco depois de Lúcio César e Sila terem chegado a Roma. A cidade fora vencida pela fome. Capitulara depois de ter comido todos os cães, gatos, mulas, burros, cavalos e cabras que havia dentro das muralhas. Marco Cláudio Marcelo entregara Esérnia pessoalmente, após o que desaparecera, ninguém sabia para onde. Excepto os Samnitas.

- Está morto - opiniou Lúcio César.

- Provavelmente tens razão - disse Sila.

Lúcio César, como se esperava, não voltaria ao campo de batalha. As suas funções como cônsul estavam a chegar ao fim e tencionava candidatar-se ao lugar de censor na Primavera; por isso, não tinha qualquer interesse em permanecer como lugar-tenente do novo comandante-chefe do teatro do Sul.

Os novos tribunos da plebe eram personalidades mais fortes do que as dos anos anteriores, talvez porque toda a Roma estava preocupada com a lei do alargamento da cidadania que Lúcio César, ao que constava, iria apresentar; no entanto, a maior parte desses tribunos defendia um tratamento tolerante dos Italianos. O Presidente do Colégio era um Lúcio Calpúrnio Pisão que tinha um segundo apelido, Frugi, que distinguia o seu ramo do clã Calpúrnio Pisão do ramo que, através do casamento, se tinha unido a Públio Rutílio Rufo, e que usava como segundo apelido Cesonino. Homem poderoso, e com tendências pronunciadamente conservadoras, Pisão Frugi anunciara que, em princípio, se oporia aos mais radicais dos tribunos da plebe, Caio Papírio Carbão e Marco Pláucio Silvano, se eles tentassem ignorar as limitações da lei de Lúcio César e quisessem dar a cidadania aos Italianos activamente envolvidos na guerra; e que concordara em não se opor à lei de Lúcio César graças às persuasivas palavras de Escauro e outros homens que respeitava. O interesse pelas coisas do Fórum, praticamente inexistente desde o início da guerra, começava a reviver; o ano que se avizinhava prometia interessantes lutas políticas.

As eleições centuriais, pelo menos ao nível consular, eram muito menos animadoras. Os dois principais candidatos a cônsules eram dados como vencedores dois meses antes das eleições; como seria de esperar, foram eles que venceram as eleições. O facto de Cneu Pompeu Estrabão ter ficado como cônsul sénior e Lúcio Pórcio Catão Liciniano como cônsul júnior devia-se, segundo opinião generalizada, ao triunfo que Pompeu Estrabão celebrara poucos dias antes das eleições.

- Esses triunfos são patéticos - disse Escauro Princeps Senatus a Lúcio Cornélio Sila. - Primeiro, foi Lúcio Júlio, agora Cneu Pompeu! Francamente! Sinto-me mesmo velho.

E de facto estava velho, pensou Sila, subitamente alarmado; se a ausência de Caio Mário levaria a uma actividade letárgica e sem imaginação no campo de batalha, o que sucederia nesse outro campo de batalha chamado Fórum Romano, se Marco Emílio Escauro desaparecesse? Quem trataria, por exemplo, dos negócios estrangeiros, desses assuntos vulgares, mas ao mesmo tempo muito importantes, com que Roma se via constantemente confrontada? E quem poria na ordem os imbecis e presumidos como Filipe ou os arrogantes novos-ricos, como Quinto Vário? Quem enfrentaria todas as situações sem temor, seguro da sua capacidade e superioridade? A verdade é que o abatimento de Escauro era notório, sobretudo desde que Mário sofrera a segunda trombose; apesar de terem passado quarenta anos em brigas constantes, Escauro e Caio precisavam um do outro.

- Marco Emílio, tem cuidado contigo! - disse Sila com súbita urgência, surpreendido por uma premonição.

Os olhos verdes de Escauro pestanejaram.

- Mas todos nós temos de ir, mais tarde ou mais cedo!

- É verdade. Mas no teu caso, ainda é cedo. Roma precisa de ti. Senão, ficaremos à mercê de Lúcio Júlio César e Lúcio Márcio Filipe. Que triste sorte a nossa!

Escauro desatou a rir.

- Será essa a sorte mais triste? - perguntou. - De um certo ponto de vista, não posso deixar de estar de acordo contigo, Lúcio Cornélio. Contudo, tenho a sensação de que Roma talvez ficasse muito pior nas tuas mãos do que nas de Filipe. É possível que tu não sejas essencialmente um militar. Mas a verdade é que passaste a maior parte da tua carreira senatorial no exército. E tenho reparado que os senadores que passam muito tempo em actividades militares têm tendência a tornar-se autocratas. Como Caio Mário. Quando chegam a altos cargos políticos, ficam impacientes com as limitações que a política, normalmente, impõe.

Estavam defronte da livraria de Sósio no bairro de Argileto, consumindo as iguarias de uma das melhores tendas de comidas de Roma. Enquanto conversavam, iam comendo pastéis de mel e passas; um garoto seguia com atenção os movimentos dos dois, pronto a oferecer-lhes um jarro de água quente e panos para lavarem as mãos, pois os bolos eram cremosos e pegajosos.

- Quando eu estiver à frente de Roma, tudo dependerá da Roma que eu for encontrar, Marco Emílio. Uma coisa posso prometer-te: sob as minhas ordens, Roma não ofenderá os nossos antepassados. Nem permitirei que Roma seja dominada por gente como Saturnino disse Sila, num tom áspero.

Escauro acabou de comer os seus bolos, fazendo sinal ao garoto para que lhe trouxesse água quente e um pano. Com todo o cuidado, lavou e secou as mãos e deu ao rapaz um sestércio. Depois, esperou que Sila fizesse o mesmo (embora Sila tivesse dado uma moeda menos valiosa ao rapaz), e retomou a conversa.

- Eu tive um filho, Lúcio Cornélio - disse ele, perfeitamente calmo. - Mas esse filho tinha um carácter absolutamente insatisfatório. Era uma criatura fraca, um cobarde, ainda que fosse um bom rapaz, irrepreensível a outros níveis. Tenho agora outro filho, demasiado jovem para que eu possa saber de que massa é feito. No entanto, a minha primeira experiência ensinou-me uma coisa, Lúcio Cornélio. Por muito ilustres que tenham sido os nossos antepassados, no fim acabamos sempre por depender da nossa prole.

O rosto de Sila franziu-se.

- O meu filho também morreu, mas não tenho outro filho - disse.

- Assim o quis o destino.

- Não achas que é tudo um acaso, um inexplicável acaso, Princeps Senatus?

- Não, não acho. Eu tenho sido Princeps Senatus para quê? Para conter Caio Mário? Roma precisava de mim para cumprir tal tarefa, e aqui estou eu, o Princeps Senatus, às ordens de Roma. Pois agora vejo-te mais como um Mário do que como um Escauro. E não vejo ninguém no horizonte capaz de te conter, capaz de te refrear. E isso poderá ser mais perigoso para a mós maiorum do que mil Saturninos juntos - disse Escauro.

- Prometo-te, Marco Emílio, que Roma comigo não corre qualquer perigo. - Sila pensou por um instante no que acabava de dizer, e explicou-se melhor. - Isto é, a tua Roma. Não a Roma de Saturnino.

- Espero bem que sim, Lúcio Cornélio. Sinceramente. Encaminhavam-se na direcção do Senado.

- Aposto que Catão Liciniano foi eleito para dirigir o teatro de guerra na Campânia - disse Escauro - É muito mais difícil lidar com ele do que com Lúcio Júlio César: é tão inseguro como este, mas mais autoritário.

- Não é ele que me vai perturbar - disse tranquilamente Sila. Caio Mário chamava-lhe pequenote, ervilha, dizia que a sua campanha na Etrúria era bem digna de uma ervilha como ele. E eu sei como lidar com uma ervilha.

- Como?

- Esmago-a.

- Eles não te vão dar o comando, Lúcio Cornélio. Eu bem tentei, mas não tens qualquer hipótese.

- Isso não tem a mínima importância - retorquiu Sila, sorridente.

- Eu assumirei o comando depois de esmagar a ervilha.

Dita por outro homem, uma tal afirmação teria soado, por certo, como uma mera bazófia; Escauro não teria contido as gargalhadas. Porém, dita por Sila, assustaria qualquer um, pois quase equivalia a uma certeza. Escauro não se riu. Estremeceu.

Como ia fazer dezassete anos no terceiro dia de Janeiro, Marco Túlio Cícero, apesar de magricela, apresentou-se, como lhe cumpria, na tenda de recrutamento do serviço militar situada no Campo de Marte, pouco depois das eleições centuriais. O adolescente, arrogantemente autoconfiante, que fora tão amigo do filho de Sila, havia acalmado muito; prestes a completar dezassete anos, estava convicto de que a sua estrela se apagara já, que o breve brilho dessa estrela fora irremediavelmente eclipsado pelo terrível fulgor da guerra civil. Deixara de ser o centro das atenções de uma multidão de admiradores. Provavelmente, nunca mais voltaria a sê-lo. Os cenários onde se movimentara tinham desaparecido. Todos os tribunais estavam encerrados, excepto o de Quinto Vário. O pretor urbano, que deveria estar à frente desses tribunais, governava agora Roma, dada a ausência dos cônsules. Estando os Italianos a sair-se tão bem na guerra, era muito provável que os tribunais nunca mais voltassem a abrir. Exceptuando Cévola, o Augure, agora com noventa anos e já inactivo, todos os mentores e preceptores de Cícero tinham desaparecido; Crasso Orador estava morto e os outros tinham sido engolidos pelo turbilhão militar.

O que mais assustava Cícero era o facto de que ninguém parecia minimamente interessado nele ou no seu destino. Os poucos grandes homens que conhecia e que viviam em Roma estavam demasiado ocupados para lhe dedicarem alguma atenção. Sim, ele tinha batido às suas portas, e tinha-o feito porque considerava que estava a atravessar uma situação especialmente difícil e porque se considerava uma pessoa diferente, uma criatura única - mas não conseguira nenhuma entrevista; todos, desde Escauro Princeps Senatus a Lúcio César, estavam demasiado ocupados para o atender. No fundo, que era ele? Pouca coisa. Apenas um indivíduo singular que dera nas vistas no Fórum e que nem sequer tinha, ainda, dezassete anos. Porque haveriam os grandes homens de se interessar por ele e pelo seu caso? Como o seu pai (agora cliente de um homem morto) dizia, ele que não pensasse num posto especial e que aceitasse, sem queixas, o que lhe fosse aparecendo.

Quando chegou à tenda na parte da Via Lata do Campo de Marte, não viu um único rosto conhecido; eram senadores velhos e pouco importantes, recrutados para um trabalho que era bem pago, mas que não lhes dava qualquer prazer. O presidente do grupo foi o único que olhou para ele quando chegou a sua vez - os outros estavam ocupados com enormes rolos de papel; sem qualquer entusiasmo, o senador atentou no físico magricela de Cícero (que parecia sempre mais estranho por causa da cabeça enorme, em forma de abóbora).

- Primeiro nome e nome de família?

- Marco Túlio.

- Primeiro nome e nome de família do pai?

- Marco Túlio.

- Primeiro nome e nome de família do avô?

- Marco Túlio.

- Tribo?

- Cornélia.

- Apelido, tem?

- Cícero.

- Classe?

- Primeira - eques.

- O teu pai teve direito ao Cavalo Público?

- Não.

- Podes pagar o teu próprio equipamento?

- Claro.

- Sabes ler e escrever?

- Claro!

- A tua tribo é rural. Distrito?

- Arpino.

- Ah, a terra de Caio Mário! Quem é o patrono do teu pai?

- Lúcio Licínio Crasso Orador.

- Nenhum patrono vivo?

- Não.

- Tiveste algum treino militar?

- Não.

- És capaz de distinguir a ponta do punho da espada?

- Se quer dizer com isso se sei manejar uma espada, a resposta é não.

- Sabes montar a cavalo?

- Sei.

O presidente da comissão de recrutamento acabou de tomar as suas notas, após o que voltou a olhar para Cícero com um sorriso desdenhoso.

- Volta cá dois dias antes das Nonas de Janeiro. Nessa altura, Marco Túlio, ser-te-ão indicadas as tuas funções militares.

E era tudo. Voltaria no dia dos seus anos. Saiu da tenda profundamente humilhado. Ninguém se tinha sequer apercebido de quem ele era! Por certo tinham assistido ou ouvido falar dos seus feitos no Fórum! Mas se conheciam esses feitos, escondiam-no perfeitamente. Era óbvio que tencionavam distribuir-lhe tarefas militares. Se tivesse pedido que lhe atribuíssem funções religiosas, tê-lo-iam considerado um cobarde; Cícero era suficientemente inteligente para entender isso. Por esse motivo calara-se; não queria que, anos mais tarde, um candidado rival ao consulado lhe apontasse uma mancha dessas.

Como os seus amigos eram normalmente mais velhos do que ele, Cícero não tinha ninguém em Roma com quem pudesse falar. Estavam todos na guerra, desde Tito Pompónio a vários sobrinhos e sobrinhos-netos do seu falecido primo, passando pelos seus próprios primos. O jovem Sila, o único amigo que desejava realmente encontrar, estava morto. Não tinha para onde ir senão para casa. Encaminhou-se na direcção da Vicus Cuprius: ia para casa, para a casa do pai no bairro das Carinas; sentia-se perfeitamente desesperado, e o seu rosto não o escondia.

Todos os jovens romanos com dezassete anos tinham de se apresentar na comissão de recrutamento, a fim de cumprirem os seus deveres militares (naquela altura, até os membros das classes mais baixas, das classes proletárias, o tinham de fazer). No entanto, antes de ter rebentado a guerra com os Italianos, Cícero nunca pensara que poderia ser chamado a cumprir tarefas militares, fossem elas quais fossem; pensara recorrer aos seus preceptores do Fórum, a fim de lhe arranjarem um cargo onde os seus talentos literários pudessem brilhar: dessa forma, só vestiria a cota de malha e pegaria numa espada durante os desfiles. Não teve, porém, essa sorte e sabia que ia ser submetido a um regime que odiava. Sabia que morreria.

Nunca se tendo sentido realmente feliz ou confortável em Roma, o pai de Cícero voltara a Arpino, a fim de preparar as suas terras para o Inverno. Só voltaria a Roma depois do seu filho mais velho ter entrado para o exército. O irmão mais novo de Cícero, Quinto, agora com oito anos, fora com o pai; Quinto era muito menos brilhante que Marco e, no fundo, preferia viver no campo. Por tudo isto, Hélvia, a mão de Cícero, fora obrigada a ficar em Roma. Estava, afinal, em Roma, unicamente por causa do filho. E não gostava disso.

- Só me dás trabalhos! Trabalhos e mais nada! - disse ela mal ele entrou em casa, tão desamparado e infeliz que chegara a nutrir a esperança de encontrar na mãe uma confidente compreensiva. - Se não fosses tu, teria ido com o teu pai para Arpino e não seríamos obrigados a gastar dinheiro com esta casa ridiculamente dispendiosa. Não há um escravo em toda a cidade de Roma que não seja ladrão e trapaceiro e é por isso que passo todo o tempo ou a conferir os seus livros de contabilidade ou a vigiar tudo o que fazem. Põem água no vinho, dou-lhes dinheiro para me comprarem azeitonas de primeira qualidade e trazem-me azeitonas das piores e nenhum troco nos bolsos, trazem metade do pão e do óleo que costumamos encomendar, e comem e bebem que se fartam. Vou ter de ser eu a fazer as compras. - Parou um instante para respirar, mas logo prosseguiu: - E a culpa é toda tua, Marco! As tuas loucas ambições! Eu sempre te disse: não queiras ser mais do que aquilo que és! Mas a mim nunca ninguém ouve. Encorajas deliberadamente o teu pai a gastar fortunas na tua requintada educação... mas tu nunca serás outro Caio Mário! Nunca vi rapaz com menos jeito, seja para o que for! E para que te servem Homero e Hesíodo, és capaz de me dizer? O papel não se come. E não é com papéis que se faz uma carreira. E para aqui estou eu presa, e tudo por tua causa...

Marco Túlio Cícero não quis ouvir mais. Num ápice, correu para o seu escritório.

Cícero tinha um escritório graças ao pai, que lhe cedera a divisão da casa destinada ao seu quarto para tal efeito. De início fora o pai quem tivera ambições: depressa as passara para aquele filho brilhante e extraordinariamente prometedor. Manter um tal prodígio encerrado em Arpino é que nunca. Antes de Cícero, Caio Mário fora o único homem famoso de Arpino, e os Túlios Cíceros consideravam-se acima dos Mários porque os Mários não eram tão inteligentes como eles. Por isso, se os Mários tinham produzido um homem de acção, um homem de guerra, os Túlios Cíceros produziriam um homem da reflexão, do pensamento. Os homens de acção eram esquecidos com o tempo. Mas os homens que se entregavam ao estudo das ideias, esses viviam para todo o sempre.

Marco Túlio Cícero, o prometedor jovem intelectual que viera de Arpino, fechou-se à chave no seu escritório, não fosse a mãe atrever-se a entrar, e chorou, chorou, todas as lágrimas que precisava chorar.

No dia do seu aniversário, Cícero voltou à tenda do Campo de Marte e, com os joelhos a tremer, submeteu-se a uma versão muito abreviada do seu primeiro interrogatório.

- O nome todo, incluindo o apelido.

- Marco Túlio Cícero Júnior.

- Tribo?

- Cornélia.

- Classe?

- Primeira.

Procuraram a folha relativa ao seu processo. Cícero ficaria com essa folha e dá-la-ia ao seu comandante. Os Romanos, sempre práticos, não subestimavam a possibilidade de os recrutas ignorarem, pura e simplesmente, as ordens verbais. Àquela hora, seguia já uma cópia para os funcionários que tratavam do recrutamento em Cápua.

O presidente da comissão leu atentamente as extensas observações que constavam do processo de Cícero. Depois, fitou-o friamente.

- Muito bem, Marco Túlio Cícero Júnior. Alguém intercedeu a tempo a teu favor - disse o presidente. - Nós tínhamos previsto que irias para Cápua servir como legionário. No entanto, chegou-nos às mãos um pedido especial do Princeps Senatus para que integrasses a equipa de um dos cônsules. Foste, por isso, integrado na equipa de Cneu Pompeu Estrabão. Deverás apresentar-te amanhã, ao romper da manhã, em casa dele, a fim de receberes as suas instruções. Esta comissão salienta que não tens qualquer tipo de preparação militar e sugiro-te, por isso, que compareças, regularmente, nos campos de exercícios do Campo de Marte, enquanto não fores cumprir os teus deveres no seio da equipa do cônsul. É tudo. Podes ir.

Os joelhos de Cícero tremiam, ainda mais, agora que se sentia profundamente aliviado. Pegou na preciosa folha e desapareceu num instante. Farei parte da equipa de funcionários de Cneu Pompeu Estrabão! Oh, que todos os deuses estejam contigo, Marco Emílio Escauro Princeps Senatus! Obrigado! Serei de um valor incalculável para Cneu Pompeu - serei historiador do seu exército ou farei os seus discursos e nunca Precisarei de empunhar uma espada!

Cícero não tinha a mínima intenção de treinar no Campo de Marte, pois aos dezasseis anos tinha feito uma tentativa e concluíra que lhe faltava equilíbrio nas pernas, destreza na mão, rapidez de reflexos e presença de espírito. Ao fim de alguns exercícios com a sua espada de madeira, Cícero era já o alvo de todas as atenções. Mas o círculo que o rodeava no Campo de Marte não era, como no Fórum, um círculo de admiradores, espantados com as suas proezas verbais; bem pelo contrário, aqueles que assistiam aos seus exercícios no Campo de Marte riram a bandeiras despregadas da sua total inabilidade. Cícero depressa se tornou o alvo de todas as piadas, de todos os risos. Troçavam da sua voz aflautada, imitavam-lhe o riso relinchado, achavam a sua erudição excessivamente séria e o seu comportamento muito maduro, muito adulto, digno de inspirar uma farsa. Marco Túlio Cícero abandonara então o treino militar, jurando que nunca mais voltaria ao Campo de Marte. Nenhum rapaz da sua idade gostava de ser alvo da troça de toda a gente; e aquele rapaz, para mais, sentira já o estímulo da admiração de homens adultos, além do que se considerava um caso especial, a todos os níveis.

Alguns homens, concluíra então, não nasciam para ser soldados. E ele era um desses homens. Não era uma questão de cobardia! Era sim uma total inabilidade física. Algo que não podia ser considerado como uma fraqueza de carácter. Os rapazes da sua idade eram estúpidos, brutos que nem animais, valorizavam os seus corpos, mas nunca as suas mentes. Não compreendiam que as suas mentes poderiam permanecer vivas durante muito tempo depois de os seus corpos desaparecerem? Não queriam ser diferentes? Que haveria de estimulante em conseguir acertar com uma lança no centro de um alvo? Ou em cortar a cabeça a um espantalho? Cícero era suficientemente inteligente para entender que alvos e espantalhos nada tinham a ver com o campo de batalha, e que muitos desses jovens que matavam símbolos acabariam por odiar a realidade.

No dia seguinte, às primeiras horas da manhã, vestido com a sua toga virilis, apresentou-se em casa de Cneu Pompeu Estrabão, na zona do Palatino que dava para o Fórum, desejoso de que o pai estivesse com ele para lhe fazer companhia. Para sua grande surpresa, verificou que havia centenas de homens reunidos no átrio. Alguns reconheceram-no como o menino prodígio da retórica, mas nenhum meteu conversa com ele; gradualmente, viu-se empurrado para o mais obscuro recanto do átrio de Pompeu Estrabão. Aí esperou durante horas que alguém viesse perguntar-lhe ao que vinha. Entretanto, a multidão ia lentamente diminuindo. O novo cônsul sénior era, na altura, o homem mais importante de Roma e toda a gente queria pedir-lhe um favor ou muito simplesmente falar com ele. Além disso, tinha um verdadeiro exército de clientes, todos eles picentinos, embora Cícero só tivesse ficado com uma ideia da amplidão dessa clientela depois de ter visto toda aquela gente à espera no átrio de Estrabão.

Havia ainda uma centena de homens no átrio e Cícero estava já em pulgas para que um dos sete secretários de Estrabão reparasse nele, quando um jovem da sua idade se abeirou dele e, encostando-se à parede, começou a olhá-lo de alto a baixo. Os olhos que assim o prercorriam eram olhos frios, desapaixonados, e os mais belos olhos que Cícero alguma vez vira. Uns olhos tão grandes, tão rasgados, que pareciam conter permanentemente uma expressão de surpresa. Eram de um azul puríssimo e intenso, de um brilho único. A farta cabeleira muito loura tinha duas peculiaridades: ao cimo da testa, estava aparada bem alto e fazia um pico no meio. Sob esta interessante cabeleira, via-se um rosto fresco e muito vivo que nada tinha de romano. Os lábios eram finos, as faces largas, o nariz pequeno e achatado, o queixo pouco saliente, a pele rosada e ligeiramente sardenta, as sobrancelhas e as pestanas tão louras como o cabelo. Era no entanto um rosto muito belo, e o seu possuidor, depois dos olhares examinadores que lançou a Cícero, contemplou-o com um sorriso tão sedutor que Cícero se sentiu perfeitamente conquistado.

- Quem és tu? - perguntou o rapaz.

- Marco Túlio Cícero Júnior. E tu?

- Cneu Pompeu Júnior.

- Estrabão?

O jovem Pompeu desatou a rir; não se sentiu minimamente ofendido.

- Achas-me estrábico, Marco Túlio?

- Não. Mas não é costume adoptar-se o apelido do pai? - perguntou Cícero.

- No meu caso, não - retorquiu Pompeu. - Tenciono conquistar um apelido com as minhas próprias acções. E já sei que apelido vai ser esse.

- Qual vai ser?

- Magno.

Cícero soltou um dos seus relinchos.

- Isso não será demais? Magno? Além disso, não podes dar a ti próprio um apelido. São os outros que têm de to dar.

- Eu sei, mas hão-de dar-mo.

Embora não desconhecesse a auto-confiança, Cícero ficou espantado com a extraordinária confiança que Pompeu tinha nas suas capacidades.

- Desejo-te sorte - disse.

- Que vieste cá fazer?

- Fui integrado, como cadete, na equipa do teu pai. Pompeu assobiou.

- Edepol! Ele não vai gostar de ti!

- Porquê?

Os olhos de Pompeu perderam, nesse momento, todo o seu afectuoso brilho; de novo ficaram frios, indiferentes.

- Porque tu és um lingrinhas.

- Posso ser um lingrinhas, posso ser um magricela, mas a minha inteligência é superior à de muita gente, Cneu Pompeu! - atirou-lhe Cícero.

- Isso não vai impressionar o meu pai - retorquiu Pompeu, olhando desvanecidamente para o seu corpo, um corpo bem constituído, forte, poderoso.

Tal resposta reduziu Cícero a um miserável silêncio; a depressão que, de quando em quando, o perseguia, mais impiedosamente do que à maior parte dos adultos, começava a tolher-lhe as ideias. Engoliu em seco, pôs-se a olhar para o chão, desejou que Pompeu desaparecesse naquele momento.

- Não vale a pena ficares deprimido - disse Pompeu num repente.

- Apesar de tudo o que ele ou eu sabemos, podias muito bem ser um leão com a espada e o escudo! É assim que ele gosta dos homens!

- A espada e o escudo não fazem de mim um leão - disse Cícero, com a sua foz aflautada.

- Mas também não sou um rato. A verdade é que, no que toca aos meus pés e às minhas mãos, sou perfeitamente inútil. E isso é uma coisa que não posso controlar e muito menos melhorar.

- Mas no Fórum não se nota isso - replicou Pompeu. Cícero fitou-o boquiaberto.

- Sabes quem eu sou?

- Claro. - As densas pestanas baixaram-se pudicamente sobre os brilhantes olhos. - Quanto a mim, não sou nada bom em retórica.

Muito me bateram os meus professores durante anos e anos. Nada feito. É uma pura perda de tempo. Não consigo aprender a diferença entre sententia e epigramma, quanto mais entre color e descriptiol

- Mas como queres tu que um dia venham a chamar-te Magno se não sabes falar? - perguntou Cícero.

- E tu, como podes querer que te chamem Grande se não sabes pegar numa espada?

- Ah, já percebi! Vais tornar-te outro Caio Mário!

A comparação não agradou a Pompeu. Fitou Cícero com um ar zangado e retorquiu:

- Não! Outro Caio Mário, não! Serei eu próprio. E farei com que Caio Mário, ao pé de mim, pareça um novato desajeitado!

Cícero riu-se, os olhos escuros, com as suas densas pestanas, brilhando de súbito.

- Ah, Cneu Pompeu, dava tudo para ver isso! - exclamou. Sentiram, nesse momento, que alguém se aproximava; olharam à sua volta: era Cneu Pompeu Estrabão. Fisicamente, a sua constituição era tão vigorosa que parecia literalmente quadrado. No entanto, faltava-lhe altura. O rosto não era muito diferente do do filho, excepto nos olhos, de um azul menos intenso e, sobretudo, estrábicos, tão estrábicos que dir-se-ia não verem outra coisa que não fosse a cana do nariz. Os olhos tornavam-no enigmático e desagradável, pois ninguém conseguia ler o que neles se passava, tão estranhos e desconcertantes eram.

- Quem é? - perguntou ele ao filho.

O jovem Pompeu teve então um gesto maravilhoso, um gesto que Cícero nunca mais esqueceria e pelo qual lhe ficaria grato toda a vida

- pôs o seu braço musculoso sobre os ombros de Cícero e envolveu-os com força.

Alegre e despreocupado, o filho de Pompeu respondeu nestes termos ao pai:

- É o meu amigo Marco Túlio Cícero Júnior. Foi integrado na tua equipa, mas não precisas de te preocupar com ele. Eu trato dele.

- Hum! - fez Pompeu Estrabão. - E quem é que te mandou?

- Marco Emílio Escauro Princeps Senatus - disse Cícero, numa voz sumida.

O cônsul sénior aquiesceu.

- Ah, mas que cunnus. Sempre sarcástico! Aposto que já se fartou de rir à minha custa - deu meia volta e afastou-se, com um ar indiferente. - Ainda bem para ti que és amigo do meu filho, chocada. Senão, fazia-te em papas e dava-te aos meus porcos.

O rosto de Cícero queimava de corado. Vinha de uma família que sempre deplorara a linguagem obscena; o pai considerava tal linguagem de uma vulgaridade inaceitável; era para Cícero um rude choque ouvir tais palavras da boca do cônsul sénior.

- És mesmo uma senhora, não és, Marco Túlio? - perguntou Pompeu, sorrindo.

- Há melhores maneiras, e mais pitorescas, de usar a nossa grande língua latina, do que recorrer constantemente a imprecações grosseiras

- retorquiu Cícero com dignidade.

Ao ouvir tal comentário, o seu recente amigo reagiu mal.

- Estás a criticar o meu pai? - perguntou. Cícero tratou de recuar.

- Não, Cneu Pompeu, de modo nenhum! Limitei-me a reagir ao facto de me teres chamado ”senhora”!

Pompeu acalmou-se, ficou de novo sorridente.

- Tanto melhor para ti! Não gosto que critiquem o meu pai. Olhou de soslaio para Cícero, com curiosidade. - Marco Túlio, a linguagem obscena é usada por toda a gente. Até mesmo os nossos poetas a usam de vez em quando. Encontramo-la nas paredes dos prédios da nossa cidade, especialmente junto aos bordéis e às latrinas públicas. E se um general não chama cunni e mentulae aos seus soldados (e às vezes chamam-lhes coisas muito piores), eles concluem que são comandados por uma Vestal presunçosa.

- Fecho os olhos e os ouvidos - disse Cícero, mas logo mudou de assunto. - Agradeço a tua protecção.

- Não tens de agradecer por tão pouca coisa, Marco Túlio! Acontece que nós fazemos um par interessante, parece-me. Tu podes ajudar-me nos relatórios e cartas, e eu posso ajudar-te no que toca ao uso da espada e do escudo.

- Negócio feito - retorquiu Cícero, que parecia não querer sair dali. Pompeu, que começara a andar, virou-se de repente.

- O que é que se passa?

- Não dei a minha folha ao teu pai.

- Deita-a fora - retorquiu despreocupadamente Pompeu. - A partir de hoje ficas sob as minhas ordens. O meu pai nem vai dar pela tua presença.

Cícero seguiu-o na direcção do jardim do peristilo. Encontraram um assento onde batia o sol suave de Inverno, e Pompeu tratou de demonstrar que, embora detestasse a retórica, falava pelos cotovelos

- e gostava de mexericos.

- Soubeste da história de Caio Vetieno?

- Não - respondeu Cícero.

- Cortou os dedos da mão direita para não cumprir os deveres militares. O pretor urbano, Lúcio Cornélio Cina, condenou-o a servir como criado nos quartéis de Cápua durante toda a vida.

Cícero sentiu um calafrio na espinha.

- Uma sentença muito peculiar, não achas? - perguntou, sentindo estimulada a sua costela forense.

- Tinham de dar o exemplo, não achas? Não podiam deixá-lo escapar com uma condenação ao exílio e uma multa! Nós não somos como os reis orientais, não pomos as pessoas na prisão até morrerem ou envelhecerem. Nem um mês passam na prisão! A solução de Cina pareceu-me adequada - disse Pompeu, sorrindo. - O pessoal de Cápua vai transformar a vida de Vetieno num verdadeiro inferno!

- Suponho que sim - disse Cícero, engolindo em seco.

- Vá, agora é a tua vez!

- A minha vez?

- Sim, diz qualquer coisa.

- Não me lembro de nada, Cneu Pompeu.

- Como se chama a mulher de Ápio Cláudio Pulcro? Cícero pestanejou, surpreendido.

- Não sei.

- És tão inteligente e afinal não sabes nada! Bom, tenho de ser eu a dizer. A mulher de Ápio Cláudio chama-se Cecília Metela Baleárica. Mas que raio de nome! Até custa a dizer!

- É uma família muito nobre.

- Não tão famosa como a minha família será um dia!

- Mas o que é que há com a mulher de Ápio Cláudio Pulcro?

- Morreu há dias.

- Ah.

- Ela teve um sonho, pouco depois de Lúcio Júlio ter regressado a Roma para realizar as eleições - prosseguiu Pompeu, visivelmente satisfeito com a conversa. - Na manhã seguinte foi ter com Lúcio Júlio e contou-lhe que Juno Sospita lhe tinha aparecido no sonho e que se tinha queixado da confusão e da falta de limpeza que se registavam no seu templo. Ao que parece, uma mulher grávida tinha entrado furtivamente no templo, vindo a morrer de parto; e os criados do templo limitaram-se a levar o corpo: nem o chão limparam. De modo que Lúcio Júlio e Cecília Metela Baleárica pegaram em trapos e baldes e, de joelhos, lavaram o templo de uma ponta à outra. És capaz de imaginar a cena? Lúcio Júlio ficou com a toga toda suja porque não a quis tirar, dizia que tinha de prestar à deusa todas as honras que lhe eram devidas. Depois, foi direito à Cúria Hostília e promulgou a sua lei sobre os Italianos - e pregou um raspanete ao Senado por negligenciar os templos. Como pode Roma vencer a guerra se não respeita os deuses?, perguntou ele a certa altura. De maneira que, no dia seguinte, todo o Senado pegou em trapos e baldes e foi em peso tratar da limpeza dos templos. - Pompeu fez uma breve pausa. - O que é que se passa?

- Como é que tu sabes de tudo isso, Cneu Pompeu?

- Estou atento às conversas das pessoas, Marco Túlio. Nem as conversas dos escravos me escapam. E tu, o que é que tu fazes todo o dia? Lês Homero?

- Li Homero alguns anos atrás - retorquiu Cícero, vaidoso. Agora estou a ler os grandes oradores.

- E não fazes ideia do que se passa na cidade.

- Agora que te conheço, tenho a certeza de que vou passar a saber tudo. Devo concluir que, depois de ter o sonho e depois de ter lavado o templo de Juno Sospita, a mulher de Ápio Cláudio Pulcro encontrou a morte? Dessa forma, e se ainda havia dúvidas, a lição tornou-se perfeitamente clara. É isso, não é?

- É. De facto, Cecília Metela Baleárica morreu pouco depois, de repente. Lúcio Júlio acha que foi um desastre terrível. Ela era uma das matronas de Roma mais estimadas. Deixou seis filhos, todos eles com diferenças de um ano, e o mais novo apenas com um ano de idade.

- Sete é um número de sorte - disse Cícero, a quem não faltava espírito.

- Para ela não foi - retorquiu Pompeu, sem perceber a ironia. Ninguém entende como aquilo aconteceu. Uma mulher que tinha tido seis partos sem o mínimo problema. Lúcio Júlio diz que os deuses estão zangados.

- Ele achará que a sua nova lei é capaz de apaziguar a ira divina? Pompeu encolheu os ombros.

- Não sei. Ninguém sabe. Tudo o que sei é que o meu pai é a favor da lei, por isso eu também sou a favor. O meu pai tenciona promulgar a cidadania para todas as comunidades latinas da Gália Italiana.

- E Marco Pláucio Silvano promulgará em breve outra lei que alargará a cidadania a todos os homens que tenham os seus nomes inscritos nos registos municipais italianos, desde que o solicitem pessoalmente a um pretor instalado em Roma, no prazo de sessenta dias após a aprovação da lei - acrescentou Cícero.

- Sim, Silvano. Mais o seu amigo Caio Papírio Carbão - corrigiu Pompeu.

- Ora ainda bem que mudámos o assunto! - exclamou Cícero, mais ou menos animado. - Adoro tudo o que tenha a ver com leis!

- Ainda bem que há quem goste! - retorquiu Pompeu. - Quanto a mim, acho as leis uma chatice. Acabam sempre por tolher os movimentos de homens superiores, de homens com capacidades invulgares que se distinguem dos outros em particular enquanto são jovens.

- Mas os homens não podem viver sem um sistema de leis!

- Os homens superiores podem.

Pompeu Estrabão nada fez no sentido de deixar Roma, embora se fartasse de dizer que ninguém ia sentir a sua falta ou a de Lúcio Catão, dado que o pretor urbano, Aulo Semprónio Asélio, era um homem perfeitamente à altura dos problemas tratados em Roma. Contudo, depressa se tornou claro que era outra a razão para a sua permanência em Roma: Pompeu Estrabão queria seguir de perto a enchente de leis que decorreriam da lex Julia. Lúcio Pórcio Catão Liciano, o cônsul júnior, deixou Pompeu Estrabão entregue a tal tarefa; não se davam bem estes dois cônsules. Lúcio Catão seguiu primeiro para a Campânia, mas logo mudou de ideias, até que acabou por instalar-se no teatro central. Pompeu Estrabão não escondera a sua intenção de prosseguir com a guerra no Piceno; no entanto, mandou Sexto Júlio César para o cerco a Ásculo Picentino, ainda que Sexto César não estivesse bem de saúde e aquele fosse um dos mais frios Invernos de que havia memória. Pouco tempo depois da partida de Sexto César, Roma recebeu a notícia de que ele tinha morto oito mil rebeldes picentinos que se preparavam para mudar de acampamento. Pompeu Estrabão não gostou de tal notícia, mas permaneceu em Roma.

A sua lex Pompeia avançava nos Comitia sem problemas. Essa lei concedia a cidadania romana a todas as cidades beneficiadas pelos Direitos Latinos e situadas a sul do rio Pó, na Gália Italiana, e dava os Direitos Latinos às cidades de Aquileia, Patávio e Mediolano, a norte do Pó. Todos os habitantes destas vastas e prósperas comunidades passariam a integrar a sua clientela, e essa fora a principal razão que o levara a legislar. Como não era nenhum paladino dos direitos do cidadão, Pompeu Estrabão permitiu depois a Pisão Frugi que impusesse alguns entraves a todos os latinos ou italianos que beneficiavam das três leis de alargamento da cidadania. De início, Pisão Frugi promulgou uma lei que criava duas novas tribos, nas quais seriam integrados todos os novos cidadãos, mantendo-se as trinta e cinco tribos existentes exclusivamente para os antigos Romanos. Mas quando a Etrúria e a Úmbria começaram a protestar afirmando que era injusto que os seus habitantes fossem tratados como meros libertos romanos, Pisão Frugi alterou a sua lei, de forma a integrar todos os novos cidadãos, não em duas, mas em dez tribos: oito das velhas tribos e as duas que acabara de criar.

O cônsul sénior procedeu então às eleições para censores; Lúcio Júlio César e Públio Licínio Crasso foram os escolhidos. Ainda antes de abandonar os seus compromissos sacerdotais, Lúcio César anunciou que, em honra do seu antepassado Eneias, perdoaria todos os impostos de que era alvo a cidade de Tróia, a sua amada Ilio. Como Tróia não passava agora de uma pequena aldeia, Lúcio César fez aprovar a sua medida sem qualquer oposição. Escauro Princeps Senatus - que podia ter combatido tal medida - andava demasiado ocupado com os dois reis refugiados, Nicomedes da Bitínia e Ariobarzanes da Capadócia, que choravam e subornavam com igual fervor, não entendendo por que razão Roma estava mais preocupada com a guerra contra os Italianos do que com a previsível guerra com Mitridates.

O principal adversário da lei de alargamento da cidadania de Lúcio César fora Quinto Vário, que temia vir a ser a primeira vítima da lei. Os novos tribunos da plebe caíram sobre ele que nem lobos, chefiados por Marco Pláucio Silvano; foi rapidamente aprovada uma lex Plautia, e a Comissão Vária - que até então julgara todos aqueles que tinham defendido a cidadania para os Italianos - transformou-se em Comissão Pláucia, com a tarefa de julgar todos os que tinham tentado deter o alargamento da cidadania. Por sorteio, ficou a presidir à Comissão o irmão mais novo de Lúcio César, o vesgo César Estrabão; e o primeiro julgamento foi precisamente o de Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis.

A técnica de César Estrabão revelou-se, como sempre, brilhante. O veredicto era já conhecido muito antes do final do julgamento de Quinto Vário, sobretudo porque a lex Plautia retirara da Comissão os cavaleiros e enchera-a de cidadãos de todas as classes provenientes das trinta e cinco tribos. Quinto Vário preferiu não esperar pelo veredicto. Para grande pesar dos seus amigos mais chegados, Lúcio Márcio Filipe e o jovem Caio Flávio Fímbria, Quinto Vário matou-se ingerindo veneno. Infelizmente escolheu mal o veneno e a sua agonia arrastou-se por vários dias. Ao seu funeral compareceram apenas uns quantos amigos. Fímbria jurou então que se vingaria de César Estrabão.

- Perguntem-me se estou com medo - disse César Estrabão aos irmãos, Quinto Lutácio Catulo César e Lúcio Júlio César, que não tinham assistido ao funeral, mas tinham estado com Escauro Princeps Senatus nos degraus do Senado, para ver o que aconteceria durante o mesmo.

- Tu? Tu eras capaz de desafiar Hércules ou Hades - disse Escauro, os olhos dançando.

- Não, o meu desafio é outro: disputar o consulado sem ter sido pretor - retorquiu rapidamente César Estrabão.

- E porque haverias de querer fazer uma coisa dessas? - perguntou Escauro.

- Para verificar a eficácia da lei.

- Ah, advogados, advogados! São todos iguais! - exclamou Catulo César. - Eram capazes de testar a eficácia de uma lei sobre o que constitui a virgindade numa Vestal.

- Acho que isso já foi feito! - retorquiu César Estrabão, desatando a rir.

- Muito bem - disse Escauro. - Vou ver como está Caio Mário e depois vou para casa preparar o meu discurso. - Olhou para Catulo César. - Quando partes para Cápua?

- Amanhã.

- Não vás já, Quinto Lutácio! Fica para ouvir o meu discurso! Provavelmente será o discurso mais importante da minha carreira.

- É uma proposta interessante, Escauro - disse Catulo César, que viera de Cápua para assistir à cerimónia da revogação do tributo imposto a Tróia, por iniciativa do irmão, Lúcio César. - Posso perguntar qual é o tema?

- Claro. O tema é a preparação da guerra contra o rei Mitridates do Ponto - disse afavelmente Escauro.

Os três Césares fitaram-no surpreendidos.

- Estou a ver que nenhum de vocês acredita em tal guerra. Pois bem, meus senhores, podem ter a certeza de que haverá guerra! disse Escauro, afastando-se na direcção da Clivus Argentarius.

Encontrou Júlia com a sua cunhada Aurélia. As duas mulheres tinham um ar tão encantador, tão romano, que Escauro se sentiu impelido a beijar-lhes as mãos, uma homenagem que nele era rara.

- Não tens andado bem, Marco Emílio? - perguntou Júlia, olhando de soslaio, sorridente, para Aurélia.

- Sinto-me muito cansado, Júlia, mas não demasiado cansado para apreciar a beleza. - Escauro fez um gesto na direcção da porta do escritório. - E como vai hoje o nosso Grande Homem?

- Mais desanuviado, graças a Aurélia - retorquiu a mulher do Grande Homem.

- Ah sim?

- Caio Mário tem agora uma companhia.

- Uma companhia?

- O meu filho, o jovem César - disse Aurélia.

- Um rapaz!

Júlia não parou de rir enquanto o conduzia ao escritório do marido.

- Ele ainda não fez onze anos, por isso acho que é um rapaz. Mas em todos os outros aspectos, o jovem César é pelo menos tão velho como tu. Caio Mário tem registado ultimamente imensas melhoras. Mas aborrece-se. A paralisia impede-o de dar muitas voltas, mas ao mesmo tempo odeia estar na cama. - Júlia abriu a porta e disse: Marido, aqui tens Marco Emílio!

Mário estava deitado num divã, sob uma janela que dava para o jardim do peristilo, o lado esquerdo, o lado paralisado, assente sobre almofadas. Num banco aos pés do divã estava sentado o filho de Aurélia - sim, pensou Escauro, aquele devia ser o filho de Aurélia. Nunca o tinha visto antes.

Um verdadeiro César, pensou Escauro, que acabara de deixar a companhia de três Césares. Alto, belo, atraente. E este tinha também algo de Aurélia.

- Princeps Senatus, apresento-te Caio Júlio - disse Júlia.

- Senta-te, meu rapaz - disse Escauro ao ver o rapaz levantar-se. Aproximou-se de Mário, apertou-lhe a mão direita, perguntou-lhe: Então, Caio Mário, como vai isso?

- Lentamente - retorquiu Mário, arrastando ainda as palavras. Como podes ver, as mulheres arranjaram-me um cão de guarda. O meu Cérbero.

- Um cão de guarda, não. Um cachorrinho de guarda! - replicou Escauro, sentando-se na cadeira que o jovem César lhe ofereceu antes de se sentar no seu banco. - Mas diz-me, meu rapaz, quais são precisamente os teus deveres?

- Ainda não sei - respondeu o jovem César sem qualquer sinal de timidez. - Hoje foi a primeira vez que a minha mãe me trouxe.

- Creio que elas pensaram que eu gostaria de ter alguém a meu lado para me ler qualquer coisa - disse Mário. - Que achas, jovem César?

- Preferia falar com Caio Mário, em vez de lhe ler livros - retorquiu o filho de Aurélia sem se atrapalhar. - O tio Mário não escreve livros, mas muitas vezes desejei que o tivesse feito. Gostaria que me contasse tudo acerca dos Germanos.

- O rapaz sabe o que quer - disse Mário, tentando mexer-se desajeitadamente.

O jovem levantou-se de imediato e pôs o seu braço sob o braço direito de Mário, permitindo assim que o tio desse o impulso necessário para completar a mudança de posição. Fê-lo sem qualquer pressa ou ansiedade, revelando ter uma força notável para quem era ainda uma criança.

- Ah, assim estou muito melhor! - disse Mário, ofegante; agora estava numa posição muito mais confortável para olhar o rosto de Escauro. - Vou dar-me muito bem com o meu cachorrinho de guarda.

Escauro ficou uma hora, mais interessado no filho de Aurélia do que na doença de Mário. Embora o rapaz não fizesse nenhum esforço para se tornar notado, respondia a todas as perguntas com uma graça e uma dignidade próprias de um adulto, e durante todo o tempo escutou, com a máxima atenção, a conversa de Mário e Escauro sobre as incursões de Mitridates na Bitínia e na Capadócia.

- Para um rapaz de dez anos, não há dúvida que já leste muita coisa, jovem César - disse Escauro, levantando-se para se despedir. A propósito, conheces por acaso um rapaz chamado Marco Túlio Cícero?

- Só o conheço de nome, Princeps Senatus. Dizem que será o melhor advogado romano de todos os tempos.

- Talvez sim, talvez não - retorquiu Escauro, encaminhando-se para a porta. - Por enquanto, Marco Cícero está a cumprir os seus deveres militares. Faço-te uma nova visita dentro de dois ou três dias, Caio Mário. Como tu não podes deslocar-te ao Senado, ler-te-ei o meu discurso aqui, para saber a tua opinião. Ah, e é claro que o jovem César também poderá ouvi-lo.

Escauro seguiu para a sua casa, situada no Palatino. Sentia-se muito cansado, e mais deprimido com o estado de saúde de Mário do que intimamente admitia. Tinham passado já quase seis meses e o Grande Homem continuava num divã, num recanto do tablinum. Talvez a companhia do rapaz lhe fizesse bem. Quem sabe, talvez fosse uma boa ideia. Mas Escauro duvidava que o seu velho amigo e inimigo viesse a melhorar o suficiente para participar nas reuniões do Senado.

A longa subida dos Degraus das Vestais deixou-o exausto, viu-se obrigado a parar na Clivus Victoriae e a descansar, um pouco antes de cumprir a última parte do trajecto. Completamente absorvido pelas dificuldades com que iria deparar para tentar convencer os senadores da urgência dos problemas da Ásia Menor, bateu à porta, e verificou com surpresa que quem lhe abriu a porta era, não o porteiro, mas a esposa.

Estava belíssima!, pensou Escauro, fitando deliciado o rosto de Cecília Metela Dalmática. Todos os velhos problemas tinham morrido havia muito, muito tempo. Ela era a mulher da sua vida, o grande amor da sua vida. Obrigado por este presente, Quinto Cecílio, pensou Escauro, lembrando com afeição o seu falecido Metelo Numídico Suíno. Fora Metelo Numídico, de facto, quem lhe dera Cecília Metela Dalmática.

Escauro estendeu a mão para lhe tocar no rosto. Depois, encostou o rosto à pele jovem e macia da mulher. De olhos fechados, suspirou.

- Marco Emílio? - perguntou ela, sentindo de repente todo o peso do marido nos seus braços. - Marco Emílio? - perguntou de novo, cambaleando um pouco.

Cecília Metela Dalmática abraçou o marido com toda a força e gritou até que os criados apareceram e pegaram no corpo lasso de Escauro.

- O que é que se passa? O que é que ele tem? - não se cansava ela de perguntar.

O chefe dos criados respondeu-lhe por fim, já depois de terem deitado Marco Emílio Escauro num divã.

- Está morto, domina. Marco Emílio morreu.

Espalhava-se pela cidade a notícia da morte de Escauro Princeps Senatus quando chegou a Roma uma outra notícia triste. Sexto Júlio César morrera de uma inflamação pulmonar durante o cerco a Ásculo Picentino. Depois de digerido o conteúdo da carta enviada pelo lugar-tenente de Sexto César, Caio Bébio, Pompeu Estrabão tomou uma decisão. Logo que terminassem as exéquias de Escauro, seguiria para ásculo Picentino.

Era extremamente raro o Senado aprovar fundos estatais para a realização de exéquias, mas, mesmo em tempos tão difíceis como os que então se viviam, era impensável não dar a Escauro um funeral de Estado. Toda a cidade de Roma o adorara, e todos os Romanos compareceram a prestar-lhe as últimas homenagens. Nada voltaria a ser o que era sem a cabeça totalmente calva de Marco Emílio reflectindo o sol como um espelho, sem os belos olhos verdes de Marco Emílio vigiando os vilões de Roma, sem o espírito, o humor e a coragem de Marco Emílio. A sua falta seria sentida durante muito, muito tempo.

Para Marco Túlio Cícero, o facto de ter deixado uma Roma coberta de ramos de cipreste era um mau agouro; também ele estava morto para tudo o que mais amava - o Fórum, os livros, as leis e a retórica. A mãe estava ocupada a arranjar inquilinos para a casa do bairro de Carinas; tinha já feito as malas para regressar a Arpino, embora não tivesse feito uma única mala para Cícero, nem estivesse em casa quando ele lá foi despedir-se. Saiu para a rua e, com a ajuda de um criado, subiu para a sela do cavalo que o pai lhe mandara da província, já que a família não merecera a honra de ter um Cavalo Público. Os seus pertences seguiam no dorso de uma mula; tudo o que a mula não podia levar, ficou em sua casa. Pompeu Estrabão comandava um pequeno exército e não tolerava por isso bagagens a mais. Cícero sabia disso graças ao seu novo amigo, Pompeu, com quem se encontrou na Via Lata uma hora depois.

Estava um tempo terrivelmente frio e o vento soprava com violência; os pingentes de gelo dependurados de varandas e dos ramos das árvores teimavam em não derreter, quando a pequena comitiva de Pompeu Estrabão deu início àquela viagem rumo ao Norte. A despeito do tempo invernoso, a viagem tinha de ser cumprida. Alguns dos militares do general tinham passado a noite no Campo de Marte porque haviam marchado no seu triunfo, e encontravam-se já muito à frente da equipa de oficiais e conselheiros de Pompeu Estrabão. O resto das seis legiões do cônsul romano esperava por ele nos arredores de Veios, não muito longe de Roma. Acamparam nessa região durante a noite e Cícero partilhou uma tenda com os outros cadetes integrados na equipa de apoio ao general, oito jovens com idades compreendidas entre os dezasseis anos de Pompeu e os vinte e três de Lúcio Volúmnio. Durante o dia, Cícero não tivera oportunidade de travar conhecimento com os outros cadetes; teve de o fazer quando montaram a tenda. Não fazia a mínima ideia de como se montava uma tenda, nem do que era preciso que fizesse. Por isso, deixou-se estar quieto, com um ar muito aflito, até que Pompeu lhe atirou uma corda e lhe disse para segurar nela com força, sem se mexer.

Recordando, muitos anos depois, essa primeira noite na tenda dos cadetes, Cícero sentia-se ainda surpreendido com a coragem e a naturalidade com que Pompeu o ajudava, afirmando, sem o dizer, que Cícero era seu protegido, alguém que não devia ser perseguido por causa da sua aparência ou da sua incapacidade física. O filho do general era inegavelmente o senhor da tenda - mas não porque fosse filho do general. Não era um jovem culto ou dado à leitura. No entanto, Pompeu possuía uma inteligência notável e uma auto-confiança inquebrantável; era um autocrata natural, não aceitava limitações, não tolerava imbecis. Talvez por isso tivesse gostado de Cícero, que não era, de forma nenhuma, um imbecil, e que também não estava em posição de lhe opor limitações.

- O teu equipamento não é adequado - disse ele a Cícero, olhando para a confusão de coisas que Cícero arrumara sobre o dorso da mula.

- Ninguém me disse o que devia trazer - retorquiu Cícero, batendo os dentes e com as faces azuis, tanto era o frio que fazia.

- Não tens mãe? Uma irmã ao menos? Elas sabem sempre o que nós temos de trazer - disse Pompeu.

- Tenho mãe, mas não tenho nenhuma irmã - retorquiu Cícero, que não parava de tremer. - Mas a minha mãe não gosta de mim.

- Não tens calções? E luvas, tens? E túnicas de lã? E meias grossas? E gorros de lã?

- Só tenho o que aí está. Não pensei que isso fosse preciso. Mas de qualquer modo todas essas coisas estão em Arpino, na nossa casa.

Mas será que alguma vez um rapaz de dezassete anos pensa em proteger-se do frio, em tudo o que é necessário para se proteger do frio?, perguntar-se-ia Cícero mais tarde, sentindo ainda a alegria que o invadiu quando Pompeu, sem pedir autorização a ninguém, ordenou que todos os outros cadetes dessem ao seu amigo uma peça de roupa quente.

- Não protestem! Têm roupa que chegue! - disse Pompeu aos outros. - Marco Túlio pode ser um idiota relativamente a certas coisas, mas a verdade é que é mais inteligente do que nós todos juntos. E além disso é meu amigo. Agradeçam aos deuses por terem todos mães e irmãs dedicadas e pacientes. Volúmnio, tu não precisas de seis pares de meias! Para que queres tanta meia, se andas sempre com as mesmas? E tu, Tito Pompeu, passa para cá essas luvas. Ebúcio, uma túnica. Teideio, outra túnica. Fundílio, um gorro. Maiânio, tens tantas coisas que podes dar uma de cada. Tal como eu. Que diferença me faz uma coisa a menos?

Enfrentando tempestades de neve, o exército avançou para o interior das serranias. Cícero, agora mais quente, seguia nesse exército, impotente, desamparado, ignorante do que poderia acontecer ou do que deveria fazer se deparassem com um exército inimigo. E de facto encontraram um exército inimigo: foi algo de acidental e perfeitamente inesperado; tinham acabado de atravessar o rio, então gelado, que passava em Fulgino, quando o exército de Pompeu Estrabão se viu confrontado com quatro legiões picentinas que vinham das cordilheiras do sul do Piceno, aparentemente a caminho da Etrúria. A batalha transformou-se num verdadeiro desastre para as tropas picentinas. Cícero não se viu pessoalmente envolvido porque seguia na retaguarda, com os carros que transportavam as bagagens, pois Pompeu decidira que ele devia ficar a vigiar os pesados pertences dos cadetes. Cícero estava consciente de que, dessa forma, Pompeu escusava de se preocupar com o bem-estar do amigo, enquanto avançavam por território inimigo.

- Ah, que maravilha! - comentou Pompeu enquanto limpava a espada, essa noite, na tenda dos cadetes. - Demos cabo deles! Foi uma verdadeira carnificina! Quando quiseram render-se, o meu pai desatou a rir-se deles. De modo que obrigámo-los a recuar para os picos sem bagagens nem abastecimentos. Se não morrerem de frio, morrem de fome. - Aproximou a espada da lamparina para se certificar de que a arma brilhava desde o punho à ponta.

- Não era melhor tê-los feito prisioneiros? - perguntou Cícero.

- Com o meu pai na tenda do general? - retorquiu Pompeu, rindo.

- Ele acha que é má política deixar um único inimigo vivo.

Dado que não lhe faltava coragem, Cícero teimou.

- Mas eles são Italianos. Não são um inimigo estrangeiro. Não vamos precisar deles para as nossas legiões, quando esta guerra terminar?

Pompeu reflectiu um pouco.

- Sim, Marco Túlio, é muito possível que venhamos a precisar deles. Mas agora já é tarde para nos preocuparmos com estes picentinos! O meu pai estava furioso com eles, e quando está furioso, não poupa ninguém. - Os olhos azuis de Pompeu fitaram os olhos castanhos de Cícero. - Eu serei como ele.

Só ao fim de alguns meses Cícero deixaria de sonhar com aqueles camponeses picentinos, caindo, gelados e sem forças, na neve”, ou esgravatando febrilmente junto aos carvalhos, à procura de glandes, o único alimento que as montanhas ofereciam; esse episódio era apenas um dos muitos pesadelos daquela guerra, de todas as guerras, e Cícero odiava cada vez mais a guerra.

Quando Pompeu Estrabão chegou à cidade de Fano, junto ao Adriático, Cícero aprendera já algumas tarefas em que podia demonstrar a sua utilidade, e habituara-se mesmo a usar cota de malha e espada. Na tenda dos cadetes, era ele quem tomava conta das tarefas domésticas, quem cozinhava e fazia as limpezas; na tenda do general, ocupava-se dos trabalhos que os funcionários e secretários picentinos de Pompeu Estrabão não estavam em condições de fazer - relatórios e cartas para o Senado, descrições de batalhas e escaramuças. Quando Cícero escreveu a sua primeira carta, destinada ao pretor urbano Asélio, Pompeu Estrabão olhou para aquele rapaz magricela que era amigo do filho com os seus estranhos olhos que pareciam querer dizer qualquer coisa.

- Não está mal, Marco Túlio. Talvez o meu filho tenha razão em gostar de ti. Eu não percebia o que era, mas a verdade é que ele tem sempre razão. Foi por isso que eu o deixei fazer as coisas à sua vontade.

- Obrigado, Cneu Pompeu.

Com um gesto largo, o general apontou para uma secretária atravancada de documentos.

- Vê se consegues pôr aquilo em ordem, rapaz.

Puderam finalmente descansar a poucos quilómetros de Ásculo Picentino; como o exército do falecido Sexto César se encontrava ainda defronte da cidade, Pompeu Estrabão decidiu manter-se afastado.

Era muito frequente o general e o filho abandonarem o acampamento para lançarem ataques, levando consigo os soldados que consideravam necessários; devido a essas operações, mantinham-se longe do acampamento durante alguns dias. Nessas ocasiões, o general deixava o seu irmão mais novo, Sexto Pompeu, a chefiar o acampamento, ficando Cícero a dirigir os trabalhos relacionados com cartas ou relatórios. Esses períodos de relativa liberdade poderiam ser para Cícero motivo de alegria. Não o era, porém. O jovem Pompeu não estava lá para o proteger, e Sexto Pompeu desprezava-o ao ponto de maltratá-lo - era frequente dar-lhe bofetões, ou pontapés no traseiro, e, quando calhava, passava-lhe rasteiras.

