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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORROMPIDOS
CORROMPIDOS

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.


CONTINUA

14


— Prepare-se, o chefe quer nos ver. — Luigi diz batendo sua pasta em minha mesa.

Baker e eu trocamos um olhar.

— O que é aquela camisa florida? — pergunto olhando Luigi sumir pelo corredor.

— Ele saiu em missão.

— Ele já entrou em contato com os Rootns? — pergunto surpresa.

— Pelo que Clain estava dizendo durante o café, sim.

Recolho minhas coisas com pressa, deixando Baker plantado em minha mesa, enquanto caminhava seguindo para a sala.

— Com licença, senhor. — Digo ao bater uma única vez na porta.

— Entre, Hamer.

Sento do outro lado da mesa, encarando Luigi com seu sorrisinho fácil e nosso chefe encarando um relatório.

— Estava falando para o diretor que estávamos errados.

— Como assim, errados?

Luigi dá de ombros, o sorrisinho cínico ampliando-se no rosto.

— O agente Wenth esteve com os Rootns hoje pela madrugada, segundo seu relato e o relatório em minhas mãos, Joe Taranto não é o líder dessa organização.

— Mas senhor, temos fotos, testemunhas datadas até mesmo pela experiência do agente Parker.

— Eu sei, agente Hamer. Mas temos provas vindas do agente Wenth que o chefe da organização não é Joe Taranto. — Ele vira-se para Luigi, ignorando minha presença. — Wenth relate o que você presenciou.

— Primeiro eles são espertos, nosso encontro não foi no Penlin.

Sério isso? Posso ter um AVC, o cara está há mais de dois anos estudando o caso sobre eles e somente agora percebe que eles são astutos? — penso suspirando.

— Fui colocado em uma van, eles deram várias voltas antes de encostarmos realmente no local do encontro. Eu não tive ciência até que tiraram o capuz de minha cabeça, meus pulsos também foram contidos. — Luigi continuou: — Tinham dez homens ao meu redor, fui levado para um pequeno escritório montado, pelo que pude observar enquanto estava fazendo meu papel. Eles não trocam nomes, isso o informante da agente Hamer não mentiu.

Ele esboça um sorriso para mim, fazendo-me franzir o cenho.

— Já passei para o setor de inteligência e tecnologia os traços físicos.

— Seja breve, Wenth. — O diretor resmunga.

— Certo, eles são sucintos, não perdem tempo analisando, creio que assim como as garotas que sequestram eles preferem o famoso olho no olho. Pelos poucos minutos que fiquei ali, o chefe tem dois capangas que confia ou tem costume de escutar mais, um deles se chama Try, não sei se é o nome verdadeiro ou uma maneira de se tratarem. O outro muito mais observou do que se meteu em seus assuntos.

— Precisamos colocar o plano em prática. Eles não permitirão que cheguemos perto demais se não tivermos dentro dos negócios. — Digo, visivelmente cansada dessa lenga-lenga que Luigi está apresentando.

— Nisso concordo com você, eles querem que leve minha prostituta. — Diz sorrindo. — Eles estão esperando meu contato, por isso, temos que separar a roupa mais curta e sensual que você tem e colocar esse plano em ação.

Nosso chefe dá a volta na mesa, deixando a pasta de lado. — Mesmo que eu queira esperar e termos um pequeno indício sobre quem seria o mandante dessa organização, receio que teremos que agir primeiro e depois nos preocuparmos com as papeladas oficiais.

— Estou pronto, chefe. — Luigi diz. — E você, Hamer?

— Estou pronta.

— Nada de atirar em mim, hein? — Luigi ri. — Sabe, as coisas dentro de missões desse porte são frenéticas, não há espaço para erro, estamos entrando no jardim desses traficantes, temos que conquistar o passe para a casa. Não quero que ferre meu trabalho.

— Ferrar seu trabalho? — pergunto enfurecida. — Eu salvei sua bunda quando a missão foi comprometida! Quero que tudo ocorra tão bem quanto você, não é só meu futuro profissional que está em xeque, mas minha vida! Afinal, quem vai ficar na mão deles vinte e quatro horas por dia, serei eu, agente!

— Não estou dizendo que não tem capacidade, mas não aceitarei erros.

— Espero que seu ego e sua ambição não subam à sua cabeça e lembre-se que sou agente federal assim como você. Estaremos no mesmo barco, remando na mesma direção. Ou seja, eu caio, você cai. — Ameaço.

— Agentes! — Baker repreende.

— Acho melhor se organizarem, estão dispensados. — O diretor ordena.