Havia ainda muito gelo cobrindo as terras e os degelos da Primavera não passavam de uma promessa. Essa foi uma das razões que levou o general e o seu filho apegarem numa pequena força e a dirigirem-se para a costa à procura de tropas inimigas. No dia seguinte à sua partida, ao raiar da manhã, quando Cícero acabava de sair da tenda, agarrado às nádegas doridas dos pontapés do seu novo chefe, um destacamento de cavalaria marsa penetrou no acampamento com o mesmo à vontade com que qualquer romano o faria. Tinham os marsos um ar tão calmo e confiante que ninguém correu a pegar em armas; a única reacção romana coube ao irmão de Pompeu Estrabão, Sexto, que avançou para os cavaleiros e ergueu a mão para saudar as tropas inimigas.

- Públio Vétio Escalo, dos Marsos - disse o chefe, descendo do cavalo.

- Sexto Pompeu, irmão do general, comandante durante a ausência do general.

Escalo fez uma careta.

- Que pena! Era minha intenção conferenciar com Cneu Pompeu.

- Se quiseres esperar, ele não demorará muito - disse Sexto Pompeu.

- Quanto tempo?

- Entre três e seis dias.

- Entretanto, poderão dar de comer aos meus homens e aos cavalos?

- Com certeza.

Coube a Cícero, o único contubernalis presente no acampamento, a tarefa de tratar das acomodações e provisões para Escalo e os seus homens; para sua grande surpresa, os mesmos homens que tinham empurrado os picentinos para as montanhas, condenando-os assim à morte pelo frio ou pela fome, mostravam-se agora extremamente hospitaleiros em relação ao inimigo. Todos eles, desde Sexto Pompeu ao mais insignificante dos não combatentes, tinham um comportamento irrepreensível. Não vale a pena, nunca compreenderei este fenómeno chamado guerra, pensava Cícero sempre que via Sexto Pompeu e Escalo passeando juntos, aparentemente muito amigos, ou abandonando o acampamento para irem caçar javalis. E quando Pompeu Estrabão regressou, caiu nos braços de Escalo como se Escaulo fosse o mais querido dos seus amigos.

As conversações decorreram durante um grande banquete; com olhos espantados, Cícero observava os Pompeus: era assim que os imaginava gozando as riquezas das suas vastas propriedades do Norte do Piceno - javalis enormes assando nos espetos, pilhas e pilhas de travessas, toda a gente sentada em bancos, à mesa, e não reclinada em divãs, criados correndo com mais vinho do que água. Para um romano das terras latinas como Cícero, o espectáculo na tenda do comando era perfeitamente bárbaro. Os homens de Arpino não se comportavam assim nos seus banquetes. Nem mesmo um Caio Mário. Evidentemente, nunca ocorreu a Cícero que divãs ou requintes eram coisas que não podiam existir num banquete oferecido a mais de cem homens num acampamento militar.

- Não entrarás tão cedo em Ásculo - disse Escaulo.

Pompeu Estrabão nada disse por um momento: estava demasiado ocupado a mastigar um bocado de pele de javali bem tostada; acabou de comer a pele de javali, limpou as mãos à túnica, e pôs um sorriso de todo o tamanho.

- Pouco me importa o tempo que a coisa vai demorar - disse ele.

- Mais tarde ou mais cedo, Ásculo Picentino acabará por cair. Eu farei com que eles se arrependam de ter tocado num pretor romano.

- A provocação foi muito forte - retorquiu despreocupadamente Escaulo.

- Forte ou fraca, tanto me faz - replicou Pompeu Estrabão. - Ao que sei, Vidacílio entrou na cidade. Os Asculanos vão ver-se obrigados a alimentar mais uma quantidade de bocas muito razoável.

- Enganas-te, Pompeu Estrabão. Não há homens de Vidacílio em Ásculo - disse Escalo com uma voz estranha.

Pompeu Estrabão fitou o outro, com a cara suja de gordura.

- O quê?

- Tanto quanto sabemos, Vidacílio enlouqueceu - disse Escaulo, mais delicado à mesa que o anfitrião.

Pressentindo uma história interessante, toda a tenda se calou para ouvir Escaulo.

- Vidacílio apareceu frente a Ásculo com vinte mil homens, pouco antes da morte de Sexto Júlio - começou Escaulo. - Aparentemente, era sua intenção lançar um ataque concertado com o povo da cidade. Quando atacasse Sexto Júlio, os Asculanos sairiam da cidade e cairiam sobre a retaguarda romana. Um belo plano. Podia ter resultado. Mas quando Vidacílio atacou, os Asculanos nada fizeram. Sexto Júlio abriu as suas hostes e deixou Vidacílio e as suas tropas passar. Ásculo não teve outra hipótese senão abrir as suas portas e deixar entrar Vidacílio.

- Nunca pensei que Sexto Júlio fosse tão bom militar - comentou Pompeu Estrabão.

Escaulo encolheu os ombros

- Podia ter sido um acidente. Mas duvido.

- Está-se mesmo a ver que os Asculanos não ficaram nada contentes com a perspectiva de terem de alimentar mais vinte mil bocas...

- Ficaram furibundos! - disse Escaulo, sorrindo. - Vidacílio não foi recebido de braços abertos, bem pelo contrário. Mal entrou na cidade, encaminhou-se para o Fórum e disse à cidade o que pensava de pessoas que não obedeciam às ordens. Se tivessem feito o que ele lhes tinha proposto, o exército de Sexto Júlio César teria sido devastado. E é possível que tivesse razão. Razão que os Asculanos não lhe deram. O supremo magistrado da cidade disse então a Vidacílio aquilo que ele pensava. Perguntou-lhe, pura e simplesmente, se achava que havia na cidade comida suficiente para alimentar todo o exército que entrara com ele.

- Fico contente em saber que há divergências tão graves entre as diversas facções inimigas - comentou Pompeu Estrabão.

- Atenção, Pompeu Estrabão: só te estou a contar isto para perceberes que Ásculo está fortemente determinada a aguentar o cerco – disse Escalo, sem qualquer azedume na voz. - Mais tarde ou mais cedo acabarias por saber o que se passou e eu prefiro que conheças a verdade.

- Então o que é que aconteceu? Combates no Fórum?

- Precisamente. Vidacílio estava perfeitamente fora de si. Começou a dizer que os habitantes da cidade, no fundo, simpatizavam com Roma e, pior do que isso, ordenou aos seus soldados que matassem uns quantos Asculanos. Então os Asculanos foram buscar as suas armas e procederam a retaliações. Felizmente, a maior parte dos soldados de Vidacílio perceberam que ele enlouquecera, e abandonaram por isso o Fórum. Mal caiu a noite, as portas da cidade abriram-se e mais de dezanove mil homens escapuliram-se por entre as linhas romanas. Sexto Júlio tinha morrido, e os seus homens estavam mais preocupados com o luto do que com a vigilância.

- Hum! - disse Pompeu Estrabão. - Continua.

- Vidacílio resolveu então ocupar o Fórum. Levara consigo muita comida, com a qual decidiu fazer um banquete para os setecentos ou oitocentos homens que lhe restavam. Ao mesmo tempo, mandara construir uma enorme pira fúnebre. Quando o banquete estava no auge, Vidacílio bebeu uma taça de veneno, subiu para cima da pira e deitou-lhe fogo. Enquanto os seus homens se divertiam, Vidacílio ardia na pira! Contaram-me que foi uma cena perfeitamente aterradora.

- Que loucura! - comentou Pompeu Estrabão. - Mais louco do que Vidacílio só um caçador de cabeças gaulês.

- Sem dúvida - concordou Escalo.

- Portanto a cidade continua a lutar.

- Lutará enquanto houver um asculano vivo.

- Uma coisa posso prometer-te, Públio Vétio. Se houver asculanos vivos quando eu conquistar Ásculo Picentino, os pobres coitados só poderão lamentar o faclo de estarem vivos - disse Pompeu Estrabão. Deitou fora o osso que estivera a roer, e limpou de novo as mãos à túnica. - Sabes o que me chamam, não sabes? - perguntou, num tom muito cortês.

- Creio que não.

- Carnifex. O Carniceiro. É um cognome de que me orgulho, Públio Vétio - disse Pompeu Estrabão. - Já tive muitas alcunhas, um ror delas. O Estrabão, claro, tinha mesmo de ser. Mas quando tinha a idade do meu filho, ou pouco mais, servi como contubernalis ao lado de Lúcio Cina, Públio Lupo, o meu primo Lúcio Lucílio, e o meu bom amigo Cneu Octávio Rusão, que aqui está connosco. Estivemos com Carbão naquela terrível expedição contra os Germanos na Nórica. E os outros cadetes não gostavam especialmente de mim. A única excepção era Cneu Octávio Rusão, devo acrescentar. Se ele não tivesse gostado de mim, não seria hoje um dos meus lugares-tenentes! Seja como for, os outros cadetes puseram-me uma alcunha: Meneceu. Tínhamos passado pela minha casa, a caminho de Nórica, e acontece que o cozinheiro de minha mãe era vesgo. E chamava-se Meneceu. E o sacana do Lucínio começou a chamar-me Cneu Pompeu Estrabão Meneceu, sugerindo assim que o cozinheiro seria o meu pai. - Deixou escapar um suspiro de raiva e logo prosseguiu: - Durante anos foi assim que me chamaram. Mas agora chamam-me Cneu Pompeu Estrabão Carniceiro. Soa melhor. Estrabão, o Carniceiro. Escalo parecia mais enfastiado que receoso.

- Sim, mas o que significa um nome? Será que nos podemos fiar nos nomes? - perguntou Escalo. - Eu chamo-me Escalo porque diziam que eu era como um repuxo: a todo o momento deitava água...

Pompeu Estrabão sorriu por um breve instante.

- E que te levou a procurar-me, Públio Vétio Repuxo?

- A paz com condições.

- Cansado da guerra?

- Sim, francamente cansado. Não é que não queira combater. Combaterei se a isso me obrigarem! O problema é que penso que a Itália acabou. Se Roma fosse um inimigo estrangeiro, eu não estaria aqui neste momento. Mas sou um Italiano, um Marso, e Roma existe em Itália há tanto tempo como os Marsos. Creio que é tempo de ambas as partes salvarem o que for possível salvar, Cneu Pompeu. A lex Julia de civitate Latinis et sociis danda lornou ludo diferente. Embora não se aplique àqueles que pegaram em armas contra Roma, a verdade é que não há nada na lex Plautia Papiria que impeça a minha candidatura à cidadania romana se eu cessar as hostilidades e me apresentar perante um pretor em Roma. O que digo em relação ao meu caso aplica-se também aos meus homens.

- E que condições pretendes, Públio Vétio?

- Um salvo-conduto para que o meu exército possa atravessar as linhas romanas, tanto aqui como defronte de Ásculo Picentino. Entre Ásculo e Interocreia, dispersaremos, depois de atirarmos as nossas armaduras e armas para o rio Avente. A partir de Interocreia, precisarei de um salvo-conduto para mim e para os meus homens até Roma, ou seja, até ao tribunal do pretor. Peço-te também que me dês uma carta que entregarei ao pretor, confirmando a minha história e dando a tua aprovação à concessão da cidadania a todos os Marsos que aqui vês.

Fez-se silêncio. Observando a cena de um recanto distante, Cícero e Pompeu olhavam atentamente para as expressões dos dois chefes militares.

- O meu pai não vai concordar - murmurou Pompeu.

- Porque não?

- Porque deseja uma grande batalha.

E é de tais caprichos, de tais desejos, que depende o destino dos povos e das nações?, perguntou Cícero para si mesmo.

- Percebo as razões que te levam a tomar tal atitude, Públio Vétio - disse finalmente Pompeu Estrabão. - Só que não posso concordar. A tua espada e as espadas dos teus homens fizeram correr já demasiado sangue romano. Se queres atravessar as nossas linhas a fim de te apresentares ao pretor em Roma, terás de combater até lá chegares.

Escaulo levantou-se, batendo com as mãos nas coxas.

- Bom, de qualquer modo valeu a pena tentar - disse. - Agradeço a tua hospitalidade, Cneu Pompeu, mas já é tempo de o meu exército voltar à base.

Os marsos deixaram o acampamento romano já era noite; quando já estavam suficientemente longe, Pompeu Estrabão fez soar as trombetas: era hora de o acampamento se lançar numa actividade perfeitamente ordenada.

- Vão atacar amanhã, provavelmente em duas frentes - disse Pompeu, cortando com a espada os pelos muito claros de um dos antebraços.

- Vai ser uma bela batalha.

- E eu, que vou fazer? - perguntou Cícero, com um ar aflito. Pompeu embainhou a espada e preparou-se para dormir; os outros cadetes entregavam-se aos preparativos da batalha e por isso Cícero e Pompeu estavam sós na tenda.

- Veste a cota de malha, põe o capacete, a espada e a adaga a postos, e deixa o teu escudo e a tua lança, como todos os outros, à porta da tenda de comando - retorquiu, animadamente, Pompeu. – Se os marsos irromperem pelo acampamento, Marco Túlio, terás de lutar como um bravo até ao último momento!

Os marsos não irromperam pelo acampamento romano. Cícero ouviu os gritos e o alarido de uma batalha longínqua, mas nada viu até que Pompeu Estrabão voltou com o filho. Ambos estavam no maior desalinho e manchados de sangue, mas nos seus rostos brilhavam sorrisos de satisfação.

- Frauco, o lugar-tenente de Escalo, está morto - disse Pompeu a Cícero. - Pusemos os marsos em debandada. Os marsos mais uma força de picentinos. Escaulo fugiu com alguns dos seus homens, mas nós cortámos todos os acessos às estradas. Se quiserem voltar a Marrúvio, terão de fazê-lo pelas montanhas, sem comida nem abrigos.

Cícero engoliu em seco.

- Deixar que homens morram de frio e fome parece ser uma das especialidades do teu pai - disse ele (uma tirada heróica!, pensou), com os joelhos a tremer.

- Isso deixa-te doente, não é, meu pobre Marco Túlio? - perguntou Pompeu, rindo, e batendo afectuosamente nas costas do amigo. - Mas a guerra é a guerra, que se há-de fazer? Eles far-nos-iam exactamente o mesmo. A tua reacção é de repulsa, faz parte da tua natureza reagires assim. Talvez os homens demasiado inteligentes percam forçosamente todo o interesse pela guerra. Ainda bem que não sou intelegente! Não gostaria de lutar com um guerreiro tão intelegente como tu. Ainda bem que Roma tem muito mais homens como o meu pai e eu do que como tu. Roma chegou onde chegou lutando. Mas é preciso gente para dirigir as coisas no Fórum - e essa, Marco Túlio, é a tua arena.

E nessa Primavera a arena do Fórum estava tão conturbada como qualquer teatro de guerra, dado que Aulo Semprónio Asélio entrara em conflito com os financeiros que se dedicavam ao empréstimo de dinheiro. As finanças de Roma, tanto as públicas como as privadas, encontravam-se em pior estado do que durante a segunda guerra púnica, quando Aníbal ocupara a Itália e isolara Roma. A comunidade comercial parecia estar falida, o Tesouro encontrava-se praticamente vazio, e pouco era o dinheiro que entrava nos seus cofres. Mesmo as regiões da Campânia que se encontravam nas mãos dos Romanos viviam uma situação tão caótica que era impensável cobrar impostos fosse onde fosse; os questores tinham dificuldade em fazer com que fossem pagas as taxas alfandegárias e portuárias, pois um dos dois maiores portos, Brundísio, encontrava-se completamente isolado; os Italianos eram insurrectos e, como tal, não pagavam um sestércio para os cofres de Roma; usando como desculpa as recentes acções do rei Mitridates, a Província da Ásia demorava a pagar o que devia a Roma; quanto à Bitínia, nada pagava; e os impostos da África e da Sicília iam todos para as compras suplementares de trigo antes que pudessem deixar a África ou a Sicília. Para piorar as coisas, Roma devia dinheiro a uma das suas províncias, a Gália Italiana, de onde vinha a maior parte das armas. A emissão de denários desvalorizados, por iniciativa de Marco Lívio Druso, provocara uma extrema desconfiança em relação ao dinheiro cunhado; para contornar esta dificuldade, procedia-se a uma cunhagem excessiva de sestércios. As pessoas com rendimentos médios e altos pediam frequentemente dinheiro emprestado, e a taxa de juro era mais alta do que nunca.

Aulo Semprónio Asélio, um bom especialista em questões comerciais e financeiras, decidiu que a melhor maneira de enfrentar tal situação consistia em atenuar as dívidas. A sua técnica era atractiva e legal; invocou uma antiga lei que proibia o pagamento de toda e qualquer soma por quem pedia dinheiro emprestado. Por outras palavras, dizia Asélio, era ilegal cobrar juros pelo dinheiro emprestado. Era pena, acrescentava, que aquela lei tivesse sido ignorada durante séculos e que a usura fosse um negócio florescente entre um largo grupo de cavaleiros-financeiros. O problema, acentuava, estava em que havia muito mais cavaleiros-financeiros a pedir emprestado do que a emprestar. Enquanto a situação desses cavaleiros-financeiros não se normalizasse, ninguém em Roma poderia começar a recuperar do desastre. O número de empréstimos por pagar aumentava todos os dias. Os devedores não sabiam para onde se virar e, como os tribunais que julgavam os casos de falência, se encontravam fechados, como qualquer outro tribunal, os credores recorriam a meios violentos para reaverem o seu dinheiro.

Antes que Asélio conseguisse pôr em prática a antiga lei, os agiotas souberam da sua intenção e pediram-lhe que reabrisse os tribunais para os casos de falência.

- Tat? - exclamou. - O quê? Roma encontra-se devastada pela mais séria crise desde os tempos de Aníbal, e os homens que vejo à minha frente atrevem-se a pedir-me que piore ainda mais as coisas? Pois saibam desde já o que penso de vocês: vocês não passam de um pequeno grupo de repugnantes avarentos! Desapareçam! Se não se põem já a andar, garanto-lhes que terão um tribunal reaberto! Um tribunal para vos julgar a vocês todos por cobrarem juros pelo dinheiro que emprestam!

Asélio recusava-se a alterar a sua posição um milímetro que fosse. Se mais não podia fazer pelos devedores do que insistir que o juro era ilegal, a verdade é que, dessa forma, diminuía fortemente a carga da dívida, e seguindo vias perfeitamente legais. Os empréstimos que fossem pagos, dizia Asélio. Mas não o juro. Era tradição dos Semprónios protegerem os oprimidos; ansiando por seguir tal tradição, Asélio entregou-se à sua missão com todo o fervor de um fanático, tornando os seus inimigos impotentes à face da lei.

No entanto, Asélio esqueceu-se de levar em linha de conta que nem todos os seus inimigos eram cavaleiros. Havia também senadores envolvidos na agiotagem, embora o estatuto do senador proibisse todas as actividades comerciais - e em especial uma actividade tão sórdida como a usura. Entre os senadores agiotas, contava-se Lúcio Cássio, um tribuno da plebe. Quando a guerra rebentou, Cássio decidiu lançar-se nos negócios pois os seus rendimentos como senador eram muito baixos: com a diminuição das hipóteses de uma vitória romana, os devedores de Cássio começaram a faltar aos seus compromissos; por outro lado, pairava sobre ele a ameaça de um inquérito fiscal, que os novos censores podiam lançar a qualquer momento. Embora não fosse o maior usurário do Senado, Lúcio Cássio era, contudo, o mais jovem, o mais desesperado e, por natureza, um infractor da lei. E Cássio acabou por agir, não só em seu nome próprio, mas em nome de todos os usurários.

Asélio era um augure. Como era também o pretor urbano, examinava regularmente os augúrios, instalado no pódio do templo de Castor e Pólux. Alguns dias após a sua confrontação verbal com os usurários, e enquanto examinava os auspícios, reparou que a multidão concentrada no Fórum era muito mais vasta que o habitual.

No momento em que pegou numa tigela para fazer uma libação, alguém lhe atirou uma pedra. A pedra acertou-lhe ligeiramente acima da sobrancelha esquerda, deixando-o perfeitamente estonteado. Asélio largou a tigela que, com um estrépido metálico, caiu pelos degraus do templo abaixo, espalhando por todo o lado a sua água sagrada. Logo foram atiradas mais pedras, uma verdadeira chuva; agachado, e tapando a cabeça com a sua toga multicolorida, Asélio desceu a correr os degraus e, instintivamente, encaminhou-se para o templo de Vesta. Logo que perceberam o que se passava, as pessoas que, com boas intenções, tinham ido assistir à cerimónia, desataram a fugir; e os furibundos agiotas não tardaram a colocar-se entre Asélio e o santuário para onde queria fugir.

Asélio tinha nesse momento uma única hipótese de fuga: seguir pela estreita rua chamada Clivus Vestae, e subir os Degraus Vestais até à Via Nova, alguns metros apenas acima do Fórum. Com os usurários aos gritos atrás dele, Asélio correu desesperadamente para a Via Nova, uma rua de tabernas frequentadas por gente do Palatino e do Fórum Romano. Gritando por socorro, irrompeu em pânico pela taberna que pertencia a Públio Cloácio.

Mas ninguém socorreu Asélio. Enquanto dois homens agarravam Cloácio e outros dois o seu empregado, o resto da multidão pegou em Asélio e atirou-o para cima de uma mesa, como se ele fosse uma vítima sacrificial nas mãos dos acólitos do augure. Com tal fúria lhe cortaram a garganta que a faca chegou aos ossos da nuca. Asélio morreu em cima daquela mesa, num banho de sangue, enquanto Públio Cloácio chorava, e jurava, jurava que não conhecia ninguém entre aquela gente que lhe invadira a taberna, Ninguém.

E ao que parece, ninguém em Roma fazia a mínima ideia de quem poderiam ter sido os assassinos. Aterrorizado tanto com os aspectos sacrílegos do assassínio como com o assassínio propriamente dito, o Senado ofereceu um prémio de dez mil denários por qualquer informação que conduzisse à detenção dos assassinos, deplorando publicamente o assassínio de um augure vestido com todos os seus atavios e quando procedia a uma cerimónia oficial. Como nos oito dias seguintes ao anúncio, não recebeu qualquer informação, o Senado decidiu-se a juntar alguns incentivos à recompensa inicial - perdão, no caso de o informador ter sido cúmplice, emancipação, se o mesmo fosse um escravo ou uma escrava, promoção a um tribo rural, para um liberto ou uma liberta. Mas nem mesmo assim a tão desejada denúncia chegava ao Senado.

- Outra coisa não seria de esperar - disse Caio Mário ao jovem César, enquanto passeavam pelo jardim do peristilo. - Os agiotas pagaram bem para abafar o caso.

- É o que diz Lúcio Decúmio. Mário parou.

- Mas que intimidade tens tu com esse arquivilão? - perguntou.

- Muita, Caio Mário. Ele sabe de tudo. Está muitíssimo bem informado.

- A maior parte dessas informações não é para os teus ouvidos jovens!

O filho de Aurélia sorriu.

- Os meus ouvidos cresceram tanto como o resto do meu corpo, Caio Mário. O bairro de Subura faz crescer rapidamente qualquer um. Duvido que haja muita coisa capaz de me perturbar.

- Descarado! - exclamou Caio Mário, fazendo uma festa, com a sua enorme mão direita, na cabeça do rapaz.

- Este jardim é demasiado pequeno para nós, Caio Mário. Se queres que o teu lado esquerdo volte a funcionar, temos de começar a alargar os passeios. E a andar mais depressa - disse o jovem, com firmeza e autoridade, num tom que não admitia contestação.

- Eu não permito que Roma me veja neste estado! - contestou, porém, Caio Mário.

Deliberadamente, César largou o braço esquerdo de Caio Mário e deixou que o Grande Homem cambaleasse. Quando a queda parecia inevitável, o jovem aguentou Mário com impressionante facilidade. Mário sentia-se espantado sempre que o jovem, com o seu fraco arcaboiço, punha à prova a sua força. Além de possuir uma força invulgar, o jovem César sabia como usá-la, como que possuído de um estranho instinto.

- Caio Mário, eu deixei de te chamar tio desde que vim para ao pé de ti. Porque penso que a trombose que sofreste nos pôs praticamente ao mesmo nível. A tua dignitas encontra-se diminuída, ao passo que a minha se ampliou. Somos iguais. Porém, nalgumas coisas, não há dúvida que te sou infinitamente superior - disse o rapaz sem qualquer receio. - Acedendo a um pedido de minha mãe, e porque pensei que os meus préstimos podiam ser úteis a um grande homem como tu, renunciei aos meus tempos livres para te fazer companhia e para te ajudar a voltar ao normal. Tu não queres continuar deitado no divã, não queres continuar a ouvir as minhas leituras e, quanto às histórias que tinhas para me contar, já mas contaste todas. Conheço todas as flores e todos os arbustos e todas as ervas deste jardim! E digo-to sem

rodeios: este jardim já deu o que tinha a dar! Por isso, amanhã, vamos sair por aquela porta e passear pela Clivus Argentarius. Não me interessa saber se vamos para cima, para os lados do Campo de Marte, ou se vamos para baixo, na direcção da Porta Fontinalis. O que interessa que fique claro, desde já, é que amanhã saímos!

Os furiosos olhos castanhos de Mário fixaram-se nos frios olhos azuis do jovem; por muito que fizesse para o ignorar, Mário, sempre que olhava para aqueles olhos, lembrava-se de Sila. Era como encontrar um gato selvagem numa caçada, e descobrir que os olhos que deveriam ser amarelos eram afinal de um azul pálido, cingido por um escuro aro. Dizia-se que tais gatos eram visitantes do outro mundo; e se tais homens também o fossem?

O duelo de olhares continuava.

- Não vou! - disse Mário.

- Vais.

- Que os deuses te traguem, jovem César! Eu não posso ceder a um rapaz! Não tens uma maneira mais diplomática de pôr as questões?

Os turbulentos olhos azuis do jovem encheram-se de uma jovialidade que lhes dava uma vida e uma sedução que os olhos de Sila desconheciam por completo.

- Contigo, não pode haver diplomacias, Caio Mário - disse o rapaz. - A linguagem diplomática é uma prerrogativa dos diplomatas. E tu não és um diplomata, graças a todos os deuses. Contigo, tudo é claro. E essa é uma qualidade de que gosto, tanto como gosto de toda a tua pessoa.

- Não vais aceitar uma resposta negativa, pois não, meu rapaz? perguntou Mário, sentindo-se vacilar na sua determinação. Primeiro o aço da espada, depois a luva de pele. Mas que técnica!

- Tens razão, não vou aceitar uma resposta negativa.

- Muito bem. Ajuda-me a sentar aqui. Se vamos sair amanhã, preciso de descansar agora um pouco. - Mário pigarreou, e logo prosseguiu: - E se fôssemos de liteira até à Via Recta? Podia descer aí e depois passeávamos o que quisesses.

- Quando chegarmos à Via Recta, Caio Mário, será unicamente graças aos teus esforços.

Por um momento ficaram em silêncio. O filho de Aurélia, muito quieto, reflectia. Há muito que percebera que Mário detestava que o contrariassem. Quando o dissera à mãe, ela limitara-se a aconselhá-lo
a não contrariar o tio. Talvez tivesse descoberto como levar a melhor sobre Caio Mário. Mas em relação à mãe, nunca o conseguiria!

O que a mãe lhe pedira que fizesse era algo que nenhum rapaz de dez anos quereria ou gostaria de fazer. Todos os dias, após as lições com Marco António Gnifão, em vez de ir passear com o seu amigo Caio Márcio, que vivia no outro apartamento do rés-do-chão, ia fazer companhia a Mário. Não tinha nenhum tempo para si mesmo porque a mãe não lhe permitia perder um dia, uma hora, um momento, com os seus próprios interesses.

- É o teu dever - dizia-lhe ela nas raras ocasiões em que ele lhe pedia que o deixasse ir com Caio Mário ao Campo de Marte a fim de assistir a algum acontecimento especial: a escolha dos cavalos que disputariam a corrida de Outubro, ou uma equipa de gladiadores contratados para um funeral, avançando com o seu passo pomposo e o seu ar empertigado.

- Mas a minha vida são só deveres? - retorquiu ele. - Não me é permitido esquecer o dever nem que seja por um breve momento?

- Não, Caio Júlio - respondeu Aurélia. - O dever está presente em todos os momentos da tua vida, o dever está presente mesmo no ar que respiras. E não podes trocar o cumprimento do dever pela satisfação dos teus desejos.

E lá ia ele todos os dias para casa de Caio Mário, com o seu passo decidido, lembrando-se de que tinha de saudar e sorrir para as pessoas conhecidas por quem passava nas movimentadas ruas de Subura. Quando passava pelas livrarias do Argileto, obrigava-se a andar um pouco mais depressa, não fosse sucumbir ao desejo de entrar. Tudo isto era fruto dos ponderados, mas implacáveis, ensinamentos de Aurélia nada de vadiar, nunca dês a impressão de que tens tempo de sobra, não te permitas nunca a diversão mesmo quando se trata de livros, sorri e saúda todas as pessoas que te conhecem e muitas que não te conhecem sequer.

Por vezes, antes de bater à porta de Caio Mário, subia a correr os degraus da torre Fontinalis e, do alto da torre, contemplava o Campo de Marte, desejando lá estar com os outros rapazes - esgrimindo com uma espada de madeira, deitando por terra um fanfarrão imbecil, roubando rabanetes nos campos ao longo da Via Recta, participando nas brincadeiras e nas brigas. Mas os seus olhos pouco se demoravam a apreciar a cena; descia numa pressa os degraus da torre e batia à porta de Caio Mário antes que alguém pudesse aperceber-se de que estava uns minutos atrasado.

Adorava a tia Júlia que era quem normalmente lhe abria a porta; tinha sempre um sorriso especial para ele, bem como um beijo. Que maravilha, aquele beijo! Que maravilha ser beijado por alguém! A mãe não aprovava o hábito, dizia que tinha uma influência nociva, que era um hábito demasiado grego para ser moralmente correcto. Felizmente que a tia Júlia não era da mesma opinião. Quando ela inclinava a cabeça para o beijar na boca - e ela nunca evitava beijá-lo na boca -, o jovem César baixava as pálpebras e respirava tão profundamente quanto podia, pois queria reter todo o perfume dela nas suas narinas. Muitos anos após a morte de Júlia, Caio Júlio César, já um homem, continuaria a sentir reminiscências daquele perfume na pele de outras mulheres, e, sempre que isso acontecia, as lágrimas inundavam-lhe os olhos, irreprimíveis.

Mal ele chegava, Júlia dizia-lhe como estavam as coisas com Caio Mário: ”Hoje está muito rabugento”, ou, ”Um amigo veio vê-lo. Está com uma                     disposição óptima”, ou ainda, ”Está muito deprimido, acha que a paralisia está a piorar”.

Habitualmente, Júlia servia-lhe o jantar a meio da tarde; e, enquanto ela dava de comer ao marido, o jovem César podia descansar das suas lides de companheiro de Caio Mário. Ia para a sala de trabalho da tia e, confortavelmente sentado no divã, lia um livro enquanto comia algo que em casa nunca poderia fazer - e mergulhava nos feitos dos heróis ou nos versos de um poeta. As palavras tinham sobre ele um poder mágico. Faziam com que o seu coração se inebriasse, voasse, galopasse. Havia escritores que, como Homero, lhe abriam as portas de um mundo que lhe parecia mais real do que aquele em que vivia.

”Tal é a sua beleza que nem a morte conseguirá desfeá-lo”, repetia ele para si mesmo, imaginando o jovem guerreiro morto - tão corajoso, tão nobre, tão perfeito que, fosse ele Aquiles ou Heitor ou Pátroclo, triunfava mesmo sobre a própria morte.

Porém, mal ouvia a tia a chamá-lo, ou uma criada a bater à porta, anunciando que Caio Mário pretendia de novo a sua companhia, o filho de Aurélia largava imediatamente o livro, e dispunha-se, sem ressentimentos ou frustração, a cumprir o seu dever.

Caio Mário era, para aquele rapaz de dez anos, uma pesada carga. Um velho, magro de início, engordara depois, e finalmente voltara a emagrecer, ficando com as peles caídas, e aquela papada horrível do lado esquerdo, um monte de pele desabando. E aquele olhar terrível naqueles olhos terríveis. Babava-se no lado esquerdo da boca, aparentemente sem saber que se babava, de tal modo que a saliva caía sobre a túnica, empapando-a permanentemente. Por vezes arengava, a maior parte delas para o seu desafortunado cachorrinho de guarda, a única pessoa que estava com ele o tempo suficiente para poder ser testemunha de toda a sua ira verbal; outras vezes, chorava, e as lágrimas juntavam-se ao cuspo e ao fio que lhe corria do nariz; outras vezes ainda, desatava a rir, como um louco, de qualquer piada, até que Júlia aparecia, com o sorriso que permanentemente exibia, e afavelmente mandava o sobrinho para casa.

De início, o jovem César sentiu-se perfeitamente desorientado, sem saber o que fazer ou como fazê-lo. Mas eram infinitos os seus recursos e, com o tempo, acabou por saber como lidar com Caio Mário. A questão, para ele, era simples: ou aprendia a lidar com o tio, ou falhava na missão que a mãe lhe havia confiado - e falhar era algo de impensável, tão assustador que nem queria pensar nas consequências que daí poderiam advir. Ao mesmo tempo, descobriu as imperfeições da sua própria natureza. Primeiro que tudo, faltava-lhe a paciência, embora a educação que a mãe lhe dera lhe permitisse esconder tal defeito sob montanhas do que parecia genuína paciência. De tal modo o escondia que, a partir de certa altura, deixou de saber a diferença entre a verdadeira e a falsa paciência. Pouco impressionável, depressa deixou de reparar em coisas tão desagradáveis como o facto de o tio se babar. Decidido e seguro de si, depressa percebeu o que era preciso fazer para que Caio Mário recuperasse. Nunca ninguém lho disse, porque só ele compreendia o estado do tio; nem mesmo os médicos poderiam ajudá-lo nesse particular. E afinal a solução era simples: Caio Mário tinha de ser obrigado a mexer-se, a fazer exercício, a andar. Caio Mário tinha de se convencer de que poderia voltar a fazer uma vida normal.

- E que mais te disse Lúcio Decúmio, ou outro qualquer rufia de Subura, desses com quem te dás? - perguntou-lhe Mário.

O rapaz ficou surpreendido, tão súbita era a pergunta, e tão distante dos seus próprios pensamentos.

- Bom, acho que descobri uma coisa. E parece-me que tenho razão. Francamente.

- O que é?

- A razão que levou Catão, o cônsul, a deixar o Sâmnio e a Campânia nas mãos de Lúcio Cornélio e a transferir o seu quartel-general para as terras dos Marsos, ou seja, para o comando que te pertencia a ti.

- Ah, que interessante! Conta-me lá a tua teoria, meu rapaz.

- A minha teoria é acerca do tipo de homem que julgo que Lúcio Cornélio é - retorquiu o jovem César com um ar muito sério.

- E que tipo de homem é ele?

- Um homem capaz de meter muito medo aos outros homens.

- Perfeitamente capaz!

- Ele deve ter sabido que nunca ficaria com o comando do Sul. O comando do Sul pertence ao cônsul. De modo que nem se deu ao trabalho de protestar ou de lutar pelo cargo. Esperou muito simplesmente que Lúcio Catão chegasse a Cápua; depois, meteu-lhe um tal susto que Catão decidiu num ápice afastar-se o mais possível da Campânia.

- E como é que chegaste a essa conclusão?

- Juntando as informações que me forneceram Lúcio Decúmio e a minha mãe.

- Sim, ela deve saber qualquer coisa - disse Mário num tom misterioso.

De sobrolho franzido, o jovem César mirou de soslaio o tio e encolheu os ombros.

- Tendo o comando nas suas mãos e sem nenhum estúpido a incomodá-lo, Lúcio Cornélio concluiu que tinha de dar o melhor de si. Creio que ele é um óptimo general.

- Não tão bom como eu - retorquiu Mário, com um suspiro que era quase um soluço.

A reacção do rapaz foi imediata.

- Não quero que sintas pena de ti mesmo, Caio Mário! Voltarás a ter condições para assumir o comando, especialmente depois de sairmos deste estúpido jardim.

Incapaz de enfrentar o ataque do sobrinho, Mário mudou de assunto.

- E as tuas fontes de informação suburbanas disseram-te, por acaso, se Catão se tem saído bem contra os Marsos? - perguntou ele, irritado. - Nunca ninguém me diz o que se passa! Têm medo de que tais informações me possam perturbar! Mas o que me perturba é não saber nada de nada. Se não fosses tu, explodia!

O filho de Aurélia pôs um sorriso de todo o tamanho.

- As minhas fontes disseram-me que o cônsul teve problemas mal chegou a Tíbur. Pompeu Estrabão ficou com as tuas antigas tropas (lá nisso ele é óptimo!) e Lúcio Catão deu consigo a comandar recrutas sem experiência: jovens da Umbria e da Etrúria, recentemente emancipados. E o pior é que nem ele nem os seus lugares-tenentes sabem treinar tropas. De modo que começou o seu programa de preparação militar com uma assembleia de todo o exército. Tratou todos os soldados presentes abaixo de cão. Sabes como é... Chamou-lhes idiotas, labregos, cretinos, bárbaros, miseráveis vermes, e outros mimos do género. Disse-lhes que estava habituado a lidar com soldados a sério, e não com aquilo que tinha à sua frente, e que se não se aplicassem acabavam mortos. Enfim, esse tipo de conversa.

- Igualzinho a Lupo e a Cepião! - exclamou Mário, incrédulo.

- Um dos homens que estava em Tíbur é amigo de Lúcio Decúmio. Chama-se Tito Titínio. É um centurião na reserva, a quem deste alguma terra na Etrúria após a vitória de Vercelas. Ele diz que em tempos te foi muito útil.

- Sim, lembro-me dele perfeitamente - disse Mário, tentando sorrir e babando-se copiosamente.

O jovem César pegou no ”lenço de Mário”, como lhe chamava, e limpou cuidadosamente a saliva.

- De vez em quando vem a Roma e fica em casa de Lúcio Decúmio porque gosta de saber o que se passa no Fórum. Mas quando a guerra rebentou, alistou-se como centurião instrutor. Esteve em Cápua durante muito tempo, mas, no princípio deste ano, ordenaram-lhe que fosse ajudar Catão.

- Presumo que Tito Titínio e os outros instrutores não tinham tido ainda qualquer hipótese de treinar os soldados, quando Catão fez o tal discurso em Tíbur.

- Precisamente. Mas Catão não os excluiu das suas diatribes. E foi por isso que surgiram os problemas. Tito Titínio ficou tão furibundo com as palavras de Catão que, a certa altura, não podendo mais ouvi-lo, ajoelhou, pegou num bocado de terra e atirou-o à cara de Catão! Bom, está-se mesmo a ver o que aconteceu a seguir: toda a gente desatou a bombardear Catão com a terra que conseguia arrancar. Catão acabou no meio de um monte de terra que lhe chegava aos joelhos e com o seu exército a um passo de se amotinar. - Inspirado, o rapaz deu um risinho de satisfação. - Acabou desfigurado, enlameado e silenciado!

- Deixa-te de literatices e prossegue com a história!

- Desculpa, Caio Mário.

- Então? Que sucedeu?

- Catão não ficou ferido, mas concluiu que a sua dignitas e auctoritas tinham sofrido intoleravelmente. Em vez de pôr uma pedra sobre o incidente, mandou acorrentar Tito Titínio e enviou-o para Roma com uma carta pedindo ao Senado que o julgue por incitamento ao motim. Tito Titínio chegou esta manhã. Está na prisão de Lautúmias.

Mário fez um esforço para se levantar.

- Bom, essa história acaba de determinar qual será o nosso destino amanhã de manhã, meu rapaz! - disse ele, particularmente alegre.

- Vamos ver o que vai acontecer a Tito Titínio?

- Se as coisas se passarem no Senado, irei ao Senado, meu rapaz. Tu podes esperar por mim à entrada.

O jovem César ajudou o tio a levantar-se e, automaticamente, passou para o seu lado esquerdo a fim de suportar todo o peso daqueles membros sem vida. - Não vou precisar de fazer isso, Caio Mário. Ele vai ser levado à Assembleia da Plebe. O Senado não quer saber do caso Tito Titínio.

- Tu és um patrício, meu rapaz, e por isso não poderás assistir a uma reunião de Plebeus realizada no anfiteatro das Comitia. Mas eu também não poderei lá estar, todo o tempo de pé! Creio que o melhor será arranjarmos um bom local para assistir ao espectáculo. Talvez ao cimo dos degraus do Senado. Daí poderemos ver perfeitamente o circo!

- disse Mário. - Ah, era de uma coisa assim que eu precisava! O circo do Fórum é incomparavelmente melhor do que todos os jogos que os edis possam inventar!

Se Caio Mário tinha alguma dúvida acerca do amor que o povo de Roma lhe dedicava, por certo sossegou na manhã seguinte, quando saiu de casa e começou a subir a íngreme calçada da Clivus Argentarius, rua que atravessava a Porta Fontinalis e terminava no baixo Fórum. Na mão direita, levava uma bengala. E, do lado esquerdo, apoiava-se em Caio Júlio César. E num instante tinha toda a vizinhança à sua volta. Saudavam-no, choravam ao vê-lo. A cada passo que dava, e eram passos grotescos os seus, pois tinha de fazer uma força terrível com a perna direita, ao mesmo tempo que arrastava penosamente a esquerda, a multidão incitava-o a continuar. Depressa começou a ouvir-se, muito à frente dele, a boa nova:

- Caio Mário! Caio Mário!

Quando chegou ao baixo Fórum, os vivas eram ensurdecedores. Com a fronte suada, apoiando-se mais no sobrinho do que parecia (de facto, só ele e o sobrinho sabiam a força que ele fazia e que o jovem César tinha de aguentar), Caio Mário avançou pelo anfiteatro dos Comitia. Duas dúzias de senadores correram a ajudá-lo, no intuito de o levarem até ao cimo do pódio da Cúria Hostília. Mas ele recusou. Degrau a degrau, fez todo o caminho contando apenas com o apoio da bengala e do sobrinho. E foi com a ajuda do rapaz que se sentou na cadeira curul que entretanto alguém fora buscar.

- A perna esquerda - disse ele, arquejante.

O jovem César compreendeu imediatamente, ajoelhou-se e puxou a perna inútil para a frente, deixando-a repousar esticada. Depois, pegou no braço inanimado e colocou-o sobre o colo de Mário, escondendo os dedos, rígidos e pegados uns aos outros, sob uma dobra da toga.

Caio Mário estava mais regiamente sentado que um rei. Mexendo ligeiramente a cabeça, agradecia as saudações enquanto o suor lhe rolava pela cara e o peito trabalhava como um gigantesco fole. Os Plebeus encontravam-se já presentes, mas todos os homens que se encontravam no anfiteatro dos Comitia se viraram para os degraus do Senado e saudaram Caio Mário, após o que os dez tribunos da plebe, que se encontravam nos rostra, pediram à multidão que os acompanhasse em três sonoros hurras.

O rapaz, de pé ao lado da cadeira curul, fitou a multidão. Aquela era a sua primeira experiência da extraordinária euforia que tanta gente junta, e unida pelos mesmos objectivos, podia gerar. Sentia-se lisonjeado por estar tão perto da causa de toda aquela formidável alegria e compreendia o que deveria sentir-se por ser o Primeiro Homem de Roma. E quando os vivas se esbateram, os seus finos ouvidos não deixaram de captar certos murmúrios: ”Quem é aquele belo rapaz?”, perguntavam alguns elementos da multidão.

Caio Júlio César tinha consciência da sua beleza, e do efeito que ela produzia nos outros; como gostava que gostassem dele, gostava também de ser belo. Contudo, não podia esquecer-se do motivo por que ali estava. Se se esquecesse, a mãe ficaria furiosa, e ele detestava irritá-la. Uma gota de baba começava a aparecer no canto flácido da boca de Mário: tinha de a limpar. Pegou no lenço de Mário e, enquanto toda a multidão suspirava de terna admiração, limpou-lhe o suor do rosto e, ao mesmo tempo, fez desaparecer a gota de baba antes que alguém pudesse dar por ela.

- Comecem a vossa reunião, tribunos! - gritou bem alto Mário logo que encontrou forças.

- Tragam o prisioneiro Tito Titínio! - ordenou Pisão Frugi, o Presidente do Colégio. - Membros da Plebe, aqui reunidos nas vossas tribos, tem por fim esta assembleia decidir a sorte de um tal Tito Titínio, centurião pilus prior das legiões do cônsul Lúcio Pórcio Catão Liciniano. O seu caso foi-nos transmitido a nós, seus pares, pelo Senado de Roma, após o devido exame. O cônsul Lúcio Pórcio Catão Liciniano alega que Tito Titínio incitou as suas tropas ao motim, e pede que tratemos do seu caso tão severamente quanto a lei permite. Como o amotinamento é traição, estamos aqui para decidir se Tito Titínio deve viver ou morrer.

Pisão Frugi fez uma pausa, enquanto o prisioneiro, um homem corpulento, com pouco mais de cinquenta anos, vestido unicamente com uma túnica, com correntes nos pulsos e nos tornozelos, era conduzido para os rostra e levado para o lado de Pisão Frugi.

- Membros da Plebe, o cônsul Lúcio Pórcio Catão Liciniano afirma numa carta que convocou uma assembleia de todas as legiões do seu exército, e que, enquanto se dirigia a esta assembleia legalmente convocada, Tito Titínio, o prisioneiro que aqui vêem, o atingiu com um projéctil, tendo depois incitado todos os homens presentes a fazer o mesmo. A carta traz o selo do cônsul.

Pisão Frugi virou-se para o prisioneiro.

- Tito Titínio, que tens a dizer?

- Isso é verdade, tribuno. De facto, atingi o cônsul com um projéctil.

- O centurião calou-se por um momento, acrescentando depois: Atingi-o com um torrão de terra mole. Esse foi o projéctil que lhe atirei. E quando o atirei todos os homens à minha volta fizeram o mesmo.

- Um torrão de terra mole - repetiu lentamente Pisão Frugi. - E o que te levou a atirar tal projéctil ao teu comandante?

- O meu comandante chamou-nos labregos, miseráveis vermes, camponeses imbecis, e muitas outras coisas! - gritou Tito Titínio. Não me teria importado que ele nos tivesse chamado mentulae e cunni, tribuno; isso são nomes que um general habitualmente chama aos seus homens. - Respirou fundo, e a sua voz atroou de novo. - Se eu tivesse ovos podres ali ao pé, ter-lhe-ia atirado ovos podres! Mas uma bola de terra mole é o melhor que há depois dos ovos podres, e terra mole havia muita, ali mesmo à mão de semear! Pouco me importa que me estrangulem ou que me atirem da rocha Tarpeia! Porque se eu volto a ver Lúcio Catão à minha frente, podem ter a certeza de que não o vou tratar bem!

Titínio virou-se para os degraus do Senado e apontou para Caio Mário.

- Estão a ver aquele homem? Pois aquele homem é um verdadeiro general! Eu servi sob as ordens de Caio Mário, como legionário, na Numídia, e como centurião, na Gália! Quando abandonei o exército, Caio Mário deu-me um pedaço das suas propriedades da Etrúria. Pois oiçam-me com atenção, membros da Plebe! Caio Mário nunca apanharia com bolas de terra lançadas pelos seus soldados! Caio Mário amava os seus soldados! Não os tratava com desprezo como Lúcio Catão! Caio Mário nunca teria mandado acorrentar um soldado seu, enviando-o depois para Roma a fim de ser julgado por civis, se esse soldado lhe tivesse atirado alguma coisa! O general Caio Mário teria desfeito a cara desse homem naquilo que eu ele lhe tivesse atirado! E digo-lhes mais: Lúcio Catão não é um general digno desse nome e Roma não lhe ficará a dever nenhuma vitória! Um general resolve os seus próprios problemas. Não os manda para uma assembleia de tribos!

Mal Tito Titínio acabou de falar, caiu em todo o Fórum um profundo silêncio.

Finalmente, Pisão Frugi, após um sentido suspiro, virou-se para Caio Mário e perguntou-lhe:

- Caio Mário, que farias tu com este homem?

- Ele é um centurião, Lúcio Calpúrnio Pisão Frugi. E é verdade o que ele diz: de facto, conheço-o. É um homem demasiado bom e útil para que nos possamos dar ao luxo de o perdermos. Mas a verdade é que encheu o seu comandante de terra e isso, fosse qual fosse a provocação, constitui uma ofensa militar. Ele não pode voltar para o cônsul Lúcio Pórcio Catão. Isso seria um insulto para o cônsul, que rejeitou os seus serviços, mandando-o para nós. Penso que, neste caso, a melhor maneira de servir os interesses de Roma será mandar Tito Titínio para outro general. Posso sugerir que regresse a Cápua e que retome aí as suas antigas tarefas?

- Que acham os meus colegas tribunos? - perguntou Pisão Frigi.

- Eu estou de acordo com a sugestão de Caio Mário - disse Silvano.

- E eu também - disse Carbão.

Os outros sete também concordavam.

- Que me diz o concilium plebisl É necessário proceder a uma votação formal, ou basta erguerem as mãos em sinal de assentimento?

Todas as mãos se ergueram.

- Tito Titínio, esta assembleia ordena-te que te apresentes a Quinto Lutácio Catulo, em Cápua - disse Pisão Frugi, sem permitir que soniso algum lhe aflorasse no rosto - Lictores, tirem-lhe as correntes. Ele está livre.

Mas Tito Titínio recusou-se a partir sem que o levassem junto de Caio Mário. Ao abeirar-se do seu antigo comandante, caiu de joelhos e desatou a chorar.

- Treina bem os teus recrutas de Cápua, Tito Titínio - disse Mário, de ombros caídos, exausto. - E agora, se me dão licença, são horas de voltar para casa.

Lúcio Decúmio surgiu de trás de um pilar, todo ele sorrisos, de mão estendida para Tito Titínio, mas de olhar fixo em Caio Mário.

- Tenho uma liteira à tua espera, Caio Mário.

- Eu não vou para casa de liteira! Os meus pés, se me trouxeram, também me hão-de levar! - retorquiu Caio Mário. - Meu rapaz, ajuda-me. - A enorme mão direita do general ferrou-se de imediato no magro braço do jovem César, com tal força que a carne do rapaz ficou vermelho-escura. No entanto, no rosto do filho de Aurélia, não havia qualquer sinal de dor: apenas uma expressão preocupada. Tratou então de ajudar o Grande Homem a levantar-se, como se tal tarefa não apresentasse a mínima dificuldade. Uma vez em pé, Mário pegou na bengala, o rapaz passou para o seu lado esquerdo, e lá foram os dois descendo os degraus como dois caranguejos pegados um ao outro. Meia Roma, ou assim parecia, escoltou-os até eles chegarem ao alto da colina, saudando cada esforço de Caio Mário.

Os criados lutaram pela honra de escoltar Mário até ao seu quarto, mal ele chegou a casa. Ninguém reparou no jovem César, que ficara para trás. Achando-se sozinho, deixou-se cair no chão do corredor entre a porta aberta e o átrio e ali ficou, uma massa inerte, os olhos cerrados. Júlia encontrou-o nesse mesmo local algum tempo depois.

Assustada, quase em pânico, ajoelhou ao lado dele, sentindo uma estranha relutância em pedir ajuda.

- Caio Júlio. Caio Júlio! Que tens tu?

Júlia envolveu-o nos seus braços. O corpo moldou-se a ela inerte, a pele lívida, a respiração muito ténue. Júlia sentiu-lhe o pulso e foi então que reparou na ferida que os dedos do marido tinham feito no braço do sobrinho.

- Caio Júlio, Caio Júlio!

Os olhos abriram-se, ele suspirou e sorriu, e as cores voltaram desde logo às suas faces.

- Eu trouxe-o para casa, tia?

- Sim, Caio Júlio, trouxeste-o para casa! Fizeste um trabalho magnífico! - retorquiu Júlia, quase chorando. - Ficaste mais cansado do que ele! Estes passeios são de mais para ti.

- Não, tia Júlia, não há problema. Eu aguento. A sério. Além disso, ele não sai com mais ninguém - disse Caio Júlio César, levantando-se.

- Sim, isso é verdade. Infortunadamente. Obrigada, Caio Júlio! Não há palavras que possam exprimir a minha gratidão! - disse a tia, que logo tratou de examinar a ferida. - Ele magoou-te. Vou pôr qualquer coisa nisso.

Os olhos do rapaz encheram-se de vida e luz, e na sua boca surgiu o sorriso que enchia sempre Júlia de uma ternura indizível.

- Não, tia Júlia, não ponhas nada. Eu sei de um remédio que curará a minha ferida.

- Que remédio?

- Um beijo. Um dos teus beijos.

Muitos foram os beijos que recebeu da tia, e todo o tipo de comida de que gostava, e um livro, e o divã da sala de trabalho dela para descansar; Júlia só o deixou ir para casa depois de ter mandado chamar Lúcio Decúmio. Nunca o teria deixado ir sozinho.

À medida que esse ano foi passando (marcando uma viragem na guerra a favor de Roma), Caio Mário e o jovem César foram-se tornando um dos centros das atenções dos romanos. O rapaz ajudando o homem, o homem cada vez mais capaz de se desembaraçar sozinho. Depois da primeira saída, deslocaram-se ao Campo de Marte, onde havia muito menos gente e os seus progressos acabaram por suscitar pouco interesse.

À medida que Mário foi recuperando as forças, os passeios tornaram-se mais longos, culminando no triunfante dia em que chegaram ao Tibre, ao fim da Via Recta; depois de um demorado descanso, Caio Mário nadou no Trigarium.

Logo que começou a nadar regularmente, os seus progressos aceleraram-se. Tal como o seu fascínio pelos exercícios marciais, tanto de infantaria como de cavalaria, a que podiam assistir no decorrer dos passeios; Mário decidira que chegara a hora de o filho de Aurélia dar início à sua instrução militar. Finalmente! Finalmente Caio Júlio César aprendia os rudimentos das artes que há tanto tempo ansiava conhecer. Atirado para cima da sela de um brioso pónei, demonstrou que era um cavaleiro nato; ele e Mário lutaram com espadas de madeira, mas como Mário não lhe encontrava nenhum defeito, logo decidiu que da próxima vez empunhariam espadas a sério; aprendeu depois a atirar o pilum, e nunca falhava o alvo; aprendeu a nadar logo que Mário se sentiu suficientemente à vontade na água para poder evitar qualquer problema que eventualmente acontecesse ao sobrinho; e ouviu da boca do tio um novo tipo de histórias: as recordações de um general no que dizia respeito ao comando das tropas.

- A maior parte dos comandantes perdem as suas batalhas antes de começarem a combater - disse-lhe Mário certo dia, enquanto descansavam na margem do rio, envoltos em mantos de linho.

- E por que razão, Caio Mário?

- Normalmente, são duas as razões. Alguns sabem tão pouco da arte de comando que pensam que tudo o que têm a fazer é apontar para o inimigo e mandar as legiões combatê-lo. Mas outros têm as suas cabeças tão cheias de manuais e de sugestões dos generais que os chefiaram quando eram cadetes, que se limitam a seguir o que vem nos livros, e isso equivale sempre a derrota. Cada inimigo, cada campanha, cada batalha, é algo de único, Caio Júlio. E se é algo de único, temos de estudá-lo com o respeito que se deve ao que é único. Planeamos o que vamos fazer na noite anterior à batalha. O nosso plano fica escrito numa folha de pergaminho. Mas não podemos considerá-lo pronto, acabado, definitivo. Para que o plano esteja concluído, pronto, acabado, temos primeiro de ver o inimigo, de conhecer a configuração do terreno, de saber como está formado o inimigo, de saber ainda quais são as suas fraquezas. E é então que o comandante decide! As ideias preconcebidas são quase sempre fatais. E, além disso, as coisas podem mudar à medida que a batalha decorre, pois cada momento é único! A disposição dos teus homens pode mudar, por exemplo. Ou o terreno onde se vai disputar a batalha pode transformar-se num lamaçal mais depressa do que esperamos. Ou pode levantar-se uma poeirada tal que deixemos de ver todos os sectores do campo. Ou quem sabe se o general inimigo não nos reservará uma surpresa. Ou quem sabe se o nosso plano não revela em determinado momento certas fraquezas com que não contávamos. Quem diz o nosso plano, diz o plano inimigo - afirmou Mário, entusiasmado.

- Nunca acontece uma batalha correr exactamente como tinha sido planeada na noite anterior? - perguntou o jovem César, os olhos brilhando de interesse e atenção.

- Sim, isso já aconteceu! Mas é quase tão raro como as galinhas terem dentes, meu rapaz. Lembra-te sempre disto: seja qual for o teu plano, e por muito complexo que ele seja, tens de estar sempre preparado para o alterar num abrir e fechar de olhos! E há uma outra noção muito importante, meu rapaz. Um plano deve ser tão simples quanto possível. Os planos simples dão sempre melhores resultados do que as monstruosidades tácticas, nem que seja pelo facto de que o general não pode melhorar o seu plano sem recorrer à cadeia de comando. E a cadeia de comando é algo que se torna cada vez mais obscuro à medida que se afasta do general.

- Pode-se concluir que um general tem de ter uma equipa muito bem treinada e um exército preparado na perfeição - disse o rapaz, com um ar pensativo.

- Sem a mínima dúvida! - exclamou Mário. - É por isso que um bom general deve sempre falar às suas tropas antes da batalha. Não para levantar o moral, jovem César, mas sim para que todos os seus homens fiquem a saber quais são os seus planos. Se eles conhecerem os planos do general, poderão interpretar facilmente as ordens que hão-de receber dos postos inferiores da cadeia de comando.

- É bom um general conhecer os seus soldados, não é?

- Claro que é. E também é bom que eles nos conheçam. E que gostem de nós. Se os soldados gostam do general que os comanda, entregar-se-ão com mais afinco às tarefas de que ele os incumbe e correrão maiores riscos por ele. Nunca te esqueças do que disse Tito Titínio nos rostra. O general pode chamar aos seus homens todos os nomes possíveis e imaginários, mas nunca deve fazê-los sentir que os despreza. Se o general conhece bem os seus soldados e estes conhecem bem o seu general, vinte mil legionários romanos poderão vencer cem mil bárbaros.

- Tu foste soldado antes de ser general.

- Fui. Uma vantagem que tu nunca terás, jovem César, porque és um patrício romano, um aristocrata. E no entanto a minha opinião sincera é esta: quem chega a general sem ter tido soldado, nunca poderá ser verdadeiramente um general. - Mário inclinou-se um pouco para a frente, os olhos fitando algo que ficava muito para lá do Trigarium e do bonito relvado da planície do Vaticano. - Os melhores generais são aqueles que foram soldados primeiro. Repara no caso de Catão, o Censor. Quando tiveres idade suficiente para ser cadete, não te escondas na retaguarda sob o pretexto de que assim poderás ser útil ao teu comandante - não, nada disso: o que deves fazer é ir para a frente e combater. Ignora a tua condição nobre. Transforma-te num soldado raso sempre que há uma batalha. Se o teu general puser alguma objecção ao teu comportamento e te disser que prefere que andes pelo campo de batalha levando mensagens, responde-lhe que preferes combater. Ele deixar-te-á combater porque é raro ouvir tais respostas da boca dos da tua condição. Tens de lutar como um vulgar soldado, jovem César. Caso contrário, quando chegares ao comando, não conseguirás entender aquilo por que os teus soldados passam quando soa a hora do combate. Não conseguirás entender aquilo que os assusta, o que os deixa retraídos e desconcertados, o que os anima, o que os leva a lutar como touros selvagens! E vou dizer-te mais uma coisa, meu rapaz!