Luigi concorda, olhando para mim e Baker pela última vez, e depois caminha para a porta.


KIRAN


— Lobo?

Saio da sombra olhando para Netlen. Seu rosto estava novamente marcado, seu olho esquerdo tinha uma forte mancha arroxeada ao redor, assim como sua boca estava inchada.

— Quando isso aconteceu? — pergunto.

Ela passa a mão trazendo uma mecha do cabelo para o rosto tentando tampar minha visão de seus machucados.

— Estavam te procurando. — diz fugindo do assunto.

— Quando? — pergunto novamente.

— Não é nada demais, ok?

Sento, voltando a me esgueirar na sombra.

— Try estava te procurando, segundo ele tem novo carregamento chegando.

— Tanto faz.

Netlen estava indo embora quando digo: — Se perguntarem, você não me viu.

— Pode deixar. — Responde por cima do ombro.


IRLANDA, 1989

— Menino, não faça isso, sabe como ele detesta risos pela casa!

Paro de correr, sentando na banqueta alta da cozinha, Ginger derrapa parando ao meu lado me fazendo sorrir.

— Já é um milagre que ele não tenha descoberto que você abrigou um cão de rua. — Madeleine diz.

— Papa zanyatoy chelovek. 7— Digo eufórico.

Madeleine continua me encarando em seu processo de esfregar duramente a panela em suas mãos.

— Desculpe, Made, eu disse que papai é um homem muito ocupado para ver que temos um cachorro.

Ela suspira deixando a panela respirar aliviada por ter fugido da breve tortura, enxágua as mãos e vem em minha direção. — Seu pai matará esse cachorro, livre-se dele.

— Bogom zhenshchina! 8— Exclamo.

— Mocinho trate de me xingar na minha língua. E trate de não me olhar assim!

Respiro fundo, tirando a expressão mal-humorada do rosto.

— Papa não faria isso.

Ela sorri de maneira dúbia. — Eu colocaria esse pulguento para fora...

Na manhã seguinte levanto cedo, papa odiava atrasos para as refeições e eu aprendi isso das piores maneiras; como tinha avisado durante o jantar, ele estaria em casa no período da tarde e eu teria um curto tempo para brincar com Ginger pelo jardim sem que ele nos pegasse no flagra.

Depois de um banho e do completo despertar, meu estômago estava dando claros sinais de vida. Paro no corredor olhando em direção à porta do escritório de meu papa, ele ainda estava conversando com seus homens, sorrio para um deles parado como uma estátua em frente à porta, mas é claro que ele continua parado, pouco se importando com meu cumprimento. Eram todos uns sviney 9, como meu papa dizia.

Made estava limpando a bancada quando entro na cozinha, passo direto por ela, pegando algumas coisas para Ginger comer.

— Oh, menino, esqueceu a educação no meio do seu calção? — Madeleine questiona.

— Bom dia, Made, abusada! — Brinco e fujo do golpe de pano molhado que ela ameaça me dar. — Você viu Ginger por aí?

— Eu deveria ter dado umas surras em você quando ainda usava fraldas. E não, não vi seu cachorro pulguento pela casa, não me diz que o perdeu de vista.

Sento em uma das banquetas, comendo a maçã em minhas mãos.

— Ele deve estar escondido debaixo de minha cama, papa está em casa.

— Isso que me assusta. — diz colocando um prato em minha frente, evitando que eu sujasse sua bancada.

— Agora nossa refeição será feita na cozinha? Pendurados nessa bancada como macacos?

Madeleine arregala minimamente os olhos, o que me faz sorrir.

— Não, senhor.

— Por que meu café não está fumegando em frente minha cadeira, Madeleine? — Czar pergunta com um sorriso no rosto ao vê-la se atrapalhar.

Por vezes, acho que a brincadeira secreta de meu pai é ver Madeleine completamente desconcertada.

— Kiran, Em meu escritório. — diz sério.

O sorriso de poucos segundos atrás é engolido assim como o último pedaço de maçã em meu prato; Madeleine troca um rápido olhar comigo, mas sai em direção à sala de jantar.

Sigo meu pai pelas escadas, pensando em qual transcrição eu poderia ter feito. Passo pelos homens de meu pai e entro no escritório, fechando a porta atrás de mim.

— Sente-se. — Ordena e assim faço.

Saber que ele ronda minhas costas não me deixa mais calmo, muito pelo contrário. Papa nunca foi um homem amoroso como eu via os pais com os outros meninos, ele sempre foi no sistema de portas fechadas e quando eu fazia algo que tirava sua paciência, era castigado por isso, muitas vezes depois do castigo aprendi que lamentar ou chorar não eram coisas de homem, como papa dizia. E muito menos me atreveria a chorar em sua frente, papa não suportava choros, nem se fossem de bebês.