- O quê? - perguntou ansioso o filho de Aurélio, bebendo todas as palavras, a respiração suspensa.

- É tempo de voltarmos para casa! - disse Mário, rindo-se. Até que reparou na expressão do sobrinho. - Ora, meu rapaz! Faz favor não me ponhas esse ar altivo e ofendido! - vociferou Mário, aborrecido porque a sua brincadeira tivera o efeito contrário e o jovem César estava literalmente furibundo.

- Não te atrevas a brincar comigo acerca de assunto tão importante!

- disse a criança, com uma voz tão terna e afável como a que Sila poderia usar em circunstâncias idênticas. - Isto é uma coisa séria, Caio Mário! Não estás aqui para me divertir! Eu quero saber tudo o que tu sabes antes de ter idade para ser cadete. Porque assim poderei partir de uma base mais sólida do que qualquer outro. E nunca pararei de aprender! Por isso deixa-te de brincadeiras que não têm graça nenhuma e trata-me como um homem!

- Mas tu não és um homem - disse Mário com pouca convicção, estupefacto com a tempestade que provocara e sem saber como lidar com ela.

- Quando se trata de aprender, sou mais homem do que qualquer homem que conheço, incluindo tu! - A voz do rapaz soava bem alto; várias pessoas que estavam por perto viraram-se para ver. Contudo, mesmo no meio de tanta fúria, o jovem conseguia ter alguma presença de espírito; olhou de soslaio para a vizinhança e levantou-se bruscamente, as narinas contraídas, os lábios franzidos. - Não me importo de ser uma criança quando a tia Júlia me trata como uma criança - disse ele, agora num tom de voz moderado. - Mas quando tu me tratas como uma criança, sinto-me...sinto-me...mortalmente ofendido! Por isso te aviso: não te permitirei uma coisa dessas! - Estendeu-lhe a mão para o ajudar a levantar-se. - Vamos, vamos para casa. Já estou sem paciência para te aturar.

Mário agarrou na mão do rapaz e para casa seguiu sem um murmúrio.

E ainda bem que não se demoraram mais junto ao rio, pois Júlia esperava por eles, à porta de casa, ansiosa, sinais de lágrimas recentes no rosto.

- Oh, Caio Mário, que coisa horrível! - exclamou ela, esquecendo-se de que o marido não podia enervar-se; embora sabendo que ele estava doente, Júlia continuava a vê-lo como o seu salvador, sempre que havia algum acontecimento mais perturbador.

- O que foi, meum mell

- O nosso filho! - Reparando na expressão inquieta do marido, Júlia desatou num discurso atrapalhado e frenético. - Não, não, meu amor, o nosso filho não está morto! Não, nada disso! E também não está ferido! Não! Desculpa, desculpa, eu devia evitar-te estes sustos...mas...mas...mas já nem sei onde estou, nem o que fazer!

- Então senta-te aqui e acalma-te, Júlia. Eu e Caio Júlio sentamo-nos ao teu lado, e tu vais contar-nos tudo calmamente, com clareza, sem pressas.

Júlia sentou-se, Mário e o sobrinho sentaram-se também, um de cada lado.

- Bom, começa lá - disse Mário.

- Houve uma grande batalha contra Quinto Popaedius Silão e os Marsos. Perto de Alba, creio. Os Marsos venceram. Mas o nosso exército conseguiu retirar sem que tivesse sofrido um número excessivo de baixas - disse Júlia.

- Bom, isso já é melhor - disse Mário com um ar grave. - Continua. Presumo que há mais.

- Lúcio Catão, o Cônsul, foi morto pouco antes de o nosso filho ter ordenado a retirada.

- O nosso filho ordenou a retirada?

- Sim - retorquiu Júlia, controlando resolutamente as lágrimas.

- Como sabes de tudo isso, Júlia?

- Quinto Lutácio passou cá por casa, queria falar contigo. Ele esteve em visita oficial ao teatro marso, suponho que por causa dos problemas que Lúcio Catão tem com as suas tropas. Não sei se foi essa a razão da sua visita, francamente não sei - disse Júlia, levando a mão à cabeça.

- Não interessam as razões por que Quinto Lutácio visitou o teatro marso - disse Mário gravemente.

- Ele assistiu à batalha que Catão perdeu. Foi isso, não foi?

- Não, ele estava em Tíbur. Foi para Tíbur que o nosso exército retirou depois da batalha. Foi, ao que parece, uma verdadeira debandada. Não havia ninguém capaz de conduzir os soldados. Parece que o único que conseguiu manter alguma presença de espírito foi o nosso filho. Foi por isso que ordenou a retirada. A caminho de Tíbur, ainda tentou restaurar a ordem nas nossas hostes, mas nada conseguiu. Os pobres soldados estavam como loucos.

- Nesse caso... qual é o problema, Júlia?

- Havia um pretor à espera deles em Tíbur. Um novo lugar-tenente de Lúcio Catão. Lúcio Cornélio Cina... tenho a certeza de que foi esse o nome que Quinto Lutácio disse. De modo que, quando o exército chegou a Tíbur, Lúcio Cina assumiu o comando, e tudo parecia estar a correr bem. Lúcio Cina elogiou mesmo o nosso filho pelo bom senso que demonstrou - disse Júlia, as mãos presas, inquietas.

- Tudo parecia estar a correr bem, disseste tu. Que aconteceu depois?

- Lúcio Cina convocou uma assembleia para saber as razões do nosso fracasso. Havia apenas alguns tribunos e cadetes. Todos os lugares-tenentes de Lúcio Catão, aparentemente, tinham morrido, pois nenhum deles voltara a Tíbur - disse Júlia, procurando desesperadamente manter-se lúcida. - Então, quando Lúcio Cina os interrogou acerca das circunstâncias que rodearam a morte de Lúcio Catão, um dos cadetes acusou o nosso filho de ter assassinado o cônsul!

- Estou a ver - retorquiu calmamente Mário, com um ar imperturbável. - Bom, Júlia, tu conheces a história, eu não. Continua.

- Esse cadete disse que o nosso filho tentara convencer Lúcio Catão a ordenar a retirada. Mas Lúcio Catão virou-se contra ele e chamou-lhe ”filho de um traidor italiano”. Lúcio Catão recusou-se a ordenar a retirada porque, disse ele, era preferível que todos morressem a viverem para sempre na desonra. E o outro cadete diz que o nosso filho pegou então na espada e enfiou-a, até ao punho, nas costas de Lúcio Catão! Depois o nosso filho assumiu o comando e ordenou a retirada. - Júlia já não conseguia controlar as lágrimas.

- Quinto Lutácio bem podia ter esperado por mim. Escusava de te apoquentar com essas notícias - disse Mário, inconformado.

- Acontece que ele não tinha tempo, Caio Mário - explicou Júlia, limpando as lágrimas e tentando acalmar-se. - Chamaram-no a Cápua com urgência, teve de partir imediatamente. Ele disse-me aliás que nem devia ter vindo a Roma visitar-nos porque isso o atrasava ainda mais. Devemos estar-lhe gratos. Ele disse que tu saberias o que fazer. E quando Quinto Lutácio disse isso, eu percebi que ele acreditava que o nosso filho tinha realmente morto Lúcio Catão! Oh, Caio Mário, que vais fazer? Que podes fazer? Que queria dizer Quinto Lutácio com aquilo?

- Tenho de ir para Tíbur com o meu amigo Caio Júlio - disse Mário, levantando-se.

- Não podes! - exclamou Júlia, ofegante.

- Claro que posso. Bom, agora acalma-te, mulher, e diz a Estrofantes que vá a casa de Aurélia e que lhe peça para mandar chamar Lúcio Decúmio. Ele poderá tratar de mim durante a viagem, e assim pouparemos as energias do rapaz. - Enquanto falava, Mário apertava com força o ombro do jovem César, não porque precisasse de apoio, mas mais como se estivesse a pedir-lhe silêncio.

- Deixa que Lúcio Decúmio te leve sozinho, Caio Mário - disse Júlia. - Caio Júlio tem de ir para casa, para ao pé da mãe.

- Sim, tens razão - disse Mário. - Vai para casa, jovem César. O filho de Aurélia retorquiu-lhe num tom bem claro.

- A minha mãe mandou-me para ao pé de ti para te ajudar - disse ele gravemente. - Se te abandonasse neste momento, ela ficaria muito zangada.

Mário teria insistido; mas foi Júlia, que sabia como era Aurélia, quem cedeu.

- Ele tem razão, Caio Mário. Leva-o contigo.

Uma hora depois, uma carruagem puxada por quatro mulas abandonava Roma levando Caio Mário, o jovem César e Lúcio Decúmio. Bom condutor, Lúcio Decúmio obrigou as quatro mulas a um trote enérgico, sabendo que os animais não chegariam exaustos a Tíbur.

Apertado entre Mário e Decúmio, o jovem César contemplou deliciado a paisagem campestre até a noite cair. Nunca fizera uma viagem em circunstâncias tão urgentes, mas, no fundo, tinha uma verdadeira paixão pela velocidade.

Embora tivessem uma diferença de idade de nove anos, César conhecia bem o primo, pois recordava-se dos primeiros anos da sua infância melhor do que qualquer outra criança. E não tinha motivo algum para gostar do jovem Mário. Não que o filho de Caio Mário alguma vez o tivesse tratado mal ou troçado dele. Não, o filho de Aurélia não gostava dele por causa de todos os outros que o jovem Mário tinha tratado mal. Entre os filhos de Mário e de Sila houvera sempre rivalidade: e o jovem César achava que o filho de Sila tivera sempre razão. Além disso, o jovem Mário enganara de forma cruel a filha de Sila: quando estava com ela, mostrava-se o mais encantador dos rapazes; no entanto, desprezava-a e troçava dela nas conversas com os primos e com os amigos. Por isso, a possibilidade de uma condenação do jovem Mário não preocupava profundamente o filho de Aurélia. O que o preocupava era o desgosto de Caio Mário e da tia Júlia. Isso, sim, deixava-o extremamente inquieto.

Quando a noite caiu, uma meia-lua iluminou a estrada. Apesar disso, Lúcio Decúmio abrandou bastante o ritmo das mulas. O rapaz adormeceu imediatamente, com a cabeça no colo de Mário e o corpo vencido pelo abandono total que só encontramos nas crianças e nos animais.

- Bom, Lúcio Decúmio, acho que seria uma boa ideia se falássemos. - disse Mário.

- Sem dúvida - retorquiu Lúcio Decúmio, num tom bem-disposto.

- O meu filho está com um grave problema.

- Tch! - disse Lúcio Decúmio, fazendo estalidos com a língua. Temos que resolver isso, Caio Mário.

- Foi acusado do assassínio do cônsul Catão.

- Do que ouvi dizer de Catão, deviam dar a Coroa de Erva ao jovem Mário por ter salvo um exército.

Mário desatou à gargalhada.

- Não posso estar mais de acordo. A acreditar no que me disse a minha esposa, o caso passou-se assim. Aquele idiota do Catão fez tudo mal, ou seja, fez tudo para sair derrotado. Imagino que os seus dois lugares-tenentes morreram na batalha e que os tribunos andavam a levar as suas mensagens para o campo de batalha, as mensagens erradas, provavelmente. A certa altura, julgo que Catão se viu com um equipa constituída unicamente por cadetes. E coube ao meu filho avisá-lo de que devia retirar. Catão respondeu que não, e chamou ao jovem Mário ”filho de um traidor italiano”. Nessa altura, e de acordo com outro cadete, o meu filho enterrou a sua bela espada romana nas costas do cônsul, e ordenou a retirada.

- Muito bem feito, Caio Mário!

- Bem e mal feito. Lamento que ele o tenha feito quando Catão estava de costas. Mas eu conheço o meu filho. Foi o seu génio, o seu temperamento, que o levou a cometer tal acto, e não a ausência do sentido de honra. Eu não estive com ele o tempo suficiente para lhe arrancar aquele maldito génio quando era criança. Além disso, ele é demasiado esperto para me revelar o seu mau génio. Aliás a mãe também não o conhece.

- Quantas testemunhas, Caio Mário?

- Apenas uma, tanto quanto sei. Mas só ficarei a saber realmente depois de me encontrar com Lúcio Cornélio Cina, que comanda agora as tropas. O meu filho terá naturalmente de responder às acusações. Se a testemunha mantiver a sua versão, ele será açoitado e degolado. Matar o cônsul não é apenas assassínio. É também nefas.

- Tch! Tch! - fez Lúcio Decúmio e nada mais disse.

Claro que Lúcio Decúmio sabia por que lhe tinham pedido que fizesse aquela viagem. O que o fascinava era o facto de Caio Mário o ter chamado. Caio Mário! O homem mais recto e mais honrado que Lúcio Decúmio conhecia. Que dissera Lúcio Sila anos antes? Que, mesmo quando seguia um caminho desonesto, Caio Mário o fazia de forma honesta. Contudo, desta feita, parecia que Caio Mário optara por meios desonestos. O que não estava de acordo com o seu carácter. Havia outras maneiras. Maneiras que (assim pensava Decúmio) Caio Mário teria pelo menos experimentado primeiro.

Lúcio Decúmio encolheu os ombros. Afinal Caio Mário era pai. E só tinha um filho. Um bem precioso. E até nem era mau rapaz, desde que não se ligasse à sua arrogância e presunção. Devia ser difícil ser-se filho de um Grande Homem. Especialmente se se era fraco. Não, lá corajoso ele era. E inteligente. Mas nunca seria um Grande Homem. Para isso precisava de ter tido uma vida dura. Mais dura do que a que o jovem Mário até então levara. Uma mãe tão boa, tão carinhosa! Se ele tivesse tido um mãe como a do jovem César, bom, aí talvez o caso mudasse de figura. Ela vigiava para que o jovem César levasse uma vida dura. Vigiava sempre. Não lhe permitia uma liberdade que fosse. Bom, e além disso, também não havia muito dinheiro na família.

Até então plana, a estrada transformou-se de súbito numa íngreme subida. As mulas, já cansadas, queriam parar. Mas Lúcio Decúmio deu-lhes com o chicote, chamou-lhes uns quantos nomes e, com os seus punhos de aço, obrigou-as a avançarem sem quebras.

Quinze anos antes, Lúcio Decúmio decidira, por sua própria iniciativa, ser guarda e protector da mãe do jovem César, Aurélia. Por essa mesma altura, encontrara uma nova fonte de rendimentos. Pelo nascimento, Lúcio Decúmio era um verdadeiro Romano; quanto à tribo, era membro da Palatina urbana; de acordo com o censo, era um membro da Quarta Classe; e no que toca à profissão, era zelador de uma congregação das encruzilhadas com sede no bloco de apartamentos de Aurélia. Um tanto pequeno de estatura, de tez indeterminada e traços perfeitamente anónimos, o aspecto pouco atraente e a escassa instrução escondiam uma fé inquebrantável na sua inteligência e força de carácter; dirigia a sua congregação como um general.

Oficialmente aprovada pelo pretor urbano, esta congregação cuidava das encruzilhadas da zona onde estava instalada, executando trabalhos que iam desde a limpeza das áreas em questão até à organização das Compitais, festas em honra dos deuses Lares das Encruzilhadas, passando pela prática de cultos devidos a esses deuses e pelas tarefas de manutenção da enorme fonte que fornecia água à zona. Eram membros da congregação todos os homens residentes no local, desde os membros da Segunda Classe à classe proletária, entre os romanos, e desde estrangeiros como judeus e sírios a libertos e escravos gregos; no entanto, a Segunda e a Terceira Classes não participavam na execução das tarefas da congregação: em vez disso, preferiam contribuir com donativos suficientemente generosos. Os homens que frequentavam as instalações supreendentemente limpas da congregação eram trabalhadores que lá passavam o seu dia de folga conversando e bebendo vinho barato. Todos os trabalhadores - libertos ou escravos - tinham um dia de folga após cada sete dias de trabalho: esse dia de folga variava, pois, consoante os trabalhadores. Assim, os frequentadores da congregação nunca eram os mesmos todos os dias. Mas sempre que Lúcio Decúmio anunciava que havia um trabalho a fazer, todos os homens presentes punham o vinho de lado e obedeciam às ordens do zelador da congregação.

Sob a égide de Lúcio Decúmio, a congregação entregara-se a actividades que nada tinham a ver com a conservação das encruzilhadas. Quando o tio e padrasto de Aurélia, Marco Aurélio Cota, lhe comprou uma ínsula, fazendo assim um bom investimento do seu dote, a jovem recém-casada, dotada de um temperamento intrépido, depressa se apercebeu que albergava na sua ínsula um grupo de homens que extorquia elevadas somas aos comerciantes em troca de protecção contra o vandalismo e a violência. Aurélia não demorou muito tempo a pôr um ponto final nessa situação. Só que Lúcio Decúmio e os seus confrades se viraram então para zonas onde Aurélia não conhecia as vítimas.

Na altura em que Aurélia adquirira a ínsula, Lúcio Decúmio tinha já descoberto um passatempo que, para além de se adequar perfeitamente à sua natureza, lhe ia enchendo os bolsos: tornara-se um assassino. Embora os seus feitos não ultrapassassem o domínio dos boatos, aqueles que o conheciam acreditavam que fora ele o responsável por muitas mortes políticas e comerciais, estrangeiras e domésticas. O facto de ninguém o incomodar devia-se basicamente à perícia e ao arrojo com que executava as suas operações criminosas. Nunca havia provas. No entanto, a natureza deste lucrativo passatempo era conhecida no bairro de Subura; como o próprio Lúcio Decúmio dizia, só ofereciam trabalhos a uma pessoa se soubessem que essa pessoa era um assassino. Havia acções cuja autoria rejeitava: e de novo acreditavam nele. O assassínio de Asélio, segundo ele, era obra de um amador, alguém que tinha posto em perigo Roma, matando um augure enquanto este cumpria as suas obrigações, envergando os trajes sacerdotais. E embora achasse

- e a sua opinião, nestes casos, era sempre levada em linha de conta

- que Metelo Numídico Suíno fora envenenado, Lúcio Decúmio anunciou a quem o quis ouvir que veneno era arma de mulher e, como tal, algo que lhe repugnava.

Apaixonara-se por Aurélia mal a vira. Não era um amor romântico ou carnal, insistira ele. Era sobretudo o reconhecimento instintivo de um espírito semelhante, de um espírito tão determinado, corajoso e inteligente como ele. Lúcio Decúmio oferecer-lhe-ia carinho e protecção para toda a vida. Mas a asa vulturina de Lúcio Decúmio serviria também para proteger os filhos de Aurélia. Idolatrava o jovem César. Amava-o mais do que aos seus dois filhos, já homens e habituados já ao tipo de vida da congregação das encruzilhadas. Durante anos, fora seu guarda e protector, passara muitas horas na sua companhia, revelara-lhe uma visão singularmente honesta do mundo em que o jovem César vivia, mostrava-lhe como funcionava a sua agência de serviços de protecção, e como um bom assassino executava os seus ”trabalhos”. O filho de Aurélia sabia tudo acerca de Lúcio Decúmio. Não havia nada que não compreendesse; o comportamento adequado a um patrício romano não servia para um romano da Quarta Classe que era zelador de uma congregação das encruzilhadas. Cada qual no seu lugar. Mas isso não impedia que fossem amigos, que gostassem verdadeiramente um do outro.

- Nós, a ralé romana, somos todos uns canalhas - explicara Lúcio Decúmio ao jovem César. - Tem mesmo de ser assim, se queremos comer e beber bem, e ter três ou quatro belas escravas e uma delas com um cunnus que valha a pena uma boa apalpadela. Mesmo que fôssemos espertos para os negócios, o que não é costume, onde é que arranjávamos capital? Não, um homem faz a sua túnica consoante o tecido que tem, essa é que é essa. - Encostou o dedo indicador direito ao nariz e pôs um sorriso de todo o tamanho, exibindo os seus dentes sujos. - Mas nem uma palavra Caio Júlio! Nem uma palavra a ninguém! E especialmente nada de conversas com a tua querida mãe.

Os segredos estavam e continuariam bem guardados. Nem mesmo Aurélia viria a conhecê-los. A educação do jovem César era afinal muito mais vasta do que ela alguma vez suspeitara.

Era meia-noite quando a carruagem chegou ao acampamento do exército, instalado logo a seguir à pequena aldeia de Tíbur. Caio Mário dirigiu-se imediatamente à tenda de comando e tratou de acordar Lúcio Cornélio Cina.

Caio Mário e Cornélio Cina mal se conheciam, pois havia entre eles uma diferença de idades de quase trinta anos; no entanto, pelos discursos que fizera no Senado, Cina era conhecido como um admirador de Mário. Fora um bom praetor urbanus - em tempo de guerra, a autoridade máxima em Roma, dada a ausência dos dois cônsules -, mas a confrontação com a Itália arruinara as suas hipóteses de enriquecer governando uma das províncias romanas.

Dois anos passados, verificava que não possuía o capital necessário para dar um bom dote às filhas, e tinha mesmo dúvidas quanto ao futuro da sua carreira senatorial. A promoção, decidida pelo Senado, ao comando do teatro de guerra marso, no seguimento da morte de Catão, não o entusiasmava nada; tal promoção significava apenas trabalho, muito trabalho, pois teria de pôr a funcionar uma estrutura que fora fortemente abalada por um homem tão incompetente quanto arrogante. Ah, onde estava a província que tanto desejara e que lhe traria os proventos de que tanto precisava?

Era um homem atarracado, com um rosto curtido pelo tempo e os maxilares metidos para dentro; apesar de muito pouco atraente, fizera um belíssimo casamento com Ânia, herdeira de uma rica família plebeia que há duzentos anos era consular. Cina e Ânia tinham três filhos duas raparigas, uma com quinze e a outra com cinco anos, e um rapaz de sete anos. Embora não fosse propriamente um beldade, Ânia não deixava de ser atraente, com a sua interessante cabeleira ruiva e uns olhos muito verdes; a filha mais velha herdara a sua tez, ao passo que os filhos mais novos eram tão morenos como o pai. Os traços físicos da filha mais velha passaram a ter uma importância inesperada quando Cneu Domício Aenobarbo Pontifex Maximus decidiu propor a Cina o casamento da rapariga com o seu filho mais velho, Cneu.

- Nós, os Domícios Aenobarbos, gostamos de mulheres ruivas dissera o Pontifex Maximus sem a mínima cerimónia. - A tua filha, Cornélia Cina, corresponde exactamente à imagem da mulher que eu desejo para o meu filho: tem a idade certa, é uma patrícia, e é ruiva. De início, cheguei a pensar na filha de Lúcio Sila. Mas ela vai casar com o filho de Quinto Pompeu Rufo, o que é sem dúvida uma pena. Mas a tua filha está perfeita para Cneu. A mesma gens e, suponho eu, um dote mais interessante ainda...

Cina engolira em seco, oferecera uma oração silenciosa a Juno Sospita e a Ops, e confiara na sua nomeação como governador de uma província que lhe desse muito, muito dinheiro.

- Quando chegar à idade de casar, a minha filha terá um dote de cinquenta talentos, Cneu Domício. Não posso dar-lhe mais. Que me dizes? É um dote satisfatório?

- Ah, perfeitamente! - disse Aenobarbo. - Cneu é o meu principal herdeiro e portanto para a tua filha será um bom casamento. Creio que sou um dos cinco ou seis homens mais ricos de Roma, e tenho milhares de clientes. Podemos anunciar os esponsais?

Tudo isto acontecera no ano anterior à eleição de Cina como pretor, e numa altura em que se compreendia que acreditasse na possibilidade de proporcionar um rico dote à filha. Se pudesse mexer na fortuna de Ânia, tudo teria sido mais fácil; no entanto, o pai de Ânia continuava a controlar o dinheiro da filha e, na morte dela, esse dinheiro não poderia ser herdado pelos filhos.

Quando Caio Mário o acordou, Cina não fazia a mínima ideia de quais poderiam ser as consequências daquela visita; aborrecido, pôs uma túnica e calçou umas sandálias e preparou-se para dizer uma série de coisas desagradáveis ao pai de um jovem que, em tempos, parecera tão prometedor.

O Grande Homem entrou na tenda de comando com uma escolta muito especial - um homem perfeitamente vulgar, talvez com perto de cinquenta anos, e um rapaz muito belo. Era o rapaz quem fazia a maior parte do trabalho, e de uma maneira que sugeria que estava habituado àquela tarefa. Cina teria pensado que se tratava de um escravo, não fora a bulia à volta do pescoço e o facto de o jovem se comportar como um patrício de uma família mais nobre que a dos Cornélios. Quando Mário se sentou, o rapaz ficou do seu lado esquerdo e o homem atrás dele, ambos de pé.

- Lúcio Cornélio Cina, apresento-te o meu sobrinho Caio Júlio César Júnior, e o meu amigo Lúcio Decúmio. Podes usar da maior franqueza diante deles. - Com a mão direita, Mário colocou a mão esquerda no colo; parecia menos cansado do que Cina esperava, e mais senhor das suas faculdades do que as notícias de Roma (no fundo, velhas notícias) davam a entender. Obviamente era ainda um homem espantoso. Mas não um adversário a temer, pensou Cina.

- É uma história trágica, Caio Mário.

Os olhos muito atentos de Mário passearam pela tenda à procura de alguém. Não tendo encontrado ninguém, voltaram a fixar-se em Cina.

- Estamos sós, Lúcio Cina?

- Completamente sós.

- Óptimo. - Mário instalou-se mais confortavelmente na sua cadeira.

- A notícia chegou-me por via indirecta. Quinto Lutácio foi a minha casa mas não me encontrou. Contou a história à minha mulher que, por seu turno, me repetiu o que ele disse. Pelo que ouvi, parece que o meu filho é acusado do assassínio de Lúcio Catão durante uma batalha e que há uma testemunha - ou testemunhas. É assim?

- Receio bem que sim.

- Quantas testemunhas?

- Apenas uma.

- E quem é essa testemunha? Um homem íntegro?

- Absolutamente, Caio Mário. Um contubernalis chamado Públio Cláudio Pulcro - disse Cina.

Mário resmungou.

- Ah, essa família! Essa família é conhecida por guardar ressentimentos e ter poucos amigos. Além disso, é tão pobre como um pastor da Apúlia. Como podes então afirmar peremptoriamente que a testemunha é absolutamente íntegra?

- Porque este Cláudio é muito pouco representativo dessa família

- respondeu Cina, decidido a acabar com as esperanças de Mário. A sua reputação na tenda contubernalis e em toda a equipa do falecido Lúcio Catão é superlativa. Compreenderás melhor as minhas palavras quando te encontrares com ele. É de uma lealdade ímpar em relação aos outros cadetes - é o mais velho - e nutre pelo teu filho uma afeição genuína. E também demonstra uma grande compreensão em relação ao que o teu filho fez, devo acrescentar. Lúcio Catão não era popular entre os seus oficiais, e ainda menos entre os seus soldados.

- E no entanto Públio Cláudio acusou o meu filho.

- Achou que era esse o seu dever.

- Ah, sim, estou a ver! Um moralista hipócrita! Mas Cina contestou-o.

- Não, Caio Mário, de modo nenhum! Pensa por um momento como comandante, e não como pai! Pulcro é um belíssimo romano, tão consciente dos seus deveres como da família que tem. O que ele fez foi cumprir o seu dever, ainda que isso não lhe agradasse. Esta é a verdade.

Quando Mário tentou levantar-se, o seu cansaço tornou-se mais visível; estava já habituado a levantar-se sem a ajuda, e agora não conseguia mexer-se sem o apoio do sobrinho. Lúcio Decúmio, digno representante da ralé romana, deu uma volta, colocando-se ao lado de Mário, e pigarreou. Os seus olhos, que não largavam Cina, tentavam dizer qualquer coisa, como que uma mensagem.

- Desejas dizer alguma coisa? - perguntou Cina.

- Lúcio Cina, peço-te humildemente perdão, mas gostaria de saber se o julgamento do jovem Caio Mário é amanhã.

Cina pestanejou, surpreendido.

- Não. Pode ser depois de amanhã.

- Então, se não te importas, permite que o julgamento seja depois de amanhã. Amanhã, quando se levantar, e não se vai levantar por certo muito cedo, Caio Mário precisará de exercício. Sabe, ele acaba de fazer uma longa viagem sentado numa carruagem. - Decúmio falava devagar, procurando não dar pontapés na gramática. - Actualmente, o exercício que ele faz é montar, três horas todos os dias. E amanhã terá de fazer o seu exercício habitual. E, claro, também precisa de falar com esse cadete, Públio Cláudio. O jovem Caio Mário é acusado de um crime capital, e um homem com a importância de Caio Mário tem direito a investigar o caso, não é verdade? Eu acho que seria melhor se Caio Mário se encontrasse com esse cadete num ambiente... como é que se diz?... num ambiente informal. Não nesta tenda. Nenhum de nós quer que as coisas se tornem piores do que já são, não é verdade? De modo que eu achava que era uma boa ideia se organizássemos um passeio a cavalo amanhã à tarde, com todos os cadetes. Incluindo Públio Cláudio.

Cina estava intrigado com aquela conversa. Suspeitava que o tentavam empurrar para algo de que se arrependeria mais tarde. Nesse instante, o rapaz, que se encontrava à esquerda de Mário, pôs um sorriso encantador e piscou-lhe o olho.

- Por favor, desculpa Lúcio Decúmio - disse o jovem César. Ele é o mais devotado cliente do meu tio. E além disso é um tirano! Não descansa enquanto não lhe fazem as vontades.

- Não posso permitir que Caio Mário tenha encontros privados com Públio Cláudio antes da audição - disse Cina com um ar atrapalhado.

Mário mantivera uma expressão de profundo ultraje enquanto decorrera aquela conversa; mal Cina acabou de falar, virou-se para o jovem César e para Lúcio Decúmio com uma expressão tão furibunda que Cina chegou a temer que o Grande Homem fosse de novo acometido de apoplexia.

- Mas que disparate vem a ser este? - berrou Mário. - Eu não preciso de ver esse jovem modelo, esse escravo do dever, seja em que circunstâncias for! Tudo o que quero é ver o meu filho e assistir ao seu julgamento!

- Ora, Caio Mário, por favor não te excites! - disse Lúcio Decúmio num tom bajulador. - Depois de um passeiozinho a cavalo amanhã à tarde, sentir-te-ás muito melhor para assistir ao julgamento.

- Ah, que os deuses me defendam destes idiotas que me tratam como um inválido! - berrou Mário, disparando para fora da tenda sem ajuda. - Onde é que está o meu filho? Onde é que está o meu filho?

O jovem César deixou-se ficar na tenda enquanto Lúcio Decúmio corria atrás do furibundo Mário.

- Não ligues, Lúcio Cina - disse o filho de Aurélia, exibindo de novo o seu fascinante sorriso. - Eles estão sempre a discutir, mas Lúcio Decúmio tem razão. Amanhã, Caio Mário vai precisar de descansar e de fazer o exercício habitual. Este caso deixou-o muito perturbado. Estamos a fazer tudo para que o seu processo de recuperação não sofra qualquer precalço grave.

- Claro, claro, eu compreendo - disse Cina, afagando o rapaz paternalmente no ombro; ele era demasiado alto para que o afagasse na cabeça. - Mas será melhor que eu conduza Caio Mário até ao filho.

- Pegou num archote e encaminhou-se para Mário. - Segue-me, Caio Mário, vou levar-te ao teu filho. Ele está sozinho numa tenda guardada por soldados e não está autorizado a falar com ninguém.

- Por certo sabes que o teu julgamento não é definitivo - disse Mário. - Se a sentença for desfavorável para o meu filho, farei tudo para que ele seja julgado pelos seus pares em Roma.

- Eu sei - retorquiu Cina.

Quando pai e filho se viram, o jovem Mário lançou ao pai um olhar algo furioso, mas procurou controlar-se. Até que viu entrar Lúcio Decúmio e o jovem César.

- Para que é que trouxeste estas tristes figuras contigo? - perguntou.

- Porque não podia fazer a viagem sozinho - disse Mário, acenando para que Cina os deixasse sozinhos. Depois, com a ajuda dos seus companheiros, sentou-se na única cadeira que havia na tenda. - Então, meu filho, o teu mau génio acabou por te causar um sério problema. Era de prever - disse Mário, num tom que não denotava compaixão, nem qualquer interesse pelo que o filho teria a dizer em sua defesa.

O jovem Mário fitou-o espantado, parecendo procurar um sinal qualquer que não havia na expressão do pai. Depois, com um suspiro soluçado, exclamou:

- Mas eu não o matei, pai!

- Óptimo - retorquiu cordialmente Mário. - Afirma isso até ao fim e tudo correrá bem.

- Achas que sim? Como é possível que tudo corra bem se Públio Cláudio jura e jurará que eu matei Catão?

Mário levantou-se de súbito. Era um homem amargamente desiludido.

- Se afirmares a tua inocência, meu filho, prometo-te que nada te acontecerá. Rigorosamente nada.

Na expressão do filho de Mário lia-se um alívio profundo; pensava que finalmente tinha recebido o sinal.

- Vais arranjar as coisas, não vais?

- Eu posso arranjar muitas coisas, Caio Mário Júnior, mas nunca um julgamento num tribunal militar presidido por um homem honrado.

- disse Mário, cansado. - Só no julgamento em Roma se poderá fazer qualquer coisa. Mas agora segue o meu exemplo, e vai dormir. Vejo-te amanhã à tarde.

- Não te vejo antes? O julgamento não é amanhã?

- Não, o julgamento foi adiado um dia porque eu tenho de fazer os meus exercícios diários. De outro modo, nunca ficarei em condições de disputar o consulado uma sétima vez. - À porta da tenda, virou-se para o filho e sorriu-lhe com grotesca ironia. - Exercícios de equitação, assim mandam os chatos dos meus acompanhantes. E serei apresentado ao homem que te acusa. Mas não vou tentar convencê-lo a alterar a sua história, meu filho. Proibiram-me todas as conversas privadas com ele. - Tomou fôlego, e acrescentou: - Eu, Caio Mário, ouvindo de um simples pretor instruções quanto à forma como devo comportar-me! Posso perdoar-te por teres matado um pseudo-chefe militar que não ia fazer outra coisa senão deixar que o seu exército fosse ferozmente aniquilado. Mas nunca te perdoarei o facto de me obrigares a fazer o papel de intermediário em negócios obscuros!

No dia seguinte, pela tarde, quando os homens se juntaram para o passeio a cavalo, Caio Mário mostrou-se escrupulosamente correcto em relação a Públio Cláudio Pulcro, um jovem moreno com um ar envergonhado que, obviamente, desejaria estar em todo o lado menos ali. Mário seguia ao lado de Cina, à frente do cortejo; atrás deles vinham o lugar-tenente de Cina, Marco Cecílio Comuto, e o jovem César; na retaguarda, seguiam os cadetes. Depois de ter verificado que nenhum dos presentes conhecia bem a zona, Lúcio Decúmio tomou a dianteira.

- A pouco mais de um quilómetro daqui, há uma vista magnífica de Roma - disse ele. - Exactamente a distância que Caio Mário costuma percorrer.

- Como é que conheces tão bem Tíbur? - perguntou-lhe Mário.

- O meu avô materno era de Tíbur - retorquiu o chefe da expedição, enquanto os cavaleiros se agrupavam em fila num caminho estreito e íngreme.

- Nunca me passou pela cabeça que tivesses algum sangue rural nesse teu indecoroso corpo - disse Mário.

- De facto não tenho, Caio Mário - retorquiu jovialmente Decúmio em voz baixa. - Mas sabes como são as mulheres! A minha mãe trazia-nos para aqui todos os Verões.

Estava um belo dia e o sol era quente, mas uma brisa fria soprava nos rostos dos cavaleiros. Ouviam-se já as águas revoltosas do Ânio, correndo ao fundo da ravina: ora um ruído tormentoso, ora um murmúrio. Lúcio Decúmio impunha um ritmo lento ao passeio e o tempo ia passando quase imperceptivelmente. Só o prazer evidente de Mário fazia com que os restantes cavaleiros sentissem que aquele passeio tinha algum interesse. Considerando uma provação intolerável o encontro que deveria ter com o pai do jovem Mário, Públio Cláudio Pulcro conseguiu, no entanto, acalmar-se o suficiente e conversar normalmente com os dois outros cadetes, enquanto Cina, escoltando Mário, perguntava a si mesmo se Mário tentaria abordar Públio Cláudio durante o passeio. Cina estava convencido de que esse era o verdadeiro objectivo daquele passeio. Cina também era pai, e sabia que teria recorrido a todos os estratagemas possíveis se o seu filho estivesse nas mesmas condições que o jovem Mário.

- É ali! - exclamou orgulhoso Lúcio Decúmio, fazendo parar o seu cavalo para que os outros cavaleiros seguissem à sua frente. - Só por esta visita valeu a pena o passeio, não estão de acordo?

De facto, era uma vista soberba. Os cavaleiros encontravam-se sobre um pequeno rochedo saliente, na vertente de uma montanha, num local onde um qualquer cataclismo fizera abater uma parte da encosta e um penhasco caíra rotundamente na planície. Viam-se as águas apressadas, pintalgadas de branco, do Ânio, correndo para o Tibre, um fio azul, serpenteante, que vinha do norte. E para lá do ponto onde os dois rios se juntavam ficava Roma, uma extensa aguarela de cores muito vivas, com os seus telhados avermelhados e as estátuas brilhando no alto dos templos. O ar, muito claro, permitia mesmo que se visse ao longe, confundindo-se com o horizonte, uma pequena faixa do mar Toscano.

- Isto aqui é muito mais alto que Tíbur - disse Lúcio Decúmio atrás deles, enquanto, sem fazer barulho, descia do seu cavalo.

- Que pequena que é a cidade vista de tão longe! - exclamou Cina maravilhado.

Toda a gente queria ver, excepto Lúcio Decúmio, e os cavaleiros começavam a misturar-se. Decidido a não permitir que Mário tivesse uma oportunidade de falar com Públio Cláudio, Cina afastou o seu cavalo e também o de Mário quando os cadetes se aproximaram deles.

- Olhem! - exclamou o jovem César, aguentando o seu cavalo, que queria voltar para trás. - O aqueduto do Ânio! Não parece mesmo um brinquedo? É uma maravilha, não é? - As suas perguntas dirigiam-se a Públio Cláudio, que parecia tão encantado com a vista como o jovem César, e tão impaciente por gozar das suas delícias.

O jovem César e Públio Cláudio aproximaram-se da beira do precipício o mais que os seus cavalos permitiram. Durante um largo momento, fitaram encantados a cidade de Roma; de olhos saciados, sorriram um para o outro.

Como aquela era de facto uma vista magnífica, as atenções dos cavaleiros, à excepção de Lúcio Decúmio, concentraram-se inteiramente na paisagem. Por isso, ninguém reparou quando Lúcio Decúmio tirou da sua bolsa um pequeno objecto em forma de Y, tal como ninguém o viu meter um pequeno e aguçado espigão de metal no meio de uma tira de pelica presa às pontas do pequeno objecto de madeira em forma de Y. Com o mesmo ar descontraído com que bocejaria ou se coçaria, ergueu o pequeno objecto de madeira ao nível dos olhos, esticou o mais que pôde a tira de pelica, fez cuidadosamente pontaria e lançou o minúsculo espigão.

O cavalo de Públio Cláudio relinchou, empinou-se, as pernas dianteiras golpeando no ar; instintivamente, Públio Cláudio agarrou-se à crina do cavalo para não cair. Desprezando o facto de que também ele poderia correr perigo, o jovem César encostou-se ao pescoço do seu cavalo e agarrou no freio do outro cavalo. Tudo isso se passou tão depressa que só um facto ficou na memória das pessoas: que o jovem César agira com uma coragem e uma presença de espírito invulgares para a sua idade. O seu cavalo, porém, entrou em pânico, empinou-se também, e foi chocar de lado com a montada de Públio Cláudio. Cavalos e cavaleiros despenharam-se nesse instante, mas o filho de Aurélia, no momento da queda, conseguiu equilibrar-se na ponta da sua sela e saltar para as paredes do penhasco. Depois, com toda a sua energia, trepou até cima.

Todos os homens tinham descido dos seus cavalos e corrido para a beira do precipício, os rostos lívidos, os olhos esbugalhados, unicamente preocupados de início em saber se o jovem César estava bem. Depois, com o jovem César à frente (e respirando mais facilmente que todos os outros), olharam para o fundo da escarpada ravina. Lá estavam os corpos desconjuntados dos dois cavalos. E o cadáver de Públio Cláudio Pulcro. O silêncio era total. Não ouviram nenhum grito de socorro, apenas o suspirar do vento. Nada se movia. Nem mesmo um falcão que ensaiara um voo e parara a meio.

- Anda, vem-te embora! - ouviu-se. Era Lúcio Decúmio, que pegou no jovem César pelo ombro e assim o levou para longe do penhasco. Ajoelhado, Decúmio apalpou cuidadosamente o rapaz para ver se não haveria algum osso partido. - Porque é que fizeste aquilo?

- perguntou ele muito baixo, de modo a que só o jovem o pudesse ouvir.

- Tinha de fazer com que a cena parecesse convincente! - murmurou o rapaz. - Por um momento, pensei que o cavalo dele não cairia. Era melhor ter a certeza. Eu sabia que escaparia.

- E como é que soubeste o que eu ia fazer? Nem sequer estavas a olhar para mim!

O jovem César suspirou, exasperado.

- Ora, Lúcio Decúmio! Eu conheço-te! E eu sei muito bem porque é que Caio Mário te pediu que viesses. Pessoalmente, pouco me preocupa o que possa acontecer ao meu primo, mas não quero que Caio Mário e a nossa família caiam em desgraça. Boato é uma coisa. Uma testemunha é outra coisa, completamente diferente.

Com o queixo encostado ao cabelo muito louro do rapaz, Lúcio Decúmio cerrou os olhos, tão exasperado com o filho de Aurélia.

- Mas tu arriscaste a tua vida]

- Não te preocupes com a minha vida. Eu sei tratar dela. Quando deixar de tratar da minha vida, será porque ela já não terá qualquer uso. - O rapaz libertou-se do abraço de Lúcio Decúmio e foi certificar-se se Caio Mário estava bem.

Confuso e abalado, Lúcio Cornélio Cina encheu uma taça de vinho para si e outra para Caio Mário mal chegaram à tenda. Lúcio Decúmio tinha ido pescar com o jovem César para as cascatas do Ânio, e o resto do grupo reagrupava-se agora para formar um outro grupo, que iria buscar o cadáver de Públio Cláudio Pulcro.

- No que me diz respeito a mim e ao meu filho, devo dizer que este acidente veio mesmo a calhar - disse Mário com alguma rudeza, bebendo um bom gole de vinho. - Sem Públio Cláudio, não pode haver julgamento.

- Foi um acidente - disse Cina, aparentemente mais preocupado em convencer-se a si mesmo. - Só pode ter sido um acidente!

- Tens toda a razão. Não poderia ter sido outra coisa. Por pouco não ia perdendo um rapaz que é melhor que o meu filho.

- Pensei que o rapaz não ia escapar.

- Ah, aquele rapaz é a esperança personificada! - exclamou Mário, satisfeito. - No futuro, terei de estar com atenção aos seus movimentos. Caso contrário, ainda é capaz de me eclipsar!

- Ah, que história esta! - lamentou-se Cina.

- Não é um bom auspício para um homem que acabou de ser promovido a general, lá isso é verdade - disse Mário afavelmente.

- Sair-me-ei melhor do que Lúcio Catão! Mário sorriu.

- Será difícil fazer pior que Lúcio Catão. No entanto, e muito sinceramente, penso que cumprirás exemplarmente a tua missão, Lúcio Cina. E estou-te muito grato pela tua paciência. Muito grato mesmo! Algures num remoto recanto da sua consciência, Cina teve a sensação de que ouvia já retinir uma cascata de moedas - ou seria o Ânio, onde aquele rapaz extraordinário pescava alegremente como se nada se tivesse passado, como se nada pudesse perturbar o seu comportamento?

- A quem devemos obediência em primeiro lugar, Caio Mário? perguntou de súbito Cina.

- Em primeiro lugar, Lúcio Cina, devemos obediência à nossa família.

- E não a Roma?

- Mas que é Roma, senão as famílias de Roma?

- Sim... sim, suponho que tens razão. E aqueles que, por nascimento, ou porque lutaram por isso, se encontram em lugares cimeiros, têm de lutar para que as suas famílias se mantenham num lugar cimeiro.

- Exactamente - disse Caio Mário.

 

Depois de ter metido um tremendo susto (para usar as palavras do filho de Aurélia) a Catão, obrigando-o a deslocar-se para as terras dos Marsos, Sila tratou de dar os passos necessários para recuperar todos os territórios de Roma ocupados pelos Italianos. Embora oficialmente continuasse a ser um lugar-tenente, Sila era, na realidade, o comandante-chefe do teatro do Sul, e sabia que não depararia com a mínima interferência do Senado ou dos cônsules - desde que, evidentemente, obtivesse bons resultados. A Itália estava cansada; um dos seus dirigentes, o marso Silão, só não se rendia, cria Sila, por causa do outro, Caio Pápio Mutilo. Sila sabia que o dirigente samnita nunca se renderia. Tinha por isso de mostrar-lhe que a sua causa estava irremediavelmente perdida.

O movimento inicial de Sila foi tão secreto quanto extraordinário, mas Sila tinha o homem certo para uma missão que ele não poderia executar. Caso resultasse, o seu plano marcaria o princípio do fim da resistência dos Samnitas e dos seus aliados do Sul. Sem dizer a Catulo César, sediado em Cápua, por que razão ia buscar as duas melhores legiões da Campânia, Sila mandou-as embarcar numa frota ancorada no porto de Putéolos.

O comandante destas duas legiões era o lugar-tenente de Sila, Caio Coscónio, cujas ordens eram explícitas. Deveria dar a volta à ponta da península e desembarcar na costa oriental, perto de Apenestas, na Apúlia. O primeiro terço da viagem - ainda na costa ocidental podia decorrer com terra à vista. Qualquer observador inimigo instalado na Lucânia pensaria que a frota seguia para a Sicília, onde corriam boatos de revolta. Durante o segundo terço da viagem, a frota devia manter-se perto da costa e parar para reabastecimento em localidades como Crotona, Tarento e Brundísio, onde poderiam dizer que iam para a Ásia Menor pôr cobro aos conflitos que por lá se registavam (aliás, fora esta a história contada aos próprios soldados). E quando a frota abandonasse o porto de Brundísio, no último terço da viagem (também o mais curto), toda a Brundísio estaria convencida de que aquelas legiões iriam atravessar o Adriático, em direcção a Apolónia, na Macedónia Ocidental.

- Depois de Brundísio - disse Sila a Coscónio - não desembarcarão uma única vez antes de atingirem o objectivo final. Quanto ao local de desembarque exacto, deixo-o ao teu critério. Aconselho-te apenas a que escolhas um local tranquilo. E não ataques enquanto não estiveres completamente preparado. A tua missão consiste em libertar a Via Minúcia a sul de Larino e a Via Ápia a sul de Áusculo Apulo. Depois, concentra as tropas no Sâmnio Oriental. Por essa altura, estarei já a caminho, a fim de me encontrar contigo.

Excitado por ter sido o eleito para aquela missão vital e confiante em que ele e os seus homens tinham todas as condições para cumprir com êxito tal missão, Coscónio escondia o seu entusiasmo e escutava gravemente as palavras de Sila.

- Não te esqueças disto, Caio Coscónio: a viagem por mar deve ser lenta - avisou-o Sila. - Não mais de vinte e cinco milhas por dia, a maior parte das vezes. Estamos em fins de Março. Tens de desembarcar algures a sul de Apenestas dentro de cinquenta dias. Se desembarcares demasiado cedo, não terei tempo para completar a minha parte do plano. Preciso desses cinquenta dias para reconquistar todos os portos do golfo de Cráter e expulsar Mutilo da Campânia Ocidental. Depois, poderei seguir para leste. Mas nunca antes.

- Ainda bem que disponho de cinquenta dias, Lúcio Cornélio, porque é muito difícil dar a volta à ponta da península. É um trabalho raramente coroado de êxito - disse Coscónio.

- Se for preciso remar, que remem - disse Sila.

- Passados esses cinquenta dias, estarei onde combinámos, Lúcio Cornélio. Podes estar certo disso.

- Sem perder um único homem e ainda menos um navio.

- Todos os navios têm bons capitães e melhores pilotos, e, do ponto de vista logístico, não posso de modo nenhum queixar-me, bem pelo contrário. Não te deixarei ficar mal, Lúcio Cornélio. Chegaremos a Brundísio tão depressa quanto possível e esperaremos lá o tempo necessário, nem menos nem mais um dia - disse Coscónio.

- Óptimo! E lembra-te duma coisa, Caio Coscónio. A tua mais poderosa aliada chama-se Fortuna. Faz-lhe oferendas todos os dias sem excepção. Se ela te ama tanto quanto me ama a mim, tudo correrá bem.

A frota de Coscónio deixou Putéolos no dia seguinte para afrontar mar e tempestades, para cumprir uma missão cujo êxito dependia basicamente da sorte. Logo que os navios partiram, Sila regressou a Cápua e daí avançou sobre Pompeios. Seria um ataque conjunto, por terra e mar, pois Pompeios dispunha de um porto soberbo perto da foz do Sarno; Sila tencionava bombardear a cidade com projécteis inflamados, lançados pelos seus navios ancorados no rio.

Uma dúvida pairava na sua mente, ainda que se tratasse de algo que já não podia rectificar; a sua pequena frota era comandada por um homem de quem não gostava e em quem não confiava minimamente

- nada mais nada menos do que Aulo Postúmio Albino. Vinte anos antes, fora esse mesmo Aulo Postúmio Albino quem provocara a guerra contra o rei Jugurta da Numídia. E Aulo Postúmio Albino continuava o mesmo.

Depois de Sila lhe ter ordenado que conduzisse os seus navios de Nápoles para Pompeios, Aulo Albino decidiu que, primeiro que tudo, os seus homens, tanto tripulantes como soldados, tinham de ficar a saber que espécie de homem ia comandá-los - e o que lhes aconteceria caso não cumprissem à risca toda e qualquer ordem que da sua boca saísse. Mas os tripulantes e os soldados eram todos homens da Campânia, descendentes de Gregos, e, para eles, todas as palavras proferidas por Aulo Albino equivaliam a insultos intoleráveis. Tal como Catão, Aulo Albino também foi alvejado por uma tempestade de projécteis. Só que, desta feita, os projécteis não eram bocados de terra, mas pedras. E Aulo Postúmio Albino não resistiu à violência dos ferimentos: foi uma morte rápida, a sua.

Afortunadamente, Sila não ia ainda muito longe na sua marcha quando soube da notícia do assassínio de Albino; deixando as suas tropas sob o comando de Tito Dídio, Sila, montado na sua mula, seguiu então para Nápoles, a fim de se encontrar com os cabecilhas do motim. Levou consigo Metelo Pio, o Suíno, o seu outro lugar-tenente. Imperturbável, ouviu tudo o que os amotinados lhe queriam dizer, após o que, num tom perfeitamente frio, lhes retorquiu:

- Receio bem que tenham de tornar-se os melhores marinheiros e soldados da história da guerra naval romana. De outro modo, como poderei esquecer que mataram Aulo Albino?

Sila nomeou então Públio Cabínio almirante da frota e assim punha um termo ao motim.

Metelo Pio, o Bacorinho, só o abordou já no regresso. Não conseguia reprimir por mais tempo uma pergunta perturbante.

- Lúcio Cornélio, não lhes vai dar nenhum castigo?

Sila ergueu ligeiramente o chapéu para mostrar ao Bacorinho um par de olhos serenamente divertidos.

- Não, Quinto Cecílio, não lhes vou dar castigo nenhum.

- Devias ter-lhes retirado a cidadania e ordenado que os açoitassem!

- Sim, isso é o que a maior parte dos comandantes teria feito com o que revelam que são uns idiotas. Mas como tu pertences, sem a mínima dúvida, a esse lote de comandantes idiotas, vou explicar-te porque procedi desta maneira. Precisas de aprender a pensar pela tua própria cabeça.

Erguendo a mão direita, Sila descreveu uma a uma as razões do seu procedimento.

- Em primeiro lugar, não podemos dar-nos ao luxo de perder aqueles homens. São homens que foram treinados por Otacílio e têm muita experiência. Em segundo lugar, admiro o seu notável bom senso, porque se libertaram de um homem que era um péssimo comandante e que, muito provavelmente, tê-los-ia conduzido à morte. Em terceiro lugar, eu não queria Aulo Albino! Mas ele era um consular, e eu não podia rejeitá-lo.

Com os três dedos erguidos, Sila virou-se na sua sela para fitar o infeliz Metelo Pio.

- Vou dizer-te uma coisa, Quinto Cecílio. Se as coisas fossem feitas à minha maneira, não haveria lugar na minha equipa para homens tão ineptos e quezilentos como Aulo Albino, o falecido cônsul Lupo, e o nosso cônsul actual, Catão Liciniano. Dei a Aulo Albino um comando naval porque pensei que em terra seria muito pior do que no mar. Por isso, como poderia eu castigar aqueles homens, se eles fizeram o que eu teria feito em circunstâncias similares?

Mas Sila ergueu de imediato mais um dedo.

- Em quarto lugar, estes homens ficaram numa posição muito difícil. Isto é, se não fizerem o seu trabalho bem feito, sou realmente muito capaz de lhes retirar a cidadania e de os mandar açoitar, o que significa que não têm outra alternativa senão lutar como umas bestas selvagens. E em quinto lugar - aí chegado, teve de recorrer ao polegar -, estou-me marimbando para a quantidade de ladrões e assassinos que possa haver nas minhas forças. O que é preciso é que eles combatam como bestas selvagens. - Baixou então a mão, golpeando o vazio como um machado de um bárbaro.

Metelo Pio abriu a boca, reflectiu um pouco no que ia dizer e tomou a inteligente decisão de não dizer nada.

No local onde a estrada para Pompeios se dividia em duas ramificações, uma na direcção da Porta Vesuviana, e a outra na direcção da Porta Herculânia, Sila instalou as suas tropas num acampamento convenientemente fortificado. Enquanto se instalava no acampamento protegido por trincheiras e reparos, a sua esquadra começava a disparar projécteis incendiários para dentro de Pompeios, com tal rapidez e eficiência que mesmo o mais velho e experiente dos centuriões teria ficado surpreendido ao ver tal quadro; os rostos assustados que assomavam às muralhas revelavam que aquele era um tipo de operação de que ninguém estava à espera e que tornava a defesa de Pompeios muito mais difícil. O fogo era pior que tudo.

No dia seguinte, ficou a saber-se que os samnitas de Pompeios tinham enviado frenéticos pedidos de socorro. De facto, no dia seguinte, um exército samnita, contando mais dez mil homens que o exército romano, chegou e instalou-se não muito longe do acampamento de Sila. Um terço dos vinte mil soldados de Sila encontravam-se ausentes em missões de abastecimento. Com uma expressão preocupada, Sila, acompanhado de Metelo Pio e Tito Dídio, observou das muralhas o que se passava à sua volta, e escutou os gritos de mofa e os apupos que o vento trazia desde as muralhas da cidade - ruídos que o deixavam tão inquieto como o aparecimento de um exército samnita.

- Mandem soar o alarme - disse ele aos seus lugares-tenentes. Tito Dídio deu um passo mas Metelo Pio logo o deteve.

- Lúcio Cornélio! Nós não podemos fazer nada contra aquele exército! Eles vão esmagar-nos! - exclamou Metelo Pio, o Bacorinho.

- Nós não podemos fazer nada! - repetiu Sila, revelando como estava furioso pelo facto de as suas ordens terem sido postas em causa. - Quem está ali é Lúcio Cluêncio e ele tenciona lá ficar. Se o deixo construir um acampamento tão forte como o nosso, voltaremos a ter um caso igualzinho ao de Acerras. E eu não vou manter quatro boas legiões num sítio destes durante meses a fio, nem quero que Pompeios mostre aos outros portos rebeldes que Roma não consegue reconquistá-los! E se isto não é razão suficiente para atacarmos imediatamente, então pensa no seguinte, Quinto Cecílio: pensa que quando os soldados que saíram em missão de abastecimento regressarem, vão ter pela frente um exército samnita sem que ninguém os tenha avisado, e que nenhum desses soldados sobreviverá! Dídio lançou um olhar de desprezo a Metelo Pio.

- Vou mandar soar o alarme - disse ele, libertando o braço. Com um capacete na cabeça, em vez do habitual chapéu, Sila

subiu à tribuna do Fórum do acampamento a fim de falar aos cerca de treze mil homens de que dispunha.

- Todos sabemos o que nos espera! - gritou. - Uma multidão de samnitas! Serão quase três samnitas para cada um de nós! Mas Sila está farto das derrotas de Roma frente aos samnitas! Sila está farto de ver as cidades romanas ocupadas pelos samnitas! De que vale estarmos vivos se Roma tem de se rojar aos pés do Sâmnio como um cãozinho bajulando o seu dono? Não, este Romano que aqui vêem não quer que isso continue! Não, Sila não permitirá tal estado de coisas! Se tiver de sair e combater sozinho, sairei e combaterei sozinho! Irei sozinho? Irei? Ou vêm todos comigo porque vocês também são Romanos e estão fartos dos Samnitas como eu?

O exército respondeu-lhe em uníssono o ”sim” que ele aguardava. Sila aguardou então que eles se preparassem para a batalha.

- Nenhum samnita ficará em Pompeios! - berrou ele de novo, ainda mais alto. - Porque Pompeios é nossa! Os samnitas mataram um milhar de romanos dentro das suas muralhas, e agora esses mesmos samnitas estão nas muralhas de Pompeios e julgam-se em segurança, e vaiam-nos e apupam-nos porque pensam que temos medo de pôr na ordem um bando de miseráveis samnitas! Pois muito bem, nós vamos mostrar-lhes que eles se enganam! Vamos saquear tudo o que os samnitas possam ter até que regressem os nossos soldados que saíram em missão de abastecimento. E quando eles regressarem, os nossos gritos de guerra guiá-los-ão para a batalha! Estão a ouvir? Aguentaremos os Samnitas até que os nossos soldados regressem e caiam sobre a retaguarda deles como verdadeiros Romanos que são!

Os soldados responderam-lhe de novo com portentosos vivas, mas Sila estava já longe da tribuna, de espada na mão; três colunas ordenadas de soldados saíram então pela porta da frente e pelas duas portas dos lados. E era Sila quem comandava a coluna do meio.