— Você tem algo a dizer, Kiran?

Engulo em seco. — Não, papa.

Ele dá a volta sentando-se em sua cadeira. Abre a primeira gaveta da mesa jogando em minha frente um osso comido. Ginger.

— Se não estamos com um problema de ratazanas no porão, creio que isso não é seu, certo?

Balanço a cabeça negativamente.

— Não compreendo.

— Não, papa. Isso não é meu.

— Então você poderia me dizer por que um de meus homens encontrou isso em seu quarto na noite de ontem?

Os batimentos aceleram, eu posso sentir meu coração batendo forte e descompassado dentro do peito.

— Papa...

— Estou esperando uma resposta.

Sabia que nada, nenhuma mentira iria me safar daquilo, encarar os olhos de meu pai sempre foi meu pior pesadelo, como disse, ele não era um homem amoroso, seu olhar não era de extremo encantamento por mim e quando fazia algo punível era totalmente cruel.

— Quantas vezes disse que não aceito mentirosos? Quer voltar para a rua? Não aprendeu nada do que lhe ensinei?

— Desculpe, papa, desculpe!

— Aquele cachorro servirá de comida para nós esta noite! — Sua voz rugia pela sala como um trovão.

— Não, papa! Não, por favor, eu vou mandá-lo embora!

Czar soltou uma gargalhada, fazendo-me calar.

— Você não deveria nem o trazer para minha casa. Mikhal! — gritou.

Em um segundo a porta se abriu, Mikhal entrou olhando diretamente para meu pai, ignorando minha presença, enquanto eu mal respirava ou poderia chorar.

Pobre Ginger. Madeleine estava certa, eu levei o pobre para a forca.

— Leve Kiran para o galpão e o faça aprender uma lição.

— Sim, senhor.

Encaro meu pai com olhos esbugalhados pelo medo. Minha mão tremia ao lado de meu corpo quando seu homem me ergueu da cadeira como uma folha de abeto10.

— Papa? — imploro.

Ele me encara, um vinco está formado em sua testa e nos olhos o toque de crueldade. — Fique tranquilo, meu Kiran. Quando Mikhal acabar com você, será o homem que eu preciso ao meu lado.


Gritos ecoavam pelas paredes sujas daquele galpão, não sabia se estava perto ou longe de casa. Mas sabia que ao ser jogado ali por um dos homens de meu pai eu não estava sendo bem visto.

Mais um grito e, meu corpo tremeu. Queria dizer a mim mesmo que era pelo frio, as fortes correntes de ar que entravam pelas grades lá no alto da parede. Eu tinha que ser corajoso, meu papa esperava por isso. Ele era um homem corajoso, temido pelos homens que trabalham com ele.

Mikhal e outro homem entraram no galpão fumando e rindo, Mikhal ficou parado encostado na parede, enquanto o outro veio em minha direção. Mal vi sua mão se erguendo, mas o soco foi certeiro em meu olho, fazendo minha cabeça latejar na mesma hora.

Eu já tinha sido agredido quando morei nas ruas, eu me lembrava da sensação da dor e do latejar que ficava instalado na pele depois.

— Você vai aprender o que precisa esse tempo que vamos passar juntos.

Encaro o homem, mesmo que piscando por vezes para enxergá-lo melhor.

— Não sei porque o chefe perde tempo com um menino de rua. — Mikhal resmunga apagando o cigarro na palma de minha mão. A dor é tão forte que mordo os lábios para não gritar. Não quero dar esse pequeno triunfo para eles.

Conforme os dias foram passando e as agressões aumentando, um pouco de mim sumia a cada dia, algo se mantinha batendo mais forte que meu coração dentro do peito. Naquele dia eu percebi meu real legado na vida.

Papa chegou cedo no outro dia, os ferimentos do meu rosto não passavam de manchas roxeadas e meio verdes. Ele sorriu abertamente quando Mikhal relatou tudo com os mais diversos detalhes, entregou um terno do meu tamanho e mandou me limpar.

Fomos a um café no centro da cidade, um verdadeiro banquete foi servido, assim como no dia que Czar me avistou pedindo esmola em uma das ruas da Irlanda.

— Agora que você está pronto, vamos nos mudar.

Olho para seu rosto esperando que continuasse.

— Sempre soube que não me decepcionaria com você. — Czar diz sorrindo.