Tão rápida foi a movimentação romana, que Cluêncio, que não estava à espera de uma batalha, quase não teve tempo de preparar as suas tropas para a carga romana. Frio e corajoso, não recuou e integrou-se nas primeiras filas do seu exército. Ressentindo-se da falta de soldados, o exército romano deparou com um primeiro problema quando tentou quebrar a linha samnita. Não o conseguiu. Mas Sila, chefiando ainda as suas tropas, recusou-se a recuar um milímetro que fosse, e os seus homens recusaram-se a deixá-lo sozinho. Durante horas a fio, romanos e samnitas travaram um combate homem a homem, constante, impiedoso. Houvera poucas batalhas naquela guerra com confrontos homem a homem a cem por cento; ambas as partes compreenderam que o desfecho daquela batalha teria inevitavelmente de afectar o desfecho da guerra.

Demasiados foram os bons legionários que caíram naquela batalha. Mas no momento em que Sila deveria em princípio ordenar às suas tropas que recuassem ou morressem, a linha samnita começou a tremer, a dobrar-se sobre si mesma. Os soldados romanos que tinham partido em missão de abastecimento haviam finalmente regressado e atacavam agora a retaguarda samnita. Aos gritos de que Roma era invencível, Sila conduziu os seus homens com renovado vigor. Mesmo assim, só muito lentamente Cluêncio foi cedendo. Durante uma hora conseguiu ainda manter o seu exército unido e capaz de lutar. Depois, quando viu que estava tudo perdido, juntou as suas tropas e, atravessando as hostes romanas que o atacavam pela retaguarda, fugiu na direcção de Nola.

Considerando-se o talismã da bravura italiana nas regiões do sul

- e sabendo que Roma não esquecera que, dentro das suas muralhas, tinham morrido de fome muitos soldados romanos -, Nola não podia dar-se ao luxo de pôr em risco a sua segurança. Cluêncio e mais de vinte mil soldados samnitas chegaram às muralhas da cidade com um ligeiro avanço sobre as tropas de Sila. Deram porém com todas as portas da cidade fechadas. Os magistrados de Nola, observando a cena do alto daquelas portentosas muralhas, recusaram-se de início a abrir as portas. Quando viram a vanguarda romana aproximar-se dos samnitas e preparar-se para atacar, decidiram-se finalmente a abrir a porta junto à qual se encontrava Cluêncio e que era uma das mais pequenas da cidade. E foi essa a única porta que abriram, por muito aflitivos que fossem os gritos dos soldados samnitas.

Ás portas de Pompeios travara-se uma batalha. Mas às portas de Nola o que se passou foi um verdadeiro massacre. Estupefacto perante a deslealdade de Nola, acometido de pânico ao ver-se paralisado entre as espadas dos romanos e a secção norte das muralhas de Nola, o exército samnita sofreu uma derrota total. Quase todos os seus homens foram mortos. Foi o próprio Sila quem matou Cluêncio, que se recusou a procurar abrigo dentro de Nola, porque pela porta que tinham aberto não entraria mais de uma dúzia de homens.

Aquele fora o dia mais importante da vida de Sila. Aos cinquenta e um anos de idade, e tendo assumido por fim o comando de um teatro de guerra, aquela fora sua primeira grande vitória como comandante-chefe. E que vitória! O sangue dos homens que matara pingava-lhe pela armadura abaixo e a espada colava-se-lhe à mão direita por causa do sangue que entretanto coagulara; exalando um cheiro nauseabundo, a suor e a morte, Lúcio Cornélio Sila observava o campo de batalha. A certa altura, tirou o capacete da cabeça e lançou-o ao ar com um grito de profundo júbilo. Em resposta ao seu grito, pôde então ouvir um ruído gigantesco, um ruído que abafava por completo os gemidos e os gritos dos soldados samnitas moribundos, um ruído que crescia inexorável, transformando-se num cântico.

- Im-pe-ra-tor! Im-pe-ra-tor! Im-pe-ra-tor!

Os soldados gritaram esse título até ficarem roucos. Aquele era o triunfo máximo: o vencedor aclamado imperador no campo de batalha. O triunfo máximo, pensava Lúcio Cornélio Sila, sorrindo euforicamente, a espada por sobre a cabeça, o cabelo muito louro empapado em suor secando ao sol que se desvanecia já no céu, o coração tão feliz que nem uma palavra conseguiria dizer, caso fosse preciso dizer alguma coisa. Eu, Lúcio Cornélio Sila, provei, sem margem para dúvida, que um homem tão capaz como eu pode aprender aquilo que a sua natureza não lhe ensinou - e vencer a mais terrível batalha desta ou de qualquer outra guerra! Ah, Caio Mário, espera só pela notícia! Não morras até eu voltar a Roma! Quero mostrar-te quão errado estavas! Eu sou tão bom comandante como tu! E serei melhor ainda! O meu nome tornar-seá mais falado, louvado, famoso, que o teu. É justo que assim seja. Porque eu sou um patrício Cornélio e tu não passas de um labrego que veio dos montes latinos.

Mas havia trabalho a fazer, e ele era um patrício romano. Tito Dídio e Metelo Pio, este numa curiosa atitude de quem se sentia subjugado pelo comandante, foram ter com ele. Os olhos brilhantes dos dois lugares-tenentes fitaram-no com respeito, com uma adoração que Sila só encontrara até então nos olhos de Julilla e Dalmática. Mas Tito Dídio e Metelo Pio eram homens, Lúcio Cornélio Sila! Homens valorosos, homens com uma reputação firmada - Dídio dominara a Hispânia e Metelo Pio era o herdeiro de uma grande casa, de uma casa nobre. As mulheres não passavam de umas criaturas idiotas, sem a mínima importância. Os homens, sim, os homens é que contavam. Especialmente homens como Tito Dídio e Metelo Pio. Durante todo o tempo em que servi sob as ordens de Caio Mário, nunca vi um homem olhar para ele com tanta adoração!, pensou Sila. Hoje obtive mais do que uma mera vitória. Porque dei um sentido a todo o decurso da minha vida, porque justifiquei Stichus, Nicópole, Clitumna, Hércules Atlas, Metelo Numídico Suíno. Hoje, provei que a vida que levei para conseguir chegar a este campo de batalha às portas de Nola era uma vida que eu não merecia. Hoje, começo a compreender o Nabopolassar da Caldeira - eu sou o maior homem do mundo, desde o oceano Atlântico até ao rio Indo!

- Trabalharemos durante toda a noite - disse ele energicamente para Dídio e Metelo Pio -, a fim de que, pela aurora, os cadáveres samnitas estejam já todos despojados das armaduras e empilhados e os nossos mortos estejam preparados para a pira. Sei que foi um dia muito cansativo, mas ainda não acabámos. Só quando acabarmos poderemos descansar. Quinto Cecílio, reúne uns quantos homens, os mais capazes que encontrares, e vai a Pompeios tão depressa quanto possível. Traz pão e vinho que cheguem para todos, e traz também os não combatentes e manda-os procurar madeira e óleo. Temos uma verdadeira montanha de cadáveres para queimar.

- Mas não temos cavalos, Lúcio Cornélio! - disse Bacorinho com uma voz sumida. - Nós viemos a pé até Nola! Mais de trinta quilómetros em quatro horas!

- Então procurem cavalos! - retorquiu friamente Sila. - Quero-vos de volta ao nascer do dia. - Virou-se para Dídio. - Tito Dídio, encarrego-te de escolher os homens que devem ser agraciados por feitos cometidos na batalha. Logo que incinerarmos os nossos mortos e os mortos dos inimigos voltaremos a Pompeios, mas quero que uma legião de Cápua fique aqui, diante das muralhas de Nola. E diz aos arautos que anunciem aos habitantes de Nola que Lúcio Cornélio Sila fez um voto a Marte e a Belona: que, a partir de agora, Nola verá soldados romanos à volta das suas muralhas, até que decida render-se, demore isso dias, meses ou anos.

Antes que Dídio ou Metelo Pio pudessem partir, o tribuno dos soldados, Lúcio Licínio Lúculo, surgiu à frente de uma representação de centuriões: oito séniores, primi pili e pili priores. Caminhavam gravemente, solenemente, como padres num desfile sagrado ou cônsules prestes a serem empossados nos seus cargos.

- Lúcio Cornélio Sila, o teu exército deseja manifestar a sua gratidão oferecendo-te algo. Sem ti, o exército teria sido derrotado e os soldados teriam morrido. Tu lutaste na primeira linha e mostraste-nos a nós todos o caminho a seguir. Não vacilaste um momento na marcha até Nola. A ti, unicamente a ti, se deve a maior vitória de toda esta guerra. Salvaste o teu exército e mais do que o teu exército. Salvaste Roma. Lúcio Cornélio, prestamos-te as nossas honras - disse Lúculo, recuando, a fim de que os centuriões avançassem.

O mais velho dos centuriões ergueu então os braços e estendeu-os na direcção de Sila. Nas suas mãos tinha uma coroa feita de ervas arrancadas no campo de batalha e entrelaçadas desajeitadamente, ervas misturadas com raízes, terra, folhas e sangue. Carona graminea. Corona obsidionalis. A Coroa de Erva. E Sila, instintivamente, estendeu também os braços, e depois deixou-os cair, pois desconhecia por completo aquele ritual. Era ele que pegava na coroa e a punha na cabeça, ou era o primus pilus Marco Canuleio que o coroava, em nome de todo o exército?

Decidiu então ficar parado, enquanto Canuleio, um homem de elevada estatura, erguia a Coroa de Erva e a colocava sobre o cabelo louro-arruivado.

Nada mais foi dito. Tito Dídio, Metelo Pio, Lúculo e os centuriões saudaram reverentemente Sila, sorriram-lhe timidamente, e foram-se embora. Sila ficou sozinho, fitando o Sol que nesse instante desaparecia no horizonte, com a Coroa de Erva na cabeça, uma coroa tão frágil que mal sentia o seu peso, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto manchado de sangue, e um único sentimento no coração: uma exultação, uma euforia tão violenta, algo que não sabia se alguma vez se repetiria. Teria forças para voltar a viver um tal sentimento? E qual era o reverso dessa exultação? Que poderia a vida oferecer-lhe agora? Nesse momento, lembrou-se do filho. A alegria desaparecia antes de ter tido tempo para a gozar. Agora, dominava-o a dor, uma dor tão profunda que o fez cair de joelhos e chorar desoladamente.

Alguém ajudou-o a levantar-se, limpou-lhe o ranho e as lágrimas, abraçou-o pela cintura e ajudou-o a caminhar até uma pedra enorme junto à estrada de Nola. Aí, o mesmo homem ajudou-o a sentar-se, e sentou-se depois ao seu lado: era Lúcio Licínio Lúculo, o tribuno sénior dos soldados.

O Sol mergulhara já no mar Toscano. O dia mais glorioso da vida de Sila chegava ao seu termo envolto em trevas. Deixou cair os braços entre as pernas frouxas, respirou fundo várias vezes e deu consigo a pôr a si mesmo a mesma pergunta de sempre: Porque nunca me sinto feliz?

- Não tenho vinho para te oferecer, Lúcio Cornélio. Nem vinho, nem água - disse Lúculo. - Saímos de Pompeios com um único pensamento na cabeça: apanhar Cluêncio, dar cabo dele.

Sila soltou um profundo suspiro e endireitou-se.

- Eu cá me aguento, Lúcio Lúculo. Como diz uma amiga minha, há sempre trabalho para fazer.

- O trabalho fazemo-lo nós. Tu descansas.

- Não. Eu sou o comandante. Não posso descansar enquanto os meus homens trabalham. Um minuto só, e ficarei bem. Eu estava bem enquanto não me lembrei do meu filho. O meu filho morreu, deves saber. - As lágrimas voltaram, mas logo foram reprimidas.

Lúculo nada disse. Limitou-se a ficar sentado ao lado de Sila, quieto e calado.

Sila pouco sabia daquele jovem; eleito tribuno dos soldados pouco tempo antes, fora primeiro para Cápua e só depois (poucos dias antes da marcha sobre Pompeios) o tinham encarregado do comando de uma legião. Apesar de fisicamente ter mudado imenso - fora uma criança muito frágil e agora era um homem extremamente robusto, Sila reconheceu-o.

- Tu e o teu irmão Varrão Lúculo processaram Servílio, o Augure, há dez anos, não foi? - perguntou.

- Foi, sim, Lúcio Cornélio. O Augure foi responsável pela desgraça e pela morte do nosso pai, e pela perda de toda a nossa fortuna. Mas pagou bem pago - disse Lúculo, o belo rosto agora mais alegre, um sorriso aflorando-lhe os lábios.

- A guerra dos escravos na Sicília. Servílio, o Augure, substituiu o teu pai no cargo de governador da Sicília. E mais tarde levou-o a tribunal.

- Exactamente.

Sila levantou-se, estendeu a mão direita para cumprimentar Lúcio Licínio Lúculo.

- Bom, Lúcio Licínio, tenho de te agradecer. A Coroa de Erva foi ideia tua?

- Não, Lúcio Cornélio. A ideia foi dos centuriões! Eles informaram-me de que a Coroa de Erva tem de ser atribuída pelos profissionais do exército e não pelos magistrados eleitos para servirem no exército. Decidiram levar-me porque um dos magistrados eleitos para o exército tem de ser testemunha da cerimónia. - Lúculo sorriu, e riu-se depois. - Além disso, suponho que eles não estão nada habituados a dirigir-se formalmente ao seu general! De maneira que acabei por aceder ao pedido deles e acompanhei-os.

Dois dias depois, o exército de Sila estava de novo no seu acampamento, frente a Pompeios. Estavam todos tão cansados que nem ligaram à comida. Durante vinte e quatro horas, reinou um silêncio total naquele acampamento: soldados e oficiais dormiam como os mortos que tinham queimado junto às muralhas de Nola, um insulto às narinas dos habitantes da cidade, que não comiam carne havia muito tempo.

A Coroa de Erva encontrava-se agora numa caixa de madeira que os criados de Sila tinham feito; quando Sila tivesse tempo, a coroa seria colocada sobre a cabeleira da máscara de cera que agora podia mandar executar. Distinguia-se o suficiente para poder ir juntar-se às imagens dos seus antepassados, embora não tivesse sido ainda cônsul. E a sua estátua, com uma Coroa de Erva na cabeça, iria para o Fórum Romano, erigida em memória do maior herói da guerra contra os Italianos. Tudo aquilo lhe parecia algo irreal; mas tudo era verdade: e ali estava a Coroa de Erva, na sua caixa, a confirmá-lo.

Depois de descansarem e comerem, os homens formaram para a parada em que seriam atribuídas as condecorações. Sila pôs então a sua Coroa de Erva na cabeça e, enquanto subia à tribuna, os soldados saudaram-no com um ensurdecedor ror de vivas. A organização da cerimónia fora confiada a Lúculo, tal como Mário fizera outrora em relação a Quinto Sertório.

Porém, enquanto agradecia as saudações entusiásticas dos soldados, Sila teve uma ideia que por certo nunca ocorrera a Mário, durante as campanhas da Numídia e da Gália - embora talvez lhe tivesse ocorrido enquanto comandara as tropas contra os Italianos. Um mar de rostos, um mar de homens devidamente formados para a parada, devidamente vestidos para a parada, um mar de homens que lhe pertencia, a ele, Lúcio Cornélio Sila. Estas são as minhas legiões! Pertencem-me a mim antes de pertencerem a Roma. Eu treinei-os, eu conheci-os, eu conduzi-os, eu dei-lhes a maior vitória desta guerra - e terei de lhes dar uma compensação quando passarem à reserva. Quando me deram a Coroa de Erva, estavam também a dar-me uma outra oferta, muito mais significativa - estavam a dar-se a si mesmos. A dar-se a mim. Podia levá-los a fazer o que quisesse. Podia mesmo levá-los a combater Roma. Uma ideia ridícula, sem dúvida: mas uma ideia que ocorreu a Sila naquele momento. E que logo se desvaneceu, talvez até um dia.

Pompeios rendeu-se um dia depois de os seus cidadãos terem assistido das muralhas à cerimónia de condecoração; os arautos de Sila tinham anunciado a notícia da derrota de Lúcio Cluêncio defronte das muralhas de Nola, notícia que os habitantes de Pompeios tinham podido confirmar através de mensagens. Bombardeada a todo o momento pelos navios ancorados no rio, a cidade vivia uma trágica situação. Cada projéctil incendiário era uma mensagem que significava que a ascendência italiana e samnita estava a desaparecer, que a derrota era inevitável.

Depois de Pompeios, Sila, à frente de duas legiões, atacou Estábias, ao passo que Tito Dídio, com as outras duas, marchou sobre Herculano. No último dia de Abril, Estábias capitulava, o mesmo sucedendo, pouco tempo depois, com Surrento. Em meados de Maio, Sila dava início a novas movimentações: seguia desta feita para leste. Catulo César enviara novas legiões para Tito Dídio, que mantinha ainda o cerco a Herculano, e por isso Sila pôde receber de volta as suas duas legiões. Embora só muito dificilmente tivesse aderido à insurreição italiana, Herculano mostrava compreender na perfeição o que lhe aconteceria se se rendesse a Roma; mesmo depois de várias das suas ruas terem ardido em consequência de um bombardeamento naval, Herculano continuava a desafiar Tito Dídio, apesar de os outros portos ocupados pelos italianos terem cedido havia muito.

Sila passou com as suas quatro legiões ao largo de Nola, embora tivesse mandado Metelo Pio, o Bacorinho, ter com o comandante da legião que cercava a cidade, com uma mensagem segundo a qual o pretor Ápio Cláudio Pulcro só deveria abandonar o local após a total submissão de Nola. Ápio Cláudio, um homem abatido, que havia pouco tempo perdera a mulher, limitou-se a aquiescer.

No final da terceira semana de Maio, Sila chegou à cidade hirpina de Eclano, que ficava na Via Ápia. Os hirpinos tinham começado a concentrar-se nessa cidade, de acordo com os serviços de espionagem de Sila; mas não era sua intenção permitir mais concentrações de insurrectos do sul. Quando viu pela primeira vez as defesas de Eclano, Sila pôs o seu mais terrível sorriso: as muralhas da cidade, embora altas e bem construídas, eram de madeira.

Sabendo que os hirpinos tinham pedido já ajuda ao lucaniano Marco Lampónio, Sila instalou as suas forças sem se preocupar sequer em montar um acampamento. Em vez disso, mandou Lúculo à porta principal da cidade exigir a rendição de Eclano. A resposta da cidade foi outra pergunta: poderia Lúcio Cornélio Sila esperar um dia para que Eclano ponderasse o problema e chegasse a uma decisão?

- Eles estão a ver se ganham tempo, é tudo. Esperam que os reforços de Lampónio cheguem amanhã - disse Sila a Metelo Pio, o Bacorinho, e a Lúculo. - Vou ter de pensar no caso de Lampónio. Não posso permitir que continue a fazer o que lhe apetece na Lucânia.

- Sila encolheu os ombros e, de repente, com um ar enérgico, retomou a questão que naquele momento os preocupava. - Lúcio Licínio, leva a minha resposta à cidade. Dou-lhes uma hora, não mais. Quinto Cecílio, pega no máximo número de homens que for possível e dá uma volta pelas quintas dos arredores: traz muita madeira e óleo para queimar. Empilha a madeira com trapos empapados em óleo junto às muralhas, de ambos os lados das portas principais. E coloca as nossas quatro peças de artilharia em quatro posições diferentes. Logo que puderes, lança fogo às muralhas e dispara projécteis incendiários para dentro da cidade. Aposto que lá dentro também é tudo em madeira. Eclano arderá mais depressa que um pavio.

- E se eu estiver pronto para incendiar a cidade em menos de uma hora? - perguntou o Bacorinho.

- Nesse caso, incendeia a cidade antes que passe a hora - retorquiu Sila. - Os hirpinos não estão a ser honestos. Porque haveria eu de sê-lo?

Como a madeira de que eram feitos, além de estar muito seca, era já velha, os edifícios e fortificações da cidade arderam com a maior facilidade. Num movimento de puro pânico, o povo da cidade abriu as portas e correu para os campos vizinhos gritando que se rendia.

- Matem-nos a todos e pilhem tudo o que houver para pilhar disse Sila. - É tempo de os Italianos entenderem que eu não sinto por eles ponta de compaixão.

- Mulheres e crianças também? - perguntou Quinto Hortênsio, o outro tribuno sénior dos soldados.

- Porque é que perguntas, advogado do Fórum? Falta-te a coragem?

- perguntou-lhe Sila com uma expressão de troça.

- Não entendeste o significado da minha pergunta, Lúcio Cornélio.

- disse Hortênsio calmamente com a sua bela voz. - Não, não são os fedelhos hirpinos que me preocupam. A questão é que, como qualquer outro advogado do Fórum, gosto que tudo fique claro. Trata-se apenas de saber o que tenho ou não tenho de fazer.

- Ninguém ficará vivo - disse Sila. - No entanto, digam aos homens que usem as mulheres primeiro. Depois poderão matá-las.

- Não estás interessado em fazer prisioneiros, para depois os venderes como escravos? - perguntou o Bacorinho, prático como sempre.

- Os Italianos não são inimigos estrangeiros. Mesmo quando saqueio as suas cidades, não trago escravos. Prefiro vê-los mortos.

De Eclano, Sila marchou para sul, para Compsa, o segundo baluarte hirpino. Tal como sucedia com Eclano, também as suas muralhas eram de madeira. Mas as notícias do que acontecera em Eclano tinham chegado a Compsa mais depressa que Sila; quando Sila lá chegou, Compsa aguardava-o com todas as portas abertas e os magistrados fora das muralhas. Desta feita, Sila mostrou-se compassivo. E Compsa escapou à destruição.

Desta cidade hirpina, o general mandou uma carta para Catulo César, que se encontrava ainda em Cápua, pedindo-lhe que enviasse duas legiões, chefiadas pelos irmãos Aulo e Públio Gabínio, para a Lucânia. Os irmãos Gabínio deveriam reconquistar todas as cidades controladas por Marco Lampónio e libertar a Via Popília até Régio. Sila lembrou-se de um outro homem que poderia revelar-se muito útil, e, num post scriptum, sugeriu a Catulo César que incluísse Cneu Papírio Carbão na expedição a terras da Lucânia.

Ainda em Compsa, Sila recebeu duas mensagens. A primeira informava-o de que Herculano tinha finalmente caído, após renhidos combates, dois dias antes dos Idos de Junho, mas que Tito Dídio fora morto durante os combates.

”Herculano deve pagar pela morte de Tito Dídio”, escreveu Sila a Catulo César.

A segunda mensagem veio da Apúlia. Mandava-a Caio Coscónio.

Depois de uma viagem perfeitamente calma, desembarquei com as minhas legiões numa região de lagoas salgadas, perto da aldeia piscatória de Salápia, exactamente cinquenta dias depois de ter deixado Putéolos. Tudo correu como fora planeado. Desembarcámos de noite, no mais completo segredo, atacámos Salápia ao nascer do dia e arrasámos tudo e todos. Certifiquei-me de que todos os habitantes da aldeia e dos arredores tinham sido mortos, de forma a que ninguém pudesse informar os samnitas da nossa chegada.

De Salápia segui para Canas. Conquistei a cidade sem um único combate. Passámos depois o rio Aufídio na direcção de Canúsio. Não tínhamos andado mais de quinze quilómetros quando deparámos com um forte exército samnita chefiado por Caio Trebácio. Não era possível evitar a batalha. Como eles eram muito mais que nós e o terreno não me era favorável, a batalha foi sangrenta e tivemos muitas baixas. Mas Trebácio também perdeu muitos homens. Decidi recuar para Canas antes que perdesse mais homens (e não podia perder mais homens), e voltei a atravessar o Aufídio com Trebácio atrás de mim. Descobri então um bom estratagema para frustrar os planos inimigos. Fingimos que estávamos em pânico e escondemo-nos atrás de um monte, na margem do rio do lado de Canas. O truque resultou. Seguro de que ia vencer, Trebácio começou então a atravessar o Aufídio. Havia alguma desordem entre as suas tropas. Os meus homens estavam calmos e desejosos de prosseguir a batalha. Mandei-os formar em círculo e caímos sobre as tropas de Trebácio enquanto ainda estavam no rio. O resultado foi uma vitória total para Roma. Tenho a honra de te informar de que quinze mil samnitas morreram no Aufídio. Trebácio e os poucos sobreviventes fugiram para Canúsio, que entretanto se preparou para o cerco.

Deixei cinco coortes, incluindo os feridos, defronte de Canúsio, sob o comando de Lúcio Luceio, e segui com quinze coortes para norte, para território dos Frentanos. Áusculo Apulo rendeu-se sem combates. Tal como Larino.

Enquanto escrevia este relatório, recebi de Lúcio Luceio a notícia de que Canúsio tinha capitulado. De acordo com as minhas ordens, Lúcio Luceio saqueou a cidade e matou toda a gente. No entanto, parece que Caio Trebácio conseguiu fugir. Como não possuímos meios para fazer prisioneiros e trazer soldados inimigos na retaguarda das minhas tropas, a destruição de Canúsio era a minha única alternativa. Espero que estejas de acordo com o que fiz. A partir de Larino, prosseguirei o meu avanço por terras dos Frentanos, aguardando entretanto notícias dos teus movimentos e das tuas ordens.

Satisfeito, muito satisfeito mesmo, Sila arrumou a carta e chamou por Metelo Pio e pelos seus dois tribunos séniores dos soldados, dois jovens que se tinham revelado excelentes militares.

Depois de lhes comunicar as notícias de Coscónio e de escutar, com a paciência que conseguia reunir, os comentários maravilhados dos oficiais (pois não tinha falado a ninguém da viagem de Coscónio), Sila tratou de analisar a situação e dar novas ordens.

- É tempo de determos Mutilo. Sim, Mutilo - disse. - Se não o fizermos, ele atacará Caio Coscónio com tantos homens que, nas nossas hostes, não ficará ninguém para contar como foi. E isso será um amargo prémio para uma campanha tão corajosa. As minhas fontes de informação dizem-me que Mutilo está à espera de ver o que eu faço, antes de decidir se há-de atacar-me a mim ou a Caio Coscónio. A esperança dele é que eu vire para sul na Via Ápia e concentre os meus esforços à volta de Venúsia, e Venúsia é suficientemente forte para me deixar ocupado durante muito tempo. Logo que se certifique de que eu vou para Venúsia, Mutilo lançar-se-á no encalço de Caio Coscónio. De modo que hoje levantamos o campamento e seguimos para sul. Porém, durante a noite, mudaremos de direcção e deixaremos por completo a estrada. Entre Compsa e o alto Vulturno, temos uma região montanhosa, acidentada. Mas é por aí que temos de ir. O exército samnita tem estado acampado a meio caminho entre Venafro e Esérnia. Há muito que lá está, mas Mutilo não dá qualquer sinal de querer sair. Para o encontrarmos, teremos de percorrer cerca de duzentos e cinquenta quilómetros num terreno muito difícil. No entanto, meus senhores, temos que lá estar dentro de oito dias e preparados para lutar.

Ninguém ousou discutir aquele plano; Sila não contemporizava com as fraquezas dos seus homens, mas o moral do seu exército era tal que se considerava já imbatível, além de achar o seu chefe o melhor general do mundo. Por outro lado, o saque de Eclano fora um óptimo prémio para os soldados, tanto mais que Sila, dos despojos da cidade, só quisera para si e para os seus oficiais umas quantas mulheres, que ainda por cima não eram das mais bonitas.

No entanto, a marcha que, segundo os planos de Sila, deveria durar oito dias, acabou por demorar vinte e um. Não existiam estradas, e os montes eram tão rochosos e escarpados que não havia outra hipótese senão contorná-los. Embora se sentisse irritado e impaciente, Sila era suficientemente inteligente para não o mostrar; pelo contrário, a cara que mostrava aos legionários e aos oficiais era uma cara alegre e atenciosa; por outro lado, fazia tudo para que o seu exército mantivesse um certo grau de conforto. O facto de ter conquistado a Coroa de Erva tornara-o mais atento e zeloso em relação aos seus homens: no fundo, o que estava em causa era a ideia de que aquele exército lhe pertencia unicamente a ele, Sila. Se o terreno fosse tão fácil quanto ele esperava, Sila teria acicatado os seus homens de forma a que avançassem sempre mais depressa, de forma a que se ultrapassassem; no entanto, o terreno era tudo menos fácil e Sila percebera a necessidade de aceitar o inevitável e de manter a boa disposição dos seus homens. Se a deusa Fortuna o favorecia ainda, encontraria Mutilo onde esperara encontrá-lo; e Sila acreditava que a deusa Fortuna estava ainda do seu lado.

Certo dia, em fins de Julho, Lúculo irrompeu pela tenda de Sila, com uma expressão afogueada.

- Ele está ali! Ele está ali! - desatou a gritar Lúculo sem a mínima cerimónia.

- Óptimo! - comentou Sila, sorridente. - Isso significa que a sorte o abandonou, porque a minha continua intacta. Podes comunicar às tropas que Mutilo está perto. O que é que te pareceu? Achas que ele planeia deixar em breve o acampamento?

- Pelo contrário. Dá impressão que deu férias aos seus homens.

- Eles estão fartos desta guerra, e Mutilo sabe disso - disse Sila com um ar satisfeito. - Além disso, Mutilo está muito inquieto. Há mais de sessenta dias que se encontra neste acampamento e todas as notícias que recebe tornam mais difícil uma decisão quanto à direcção que há-de tomar. Perdeu a Campânia Ocidental e está prestes a perder a Apúlia.

- Que fazemos então? - perguntou Lúculo, que tinha um temperamento claramente bélico e estava a adorar a sua aprendizagem com Sila.

- Acampamos no último cume antes do rio Vulturno e esperamos aí. Sem fumo. E tudo muito calmo - disse Sila. - Gostaria de atacá-lo quando ele se preparasse para partir. Ele tem de partir em breve, caso contrário perderá a guerra. Silão talvez escolhesse essa via. Mas Mutilo é um samnita. Odeia-nos.

Seis dias depois, Mutilo decidiu partir. O que Sila não sabia era que o chefe samnita acabara de receber notícias sobre uma terrível batalha, nos arredores de Larino, entre Caio Coscónio e Mário Egnácio. Embora tivesse mantido os seus homens parados, Mutilo não permitira que Coscónio usasse o Norte da Apúlia como praça de armas. Enviara um grande e experiente exército, constituído por samnitas e frentanos, e dirigido por Mário Egnácio, para conter Coscónio. Mas a pequena força romana estava com um óptimo moral, confiava inteiramente no seu chefe, e habituara-se à ideia de que ninguém a conseguiria derrotar. Mário Egnácio fora por isso derrotado e morrera no campo de batalha como a maior parte dos seus homens. Era uma notícia verdadeiramente surpreendente para Mutilo.

Pouco depois do nascer do dia, as quatro legiões de Sila abandonaram o seu esconderijo e caíram sobre as forças de Mutilo. Apanhado de surpresa, com o acampamento meio desmantelado e as tropas em desordem, o chefe samnita não teve qualquer hipótese de se defender convenientemente. Gravemente ferido, fugiu para Esérnia com o que restava do seu exército. Uma vez mais, Esérnia preparou-se para aguentar um cerco - só que desta feita era Roma o sitiante, e Sâmnio o sitiado.

Sila comemorava ainda a sua vitória quando foi informado do êxito de Coscónio. Ficou exultante. Ainda que houvesse bolsas de resistência, uma coisa era certa: a guerra tinha acabado. E Mutilo sabia disso há sessenta dias.

Deixando algumas coortes em Esérnia, sob o comando de Lúculo, de forma a que Mutilo não pudesse sair, Sila marchou para a velha capital samnita, Boviano.

Boviano era uma cidade magnificamente fortificada. Possuía três cidadelas ligadas por poderosas muralhas. Cada cidadela dava para uma direcção diferente. Delas podia-se vigiar as três estradas que passavam por Boviano. E a cidade considerava-se, por tudo isto, invulnerável.

- Combati durante muito tempo ao lado de Caio Mário - disse ele a Metelo Pio e a Hortênsio. - E reparei numa coisa: Caio Mário nunca se sentiu atraído pela conquista das cidades. Para ele, só importavam as batalhas, nada mais que as batalhas. Eu, em contrapartida, acho fascinante o assalto às cidades. Boviano, por exemplo, parece inexpugnável. Parece, mas não é. Porque vai cair hoje.

E de facto Bovianno caiu naquele dia. O estratagema foi simples. Sila levou a cidade a pensar que todo o seu exército se encontrava sob a cidadela que dava para a estrada de Esérnia; entretanto, uma legião, encoberta pelos montes vizinhos, avançou até à cidadela que dava para sul, para Sepino. Quando Sila viu a enorme coluna de fumo que subia da torre de Sepino - e esse era o sinal previsto, atacou a torre de Esérnia. Menos de três horas depois Boviano rendia-se.

Sila aquartelou os seus soldados em Boviano, em vez de os instalar num acampamento, e usou a cidade como base, enquanto percorria as regiões circundantes, a fim de se certificar de que o Sul do Sâmnio estava inteiramente subjugado, e incapaz de reunir novas tropas.

Em fins de Setembro, Sila deixou Esérnia cercada por homens enviados de Cápua, reuniu as suas quatro legiões e foi ao encontro de Caio Coscónio.

- O leste é teu, Caio Coscónio! - exclamou ele alegremente. Quero a Via Ápia e a Via Minúcia completamente desimpedidas. Usa Boviano como quartel-general, é uma guarnição soberba. E usa a tua compaixão como muito bem achares. O principal é manter Mutilo preso em Esérnia e impedir que lhe cheguem reforços.

- Como vão as coisas a Norte? - perguntou Coscónio, que praticamente não recebera uma única notícia da guerra desde que, em Março, deixara Putéolos.

- Vão muitíssimo bem! Sérvio Sulpício Galba aniquilou a maior parte das tropas marrucinas, marsas e vestinas. Ele diz que Silão estava presente na batalha, mas conseguiu fugir. Cina e Comuto ocuparam todas as terras marsas, e Alba é nossa de novo. O cônsul Cneu Pompeu Estrabão reduziu a pó os Picentinos e os rebeldes da Úmbria. No entanto, Públio Sulpício e Caio Bébio mantêm o cerco a Ásculo Picentino. Ásculo deve estar a morrer de fome, mas continua a aguentar o cerco.

- Então vencemos a guerra! - exclamou Coscónio estupefacto.

- Sim, claro. Mas tínhamos de ganhar, Caio Coscónio! Uma Itália sem Roma a comandá-la? Os deuses não permitiriam uma coisa dessas

- retorquiu Sila.

Aos seis dias de Outubro, Sila chegou a Cápua a fim de se encontrar com Catulo César e tratar dos preparativos necessários para enfrentar o Inverno que se avizinhava. O tráfego voltara ao normal na Via Ápia e na Via Minúcia, embora a cidade de Venúsia aguentasse teimosamente o cerco, incapaz de fazer outra coisa que não fosse observar a actividade romana na grande estrada que por ela passava. A Via Popília mostrava-se segura para a passagem de exércitos e carros desde a Campânia até Régio; mas não era muito aconselhável para o pequeno tráfego de viajantes, pois Marco Lampónio continuava com alguns soldados nas montanhas próximas, lançando ataques que mais pareciam obra de salteadores.

- No entanto - disse Sila a um Catulo César visivelmente feliz, pois preparava-se para partir para Roma em fins de Novembro -, creio que podemos dizer que a península é de novo nossa.

- Preferia esperar pela queda de Ásculo Picentino para dizer isso

- retorquiu Catulo César, que durante dois anos trabalhara infatigavelmente numa missão ingrata. - Tudo começou em Ásculo Picentino, Lúcio Cornélio. E a cidade continua a resistir.

- Não te esqueças de Nola - retorquiu Sila, mostrando os dentes.

Mas os dias de Ásculo Picentino estavam contados. Em Outubro, Pompeu Estrabão, cavalgando o seu Cavalo Público, juntou as suas tropas às de Públio Sulpício Rufo e cercou toda a cidade com uma verdadeira muralha de soldados romanos; tantos olhos atentos nunca deixariam escapar um fugitivo que tentasse descer as muralhas da cidade com uma corda. Depois, Pompeu Estrabão tratou de cortar o abastecimento de água à cidade - uma empresa extraordinária, pois a água era conduzida até Ásculo a partir de centenas de pontos diferentes situados sob o leito do rio Truêncio. Mas Pompeu Estrabão demonstrou ser um óptimo engenheiro e foi com o maior prazer que dirigiu ele próprio os trabalhos.

Quem assessorava Estrabão era Marco Túlio Cícero, o cadete que ele menos prezava; como Cícero desenhava muito bem e tomava notas com extrema rapidez, pois inventara uma espécie de escrita estenográfica, o cônsul Estrabão acabou por considerá-lo de enorme utilidade em situações como a que levou à privação do abastecimento em água de Ásculo Picentino. Tão aterrado com o seu comandante como espantado com a absoluta indiferença que Estrabão mostrava face à terrível situação dos habitantes da cidade, Cícero fazia tudo o que lhe mandavam fazer e não contestava rigorosamente nada. Guardava para si mesmo o que pensava.

Em Novembro, os magistrados de Ásculo Picentino abriram as principais portas da cidade e saíram ao encontro de Cneu Pompeu Estrabão, a fim de lhe comunicarem a submissão de Ásculo.

- A nossa cidade é agora vossa - disse o supremo magistrado com uma expressão de extrema dignidade. - Tudo o que te pedimos é que nos devolvas a nossa água.

Pompeu Estrabão, atirando para trás a cabeça grisalha, desatou numa gargalhada sem fim.

- Agua para quê? - perguntou ele, com um ar ingénuo. - Não ficará ninguém para a beber!

- Nós temos sede, Cneu Pompeu!

- Então fiquem com sede - retorquiu Pompeu Estrabão.

O cônsul entrou em Ásculo Picentino montado no seu Cavalo Público, à frente de um grupo que compreendia os seus lugares-tenentes

- Lúcio Gélio Poplicola, Cneu Octávio Rusão e Lúcio Júnio Bruto Damasipo - e os tribunos dos soldados, os cadetes, e um contingente constituído por cinco coortes.

Enquanto os soldados se espalhavam pela cidade, procurando reunir todos os seus habitantes e inspeccionando todas as casas, Estrabão avançou na direcção do Fórum. Viam-se nele ainda as cicatrizes dos incidentes que Caio Vidacílio provocara; no local onde costumava reunir o tribunal dos magistrados, via-se agora uma pilha de restos de madeira carbonizados, os restos da pira onde Vidacílio se imolara.

Mordiscando o pequeno chicote com que costumava castigar o seu Cavalo Público, o cônsul Estrabão olhou à sua volta com toda a atenção e depois virou-se para Bruto Damasipo.

- Põe uma plataforma em cima daquela pira. Rápido - disse ele a Damasipo.

Passado um breve momento, um grupo de soldados tinha já montado a plataforma, usando para tal umas quantas vigas e portas arrancadas às casas da cidade. A construção ficara tão perfeita que tinha mesmo as inevitáveis escadas. Em cima da plataforma, os soldados colocaram depois a cadeira curul de marfim e um banco para o escriba do cônsul.

- Vem comigo - disse ele para Cícero, após o que subiu as escadas e se sentou na cadeira curul, ainda com a armadura e o elmo de general, mas vestindo agora uma capa cor de púrpura em vez da capa vermelha de general. Com as mãos cheias de placas de cera, Cícero pô-las apressadamente no chão, ao lado do banco, e finalmente sentou-se, com uma placa de cera no colo e o estilete de osso preparado para escrever. Supunha ele que ia assistir a uma audiência oficial.

- Poplicola, Rusão, Damasipo, Cneu Pompeu Júnior, venham para aqui - disse o cônsul com a sua habitual rudeza.

Já mais calmo, Cícero pôde apreciar a cena que se desenrolava à sua frente enquanto aguardava que o mandassem escrever. Era óbvio que a cidade tinha tomado algumas precauções antes de abrir as suas portas. Em particular, tinha juntado num monte enorme, às portas da sede do Senado, uma quantidade de espadas, cotas de malha, lanças, adagas e todo e qualquer objecto que pudesse ser considerado uma arma.

Os magistrados foram então levados até à plataforma. Pompeu Estrabão deu início à audição. Foi muito breve esta cerimónia. Aliás, só Estrabão falou, e pouco.

- São todos culpados de traição e assassínio. Vocês não são cidadãos romanos. Serão açoitados e decapitados. E considerem-se felizes por não lhes aplicar a pena prevista para os escravos: a crucificação.

As sentenças foram então executadas ali mesmo, frente ao tribunal, enquanto Cícero, horrorizado, tentava controlar a sua ansiedade, fixando os olhos na placa de cera que tinha no colo, e fazendo rabiscos incompreensíveis com o estilete.

Decapitados os magistrados, o cônsul Estrabão pronunciou exactamente a mesma sentença em relação a todos os homens da cidade com idades compreendidas entre treze e oitenta anos. Para que tudo fosse rápido, distribuiu tarefas: cinquenta soldados açoitariam, outros cinquenta decapitariam os condenados. Outros soldados esquadrinharam o monte de armas dos habitantes de Ásculo à procura de machados, mas como o tempo urgia os carrascos acabaram por usar as suas espadas; quando os machados vieram, os carrascos recusaram-nos pois já manejavam as espadas na perfeição. Com a prática, tornara-se fácil decapitar com espadas aqueles homens exaustos. Contudo, ao fim de uma hora, apenas trezentos asculanos tinham sido mortos, as cabeças espetadas em lanças e pregadas nas ameias, os corpos atirados para uma pilha.

- Despachem-se! Façam melhor o vosso trabalho! - disse Pompeu Estrabão para os oficiais e os soldados. - Quero isto hoje, e não daqui a oito dias! Ponham duzentos homens a chicotear e outros duzentos a decapitar. E rápido! Não sabem trabalhar em equipa, não fazem as coisas com sistema. Se não se despacham, ainda acabam como eles.

- Seria muito mais fácil deixá-los morrer de fome - disse o filho do cônsul, observando desapaixonadamente a carnificina.

- Sim, seria muito mais fácil. Mas não seria legal - retorquiu o pai.

Mais de cinco mil homens asculanos pereceram naquele dia. A carnificina permaneceria na memória de todos os romanos presentes em Ásculo, embora nenhum deles manifestasse a sua reprovação, nem durante a execução da sentença, nem depois. A praça ficou literalmente banhada de sangue; o fedor a sangue - quente, adocicado, fétido, ferroso - espalhava-se como um nevoeiro pela atmosfera ensolarada da montanha.

Ao pôr do Sol, o cônsul levantou-se da sua cadeira curul, esticando os braços e as pernas.

- Todos para o acampamento - disse ele, laconicamente. - Amanhã trataremos das mulheres e crianças. Não é preciso deixar guardas cá dentro. Basta fechar as portas e patrulhar lá fora. - Estrabão não deu qualquer ordem relativamente aos cadáveres e à limpeza da praça, pelo que esta ficou exactamente como estava, um mar de sangue, e os corpos continuaram empilhados a um canto do Fórum.

No dia seguinte, o cônsul regressou ao seu tribunal, nada perturbado com o que via, enquanto os soldados reuniam os habitantes de Ásculo ainda vivos. A sentença de Estrabão foi idêntica para todos eles:

- Deixem esta cidade imediatamente. Levem apenas o que trazem vestido. Nada de comida, dinheiro, objectos de valor ou recordações.

Dois anos de cerco tinham deixado Ásculo Picentino na maior miséria; dinheiro, havia muito pouco, e objectos de valor ainda menos. No entanto, todas as mulheres e crianças foram revistadas e ninguém pôde voltar às suas casas antes de partir; cada grupo de mulheres e crianças foi pura e simplesmente conduzido através das portas da cidade como se fosse um rebanho e atirado depois para as linhas do exército de Pompeu Estrabão, e para terras que as legiões romanas tinham devastado por completo. Ninguém se compadeceu das velhas que choravam, das crianças que berravam, das mulheres que gritavam por ajuda; as tropas de Pompeu Estrabão tinham outros interesses. As mulheres mais belas foram para os oficiais e centuriões, as outras para os soldados; e depois de se servirem delas, deixaram-nas, àquelas que ainda viviam, nos mesmos ermos devastados para onde, um ou dois dias antes, tinham sido atiradas as suas mães e os seus filhos.

- Não há nada que valha a pena levar para Roma para o meu triunfo - disse o cônsul quando tudo acabou. - Dêem o que houver na cidade aos meus homens.

Cícero desceu, atrás do general, as escadas do tribunal, e fitou boquiaberto os restos daquela que parecia ser a maior mortandade do mundo. Não sentia já nada: nem repulsa, nem compaixão, nada. Se isto é uma guerra, pensou, então que eu nunca mais participe numa guerra em toda a minha vida. E, no entanto, o seu amigo Pompeu, o amigo que adorava e que lhe era tão dedicado, não parecia minimamente afectado pela terrível carnificina. Conseguia mesmo assobiar enquanto avançava por entre as poças de sangue coagulado que enxameavam a praça. Nos belos olhos azuis de Pompeu, Cícero só encontrava aprovação, ainda que à sua volta só vissem assustadores montes de cadáveres sem cabeça.

- Disse a Poplicola que guardasse para os cadetes duas mulheres muito interessantes - disse Pompeu, abrandando o passo não fosse Cícero cair numa poça de sangue. - Ah, vamo-nos divertir à grande! Já alguma vez viste como é? Pois se não viste, vais ver esta noite!

Cícero respirou fundo, nervosamente.

- Cneu Pompeu, presta atenção ao que te digo. A mim não me falta coragem ou firmeza de carácter. Mas a verdade é que não sinto qualquer atracção pela guerra. Depois de ter visto o que aqui se passou nestes últimos dois dias, nem que visse Paris com Helena na cama eu ficaria excitado! E quanto às mulheres asculanas, faz-me o favor de não me envolveres nisso! Prefiro ir dormir para uma árvore!

Pompeu desatou a rir, pôs o seu braço por cima dos ombros do amigo e disse-lhe:

- Oh, Marco Túlio, mas que Vestal velha que tu me saíste! O inimigo é o inimigo! Não te podes sentir triste por causa de gente que não só desafiou Roma, como também matou um pretor romano e centenas de outros romanos, homens, mulheres e crianças! E como os mataram! Despedaçaram-nos, desmembraram-nos! Mas se quiseres vai dormir para uma árvore. Eu faço as tuas vezes com as mulheres.

Deixaram a praça e desceram uma pequena rua que conduzia às portas principais. E de novo os olhos de Cícero deram de frente com os horrores da guerra. Nas ameias, em todas as ameias, lá estavam os assustadores troféus de guerra: cabeças que os pássaros tinham já esburacado. Cícero sentiu náuseas, mas tinha já tanta experiência em esconder o que sentia perante o cônsul, evitando assim problemas com este, que não lhe foi difícil fazer o mesmo com o amigo, e evitar ficar mal visto.

- Não havia nada na cidade que valesse a pena exibir num triunfo

- disse Pompeu, pouco impressionado com as cabeças espetadas nas ameias. - Mas encontrei uma armadilha óptima para caçar pássaros. O meu pai deu-me uma quantidade de livros, incluindo uma edição do meu tio-avô Lucílio que nunca tínhamos visto. Julgamos que deve ser obra de um copista local. É um livro muito belo.

- Não têm comida nem roupas quentes - disse Cícero.

- Quem?

- As mulheres e as crianças que foram expulsas da cidade.

- Espero bem que não!

- E o que é que fazem àquela porcaria?

- Qual porcaria? Os corpos?

- Sim, os corpos. Os corpos e o sangue. E as cabeças. Tudo.

- Vão apodrecer. É uma questão de tempo

- Vão apodrecer e propagar doenças.

- Doenças? E quem é que vai ficar doente? Quando o meu pai mandar fechar e pregar as portas, não ficará ninguém lá dentro. Se alguma mulher ou criança voltar para trás, não conseguirá entrar. Ásculo Picentino acabou. Nunca mais ninguém voltará a viver nesta cidade - disse Pompeu.

- Agora percebo porque é que puseram ao teu pai o cognome de Carniceiro - disse Cícero, sem se preocupar com o facto de tal observação poder ofender o amigo.

De facto, Pompeu entendeu a observação de Cícero como um elogio. As crenças pessoais de Pompeu eram mais fortes que a sua inteligência.

- É um belo cognome, não é? - retorquiu ele desabridamente, receoso de que o amor que tinha pelo pai se estivesse a transformar numa fraqueza. Apressou o passo. - Por favor, Marco Túlio, despacha-te! Não quero que aqueles cunni comecem sem mim quando fui eu quem conseguiu que nos arranjassem as mulheres.

Cícero apressou-se. Mas ainda não tinha acabado.

- Cneu Pompeu, queria dizer-te uma coisa - disse ele, ofegante.

- Ah sim? - retorquiu Pompeu, pensando em tudo menos no que o amigo lhe quereria dizer.

- Pedi a transferência para Cápua, onde julgo que os meus talentos serão mais úteis, agora que a guerra está no fim. Escrevi a Quinto Lutácio e já recebi a resposta. Ele diz que ficará muito contente se eu for para lá. Ou então irei servir Lúcio Cornélio Sila.

Pompeu parou, fitou espantado Cícero.

- Para que é que fizeste uma coisa dessas?

- A equipa de Cneu Pompeu Estrabão é boa para militares, Cneu Pompeu. E eu não sou um militar. - Os seus olhos castanhos fitaram com gravidade e brandura o rosto do amigo, que estava tão surpreendido que não sabia se havia de rir ou de desatar aos berros. - Por favor, Cneu Pompeu, deixa-me ir embora! Ficar-te-ei grato para toda a vida e nunca me esquecerei da grande ajuda que me deste. Mas tu não és nunhum idiota, Cneu Pompeu. Sabes perfeitamente que a equipa do teu pai não é o sítio certo para mim.

Já mais calmo, Pompeu fitou o amigo com um brilho de felicidade nos olhos.

- Faz como muito bem entenderes, Marco Túlio! - disse ele. Depois suspirou. - Mas olha que vou sentir a tua falta!

Sila chegou a Roma em princípios de Dezembro. Não fazia a mínima ideia de quando seriam disputadas as eleições; depois da morte de Asélio, Roma ficara sem pretor urbano, e dizia-se que o único cônsul vivo, Pompeu Estrabão, só voltaria a Roma quando muito bem lhe apetecesse. Em circunstâncias normais, um tal quadro teria deixado Sila desesperado. Mas não podia haver dúvidas quanto a quem seria o próximo cônsul sénior. Sila alcançara a fama de um dia para o outro. Homens que não conhecia saudavam-no como um irmão, mulheres sorriam-lhe e lançavam-lhe olhares sedutores, convidativos, a ralé aclamava-o - e, além de tudo isso, fora eleito augure in absentia, para substituir o falecido Asélio. Toda a Roma acreditava firmemente que fora ele, Lúcio Cornélio Sila, quem ganhara a guerra contra os Italianos. Não fora Caio Mário. Nem Cneu Pompeu Estrabão. Fora ele, Sila. Sila! Sila!

O Senado nunca chegara a nomeá-lo formalmente comandante-chefe do teatro do Sul após a morte do cônsul Catão; tudo o que fizera, fizera-o como lugar-tenente de um morto. Contudo, em breve Sila seria o novo cônsul sénior - e então o Senado ter-lhe-ia de dar o comando que ele exigisse. O embaraço de certos dirigentes senatoriais, como Lúcio Márcio Filipe, perante aquele descuido com um lugar-tenente que se tornara comandante sem qualquer nomeação oficial, divertia Sila até mais não. Não havia dúvida: tinham-no considerado um zé-ninguém, um indivíduo sem importância, incapaz de realizar milagres. E agora ele era o herói de toda a gente.

Uma das primeiras visitas que fez depois de regressar a Roma foi a Caio Mário, cujas melhoras o deixaram positivamente espantado. Com o velho, encontrava-se Caio Júlio César Júnior, agora com onze anos e quase tão alto como Sila, ainda que sem muitas manifestações púberes. Tão admirável, tão inteligente, como sempre. Há um ano que cuidava de Mário, há um ano que escutava, com o ouvido aguçado de uma criatura selvagem, todas as palavras que o Mestre pronunciava. Escutara tudo com a máxima atenção, e nada esquecera.

Através de Mário, Sila ficou a saber que o jovem Mário quase caíra em desgraça, e que servia agora Cina e Comuto na guerra contra os Marsos, mostrando-se muito mais calmo e responsável. Mário contou-lhe também o episódio da quase queda no precipício do jovem César, que escutava a história com um olhar ausente. A presença de Lúcio Decúmio naquele episódio chamara a atenção de Sila - e surpreendera-o. Nem parecia coisa de Caio Mário! Em que mundo viviam se o próprio Caio Mário descia ao ponto de contratar um assassino profissional? A morte de Públio Cláudio Pulcro fora tão acintosamente acidental que Sila depressa concluiu que não se tratara de acidente nenhum. Mas como teria sido provocado o ”acidente”? E de que modo o filho de Aurélia participara nele? Seria possível que aquela criança tivesse posto em risco a sua própria vida para empurrar Públio Cláudio Pulcro para um precipício? Não! Nem mesmo Sila mostrava tanta confiança quando o que estava em causa era assassinar.

Fitando intensamente o rapaz enquanto Mário continuava a falar (era evidente que Mário acreditava que a intervenção de Lúcio Decúmio não tinha sido necessária), Sila tentou inculcar medo no filho de Aurélia. Mas perante o olhar frio e perscrutador de Sila, o rapaz respondeu-lhe olhando-o nos olhos, sem qualquer vestígio de medo ou sequer apreensão. Também não sorria; limitava-se a fitar Sila com um interesse profundo e sóbrio. Ele lê-me na alma!, disse Sila para si mesmo, mas garanto-te, jovem César, que a tua alma é também para mim como um livro aberto! Que o Grande Deus defenda Roma de qualquer um de nós! Sendo um homem generoso, Mário não podia deixar de ficar contente com o êxito de Sila. Até mesmo a atribuição da Coroa de Erva - a única condecoração militar que Mário não conquistara - foi aplaudida sem ressentimento nem inveja.

- Que me dizes então acerca das pessoas que aprendem a ser comandantes? - perguntou Sila com um intuito provocatório.

- Só posso dizer que estava enganado, Lúcio Cornélio. Não, não estava enganado quando ao aprender-se ou não a ser comandante. Continuo a achar que isso não se aprende. Eu estava errado sim, quando pensava que tu não tinhas estofo de comandante. Mas não há dúvida que tens. A ideia de mandar Caio Coscónio por mar até à Apúlia foi verdadeiramente inspirada. E o teu ataque em tenaz foi conduzido de uma forma absolutamente irrepreensível. Só um general nato poderia ter conduzido de tal modo um tal ataque.

Uma resposta que deveria ter deixado Lúcio Cornélio Sila feliz e vingado. Mas não deixou. Sila compreendeu que Mário continuava a considerar-se o melhor de todos os generais romanos, que Mário estava convencido de que teria submetido o Sul da Itália mais rápida e facilmente. Que terei eu de fazer para levar este burro velho e teimoso a perceber que encontrou um adversário à altura?, gritou Sila para si mesmo, mas sem dar a entender o que lhe passava nesse instante pela cabeça. Irado, olhou para o jovem César: sim, o rapaz tinha ”ouvido” aquela pergunta silenciosa.

- Que achas, jovem César? - perguntou Sila.

- Sinto a maior admiração pelos teus feitos, Lúcio Cornélio.

- Uma resposta simpática...

- Uma resposta honesta.

- Anda, meu rapaz, eu levo-te a casa.

De início caminharam em silêncio, Sila envergando a sua toga branca de candidato, e o rapaz a toga debruada a púrpura das crianças, com a bulia ao pescoço para o proteger do mal. E de início Sila pensou que todos os sorrisos e acenos eram para si. O que seria natural, pois tornara-se um homem famoso. No entanto, cedo reparou que muitos desses sorrisos e saudações eram para o rapaz.

- Como é que toda a gente te conhece, jovem César?

- Conhecem-me porque costumo acompanhar um homem famoso, Lúcio Cornélio. Vou para todo o lado com Caio Mário. A fama é dele, não é minha.

- É toda dele?

- Bom, a questão é esta, Lúcio Cornélio: enquanto ando por aqui, perto do Fórum, não passo do rapaz que acompanha Caio Mário. Se sou conhecido é só no bairro de Subura.

- O teu pai já voltou?

- Não. Continua com Públio Sulpício e Caio Bébio frente a Ásculo Picentino - respondeu o rapaz.

- Então já não demora. Esse exército já vem a caminho.

- Suponho que sim.

- Não estás ansioso por voltar a ver o teu pai?

- Sim, claro que estou - retorquiu o filho de Aurélio despreocupadamente.

- Lembras-te do teu primo... do meu filho?

A expressão do rapaz iluminou-se. Sim, o seu entusiasmo, agora, era genuíno.

- Como poderei esquecê-lo, Lúcio Cornélio? Ele era tão bom! Quando morreu dediquei-lhe um poema.

- Que dizia esse poema? Importas-te de recitá-lo? O jovem César abanou a cabeça.

- Eu escrevia muito mal nessa época. Por isso, se não te importas, não vou recitar o poema. Um dia escrevo um poema melhor em memória do meu primo. E dar-te-ei uma cópia.

Que estupidez!, pensou Sila. Que estupidez abrir de novo aquela ferida só porque não sabia como conversar com um rapaz de onze anos! Sila calou-se, reprimindo as lágrimas.

Como de costume, Aurélia estava a trabalhar no seu gabinete. No entanto, mal Eutico lhe disse quem acompanhara o filho a casa, deixou o trabalho e foi ter com Sila. Enquanto estavam na sala de recepção, o jovem César não os largou, examinando atentamente a mãe. Mas que mosca é que mordeu a este miúdo?, perguntava-se Sila, manifestamente irritado, pois a presença do rapaz impedia-o de falar a Aurélia das coisas que pretendia fazer. Felizmente Aurélia apercebeu-se da sua irritação e logo mandou embora o filho, que obedeceu com relutância.

- O que é que lhe deu?

- Suspeito que Caio Mário disse qualquer coisa que levou Caio Júlio a fazer uma ideia errada da nossa amizade - retorquiu calmamente Aurélia.

- Por todos os deuses! O velho sacana! Como é que ele se atreveu a uma dessas?

Aurélia desatou a rir-se, divertida.

- Ah, isso são coisas que já não me preocupam rigorosamente nada - disse ela. - Repara, por exemplo, neste interessante episódio. Quando o meu tio Públio Rutílio escreveu a Caio Mário, então na Ásia Menor, contando que o marido da sua sobrinha a abandonara porque ela dera à luz um rapaz ruivo, Júlia e Caio Mário concluíram imediatamente que essa sobrinha só poderia ser eu. E que o pai do bebé só poderias ser tu.

Agora era Sila quem se ria.

- Sabem assim tão pouco de ti? As tuas muralhas são mais difíceis de abater do que as de Nola.

- É verdade. Não que tu não tenhas tentado.

- Sou um homem, igual a todos os outros.