Quando o carro de papa estaciona em frente à nossa casa, eu não sentia mais aquele alívio por estar ali, não sentia vontade nenhuma de sair do carro. Madeleine abriu a porta, deixando meu papa passar, abrindo seu belo sorriso para mim. Fosse em outros tempos, eu correria para seus braços, abraçando sua cintura e sentindo seu cheiro doce de lar, Made sempre foi assim para mim, ela cheirava a lar, a casa de mãe.

Mas os gritos das mulheres, os socos e tapas que recebi naqueles dias ou os homens brincando com as facas perto de mim, me fizeram retorcer e desviar de Madeleine.

Eu quis dizer que sentia muito, mas as coisas não eram mais as mesmas.

— Venha, Kiran. Temos trabalho a fazer. — Czar diz, chamando minha atenção.

***

Fecho os olhos, apertando os cantos. Deixando essas poucas lembranças guardadas dentro do baú, esquecido. Ali nas sombras eu tinha somente uma necessidade, um desejo consumia cada fibra do meu ser. Adria. Eu precisava vê-la novamente, nem mesmo que de maneira furtiva no meio da noite.


Quando cheguei ao apartamento de Adria e a vi desmaiada sobre a cama, é que comecei a pensar com mais clareza e aquele sentimento que me acompanhou até ali me abandonou. Não a toquei. Na verdade, puxei uma coberta sobre ela, para que ela não sentisse frio. Que coisa doentia era essa?

Paro no meio de sua sala, meu olhar se perde em cima da lareira, vendo o coldre da faca. Caminho silenciosamente até lá, tiro a faca do coldre, admirando o brilho que a lâmina contém.

“É um presente do meu pai” — escuto sua voz em minha mente.

— Adria, você mentiu... Sinto isso, mas o que você esconde de mim? — sussurro sentando no sofá.

Eu poderia revirar sua casa, caçar o que tanto atiçava minha curiosidade... Devolvo a faca para o coldre, colocando no mesmo lugar, como se nunca tivesse sido mexida. Suspirando, acendendo o abajur perto do sofá, analisando a sala, escuto Adria resmungar durante o sono no quarto, mas sei que isso não foi um alerta que irá acordar. Pela aparência de seu apartamento, nada indicava, era um apartamento normal, elegante e extremamente limpo, poderia até dizer que Adria tinha algum tipo de TOC por limpeza.

As almofadas do sofá estão simetricamente colocadas, assim como o tapete felpudo combina com toda a decoração. Vou até sua cozinha abrindo e fechando armários, Adria tinha uma alimentação horrível. Uma enorme quantidade de salgadinhos em um dos armários e na geladeira comidas congeladas. Abro uma das gavetas me deparando com uma arma, uma Colt 1911. Pego-a vendo que estava destravada, o pior erro que um ser humano pode cometer. Uma arma destravada poderia causar tantos acidentes que seria inumerável até mesmo em pensamento.

Coloco-a no lugar, fechando a gaveta. Eu iria descobrir mais sobre Adria. Sua aparência e tudo que deixou transparecer não explicam porque tem uma arma na cozinha, em vez de garfos e facas, coisas comuns que uma mulher teria e essa história de ter ganhado uma faca de seu pai...

Agora eu terei que descobrir seus segredos, e vou adorar descobrir até seus desejos mais obscuros!


16


Aquela sensação. A mesma sensação de estar sendo observada, a mesma sensação de que alguém esteve aqui.

Saio da cama analisando cada canto de meu apartamento, o tempo lá fora está frio, as janelas estavam embaçadas pelo choque de temperatura. Respiro fundo, inalando o cheiro de vanilla que o meu vaporizador espalha pelo ambiente; nenhum cheiro fora do comum, assim como tudo está exatamente igual, as almofadas do sofá estão do mesmo modo que deixei a última vez; caminho até a cozinha ligando a cafeteira. Por instinto, abro a primeira gaveta, respirando aliviada por encontrar minha arma no mesmo lugar.

— Bom dia, tem alguém aí?

Pulo com o susto pegando institivamente a arma e apontando para Baker.

— Ei! Sou eu! — Baker levanta as mãos, ao mesmo tempo em que devolvo a arma para a gaveta.

— Quantas vezes disse que não é nada legal entrar na casa de outra pessoa assim?

— Vim tomar café. — diz colocando um pacote pardo sobre a bancada.

Tiro o café da máquina, distribuindo em duas xícaras que pego no armário.

— O dia está chegando. — Baker diz torcendo seu bigode.

Encaro o velho amigo de meu pai.

— Quero que pense por trás de toda essa loucura, Adria, quero que mantenha em mente modos de sair se as coisas ficarem feias.

Coloco a xícara novamente na bancada. — Você quer que eu saia quando as coisas ficarem ruins demais?

Vejo o bigode de Baker tremer de leve, sei que isso significa que discorda de mim.

— Quero que seu instinto de autopreservação não fique no escuro. Adria, não podemos controlar todas as coisas, por isso, se ficar pesado demais saia, abandone. Foda-se o que todos falaram, sua vida importa!

— Baker, eu respeito muito você, confio em você como meu pai. Mas não me diga que é para fugir quando as coisas ficarem feias, aquelas garotas dependem de nós, dependem que essa maluquice toda dê certo.

— Só quero que volte viva e bem, fiz uma promessa para seu pai e eu espero não quebrar, por ele ter uma filha cabeça dura.

Reviro os olhos, tomando um gole do café. — Encontraram alguma coisa do retrato que Luigi passou para a agência?

— Nada, é como se ele não existisse, pelo menos em nossos registros.

— Estranho, nem mesmo certidão de nascimento?

— Não. Estamos no escuro quanto a isso. Se Joe Taranto não é o grande chefe dessa organização como Wenth passou, estamos novamente no escuro.

Abro a boca para responder, mas sou interrompida por nossos celulares. — O dever nos chama.

— Adria. — Digo assim que atendo.

— Agente, precisamos de você no escritório!

— Sim, senhor. — Digo desligando.

Baker encerrou a ligação me encarando, — Algo aconteceu.


O escritório estava uma loucura, agentes andavam apressados com papeladas nas mãos, troco um olhar com Baker indo direto para a sala do diretor. Todos os envolvidos na operação Rootns estavam naquela sala.

— Agentes.

— Diretor. — Baker e eu dissemos juntos.

— Sentem-se, temos algo a discutir.

Meus olhos foram instantaneamente para Luigi, balançando-se em sua cadeira, um sorriso se infiltrava em seu rosto. Ridículo! Sento na cadeira vaga ao seu lado, esperando que o diretor iniciasse a bendita reunião.

— E aí, tá pronta para ação?

Encaro Luigi pelo canto dos olhos, evitando entrar na onda que ele cria.

— Acho que será empolgante. — Sussurra novamente.

— Agente, chamei vocês porque temos um problema a vista. A CIA está em nosso pé.

— CIA? — Baker questiona.

— Eles retiraram Rowsend de nossas mãos na noite de ontem.

— Como assim, ele era nosso, parte importante para nos aprofundarmos na organização!

— O problema de ter os cretinos da CIA nos meus fundilhos é que eles não deixam as coisas como estão. Segundo o diretor da CIA, pelo fato de descobrirem que a organização está levando e trazendo mulheres em nosso país, foi o suficiente para eles se meterem na nossa operação.

— Anos depois de mulheres desaparecendo e outras sendo descartadas de forma nada discreta eles colocam as mãos na única prova concreta que temos do caso. — Digo.

— Sim, o diretor da CIA disse que os casos decorrentes disso passaram como um problema do FBI, mas quando Rowsend foi exposto por nós, eles ficaram realmente interessados no que anda ocorrendo.

— O que faremos? — Luigi questiona. — Estamos a ponto de nos meter nisso. Desculpe, chefe, mas não quero correr o risco de a CIA invadir e eu tomar um tiro.

Vejo o diretor conter o que iria falar.

— Vamos antecipar, vamos nos infiltrar hoje. — Digo.

O diretor me encara, assim como o resto dos agentes.

— Não temos mais motivos para adiar, isso uma hora iria acabar acontecendo. Ou seja, tomamos a frente da operação deixando os cachorros grandes da CIA longe ou entregamos tudo de bandeja.

— Agente Hamer está certa.

— Diretor, não é melhor analisarmos? — Baker questiona.

— Agente Wenth você consegue contato com eles? Consegue colocá-los em ação?

— Sim, posso conseguir isso.

— Faça! — Ordena o diretor.

Luigi sai da sala, pegando o telefone, a sala permanece em silêncio enquanto o vemos gesticular ao falar no celular.

— Me diz que ele está ligando de um telefone não rastreável. — Digo.

Baker me encara do outro lado da mesa, mas não responde.

A porta se abre abruptamente. — Tudo feito, chefe! A aventura começa hoje!

***

— As câmeras térmicas mostram três indivíduos. — Clain diz.