- Não estou de acordo. És mais um fauno do que um homem! Entretanto, no seu esconderijo secreto por cima do tecto falso do

gabinete de Aurélia, o jovem César escutava a conversa. E sentia um imenso alívio: afinal a mãe era uma mulher virtuosa. Mas essa emoção foi logo eliminada por outra, que o deixava mais ansioso - por que razão a mãe nunca era assim com ele? Por que razão lhe ocultava sempre aquela sua faceta? Ali estava ela, despreocupada, rindo-se, divertida com aquela conversa mundana, frívola. Como podia gostar daquele homem repugnante? Como podia dizer-lhe aquelas coisas? Sim, aquela conversa só a poderiam ter duas pessoas com uma amizade muito antiga, uma amizade que resistira a muita coisa. Ela não seria amante de Sila, mas havia entre eles uma intimidade que Aurélia não partilhava com o marido - sim, isso era evidente, pensava o jovem César. Não, a sua mãe não tinha aquela intimidade com o pai. Com o pai dele. Reprimindo impacientemente as lágrimas, deitou-se ao comprido no seu esconderijo para não perder nada daquela conversa. Procurando não fazer o mínimo barulho e tentando disciplinar a sua mente de forma a conseguir a distância de que precisava para enfrentar aquela situação. Esquece que ela é tua mãe, Caio Júlio César Júnior! Esquece que detestas o amigo dela, aquele horrível Sila! Escuta-os com atenção, ouve o que eles dizem, e aprende.

- Serás cônsul muito em breve - dizia a mãe.

- Aos cinquenta e dois anos. Mais velho do que Caio Mário.

- E já és avô! Já viste o teu neto?

- Aurélia, por favor! Claro, mais tarde ou mais cedo lá terei de ir a casa de Quinto Pompeu, de braço dado com Élia, e terei de jantar lá em casa e de fazer festinhas ao bebé. Mas por que hei-de ir a correr ver a filha da minha filha? Será que isso é assim tão importante?

- A tua neta, Pompeia, é a beleza personificada.

- Então, já que é tão bela, que faça tantos estragos como Helena de Tróia!

- Não digas uma coisa dessas! Sempre achei que Helena teve uma vida miserável. Helena era uma escrava. Um brinquedo para os homens brincarem - retorquiu Aurélia com veemência.

- As mulheres são escravas. Pertencem aos homens - disse Sila, sorrindo.

- Eu não sou! Não sou pertença de ninguém. Tenho os meus próprios bens e as minhas próprias actividades.

Sila mudou de tom.

- O cerco a Ásculo Picentino já acabou. Caio Júlio não demora. E quando ele voltar? Continuarás a dizer essas coisas tão corajosas?

- Nem me fales nisso, Lúcio Cornélio! Embora eu goste muito do meu marido, faz-me medo só de pensar que ele em breve estará de volta a esta casa. Vai logo começar a pôr defeitos em tudo, a dizer que eu faço tudo mal, desde a educação das crianças à minha actividade como senhoria. E eu tentarei desesperadamente agradar-lhe. Até ao momento em que ele me venha com alguma ordem que eu não suporte!

- Nesse momento, minha pobre Aurélia, dir-lhe-ás que ele está errado e assim começarão os desentendimentos, as discussões, os problemas - disse Sila, ternamente.

- Eras capaz de me aturar? - perguntou ela, veemente.

- Não, Aurélia, não era. Nem que fosses a única mulher neste mundo!

- Mas Caio Júlio é capaz de me aturar.

- Oh! Mas que mundo este!

- Por favor, Lúcio Cornélio, deixa-te de ironias! - atirou-lhe ela.

- Nesse caso, mudo de assunto - disse Sila. - Como tem passado a viúva de Escauro?

Os olhos cor de púrpura brilharam.

- Ecastor! Ainda estás interessado nessa mulher?

- Interessadíssimo.

- Creio que ela se encontra sob a tutela de um homem relativamente novo: o irmão de Lívio Druso, Marco Emílio Lépido Liviano.

- Eu conheço-o. Está na equipa de Quinto Lutácio em Cápua, mas combateu com Tito Dídio em Herculano e esteve na Lucânia com os Gabínios. Um tipo firme, resoluto, o tipo de homem que todos acham ser o sal da terra. - Sila pôs-se muito direito, com um ar tão alerta como o de um gato que acaba de ver uma presa. - Ai as coisas estão para aí viradas. Ela vai casar-se com Lépido Liviano?

Aurélia riu-se.

- Duvido! Lépido Liviano está casado com uma mulher terrível. Uma mulher que não o deixa pôr o pé em ramo verde... Chama-se Cláudia e é irmã de Ápio Cláudio Pulcro, aquele cuja mulher obrigou Lúcio Júlio a limpar o templo de Juno Sospita. Ela morreu de parto dois meses depois.

- Prima da minha Dalmática. Quer dizer, a falecida mulher de Ápio Cláudio Pulcro, de apelido Baleárica - disse Sila com um sorriso franco.

- Todos são primos dela - disse Aurélia. Sila parecia agitado.

- Achas que a minha Dalmática ainda está interessada em mim? Aurélia abanou a cabeça.

- Não faço a mínima ideia! Dou-te uma resposta honesta, Lúcio Cornélio. Só me dou com as mulheres que pertencem à minha família.

- Então talvez pudesses dar-te mais com Dalmática quando o teu marido voltar. Vais ter muito mais tempo para isso quando ele voltar

- disse Sila com uma expressão trocista.

- Basta, Lúcio Cornélio! Vai-te embora. Não estou para te ouvir mais. Aurélia acompanhou-o até à porta. Logo que deixou de ver as formas da mãe e de Sila através do buraco do tecto, o jovem César abandonou o seu esconderijo.

- Podias dar-te mais com Dalmática. Cultivar a sua amizade. Ajudavas-me... - disse Sila quando ela abriu a porta da rua.

- Não contes com isso - retorquiu Aurélia. - Se estás tão interessado, cultiva tu a amizade de Dalmática. Embora deva dizer-te que um eventual divórcio de Elia te trará muita impopularidade.

- A impopularidade é algo que conheço bem. De outros tempos. Vale, as eleições tribais realizaram-se sem a presença do cônsul, depois de o Senado ter nomeado como escrutinador Metelo Pio, o Bacorinho, que era pretor e regressara a Roma com Sila. Uma coisa saltava desde logo aos olhos: os tribunos da plebe constituiriam um grupo muito conservador, pois o primeiro nome da lista era Públio Sulpício Rufo e, não muito longe dele, vinha o nome de Públio Antístio. Sulpício conseguira libertar-se de Pompeu Estrabão; tendo assegurado uma excelente reputação no campo de batalha como comandante nas lutas contra os Picentinos, Sulpício pretendia agora assegurar a fama política. Possuía já uma boa reputação retórica e forense, pois tivera uma brilhante carreira no Fórum, enquanto jovem. Considerado como o mais prometedor orador da geração mais jovem, seguia o estilo asiático, tal e qual como o falecido Crasso Orador, os seus gestos eram sempre graciosamente calculados e, além de possuir uma voz belíssima, era um perito nos artifícios da retórica. O seu caso mais famoso era o processo que conduzira contra Caio Norbano, alegando que este condenara ilegalmente o cônsul Cepião, célebre pelo ouro de Tolosa: o facto de ter perdido o caso não afectara minimamente a sua reputação. Grande amigo de Marco Lívio Druso (embora não tivesse apoiado a emancipação para os Italianos), mantivera-se, desde a morte de Druso, muito ligado a Quinto Pompeu Rufo, que nas eleições consulares iria fazer equipa com Sila. O facto de ser eleito Presidente do Colégio dos Tribunos da Plebe não constituía um bom agouro para os demagogos. Mas a verdade é que nenhum dos dez tribunos eleitos tinha aparentemente tendências demagógicas e, de facto, à eleição não se seguiu a aprovação de nenhuma lei controversa. Mais prometedora era a eleição de Quinto Cecílio Metelo Celer para o lugar de edil plebeu; dizia-se que o novo edil plebeu, um homem riquíssimo, pensava realizar uns jogos estupendos, o que vinha mesmo a calhar numa cidade que estava cansada da guerra.

Com o Bacorinho presidindo uma vez mais, as Centúrias reuniram-se no Campo de Marte, a fim de assistirem à apresentação formal dos candidatos a cônsules e pretores. Quando Sila e o seu colega Quinto Pompeu Rufo anunciaram a sua candidatura, os aplausos e vivas tornaram-se ensurdecedores. Mas quando Caio Júlio César Estrabão Vopisco Sesquiculo anunciou a sua intenção de disputar as eleições consulares, registou-se um silêncio absoluto.

- Não podes! - disse Metelo Pio. - Ainda não foste pretor!

- Sustento que não há nada na lei que impeça um homem de disputar o consulado sem ter sido pretor - disse César Estrabão, mostrando um rolo de pergaminho tão grande que a audiência logo protestou. - Tenho aqui uma dissertação que lerei do princípio ao fim, de forma a aprovar que a minha tese é inquestionável.

- Não te maces, Caio Júlio Estrabão! - exclamou o novo tribuno da plebe, Sulpício, que se encontrava entre a multidão aglomerada aos pés da plataforma dos candidatos. - Eu oponho o meu veto! Não podes candidatar-te.

- Ora essa, Públio Sulpício! Julguemos por uma vez a lei em vez de a usarmos apenas para julgar pessoas! - gritou César Estrabão.

- Oponho o meu veto à tua candidatura, Caio Júlio Estrabão. Desce daí e junta-te aos teus pares - disse firmemente Sulpício.

- Nesse caso, apresento a minha candidatura ao cargo de pretor!

- Este ano, não - ripostou Sulpício. - Também veto a tua candidatura ao cargo de pretor.

Havia alturas em que o irmão mais novo de Quinto Lutácio Catulo César e Lúcio Júlio César, o censor, se mostrava violento e desordeiro, criando por isso sérios problemas a si mesmo. Porém, naquela situação, César Estrabão limitou-se a encolher os ombros, e, com um sorriso nos lábios, desceu da plataforma e foi ter com Sulpício.

- Imbecil! O que é que te deu para fazer uma destas? - perguntou-lhe Sulpício.

- Se não estivesses cá, podia ser que tivesse resultado.

- Eu ter-te-ia matado primeiro - disse outra voz.

César Estrabão virou-se, viu que a voz era do jovem Caio Flávio Fímbria, e olhou-o com uma expressão sarcástica.

- Está mas é calado, meu grande cretino! Tu nem uma mosca eras capaz de matar!

- Acabem já com isso! - disse imediatamente Sulpício, pondo-se entre os dois. - Vai-te embora, Caio Flávio! Vá, desaparece! Deixa o governo de Roma aos mais velhos, aos teus superiores!

César Estrabão desatou a rir e Fímbria escapuliu-se.

- Tão novinho e já é uma rica peste - comentou Sulpício. - Ele nunca te perdoou por teres processado Vário.

- Isso não me surpreende - retorquiu César Estrabão. - Quando Vário morreu, Caio Flávio Fímbria perdeu o seu único meio de sustento visível.

Não haveria mais surpresas; apresentadas todas as nomeações para os cargos de cônsul e pretor, todos foram para casa, a fim de aguardarem, com a paciência possível, pelo regresso do cônsul, Cneu Pompeu Estrabão.

Cneu Pompeu Estrabão só regressaria a Roma em fins de Dezembro. Mal chegou, insistiu para que o seu triunfo fosse celebrado antes da realização das eleições. O facto de ter demorado tanto a regressar a Roma deveu-se a uma brilhante ideia que teve após a conquista de Ásculo Picentino. A sua parada triunfal estava condenada a ser uma parada muito pobre; não havia despojos para exibir, não haveria carros alegóricos revelando paisagens e povos exóticos, terras e gentes que os habitantes de Roma nunca tinham visto. Tais carências levaram-no então a ter a tal brilhante ideia. Brilhante e simples: integraria na sua parada milhares e milhares de rapazinhos italianos! Se assim pensou, melhor o fez - e em pouco tempo as suas tropas conseguiam reunir milhares de rapazes italianos, com idades compreendidas entre os quatro e os doze anos. Por isso, o seu carro triunfal percorreu as ruas de Roma precedido por uma legião de rapazes, caminhando vagarosamente, penosamente. Um espectáculo terrível, nem que fosse apenas pelo facto de lembrar aos Romanos que aqueles rapazes eram todos órfãos de pai, que os seus pais tinham sido todos mortos pelas tropas de Cneu Pompeu Estrabão.

As eleições curuis realizaram-se três dias antes do Ano Novo. Lúcio Cornélio Sila foi eleito cônsul sénior, e o seu amigo Quinto Pompeu Rufo foi escolhido para o acompanhar no consulado. Dois homens ruivos provenientes de extremos opostos do espectro nobre romano. Roma ansiava por ter no consulado dois homens que funcionassem como uma equipa - isso significava uma mudança. Por outro lado, era grande a esperança de que alguns dos danos da guerra fossem reparados.

Aquele era um ano de seis pretores, o que significava que a maior parte dos governadores das províncias ultramarinas permaneceria nos seus cargos: Caio Sêncio e o seu lugar-tenente Quinto Brútio Sura na Macedónia; Públio Servílio Vátia e os seus lugares-tenentes Caio Célio e Quinto Sertório nas Gálias; Caio Cássio na Província da Ásia; Quinto Ópio na Cilícia; Caio Valério Flaco na Hispânia; o novo pretor Caio Norbano foi mandado para a Sicília, e um outro novo pretor, Públio Sextílio, foi para África. O pretor urbano era um homem já idoso, Marco Júnio Bruto. Tinha um filho que acabara de entrar para o Senado, mas candidatara-se ao cargo de pretor apesar da sua pouca saúde, porque, dizia, Roma precisava de homens decentes a governá-la quando havia tantos homens decentes ainda no campo de batalha. Quando ao praetor peregrinas, tratava-se de um plebeu de nome Servílio, da família Augure.

O primeiro dia do ano amanheceu radioso, e os presságios da noite anterior tinham sido favoráveis. Não surpreendia que, após dois anos de inquietações e receios, toda a cidade de Roma tivesse decidido assistir à tomada de posse dos novos cônsules. Toda a gente sentia que a vitória total sobre os Italianos se aproximava e muitos eram os romanos que esperavam que os novos cônsules tivessem agora tempo para resolver os tremendos problemas financeiros da cidade.

Depois da consulta dos presságios, Lúcio Cornélio Sila regressou a casa, vestiu a toga debruada a púrpura e, com as suas próprias mãos, colocou na cabeça a Coroa de Erva. Ao sair de casa, pôde experimentar uma sensação completamente nova: a sensação de passear pelas ruas de Roma na companhia de doze lictores que levavam aos ombros os feixes de varas de olmo ligadas por uma correia vermelha. À sua frente, para além dos lictores, seguiam os cavaleiros que tinham preferido escoltá-lo a ele, em vez de Quinto Pompeu Rufo, e atrás vinham os senadores, incluindo o seu muito caro amigo Quinto Cecílio Metelo Pio, o Bacorinho.

Este é o meu grande dia, dizia Sila para si mesmo enquanto a imensa multidão suspirava e manifestava a sua admiração ao ver a Coroa de Erva. Pela primeira vez na minha vida não tenho nem rivais nem pares. Sou o cônsul sénior, ganhei a guerra contra os Italianos, trago na cabeça a Coroa de Erva. Sou mais poderoso do que um rei.

As duas procissões, iniciadas nas casas dos novos cônsules, juntaram-se ao fundo da Clivus Palatinus, onde se encontrava ainda a velha Porta Mugiónia, uma relíquia dos tempos em que Rómulo construíra a muralha em torno da sua cidade do Palatino. A partir desse local, seis mil homens avançaram solenemente pela Vélia e pela Clivus Sacer, na direcção do baixo Fórum. A maior parte desses homens eram cavaleiros com a banda de púrpura estreita - a angustus clavas - nas suas túnicas;

0 Senado, bastante rarefeito, vinha imediatamente atrás dos cônsules e dos lictores. Por todo o lado, os espectadores aplaudiam e gritavam vivas; havia gente empoleirada nas paredes das casas do Fórum, nas arcadas e nos telhados das basílicas, nos telhados dos templos que ofereciam as melhores vistas, em todas as escadarias que levavam ao Palatino, em todos os degraus e entradas dos templos, nos telhados das tabernas e lojas da Via Nova, nas galerias das grandes casas do Palatino e do Capitólio que davam para o Fórum. Gente. Gente por todo o lado. Aplaudindo, saudando, o homem que trazia na cabeça a Coroa de Erva, uma coroa que a maior parte nunca tinha visto.

Sila caminhava com uma dignidade real que nunca ninguém lhe tinha visto, agradecendo os aplausos e saudações com uma ligeira inclinação da cabeça; nenhum sorriso lhe aflorava os lábios e, nos seus olhos, não se lia nem presunção nem júbilo. O sonho tornara-se realidade: aquele era o seu grande dia. Uma das coisas que mais o fascinou foi o facto de reparar em certas pessoas no meio das vastas multidões: uma mulher bela, um velho, uma criança às cavalitas do pai, um estrangeiro - e Metróbio. Quase parava quando viu Metróbio. Mas o seu embaraço durou apenas um segundo. Metróbio era apenas um rosto na multidão. Leal e discreto como sempre. Não se notava no seu belo rosto moreno nenhum sinal de que houvera entre eles uma relação muito especial. Excepto talvez nos olhos, embora só Sila o pudesse entender. Eram olhos tristes, aqueles olhos. Mas logo aquele rosto desapareceu, ficou para trás, no passado.

Depois de passarem pela zona junto ao anfiteatro dos Comitia e de virarem à esquerda para fazerem o caminho entre o templo de Saturno e as arcadas abobadadas que albergavam os Doze Deuses, os cavaleiros pararam, viraram-se para a Clivus Argentarius e começaram a aclamar alguém. Era um barulho tremendo, uma saudação muito mais entusiástica do que a que os cavaleiros tinham reservado a Sila. O detentor da Coroa de Erva ouvia as aclamações mas não conseguia ver nada. O suor escorria-lhe pelas costas. Havia alguém que naquele momento lhe estava a roubar a sua multidão! Porque toda a gente se virara para a Clivus Argentarius, porque os seus vivas cresciam ensurdecedores, porque as suas mãos se agitavam como ervas num mar imenso.

Sila nunca fizera tão grande esforço em toda a sua vida - nada mudara na sua expressão, na inclinação da cabeça, nos olhos em que ninguém detectaria um sentimento. A procissão pôs-se de novo a caminho; Sila avançou pelo baixo Fórum atrás dos seus lictores, sem nunca virar a cabeça para verificar o que o esperava ao fundo da Clivus Argentarius. Aquilo que lhe tinha roubado a sua multidão. Que lhe tinha roubado o seu dia. O seu dia!

Até que viu a razão de toda aquela mudança. Caio Mário. Lá estava ele. Acompanhado pelo rapaz. Vestido com a toga praetexta. Iria juntar-se aos senadores curuis que vinham imediatamente atrás de Sila e Pompeu Rufo. De novo activo, Caio Mário. Iria assistir à tomada de posse dos novos cônsules, à reunião do Senado que se realizaria depois no templo de Júpiter Optimus Maximus, aos festejos no mesmo templo. Caio Mário. Caio Mário, o génio militar. Caio Mário, o herói.

Quando Sila passou por ele, Caio Mário fez-lhe uma vénia. Sila não poderia permitir que transparecesse a raiva que o dominava naquele momento. Nem mesmo Caio Mário poderia perceber quão furioso estava. Por isso, respondeu-lhe com outra vénia. Nesse instante, a adulação atingiu o rubro: a multidão gritava, berrava, chorava de alegria. Depois de Sila ter virado à esquerda para caminhar junto ao templo de Saturno e subir a colina do Capitólio, Caio Mário ocupou o seu lugar no seio dos homens das togas debruadas a púrpura, sempre com o rapaz ao seu lado. Tinha melhorado tanto que quase já não arrastava o pé esquerdo e conseguia mover a mão esquerda que segurava as pesadas dobras da toga - as pessoas viam claramente que ele já não era um homem aleijado, uma massa pesada que em tempos quase não conseguia andar; quanto ao rosto, não sorria para evitar o esgar em que se transformara o seu sorriso.

Darei cabo de ti, Caio Mário, pelo que me fizeste hoje!, pensava Sila. Sabias, sim, sabias que este era o meu dia, o grande dia da minha vida! No entanto, não resististe a mostrar-me que Roma continua a pertencer-te. Que eu - um patrício Cornélio! - nada sou se comparado contigo, quando afinal tu não passas de um labrego italiano que nem a língua grega conhece. Que eu não conquistei o amor do povo. Que eu não poderei nunca elevar-me às tuas alturas. Bom, talvez seja assim mesmo, Caio Mário. Mas eu darei cabo de ti. Serei a tua ruína. Cedeste à tentação de me pores em causa no meu dia. Se tivesses regressado à vida pública amanhã - ou depois de amanhã, ou em qualquer outro dia -, o resto da tua vida seria muito diferente. Mas assim será uma verdadeira agonia. Porque eu darei cabo de ti. Serei a tua ruína. Não usarei veneno. Nem nenhuma faca. Farei com que os teus descendentes nunca exibam a tua imagem numa procissão fúnebre da família, destruirei a tua reputação para todo o sempre.

Aquele dia terrível não demoraria a findar. Com um ar satisfeito e orgulhoso, o novo cônsul sénior arrumou-se a um canto do templo de Júpiter Optimus Maximus, com o mesmo sorriso indiferente que se via na estátua do Grande Deus, deixando que os senadores prestassem homenagem a Caio Mário (quando afinal a maior parte desses senadores detestava o Grande Homem). Quando se apercebeu de que Mário fizera tudo aquilo inocentemente - que não lhe ocorrera que talvez estivesse a destruir aquele que era o grande dia de Sila, que pensara muito simplesmente que aquele seria um dia magnífico para reaparecer no Senado -, quando se apercebeu disso, Sila não ficou menos furioso nem desistiu da sua intenção de acabar com aquele velho importuno. Pelo contrário: o facto de Mário não ter feito aquilo propositadamente tornava a sua acção ainda mais intolerável; aos olhos de Mário, Sila era uma personalidade tão pouco importante que nem sequer o inquietava. E por isso Mário pagaria um preço amargo.

- Que-que-que atrevimento. - segredou Metelo Pio a Sila quando a reunião acabou e os escravos públicos começaram a preparar o banquete. - Ele-ele-ele-ele fez a-a-a-aquilo propositadamente!

- Sim, claro, foi de propósito - mentiu Sila.

- E-e-e-e não va-va-va-vais fazer nada? - perguntou Metelo Pio, quase chorando.

- Acalma-te, Bacorinho, estás a gaguejar - disse Sila, usando aquele nome detestado, mas de uma maneira que nunca chocava Metelo Pio. - Eu recuso-me a deixar que estes idiotas se apercebam do que sinto. Deixa-os pensar, e deixa-o a ele também pensar, que eu aprovo tudo o que ele fez de alma e coração. Eu sou o cônsul, Bacorinho. Ele não. Caio Mário não passa de um velho doente tentando recuperar uma ascendência que nunca voltará a ter.

- Quinto Lutácio está parvo com o que aconteceu - disse Metelo Pio, procurando não gaguejar. - Estás a vê-lo ali? Disse a Mário o que pensava e não é que o velho hipócrita respondeu que não tinha a mínima intenção de prejudicar fosse quem fosse?

- Não dei por essa conversa - retorquiu Sila, olhando para Catulo César, que falava com um ar visivelmente furioso com o seu irmão, o censor, e com Quinto Múcio Cévola, que tinha uma expressão infeliz. Sila sorriu. Um largo sorriso.

- Se Quinto Lutácio está a dizer mal de Caio Mário, não o deveria fazer em frente de Quinto Múcio.

- Porquê? - perguntou o Bacorinho, mais curioso agora que indignado.

- Porque vai haver casamento. Quinto Múcio dará a sua filha ao jovem Mário logo que ela atinja a idade própria.

- Por todos os deuses! Quinto Múcio tinha muitas outras hipóteses! Sila ergueu uma sobrancelha.

- Achas que sim, meu caro Bacorinho? Não te esqueças que Caio Mário é riquíssimo!

No regresso a casa, Sila só não recusou a companhia de Catulo César e Metelo Pio, embora não os tenha convidado a entrar. A casa estava sossegada e a sua mulher não andava por perto, o que deixou Sila extremamente contente; a maldita bondade de Élia deixá-lo-ia exasperado, com vontade de a matar. Encaminhou-se apressadamente para o escritório, fechou a porta à chave e baixou as venezianas da janela. Deixou que a toga deslizasse pelo seu corpo e caísse no chão e, com um pontapé indiferente, afastou-a; com uma expressão que finalmente revelava o que sentia, Sila abeirou-se do consolo onde se encontravam seis miniaturas de templos, seis magníficos trabalhos em ouro. Os cinco pertencentes aos seus antepassados, mandara-os restaurar logo após ter entrado para o Senado; o sexto encerrava a sua própria imagem, e viera da oficina de Mágio do Velabro precisamente no dia anterior.

O trinco do templo encontrava-se engenhosamente escondido atrás do entablamento da primeira fila de colunas; aberto o trinco, as colunas afastavam-se como se fossem duas portas. Lá dentro, estava o seu retrato esculpido, uma máscara do tamanho do seu próprio rosto; atrás das orelhas havia fios que aguentavam a máscara sempre que ela fosse usada, fios que eram escondidos pela cabeleira.

Feita de cera, a imagem de Sila era de facto um trabalho magnífico. A pele era tão branca como a de Sila, as sobrancelhas e pestanas tinham o mesmo tom de castanho com que Sila costumava maquilhar-se em ocasiões como reuniões do Senado ou jantares em Roma. Os lábios, muito belos, estavam ligeiramente entreabertos, porque Sila respirava pela boca; e os olhos eram réplicas impressionantes dos seus próprios olhos; no entanto, um exame atento revelava que as pupilas eram de facto buracos, através dos quais o actor que usasse a máscara conseguiria ver o suficiente para poder andar normalmente. Mágio do Velabro só falhara na cabeleira: de facto, não conseguira encontrar em sítio nenhum uma cabeleira cuja cor se assemelhasse à dos cabelos de Sila. Não faltavam em Roma os fabricantes de perucas, e entre as cores mais populares contavam-se vários tons de louro e ruivo; os proprietários originais do cabelo eram bárbaros de sangue gaulês ou germano, obrigados a cortar o cabelo por negociantes de escravos ou senhores com faltas de dinheiro. A cabeleira encontrada por Mágio era sem dúvida mais ruiva que a de Sila, mas igualava-a em beleza e no estilo do penteado.

Durante longos instantes Sila fitou a sua própria imagem. Não tinha ainda recuperado da surpresa de descobrir como ele era aos olhos dos outros. Em comparação com aquela imagem, o melhor espelho de prata não valia nada. Encomendarei aos escultores de Mágio alguns bustos e uma estátua de corpo inteiro com armadura, decidiu Sila, perfeitamente deliciado com a imagem que os outros tinham de si. Por fim, os seus pensamentos encaminharam-se de novo para a perfídia de Mário, e o intenso olhar ficou como que ausente; depois, como que acordando de súbito, enganchou os dedos indicadores em dois cornos que havia no chão do templo. A cabeça de Lúcio Cornélio Sila saiu então do interior do templo, pronta a ser usada: bastaria tirar-lhe a cabeleira e despegar a máscara de uma base que era um molde de barro no rosto de Sila. Longe dos estragos que a luz e o pó poderiam causar, bem fechada no seu templo escuro e abafado, a máscara sobreviveria durante um ror de gerações.

Sila levou as mãos à cabeça, tirou a Coroa de Erva e colocou-a sobre a cabeleira da imagem. Eram ervas sujas, enlameadas, pisadas, esmagadas, as ervas que tinham sido arrancadas no campo de batalha de Nola. E os dedos que tinham feito a coroa não eram os dedos delicados e experientes de uma florista; eram os dedos do centurião primus pitus Marco Canuleio, dedos mais habituados a agarrar um bastão cheio de nós. Agora, passados sete meses, a Coroa de Erva já tinha secado; as ervas não passavam de finos fios semelhantes a cabelos e as poucas folhas que restavam estavam secas e encolhidas. Mas tu és rija, aguentas tudo, minha bela Coroa, pensou Sila enquanto a colocava com todo o cuidado sobre a cabeleira da máscara. Sim, és rija. Foste feita com ervas italianas e por um soldado romano. Resistirás. Tal como eu resistirei. E os dois juntos destruiremos Caio Mário.

Convocado por Sila, o Senado voltou a reunir no dia seguinte à tomada de posse dos novos cônsules. Havia finalmente um novo Princeps Senatus. Fora nomeado durante as cerimónias do dia de Ano Novo. Era Lúcio Valério Flaco, ”testa-de-ferro” de Mário (Flaco era então cônsul júnior) durante o difícil ano em que Mário fora cônsul pela sexta vez, tivera a primeira trombose e não conseguira impedir o furioso ataque de Saturnino. Não era uma nomeação muito popular, mas havia tantos regulamentos e precedentes e restrições que só Lúcio Valério Flaco se apresentava com condições para desempenhar tal cargo - era um patrício, chefe do seu grupo de senadores, ex-cônsul, censor e interrex mais vezes do que qualquer outro senador patrício. Ninguém acreditava que Flaco estivesse à altura de Marco Emílio Escauro. Nem o próprio Flaco.

Antes de a reunião começar, Flaco fora ter com Sila e desatara a divagar sobre os problemas da Ásia Menor; mas tão confuso era o seu discurso e tão incoerentes as suas frases que Sila logo lhe pediu que o deixasse, indicando que era tempo de consultarem os auspícios. O próprio Sila, agora também um augure, presidiu às cerimónias em conjunto com Aenobarbo Pontifex Maximus. Ora aqui está outro com muito mau parecer, pensou Sila, suspirando; sim, de facto era triste o estado a que chegara aquele Senado.

Desde que chegara a Roma, no princípio de Dezembro, Sila não gastara todo o seu tempo em visitas a amigos, em sessões de pose nas oficinas de Mágio do Velabro, em conversações ociosas, em discussões com uma esposa que o aborrecia, e em congeminações acerca de Caio Mário. Sabendo que seria eleito cônsul, passara a maior parte do seu tempo em conversações com os cavaleiros que respeitava ou que sabia serem os mais aptos, com os senadores que tinham permanecido em Roma durante a guerra (como era o caso do novo pretor urbano, Marco Júnio Bruto), e também com homens como Lúcio Decúmio, membro da Quarta Classe e zelador de uma congregação das encruzilhadas.

Sila levantou-se por fim para falar ao Senado. Desde logo procuraria demonstrar que ele, Lúcio Cornélio Sila, era um chefe que não tolerava que o contestassem.

- Princeps Senatus, veneráveis Senadores, eu não sou um orador

- começou Sila, mantendo uma postura rígida em frente da sua cadeira curul. - Não me ouvirão por isso fazer belos discursos. Ouvirão, isso sim, uma abordagem concreta dos factos, seguida da descrição das medidas que tenciono tomar para tentar solucionar os problemas. Podem debater as questões - se sentem que o devem fazer -, mas permito-me lembrar-lhes que a guerra não chegou ainda a uma conclusão satisfatória. Por isso, não pretendo gastar em Roma mais tempo do que aquele que é absolutamente necessário. Aviso-os também de que tratarei com a maior severidade todos os membros desta augusta casa que tentarem levantar-me obstáculos por motivos de vaidade ou interesse do género das que Lúcio Márcio Filipe protagonizou nos tempos que antecederam a morte de Marco Lívio Druso. Espero que me estejas a ouvir com atenção, Lúcio Márcio...

- Os meus ouvidos não podiam estar mais atentos, Lúcio Cornélio

- retorquiu Filipe, arrastando as palavras.

Um outro homem que não Sila teria preferido esmagar Filipe com uma ou duas frases bem escolhidas; Lúcio Cornélio Sila, contudo, fê-lo com os olhos. Mesmo quando se ouviram risinhos abafados na sala, aqueles olhos estranhamente pálidos percorreram as bancadas à procura não de cúmplices mas de culpados. As expectativas de uma disputa verbal morreram à nascença, os risos esbateram-se abruptamente, e todos descobriram razões válidas para se mostrarem ainda mais atentos.

- Todos nós sabemos que as finanças de Roma, tanto as públicas como as privadas, se encontram num estado deplorável. Os questores urbanos informaram-me de que o Tesouro está vazio, e os tribunos do Tesouro indicaram-me o montante da dívida de Roma a várias instituições e personalidades da Gália Italiana. Esse montante é de aproximadamente três mil talentos de prata e aumenta todos os dias por duas razões: em primeiro lugar, porque Roma continua a ver-se obrigada a comprar a essas instituições e personalidades; em segundo lugar, porque as principais dívidas continuam por pagar, porque os juros continuam por pagar, e porque nem sempre temos possibilidades de pagar os juros vencidos pelos juros não pagos. O comércio está a afundar-se. Aqueles que emprestaram dinheiro ao sector privado não vêem as suas dívidas pagas, nem os juros, nem os juros sobre os juros não pagos. E aqueles que pediram dinheiro emprestado ainda estão em piores condições.

Os olhos de Sila fixaram-se, pensativos, em Pompeu Estrabão, que estava sentado na fila da frente, do lado direito, junto de Caio Mário, olhando, aparentemente despreocupado, para o nariz; os olhos de Sila pareciam dizer para todo o Senado: ora aqui está um homem que devia ter descansado um pouco das suas actividades marciais e feito qualquer coisa para deter a alarmante crise financeira, especialmente depois de o pretor urbano ter morrido.

- Solicito por isso que esta Casa envie um senatus consultam à Assembleia de Todo o Povo propondo uma lex Cornelia prevendo o seguinte: que todos os devedores, cidadãos romanos ou não, sejam obrigados a pagar apenas o juro simples - ou seja, apenas o juro sobre o capital da dívida - à taxa acordada por ambas as partes na época em que o empréstimo foi feito. A imposição do juro composto fica proibida, tal como a imposição do juro simples a uma taxa superior à originalmente acordada.

Ouviram-se então alguns murmúrios, vindos em particular daqueles que tinham emprestado dinheiro. Mas o ar ameaçador de Sila fez com que os murmúrios não passassem disso mesmo: murmúrios. Sila era inegavelmente um Romano dos quatro costados. Tinha a força, o poder, de um Caio Mário. Mas tinha o ar de um Marco Emílio Escauro. E ninguém, nem mesmo Lúcio Cássio, pôs alguma vez a hipótese de tratar Lúcio Cornélio Sila da forma que Aulo Semprónio Asélio tinha sido tratado. Porque Sila não era homem que suscitasse nos outros especulações sobre o desejo de o ver morto. Assassinado, aliás.

- Numa guerra civil não há vencedores - disse calmamente Sila.

- A guerra que está prestes a terminar é uma guerra civil. Do meu ponto de vista pessoal, nenhum Italiano poderá alguma vez ser um Romano. Mas sou suficientemente romano para respeitar as leis recentemente aprovadas e que permitem a um certo número de italianos tornarem-se cidadãos romanos. Não haverá despojos de guerra, não haverá indemnização que chegue para pagar uma camada de prata sobre o chão nu do templo de Saturno.

- Edepol! Mas ele julgará que isto é oratória? - perguntou Filipe para quem o queria ouvir.

- Tace! - rosnou Mário.

- Os tesouros italianos estão tão vazios quanto os nossos - prosseguiu Sila, ignorando o breve diálogo entre Filipe e Mário. - Os novos cidadãos estão tão cheios de dívidas e empobrecidos como os genuínos Romanos. Em tais circunstâncias, temos de começar tudo de novo. Promulgar um cancelamento geral das dívidas é impensável. Mas não podemos perseguir os devedores até à morte. Por outras palavras, nesta equação que envolve os empréstimos, será bom e justo que as duas partes cheguem a uma conciliação. E é esse o objectivo da lex Cornelia.

- E a dívida de Roma à Gália Italiana? - perguntou Mário. - A Lex Cornelia abrange também essa questão?

- Absolutamente, Caio Mário. - retorquiu satisfeito Sila. - Todos sabemos que a Gália Italiana é muito rica. A guerra na península não atingiu essa região. Aliás, a Gália Italiana arrecadou muito dinheiro graças precisamente à guerra na península. Por isso, essa província e os seus homens de negócios podem perfeitamente dispensar o juro composto. Graças a Cneu Pompeu Estrabão, toda a zona da Gália Italiana a sul do Pó é agora integralmente romana, e os principais centros a norte do rio foram contemplados com os Direitos Latinos. Creio que é justo que a Gália Italiana seja tratada como qualquer outro grupo de Romanos e Latinos.

- Não se sentirão tão felizes por serem clientes de Pompeu Estrabão, depois de saberem que esta lex Cornelia vai ser aplicada na Gália Italiana - segredou Sulpício a Antístio com um sorriso irónico.

Mas o Senado aprovou a lei com uma explosão de votos favoráveis.

- É uma boa lei, Lúcio Cornélio - disse de súbito Marco Júnio Bruto. - Mas não vai suficientemente longe. O que acontece nos casos em que o litígio é inevitável, e em que uma ou ambas as partes não têm dinheiro suficiente para pagar a sponsio ao pretor urbano? Embora os tribunais que julgam as falências estejam fechados, há muitos casos em que o pretor urbano tem poderes para decidir sem ter de realizar uma audição. Basta que a soma em questão seja entregue ao pretor urbano, que a guardará. Mas o que nos diz a lei actual é que se a soma em questão não for depositada, o pretor urbano ficará de mãos atadas e não poderá realizar a audição necessária ao julgamento do caso nem pronunciar um veredicto. Gostaria, por isso, de sugerir a aprovação de uma segunda lex Cornelia prescidindo do depósito da sponsio em casos de dívida.

Sila riu-se e aplaudiu. - Mutio bem, praetor urbanus, esse é o género de coisas que eu quero ouvir! Soluções sensatas para problemas complicados! Concordo inteiramente com a tua sugestão! Proponho por isso a promulgação de uma lei prevendo que se prescinda da sponsio normalmente entregue ao pretor urbano!

- Bom, mas já que chegámos a esse ponto, porque não reabrir muito simplesmente os tribunais que julgam os casos de falência? perguntou Filipe, que temia toda e qualquer lei relacionada com o pagamento de dívidas; de facto, Filipe estava constantemente endividado e era uma das personalidades romanas que mais relutante se mostrava em pagar as suas dívidas.

- Por duas razões, Lúcio Márcio - disse Sila, respondendo como se pensasse que a observação de Filipe fora séria e não irónica. - A primeira razão é esta: não temos ainda o número necessário de magistrados para pôr os tribunais a funcionar e o Senado está tão pouco povoado que seria difícil encontrar juizes especiais, tendo em conta que esses juizes deveriam ter um conhecimento apropriado das leis. A segunda razão é que a falência constitui um procedimento civil, e os chamados tribunais de falências são inteiramente constituídos por juizes especiais nomeados pelo pretor urbano. E esta segunda razão remete-nos imediatamente para a primeira, não é verdade? Se não temos juizes que cheguem para os tribunais criminais, como poderemos tê-los para presidirem aos julgamentos de ofensas civis, que são mais flexíveis e discricionários?

- Não poderias ter explicado o problema de forma mais sucinta! Obrigado, Lúcio Cornélio - retorquiu Filipe.

- Nesse caso, não voltes a falar do caso, Lúcio Márcio. Entendido? Claro que houve mais discussões. Sila não esperava ver as suas recomendações aprovadas sem discussão. Mas mesmo entre os senadores que tinham emprestado muito dinheiro a oposição revelou-se moderada. Todos eles preferiam receber algum dinheiro a não receber nenhum, e Sila não defendia a abolição total do juro.

- Proponho uma votação - disse Sila, quando achou que já chegava de discussões e já se tinha perdido demasiado tempo.

A votação foi-lhe largamente favorável; o Senado preparou um senatus consultum recomendando as duas novas leis de Sila à Assembleia do Povo, uma instituição em que o cônsul poderia defender os seus pontos de vista pessoalmente, ainda que fosse um patrício.

O pretor Lúcio Licínio Murena, um homem mais famoso pela criação de enguias para banquetes do que pelas suas actividades políticas, propôs então que o Senado considerasse o regresso a Roma de todos aqueles que tinham sido mandados para o exílio pela Comissão Vária, na época em que fora presidida por Quinto Vário.

- Acabamos de conceder a cidadania a metade da Itália, e afinal os homens condenados por apoiarem esse alargamento da cidadania encontram-se privados dos seus direitos de cidadãos! - exclamou apaixonadamente Murena. - É tempo de esses homens voltarem para casa! Eles são exactamente os romanos de que precisamos!

Públio Sulpício levantou-se do banco tribunício e virou-se para a cadeira do cônsul.

- Posso falar, Lúcio Cornélio?

- Fala, Públio Sulpício.

- Eu era muito amigo de Marco Lívio Druso, embora o alargamento da cidadania à Itália nunca tivesse contado com o meu apoio. No entanto, deplorei a forma como Quinto Vário conduzia as actividades do seu tribunal, e todos nós devemos perguntar a nós mesmos se grande parte das suas vítimas não foram perseguidas unicamente porque eram homens de quem Quinto Vário não gostava. Mas é um facto que o seu tribunal foi criado legalmente e realizou os seus julgamentos de acordo com a lei. Esse tribunal funciona ainda, embora com objectivos opostos. É o único tribunal em funcionamento. Podemos portanto concluir que se trata de um corpo legalmente constituído e que, por isso, os seus veredictos são naturalmente válidos. Por tudo isto, devo informar esta Casa de que oporei o meu veto a toda e qualquer tentativa para fazer regressar do exílio todo e qualquer cidadão condenado pela Comissão Vária - disse Sulpício.

- Eu farei exactamente o mesmo - afirmou Públio Antístio.

- Senta-te, Lúcio Licínio Murena - pediu afavelmente Sila. Murena sentou-se, perfeitamente esmagado por aquelas duas intervenções, e, momentos depois, o Senado dava por encerrada a sua primeira reunião presidida por Sila.

Quando se preparava para sair, Sila viu-se detido por Pompeu Estrabão.

- Lúcio Cornélio, gostaria de ter uma breve conversa contigo. Em privado.

- À vontade - retorquiu de bom grado Sila, interessado em que a conversa não fosse breve; reparara que Mário estava à sua espera e só poderia evitá-lo se tivesse uma boa desculpa.

- Quando acabares de resolver os problemas financeiros de Roma

- disse Pompeu Estrabão com voz monocórdica embora ameaçadora

- suponho que tratarás da distribuição dos comandos da guerra.

- Sim, Cneu Pompeu, de facto é isso que conto fazer - retorquiu despreocupadamente Sila. - Suponho que a questão deveria ter sido discutida ontem, quando o Senado ratificou todos os governos das províncias, mas, como decerto percebeste pelo meu discurso de hoje, eu encaro este conflito como uma guerra civil, e por isso prefiro que o problema das chefias seja discutido numa reunião ordinária.

- Ah, sim, claro, percebo perfeitamente o teu ponto de vista disse Pompeu Estrabão, querendo dar a entender que o seu problema era não ter o mínimo conhecimento do protocolo e que não se sentia nada inferiorizado por ter feito uma pergunta tão estúpida.

- Sendo assim, qual é a tua ideia? - perguntou delicadamente Sila, reparando que Mário se afastara já, na companhia do jovem César.

- Se incluir as tropas que Públio Sulpício trouxe da Gália Italiana há dois anos e as tropas que Sexto Júlio trouxe de África, disponho actualmente de dez legiões prontas para combater - disse Pompeu Estrabão. - Como por certo te darás conta, pois imagino que te encontras em circunstâncias idênticas, a maior parte das minhas legiões há um ano que não recebe o pagamento devido por lei.

Sila pôs um sorriso triste.

- Estou a ver onde queres chegar, Cneu Pompeu!

- Bom, acontece que entretanto paguei parte dessa dívida, Lúcio Cornélio. Os soldados trouxeram de Ásculo Picentino tudo o que a cidade tinha para oferecer, desde mobiliário a moedas de bronze. Roupas. Jóias de mulher com muito pouco valor. Pechisbeque. Enfim, as coisas mais insignificantes. Mas eles ficaram contentes, tal como nas outras ocasiões em que os pude premiar com os despojos das cidades vencidas. Porcarias. Mas que chegam para contentar os soldados. Bom, portanto esta foi uma das maneiras que me permitiu atenuar a dívida. - Fez uma pausa, após o que acrescentou: - No entanto, há uma outra maneira que me afecta pessoalmente.

- Ah sim?

- Quatro dessas dez legiões são minhas. São formadas por homens das minhas terras do Norte do Piceno e do Sul da Úmbria, todos eles meus clientes. Por isso, não estão à espera que Roma lhes pague. Contentam-se com as sobras, com os restos que conseguirem reunir.

Sila estava atento.

- Continua, por favor!

- Ora bem - disse Pompeu Estrabão com um ar pensativo, coçando o queixo com a sua enorme mão direita. - Eu estou perfeitamente satisfeito com as coisas tal qual como elas estão. Embora algumas coisas tenham de mudar porque eu já não sou cônsul.

- Que coisas, Cneu Pompeu?

- Em primeiro lugar, vou precisar que me seja conferida autoridade proconsular. E depois, que o meu comando no Norte seja confirmado.

- A mão que coçara o queixo fazia agora um gesto largo. - Podes ficar com o resto, Lúcio Cornélio. Eu não o quero. Tudo o que quero é o meu cantinho do nosso querido mundo romano. Piceno e Úmbria.

- E em troca disso, não apresentarás ao Tesouro a conta relativa a quatro das tuas dez legiões, e reduzirás a conta que vais mandar, relativa às outras seis. É isso?

- Percebeste tudo, Lúcio Cornélio.

- Negócio feito, Cneu Pompeu! Eu era capaz de dar o Piceno e a Úmbria a Saturnino se isso nos poupasse o encargo de pagar a dez legiões.

- Ah, isso não, Lúcio Cornélio! A Saturnino não, embora a sua família fosse de facto do Piceno! Eu tratarei melhor do Piceno e da Úmbria do que Saturnino alguma vez teria feito.

- Disso estou eu certo, Cneu Pompeu.

Deste modo, quando o Senado discutiu a distribuição dos vários comandos para as operações finais da guerra contra os Italianos, Pompeu Estrabão obteve o que queria sem a mínima oposição do cônsul que na guerra conquistara a Coroa de Erva. Aliás, Pompeu Estrabão não deparou com a oposição de ninguém. Sila tinha movido as suas influências. Embora fosse um homem completamente diferente de Sila - desconhecia por completo a subtileza ou a sofisticação -, Pompeu Estrabão era considerado tão perigoso como um urso acossado e tão cruel como um ditador oriental - tinha aliás fortes semelhanças com ambos. As notícias do que fizera em Ásculo Picentino tinham chegado a Roma por um meio tão insólito quanto inesperado; um contubernalis de dezoito anos, de seu nome Marco Túlio Cícero, descrevera essas acções numa carta a um dos seus dois preceptores vivos, Quinto Múcio Cévola, e Cévola não se calara, mais por causa dos méritos literários do autor da epístola do que pelo monstruoso comportamento de Pompeu Estrabão.

- Brilhante! - comentava Cévola a propósito da carta. - Que poderíamos nós esperar de um carniceiro destes? - dizia ele a propósito do conteúdo da carta.

Embora Sila mantivesse o supremo comando dos teatros Central e do Sul, na prática, o comando do Sul foi parar às mãos de Metelo Pio, o Bacorinho; Caio Coscónio, em consequência de uma infecção causada por um ferimento sem importância, fora obrigado a retirar-se do serviço activo. O lugar-tenente de Metelo Pio era Mamerco Emílio Lépido Liviano, entretanto eleito questor. Como Públio Gabínio morrera e o seu irmão mais novo, Aulo, era demasiado jovem para ficar com um comando, a Lucânia foi atribuída a Cneu Papírio Carbão, considerado de um modo geral uma excelente escolha.

A meio deste debate - um debate que a certeza da vitória na guerra tornara mais agradável -, Cneu Domício Aenobarbo Pontifex Maximus morreu. Isto implicava a suspensão dos trabalhos do Senado e dos Comitia e a angariação do dinheiro necessário para a realização de um funeral de Estado, o funeral de um homem que, por alturas da sua morte, estava muito mais rico que o Tesouro de Roma. Sila conduziu as eleições para o cargo de Pontifex Maximus e para o cargo de sacerdote com amargo ressentimento, pois quando se sentara na cadeira curul de cônsul assumira grande parte da responsabilidade pelos problemas fiscais de Roma, e ficava furioso por ter de gastar rios de dinheiro por causa de alguém que tinha um mar dele. Por outro lado, antes de Aenobarbo Pontifex Maximus nunca fora necessário realizar eleições para tal cargo e, consequentemente, nunca se gastara dinheiro em tais actos; fora Aenobarbo que, na sua qualidade de tribuno da plebe, conduzira à aprovação da lex Domina de Sacerdotiis, a lei que alterara o processo de escolha dos sacerdotes e dos augures, acabando com a cooptação interna e instituindo a eleição externa. Quinto Múcio Cévola - que já era sacerdote - tornou-se o novo Pontifex Maximus, o que implicava que o cargo de sacerdote de Aenobarbo fosse para um novo membro do Colégio dos Pontífices, Quinto Cecílio Metelo Pio, o Bacorinho. Pelo menos aí fazia-se justiça, pensou Sila. Quando Metejo, o Suíno, morrera, o seu cargo fora atribuído a Caio Aurélio Cota, um belo exemplo de como uma eleição podia destruir os direitos de uma família a um cargo que sempre fora hereditário.

Terminadas as exéquias, os debates voltaram ao Senado e aos Comitia. Pompeu Estrabão propôs - e conseguiu - que os seus lugares-tenentes continuassem a ser Poplicola e Bruto Damasipo. O terceiro lugar-tenente, Cneu Octávio Rusão, anunciou que preferia servir Roma dentro de Roma, pelo que toda a gente concluiu que disputaria o consulado no final do ano. Cina e Comuto continuariam as suas operações nas terras dos Marsos, e Sérvio Sulpício Galba manter-se-ia à frente dos combates contra os Marrucinos, os Vestinos e os Pelignos.

- No geral, uma boa distribuição - disse Sila ao seu colega consular, Quinto Pompeu Rufo.

Sila fez este comentário durante um jantar em família na mansão de Pompeu Rufo, um jantar que celebrava o facto de Cornélia Sila estar de novo grávida. Esta notícia não provocara em Sila a alegria exuberante que causara em Elia e em todos os Pompeus Rufos. No entanto, não podia deixar de cumprir os seus deveres familiares. Um dos quais era conhecer finalmente a neta, a qual, de acordo com o outro avô, era o mais belo e perfeito de todos os bebés.

Sila não podia deixar de admitir que Pompeia, agora com cinco meses, era uma bela criança. Tinha cabelo ruivo escuro, encaracolado, sobrancelhas negras e pestanas negras muito longas e espessas, e enormes olhos verdes. A pele era branca e muito sedosa, a boca um belo anel vermelho, e, quando sorria, fazia covinhas nas bochechas rosadas. Embora admitisse que não percebia nada de bebés, Sila achava Pompeia uma criança apática e estúpida, uma criança que só dava sinal de si quando lhe punham qualquer coisa de ouro, bem brilhante, à frente dos olhos. Ora aqui está um mau agouro, pensou Sila, rindo para si.

Que a filha estava feliz, era mais que evidente; isso agradava a Sila, que não a amava, mas que se permitia sentir por ela algum afecto desde que Cornélia se comportasse como ele queria. E por vezes, no rosto de Cornélia, Sila encontrava reminiscências do filho, uma expressão viva, um olhar alerta; e nesses momentos lembrava-se de que o filho amara muito a irmã. Que injusta era a vida! Porque morrera tão jovem o seu filho? Porque não morrera em vez dele aquela rapariga inútil, Cornélia, saudável, radiante, feliz? Não, não era justo. Os deuses deveriam ter-lhe levado a filha e não o filho. Se houvesse justiça no mundo, o paterfamilias deveria ter a possibilidade de escolher.

Sila nunca amara os seus dois filhos germanos, os filhos que tivera quando vivera entre os Germanos, nunca pudera vê-los ou pensara neles como possíveis substitutos para o filho de Julilla, o seu tão amado filho. A razão era que esses jovens não eram romanos e a sua mãe não passava de uma bárbara. O jovem Sila deixara um vazio que era impossível preencher. Em vez dele, vivia Cornélia, a filha que ele entregaria friamente à morte se isso pudesse fazer reviver o jovem Sila.

- Estou tão satisfeita! Não há dúvida que Cornélia é muito feliz.

- comentou Élia enquanto se encaminhavam para casa, sem qualquer escolta.

Élia não poderia ter feito um comentário mais infeliz, pois Sila continuava obcecado com a injustiça que era ter perdido um filho e ficado com uma rapariga inútil.

Mal ouviu a observação da mulher, parou e, tomado de uma maldade sem nome, atirou-lhe:

- A partir deste momento considera-te uma mulher divorciada! Élia parou também, estupefacta.

- Lúcio Cornélio! Por favor, reflecte um pouco! - exclamou.

- Procura outra casa. Na minha não podes estar. - E Sila avançou na direcção do Fórum, deixando Élia na Clivus Victoriae completamente sozinha.

Quando recuperou do choque o suficiente para poder pensar, Élia tomou a direcção da casa de Quinto Pompeu Rufo.

- Por favor, queria ver a minha filha - disse ela ao escravo que estava à porta, espantado por a ver de volta.

Momentos antes, abrira a porta a uma mulher encantadora e radiante de felicidade - agora, abria a porta a uma mulher que parecia estar a um passo da morte, tão sombrio e envelhecido estava o seu rosto.

Quando o escravo se propôs levá-la ao seu amo, Élia pediu que a levasse antes à sala de estar de Cornélia Sila, pois queria falar a sós com a filha.

- Que se passa, mamã? - perguntou despreocupadamente Cornélia quando a viu entrar. Porém, ao ver o rosto transtornado de Élia, Cornélia voltou a perguntar-lhe num tom completamente diferente: - O que é que se passa, mamã? Por favor, diz-me o que tens!

- O teu pai divorciou-se - retorquiu tristemente Élia. - Disse-me que eu estava a mais em casa dele. Por isso não me atrevi a ir para casa. Ele estava a falar a sério.

- Mamã! Porquê? Quando? Onde!

- Agora mesmo, na rua.

Cornélia sentou-se, subitamente abatida, ao lado da madrasta, a única mãe que realmente conhecera; da verdadeira mãe, tinha apenas uma vaga memória, uma presença fugaz, triste, chorosa, alguém que dava mais atenção à taça de vinho do que aos filhos. Claro que Cornélia vivera quase dois anos com a avó Márcia, mas a avó Márcia nunca quisera ser de novo uma mãe e, por isso, sempre a tratara rudemente, e não com amor. Quanto a Élia, tanto Cornélia Sila como o irmão ficaram desde logo encantados com ela e acabaram por amá-la como se ama uma mãe.

Pegando na mão fria de Élia, Cornélia Sila tentou penetrar no vórtice que era a personalidade do pai, naquelas assustadoras e surpreendentes mudanças de disposição, na violência de que ele era capaz, só comparável à violência com que a lava saía de um vulcão, naquela frieza com que reduzia a cinzas todas as esperanças e entusiasmos dos outros.

- Ele é um monstro! - comentou Cornélia entre dentes.

- Não - retorquiu Élia, exausta. - Ele é apenas um homem que nunca foi feliz. Ele não sabe quem é, nem o que quer. Ou talvez saiba, mas não se atreve a ser quem é e a fazer o que realmente quer. Eu sempre soube que ele acabaria por me deixar. Mas pensava que me daria um aviso qualquer... uma mudança no seu comportamento... enfim, um sinal! Sabes, no fundo, ele já me tinha deixado há muito tempo. Mas com a passagem dos anos, comecei a nutrir esperanças de que... Ora, não interessa. Vendo bem as coisas, acabei por ficar com ele mais tempo do que esperava.

- Chora, mamã! Se chorares, sentes-te melhor. Mas Élia, pelo contrário, riu-se. Um riso triste.

- Não, não vou chorar. Chorei demasiado quando o nosso rapaz morreu. Mas não foi só ele que morreu nesse momento. Sila também morreu. Morreu com o filho.

- Ele não te vai dar nada de nada, mamã. Eu conheço-o! É um sovina. Não te dará nada de nada.

- Sim, eu sei.

- Mas tu tens um dote, não tens?

- Dei-lho há já muito tempo.

Cornélia Sila ergueu-se com uma expressão de extrema dignidade.

- Virás viver comigo, mamã. Recuso-me a abandonar-te. Quinto Pompeu concordará que é no mínimo justo que venhas viver comigo.

- Não, Cornélia. Duas mulheres numa casa são mulheres a mais, e tu já tens uma segunda mulher em tua casa, a tua sogra. Uma mulher muito boa. Adora-te. Mas não gostará de ver uma terceira mulher

nesta casa.

- Mas que podes fazer então? - perguntou a jovem, desconcertada.

- Posso ficar aqui esta noite, nesta sala, e reflectir sobre o que hei-de fazer amanhã - retorquiu calmamente Élia. - Por enquanto não digas nada ao teu sogro, peço-te. A situação não é nada fácil para ele. Se tens que dizer a alguém, diz ao teu marido. Tenho de escrever uma mensagem a Lúcio Cornélio, dizendo-lhe onde estou. Podes pedir a alguém que leve já a mensagem?

- Claro, mamã. - Se fosse filha de outro homem, Cornélia Sila talvez tivesse acrescentado que o pai era capaz de mudar de ideias.

Ao alvorecer, receberam uma resposta de Sila. Élia abriu-a com mãos serenas.

- Que diz ele? - perguntou Cornélia Sila, tensa, expectante.

- ”Divorcio-me de ti porque és estéril”.

- Que tremenda injustiça, mamã! Ele casou contigo precisamente por seres estéril!

- Ele é muito inteligente, Cornélia - disse Élia, traindo alguma admiração. - Como as razões apresentadas para o divórcio são estas, não disponho de qualquer recurso perante a lei. Não posso exigir o meu dote, não posso pedir uma pensão. Estive casada com ele doze anos. Quando casei com ele ainda estava em idade de ter filhos. Mas não tive nenhum filho do meu primeiro marido, nem dele. Nenhum tribunal poderá apoiar as minhas pretensões.

- Nesse caso ficas a viver comigo - disse Cornélia Sila, absolutamente determinada. - Esta noite contei ao meu marido o sucedido. Ele acha que tudo correrá bem se ficares a viver connosco. Se não fosses uma pessoa tão boa, tão maravilhosa, talvez não resultasse. Mas tudo vai correr bem. Eu sei que vai!

- Ah, o teu pobre marido! - disse Élia, sorrindo. - Que poderia ele dizer senão isso? E o pai dele não dirá outra coisa quando souber. São ambos homens bons, homens generosos. Mas eu sei o que vou fazer, Cornélia, e sei que é o melhor para todos.

- Mamã] Não...

Apesar de todo o sofrimento por que estava a passar, Élia conseguiu rir-se.

- Não, claro que eu nunca faria uma coisa dessas, Cornélia! Viverias para sempre atormentada por um tal pesadelo! E eu desejo que tu tenhas uma vida maravilhosa. Desejo-o tanto, minha querida filha! Élia pôs-se muito direita. Estava decidida a fazer o que tinha em mente. - Vou para casa da tua avó Márcia, em Cumas.

- Para casa da avó? Por favor, mamã, não vás para casa desse estafermo!