— Mesmo que não quisesse, preciso que entregue seu distintivo e suas armas. — Baker resmunga, ele não está tendo nenhum trabalho em esconder ou ao menos não demostrar o quanto está insatisfeito.

Retiro minha Glock, entregando-a para um dos agentes que me aguardam com uma cesta estendida. Faço a mesma coisa com a Black Sable, retirando o coldre amarrado em minha panturrilha e a pequena, mas potente faca de meu pai, colocando tudo na cesta.

— Cristo, agora entendo o porquê que os agentes dizem que não é para te levar na brincadeira! — O agente diz surpreso.

Dou de ombros rindo. — Sou uma mulher precavida!

— Essa princesa não precisa de príncipe. É assim que minha filha retrata a agente Hamer. — Baker comenta.

Sorrio, sentirei falta dos seus cafés matinais e de suas aparições sem convite em minha casa.

— Tem mais alguma coisa escondida por aí? — Clain brinca.

— Ei, tire os olhos daí campeão! — Digo. — Não tenho mais nada, agora sou apenas eu!

Eles concordam, voltando à seriedade da coisa.

— Agente, seu nome é Pam Gomez, você veio para os Estados Unidos em busca de dinheiro, os caminhos que te trouxeram até este momento foram estudados por você, correto?

— Sim.

— Adria Hamer não existe mais, todos os seus passos serão apagados, assim como sua casa será devidamente limpa. Tem algo que deseja guardar?

— O agente Stone sabe do que preciso. — Respondo.

— Pode deixar, eu pego.

— Rapaziada, Adria, e aí, podemos ir ou desejam tomar mais um café? — Luigi pergunta.

— Estamos prontos. — Digo.

— Agentes vocês estão por conta própria agora, boa sorte. — Clain diz.

Pulamos para fora da van, vendo-os partirem e é inevitável que sinta um receio tomar a boca de meu estômago.

— Vê se consegue se comportar como uma puta. — Luigi diz ao caminhar ao meu lado.

Chega! Jogo seu corpo contra a parede, apertando sua jugular, até que gostando de vê-lo vermelho em busca de ar. — Olha, não sei o que fez para o diretor colocá-lo junto comigo nesta operação! Mas você está nessa, portanto, faça a porra do seu trabalho!

Vejo seus olhos me fuzilando, solto sua garganta, indo para longe desse verme. Não poderia me contaminar com uma rixa qualquer que esse maluco faria.

— Você é astuta, Adria, e os astutos se não tomarem muito cuidado, morrem cedo. — diz com raiva.


— Vocês demoraram.

— Essa puta quis me enrolar. — Luigi diz entrando no Penlin. — Esperava encontrar o chefe.

Já tinha visto esse homem... Ele coça o queixo sorrindo como um tubarão pronto para o jantar.

— Ele é muito ocupado para lidar com merdas como essa.

— Eu trouxe o que pediram,

uma puta pela entrada na organização.

— Sua entrada não é apenas entregar uma puta e pronto. — diz outro surgindo das sombras. — Você terá que provar isso.

Um deles me encarava, de cima a baixo, como se buscasse algo.

— Qual é seu nome lindinha? — pergunta o que saiu das sombras, ele tinha uma enorme tatuagem no lado direito do rosto, uma caveira ou metade dele, deixando-o sinistro.

— Vá a merda! — Resmungo.

— Pam Gomez, aqui está tudo que tenho guardado dela, é só uma puta interesseira, veio em busca de dinheiro fácil e topou comigo.

— Ela já esteve aqui.

Encaro o homem parado na frente de Luigi. — Foi você... você arrumou a confusão com um dos clientes, não esqueceria tão fácil alguém que colocou meu melhor cliente com as bolas na garganta!

Luigi se vira me encarando, o olhar feroz.

— Então teremos diversão vindo por aí. — diz o caveira.

— O cara é escroto e se encostar em mim, eu vou arrancar definitivamente suas bolas! — Digo.

Eu não deveria ter me concentrado no sorriso de tubarão que os capangas me lançaram, se eu não tivesse prestado atenção teria visto e poderia ter desviado. O soco veio tão forte que me lançou para trás, esbarrando nas mesas e cadeiras, meus dentes cortaram minha bochecha e o gosto de cobre encheu minha boca.

— Você vai fazer o que esses caras mandam, porque agora é a putinha deles. — Luigi rosna, olhando-me vitorioso.

— Se eu não obedecer?

Eu queria na realidade perguntar que porra era aquela, porque Luigi tinha feito o que fez, mas eu sabia bem, vingança e pelo fato de querer aparecer para esses lunáticos.