- Não digas isso, Cornélia! Eu estive três meses com ela no Verão passado e devo dizer-te que foi uma experiência muito agradável. Aliás, ela tem-me escrito muito, em grande parte porque está muito sozinha, Cornélia. Tem medo de que a abandonem por completo. Já fez sessenta e sete anos. É terrível não termos ninguém junto de nós, a não ser escravos, quando morremos. Sexto Júlio pouco a visitava. Mas quando ele morreu, Márcia sofreu muito. Quanto a Caio Júlio, creio que há quatro ou cinco anos que não vai vê-la. Por outro lado, ela não se dá bem com Aurélia nem com Cláudia. Nem com os netos.

- Era isso mesmo que eu queria dizer, mamã. Com quem é que ela se dá bem? É uma pessoa com tão mau feitio, nunca está satisfeita com nada. Eu conheço-a bem! Ela esteve connosco até tu casares com o pai.

- A verdade é que ela se dá muito bem comigo. E eu com ela. Sempre foi assim, aliás. Tornámo-nos amigas muito antes de eu ter casado com o teu pai. Foi ela quem recomendou ao teu pai que me escolhesse para sua esposa. Deve-me por isso um favor. Se for viver com ela, serei desejada, serei útil, e não me sentirei em obrigação para com ela. Logo que tiver vencido o choque deste divórcio, creio que me sentirei bem a viver com ela - retorquiu firmemente Élia.

Esta solução perfeita e absolutamente inesperada foi recebida com genuína gratidão pelo cônsul Pompeu Rufo e pela sua família. Embora nenhum membro da família fosse capaz de negar a Élia um lar permanente, a verdade é que se sentiam muito mais satisfeitos se a presença da ex-mulher de Sila fosse apenas temporária.

- Não compreendo Lúcio Cornélio! - disse o cônsul Pompeu Rufo a Élia um dia depois. - Mal o encontrei tentei falar-lhe do divórcio, nem que fosse para lhe explicar por que razão te dei abrigo. Mas ele virou-se para mim com uma cara tal que eu nem consegui abrir boca! O olhar que ele me deitou! Verdadeiramente impressionante! E eu que pensava que o conhecia! O problema é que tenho de continuar a gostar dele porque o êxito do nosso consulado depende do nosso bom relacionamento. Prometemos aos eleitores que trabalharíamos os dois em total harmonia, e não posso faltar ao prometido.

- Claro que não vais faltar ao que prometeste - disse Élia afectuosamente. - Quinto Pompeu, nunca foi minha intenção virar-te contra Lúcio Cornélio! O que acontece entre marido e mulher é algo de muito privado, e a quem está de fora deve parecer muito estranho que um casamento acabe assim sem mais nem menos, sem nenhum motivo aparente. Mas há sempre razões, razões normalmente correctas. Sabe-se lá! Talvez Lúcio Cornélio deseje realmente ser de novo pai. O seu único filho morreu, não tem nenhum herdeiro. Por outro lado, Lúcio Cornélio não tem muito dinheiro: isso explica que não me tenha devolvido o dote. Mas eu ficarei bem. Entretanto queria que mandasses esta carta para Cumas. Esperaremos por uma resposta de Márcia e logo veremos o que se há-de fazer.

Quinto Pompeu pôs-se a fitar o chão, o rosto mais vermelho que o cabelo.

- Lúcio Cornélio mandou as tuas coisas, Élia. Lamento imenso.

- Ora, isso é uma boa notícia! - retorquiu Élia, mantendo-se calma.

- Já me tinha passado pela cabeça que ele era capaz de deitá-las fora.

- Roma não fala de outra coisa. Élia olhou-o nos olhos.

- De que coisa?

- Desde divórcio. Da crueldade dele. Toda a gente ficou chocada com a notícia. - Quinto Pompeu Rufo aclarou a voz. - Acontece que tu és uma das mulheres mais respeitadas e apreciadas em Roma. Toda a gente fala do caso, incluindo o facto de teres ficado na miséria. Esta manhã, no Fórum, Lúcio Cornélio foi vaiado e assobiado.

- Pobre Lúcio Cornélio! - disse ela, tristemente. - Deve ter ficado furioso, porque odeia esse tipo de manifestações.

- Se ficou furioso, não o mostrou. Continuou a caminhar como se nada tivesse acontecido. - Quinto Pompeu suspirou..- Porquê, Élia? Porquê? - abanou a cabeça. - Ao fim de tantos anos! Não faz sentido... Se ele queria outro filho, porque não se divorciou depois de o jovem Sila ter morrido? Já lá vão três anos. Porque não o fez então?

A resposta à pergunta de Pompeu Rufo, soube-a Élia antes de receber a carta de Márcia que a convidava a ir viver para a sua casa de Cumas.

Quem trouxe a notícia foi o marido de Cornélia. Tão ofegante vinha que quase não conseguia falar.

- Que se passa? - perguntou Élia, já que a filha nada dizia. -Lúcio... Lúcio Cornélio! Lúcio Cornélio casou-se! Com... a viúva de Escauro!

Aparentemente, Cornélia Sila não ficou surpreendida.

- Nesse caso, ele já poderá devolver-te o teu dote, mamã - disse ela, furiosa. - A viúva de Escauro é tão rica como Creso.

O jovem Pompeu Rufo aceitou uma taça de água, bebeu-a de um gole, e começou a falar de um modo mais coerente.

- Foi ao fim da manhã. Só Quinto Metelo Pio e Mamerco Lépido Liviano sabiam do casamento. Tinham mesmo que saber! Quinto Metelo Pio é primo direito dela, e Mamerco Lépido Liviano é o executor do testamento de Marco Emílio Escauro.

- Como é que ela se chama? Não consigo lembrar-me do nome dela! - disse Élia, assombrada com tudo aquilo.

- Cecília Metela Dalmática. Mas toda a gente a trata por Dalmática. Diz-se que há uns anos atrás pouco tempo depois de Saturnino ter morrido, Dalmática teve uma paixão por Lúcio Cornélio, uma paixão que a fez cair a ela e ao marido no maior dos ridículos. Ao que parece, Lúcio Cornélio não lhe ligava nenhuma. E ela perseguia-o. Até que o marido a encerrou em casa. Parece que desde então nunca mais ninguém a viu.

- Sim, sim, lembro-me perfeitamente do caso - disse Élia. - Só não me lembrava do nome. Não que Lúcio Cornélio me tenha alguma vez falado do caso. Mas enquanto Marco Emílio Escauro não encerrou a mulher, Lúcio Cornélio, sempre que estava em casa, não me deixava sair. Teve todo o cuidado em mostrar a Marco Emílio Escauro que não havia da parte dele qualquer comportamento menos digno. - Élia suspirou. - Não que isso adiantassse alguma coisa. Marco Emílio Escauro não deixou de mover as suas influências para que Lúcio Cornélio perdesse as eleições pretorianas.

- Ela não vai ser feliz com o meu pai - disse Cornélia Sila, com uma expressão sombria. - Ele nunca fez nenhuma mulher feliz.

- Não digas isso, Cornélia!

- Por favor, mamã, eu já não sou uma criança! Tenho um filho! E conheço-o melhor do que tu porque não o amo como tu o amas! Eu sou sangue do seu sangue, e isso por vezes faz-me tanto medo! Tanto medo! O meu pai é um monstro. E as mulheres excitam nele o que ele tem de pior. A minha verdadeira mãe matou-se, e que ninguém me venha dizer que a culpa não foi de meu pai!

- Nunca virás a saber, Cornélia. Por isso será melhor que não penses nisso - disse o jovem Quinto Pompeu com um ar grave.

Élia ficou de repente com um ar surpreendido.

- Que estranho! - exclamou. - Se me tivessem perguntado com quem é que ele iria casar, a minha resposta teria sido apenas uma: com Aurélia!

Cornélia Sila aquiesceu.

- Sim, eu teria dito o mesmo. Foram sempre muito chegados. Tão chegados como duas harpias num rochedo. Só as penas diferem. O pássaro é o mesmo. - Encolheu os ombros e acrescentou: - Pássaros? Não, eles não são pássaros, são monstros!

- Creio que nunca vi Cecília Metela Dalmática - disse Élia, ansiosa por evitar que Cornélia Sila fizesse afirmações perigosas. - Nem mesmo quando ela perseguia o meu marido.

- Já não é teu marido, mamã! Agora é dela.

- Quase ninguém a conhece - disse o jovem Pompeu Rufo, também ansioso por acalmar Cornélia Sila. - Marco Escauro manteve-a em total isolamento, depois desse problema. Ela tem dois filhos, uma rapariga e um rapaz, mas também ninguém os conhece. E depois da morte de Marco Escauro, ela ainda se tornou mais invisível. É por isso que a cidade inteira não fala de outra coisa. - Ergueu a taça, pois queria mais água. - Hoje foi o primeiro dia depois do luto. E esse é outro motivo para as pessoas falarem.

- Ele deve amá-la muito - disse Élia.

- Ora! - retorquiu Cornélia Sila. - Ele não ama ninguém.

Depois do acesso de fúria que o levou a deixar Élia sozinha na Clivus Victoriae, Sila cedeu à sua habitual tendência para a depressão nas horas que se seguiram. Na manhã seguinte, em parte com a intenção de magoar ainda mais aquela mulher demasiado boa e demasiado entediante, deslocou-se a casa de Metelo Pio. O seu interesse pela viúva de Escauro era tão antigo e desapaixonado como a sua disposição naquele momento; no fundo o que pretendia era fazer sofrer Élia. O divórcio não lhe bastava. Não lhe chegava a dor que causara: queria que a faca fosse mais fundo. E a melhor maneira de realizar esse objectivo não seria precisamente casar-se imediatamente com outra mulher, dando a entender que essa mulher fora a razão do divórcio? Estas mulheres, pensava Sila enquanto se encaminhava para a casa de Metelo Pio, deram comigo em louco: desde a minha juventude, desde sempre. Desde que deixei de me oferecer aos homens porque pensei, estupidamente, que as mulheres eram vítimas mais fáceis. Afinal eu é que fui a vítima. A vítima delas. Matei Nicópole e Clitumna. E, graças a todos os deuses, não foi preciso matar Julilla: ela suicidou-se. Mas é demasiado perigoso matar Élia. E o divórcio não me chega. Há anos que ela esperava pelo divórcio. É pouco, o divórcio.

Sila encontrou o Bacorinho profundamente envolvido numa conversa com o seu novo questor, Mamerco Emílio Lépido Liviano. Que sorte encontrar os dois homens juntos! Mas não continuava Sila a ser o favorito da deusa Fortuna?

Era perfeitamente compreensível que Mamerco e o Bacorinho estivessem fechados no escritório do segundo; no entanto, a disposição de Sila era de tal modo negativa, e a sua expressão tão sombria, que os dois homens, mal o viram, se puseram a saudá-lo com a agitação nervosa de um casal surpreendido em flagrante acto amoroso.

Com o respeito que deviam a um superior, Mamerco e o Bacorinho só se sentaram depois de Sila se ter sentado. Depois puseram-se a olhar para ele sem saberem o que dizer.

- O gato comeu-lhes as línguas? - perguntou Sila.

Metelo Pio pareceu acordar naquele momento. Sobressaltado, retorquiu:

- Não, Lúcio Cornélio! Não! Desculpa, mas-mas-mas-mas os meus pensamentos estavam muito longe daqui.

- Os teus também, Mamerco? - perguntou Sila.

Mas Mamerco, lentamente, tranquilamente, encontrou um sorriso nos recessos da sua coragem.

- Sim, de facto os meus pensamentos também estavam muito longe.

- Nesse caso, vou propor-lhes uma direcção completamente diferente para os vossos pensamentos - retorquiu Sila com o mais terrível dos seus sorrisos.

Mamerco e Metelo Pio nada disseram. Limitaram-se a esperar pelo que Sila tinha a dizer-lhes.

- Quero casar-me com Cecília Metela Dalmática.

- Júpiter! - exclamou Metelo Pio, quase que chiando.

- Aí está uma reacção pouco original, Bacorinho - disse Sila. Levantou-se, foi até à porta do escritório de Metelo Pio e olhou depois para trás, com uma das sobrancelhas erguida. - Quero casar-me com ela amanhã - prosseguiu. - Peço-lhes que pensem no caso e que me dêem a vossa resposta à hora do jantar. Como quero ter um filho, divorciei-me da minha mulher: ela é estéril. Mas não quero substituir Élia por uma rapariga nova e estúpida. Sou demasiado velho para brincadeiras de adolescência. Quero uma mulher madura, uma mulher que já provou a sua fertilidade, pois deu à luz duas crianças, incluindo um rapaz. Pensei em Dalmática porque julgo que ela tem um fraco por mim. Ou pelo menos tinha há uns anos atrás.

Dito isto, Sila abriu a porta do escritório e desapareceu, deixando Metelo Pio e Mamerco a olhar um para o outro, estupefactos.

- Júpiter! - exclamou de novo Metelo Pio, agora num tom de voz mais esbatido.

- Uma verdadeira surpresa - comentou Mamerco, que estava muito menos surpreendido do que o Bacorinho porque conhecia mal Sila.

Metelo Pio coçava a cabeça, abanava-a.

- Mas porquê ela? Há anos que não me lembrava de Dalmática! Aliás, só me lembrei dela quando Marco Emílio morreu. Ela é minha prima direita, mas há um ror de anos que não a vejo, porque, depois daquela espantosa paixão por Lúcio Cornélio, Marco Emílio fechou-a em casa. E estava mais segura em casa do que nas celas das Lautúmias.

- Olhou para Mamerco. - Como executor do testamento, deves tê-la visto nos últimos meses.

- Vejamos a tua primeira questão: porquê ela? Suponho que por causa do dinheiro, do muito dinheiro que ela tem - retorquiu Mamerco.

- Quanto à segunda questão, sim, de facto vi-a várias vezes desde que Marco Emílio morreu, embora não tantas como esperava. Eu estava já na guerra quando ele morreu, mas vi-a nessa altura porque tive de regressar a Roma para tratar dos assuntos de Marco Emílio. E se queres uma opinião sincera e honesta, devo dizer-te que não senti nela qualquer tristeza pela morte do velho. Parecia preocupada com as crianças, isso sim. No entanto, achei a reacção dela perfeitamente razoável. Qual era a diferença de idade entre eles? Quarenta anos?

- Sim, creio que sim. Lembro-me de que lamentei a sorte dela quando ela se casou. Estava previsto que Dalmática casasse com o filho de Marco Emílio, mas ele suicidou-se. Foi então que o meu pai decidiu dá-la em casamento a Marco Emílio.

- O que me espanta nela é a timidez - disse Mamerco. - Timidez ou uma absoluta falta de confiança em si mesma. Tem medo de sair de casa, apesar de eu lhe ter dito que podia sair de casa à vontade. Não tem nenhuma amiga.

- Como poderia ter amigas? Marco Emílio deu-lhe uma prisão em vez de casa - retorquiu Metelo Pio.

- Depois da morte de Marco Emílio - disse Mamerco com um ar pensativo - Dalmática ficou evidentemente sozinha naquela casa; vivem com ela apenas os filhos e um grupo de escravos, muito pequeno tendo em conta o tamanho da casa. Ficava muito inquieta sempre que eu lhe sugeria uma companhia, uma tia ou uma prima por exemplo. Nem queria ouvir falar disso. Vi-me obrigado a contratar um casal romano, gente de boas famílias e de boa reputação, para viver com ela. Dalmática disse-me então que compreendia a necessidade de observar as convenções, tanto mais que houvera aquele episódio na sua vida, mas que preferia os estranhos à família. Não é um caso patético, Quinto Cecílio? Que idade tinha ela quando se deu aquele caso? Dezanove? E estava casada com um homem de sessenta!

O Bacorinho encolheu os ombros.

- Com o casamento, é tudo uma questão de sorte, Mamerco. Repara no meu caso, por exemplo.. Casei com a filha mais nova de Lúcio Crasso Orador, cuja filha mais velha tem já três filhos. Ao passo que a minha Licínia ainda não conseguiu engravidar, e não é que não tenhamos tentado, bem pelo contrário! Provavelmente adoptaremos um sobrinho.

Mamerco, com uma expressão subitamente inspirada, de sobrolho franzido, fitou Metelo Pio.

- Porque não segues o exemplo de Lúcio Cornélio? Divorcia-te de Licínia Menor, invocando esterilidade, e casa com Dalmática.

- Não, Mamerco, não podia fazer uma coisa dessas. Gosto muito da minha mulher - disse o Bacorinho com alguma rispidez.

- Nesse caso, temos de pensar seriamente na oferta de Lúcio Cornélio, não é verdade?

- Sem a mínima dúvida. Sila não é um homem muito rico, mas tem algo melhor do que a riqueza. É um grande homem. A minha prima Dalmática foi casada com um grande homem, de modo que está já habituada aos grandes homens. Lúcio Cornélio há-de ir longe, Mamerco. Não sei, aliás, por que razão estou tão convencido disso, tão certo de que ele irá muito, muito longe, porque, sinceramente, não vejo como é que ele o conseguirá. Mas sei que irá longe. Ele não é um Mário. Nem um Escauro. Mas acredito que eclipsará os dois.

Mamerco levantou-se.

- Então melhor é perguntarmos já a Dalmática o que é que ela pensa. Só que não será possível celebrar o casamento amanhã.

- Porque não? O período de luto já acabou, não?

- Curiosamente, acaba hoje. Se se casar amanhã, levantará forçosamente suspeitas. Dentro de algumas semanas seria preferível.

- Não. Tem de ser amanhã - defendeu com firmeza Metelo Pio.

- Tu não conheces Lúcio Cornélio. Não há homem que eu estime e respeite mais. Mas não se pode contrariá-lo, Mamerco! Se estamos de acordo com o casamento, então terá de ser amanhã.

- Lembrei-me agora de uma coisa, Quinto Cecílio. Da última vez que vi Dalmática, deve ter sido há dois ou três mercados, ela perguntou-me por Lúcio Cornélio. O que é curioso é que ela nunca me perguntou por ninguém, nem mesmo por ti, que és o parente mais próximo.

- Bom, ela apaixonou-se por ele quando tinha dezanove anos. Pode ser que continue apaixonada. As mulheres são seres muito especiais, são capazes desse tipo de paixões - disse o Bacorinho, com ar de quem tinha uma grande experiência em questões amorosas.

Quando chegaram a casa de Marco Emílio Escauro e puseram a questão a Cecília Metela Dalmática, Metelo Pio percebeu o que Mamerco queria dizer quando a descrevia como uma pessoa tímida. Um verdadeiro bicho do mato, foi o veredicto de Metelo Pio. Um bicho muito atraente e meigo, porém. Não lhe deu para pensar como se teria sentido, ele, Metelo Pio, o Bacorinho, se, aos dezassete anos, o tivessem obrigado a casar com uma mulher com quase sessenta; as mulheres faziam o que lhes mandavam, e um sexagenário tinha mais a oferecer, a todos os níveis, do que qualquer mulher com mais de quarenta e cinco anos. Metelo Pio tratou de abordar imediatamente o assunto, pois fora decidido que ele - o parente mais próximo - era o único homem da família que podia assumir o estatuto de paterfamilias relativamente a Dalmática.

- Dalmática, foi-nos comunicada hoje uma proposta de casamento. Aconselhamos-te vivamente a aceitar, embora achemos que tens o direito de recusar, se assim o desejares - disse Metelo Pio, num tom extremamente formal. - És a viúva do Princeps Senatus e a mãe dos seus filhos. No entanto, cremos que, no teu caso, não poderia haver melhor proposta do que esta que acaba de ser feita.

- Quem se propõe casar comigo, Quinto Cecílio? - perguntou Dalmática, de voz muito sumida.

- O cônsul Lúcio Cornélio Sila.

Uma expressão de incrédula alegria inundou-lhe o rosto; o cinzento dos olhos de repente brilhou; duas mãos desajeitadas agitaram-se, quase se tocando, quase aplaudindo.

- Aceito! - exclamou, afogueada.

Os dois homens pestanejaram, surpreendidos. Estavam à espera de que a resposta dela tardasse mais, de que fosse preciso usar de argumentos, de ardis para a convencer.

- Ele quer casar amanhã - disse Mamerco.

- Até pode ser hoje, se ele o desejar!

Que poderiam eles dizer? Que dizer, de facto, naquelas circunstâncias?

Mamerco tentou.

- Tu és muito rica, Dalmática. Não tivemos qualquer discussão com Lúcio Cornélio acerca da questão do dote ou de quaisquer outros arranjos matrimoniais. Creio que para ele essas questões são secundárias, na medida em que sabe que tu és rica e não quer saber de mais nada. O que ele nos disse foi que se tinha divorciado da mulher por esterilidade e não se queria casar com uma rapariga nova, mas sim com uma mulher madura e que ainda lhe possa dar filhos; e de preferência uma mulher que já tenha tido filhos, uma mulher cuja fertilidade esteja comprovada.

Esta laboriosa explicação ensombreceu um pouco o rosto de Dalmática. Nada disse. Limitou-se a aquiescer, como que para dizer que tinha compreendido.

Mamerco atacou então as questões financeiras.

- Como é evidente, não poderás continuar a viver nesta casa. Ela passa a ser propriedade do teu filho e terá de permanecer sob minha custódia. Sugiro que peças ao casal que veio viver contigo que permaneça aqui até o teu filho ter idade para assumir as suas responsabilidades. Os escravos que não quiseres levar para a tua nova casa poderão ficar aqui. No entanto, a casa de Lúcio Cornélio, em comparação com esta, é muito pequena. Creio que a acharás um claustris.

- Já acho esta um claustris - disse Dalmática, com um lampejo talvez de ironia.

- Uma nova vida deverá significar uma nova casa - disse Metelo Pio, já que Mamerco parecia estar embatucado. - Se Lúcio Cornélio estiver de acordo, a nova casa poderá ter o tamanho desta e situar-se num local adequado a pessoas da tua condição. O teu dote é constituído pelo dinheiro que te deixou o teu pai, o meu tio Dalmático. Possuis também uma avultada soma, deixada por Marco Emílio, que não poderá ser integrada no teu dote. No entanto, para tua segurança, eu e Mamerco faremos com que essa soma continue a ser tua. Não creio que seja boa ideia permitir que Lúcio Cornélio tenha acesso ao teu dinheiro.

- Como queiram - disse Dalmática.

- Nesse caso, e desde que Lúcio Cornélio concorde com estes termos, o casamento poderá realizar-se amanhã, aqui, à sexta hora do dia. Até encontrarmos uma nova casa, viverás na casa de Lúcio Cornélio

- disse Mamerco.

Como Lúcio Cornélio não manifestou a mínima oposição às condições propostas, o casamento realizou-se sem demora, na hora prevista. Metelo Pio foi o oficiante, Mamerco a testemunha. Terminada a breve cerimónia - que nada tivera a ver com um confarreatio -, o noivo e a noiva deslocaram-se para casa de Sila, na companhia dos dois filhos de Dalmática, de Metelo Pio, de Mamerco e dos três escravos que a noiva quisera levar.

Quando Sila pegou nela ao colo para entrarem em casa, Dalmática quase desfalecia de emoção. Mamerco e Metelo Pio entraram para beber uma taça de vinho, mas depressa se foram embora. Tão depressa que nem voltaram a ver o novo mordomo, Crisógono, ocupado ainda a mostrar às crianças e ao seu preceptor as divisões da casa que lhes estavam destinadas. Quanto aos outros dois escravos, sentindo-se perfeitamente perdidos naquela nova casa, continuavam quietos e parados a um canto do jardim do peristilo.

Os noivos estavam finalmente sozinhos no átrio.

- Ora muito bem, mulher! Casaste com outro velho. Vais ser viúva duas vezes - disse Sila sem a mínima cerimónia.

Dalmática ficou tão chocada com aquela observação que não sabia o que dizer.

- Mas tu não és velho Lúcio Cornélio! - replicou por fim.

- Cinquenta e dois anos. Comparado contigo, que estás quase nos trinta, não posso considerar-me um jovem!

Sila desatou a rir.

- Só há um sítio onde se pode provar isso. - disse ele, pegando de novo ao colo nela. - Hoje não comes, mulher! Vamos já para a cama!

- Mas... e as crianças? Esta casa é nova para elas...!

- Comprei um novo mordomo ontem, depois de me ter divorciado de Élia. É um tipo muito eficiente. Chama-se Crisógono. Um grego, um falso da pior espécie. Todo ele é boas maneiras. Mas são os melhores mordomos a partir do momento em que compreendem que o amo percebe todos os seus truques e que é muito capaz de os crucificar. Ele vai tratar o melhor possível dos teus filhos. Como precisa de ficar bem visto...

O tipo de ligação que Dalmática tivera com Escauro tornou-se mais óbvio quando Sila deitou a sua nova mulher na cama. De facto, Dalmática levantou-se imediatamente, correu para o baú que os seus escravos tinham trazido logo após o casamento, abriu-o e tirou uma camisa de dormir de linho de um branco imaculado. Sila observava a cena fascinado. Dalmática virou-lhe as costas, desapertou o bonito vestido de lã creme mas segurou-o firmemente com os braços, conseguindo assim enfiar a camisa de dormir e deixá-la cair antes de despir o vestido; num instante tinha um traje de dia e, no instante seguinte, estava vestida para a noite. E Sila não lhe vira um centímetro de pele!

- Tira essa porcaria - disse-lhe Sila, mesmo atrás dela. Dalmática virou-se num ápice e sentiu-se desfalecer. Sila estava

nu, a pele mais branca que neve, os pelos encaracolados do peito e o púbis da mesma cor que a cabeleira, um homem sem barriga, sem a pele enrugada dos velhos, um homem compacto e musculado.

Para se excitar, Escauro tinha de lhe mexer durante largos minutos. Só depois de muito lhe beliscar os mamilos e de lhe acariciar o sexo é que Escauro conseguia ter uma erecção. Aquele pénis era o único que Dalmática conhecera, embora nunca o tivesse visto. De facto, Escauro era um homem muito antiquado, muito arreigado a preconceitos: por isso a sua actividade sexual era tão pudica como ele achava que a sua mulher deveria ser. Não poderia saber, porém, a esposa, se, com mulheres menos pudicas, a sua actividade sexual seria diferente.

E no entanto ali estava Sila, tão nobre e aristocrático como o seu falecido marido, exigindo o seu corpo sem vergonha, o pénis tão grande e erecto como o da estátua de bronze de Príapo que havia no escritório de Escauro. Dalmática não desconhecia a anatomia sexual do homem e da mulher, porque ambas estavam representadas em múltiplos objectos existentes em todas as casas: estátuas, lamparinas, pedestais de mesas, mesmo nalgumas pinturas. Nada do que vira lhe parecera relacionado, mesmo que remotamente, com a vida conjugal. Esses objectos faziam parte do mobiliário, nada mais. A vida conjugal fora para ela um marido cujo corpo nunca vira - um marido que, apesar de lhe ter feito dois filhos, e tanto quanto sabia, era capaz de ter um corpo muito diferente do de Príapo ou das esculturas que decoravam os mais diversos objectos.

Quando conhecera Sila naquele já tão longínquo jantar, ficara fascinada. Nunca vira um homem tão belo, tão forte e no entanto tão... tão... feminil? O que então sentira por ele não era, conscientemente, um desejo carnal, porque Dalmática era uma mulher casada com uma experiência sexual que a levara a concluir que o sexo era a face menos importante e menos atraente do amor. A sua paixão por Sila fora literalmente um encantamento de adolescente - algo feito de ar e vento, e não de fogo e lava. Escondida atrás de pilares e toldos, deleitara-se na sua contemplação, sonhara com os seus beijos e não com o seu sexo, suspirara por ele da forma mais romântica que seria possível imaginar. O que Dalmática queria era conquistá-lo, dominá-lo, queria vê-lo de joelhos a seus pés, chorando porque a amava.

A intervenção do marido alterara por completo a vida de Dalmática. Mas não fizera esmorecer o amor que tinha por Cornélio Sila.

- Tornaste-te alvo do ridículo aos olhos de toda a gente, Cecília Metela Dalmática - dissera-lhe Escauro, calma e friamente. - Mas o pior de tudo é que também eu saio ridicularizado disto tudo. Toda a cidade ri de mim, do Primeiro Homem de Roma. E isso tem de acabar. Iludiste-te, suspiraste, ficaste estupidamente apaixonada por um homem que não reparou em ti nem te encorajou, por um homem que não quer as tuas atenções, e que eu fui obrigado a punir a fim de defender a minha reputação. Se não tivesses provocado essa situação embaraçosa para ele e para mim, esse homem seria agora pretor - e merecia sê-lo. Estragaste portanto as vidas de dois homens: a do teu marido, e a de um homem cuja conduta é impecável, irrepreensível. Já o meu comportamento, esse sim, é digno de censura, porque permiti que esta história humilhante durasse demasiado tempo. Mas julgava não precisar de intervir, que tu entenderias, sem a minha intervenção, que o teu comportamento estava errado, provando dessa forma a Roma que eras uma esposa digna do Princeps Senatus. Deu-se precisamente o contrário: com o tempo, revelaste-te muito simplesmente uma idiota, uma mulher sem qualquer mérito. E só há uma maneira de lidar com uma mulher assim. Não voltarás a sair desta casa, seja para que efeito for. Não sairás para ir visitar amigas ou para ir às compras. Nem as tuas amigas virão visitar-te, pois não posso confiar na tua prudência. Sou obrigado a dizer-te que não passas de uma criatura perfeitamente imbecil e vazia, uma mulher que não serve para um homem com a minha auctoritas e dignitas. Agora vai-te embora.

Claro que este acerado discurso não impediu Escauro de usar o corpo da mulher. Cada vez menos, porém, pois a idade pesava-lhe já. Quando Dalmática deu à luz o filho, reencontrou no marido alguma da antiga simpatia; mas Escauro manteve-se inflexível quanto às normas que lhe tinha imposto. E nos seus sonhos, no seu isolamento, nesse isolamento em que o tempo parecia não passar nunca, como se, opressivo, tivesse parado para sempre, Dalmática continuava a pensar em Sila, a amá-lo. E era com um coração de adolescente que o amava.

Agora que Sila estava a seu lado nu, não sentia qualquer desejo sexual, apenas um enorme assombro perante a sua beleza e virilidade, e o entendimento de que a diferença entre Sila e Escauro era afinal mínima. Beleza. Virilidade. Essas eram as diferenças reais. Sila não ia ajoelhar aos pés dela e, chorando, declarar o seu amor! Ela não o tinha conquistado! Ele é que ia conquistá-la. Com o seu aríete, arrombaria as portas, as muralhas dela.

- Tira essa coisa, Dalmática - disse ele.

Ela despiu a camisa de dormir com a alacridade de uma criança apanhada a fazer alguma travessura, enquanto ele sorria e aquiescia.

- És muito bonita - disse ele, satisfeito, excitado. Avançou então para ela, lentamente deixou que o seu sexo a penetrasse, e abraçou-a com força. Depois, beijou-a, e Dalmática deu consigo como que perdida, no meio de sensações cuja existência sempre desconhecera o sentir a pele dele, os lábios, o sexo, as mãos, o cheiro dele, lavado e doce, como o cheiro das crianças depois do banho.

Desperta, crescendo interiormente, Dalmática descobria assim dimensões que nada tinham a ver com sonhos ou fantasias, dimensões que tinham tudo a ver com dois corpos vivos, unidos, amando-se. E do amor passou à adoração, à perdição dos sentidos.

Para Sila, Dalmática representava o encantamento que sentira de início com Júlia, embora magicamente misturado com reminiscências de Metróbio.

Não admira que depois desse extraordinário primeiro dia de casamento com Dalmática nada o afectasse profundamente - não o afectavam os assobios e vaias que ouvia ainda no Fórum por causa da forma como tratara Élia, nem as insinuações maliciosas de homens como Filipe para quem Dalmática apenas significava dinheiro, nem a forma estropiada de Caio Mário apoiando-se no rapaz, nem as piadas e piscadelas de olhos de Lúcio Decúmio, nem os risinhos contidos daqueles que achavam Sila um sátiro e a viúva de Escauro uma criaturinha inocente, nem sequer o amargo cartão de parabéns que Metróbio lhe mandou a acompanhar um bouquet de amores-perfeitos.

Menos de quinze dias após o casamento, Sila e Dalmática mudaram-se para uma mansão do Palatino, que dava para o Circus Maximus e não ficava muito longe do templo de Magna Mater. Os frescos dessa casa eram melhores ainda que os da casa de Marco Lívio Druso; por outro lado, tinha pilares de um mármore magnífico, o melhor chão de mosaicos de Roma, e mobiliário de uma opulência mais própria de um rei oriental do que de um senador romano. Sila e Dalmática tinham especial orgulho numa mesa de madeira de limoeiro, suportada por um pedestal de marfim incrustado a ouro, com a forma de golfinhos entrelaçados: essa mesa fora uma prenda de casamento de Metelo Pio, o Bacorinho.

Deixar a casa em que vivera durante vinte e cinco anos equivalia, para Sila, a uma espécie de emancipação, uma emancipação de que muito precisava. Para sempre ficavam enterradas as memórias da velha e horrenda Clitumna e do seu ainda mais horrendo sobrinho, Stichus; tal como as memórias de Nicópole, Julilla, Márcia, Élia. E se a memória do filho permanecia, pelo menos desaparecia a dor de ver e tocar em coisas que o seu filho tinha visto e tocado. Sila já não entraria no quarto do filho, já não veria à sua frente a imagem daquele rapazinho nu, risonho, que inesperadamente corria para os seus braços. Com Dalmática tudo começaria de novo.

Para sorte de Roma, Sila permaneceu mais tempo na cidade em consequência do casamento com Dalmática; de facto, Sila esteve em Roma todo o tempo necessário para supervisionar o seu programa de pagamento das dívidas e para pensar em novos processos de fazer voltar dinheiro ao Tesouro. Defendendo as suas posições com todo o vigor e arrecadando rendimentos em todas as oportunidades em que isso era possível, conseguiu pagar às legiões (Pompeu Estrabão cumpriu a sua promessa e mandou-lhe uma conta bastante reduzida) e mesmo uma pequena parte da dívida contraída com a Gália Italiana. Por outro lado, o comércio da cidade parecia registar uma ligeira recuperação.

Em Março, contudo, foi obrigado a pensar seriamente na eventualidade de ter de se apartar do corpo da mulher. Metelo Pio estava já no Sul com Mamerco; Cina e Comuto esquadrinhavam as terras dos Marsos; e Pompeu Estrabão - com o filho mas sem aquele prodígio epistolar que dava pelo nome de Cícero - escapara-se sorrateiramente para os confins da Umbria.

Mas havia ainda uma coisa a fazer. Sila fê-la na véspera da sua partida, já que tal acto não implicava a promulgação de uma lei. Tinha a ver com a jurisdição dos censores. De facto, os dois censores tinham-se mostrado relutantes em relação à realização do censo, apesar de a lei de Pisão Frugi ter confinado os novos cidadãos a oito das tribos rurais e a duas novas tribos, uma distribuição que não poderia destruir o status quo tribal eleitoral. Os censores defendiam-se com uma ilegalidade técnica para o caso de as águas do censo ficarem demasiado agitadas. Mandava a prudência que resignassem aos seus cargos; convocados pelos augures para presidirem a uma cerimónia obscura e sem a mínima importância, os dois censores tinham-se recusado deliberadamente a fazê-lo.

- Princeps Senatus, veneráveis Senadores, o Senado vê-se confrontado com a sua própria crise - disse Sila, permanecendo sem se mexer ao lado da sua cadeira, como costumava fazer. Ergueu então a mão direita, que segurava um rolo de papel. - Tenho aqui uma lista daqueles senadores que não mais voltarão a esta Casa. Estão mortos. Mais de cem. A maior parte desses cem nomes são de pedarii, senadores que nunca se tornaram especialmente notados nesta Casa, que nunca falaram, que não sabiam de leis o mesmo que qualquer outro senador deve saber. Há no entanto outros nomes - nomes de homens cuja perda sentimos muito agudamente, porque foram presidentes de tribunais, juizes especiais e adjudicadores e arbitradores, juristas, legisladores, magistrados. E esses homens não foram substituídos! Nem vejo perspectivas de os substituirmos!

”Vou referir os nomes desses homens; o censor e Princeps Senatus, Marco Emílio Escauro; o censor e Pontifex Maximus, Cneu Domício Aenobarbo; o consular Sexto Júlio César; o consular Tito Dídio; o cônsul Lúcio Pórcio Catão Liciniano; o cônsul Públio Rutílio Lupo; o consular Aulo Postúmio Albino; o pretor Quinto Servílio Cepião; o pretor Lúcio Postúmio; o pretor Caio Coscónio; o pretor Quinto Servílio; o pretor Públio Gabínio; o pretor Marco Pórcio Catão Saloniano; o pretor Aulo Semprónio Asélio; o edil Marco Cláudio Marcelo; o tribuno da plebe Marco Lívio Druso; o tribuno da plebe Marco Ponteio; o tribuno da plebe Quinto Vário Severo Hybrida Sucronensis; o lugar-tenente Públio Licínio Crasso Júnior; o lugar-tenente Marco Valério Messala.”

Sila fez uma pausa, satisfeito. Havia expressões chocadas em todos aqueles rostos.

- Sim, eu sei - disse ele afavelmente. - Só depois de lermos esta lista nos apercebemos do excessivo número de grandes homens ou de jovens prometedores que desapareceram. Sete cônsules e sete pretores. Catorze homens eminentemente qualificados para presidirem a tribunais, para apreciarem leis e costumes, para zelarem pela mós maiorum. Isto para não mencionar os outros seis homens que poderiam ter-se tornado dirigentes dos nossos destinos. Há ainda outros nomes - nomes que não referi, mas que incluem tribunos da plebe com menos fama mas que, no entanto, eram homens experientes e trabalhadores.

- É uma tragédia, Lúcio Cornélio! - exclamou Flaco Princeps Senatus, com a voz embargada.

- Sim, Lúcio Valério, é uma tragédia - concordou Sila. - Há muitos nomes que não se encontram nesta lista porque não estão mortos. Homens que estão ausentes desta Casa por várias razões, porque cumprem missões no ultramar ou em qualquer outro local fora de Roma. Mesmo durante o Inverno, quando a guerra abrandou, não consegui contar mais do que cem homens neste Senado. Há também uma lista considerável de senadores actualmente no exílio, devido às actividades da Comissão Vária ou da Comissão Pláucia. E homens como Públio Rutílio Rufo.

”Portanto, honrados censores Públio Licínio e Lúcio Júlio, peço-lhes, com toda a gravidade, que façam tudo o que estiver ao vosso alcance para cumprirem a vossa missão. Dêem oportunidades a homens com peso e ambição nesta cidade. Permitam-lhes que venham engrossar as hostes do Senado de Roma. E escolham entre os pedarii aqueles que mais qualidades revelem e que possam por isso subir neste Senado e cumprir missões mais importantes. São muitas as ocasiões, demasiadas, em que não temos quoro. Como pode o Senado de Roma querer ser a principal instituição do governo de Roma se não consegue ter quoro para reunir?”

Já estava, concluiu Sila. Tinha feito o que lhe era possível para que Roma avançasse, e dado um pontapé público nos traseiros de dois censores que nada faziam. Agora era tempo de concluir a guerra contra os Italianos.

 

O único aspecto do governo de Roma que Sila tinha descuidado por completo tornara-se invisível aos olhos de toda a gente desde a morte de Marco Emílio Escauro, um homem que de facto fazia muita falta a Roma; o sucessor de Escauro, Lúcio Valério Flaco, tentara chamar a atenção de Sila para o problema, mas de uma forma muito pouco incisiva, o que não admirava, pois Flaco tinha uma personalidade demasiado frágil para o cargo. Aliás, Sila não poderia de modo nenhum ser censurado pela estreiteza da sua visão. De facto, a Itália tornara-se o foco das atenções de todo o mundo romano e aqueles que se encontravam fisicamente envolvidos no problema italiano não viam mais do que o problema italiano à frente dos seus olhos.

Uma das últimas missões de Escauro tivera a ver com os dois reis destronados: Nicomedes da Bitínia e Ariobarzanes da Capadócia; sempre determinado, o velho Princeps Senatus enviara uma comissão à Ásia Menor para investigar a situação criada pelo rei Mitridates do Ponto. O chefe da delegação era Mânio Aquílio, valoroso número dois de Caio Mário na batalha de Aquae Sextiae, colega de Mário no quinto consulado deste, e vencedor da guerra dos escravos sicilianos. Com Aquílio foram mais dois homens, Tito Mânlio Mancino e Caio Málio Maltino, bem como os dois reis, Nicomedes e Ariobarzanes. Escauro definira de uma forma muito clara a missão desta embaixada: tratava-se de devolver aos dois reis os tronos a que tinham direito e avisar Mitridates de que deveria permanecer dentro das fronteiras do Ponto.

Mânio Aquílio insistira junto de Escauro para que lhe desse a chefia da comissão, pois perdera muito dinheiro quando da eclosão da guerra contra a Itália. Com o governo da Sicília, dez anos antes, ganhara apenas um processo mal regressara a Roma; embora absolvido, a sua reputação sofrera imenso com o caso, quando, na realidade, Mânio Aquílio não merecia que tal lhe acontecesse. O ouro que o seu pai recebera de Mitridates V, em troca da cedência da maior parte da Frígiaao Ponto, há muito que fora gasto; no entanto, o ódio que tal acto desencadeara continuava a abater-se sobre o filho. Escauro, firme partidário do hábito de cargos como estes passarem de pais para filhos (tendo em conta que um pai falaria sempre ao filho da região onde fora colocado e dos seus problemas), concluiu que seria uma boa ideia dar a Mânio Aquílio a missão de reinstaurar o governo dos dois reis; além disso, permitiu-lhe o privilégio de escolher os seus dois colegas.

O resultado de tudo isto foi que a comissão se inclinou mais para a avareza do que para a justiça, mais para a obtenção de dinheiro do que para o bem-estar dos povos orientais. Ainda antes de iniciada a viagem para a Ásia Menor, já Mânio Aquílio tinha realizado um negócio extremamente satisfatório com o rei Nicomedes (então com setenta anos): como que por artes mágicas, cem talentos de ouro bitiniano apareceram então no banco de Mânio Aquílio. Na realidade, as finanças de Aquílio estavam tão por baixo que, se não depositasse tal quantia, talvez o tivessem impedido de sair de Roma (de facto, todos os senadores eram obrigados a solicitar uma autorização formal sempre que precisassem de sair de Itália). Mânio Aquílio não tinha a mínima hipótese de deixar Roma despercebidamente: os bancos e os banqueiros vigiavam com toda a atenção as listas afixadas nos rostra e na Régia.

Tendo preferido ir por mar, em vez de ir por terra, pela Via Egnácia, a comissão chegou a Pérgamo em Junho, tendo sido recebida com alguma pompa pelo governador da Província da Ásia, Caio Cássio Longino.

Caio Cássio e Mânio Aquílio depressa se aperceberam, com não pouco prazer, que, no que tocava a cobiça e falta de escrúpulos, eram muito parecidos. Por isso, na altura em que Tito Dídio morria frente a Herculano, em Pérgamo, conspirava-se. O objectivo da conspiração consistia muito simplesmente em obter o máximo de ouro possível, a distribuir pelos membros da comissão e pelo governador, e, em particular, o ouro dos territórios limítrofes do Ponto que, em termos práticos, não se encontravam sob a autoridade de Roma - designadamente a Paflagónia e a Frigia.

As cartas do Senado para Mitridates do Ponto e Tigranes da Arménia, ordenando-lhes que retirassem da Bitínia e da Capadócia, foram enviadas de Pérgamo. Logo que os portadores das cartas deixaram Pérgamo, Caio Cássio ordenou que a sua legião de auxiliares se submetesse a um programa intensivo de preparação para a guerra, e chamou à cidade todos os milicianos que se encontravam espalhados pela Província da Ásia. Depois, escoltados por um pequeno destacamento de soldados, Aquílio, Mânlio e Málio seguiram para a Bitínia com o rei Nicomedes, ao passo que o rei Ariobarzanes permanecia em Pérgamo, na companhia de um governador subitamente muito ocupado.

O poder de Roma continuava a dar os seus frutos. O rei Sócrates depressa ficou sem o seu trono: fugiu imediatamente para o Ponto e Nicomedes substituiu-o na Bitínia, ao passo que Ariobarzanes voltava a reinar na Capadócia. Os três chefes da comissão permaneceram em Nicomédia o resto do Verão e aí ultimaram o seu plano para a invasão da Paflagónia, a faixa de território que separava a Bitínia do Ponto, ao longo do litoral do mar Euxino. Os templos da Paflagónia tinham muito ouro, ao contrário do que sucedia em Nicomédia. De facto, quando fugira para Roma, o velho rei Nicomedes levara consigo a maior parte do seu tesouro; tesouro que fora distribuído pelas contas bancárias de diversos cidadãos romanos, desde Marco Emílio Escauro (que não dizia que não a uma pequena oferta) até Mânio Aquílio, passando por uma quantidade de mãos gananciosas.

A descoberta de que Nicomedes não tinha ouro causara algum ressentimento entre os comissários romanos: Mânlio e Málio achavam que tinham sido enganados, e Aquílio percebia que tinha de fazer um esforço para encontrar mais ouro do que o previsto, pois não queria recorrer ao seu pé-de-meia para pagar a Mânlio e a Málio as somas que eles contavam ganhar. Claro que quem sofria com isso tudo era o rei Nicomedes. Três nobres romanos ordenavam-lhe que invadisse a Paflagónia, e ameaçavam-no com a perda do trono caso não obedecesse. As mensagens de Caio Cássio, que ficara em Pérgamo, reforçavam ainda mais o poder da comissão, com o resultado de que Nicomedes acabou por ceder e por mobilizar o seu modesto mas bem equipado exército.

No final de Setembro, os comissários e o velho rei Nicomedes marcharam sobre a Paflagónia. Aquílio comandava o exército: o rei, no meio de todo aquele aparato, não passava de um convidado obrigado a participar na campanha. Ansioso por acicatar o rei Mitridates, Aquílio obrigou Nicomedes a dar determinadas instruções às guarnições navais e frotas da Bitínia que defendiam o Bósforo Trácio e o Helesponto; não deveriam deixar passar nenhum navio do Ponto entre o mar Euxino e o mar Egeu. Desafia Roma, se a tanto te atreves, rei Mitridates! essa era a mensagem subjacente a essas movimentações.

Tudo correu exactamente como Mânio Aquílio planeara. O exército bitínio marchou ao longo da costa da Paflagónia, conquistando as cidades e saqueando os templos, os tesouros roubados foram crescendo, e o importante porto de Amastris capitulou; e Pilaemenes, o dirigente da Paflagónia interior, acabou por juntar as suas forças às dos invasores romanos. Em Amastris, os três comissários decidiram que era altura de regressarem a Pérgamo, deixando o pobre rei Nicomedes e o seu exército algures entre Amastris e Sinope, sofrendo as agruras do Inverno, e correndo o risco de um confronto com as tropas de Mitridates, pois a fronteira do Ponto não estava longe.

Foi em Pérgamo, em meados de Novembro, que os romanos receberam uma embaixada do rei Mitridates, que até então não dissera nem fizera nada. O chefe da embaixada era Pelópidas, um primo do rei.

- O meu primo, o rei Mitridates, roga humildemente ao procônsul Mânio Aquílio que ordene ao rei Nicomedes e ao seu exército que regressem imediatamente à Bitínia - disse Pelópidas, que estava vestido com o traje de um civil grego, e se deslocara a Pérgamo sem qualquer escolta armada.

- Isso é impossível, Pelópidas - retorquiu Mânio Aquílio, sentado na sua cadeira curul, e segurando na varinha de marfim, símbolo do seu poder; rodeavam-no doze lictores, com os seus trajes carmesins, segurando osfasces com machadas. - A Bitínia é um estado soberano, amigo e aliado do povo romano, é certo, mas controlando inteiramente o seu destino sem qualquer intromissão nossa. Não posso por isso ordenar ao rei Nicomedes que faça o que quer que seja.

- Nesse caso, procônsul, o meu primo, o rei Mitridates, roga-te humildemente que o autorizes a defender-se e ao seu reino contra as depredações da Bitínia - retorquiu Pelópidas.

- Nem o rei Nicomedes nem o exército da Bitínia se encontram dentro do território pôntico - disse Mânio Aquílio. - Por isso, proíbo rigorosamente o teu primo Mitridates de levantar um dedo que seja contra o rei Nicomedes. Em circunstância alguma, Pelópidas! Em circunstância alguma! Diz isto mesmo ao teu rei.

Pelópidas suspirou, ergueu os ombros e abriu muito os braços num gesto que não era nada romano.

- Nesse caso - disse - tenho de te dizer que, tendo em conta a actual situação, o meu primo, o rei Mitridates, me mandou comunicar-te a seguinte mensagem: ”Mesmo um homem que sabe que vai perder reage a quem o maltrata!”.

- Pois se o teu primo ripostar, é certo que perderá - replicou Aquílio, acenando aos lictores para que acompanhassem Pelópidas à porta.

Caiu o silêncio na sala depois de o nobre pôntico ter saído. Um silêncio que só Caio Cássio, com uma expressão preocupada, quebrou:

- Um dos nobres do Ponto que veio com Pelópidas disse-me que Mitridates tenciona enviar uma carta de protesto directamente a Roma.

Aquílio ergueu uma sobrancelha.

- E que ganhará ele com isso? - perguntou. - Não há ninguém em Roma com tempo para ler cartas.

Mas os comissários e o governador tiveram todo o tempo para ouvir Pelópidas, um mês depois.

- O meu primo mandou-me a Pérgamo rogar-te uma vez mais que o autorizes a defender o seu país - começou por dizer Pelópidas.

- O Ponto não se encontra ameaçado, Pelópidas. Por isso a minha resposta continua a ser negativa - retorquiu Mânio Aquílio.

- Nesse caso, procônsul, o rei Mitridates não tem outra alternativa senão dispensar a tua autorização. Apresentará uma queixa formal ao Senado e ao Povo de Roma, afirmando que os comissários de Roma na Ásia Menor estão a apoiar a Bitínia num acto de agressão, e ao mesmo tempo negam ao Ponto o direito de ripostar - disse Pelópidas.

- Será melhor que o teu primo, o magnífico rei Mitridates, não faça uma coisa dessas - atirou-lhe grosseiramente Aquílio. - Para o Ponto e toda a Ásia Menor, eu sou o Senado e o Povo de Roma! Agora desaparece e não voltes mais!

Pelópidas ficou ainda algum tempo em Pérgamo, tentando obter informações acerca das misteriosas movimentações de tropas que Caio Cássio iniciara. Estava ele ainda em Pérgamo quando chegou à cidade a notícia de que Mitridates do Ponto e Tigranes da Arménia tinham invadido a Capadócia e que um filho de Mitridates, chamado Ariárates - ninguém sabia de que Ariárates se tratava, tantos eles eram -, disputava de novo o trono daquele reino. Mânio Aquílio mandou chamar imediatamente Pelópidas, dizendo-lhe que enviasse instruções para que o Ponto e a Arménia se retirassem da Capadócia.

- Eles farão -o que eu ordenei porque têm um medo horrível das represálias romanas - disse Aquílio a Cássio, e de repente ficou a tremer. - Mas que frio que aqui está, Caio Cássio! Não achas que a Província da Ásia é suficientemente rica para poder aquecer o palácio do governador com uma ou duas fogueiras?

Em Fevereiro, comissários e governador estavam já tão confiantes na invulnerabilidade romana que Aquílio e Cássio conceberam um plano ainda mais ousado: porque haviam de parar nas fronteiras do Ponto? Porque não haveriam de dar uma lição ao rei do Ponto, uma lição que ele sem dúvida merecia, invadindo o seu próprio país? A legião da Província da Ásia estava no seu melhor, os milicianos, acampados algures entre Esmirna e Pérgamo, estavam também muito bem preparados, e Caio Cássio tivera outra ideia brilhante.

- Podemos juntar mais duas legiões às nossas forças se mandarmos vir Quinto Ópio, que se encontra na Cilícia - disse ele a Mânio Aquílio.

- Vou enviar um mensageiro a Tarso. Mando dizer a Quinto Ópio que venha a Pérgamo para discutirmos o destino da Capadócia. O poder dele é apenas pró-pretoriano, ao passo que o meu é proconsular. Ele não tem outra alternativa senão obedecer-me. Dir-lhe-ei que tencionamos conter Mitridates, deitando-lhe as unhas por detrás em vez de o atacarmos após a invasão da Capadócia.

- Diz-se - comentou Aquílio com um ar sonhador - que na Arménia Menor há mais de setenta fortificações com as muralhas cheias de ouro pertencente a Mitridates.

Mas Cássio, um militar vindo de uma família de militares, não se deixava distrair com tais devaneios.

- Invadiremos o Ponto em quatro locais diferentes ao longo do rio Hális - disse ele, impaciente. - O exército bitínio não terá problemas nem em Sinope, nem em Amiso, no Euxino, e marchará depois para o interior, ao longo do Hális. Poderá assim recolher uma grande quantidade de alimentos, pois é ele quem mais cavalaria tem, bem como animais de tracção. Aquílio, tu levarás a minha legião de auxiliares e atacarás no Hális, na Galácia. Eu conduzirei os milicianos pelo rio Maender, na direcção da Frigia. Quinto Ópio poderá desembarcar em Ataleia e avançar pela Pisídia. Ele e eu ficaremos frente ao Hális entre as tuas tropas e as dos bitínios. Com quatro exércitos separados instalados junto ao seu rio, Mitridates não saberá onde está, nem o que fazer! Mitridates não passa de um reizeco, meu caro Mânio Aquílio! Aquilo é mais ouro que soldados.

- Não terá a mínima hipótese - disse Aquílio, sorridente, sonhando ainda com as setenta fortalezas cheias de ouro.

Cássio pigarreou ostensivamente.

- Só é preciso ter cuidado com uma coisa - disse ele, num tom completamente diferente.

Mânio Aquílio fitou-o com toda a atenção. - Sim?

- Quinto Ópio é um homem da velha guarda: Roma para todo o sempre, a honra acima de tudo, nem pensar em arrecadar algum dinheiro graças a umas actividadezinhas extracurriculares. Não podemos fazer nem dizer nada que possa levá-lo a pensar que o nosso objectivo não tem nada a ver com a restauração da justiça na Capadócia.

Aquílio riu-se.

- Ai ele é assim? Pois tanto melhor para nós! Mais arrecadaremos!

- Sem dúvida - retorquiu Caio Cássio com um ar satisfeito.

Pelópidas tentou ignorar o suor que lhe deslizava pela testa até aos olhos, procurou colocar as suas mãos de molde a que Mitridates não notasse que estava a tremer.

- E foi assim, Grande Rei, que o procônsul Aquílio me mandou embora - concluiu.

No rosto do rei nem as pestanas pareciam mexer-se, e a sua expressão mantinha-se inalterável: impassível, parada, quase afável. Aos quarenta anos de idade e há vinte e três anos no trono, Mitridates VI, de cognome Eupator, aprendera já a esconder todos os seus sentimentos. Com uma única excepção: a irritação. Mas aquelas notícias não eram de molde a irritá-lo: bem pelo contrário, pois já as esperava.

Há dois anos que vivia numa atmosfera de ardente esperança, uma esperança que nascera no dia em que soubera da guerra entre Roma e os seus Aliados Italianos. Dizia-lhe o instinto que aquela era a sua grande oportunidade. Por isso, na altura, escrevera a Tigranes, avisando-o de que deveria preparar-se para a luta. Quando Tigranes lhe respondeu que o acompanharia para onde quer que ele fosse Mitridates decidiu que a primeira coisa a fazer seria tornar a guerra em Itália o mais difícil possível para Roma. Enviara uma embaixada aos italianos Quinto Popaedius Silão e Caio Pápio Mutilo, oferecendo-lhes dinheiro, armas, navios, e mesmo tropas. Mas para sua grande surpresa, Silão e Mutilo recusaram a oferta do reino do Ponto com desprezo e ira.

- Digam ao rei Mitridates que a guerra entre a Itália e Roma não é da sua conta! A Itália nunca ajudará um rei estrangeiro nos seus planos para prejudicar Roma - foi a resposta de Silão e Mutilo.

Como um caracol que se encolhe dentro da sua casa, o rei do Ponto resolveu esperar e ordenou a Tigranes que esperasse também pois não chegara ainda a altura certa. Mitridates duvidava mesmo se essa altura certa chegaria algum dia, pois até mesmo a Itália, que tanto precisava de ajuda, recusara de forma tão radical a mão amiga e generosa do Ponto.

Mitridates sentia-se demasiado apreensivo para ser capaz de tomar uma decisão firme. Mudava rapidamente de opinião: num determinado momento achava que era tempo de declarar guerra a Roma, mas passados minutos já achava o contrário. Inquieto, irritado, guardava todos os pensamentos e dúvidas para si mesmo; o rei do Ponto não podia ter nem confidentes nem conselheiros - nem mesmo um cunhado que também era um grande rei poderia desempenhar um desses papéis. A corte sentia-se confusa, perplexa. Ninguém sabia o que o rei sentia, qual poderia ser o seu próximo passo, se haveria ou não guerra. Toda a gente receberia a guerra de braços abertos, ainda que ninguém a quisesse.

Frustrada a sua iniciativa junto dos Italianos, Mitridates lembrou-se da Macedónia, província romana que tinha uma longa e intranquila fronteira, seriamente perturbada pelas acções das tribos bárbaras na parte norte. Se acicatasse os conflitos ao longo dessa fronteira, todas as atenções de Roma se virariam por certo para aí. Mandou por isso agentes seus para essa zona, com a missão de incendiarem os ódios que os Bessos, os Escordiscos e as outras tribos da Trácia e Mésia há muito dedicavam a Roma. Em consequência desta acção, a Macedónia sofreu os piores ataques e incursões dos bárbaros de que havia memória. Lançados os primeiros ataques, os Escordiscos conseguiram ir tão longe quanto Dodona, no Epiro. No entanto, a Macedónia romana tinha a sorte de possuir um governador magnífico, o incorruptível Caio Sêncio, apoiado por um lugar-tenente não menos notável e probo, Quinto Brútio Sura.

Quando viu que a revolta dos bárbaros não levara Sêncio e Brútio a pedir ajuda a Roma, Mitridates virou a sua atenção para os conflitos no interior da própria província. E pouco tempo depois, apareceu na Macedónia um tal Eufenes, que afirmava ser descendente directo de Alexandre, o Grande (com o qual era espantosamente parecido), reclamando para si o antigo trono da Macedónia. Os habitantes de cidades mais evoluídas como Tessalónica e Péla perceberam imediatamente que se tratava de um impostor; no entanto, as populações campesinas abraçaram a sua causa ardentemente; infortunadamente para Mitridates, Eufenes não tinha o mínimo espírito bélico e faltava-lhe por completo o talento para organizar os seus partidários num exército. Sêncio e Brútio Sura negociaram com Eufenes a um nível puramente interno. Ao contrário do que Mitridates desejava, não fizeram a Roma qualquer pedido urgente de dinheiro ou tropas.

E ao fim de dois anos de guerra entre Roma e os seus Aliados Italianos, Mitridates continuava como no princípio - longe de poder realizar as suas ambições. Estava inquieto e vacilante. Transformara a sua vida num verdadeiro inferno. A sua vida e a vida da corte. Entretanto, via-se obrigado a deter Tigranes, um homem mais agressivo, ainda que menos inteligente. Não sabia o que fazer. E era incapaz de confiar as suas dúvidas e angústias a quem quer que fosse.