— Acho que nos enganamos com você, Sebastian. Você pode ser valioso.

Luigi ou Sebastian para esses caras, abaixou sua mão, deixando de lado o tapa que estava pronto para me dar.

— Deany, jogue essa daí em uma das salas, mas não com as outras, deixe que ela aprenda como as coisas funcionam conosco. E você, Sebastian, venha comigo! O chefe pode recebê-lo.


KIRAN


— Kiran quero que vá buscar Orrel no aeroporto.

Paro na entrada da sala de jantar, encarando meu pai tomando seu café de maneira despreocupada.

— Orrel? O que está fazendo na cidade? — questiono arqueando a sobrancelha.

Orrel, sobrinho de meu pai, não era só tóxico e encrenqueiro demais. Ele sequer poderia ser chamado de humano, já que toda a humanidade presente naquele garoto foi arrancada após a morte de seu pai. Então, por qual motivo ele estaria se refugiando nos Estados Unidos?

— Sim, vai ficar questionando meus atos? — Czar desvia os olhos do jornal, lançando um olhar feroz.

Desde aquela manhã no galpão, Czar tinha se mantido afastado e eu sabia bem o que isso significava, minha compaixão por aquela menina inocente tinha colocado dúvidas na mente perversa de meu pai, e Deus sabe que Czar não era de ficar em dúvida por muito tempo.

— Não senhor, vou tomar um rápido café e logo estarei a caminho.

Czar sorriu amplamente, tirando a expressão homicida que me encarava. — Perfeito filho, sente-se.


IRLANDA, 1999

— Tire essa cara emburrada, temos que resolver negócios na Irlanda. — Czar diz, sentando-se noutro lado do jatinho.

A fachada da casa de pedra na qual fui criado continuava a mesma, só um fator tinha mudado, tinha neve por todos os cantos, a pequena fonte que tínhamos no jardim da frente estava congelada, a água que antes caía como cascata, agora estava como uma imensa cortina de gelo.

Saio do carro amaldiçoando meu pai em pensamento, meus pés afundando na neve sumindo naquele mar branco.

Czar atrai minha atenção ao gargalhar. — Kiran, se um dia pensasse que você odiaria tanto estar de volta em casa, eu teria trazido você mais cedo.

— Mal sabia que mantinha essa velharia. — Resmungo.

— Mantenho e sempre manterei, aqui sempre será nosso lar e um bom refúgio. — Czar resmunga atravessando o gelo.

Der’mo!

— Senhor, chegou cedo.

Ultrapasso o jardim chegando à pequena escadaria, tirando aquela camada de gelo grudada em minhas calças, contendo o frio que subia pelas minhas pernas molhadas. Madeleine nos aguardava na entrada com a porta aberta.

— Madeleine, quanto tempo, espero que tudo esteja bem. — Czar a cumprimenta calorosamente.

— Sim, senhor. Tudo está preparado.

— Ótimo!

— Senhor, Kiran. — diz de maneira formal.

Encaro por alguns segundos seus olhos e entro em casa, jogando o casaco pesado, cachecol e luvas na pequena poltrona da saleta.

O calor aconchegante que vinha da lareira deixava menos evidente meus tremores causados pelo frio.

— Vamos nos aquecer e logo descemos para o almoço. — Czar comunica Madeleine.

— Sim, senhor.

Noto que os olhos de minha mãe, pois Madeleine foi o mais perto que cheguei a ter de uma figura feminina e amorosa cuidando de mim quando menino, me encaravam com frequência. Buscando uma brecha ou que encarasse seus olhos novamente. Mas eu não era mais aquele garoto estúpido que brincava de se esconder no meio de suas pernas, não existia nenhuma fagulha daquele menino. Portanto, ela não encontraria isso em meu olhar.

Continuo parado vendo meu pai trocar algumas informações com Mikhal, algo sobre nossa segurança e o que ele teria que fazer nos poucos dias que ficaríamos na Irlanda.

— Orrel está aqui? — Czar questiona.

— Sim, senhor.

— Ótimo, por enquanto é só, Madeleine.

— Com licença, senhores.

— Precisa de algo, meu pai? — pergunto desviando meus olhos de Madeleine.

— Não, vá se preparar para o almoço. — Czar me dispensa.

Subo a larga escadaria de bronze revivendo meus anos ali, algumas lembranças são até doces demais, tão doces que me deixam enjoado. Olhando tudo, depois desses anos, sei que Czar não me adotou por ser auto piedoso e ter amor ao próximo, ele me quis por saber que existia algo ruim entranhado em meu ser. Era um soldado valioso para ele, fazia coisas que ninguém mais faria, nem com a mesma habilidade.