O rei mexeu-se de súbito no trono e um sobressalto agitou a sala.

- Que mais descobriste durante a tua segunda, e muito demorada, visita a Pérgamo? - perguntou a Pelópidas.

- Que Caio Cássio, o governador, tem a sua legião de auxiliares romanos em pé de guerra e treinou e equipou convenientemente duas legiões de milicianos, Poderoso Rei. - Pelópidas molhou os lábios, ansioso por demonstrar que, apesar de a sua missão ter sido um fracasso, continuava a ser um fanático defensor da causa do rei. - Tenho um agente no palácio do governador em Pérgamo, Grande Rei. Antes de me vir embora, esse agente confidenciou-me que pensa que Caio Cássio e Mânio Aquílio planeiam invadir o Ponto na Primavera, contando para tal com o apoio de Nicomedes da Bitínia e o aliado deste, Pilaemenes da Paflagónia. E parece que também com o apoio do governador da Cilícia, Quinto Ópio, que se deslocou a Pérgamo para conferenciar com Caio Cássio.

- Sabes se essa projectada invasão conta com a aprovação oficial do Senado e do Povo de Roma? - perguntou o rei.

- Pelo que se diz no palácio do governador, parece que não, Grande Rei.

- Não me espanta que Mânio Aquílio faça uma coisa dessas: tal pai tal filho. Já o pai era louco por ouro. Pelo meu ouro. - Os lábios carnudos e muito vermelhos abriram-se, revelando os dentes enormes, amarelecidos. - Parece que o governador da Província da Ásia é igualzinho a Mânio Aquílio. E Quinto Ópio da Cilícia. Um trio que só vê ouro à sua frente!

- Corre que o governador da Cilícia é diferente dos outros, Grande Rei

- disse Pelópidas. - Mânio Aquílio e Caio Cássio querem que ele pense que a invasão visa unicamente a nossa presença na Capadócia. Suponho que Quinto Ópio é aquilo a que os Romanos chamam um homem honrado.

O rei caiu num demorado silêncio, os lábios movendo-se numa agitação imparável, os olhos fitando o vazio. Tudo muda de figura quando ameaçam as nossas próprias terras, pensou o rei Mitridates. Julgam que vou baixar as armas e permitir a esses pretensos donos do mundo que devastem o meu país. O país que me abrigou quando eu era um fugitivo, o país que eu amo mais do que a própria vida. O país que eu quero ver a governar o mundo.

- Não! Eles não o farão! - exclamou o rei numa voz tremenda. Todas as cabeças se ergueram mas o rei nada mais disse; só os seus lábios se mexiam, para dentro e para fora, para dentro e para fora, a todo o momento.

Chegou a hora. Finalmente chegou a hora, pensou o rei Mitridates. A corte ouviu as notícias de Pérgamo e neste momento julga-me, a mim, e não aos Romanos. Se me comporto mansamente enquanto aqueles comissários romanos, ávidos de ouro, se gabam de serem o Senado e o Povo de Roma, e falam de abrir brechas nas minhas fronteiras, os meus súbditos desprezar-me-ão. A minha reputação sofrerá tal afronta que eles deixarão de ter medo de mim. E nesse momento alguns dos meus parentes pensarão em substituir-me no trono. Já tenho filhos com idade para reinar, cada um deles apoiado por uma mãe sequiosa de poder, e há também os meus primos de sangue real Pelópidas, Arquelau, Neoptólemo, Leónipo. Se me comporto como o cobarde desprezível que os Romanos pensam que sou, depressa deixarei de ser rei do Ponto. Aliás, num instante estarei morto.

Guerra contra Roma. Finalmente chegara a hora. Não que eu tivesse escolhido o momento. Provavelmente, nem os Romanos escolheram. Tudo se precipitou graças à ganância de três comissários romanos. Mas estou decidido. Se eles querem guerra, tê-la-ão.

Tomada a decisão, Mitridates sentiu-se de repente muito mais leve: era como se um enorme peso, uma enorme sombra, tivessem desaparecido da sua mente; sentado no trono, parecia inchar como um imenso sapo de ouro, os olhos brilhantes perscrutando. O reino do Ponto ia para a guerra. O reino do Ponto ia dar uma lição a Mânio Aquílio e Caio Cássio. O reino do Ponto conquistaria a Província da Ásia romana. E atravessaria o Helesponto e chegaria à Macedónia Oriental e seguiria pela Via Egnácia para oeste. Passaria do Euxino ao Egeu, seguiria sempre para oeste, conquistando, conquistando sempre. Até que a Itália e Roma ficassem nas mãos do Ponto, dos seus exércitos e esquadras. O rei do Ponto seria também o rei de Roma. O rei do Ponto seria o soberano mais poderoso da história do mundo, muito mais poderoso que Alexandre, o Grande. Os seus filhos reinariam em lugares tão remotos como a Hispânia e a Mauritânia, as suas filhas seriam rainhas de todas as terras desde a Arménia até à Numídia e à Gália Ulterior. Todos os tesouros do mundo pertenceriam ao Rei do Mundo, todas as mulheres belas, todas as terras, todas! Lembrou-se então do genro, Tigranes, e sorriu. Ele que fique com o reino dos Partos e que expanda o seu poder para leste, na direcção da índia e das ignoradas nações que ficam para lá da índia!, pensou Mitridates. Mas o rei não disse que ia para a guerra contra Roma. Abriu a boca e disse:

- Mandem chamar Aristião.

O nervosismo tinha-se apoderado da corte, embora ninguém soubesse exactamente o que é que estava a acontecer na cabeça do rei. Mas que estava a acontecer qualquer coisa, lá isso estava.

Entrou então na sala um grego muito alto e de uma beleza notável, vestido com uma túnica e uma clâmide; sem qualquer constrangimento, prostrou-se defronte do rei.

- Levanta-te, Aristião. Tenho trabalho para ti.

O grego levantou-se e fitou o rei com uma expressão que era um misto de atenção e adoração; Aristião costumava praticar essa pose em frente do espelho que o rei Mitridates colocara no seu luxuoso quarto, e Aristião orgulhava-se de ter conseguido, após muito treino, uma pose que era o meio termo exacto entre o servilismo que o rei desprezaria e a independência que o rei condenaria. Há quase um ano que se encontrava na corte do Ponto em Sinope; estava tão longe da sua cidade natal, porque era por profissão um peripatético, um filósofo errante da escola fundada pelos sucessores de Aristóteles, e pensara que o seu trabalho seria melhor recompensado em terras onde não houvesse muitos como ele. Afortunadamente, o rei do Ponto precisava dos seus serviços, pois apercebera-se da sua pouca instrução desde que visitara a Província da Ásia, dez anos antes.

Tendo o cuidado de expressar o seu saber em termos puramente verbais, Aristião encheu a cabeça do rei com as suas histórias sobre o antigo poder da Grécia e da Macedónia, sobre o detestável poder de Roma, as condições que prevaleciam nos negócios e no comércio, a geografia e a história do mundo. E Aristião acabou por se ver a si mesmo mais como um professor de elegância e sofisticação do que como um verdadeiro pedagogo do rei.

- A ideia de que posso ser de algum préstimo para ti deixa-me deliciado, Poderoso Mitridates - disse Aristião num tom perfeitamente melífluo.

O rei tratou então de demonstrar que - embora pudesse ter temido uma guerra contra Roma - vinha pensando haja muitos anos na melhor forma de conduzir uma guerra contra Roma.

- Vens de uma família suficientemente nobre para que possas vir a assumir o poder político em Atenas? - perguntou inesperadamente o rei.

Aristião não deixou que percebessem a sua surpresa; manteve a sua expressão encantadora.

- Sim, Poderoso Rei, pertenço de facto a uma família de óptima linhagem - mentiu.

Na realidade, Aristião era filho de um escravo, mas tudo isso se passara há já muito tempo. Em Atenas ninguém se lembrava de quem era o seu pai. As aparências é que contavam. E o seu aspecto era suficientemente aristocrático para impressionar qualquer um.

- Nesse caso, ordeno-te que regresses a Atenas imediatamente e que comeces desde logo a congregar à tua volta o poder político disse o rei. - Preciso de um agente leal com influência bastante para incendiar o ódio que os Gregos têm a Roma. Não me interessa como o farás. Mas quando os exércitos e as esquadras do Ponto invadirem as terras de ambas as margens do mar Egeu, quero Atenas - e a Grécia - na palma da minha mão!

Um murmúrio vagueou pela sala do trono, um murmúrio que logo ganhou amplitude e ressonância, animado pela excitação, pelo fervor bélico - afinal de contas o rei não ia submeter-se aos desígnios de Roma!

- Nós estamos contigo, meu rei! - gritou Arquelau, curvando-se.

- Os teus filhos agradecem-te, Grande Rei! - gritou Farnaces, o filho mais velho de Mitridates.

Mitridates estava cada vez mais inchado, tal era o seu prazer. Por que razão não se apercebera antes de que estava à beira de um precipício chamado rebelião, um precipício por onde ele fatalmente cairia? Por que não se apercebera antes de que os seus súbditos e familiares estavam ávidos de guerra, da guerra contra Roma? E ele estava pronto. Há anos que estava pronto para aquela guerra.

- Só iniciaremos a nossa marcha depois de os comissários romanos e os governadores da Província da Ásia e da Cilícia terem iniciado a sua - disse Mitridates. - Mal passem as nossas fronteiras, retaliaremos. Quero as esquadras armadas e equipadas dos homens necessários, quero os exércitos preparados para avançarem. Se os Romanos pensam apoderar-se do Ponto, eu penso apoderar-me da Bitínia e da Província da Ásia. A Capadócia já é minha, e permanecerá minha porque tenho exércitos suficientes para deixar o meu filho Ariárates sozinho com as suas forças. - Os olhos verdes, ligeiramente protuberantes, fixaram-se em Aristião. - De que estás à espera, filósofo? Vai já para Atenas! Leva algum ouro do meu tesouro. Precisas dele para defenderes a nossa causa. Mas toma atenção! Que ninguém saiba que és meu agente!

- Eu compreendo, Poderoso Rei! Compreendo perfeitamente! exclamou Aristião, e logo abandonou a sala.

- Farnaces, Maçares, jovem Mitridates, jovem Ariárates, Arquelau, Pelópidas, Neoptolemo, Leónipo, ficam comigo - disse o rei. - Os outros podem ir-se embora.

Em Abril do ano em que Lúcio Cornélio Sila e Quinto Pompeu Rufo foram eleitos cônsules, começou a invasão romana da Galácia e do Ponto. Enquanto Nicomedes III chorava e suplicava que lhe permitissem regressar à Bitínia, o príncipe da Paflagónia, Pilaemenes, ordenava ao exército de Nicomedes que avançasse sobre Sinope. Mânio Aquílio, à frente da única legião de auxiliares romanos existente na Província da Ásia, atravessou a Frigia, tencionando atingir a fronteira do Ponto a norte do grande lago salgado, Tatá. Mânio Aquílio dispunha para tal de uma estrada comercial, o que significava que a sua viagem seria relativamente rápida. Caio Cássio, à frente de duas legiões de milicianos, avançou pelo vale do Meander e entrou depois na Frigia, escolhendo uma rota que o levava à pequena cidade comercial de Primnesso. Entretanto, Quinto Ópio seguira, por mar, de Tarso para Ataleia, e, à frente de duas legiões, atravessara depois a Pisídia, na direcção de uma região a oeste do lago Limnas.

Nos primeiros dias de Maio, o exército bitiniano penetrou no reino do Ponto e avançou até ao rio Amnias, um afluente do Hális que acompanhava a costa e rodeava Sinope. A estratégia de Pilaemenes consistia de uma marcha a partir do ponto de encontro entre o Amnias e o Hális, para norte, na direcção do mar, onde tencionava dividir as suas forças a fim de atacar Sinope e Amiso simultaneamente. Infelizmente, o exército bitínio deparou com um poderoso exército pôntico dirigido pelos irmãos Arquelau e Neoptolemo precisamente nas margens do Amnias e sofreu uma derrota esmagadora. A Bitínia perdeu tudo nessa batalha: tropas, armas, bagagens, acampamento. Só não perdeu o velho rei Nicomedes. De facto, Nicomedes tinha reunido um grupo de nobres e escravos em quem podia confiar e deixara o exército entregue ao seu fatídico destino, rumando de novo a Roma.

Pela mesma altura, Mânio Aquílio e a sua legião instalavam-se no alto de uma montanha que dava para o lago Tatá. A vista não o deixou muito animado. De facto, por toda a planície, espalhava-se um exército mais vasto que o lago, um exército que revelava, a todos os níveis, uma disciplina e uma auto confiança extraordinárias. Não, de facto aquilo não era uma horda de Germanos!, pensou Mânio Aquílio. Cem mil soldados de infantaria e cavalaria à espera que ele caísse nas suas garras. Com a rapidez de raciocínio de que só um general romano era capaz, Aquílio deu meia volta e tratou de se escapulir. Porém, ao aproximar-se do rio Sangário, não muito longe de Pessinunte - ah, o ouro de Pessinunte que para sempre lhe escapava! -, o exército do Ponto atacou as tropas romanas pela retaguarda, até que as devorou literalmente. Tal como o rei Nicomedes, também Aquílio abandonou o seu exército ao inevitável desastre, fugindo com os seus oficiais e os outros dois comissários pelas montanhas da Mísia.

Mitridates em pessoa comandou as tropas que deveriam encarregar-se de Caio Cássio. No entanto, o rei deixou-se dominar pelos seus sentimentos de insegurança. Tanto vacilou, tanto hesitou que não chegou a apanhar Cássio. O governador da Província da Ásia, que soubera entretanto das derrotas das tropas da Bitínia e da legião chefiada por Aquílio, recuou imediatamente, seguindo pela via comercial que passava pela cidade de Apameia, cidade onde se instalou, protegido por inexpugnáveis muralhas. Quinto Ópio também soube das notícias das derrotas e instalou-se em Laodiceia, cidade que ficava precisamente no caminho percorrido por Mitridates.

Desta forma, o exército pôntico, comandado pelo rei, deparou com Quinto Ópio antes de localizar Cássio. Disposto a aguentar o cerco, Ópio depressa descobriu que os habitantes da cidade não partilhavam os seus pontos de vista. De facto, o povo da cidade, mal viu o exército do Ponto, abriu as portas ao rei Mitridates e entregou-lhe Quinto Ópio como se fosse uma oferta especial. As tropas da Cilícia puderam regressar às suas terras pelo mesmo caminho por onde tinham vindo, mas o rei deteve o governador, ordenando que o amarrassem a um poste na agora de Laodiceia. Rindo a bandeiras despregadas, o rei disse à população da cidade que enchesse Quinto Ópio de lixo, ovos podres, legumes deteriorados: só lhe podiam atirar coisas moles e fétidas. Nada de pedras, nem madeira. Porque o rei lembrava-se de que Pelópidas descrevera Quinto Ópio como um homem honrado. Ao fim de dois dias, Ópio foi libertado, sem que tivesse sofrido grandes danos físicos. O rei mandou-o então regressar a Tarso. A pé.

Quando soube do que sucedera a Quinto Ópio, Caio Cássio abandonou os seus milicianos em Apameia e, montado num cavalo com pouca sorte, seguiu a toda a velocidade na direcção de Mileto, cidade que ficava na costa. Não levava ninguém consigo. Conseguiu evitar as tropas pônticas que se encontravam à volta de Laodiceia, mas a sua identidade foi descoberta na cidade de Nisa, tendo sido imediatamente levado à presença do etnarca, Querémon. Subitamente aliviado e deliciado, Cássio descobriu que Querémon era um ardente partidário de Roma e que, por isso, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para o ajudar. Lamentando não poder ficar muito tempo em Nisa, Cássio comeu uma boa refeição e partiu, num cavalo novo, para Mileto, onde encontrou um navio rápido que aceitou levá-lo a Rodes. Tendo chegado em segurança a Rodes, deparou então com a mais difícil de todas as suas tarefas naquela até então breve guerra - a redacção de uma carta capaz de convencer o Senado e o Povo de Roma da gravidade da situação na Ásia, mas que não fizesse a mínima referência às suas próprias fraquezas. Este trabalho de Hércules não era para um dia - nem para um mês. Aterrorizado, ou traindo a sua culpabilidade, Caio Cássio Longino foi adiando a carta.

Em fins de Junho, toda a Bitínia e toda a Província da Ásia tinham caído nas mãos do rei Mitridates. Com raras excepções: certas comunidades mais intrépidas, dispondo de poderosas fortificações e vivendo em locais inacessíveis. Duzentos e cinquenta mil soldados do Ponto instalaram-se então nas verdes planícies que iam desde Nicomédia a Milasa. Como a grande maioria desses soldados eram bárbaros do Norte - Cimérios, Citas, Sármatas, Roxolanos, Caucasianos -, só o medo que sentiam perante Mitridates os impedia de devastarem tudo o que viam pela frente.

Os diversos portos e cidades jónios e dórios da Província da Ásia fizeram o possível por tratar o ditador oriental com todas as honras que ele merecia. O ódio acumulado durante quarenta anos de ocupação romana dava agora lugar a uma imensa cumplicidade com o rei Mitridates, que encorajava os sentimentos anti-romanos proclamando que, naquele ano, e nos cinco anos seguintes, ninguém pagaria qualquer taxa, imposto ou tributo. Aqueles que deviam dinheiro a romanos ou a italianos ficavam livres das suas dívidas. Em consequência de tais medidas, a Província da Ásia concluiu que a vida sob o domínio pôntico seria melhor do que sob o domínio romano.

O rei desceu o Meander e seguiu depois para norte, ao longo da costa, na direcção de uma das suas cidades favoritas, Éfeso. Durante algum tempo residiu em Éfeso. E tornou-se ainda mais querido junto da população da Província da Ásia, ao proclamar que todos os milicianos que se rendessem seriam perdoados e libertados, além de receberem dinheiro suficiente para voltarem para as suas terras. Aqueles que mais odiavam Roma - ou que pelo menos mais manifestavam o seu ódio - foram nomeados para os cargos dirigentes em todas as cidades e distritos. As listas com nomes de simpatizantes ou funcionários dos Romanos não paravam de crescer: de facto, os informadores e denunciantes não faltavam.

No entanto, sob o júbilo e a bajulação, permanecia o terror daqueles que sabiam que os reis orientais eram sempre cruéis e caprichosos, que toda a amabilidade desses reis era aparente, superficial. Aquele que hoje era premiado, amanhã poderia ficar sem a cabeça. E ninguém saberia dizer quando seria esse amanhã.

Em fins de Junho, em Éfeso, o rei do Ponto emitiu três ordens, todas elas secretas, embora a terceira fosse a mais secreta de todas.

Ah, o prazer que lhe dava todo aquele cerimonial que envolvia a redacção e o envio das suas instruções! O prazer que lhe dava dizer para onde devia ir cada um dos seus generais, o que cada um deles devia fazer - ah, os seus bonecos iam fartar-se de dançar! Os outros, as criaturas inferiores, que definissem e redifinissem os pormenores os pormenores não eram para ele, o rei, porque ao rei cabia definir, desenhar, tecer, a teia que tudo envolvia. E que teia aquela! Cantarolando e assobiando, Mitridates comandou o seu exército de várias centenas de escribas que, no espaço de apenas um dia, tinham de realizar um trabalho que exigia deles toda a dedicação e atenção. E quando a última carta foi selada e entregue ao último correio, Mitridates mandou os escribas para o pátio do palácio e ordenou que os seus guarda-costas os degolassem. Homens mortos não revelavam segredos!

A primeira ordem foi para Arquelau que, na altura, não gozava de grande simpatia junto de Mitridates; com efeito, Arquelau tentara conquistar a cidade de Magnésia, mas sofrera uma derrota esmagadora e ele próprio ficara gravemente ferido. No entanto, Arquelau continuava a ser o melhor general do Ponto: por isso a primeira ordem era para ele. Apenas uma carta. Nessa carta, Mitridates ordenava-lhe que assumisse o comando de todos os navios pônticos e deixasse o mar Euxino e penetrasse no mar Egeu no final do Gamelião, ou seja, um mês depois; Gamelião correspondia ao Quinctilis romano.

A segunda ordem ia também numa única carta. Era dirigida ao filho do rei, o jovem Ariárates (que não era o Ariárates rei da Capadócia), e ordenava-lhe que, no final do Gamelião, à frente de um exército de cem mil homens, atravessasse o Helesponto e penetrasse na Macedónia Oriental.

A última ordem seguiu em várias centenas de cartas, enviadas para todas as cidades, comunidades ou distritos desde Nicomédia, na Bitínia, até Cnido na Caria, ou Apameia, na Frigia, e dirigidas ao magistrado supremo de cada uma dessas divisões administrativas, Mitridates decretava que todos os cidadãos romanos, latinos e italianos vivendo na Ásia Menor - homens, mulheres e crianças - deveriam ser mortos, tal como os seus escravos, no final do Gamelião.

 

Nota: Mês de Julho (N. do T.)

 

Esta última ordem era a sua favorita; quando pensava nela, soltava um risinho perverso, satisfeito, abraçava-se, pulava. Passado o mês do Gamelião deixaria de haver romanos na Ásia Menor. E quando acabasse a guerra com Roma, não restaria um único romano vivo, desde as colunas de Hércules até à primeira catarata do Nilo. Roma desapareceria do mapa.

No início do Gamelião, escondendo bem escondidos os seus segredos, o rei do Ponto deixou Éfeso e seguiu para norte, para a cidade de Pérgamo, onde o esperava um prazer muito especial.

Os outros dois comissários e todos os oficiais de Mânio Aquílio tinham resolvido fugir para Pérgamo, mas Mânio Aquílio fora para Mitilene, na ilha de Lesbos, de onde tencionava partir para Rodes, onde, ao que soubera, Caio Cássio se encontrava escondido. Porém, mal desembarcou em Lesbos, adoeceu com febre entérica e não pôde prosseguir viagem. Quando os Lésbios souberam da queda da Província da Ásia (de que faziam parte oficialmente), resolveram meter o procônsul romano num navio e enviá-lo ao rei Mitridates, em sinal de admiração e respeito.

Quando chegou ao pequeno porto de Atarneus, frente a Mitilene, Mânio Aquílio foi preso ao arção anterior da sela de um cavalo montado por um bastardo e assim levado até Pérgamo, onde o rei esperava impaciente pela sua prenda. Tropeçando e caindo a todo o momento, bombardeado com todo o tipo de lixo, escarnecido, insultado, conseguiu, apesar de tudo, chegar vivo ao fim da viagem. Mas quando o viu em Pérgamo, Mitridates apercebeu-se imediatamente de que Aquílio não resistiria muito mais tempo se continuasse a ser vítima daquele tratamento. E isso estragaria os deliciosos planos que Mitridates tinha congeminado para o procônsul romano!

Assim, o procônsul romano foi deitado e amarrado em cima do lombo de um burro, com a cara virada para o rabo do animal, e assim transportado impiedosamente por toda a zona à volta de Pérgamo; era preciso mostrar aos cidadãos daquela antiga capital romana o que o rei do Ponto sentia em relação a um procônsul romano, e também que não temia retaliações.

Finalmente, reduzido a uma sombra de si mesmo, Mânio Aquílio foi conduzido ao responsável pelos seus tormentos. Pomposamente instalado num trono de ouro montado num sumptuoso estrado, no meio da ágora de Pérgamo, o rei fitou o homem que se tinha recusado a mandar embora o exército da Bitínia, o homem que não autorizara Mitridates a defender o seu reino, o homem que se recusara a permitir que Mitridates apresentasse directamente queixa ao Senado e ao Povo de Roma.

Foi quando olhou para aquela forma vergada, pútrida, em que se transformara Mânio Aquílio, que o rei Mitridates do Ponto perdeu o último vestígio do medo que sentira em relação a Roma. Medo de quê? Por que razão recuara perante aquele ridículo poltrão? Ele, Mitridates do Ponto, era muito mais poderoso que Roma! Quatro pequenos exércitos, menos de vinte mil homens! Era Mânio Aquílio quem personificava Roma - e não Caio Mário, nem Lúcio Cornélio Sila. A ideia que o rei fazia de Roma era um mito perpetuado por dois romanos que nada tinham de típico! O verdadeiro Romano era aquele que ali estava aos seus pés.

- Procônsul! - gritou o rei.

Aquílio levantou a cabeça, mas não tinha forças para falar.

- Procônsul de Roma, decidi dar-te o ouro que me querias roubar. Os guardas conduziram então Mânio Aquílio até ao estrado,

obrigando-o a sentar-se num pequeno banco colocado a alguma distância à esquerda do rei. Mânio Aquílio tinha os braços presos ao corpo com correias. Um dos guardas segurou nas correias do lado direito e outro nas do lado esquerdo, impedindo-o assim de fazer o mínimo movimento que fosse.

Surgiu então um ferreiro com um cadinho aquecido ao rubro, apertado entre as extremidades de uma tenaz. Era um cadinho que podia conter várias taças de metal fundido; evolava-se dele muito fumo e um cheiro corrosivo.

Um terceiro guarda postou-se atrás de Aquílio, pegou-lhe pelo cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás; com a outra mão, o guarda apertou-lhe cruelmente o nariz. Para respirar, Mânio Aquílio teria de abrir a boca. Mal a abriu, o ferreiro inclinou o cadinho e fez com que deslizasse um fio de belíssimo ouro líquido para dentro daquela boca que ansiava por ar. Um fio de ouro líquido que não parava de deslizar apesar dos seus berros de dor, apesar das suas convulsões, das suas vãs tentativas para se levantar do banco. Um fio de ouro líquido que só parou de deslizar quando Mânio Aquílio morreu, a boca, o queixo, o peito, transformados numa cascata de ouro solidificado.

- Abram-no e tirem-lhe todo o ouro que ele engoliu - disse Mitridates, que vigiou ciosamente toda a operação.

- Agora atirem a carcaça aos cães - ordenou por fim o rei do Ponto, levantando-se do trono, descendo do estrado e passeando despreocupadamente entre os restos estropiados de Mânio Aquílio, procônsul de Roma.

Tudo corria às mil maravilhas! Ninguém sabia isso melhor que o rei Mitridates que, enquanto esperava em Pérgamo pelo fim do mês do Gamelião, se entregava a repousantes passeios pela montanha que dominava a cidade. Mitridates recebera entretanto uma carta de Aristião. Segundo este, em Atenas as coisas iam de vento em popa.

Nada nos deterá agora, poderoso Mitridates, pois Atenas mostrará à Grécia o caminho a seguir. Dei início à minha campanha falando do antigo poder e riqueza de Atenas, pois penso que um povo que já está longe do apogeu recorda os dias de glória com uma nostalgia muito aguda; por isso, é fácil seduzi-lo com promessas de um regresso a esses dias de glória. Foi nesse sentido que falei na ágora há seis meses, atraindo partidários para a nossa causa e lentamente reduzindo ao silêncio a oposição. Consegui mesmo convencer a minha audiência de que Cartago se tinha aliado ao Ponto contra Roma. E eles acreditaram em mim! Diz-se que os Atenienses são os homens com mais instrução que há no mundo. Pois nenhum deles sabia que Cartago foi destruída por Roma há cerca de cinquenta anos. Espantoso.

Escrevo porque tenho o prazer de te anunciar, Poderoso Rei, que acabei de ser eleito chefe militar de Atenas. Foi-me também concedido o poder de escolher os meus colegas. Como é evidente, escolhi homens que acreditam que a salvação do nosso mundo grego está nas tuas mãos, Grande Rei, e que anseiam pelo dia em que esmagarás Roma com as tuas botas de pele de leão.

Atenas é agora completamente minha, incluindo o Pireu. Infelizmente, os elementos romanos e os meus inimigos confessos fugiram antes que pudesse deitar-lhes a mão, mas aqueles que foram idiotas o bastante para ficar (na sua maior parte, atenienses muito ricos que nunca acreditaram que corriam perigo) já não vivem. Confisquei todas as propriedades pertencentes aos exilados e aos mortos, e integrei-as num fundo destinado a financiar a nossa guerra contra os Romanos.

Terei de cumprir o que prometi aos meus votantes, mas isso não perturbará a tua campanha, Grande Rei. Prometi reconquistar a ilha de Delos, que ainda pertence aos Romanos. A ilha de Delos é um empório magnífico e foi a sua riqueza que tornou Atenas tão poderosa. No início do mês do Gamelião, o meu amigo Apelicon (um almirante excelente e um general experiente) conduzirá uma expedição contra Delos. A ilha cairá facilmente nas nossas mãos.

E por agora é tudo, meu Senhor e Rei. A cidade de Atenas é tua e o porto do Pireu está ao dispor dos teus navios sempre que dele precises.

E o rei precisava de facto do porto do Pireu, e também da cidade de Atenas, porque, no final do Gamelião, os navios de Arquelau passaram o Helesponto e avançaram pela metade ocidental do mar Egeu. Eram trezentas galeras com três ou mais bancos de remadores, mais de uma centena de birremes, e mil e quinhentos navios de transporte cheios de militares e marinheiros. Arquelau não prestou a mínima atenção ao litoral da Província da Ásia, pois todas as suas cidades se encontravam já em poder de Mitridates. A sua intenção era instalar-se na Grécia, a fim de que a Macedónia ficasse esmagada entre dois exércitos do Ponto - o seu próprio exército, sediado na Grécia, e o do jovem Ariárates, sediado no braço oriental da Macedónia.

O jovem Ariárates cumprira também as datas fixadas pelo pai, o rei do Ponto. Em fins de Julho, atravessou o Helesponto com os seus cem mil homens e deu início a uma marcha ao longo da estreita faixa costeira da Macedónia Trácia, usando a Via Egnácia, essa magnífica estrada construída pelos Romanos. Não encontrou a mínima oposição. Montou bases permanentes em Abdera, no mar, e em Filipos, no interior, e continuou para ocidente, na direcção da primeira cidade importante ocupada pelos Romanos, a cidade de Tessalónica.

Em fins de Julho, os cidadãos romanos, latinos e italianos residentes na Bitínia, na Província da Ásia, na Frígiae na Pisídia eram mortos por ordem de Mitridates. Para realizar a mais secreta das suas ordens, o rei do Ponto usara de grande astúcia. Em vez de recorrer aos seus homens, o rei ordenara que fossem os gregos, jónios ou dórios, a executar a matança. Muitas foram as regiões que acolheram o decreto real com alegria e que, por isso, não tiveram a mínima dificuldade em reunir voluntários para a carnificina. Contudo, noutras terras, foi impossível convencer fosse quem fosse a matar os romanos. Em Trales, o etnarca foi obrigado a contratar mercenários frígios para que a ordem real fosse cumprida; outras terras seguiram-lhe o exemplo, esperando assim que as culpas pelo genocídio fossem atribuídas a estrangeiros.

Oitenta mil romanos, latinos e italianos e setenta mil escravos morreram num único dia. A carnificina estendeu-se desde Nicomédia, na Bitínia, até Cnido, na Cária. Ninguém foi poupado; ninguém conseguiu esconder-se, ninguém conseguiu fugir; ninguém ajudou ninguém a esconder-se ou a fugir: o terror que Mitridates infundia nos seus súbditos abafava toda a compaixão que pudesse haver nos corações dos homens. Se Mitridates tivesse recorrido aos seus soldados para executar a matança, todas as culpas cairiam sobre ele; assim, partilharia as culpas com as comunidades gregas. E estas comunidades entenderam perfeitamente o raciocínio do rei. De repente, a vida com o rei Mitridates do Ponto deixara de parecer melhor que a vida sob o domínio romano, apesar da suspensão dos impostos.

Muitos dos perseguidos procuraram refúgio nos templos, mas nenhum templo lhes deu abrigo; eram postos na rua e as suas invocações aos deuses não comoviam os assassinos. Alguns agarravam-se aos altares e às estátuas: os seus perseguidores não hesitavam e cortavam-lhes as mãos e depois arrastavam-nos para fora dos templos a fim de lhes darem a machadada final.

Mas o pior de tudo era a última cláusula da terceira ordem secreta do rei Mitridates: nenhum dos mortos seria enterrado. Os cadáveres eram levados para locais situados o mais longe possível das cidades e aí ficavam a apodrecer. De preferência para ravinas, vales estreitos, para os picos das montanhas ou para o fundo do mar. Oitenta mil romanos, latinos e italianos e setenta mil escravos. Cento e cinquenta mil pessoas. Os animais que apreciavam carne putrefacta tiveram uma bela ração nesse mês de Agosto, pois nenhuma comunidade se atreveu a desobedecer e a enterrar as suas vítimas; foi com um prazer indiscritível que o rei Mitridates deu longos passeios de cidade em cidade, para contemplar as imensas pilhas de cadáveres.

Poucos foram os romanos que escaparam à sentença de morte: precisamente os exilados, homens a quem tinha sido retirada a cidadania e que haviam sido condenados a não voltar a Roma. E entre eles, contava-se um tal Públio Rutílio Rufo, amigo dos grandes homens de Roma, um cidadão de Esmirna honrado e respeitado, autor de retratos pouco favoráveis de homens como Catulo César ou Metelo Nurnídico, o Suíno.

No geral, concluiu o rei Mitridates no início de Agosto, as coisas não podiam ter corrido melhor. Os seus sátrapas estavam repimpadamente sentados nos tronos dos governadores desde Mileto e Andramítio na Província da Ásia, e ao longo da fronteira na Bitínia. A Bitínia não teria mais reis. O único candidato a quem Mitridates poderia dar o trono estava morto. Depois de regressar ao Ponto, Sócrates irritara tanto o rei com as suas queixas que Mitridates acabou por mandar matá-lo. Toda a Anatólia a norte da Lícia, da Panfília e da Cilícia, pertencia agora ao Ponto, e o resto depressa cairia em seu poder.

Mas o que mais agradara ao rei fora o massacre dos romanos, latinos e italianos. Sempre que passava pelos locais onde haviam sido empilhados os cadáveres, rejubilava, resplandecia de prazer, desatava a rir como um louco. Não fizera qualquer distinção entre romanos e italianos, apesar de saber que Roma e Itália se encontravam em guerra. Um fenómeno que Mitridates conhecia melhor que ninguém - irmão contra irmão, e o prémio era o poder.

Sim, tudo corria às mil maravilhas. O seu filho, o jovem Mitridates, era regente no Ponto (embora o prudente rei tivesse levado consigo a mulher e os filhos do jovem regente, para que este se portasse bem na sua ausência); Ariárates era rei da Capadócia; a Frigia, a Bitínia, a Galácia e a Paflagónia eram, todas elas, satrapias reais, governadas por alguns dos seus filhos mais velhos; e o seu genro Tigranes da Arménia tinha toda a liberdade para fazer o que quisesse a leste da Capadócia, desde que não pisasse os pés ao rei e aos interesses do rei do Ponto. Tigranes que conquistasse a Síria e o Egipto, isso mantê-lo-ia ocupado. Mitridates franziu o sobrolho. No Egipto a populaça não toleraria nenhum rei estrangeiro. Seria preciso encontrar um Ptolemeu fantoche. O que não seria nada fácil. Mas por certo as rainhas do Egipto seriam descendentes de Mitridates; nenhuma filha de Tigranes poderia usurpar um trono que estava destinado a uma filha de Mitridates.

O mais impressionante de tudo era o êxito das esquadras do rei desde que se ignorasse o miserável fracasso de Aristião e do seu ”magnífico almirante e general experiente” chamado Apelicon; a invasão de Delos fora de facto um fiasco. Porém, depois de ter conquistado as ilhas das Cíclades, Arquelau ocupou Delos e ordenou a matança dos vinte mil romanos, latinos e italianos que viviam na ilha. O general pôntico ofereceu então Delos a Atenas, a fim de garantir a permanência de Aristião no poder; as esquadras do Ponto precisavam do Pireu: esse porto constituía a sua base ocidental.

Toda a Eubeia se encontrava agora em poder do Ponto, tal como a ilha de Cíato e uma grande parte da Tessália, incluindo dois portos vitais: Demetríade e Metone. Em consequência das suas conquistas no Norte da Grécia, as forças do Ponto podiam agora bloquear as estradas que iam da Tessália à Grécia Central, um bloqueio que acabou por levar a maior parte do resto da nação grega a submeter-se a Mitridates. O Peloponeso, a Beócia, a Lacónia e toda a Ática aclamavam agora o rei do Ponto, o homem que os libertara dos Romanos - e, como meros espectadores, ficaram à espera de ver Mitridates esmagar a Macedónia com a mesma facilidade com que se esmaga uma barata.

Mas o esmagamento da Macedónia revelou-se impossível, pelo menos na altura. Apanhados entre uma Grécia subitamente rebelde e os exércitos do Ponto que avançavam pela Via Egnácia, Caio Sêncio e Quinto Brútio Sura não entraram em pânico, não se conformaram com a eventualidade de uma derrota. Apressaram-se a convocar o máximo de auxiliares que era possível, e juntaram-nos depois às duas legiões romanas, que eram tudo o que a Macedónia tinha para contrariar o avanço de Mitridates. O reino do Ponto não conquistaria a Macedónia sem pagar um preço bem amargo.

O final do Verão começou a tornar-se algo maçador para o rei Mitridates, agora perfeitamente instalado em Pérgamo e senhor incontestado da Ásia Menor. Só havia uma coisa interessante para fazer: visitar os diversos montes de cadáveres, e ele já tinha visto os mais imponentes desses monumentos. Excepto os da região que acompanhava mais a norte o rio Caíco, cujas margens banhavam Pérgamo. Havia duas cidades na Província da Ásia chamadas Estratoniceia. A maior dessas cidades, situada na Cária, continuava teimosamente a aguentar o cerco montado pelas forças do Ponto. A mais pequena ficava também nas margens do Caíco, mas mais para o interior do que Pérgamo, e manifestara a sua total lealdade a Mitridates. por isso, quando o rei visitou a cidade, o povo saiu à rua em massa e aplaudiu-o vibrantemente e atirou-lhe pétalas de flores à medida que ele avançava pelas ruas.

Entre a multidão, Mitridates reparou numa rapariga grega chamada Monima, e mandou-a chamar imediatamente. Tudo nela era tão pálido que o seu cabelo parecia branco e as sobrancelhas e pestanas invisíveis: tais traços davam-lhe uma beleza particularmente estranha; o rei examinou-a atentamente e logo a incluiu no seu rol de esposas. Não deparou com a mínima oposição do pai dela, Filopoemon, tanto mais que o levou a ele e a Monima para Éfeso, onde o nomeou sátrapa da região.

Entregando-se às diversões que tornavam Éfeso famosa - e às diversões que a sua nova mulher albina lhe proporcionava -, o rei consagrou pouco tempo aos assuntos bélicos, limitando-se a enviar uma mensagem a Rodes, exigindo que se rendesse e que entregasse o governador refugiado, Caio Cássio Longino. A resposta, rapidamente enviada, era um firme ”não” a ambas as exigências; Rodes era amiga e aliada do povo romano e honraria os seus compromissos, se necessário até à morte.

Pela primeira vez desde que iniciara a sua campanha, Mitridates teve um ataque de cólera. Deixando a corte pôntica e os seus admiradores de Éfeso a tremer de medo, o rei desatou a arengar disparatadamente na câmara de audiências, enquanto andava de um lado para o outro freneticamente. Quando ficou mais calmo, sentou-se no trono com um ar ameaçador, a mão segurando o queixo, os lábios em jeito de amuo, as bochechas molhadas pelas lágrimas.

A partir desse momento, perdeu todo o interesse pelas várias iniciativas que tinha lançado; as suas energias concentraram-se unicamente na submissão de Rodes. O atrevimento! Dizerem-lhe que não a ele! Uma coisa tão pequena como Rodes pensaria que era capaz de lutar contra o poder do Ponto? Bom, depressa perceberia que não tinha outra alternativa senão render-se.

As esquadras do Ponto estavam demasiado envolvidas nas manobras da metade ocidental do Egeu para disponibilizarem um ou dois navios para uma campanha tão insignificante como aquela; por isso, o rei mandou que Esmirna, Éfeso, Priena, Mileto, Halicarnasso e as ilhas de Quios e Samos lhe dessem os navios de que precisava. Quanto a tropas terrestres, tinha que chegasse, pois mantivera dois exércitos na Província da Ásia; porém, graças à inflexível resistência das cidades lícias de Patara e Termesso, não podia conduzir essas tropas para o local de onde deveria lançar a invasão de Rodes - ou seja, para as praias e enseadas da Lícia. A marinha de Rodes tinha uma reputação formidável, e encontrava-se concentrada na parte oeste da ilha, que dava para o mar que banhava Halicarnasso e Cnido. Como não podiam usar a Lícia, as forças de invasão de Mitridates teriam forçosamente de seguir as rotas marítimas que conduziam directamente à parte ocidental de Rodes.

Mitridates requisitou centenas de navios de transporte e o máximo de galeras de guerra que a Província da Ásia pudesse fornecer, ordenando que todos os navios se reunissem em Halicarnasso. Para essa mesma cidade, de que Caio Mário tanto gostava, conduziu um dos seus exércitos, que seria distribuído por vários navios. E no final de Setembro fez-se ao mar. Mitridates ia no seu gigantesco navio de dezasseis bancos de remadores. Era um navio que se distinguia no meio daquela multidão de navios, não só pelo tamanho, mas também pelo trono dourado e cor de púrpura colocado na popa, sob um dossel. Mitridates sentava-se nesse trono, senhor de tudo o que via à sua volta, deleitado com tanto e tão extraordinário poder.

Por muito pesados e lentos que fossem, os navios de guerra singravam mais rapidamente que os navios de transporte, uma colecção heterogénea de cargueiros que não estavam habituados a desviar-se do litoral. Assim, quando os navios mais rápidos da esquadra passaram a ponta da península de Cnido e entraram no mar dos Cárpatos, a grande massa dos barcos espalhava-se como um colar de contas até Halicarnasso, onde o último dos navios de transporte acabava de deixar o porto, cheio de soldados aterrorizados.

Composta por trirremes leves e muito rápidos, a esquadra de Rodes apareceu no horizonte e seguiu imediatamente na direcção da improvisada esquadra pôntica. A marinha de Rodes nunca utilizaria navios tão pesados como aquele em que seguia o rei Mitridates. Esses navios enormes levavam muita gente e muita artilharia; mas os ródios consideravam que a artilharia era pouco eficaz nas batalhas marítimas e a facilidade com que movimentavam os seus navios obstava a que os navios inimigos os abordassem com facilidade. A marinha de Rodes devia a sua reputação à velocidade e à capacidade de manobra dos seus navios, capazes de se movimentarem com a maior facilidade e rapidez entre navios enormes e muito pesados; quando se tratava de abrir brechas nos outros navios com o aríete, os seus remadores conseguiam remar com tal eficácia e rapidez que a velocidade acabava por compensar largamente a falta de peso; por outro lado, o esporão de carvalho, reforçado a bronze, de um trirreme ródio era capaz de abrir enormes brechas mesmo num navio gigantesco como o de Mitridates. E abrir brechas nos navios inimigos era a única maneira de obter uma vitória decisiva no mar, diziam os ródios.

Quando os navios do Ponto avistaram a esquadra ródia, tudo prenunciava uma batalha encarniçada. No entanto, ao fim de algum tempo, poderia concluir-se que Rodes pretendia apenas fazer uma breve investida, dado que, depois de ter deixado os marinheiros pônticos tontos com a velocidade dos seus navios, os ródios deram meia volta e foram-se embora, limitando-se a fazer alguns rombos em duas galeras de cinco fileiras de remadores. Contudo, antes de abandonarem por completo a cena, os ródios conseguiram pregar ao rei Mitridates o maior susto da sua vida. Aquela era a primeira batalha naval do rei; até então, Mitridates limitara-se a navegar no Euxino, onde nem mesmo o mais arrojado dos piratas se teria atrevido a atacar um navio da esquadra pôntica.

Excitado e fascinado, o rei estava sentado no seu trono dourado e púrpura, os olhos numa constante agitação, procurando não perder nada do confronto; não lhe passou nunca pela cabeça que ele próprio podia correr perigo. Estava todo inclinado para a esquerda para apreciar as proezas de uma soberba galera ródia quando, de repente, sentiu o seu navio guinar, gemer e tremer convulsivamente, e ouviu o tremendo ruído causado por muitos remos que se partiam como ramos, de mistura com gritos de terror.

Durou apenas segundos o pânico que paralisou por completo o rei Mitridates: mas durou demasiado tempo. Com efeito, foi tal o terror que dele se apoderou que Mitridates, num ápice, ficou todo borrado. Havia fezes sólidas por todo o lado, de mistura com uma verdadeira torrente de aguadilha, inundando fetidamente a sua almofada púrpura incrustada a ouro, as pernas do trono, as suas próprias pernas, o pêlo de leão das suas botas, o chão à sua volta. E não podia esconder-se! Não podia esconder-se dos olhos espantados dos seus oficiais e assessores, não podia esconder-se dos marinheiros que, a meia-nau, tinham olhado para cima, instintivamente, para se certificarem de que o rei estava em segurança.

Foi então que Mitridates descobriu que o seu navio não tinha sofrido nenhuma brecha. Um dos seus navios, dotado também de dezasseis fileiras de remadores, tinha chocado de lado com o navio real e quebrado todos os remos desse lado, bem como os seus próprios remos.

Era espanto o que via nos olhos daqueles homens? Ou troça? Os olhos esbugalhados do rei fitaram com assustadora raiva as faces dos homens que o rodeavam; e todos esses rostos ficaram primeiro vermelhos e depois pálidos como taças transparentes de súbito esvaziadas do seu vinho.

- Eu estou doente! - gritou. - Passa-se qualquer coisa comigo! Estou doente! Ajudem-me, idiotas!

De repente, todos acorreram ao rei. Como por artes mágicas, surgiu um sem-número de panos. Dois homens mais expeditos pegaram em baldes e lavaram o rei com água do mar. Foi quando sentiu a água fria nas pernas que Mitridates se lembrou da melhor maneira de enfrentar aquela terrível situação; de súbito, atirando a cabeça para trás, desatou a rir à gargalhada.

- Depressa, idiotas, limpem-me bem limpo!

O rei despiu então a saia de pteryges douradas, o saiote de cota de malha dourada que tinha por baixo da saia e a túnica púrpura que trazia por baixo do saiote, exibindo umas coxas poderosas, umas nádegas rijíssimas - e um membro enorme, a que devia o nascimento de meia centena de robustos filhos. Já completamente limpo, tirou a roupa que ainda tinha no corpo e pôs-se completamente nu no alto da popa do navio, mostrando à estupefacta tripulação que o rei do Ponto era de facto um espécime magnífico. No meio das suas muitas piadas e gargalhadas, o rei agarrava de quando em quando no sexo e nos testículos e soltava uns gemidos de prazer para que a cena resultasse mais.

Porém, pouco tempo depois, quando a esquadra ródia já tinha desaparecido e os dois navios pônticos já estavam separados, e no trono cuidadosamente limpo havia uma almofada nova, o rei, vestido de fresco, chamou o capitão do navio à sua presença.

- O vigia e o piloto deste navio, capitão. Quero que lhes cortem as línguas e os testículos e as mãos e que lhes arranquem os olhos. Depois, soltem-nos e dêem-lhes umas tijelas de pedintes - disse Mitridates. - Quanto ao navio que nos abalroou, o navio que veio da ilha de Quios, quero o mesmo castigo aplicado ao vigia, ao piloto e ao capitão. Todos os outros homens que se encontram a bordo desse navio serão mortos. E nunca, mas nunca!, deixes que o meu navio fique próximo de um navio de Quios, dessa maldita ilha de Quios! Começas agora a perceber, capitão?

O capitão engoliu em seco, fechou os olhos.

- Sim, Grande Rei. Eu percebo - pigarreou depois e, heroicamente, decidiu-se a fazer a inevitável sugestão. - Poderoso Rei, tenho de ir a terra buscar mais remos. Os remos sobressalentes não chegam. Não podemos continuar com os remos que temos.

O rei pareceu receber com satisfação uma tal notícia. Numa voz afável, perguntou:

- E onde achas que devemos ir?

- Ou a Cnido ou então a Cós. Para sul é que não.

Nos olhos do rei pareceu surgir um interesse novo, algo que o distraía da humilhação pública por que acabava de passar.

- Cós! - exclamou. - Vamos então para Cós! Tenho uma questão a resolver com os padres do Asclepeion. Eles deram asilo a romanos. E além disso gostaria de ver os tesouros deles. E o ouro. Sim, capitão, vamos para Cós.

- O príncipe Pelópidas deseja ver-te, Grande Rei.

- Se me deseja ver, de que é que está à espera?

Naquele momento, o rei constituía ainda um perigo para quem quer que se abeirasse dele, embora fosse sem dúvida mais temível quando se ria e não estava divertido. Qualquer coisa poderia, de um instante para o outro, pô-lo fora de si: uma palavra de que não gostasse, um olhar que o irritasse, uma sugestão que não lhe agradasse. Pelópidas não demorou mais que um segundo a aparecer, o que deixou o rei perfeitamente aterrado. No entanto, não podia mostrar a Pelópidas o que sentia naquele momento.

- Então, o que é que se passa?

- Grande Rei, ouvi dizer que ordenaste que este navio rumasse a Cós, a fim de ser reparado. Permites que vá para outro navio e que avance na direcção de Rodes? Suponho que desejarás que eu esteja presente quando as nossas tropas desembarcarem, a menos que queiras tu mudar de navio. Por favor, Poderoso Rei, peço as tuas instruções.

- Sim, vai para Rodes. Desembarca onde quiseres. Mas não muito longe da cidade de Rodes, para não cansar os homens. Monta um acampamento e espera por mim.

Quando o navio de Mitridates, imponente com as suas dezasseis fileiras de remadores, se deteve ao largo de Cós, o rei deixou o capitão a tratar do problema dos remos, e deslocou-se a terra numa barcaça rápida. Acompanhado pelos seus guardas, dirigiu-se imediatamente ao santuário do deus da saúde, Asclépio, que ficava nos arredores da cidade; tão depressa andava que, quando chegou ao átrio do templo, ainda ninguém o tinha reconhecido. Já no átrio, perguntou em altos berros quem é que dirigia aquele templo - um insulto típico do rei do Ponto, já que sabia perfeitamente que o homem que dirigia o templo era o sumo sacerdote.

- Quem é este arrogante intruso? - perguntou um padre para outro.

- Sou o rei Mitridates do Ponto e vocês são homens mortos retorquiu o rei, que ouvira aquela observação.

Quando o sumo sacerdote chegou ao átrio, já os dois padres jaziam por terra, de cabeças cortadas. Muito inteligente e subtil, o sumo sacerdote adivinhara que o visitante era Mitridates, pois tinham-lhe dito que um macaco vestido com um traje dourado e púrpura andava aos berros no átrio, exigindo a sua presença.

- Bem-vindo ao templo de Asclépio em Cós, rei Mitridates - disse calmamente o sumo sacerdote, não revelando o mínimo sinal de medo.

- Ouvi dizer que dizes o mesmo aos romanos.

- Digo-o a toda a gente que aqui aparece.

- Mas não o podes dizer aos romanos, porque eu ordenei a morte de todos os Romanos.

- Se viesses pedir-me asilo, rei Mitridates, não to recusaria. O deus Asclépio não tem favoritos, e todos os homens precisam dele mais tarde ou mais cedo. É bom que nos lembremos disso. Ele é um deus da vida, não da morte.

- Muito bem. Nesse caso, aí tens o teu castigo - disse o rei, apontando para os dois padres mortos.

- Um castigo duas vezes maior do que deveria ter sido.

- Não me irrites mais, sumo sacerdote! Já chega! Vá, agora mostra-me os teus livros e não os livros que costumas mostrar ao governador romano.

O Asclepeion de Cós era a maior instituição bancária do mundo, depois do banco estatal do Egipto. Alcançara tal posição graças à perspicácia de uma longa dinastia de padres-administradores, dinastia que começara sob a égide dos Ptolemeus do Egipto, pois Cós fora em tempos uma possessão egípcia. Por isso, o seu desenvolvimento enquanto instituição bancária constituía um resultado lógico da evolução do sistema bancário egípcio. De início, o templo fora igual a todos os outros templos. Consagrado ao tratamento de doenças e à higiene em geral, o Asclepeion de Cós nascera da inspiração de alguns discípulos de Hipócrates e praticara inicialmente a arte da incubação - a cura de sono e a interpretação de sonhos, que continuavam, aliás, a ser praticados nos templos de Epidauro e Pérgamo. Mas com o passar do tempo e a ocupação da ilha pelos Ptolemeus do Egipto, o dinheiro transformara-se na grande fonte de rendimento do templo, e os padres tinham ficado mais ligados às coisas egípcias do que às coisas gregas.

Era um santuário enorme, com uma série de edifícios espalhados por parques maravilhosamente tratados. Não faltavam o ginásio, a ágora, as lojas, os banhos, a biblioteca, uma escola para os futuros padres, casas para os estudantes residentes, alojamentos para os escravos, um palácio para o sumo sacerdote, uma necrópole, recintos subterrâneos para as curas de sono, um hospital, o grande complexo bancário, e o templo ao deus Asclépio, situado no meio de um bosque de plátanos. A estátua de Asclépio não era revestida a ouro ou a ouro e marfim; fora feita com mármore branco de Paros pelo escultor Praxíteles, e mostrava um deus barbado, muito parecido com Zeus, apoiado num cajado enorme no qual se enroscava uma serpente. A mão direita, estendida, exibia uma tábua, e, aos seus pés, descansava um cão enorme.

Nícias tinha pintado a estátua de forma tão realista que, àquela luz esbatida, as vestimentas de Asclépio pareciam agitar-se sob a acção de movimentos tão precisos quanto naturais; os olhos do deus, de um azul muito vivo, cintilavam de uma alegria humana, de uma alegria que nada tinha de transcendente.

Mas nada daquilo fascinava o rei, que resolveu acabar com aquela visita guiada logo que decidiu que a estátua de Asclépio não valia nada e que, por isso, a deixaria onde estava. Depois, tratou de examinar os livros, e informou o sumo sacerdote de que tencionava confiscar os seguintes bens: todo o ouro romano depositado no templo, naturalmente; cerca de oitocentos talentos de ouro de um depósito a longo prazo doGrande Templo de Jerusalém, cujo sínodo era suficientemente astuto para manter o seu pé-de-meia de emergência a salvo das depredações dos Selêucidas e dos Ptolemeus; e os três mil talentos de ouro entregues ao templo catorze anos antes pela antiga rainha Cleópatra do Egipto.

- Parece que a rainha do Egipto também deixou três rapazes à tua guarda - disse Mitridates ao sumo sacerdote.

Mas o sumo sacerdote estava mais preocupado com o ouro do que com os rapazes, e retorquiu-lhe num tom que pretendeu frio, mais do que irado:

- Rei Mitridates, nós não guardamos aqui todo o ouro que os nossos clientes depositam. Nós emprestamo-lo!

- Mas eu não te pedi o ouro todo! - disse o rei, exasperado. - O que eu te pedi foi... bom, o que eu quero é isto: cinco mil talentos de ouro romano, três mil talentos de ouro egípcio, e oitocentos talentos de ouro judeu. Uma pequena percentagem do total que vem nos teus livros, sumo sacerdote.

- Mas se eu te der cerca de nove mil talentos de ouro, o templo ficará sem reservas!

- Que pena! - disse o rei, levantando-se da secretária onde tinha estado a examinar a contabilidade. - Dá-me imediatamente o que te peço ou verás o teu templo reduzido a pó. Ou melhor, não verás. Agora traz-me cá os três rapazes egípcios.

O sumo sacerdote cedeu: não tinha outra alternativa.

- Terás o teu ouro, rei Mitridates - disse ele, abatido. - Queres que os príncipes egípcios venham ter contigo aqui?

- Não. Prefiro vê-los à luz do dia.

Mitridates pretendia evidentemente escolher, de entre os três príncipes, o seu Ptolemeu fantoche; impacientemente, esperou pelos príncipes num jardim, à sombra de pinhos e cedros.

- Eles que fiquem ali - disse Mitridates, apontando para um sítio que ficava a alguns metros do pinheiro sob o qual se abrigava. - E tu, sumo sacerdote, anda cá. - Cumpridas estas directivas, o rei perguntou ao sumo sacerdote quem era o príncipe com um ar mais velho, um jovem que vestia um traje vaporoso.

- É o filho legítimo do rei Ptolemeu Alexandre do Egipto, e herdeiro do trono.

- Por que razão está ele aqui e não em Alexandria?

- A avó, que o trouxe para aqui, temia que o matassem. Obrigou-nos a prometer que o guardaríamos aqui até que ele herdasse o trono.

- Que idade tem ele?

- Vinte e cinco anos.

- E a mãe dele, quem era?

A influência egípcia que se fazia sentir no Asclepeion de Cós era tão nítida que, para falar do assunto, o sumo sacerdote usava um tom extremamente respeitoso; era evidente que, em sua opinião, a Casa de Ptolemeu era muito mais grandiosa que a Casa de Mitridates.

- A mãe dele era Cleópatra IV - respondeu ele.

- A que o trouxe para aqui?

- Não, essa era Cleópatra III, a avó dele. A mãe dele era filha de Cleópatra III e do rei Ptolemeu Pançudo.

- Quer dizer que ela casou com o filho mais novo do casal Alexandre?

- Em segundas núpcias. Primeiro foi casada com o filho mais velho, e teve uma filha dele.

- Ah, assim já faz sentido. Ouvi dizer que a filha mais velha casa sempre com o filho mais velho.

- Sim, esse é o costume, mas há desvios. A velha rainha detestava tanto o primogénito como a sua filha mais velha. De modo que obrigou-os a divorciarem-se. A jovem Cleópatra fugiu então para Chipre, onde se casou com o irmão mais novo, de quem teve este filho.

- E que lhe aconteceu a ela? - perguntou o rei, particularmente interessado.

- A velha rainha obrigou Alexandre a abandoná-la, de modo que ela fugiu para a Síria, onde se casou com Antíoco Ciziceno, que estava então em guerra com o seu primo direito, Antíoco Gripo. Depois da derrota de Ciziceno, foi esfaqueada até à morte no altar de Apolo em Dafne. Foi a sua própria irmã, e mulher de Gripo, quem a matou.

- Parece a história da minha família - comentou Mitridates, com um sorriso de todo o tamanho.

O sumo sacerdote não achou que fosse caso para brincadeiras e por isso prosseguiu a sua narrativa como se não tivesse ouvido aquela observação.

- A velha rainha conseguiu por fim expulsar o seu filho mais velho do Egipto, e mandou chamar Alexandre, pai deste jovem, para que partilhasse com ela o poder. Este jovem que aqui vês foi para o Egipto com o pai. No entanto, Alexandre tinha medo da mãe e odiava-a. Talvez ela soubesse o que a esperava. O que é certo é que, há catorze anos, apareceu aqui em Cós com vários navios carregados de ouro e três rapazes. Pediu-nos que tomássemos conta dos rapazes e do ouro. Pouco tempo depois de ter voltado ao Egipto, o rei Ptolemeu Alexandre matou-a. - O sumo sacerdote suspirou; era evidente que gostara da velha rainha Cleópatra, a terceira com esse nome. - Depois, Alexandre casou com a sobrinha, Berenice, a filha do seu irmão mais velho, Soter, e da jovem Cleópatra que fora mulher de ambos.

- De maneira que neste momento o rei Ptolemeu Alexandre reina no Egipto com a sua sobrinha, a rainha Berenice, que é tia e meia-irmã deste jovem. É isso?

- Não, infelizmente não! Os súbditos de Ptolemeu Alexandre depuseram-no há seis meses. Ele morreu numa batalha naval quando tentava reconquistar o trono.

- Então este jovem devia ser agora o rei do Egipto!

- Não - retorquiu o sumo sacerdote, tentando ocultar o prazer que experimentava por confundir aquele intruso. - O irmão mais velho do rei Ptolemeu Alexandre continua vivo. Depois de depor Ptolemeu Alexandre, o povo foi buscar Ptolemeu Soter para o substituir. E é Ptolemeu Soter quem reina neste momento no Egipto, com a sua filha Berenice como rainha, embora ele não possa evidentemente casar com ela. Os Ptolemeus só podem casar-se com irmãs, sobrinhas ou primas.

- Soter não teve outra mulher depois de a velha rainha o ter obrigado a abandonar a jovem Cleópatra? Não teve mais filhos?

- Sim, de facto Ptolemeu Soter voltou a casar-se. Com a sua irmã mais nova, Cleópatra Selene. Tiveram dois filhos.

- Mas este jovem é que é o herdeiro do trono, e não o primogénito dessa ligação entre Ptolemeu Soter e Cleópatra Selene... é isso?

- Precisamente. Quando o rei Ptolemeu Soter morrer, será ele o herdeiro do trono.

- Muito bem! Muito bem! - exclamou Mitridates, esfregando as mãos de contente. - Estou a ver que a partir de agora terei de ser eu a protegê-lo, sumo sacerdote! E dar-lhe-ei uma das minhas filhas em casamento.

- Podes tentar - disse secamente o sumo sacerdote.

- Tentar? Que queres dizer com isso?

- Ele não gosta de mulheres e não terá nunca uma relação carnal com uma mulher, seja ela qual for.

Mitridates fez um ruído que era um misto de irritação e angústia. Depois, encolheu os ombros e disse:

- Pois bem, não terá herdeiros! Mas de qualquer modo vou levá-lo comigo. - Apontou para os outros dois rapazes, mais novos. – Então os outros dois são os filhos de Soter e da sua segunda mulher, Cleópatra Selene?

- Não - retorquiu o sumo sacerdote. - De facto, a velha rainha trouxe para Cós os filhos de Soter e Cleópatra Selene, mas eles morreram pouco tempo depois de cá estarem. Estes rapazes são mais novos.

- Então quem são eles? - gritou Mitridates, exasperado.

- São os filhos de Soter e da sua concubina real, a princesa Arsínoe da Nabateia. Nasceram na Síria durante as guerras de Soter contra a sua mãe e contra o seu primo Antíoco Gripo. Quando deixou a Síria, Soter não levou consigo nem os filhos nem a concubina. Deixou-os entregues aos cuidados do seu aliado sírio e seu primo Antíoco Ciziceno. Por isso, passaram a primeira infância na Síria. Até que, há oito anos, Gripo foi assassinado e Ciziceno tornou-se o único rei da Síria. Nessa altura, a mulher de Gripo era Cleópatra Selene - Gripo tinha casado com ela em segundas núpcias; a sua primeira mulher, a irmã do meio dos Ptolemeus, morreu em trágicas circunstâncias, a pobrezinha!

- Como é que ela morreu? - perguntou o rei, pouco impressionado, pois a história da sua família era muito parecida com aquela, ainda que lhe faltasse o fascínio que habitualmente rodeava os Ptolemeus.

- Ela tinha assassinado a jovem Cleópatra, como te contei. No altar de Apolo, em Dafne. Mas Ciziceno capturou-a e condenou-a a uma morte terrível, lenta, muito lenta.

- De modo que a irmã mais nova, Cleópatra Selene, não ficou viúva muito tempo. Ou seja, pouco tempo depois da morte de Gripo casou-se com Ciziceno.

- Precisamente, rei Mitridates. No entanto, Cleópatra Selene detestava estes dois rapazes. Detestava-os porque eram filhos de Soter, o primeiro marido dela, que ela odiava. Foi ela quem os mandou para cá há cerca de cinco anos.

- Depois da morte de Ciziceno, claro. Ela casou com o filho dele. E continua a reinar na Síria. É a rainha Cleópatra Selene da Síria. Notável!

O sumo sacerdote ergueu as sobrancelhas.

- Estou a ver que conheces bem a história da Casa dos Selêucidas.

- Mais ou menos. É que eu ainda sou selêucida - retorquiu o rei.

- Que idades têm estes dois rapazes e como se chamam?

- O mais velho chama-se Ptolemeu Filadelfo, mas nós pusemos-lhe a alcunha de Auleta porque, quando veio para cá, tinha uma voz muito aflautada. Mas com a idade e o nosso trabalho, a voz dele tornou-se normal. Tem agora dezasseis anos. O outro tem quinze. Tratamo-lo pelo único nome que tem, Ptolemeu. É bom rapaz, mas indolente. - O sumo sacerdote suspirou como se o rapaz fosse seu filho e ele um pai paciente mas desanimado. - É mesmo assim, preguiçoso, não há nada a fazer.

- Então estes dois jovens são o futuro do Egipto - disse Mitridates com um ar pensativo. - O problema é serem bastardos. Suponho que não poderão herdar o trono, não é verdade?

- Sim, não se pode dizer que o sangue que lhes corre nas veias seja inteiramente puro - disse o sumo sacerdote. - Mas se o primo deles, Alexandre, não deixar descendentes, o que é mais que certo, eles serão os únicos Ptolemeus vivos. Recebi uma carta do pai deles, o rei Ptolemeu Soter, pedindo que lhos mandasse imediatamente. Ele agora é de novo rei, mas sem rainha com quem possa casar, e quer mostrá-los aos seus súbditos, que já disseram que aceitariam os rapazes como herdeiros do trono.

- Ptolemeu Soter está com pouca sorte - disse Mitridates despreocupadamente. - Vou levá-los comigo. Dessa forma, poderei casá-los com filhas minhas. E os filhos desses casamentos serão meus netos. - A sua voz mudou. - Que aconteceu à mãe deles, Arsínoe?

- Não sei. Imagino que Cleópatra Selene a mandou matar depois de ter enviado os jovens para aqui. Eles não sabem se foi isso que aconteceu, mas receiam que a mãe já não esteja viva - disse o sumo sacerdote.

- E que me dizes da genealogia de Arsínoe? É boa que chegue?

- Arsínoe era a filha mais velha do velho rei Aretas da Nabateia e da sua rainha. A Nabateia sempre teve o costume de dar as suas mais belas princesas aos reis do Egipto. E de facto não. será uma aliança honrosa para uma das menos importantes casas reais semitas? A mãe do velho rei Aretas era uma selêucida da casa real síria. A mulher de Aretas, e mãe de Arsínoe, era filha do rei Demétrio Nicanor da Síria e da princesa Rodogune dos Partos, também uma selêucida, com algum sangue arsácida. Sim, a linhagem de Arsínoe parece-me esplêndida - disse o sumo sacerdote.

- Sim, sim, uma das minhas mulheres também é filha de Demétrio Nicanor e de Rodogune! - exclamou o rei do Ponto, emocionado. Uma maravilha de mulher. Chama-se Antiochis. Deu-me três filhos magníficos, e duas filhas. As raparigas estão óptimas para estes jovens! Perfeito! É a mesma linhagem!

- Creio que o rei Ptolemeu Soter planeia casar Ptolemeu Auleta com a sua meia-irmã e tia, a rainha Berenice - retorquiu firmemente o sumo sacerdote. - Do ponto de vista dos Egípcios, isso seria, genealogicamente falando, muito mais adequado.

- Pois tanto pior para os Egípcios! - disse Mitridates, abeirando-se do sumo sacerdote com um ar ameaçador. - Não te esqueças de que Ptolemeu Soter do Egipto e eu temos o mesmo sangue selêucida! A minha tia-bisavó Laódice casou-se com Antíoco, o Grande, e a filha deles, Laódice, casou-se com o meu avô, Mitridates IV! Isso faz com que Soter seja meu primo, e que as minhas filhas Cleópatra Trifaena e Berenice Nissa sejam também primas dele - e duplamente primas dos filhos dele e de Arsínoe da Nabateia porque a mãe deles é filha de Demétrio Nicanor e de Rodogune, tal como a mãe de Arsínoe!

O rei respirou fundo.

- Podes escrever ao rei Ptolemeu Soter uma carta, dizendo-lhe que eu tomarei conta dos filhos dele. Diz a Soter que, como na Casa dos Ptolemeus não há mulheres com a idade apropriada (Berenice deve andar pelos quarenta), os filhos dele casar-se-ão com as filhas de Mitridates do Ponto e Antiochis da Síria. E agradece ao teu deus da cobra que eu precise de ti para escreveres essa carta! Caso contrário, meu velho, eras um homem morto. Se queres a minha opinião sincera, acho que não demonstras por mim o respeito que me deves.

O rei avançou para os três jovens, que o fitavam com um ar tão confuso quanto apreensivo.

- Vão para o Ponto, jovens Ptolemeus! - disse ele, sem mais. Vá, depressa, toca a andar!

E assim a poderosa galera do rei Mitridates voltou a fazer-se ao mar, protegendo vários navios mais pequenos e acompanhando-os até que eles tomassem a rota de Éfeso; a bordo desses pequenos navios seguiam cerca de nove mil talentos de ouro e os três herdeiros do trono do Egipto. Cós constituíra uma proveitosa paragem em tempo de escassez. E, além do mais, dera ao rei do Ponto o fantoche da casa dos Ptolemeus de que tanto precisava.

Quando o rei chegou ao local escolhido por Pelópidas para o seu desembarque em Rodes, verificou que eram muito poucos os navios de transporte de soldados que tinham chegado à ilha. Não estava por isso em condições de lançar o ataque à cidade de Rodes. Para tal, como lhe disse Pelópidas, precisariam de ”organizar o transporte por mar de outro exército”. ”O almirante ródio Damágoras acrescentou Pelópidas - atacou os nossos navios de transporte em duas ocasiões diferentes e conseguiu afundar mais de metade deles. Dos que restaram, alguns vieram até Rodes, mas a maior parte voltou para Halicarnasso. Da próxima vez teremos de fazer acompanhar os navios de transporte com galeras. Não podemos deixá-los sozinhos, sem protecção.”

Como era evidente, estas notícias não agradavam ao rei; porém, como tinha chegado bem a Rodes, como tudo tinha corrido às mil maravilhas em Cós e como a sorte dos seus soldados pônticos pouco o preocupava, Mitridates aceitou o facto de ter de esperar por reforços. Entretanto, tratou de escrever ao seu regente no Ponto, o jovem Mitridates, a propósito dos herdeiros do trono do Egipto.

Qualquer deles parece ter instrução, mas a verdade é que desconhecem por completo a importância do reino do Ponto no mundo. E isso terá de ser alterado. As filhas que Antiochis me deu, Cleópatra Trifaena e Berenice Nissa, casarão com os dois mais novos. Cleópatra Trifaena casará com Ptolemeu Filadelfo e Berenice Nissa com Ptolemeu Sem Mais. Os casamentos poderão realizar-se quando elas fizerem quinze anos.

Quanto ao efeminado Ptolemeu Alexandre, tem que deixar de gostar de homens. É claro que os Egípcios prefeririam que ele fosse o seu próximo rei, porque é o herdeiro legítimo. De modo que terá de aprender a gostar de mulheres se quiser manter a cabeça em cima dos ombros. Deixo ao teu cuidado a execução dessa tarefa.

Escrever era para o rei uma verdadeira provação. Mitridates recorria habitualmente aos escribas, mas não queria que os olhos dos lacaios vissem aquela carta; para conseguir escrever aquele breve texto, demorara alguns dias e tivera de queimar muitos rascunhos.

Em fins de Outubro, a carta ia a caminho do seu destinatário e o rei do Ponto sentiu-se finalmente com força suficiente para atacar Rodes. Preparou o ataque de noite, e concentrou os seus esforços no perímetro terrestre da cidade porque a esquadra ródia se encontrava ancorada no porto. Porém, na cadeia de comando pôntica, não havia ninguém que tivesse os conhecimentos e a perícia necessários para lançar um assalto consequente a uma cidade tão grande e tão bem fortificada como Rodes. Por isso o ataque redundou num verdadeiro fracasso. Infortunadamente, o rei não tinha paciência para sujeitar Rodos a um bloqueio de longa duração - a única maneira segura de conquistar a cidade. Mitridates queria agora um assalto frontal. Porém, desta feita, a esquadra de Rodes seria levada a abandonar o porto, atraída por um chamariz, já que o principal impulso do ataque pôntico viria do mar, e assentaria basicamente numa sambuca.

O que mais excitava o rei era o facto de a ideia da sambuca ser inteiramente sua. Aliás, todo o conselho de guerra considerara tal ideia brilhante: a máquina funcionaria às mil maravilhas. Feliz como nunca, Mitridates decidiu que seria ele própro a construir a sambuca

- ou melhor, a projectá-la e a vigiar a sua construção.

Juntou duas galeras idênticas de dezasseis filas de remadores, construídas nos mesmos estaleiros, e amarrou-as a meia-nau; neste pormenor, o rei revelou de imediato a sua pouca queda para a engenharia. De facto, deveria ter amarrado os dois navios à proa e à popa e não a meia-nau, pois dessa forma poderia distribuir o peso da sambuca por toda a estrutura; em vez disso, prendeu os dois navios ao nível do costado, precisamente no sítio onde eles se tocavam. Por sobre os dois navios montou uma coberta tão larga que partes desta pairavam sobre as águas; para mais, esta coberta assentava sobre a sua base de forma perfeitamente periclitante. Em cima desta coberta, construiu duas torres, uma situada sobre o espaço entre as duas proas e a outra por sobre as quilhas, que se encontravam muito juntas. Entre as duas torres, mandou construir uma larga ponte, uma ponte que podia subir e descer graças a um sistema de roldanas e sarilhos que ia desde a coberta até ao topo das torres. Dentro de cada torre havia enormes rodas providas de degraus, rodas que giravam graças ao esforço de centenas de escravos e cuja função consistia em fazer movimentar a ponte de uma ponta à outra. Uma cerca muito alta, construída com compactas pranchas de madeira, fora ligada com dobradiças a um dos lados da ponte, desde a torre da proa até à torre da quilha; enquanto a ponte era erguida, a cerca formava uma protecção contra eventuais projécteis, e quando a ponte atingisse a sua elevação máxima (ligeiramente superior à altura da imensa muralha do porto de Rodes), a cerca poderia cair sobre a muralha do porto, funcionando assim como uma prancha de desembarque.

O ataque começou num dia ameno de fins de Novembro, duas horas depois de a esquadra ródia ter ido atrás do engodo sabiamente montado pelo inimigo. O exército pôntico assaltou as muralhas terrestres precisamente nos seus pontos mais fracos, enquanto que a esquadra pôntica avançava para o porto de Rodes, atenta ao facto de que a esquadra ródia poderia entretanto descobrir a armadilha em que caíra e voltar apressadamente para Rodes. A meio da imensa esquadra pôntica, surgia a poderosa sambuca, rebocada por dezenas de pequenos navios e seguida de perto por navios de transporte a abarrotar de soldados.

No meio de gritos de alarme e de uma frenética actividade nas ameias ródias, os homens dos navios mais pequenos da esquadra pôntica atracaram a sambuca à vasta muralha do porto, no local onde ficava o templo de ísis; concluída esta manobra, os navios de transporte de tropas aglomeraram-se em torno da sambuca. Pouco afectados pelas pedras, setas e lanças que eram atiradas das ameias ródias, os soldados pônticos espalharam-se pela sambuca, indo depois ocupar a ponte, nesse momento parada sobre a coberta: tantos eram os soldados que, para se disporem sobre a ponte, tinham de ficar literalmente colados uns aos outros. Nesse momento, os escravos começaram a ser açoitados a fim de porem as rodas a andar. Com horrendos guinchos, a ponte que unia as torres começou a subir com os soldados em cima dela. Centenas de cabeças ródias espreitaram das ameias, fascinadas, aterrorizadas; Mitridates também seguia atentamente as operações instalado no seu gigantesco navio. Aguardava que a sambuca concentrasse toda a resistência ródia na secção da muralha que protegia o templo de ísis. A partir do momento em que a sambuca se transformasse no único centro das atenções, os outros navios poderiam espalhar-se junto ao resto da muralha marítima e os seus soldados subiriam facilmente até às ameias. Usando com destreza as suas escadas, os soldados pônticos ocupariam rapidamente toda a muralha em volta do porto.

Não pode falhar, o meu estratagema! Desta vez estão arrumados!, pensava o rei enquanto observava, com olhos cheios de amor, a sua obra: a sambuca e a ponte que lentamente se elevava entre as duas torres. A operação não demoraria muito tempo: a ponte chegaria ao nível do topo da muralha do porto e, como que por artes mágicas, a cerca protectora desceria e formaria uma prancha de desembarque e os seus soldados cairiam sobre os Ródios. Havia na ponte homens suficientes para manter os soldados ródios ocupados até que a ponte descesse e subisse de novo com outro contingente. Não há dúvida, pensou o rei Mitridates, sou o melhor em tudo!

Porém, com a elevação da ponte da sambuca também o centro de gravidade se elevava; e à medida que o centro de gravidade se ia elevando, a distribuição do peso pelos dois navios ia-se alterando concomitantemente. Os navios que aguentavam a sambuca começaram a separar-se. As cordas romperam-se com pequenas explosões, as torres começaram a abanar, a coberta começou a vergar e a ponte a dançar. Depois, os dois navios que aguentavam todo este peso começaram a ceder a meio. Cobertura, torres, ponte, soldados, marinheiros e escravos caíram à água, entre os navios que começavam a virar-se. Gritos pavorosos enchiam os ares de mistura com os ruídos dos navios esmagando-se e com os vivas histéricos dos soldados de Rodes, vivas que depressa se transformaram em gargalhadas paroxísticas.

- Nunca mais quero ouvir o nome de Rodes na minha vida! disse o rei enquanto a sua portentosa galeria o transportava de volta para Halicarnasso. - Estamos demasiado perto do Inverno para prosseguirmos com esta insignificante campanha contra um monte de idiotas e imbecis. Os meus exércitos que avançam pela Macedónia e as minhas esquadras que se encontram ao longo da costa da Grécia precisam de toda a minha atenção. Ah, e todos os engenheiros que participaram na construção daquela ridícula sambuca, quero-os mortos... não, mortos não! Olhos e línguas arrancados! E cortem-lhes as mãos e os tomates! E no fim dêem-lhes as tijelas de mendigos!

O rei tinha ficado tão furioso com aquela humilhação que resolveu penetrar na Lícia com um exército, com a intenção de sitiar Pátara. No entanto, depois de ter mandado derrubar um bosque plantado em honra de Latona, a mãe de Apolo e Ártemis apareceu-lhe num sonho, avisando-o de que devia parar.

No dia seguinte, o rei entregou a missão aos seus subordinados o infeliz Pelópidas ficou a comandar as tropas - e, com Monima, a sua fascinante mulher albina, seguiu para Hierápole. Em Hierápole, enquanto se divertia, brincando como uma criança nas piscinas de água mineral quente, no meio de cristalinas cascatas petrificadas caindo dos penhascos, o rei Mitridates conseguiu esquecer-se das gargalhadas de Rodes - e dos navios de Quios que lhe tinham pregado o maior susto de toda a sua vida.

 

A notícia do massacre dos habitantes romanos, latinos e italianos da Província da Ásia chegou a Roma antes da notícia de que Mitridates tinha invadido a província - e chegou a Roma num tempo recorde. A

9 de Agosto, o Princeps Senatus, Lúcio Valério Flaco, convocava o Senado para o templo de Belona, no exterior do pomerium, porque se tratava de uma reunião motivada por uma guerra com outro país. Aos senadores que compareceram à assembleia, Flaco leu uma carta de Públio Rutílio Rufo, enviada de Esmirna.

Esta carta vai seguir num navio rápido, especialmente fretado para o efeito, com destino a Corinto; depois de Corinto, seguirá num outro navio, tão rápido como o primeiro, que vai para Brundísio, desde que a rebelião na Grécia não impeça a sua passagem. Ordenei ao correio que fosse de Brundísio até Roma a bom galope, e que não parasse nem de dia nem de noite. A elevada soma que tudo isto custa foi-me dada pelo meu amigo Milcíades, o etnarca de Esmirna, que apenas pede ao Senado e ao Povo de Roma que se lembrem deste seu serviço quando a Província da Ásia, como naturalmente acontecerá, voltar a pertencer a Roma.

É possível que não saibam ainda da invasão do rei Mitridates do Ponto, que agora domina tanto a Bitínia como a nossa Província da Ásia. Mânio Aquílio morreu da forma mais horrível que se possa imaginar, e Caio Cássia fugiu não sei para onde. Duzentos e cinquenta mil soldados pônticos encontram-se a oeste do Tauro, o mar Egeu está cheio de navios do Ponto, e a Grécia aliou-se ao Ponto contra Roma. Francamente, temo que a Macedónia se encontre totalmente isolada.

Mas isto não é o pior. No último dia de Julho, todos os romanos, latinos e italianos da Província da Ásia, Bitínia, Pisídia e Frígia foram massacrados por ordem do rei Mitridates do Ponto. Os seus escravos foram também massacrados. O número de mortos, ao que creio, eleva-se a cerca de oitenta mil cidadãos e setenta mil escravos

- um total de cento e cinquenta mil pessoas. Eu não fui morto porque o meu estatuto é de não-cidadão, embora acredite que o rei tenha dado ordens para que me deixassem em paz. Seria um belo osso para o cão de Hades. Porque me terá poupado a vida, a mim, que sou um velho, e mandou assassinar brutalmente todas as crianças e mulheres romanas? Iam buscá-las aos altares e não se compadeciam com os gritos com que elas imploravam aos deuses a vida. E depois, também por ordem do rei do Ponto, não enterraram os cadáveres, deixando-os a apodrecer nos campos. Este monstro bárbaro que dá pelo nome de Mitridates imagina-se agora o rei do mundo, e vangloria-se de que pisará terra italiana ainda este ano.

A leste de Itália não há ninguém que possa pôr termo à jactância de Mitridates. Excepto o nosso povo da Macedónia. Mas temo já pela Macedónia. Embora não tenha podido confirmar a notícia, corre que Mitridates lançou uma expedição por terra contra Tessalónica, expedição essa que já conseguiu penetrar na região a oeste de Filipos sem a mínima oposição. Tenho mais notícias sobre o que se está a passar na Grécia, onde um agente do Ponto chamado Aristião arrebatou o poder em Atenas e convenceu a maior parte do povo grego a declarar-se favorável a Mitridates. As ilhas do Egeu encontram-se em poder do Ponto, as esquadras de Mitridates são gigantescas. Quando Delos caiu nas mãos do rei do Ponto, foram mortos mais vinte mil cidadãos romanos.

Peço-vos, por favor, que considerem a minha carta deliberadamente moderada e breve, e que façam tudo o que estiver ao vosso alcance para impedir este horrível bárbaro Mitridates de pôr na cabeça a coroa de rei de Roma. Sim, o caso é tão sério quanto isso.

- Só nos faltava uma destas! - disse Lúcio César para o irmão, Catulo César.

- Agora já não há nada a fazer senão enfrentar a situação - disse Caio Mário, os olhos cintilando. - Uma guerra contra Mitridates! Eu sabia que tinha de acontecer. Só me espanta que tenha demorado tanto.

- Lúcio Cornélio vem a caminho de Roma - disse o outro censor Públio Licínio Crasso. - Sentir-me-ei mais tranquilo então.

- Porquê? - perguntou com firmeza Mário. - Não o devíamos ter chamado! Devíamos tê-lo deixado acabar a guerra com a Itália!

- Ele é o cônsul sénior - retorquiu Catulo César. - O Senado não pode tomar decisões importantes sem que ele esteja presente.

- Ora! - replicou Mário, levantando-se e abandonando a sala com o seu passo arrastado.

- O que é que lhe deu? - perguntou Placo Princeps Senatus.

- Que achas, Lúcio Valério? Ele é um velho guerreiro e sabe que uma guerra com outro país é que é verdadeiramente uma guerra. O que não acontece com a guerra com a Itália, que é uma guerra interna

- disse Catulo César.

- Mas com certeza que não espera participar nela! - comentou Públio Crasso, o censor. - Está demasiado velho e doente para se meter numa dessas!

- Claro que ele espera participar na guerra! - replicou Catulo César.

A guerra em Itália estava acabada. Embora os Marsos nunca se tivessem rendido formalmente, a verdade é que, de todos os povos que tinham pegado em armas contra Roma, eles eram dos que mais tinham sofrido: bastava dizer que não havia quase nenhum marso vivo. Em Fevereiro, Quinto Popaedius Silão fugiu para Sâmnio, e juntou-se a Mutilo em Esérnia. Encontrou o amigo tão doente que depressa concluiu que Mutilo nunca mais poderia dirigir um exército. De facto, Mutilo encontrava-se paralisado da cintura para baixo.

- Terás de ser tu a dirigir os destinos do Sâmnio, Quinto Popaedius

- disse-lhe Mutilo.

- Não! - exclamou Silão. - Eu não sou tão bom como tu a dirigir tropas. E para mais tropas samnitas! Além disso, não tenho a tua perícia como general.

- Não há mais ninguém. Os meus soldados samnitas decidiram que havias de ser tu a comandá-lo.

- Mas eles querem realmente continuar a guerra?

- Querem - retorquiu Mutilo. - Mas apenas em nome do Sâmnio, e não em nome da Itália.

- Eu entendo essa posição. Mas deve haver algum samnita capaz de os comandar!

- Não, Quinto Popaedius, não há ninguém. Terás de ser tu.

- Muito bem. Serei eu, então - retorquiu Silão, com um suspiro. O que nenhum deles discutiu foi o desabar de todas as suas esperanças numa Itália independente. Nem discutiram o que ambos sabiam - que se a Itália estava acabada, Sâmnio não poderia vencer.

Em Maio, o último exército rebelde deixou Esérnia sob o comando de Quinto Popaedius Silão. Eram trinta mil soldados de infantaria e mil de cavalaria, acompanhados por uma força de vinte mil escravos libertos. A maior parte dos soldados de infantaria tinham sido feridos numa batalha ou noutra e haviam-se reunido em Esérnia, porque Esérnia constituía o único local seguro; Silão trouxera a cavalaria com ele e conseguira atravessar as linhas romanas em torno da cidade. Mas os soldados tinham forçosamente de abandonar Esérnia. A cidade não podia continuar a alimentar tantas bocas.

Como todos os homens sabiam, aquela era uma movimentação desesperada, talvez a última marcha; de facto, ninguém esperava vencer. O mais que podiam esperar era que a sua morte servisse para alguma coisa. Porém, passado algum tempo, quando os soldados de Silão conquistaram Boviano e mataram todos os soldados romanos que se encontravam nessa cidade, o seu moral aumentou. Sim, talvez houvesse alguma hipótese, pensaram. Metelo Pio e o seu exército cercavam Venúsia nessa altura. Iriam por isso para Venúsia.

E foi nos arrabaldes de Venúsia que se travou a última batalha daquela guerra, um curioso remate para os acontecimentos que tinham começado com a morte de Marco Lívio Druso. Porque, no campo de batalha de Venúsia, encontraram-se frente a frente os dois homens que mais tinham amado Druso - o seu amigo Silão e Mamerco, o irmão de Druso. Enquanto os samnitas morriam aos milhares, Silão e Mamerco travaram um renhido combate corpo-a-corpo. Até que Silão caiu. Mamerco fitou então Silão com lágrimas nos olhos, a espada erguida. Hesitava. Não sabia o que fazer.

- Acaba comigo, Mamerco! - disse, já sem fôlego, Quinto Popaedius Silão. - Deves-me isso por eu ter morto Cepião. Não quero participar em nenhum triunfo organizado pelo Bacorinho!

- Por teres morto Cepião - disse Mamerco, e acabou com ele. Depois, chorou desoladamente a morte de Druso, a morte de Silão, o sabor amargo daquela vitória.

- Acabou-se - disse Metelo Pio, o Bacorinho, a Lúcio Cornélio Sila, que se deslocara a Venúsia mal soubera da batalha. - Venúsia capitulou ontem.

- Não, não acabou ainda - disse tristemente Sila. - Isto só acabará quando Esérnia e Nola se renderem.

- Já pensaste - sugeriu timidamente o Bacorinho - que se levantássemos os cercos de Esérnia e Nola, a vida nessas duas cidades voltaria ao normal e toda a gente fingiria muito provavelmente que nada acontecera?

- Tens toda a razão - disse Sila. - E é por isso mesmo que não levantaremos o cerco a Esérnia e Nola. Porque haveríamos de deixá-los em paz? Pompeu Estrabão não deu qualquer hipótese a Ásculo Picentino. Não, Bacorinho, Esérnia e Nola continuarão sitiadas. Por toda a eternidade, se for preciso.

- Ouvi dizer que Escaulo morreu e que os Pelignos se renderam.

- Correcto, mas não completamente - disse Sila com um sorriso.

- Pompeu Estrabão aceitou a rendição dos Pelignos. E Escaulo matou-se.

- Então é mesmo o fim! - disse Metelo Pio, maravilhado.

- Não. Enquanto Esérnia e Nola não se submeterem a Roma, a guerra não terá acabado.

Sila soube da notícia do massacre dos romanos, latinos e italianos da Província da Ásia, em Cápua, cidade que transformara na sua base, permitindo assim a Catulo César um merecido regresso a Roma; além disso, herdara o secretário de Catulo César, esse prodígio que dava pelo nome de Marco Túlio Cícero. E Cícero era tão eficiente que Sila não tinha a mínima necessidade da assistência de Catulo César.

Cícero achou Sila um homem tão aterrador como Pompeu Estrabão, ainda que por razões diferentes. E sentiu imenso a falta de Catulo César.

- Lúcio Cornélio, poderei ser dispensado no final do ano? perguntou Cícero. - Embora não tenha ainda chegado aos dois anos, a verdade é que já participei em dez campanhas.

- Verei isso mais tarde - disse Sila, que sentia em relação a Cícero praticamente o mesmo que Pompeu Estrabão sentira. - Por ora, não posso dispensar-te. Quinto Lutácio foi-se embora e, neste momento, não há ninguém em Cápua que conheça tão bem a região como tu.

Quinto Lutácio foi descansar para Roma, mas não descansará muito tempo, pensou Sila, enquanto seguia para a capital no seu carro puxado por quatro mulas. Termina uma guerra e logo começa outra. E a guerra contra a Itália, comparada com esta, não é nada.

Todos os senadores séniores se deslocaram a Roma a fim de participarem na reunião do Senado sobre a Província da Ásia. Nem mesmo Pompeu Estrabão faltou. Talvez cento e cinquenta homens concentraram-se no templo de Belona, fora do pomerium, no Campo de Marte.

- Ora bem. Sabemos que Mânio Aquílio está morto. Isso significa presumivelmente que os dois outros comissários também estão mortos

- disse Sila aos Senadores, num tom de mera conversa informal. - No entanto, parece que Caio Cássio escapou à matança, embora nada saibamos acerca dele. O que eu não consigo compreender é por que razão não recebemos nenhuma notícia de Quinto Ópio. Possivelmente também perdemos a Cilícia. É muito triste que Roma tenha de depender de um civil exilado para ter conhecimento de notícias destas.

- Imagino que Mitridates lançou um ataque rápido, fulgurante disse Catulo César.

- A menos que os nossos representantes oficiais se tenham envolvido em negócios pouco sérios - disse Mário com uma expressão contundente.

Esta observação não suscitou qualquer réplica, embora tivesse deixado toda a gente a pensar; se era certo que uma lealdade indiscutível unia os membros do Senado, não era menos certo que todos eles se conheciam muito bem uns aos outros: e todos os senadores sabiam perfeitamente de que barro eram feitos Caio Cássio e os três comissários.

- Nesse caso, Quinto Ópio deveria pelo menos ter entrado em contacto connosco - comentou Sila, verbalizando o que todos os outros pensavam. - Quinto Ópio é um homem honrado, como todos sabemos; se houvesse negócios pouco sérios por detrás disto tudo, ele teria informado imediatamente Roma. Creio que temos de concluir que também perdemos a Cilícia.

- O melhor será entrarmos em contacto com Públio Rutílio e pedirmos mais informações - disse Mário.

- Imagino que se houve sobreviventes entre a nossa gente, esses sobreviventes começarão a chegar a Roma em fins de Agosto - comentou Sila. - Teremos então mais informações.

- Pelo que Públio Rutílio diz na carta, suponho que ninguém sobreviveu - disse Sulpício, do banco tribunício. Furioso, de punhos cerrados, acrescentou: - Mitridates não fez qualquer distinção entre italianos e romanos!

- Ora! Mitridates é um bárbaro! - replicou Catulo César.

Mas uma tal resposta não servia para Sulpício que, durante a leitura da carta de Rutílio Rufo, dois dias antes, parecera, por momentos, ter ficado literalmente petrificado.

- Ele não fez qualquer distinção! - repetiu Sulpício. - Esse é que é o problema! Não me interessam as razões! As razões são irrelevantes! Os italianos da Província da Ásia pagaram o mesmo preço que os romanos e os latinos da Província da Ásia. Estão todos mortos. Tal como as suas mulheres, os filhos e os escravos. A questão é que ele não fez qualquer distinção entre italianos e romanos!

- Ora, Sulpício, cala-te! - exclamou Pompeu Estrabão, que queria que a reunião fosse direita ao assunto. - Não fazes outra coisa senão repetires-te!

- Sim, é preciso alguma ordem nesta reunião - disse Sila num tom afável. - Não estamos aqui para investigar as razões que levaram Mitridates a não fazer qualquer distinção entre as suas vítimas. Estamos aqui em Belona para decidir o que vamos fazer.

- Guerra! - exclamou imediatamente Pompeu Estrabão.

- É isso o que todos sentem? Ou Pompeu Estrabão representa apenas a opinião de alguns? - perguntou Sila.

O Senado respondeu-lhe em uníssono: guerra! Sim, todos estavam de acordo quanto a isso.

- Temos legiões suficientes em campanha - disse Metelo Pio. Legiões convenientemente equipadas. Pelo menos a esse nível estamos melhor preparados do que é costume. Podemos mandar já amanhã vinte legiões para o Oriente.

- Não, não podemos - retorquiu tranquilamente Sila. - Na realidade, duvido que possamos mandar uma legião que seja, quanto mais vinte.

Todo o Senado se calou.

- Veneráveis Senadores, onde vamos buscar o dinheiro? Acabada a guerra contra a Itália, não temos outra hipótese senão desmantelar as nossas legiões. Porque não temos dinheiro para lhes pagar nem mais um minuto que seja! Enquanto Roma esteve em perigo, todos os homens de linhagem romana ou latina foram obrigados a participar na guerra. Podemos dizer que o mesmo terá de acontecer numa guerra contra outro país, tanto mais que, neste caso, o agressor já ocupou a nossa Província da Ásia e matou oitenta mil concidadãos nossos. No entanto, é um facto que Roma neste momento não se encontra directamente ameaçada. E os nossos soldados estão exaustos. Pagámos-lhes finalmente. Mas para lhes pagarmos, ficámos sem nada. O que significa que temos de desmobilizá-los, de mandá-los para casa. Porque não temos uma única hipótese de juntar dinheiro que chegue para lhes pagarmos a participação noutra campanha!

As palavras de Sila afundaram-se no silêncio, tornaram-no ainda mais pesado.

Ouviu-se um suspiro. Era Catulo César.

- Punhamos de lado por um instante a questão do dinheiro disse. - Mais importante do que isso é o facto de termos de deter Mitridates, seja como for!

- Quinto Lutácio, não ouviste o que eu disse? - gritou Sila. - Não temos dinheiro para outra campanha!

Catulo César pôs um ar altivo e respondeu:

- Proponho que o Senado nomeie Lúcio Cornélio Sila para o comando da guerra contra Mitridates. Uma vez resolvido o problema do comando, poderemos resolver a questão do dinheiro.

- E eu informo o Senado de que proponho exactamente o contrário!

- gritou Caio Mário. - Deixem Lúcio Cornélio Sila ficar em Roma a tratar de problemas de dinheiro! Dinheiro. Francamente! Como é possível que estejamos preocupados com questões de dinheiro quando Roma enfrenta uma gravíssima ameaça de extinção? O dinheiro acabará por vir. Como sempre acontece. E o rei Mitridates tem dinheiro a rodos, por isso será ele quem, no fim de tudo, pagará. Veneráveis Senadores, não podemos dar o comando desta campanha a um homem que se preocupa tanto com dinheiro! Proponho-lhes, por isso, que me seja dado o comando da campanha contra Mitridates!

- Tu não estás suficientemente bem de saúde, Caio Mário - disse Sila, sem qualquer expressão no rosto ou na voz.

- Estou suficientemente bem para saber que o dinheiro não é problema! - atirou-lhe Mário. - A ameaça do Ponto é muito simplesmente a repetição da ameaça germânica! E quem venceu os Germanos? Caio Mário! Membros desta augusta Casa, é a mim que devem dar o comando das operações nesta guerra! Eu sou o único homem neste Senado que poderá vencê-la!

Flaco Princeps Senatus, um homem que não era famoso pela sua coragem, levantou-se imediatamente.

- Se fosses um homem novo e estivesses bem de saúde, podes crer, Caio Mário, que encontrarias em mim o teu mais fervoroso apoiante. Mas Lúcio Cornélio tem razão. A tua saúde não é das melhores, longe disso. Estás demasiado velho. Tiveste duas tromboses.

Não podemos dar o comando desta guerra a um homem que corre o risco de adoecer de novo no preciso momento em que precisamos dele o mais operacional possível. Não sabemos qual a causa de uma trombose, Caio Mário, mas sabemos que um homem que teve uma trombose acaba sempre por ter mais. Como sucedeu contigo. Como voltará a suceder contigo! Não, veneráveis Senadores, na minha qualidade de Princeps Senatus, digo-vos que nem devemos reflectir sobre uma tal hipótese. Apoio por isso a moção que prevê a nomeação do nosso cônsul sénior, Lúcio Cornélio, para o comando das operações contra Mitridates.

- Terei a deusa Fortuna a meu lado - disse Mário, teimosamente.

- Caio Mário, aceita a opinião do Princeps Senatus - disse Sila calmamente. - Todos temos por ti a maior consideração, a começar por mim. Mas factos são factos. O Senado não pode correr o risco de entregar a chefia de uma guerra, de qualquer guerra, a um homem que teve já duas tromboses e que já chegou aos setenta.

Mário cedeu, mas era evidente que não estava satisfeito; sentou-se com as mãos agarradas aos joelhos e o canto direito da sua boca franziu-se para baixo, num esgar idêntico ao do canto esquerdo.

- Lúcio Cornélio, aceitas o comando? - perguntou Quinto Lutácio Catulo César.

- Só aceitarei o comando se o Senado votar em mim de forma claramente maioritária, Quinto Lutácio. De outro modo, não, não aceitarei - respondeu Sila.

- Nesse caso, procedamos a uma votação - disse Flaco Princeps Senatus.

Apenas três homens se opuseram à nomeação de Sila: Caio Mário, Lúcio Cornélio Cina e o tribuno da plebe Públio Sulpício Rufo.

- Não posso crer! - murmurou o censor Crasso para o seu colega, Lúcio César. - Sulpício.

- Desde a notícia do massacre que Sulpício se vem comportando de uma maneira muito estranha - disse Lúcio César. - Repete a todo o momento que Mitridates não fez qualquer distinção entre romanos e italianos. Imagino que agora lamenta o facto de ter sido um dos que mais se opôs ao alargamento da cidadania para os Italianos.

- Mas o que o terá levado a pôr-se do lado de Caio Mário? Lúcio César encolheu os ombros.

- Não sei, Públio Licínio! Não faço a mínima ideia!

Sulpício votou com Mário e Cina porque Mário e Cina estavam contra o Senado. Por nenhuma outra razão. Quando soube da notícia do massacre, Sulpício sofreu uma profunda transformação: desde esse instante, a dor e a culpa não mais o abandonaram. Confuso, perturbado, angustiado, Sulpício só via um facto à frente dos olhos: um rei estrangeiro considerara iguais os homens de Roma e os homens de Itália. E se um rei estrangeiro não fazia qualquer distinção entre romanos e italianos, então podia concluir que, aos olhos do resto do mundo, não havia a mínima diferença entre romanos e italianos. A natureza e as actividades dos primeiros eram idênticas às dos segundos.

Patriota ardente, conservador implacável, Sulpício defendera fervorosamente a causa romana quando a guerra contra os italianos rebentara. Questor no ano em que Druso morrera, Sulpício fora então incumbido de missões de grande responsabilidade - missões que cumprira brilhantemente. Graças aos seus esforços, muitos italianos tinham morrido. Graças ao seu consentimento, os habitantes de Ásculo Picentino tinham sofrido mais do que qualquer bárbaro mereceria sofrer. Aqueles milhares de rapazinhos italianos que tinham aparecido na parada triunfal de Pompeu Estrabão e que depois haviam sido expulsos da cidade, sem comida, roupas ou dinheiro, condenados a viver ou a morrer consoante as forças que ainda lhes restavam. Quem pensava Roma que era para infligir punição tão terrível a um povo que era seu aliado? Em que diferia Roma do rei do Ponto? A atitude de Mitridates, pelo menos, era inequívoca! Ele, pelo menos, não tinha ocultado os seus motivos com ideias de superioridade e integridade. Tal como Pompeu Estrabão, aliás. O Senado é que estava enganado.

Mas o que estaria certo? E quem estaria certo? Se algum Italiano, homem, mulher ou criança, conseguira sobreviver ao massacre, e aparecesse em Roma, como poderia ele, Públio Sulpício Rufo, olhar de frente para esse pobre sobrevivente? Em que diferia ele, Públio Sulpício Rufo, do rei Mitridates? Não matara ele milhares e milhares de italianos? Não fora ele lugar-tenente de Pompeu Estrabão, consentindo, nessa qualidade, as atrocidades cometidas pelo seu comandante?

No meio de tanta dor e confusão, Sulpício conseguia ainda ter pensamentos coerentes - ou melhor, pensamentos que ele supunha coerentes, válidos, lógicos.

Não era Roma que devia ser censurada, mas sim o Senado. Os homens da sua classe, incluindo ele próprio. No Senado - nele próprio!

- estavam as raízes da identidade romana. O Senado assassinara o seu amigo Marco Lívio Druso. O Senado deixara de conceder a cidadania romana na sequência da guerra contra Aníbal. O Senado autorizara a destruição de Fregelas. O Senado, o Senado, o Senado... Os homens da sua própria classe. Incluindo ele mesmo.

Bom, agora teriam de pagar. Ele trambém teria de pagar. Era tempo, decidira Sulpício, de o Senado de Roma deixar de existir. Era tempo de acabar com as antigas famílias dirigentes, de acabar com a concentração do poder e da riqueza nas mãos de um número tão reduzido de homens, pois isso conduzia fatalmente a injustiças tão impressionantes como a que vitimara o povo italiano. Nós estamos errados, pensava Sulpício. Temos de pagar. O Senado tem de acabar. Roma tem de ser devolvida ao Povo, que não passa de um joguete nas nossas mãos, por muito que digamos que o Povo é soberano. Soberano? Nunca enquanto houver um Senado! Enquanto houver um Senado, a soberania do Povo será apenas formal. Não estava a pensar nos proletários, claro. Estava a pensar no Povo. Nos homens das Segunda, Terceira e Quarta Classes, que constituem a grande maioria dos Romanos, embora sejam os que detêm menos poder. Os cavaleiros ricos e poderosos da Primeira Classe em nada se distinguem dos senadores. Por isso também eles têm de largar o poder.

Depois de votar com Mário e Cina (e por que razão votara Cina com Caio Mário? Que laço o unira a Caio Mário de repente?), Sulpício fitou atentamente a massa de senadores que votara a favor da moção. Entre eles, estavam os seus bons amigos Caio Aurélio Cota (nomeado senador aos vinte e oito anos porque os censores, seguindo as directivas de Sila, tinham tentado povoar o senado de homens capazes) e o cônsul júnior Quinto Pompeu Rufo: como era possível que não percebessem que também eles eram culpados? Porque olhavam para ele como se ele fosse o culpado? Mas ele era culpado! Era, sim! Ele sabia que era culpado. Eles não faziam a mínima ideia.

E se eles não compreendem, pensou Sulpício, então esperarei o momento propício, até que esta nova guerra - mas por que estamos sempre em guerra? - seja organizada. Homens como Quinto Lutácio e Lúcio Cornélio Sila participarão na guerra, não estarão em Roma para se opor aos meus desígnios. Esperarei. Aguardarei o momento certo. E matarei o Senado. Matarei a Primeira Classe.

- Lúcio Cornélio Sila - disse Flaco Princeps Senatus. - É teu o comando da guerra contra Mitridates. Aceita-o em nome do Senado e do Povo de Roma.

- Mas onde iremos nós buscar o dinheiro? - perguntou Sila, horas mais tarde, ao jantar, na sua nova casa.

Com ele encontravam-se os irmãos César, o flamen Dialis Lúcio Cornélio Mérula, o censor Públio Licínio Crasso, o banqueiro e comerciante Tito Pompónio, o banqueiro Caio Ópio, Quinto Múcio Cévola Pontifex Maximus, e Marco António Orador, que recentemente voltara ao Senado após prolongada doença. Sila convidara aqueles homens precisamente para que respondessem àquela pergunta - se é que havia resposta para tal pergunta.

- O Tesouro está completamente vazio? - perguntou António Orador, que não conseguia acreditar que as coisas estivessem tão mal. - Quer dizer, todos nós sabemos como são os questores urbanos e os tribunos do Tesouro. Estão sempre a dizer que o Tesouro está vazio e quando se vai a ver, está cheio.

- Crê no que te digo, Marco António. O Tesouro está vazio retorquiu firmemente Sila. - Desloquei-me ao Tesouro por várias vezes e tive sempre o cuidado de não dizer a ninguém que lá ia em visita de inspecção.

- E o templo de Ops? - perguntou Catulo César.

- Também está vazio.

- Muito bem - interveio Cévola Pontifex Maximus. - Há o ouro guardado pelos reis de Roma precisamente para uma tal emergência!

- Que ouro? - perguntaram vários dos presentes em coro, incluindo Sila.

- Só fiquei a saber da existência desse ouro quando me tornei Pontifex Maximus! A sério! - exclamou Cévola, com um ar de quem precisava de se defender. - Esse ouro encontra-se nas caves do templo de Júpiter Optimus Maximus. São cerca de duzentos talentos.

- Óptimo! - disse Sila, ironicamente. - Quando Sérvio Túlio era rei de Roma, isso chegava para financiar uma guerra que acabasse com todas as guerras. Mas agora! Agora só chega para manter quatro legiões em campanha durante seis meses!

- Sempre é um princípio - comentou Tito Pompónio, com um ar displicente.

- E por que razão não hão-de vocês, os banqueiros, emprestar ao Estado uns bons milhares de talentos? - perguntou Crasso Censor, que gostava imenso de dinheiro, mas tinha muito pouco, apenas os rendimentos das concessões de estanho da Hispânia, e ainda por cima sempre andara muito ocupado para poder vigiá-las.

- Porque não temos dinheiro para emprestar - disse Ópio, pacientemente.

- Além disso, a maior parte dos banqueiros romanos recorreu aos bancos da Província da Ásia para depositar as reservas excedentárias, o que significa que agora é Mitridates quem detém essas reservas disse Tito Pompónio, e suspirou.

- Mas vocês devem ter dinheiro em Roma! - exclamou Crasso Censor.

- Temos. Mas não o suficiente para emprestarmos ao Estado manteve Ópio.

- Rés f acta ou rés fictal

- É a pura verdade, Públio Licínio. A sério.

- Concordam todos os presentes que esta crise é ainda mais grave que a crise italiana? - perguntou Lúcio Cornélio Mérula, sacerdote de Júpiter.

- Sim! Claro! - retorquiu imediatamente Sila. - Eu já falei com Mitridates, flamen Dialis, e posso garantir-te que se não o detivermos ele acabará por coroar-se rei de Roma!

- Nesse caso, e como o Povo nunca nos autorizará a vender a ager publicus só vejo um processo de obtermos mais dinheiro sem que para tal tenhamos de impor novos impostos - disse Mérula.

- E que processo é esse?

- Podemos vender todas as propriedades que o Estado ainda detém na vizinhança do Fórum Romano. Para fazermos isso, não precisamos de pedir autorização ao Povo.

Fez-se silêncio, um silêncio estupefacto.

- Não poderia haver pior altura para vender os bens do Estado comentou com tristeza Tito Pompónio. - O Estado perderia, e muito.

- Mas que propriedades possui o estado perto do Fórum, para além das casas dos sacerdotes? - perguntou Sila. - Bom, pelo menos as casas dos sacerdotes não podemos vendê-las.

- Sim, concordo que vender as casas dos sacerdotes seria nefas disse Mérula, que vivia num das domi publici. - No entanto, há outras propriedades. As ladeiras do Capitólio para cá da Porta Fontinal, e que dão para a rua Velabro, terra de primeira para grandes casas. Há também uma vasta faixa de terra que inclui o mercado geral e o Macellum Cuppedenis. Ambas as áreas podem ser subdivididas.

- Recuso-me a aprovar a venda disso tudo - disse Sila com firmeza.

- As áreas dos mercados, sim. Não passam de mercados e de campos de jogos para o Colégio dos Lictores. Parte do Capitólio, a parte que dá para a rua Velarbro, a oeste do monte Capitolino, e a zona a partir da Porta Fontinal até às Lautúmias. Mas não posso aprovar a venda de terras situadas no Fórum propriamente dito ou na zona do Capitólio que dá para o Fórum.

- Eu compro os mercados - disse Caio Ópio.

- A menos que alguém ofereça mais... - disse Pompónio, que tinha pensado também em tal hipótese. - Para que tudo se processe de uma maneira justa, e para que o Estado possa vender pelo melhor preço, creio que todas essas terras deveriam ser postas em hasta pública.

- Talvez devêssemos manter a área do mercado geral na posse do Estado e vender apenas o mercado Cuppedenis - disse Sila, que detestava a ideia de ter de leiloar tão belos locais.

- Acho que tens razão, Lúcio Sila - disse Catulo César.

- Também concordo - disse Lúcio César.

- Se vendermos o Cuppedenis, os comerciantes de flores e especiarias terão de pagar rendas mais altas - disse António Orador. - Eles não vão ficar nada contentes!

Mas Sila tinha já pensado noutra alternativa.

- E se nós pedíssemos dinheiro emprestado? - sugeriu.

- A quem? - perguntou Mérula, suspeitando de qualquer coisa.

- Aos templos de Roma. Pagar-lhes-emos com os despojos de guerra, Juno Lucina, Vénus Libitina, Juventas, Ceres, Juno Moneta, Magna Mater, Castor e Pólux, os dois templos de Júpiter Estator, Diana, Hércules Musarum, Hércules Olivarius. Todos eles são templos ricos.

- Não! - exclamaram Cévola e Mérula ao mesmo tempo. Num relance, Sila apercebeu-se de que nenhum daqueles homens apoiaria a sua proposta.

- Bom, já percebi que não querem que os templos de Roma paguem a minha campanha. Nesse caso, que me dizem se o dinheiro vier dos templos da Grécia? - perguntou.

Cévola olhou-o com um ar severo.

- Nefas é nefas, Lúcio Sila. Os deuses são sempre os deuses, seja em Roma, seja na Grécia.

- Sim, mas os deuses da Grécia não são os deuses de Roma, pois não?

- Os templos são locais sacrossantos - disse Mérula, teimosamente. Foi nesse momento que o outro Sila, um Sila oculto, se impôs ao cônsul complacente; era a primeira vez que alguns dos presentes deparavam com aquele outro lado de Sila, e não havia dúvida que esse outro Sila os deixava perfeitamente aterrados.

- Oiçam-me com atenção! - disse ele, mostrando os dentes. - As coisas não podem ser todas como vocês querem, e isto aplica-se também aos deuses! Vocês sabem perfeitamente que para manter uma campanha é preciso gastar muito dinheiro! Com duzentos talentos de ouro, não poderei ir mais longe do que a Grécia, com seis legiões. É uma força absolutamente miserável se comparada com os duzentos e cinquenta mil soldados do Ponto, e lembro-lhes que um soldado pôntico não é o mesmo que um bárbaro germano! Em tempos pude ver as tropas de Mitridates, e garanto-lhes que estão armadas e treinadas à maneira dos legionários romanos. Não são tão bons como os nossos legionários, mas são muito superiores aos bárbaros germanos, nem que seja pelo facto de possuírem armaduras e serem extremamente disciplinados. Tal como Caio Mário no campo de batalha, também eu pretendo manter os meus homens vivos. E isso significa dinheiro para comida e dinheiro para a manutenção de todo o equipamento. Dinheiro que não temos, dinheiro que vocês não permitem que os deuses de Roma me dêem. Por isso, aviso-vos: quando chegar à Grécia, irei buscar todo o dinheiro de que preciso a Olímpia, Dodona, Delfos, ou a qualquer outro templo. O que significa, flamen Dialis, Pontifex Maximus, que terão de fazer ardentes súplicas aos nossos deuses romanos, e esperar que eles tenham mais poder do que os deuses gregos!

Todos o fitavam calados.

O Sila a que estavam habituados reapareceu nesse instante.

- Óptimo! - exclamou Sila, alegremente. - Agora tenho notícias agradáveis para vocês, não pensem que já acabei.

Catulo César suspirou.

- Estou impaciente por ouvi-las, Lúcio Cornélio. Prossegue, por favor.

- Levarei as minhas quatro legiões comigo, mais duas das legiões que Caio Mário preparou e que estão agora com Lúcio Cina. Lúcio Cina não precisa de tropas porque os Marsos estão destruídos. Cneu Pompeu Estrabão fará o que quiser, desde que não me incomode com as suas contas, pois não tenciono perder tempo discutindo com ele. O que significa que restam dez legiões para desmobilizar, dez legiões a quem temos de pagar. Com dinheiro que não temos - disse Sila. - Por isso, tenciono legislar no sentido de pagar a esses soldados com terras de regiões italianas cujas populações desapareceram quase por completo devido à guerra, Pompeios, Fésulas, Grumento, Hádria, Telésia, Boviano. Seis cidades vazias rodeadas de terras boas para a agricultura. Regiões que passarão para as mãos das dez legiões a quem tenho de pagar.

- Mas isso é ager publicus! - exclamou Lúcio César.

- Ainda não é. Nem será - retorquiu Sila. - É terra que vai para os soldados. A menos que vocês adoptem uma atitude menos pia, menos devota, em relação aos templos de Roma... - disse Sila, num tom afável.

- Não podemos - retorquiu Cévola Pontifex Maximus.

- Nesse caso, será bom que convençam o Senado e o Povo quanto à justeza da minha legislação - disse Sila.

- Nós apoiar-te-emos - disse António Orador.

- Ainda a propósito da ager publicus, agradecia que não tomassem qualquer decisão a esse respeito enquanto eu estiver fora - disse Sila.

- Quando voltar com as minhas legiões, vou querer mais terras italianas para os meus soldados.

Feitas as contas, as finanças de Roma não chegaram sequer para seis legiões. O exército de Sila não contava mais do que cinco legiões e dois mil cavalos. Quando se juntou todo o ouro disponível, verificou-se que pesava apenas nove mil libras - o que, traduzido em dinheiro, não dava sequer duzentos talentos. Uma ninharia, mas era o máximo que uma Roma falida conseguia juntar. Os fundos de guerra de Sila não chegavam sequer para pagar a participação de uma galera na guerra; quando muito, cobririam o transporte dos seus homens até à Grécia, destino que Sila preferia à Macedónia Ocidental. Não que Sila tencionasse estabelecer planos concretos enquanto não tivesse mais dados sobre a situação na Ásia Menor e na Grécia. De facto, Sila escolhera a Grécia unicamente porque era a Grécia que abrigava os templos mais ricos.

 

 

                                                                    CONTINUA

 

 

Em fins de Setembro, Sila pôde finalmente deixar Roma e juntar-se às suas legiões em Cápua. Antes, falara com o seu devotado tribuno militar, Lúcio Licínio Lúculo, e perguntara-lhe se concordaria em candidatar-se ao cargo de questor, para o caso de Sila precisar dos seus serviços. Encantado, Lúculo respondeu-lhe que sim. Sila mandou-o então imediatamente para Cápua, como seu representante. Durante todo o mês de Setembro, Sila teve de resolver duas difíceis questões: o leilão das propriedades do Estado e a organização das suas seis colónias de soldados. Nem mesmo os mais optimistas acreditavam que se desenvencilhasse tão rapidamente de tais problemas. Mas Sila conseguiu-o, graças à sua força de vontade e a um comportamento implacável em relação aos seus colegas senadores, todos eles fascinados com a determinação daquele novo chefe; na realidade, nunca ninguém vira em Sila um grande dirigente. Mas Sila era-o, sem dúvida.

 

 

 

 

- O problema é que ele foi sempre ofuscado por Mário e Escauro

- disse António Orador.

- Não, nada disso. O problema de Sila é que nunca tinha conseguido firmar a sua reputação - retorquiu Lúcio César.

- E de quem foi a culpa? - perguntou Catulo César.

- A culpa foi de Caio Mário, basicamente - retorquiu o irmão.

- Não há dúvida que ele sabe o que quer - disse António Orador.

- Lá isso sabe! - comentou Cévola, com um estremecimento. Não gostaria nada de o ver do avesso!

Era precisamente isso o que o jovem César estava a pensar enquanto escutava a conversa entre a mãe e Lúcio Cornélio, bem escondido no seu esconderijo.

- Vou partir amanhã, Aurélia, e não gosto de deixar Roma sem me despedir de ti - disse Sila.

- Também não gosto que te vás embora sem que te despeças de mim - respondeu ela.

- Caio Júlio?

- Está com Lúcio Cina em terras dos Marsos.

- Nos escombros - disse Sila.

- Estás com muito bom aspecto, Lúcio Cornélio, apesar de todos os problemas que tens sido obrigado a enfrentar. Pelos vistos, fizeste um casamento feliz.

- Ou é o casamento que é feliz, ou então sou eu que me tornei mais carinhoso com as mulheres. Com a minha mulher. Talvez me tenha transformado num marido babado.

- Ah, não me venhas com essa! Tu nunca serás um marido babado!

- Que tal reagiu Caio Mário à sua derrota?

Aurélia franziu os lábios.

- A família é que tem sofrido - retorquiu ela. - De facto, ele não gosta nada de ti.

- Não esperava que gostasse. Mas estou certo de que ele admite que agi de forma moderada, que não usei de lisonjas nem movi influências para obter o comando nesta guerra.

- Não precisavas - disse Aurélia. - E é precisamente por isso que ele está preocupado. Caio Mário não está habituado ao facto de Roma ter um dirigente alternativo em caso de guerra. Antes de tu ganhares a Coroa de Erva, ele era o único chefe guerreiro. Sim, os seus inimigos do Senado eram muito poderosos e frustravam os seus planos sempre que podiam. Mas ele sabia que...

 

 

 

                                                                                                   

                                         

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