As risadas altas chegaram até mim quando abri a porta de meu quarto, depois do banho quente foi fácil acabar adormecendo.

— Estou ansioso para encontrá-lo. Ainda recordo bem daquele moleque franzino. — Orrel tinha um sotaque forte que ficava ainda mais evidente em sua voz grossa, marcada pela puberdade.

— Lembro bem de tudo que vocês aprontaram no último verão. — Czar diz.

Suspiro relembrando também. Orrel perdeu o pai muito cedo, sendo criado basicamente por Czar, mesmo que a mãe lutasse contra isso veementemente. Assim que o verão se iniciou na Irlanda, Orrel veio para nossa casa, Czar nos acordava às cinco da madrugada, nos obrigando a tomar um rápido café e seguir para um dos galpões, lá aprendíamos tudo que tínhamos direito, desde defesa pessoal ou degolar uma pessoa. Em uma das pequenas lutas armadas por Czar, meu primo levava certa vantagem o que não era bom para minha imagem como filho e soldado leal ao meu pai. Mas Orrel naquele dia viu uma pequena brecha em minha defesa e se aproveitou dela, foi instinto de preservação, consegui buscar com o pé uma das facas e juntando o restante de respiração que tinha dentro de mim talhei o rosto de Orrel. Ele rapidamente soltou meu pescoço para tentar conter o sangue e os gritos de menininha que estava ecoando pelo galpão.

O sorriso de Czar para mim, foi o que meu deixou mais animado, era orgulho tatuado bem no meio daqueles lábios.


— Você deveria não ser tão obtuso, meu primo. — Digo sorrindo ao encontrá-los sentados em volta da mesa farta.

— Aí está meu ublyudok 11! — Orrel, levanta-se rindo.

Abraçamo-nos como dois brutamontes, trocando alguns insultos em russo.

— Acalmem-se, garotos.

— Me diga, priminho, o que anda fazendo de produtivo na América?

— Coisas comuns.

Madeleine entra na sala, depositando um prato imenso de sopa em minha frente, saindo quase no mesmo instante.

— Um dia, eu juro, me mudo para a América. Dizem que as inglesinhas têm um... você sabe. — Diz brincando.

— Continua tosco. Americanas são uma coisa, inglesas são outra, completamente diferentes.

— Tanto faz, desde que tenham uma boceta receptiva, para mim está perfeito.

Czar sorri. — Acredito que posso oferecer mais do que apenas mulheres animadas para você, meu garoto.

Orrel lança um olhar astuto, o que faz uma fagulha de raiva se acender dentro de mim. Meu pai sempre soube deixar o instinto de competição bem acesso quando Orrel e eu estávamos em sua presença. Será que esse é um dos motivos por que estamos ilhados nessa cidade de gelo? Mais um de seus testes malucos? Já não bastava as cabeças que eram arrancadas na América?

— Topa um velho programa com seu primo? — Orrel pergunta animado.

Dou de ombros. — Por que não? Algo que me aqueça.

Naquela mesma noite fomos ao lugar mais sujo e perverso da Irlanda, um clube para cavalheiros onde a atração principal eram as mulheres nuas, se fosse apenas uma pequena casa de stripper no centro da cidade não teria mexido tanto com meu estômago, mas naquele lugar não apenas cultuavam um sexo nojento como se alegravam pelo banho de sangue que os homens faziam. As mulheres paradas em uma fila, cada homem escolhia a sua para fazer o que bem entendesse, desde abusá-las, maltratá-las, acorrentar ou chicotear e até matar. Ali o cardápio era farto e os monstros saíam para brincar com imensos sorrisos nos rostos.

***

Um suspiro sai dos meus lábios, e obrigo minha mente a voltar ao presente. Por toda a vida fomos ensinados e doutrinados a sermos monstros, cruéis, frios e calculistas...

— Um rosto amigo!

— Orrel.

— Anime-se, primo! Assim vou acreditar que não está contente em me ver.

— Estar contente em reencontrar alguém que degolou uma antiga namorada e que agora está metendo seu nariz em meu território é difícil. — Digo amargo.

— Que é isso, rapaz! — Orrel diz jogando sua mala no banco traseiro. — Ainda remoendo coisas do passado?

— Por que está aqui? — questiono, olhando para a pequena multidão que saía do aeroporto, passando por nós apressadas.

— Negócios, dinheiro... não é para isso que os homens trabalham?

Eu não caía nesses sorrisos frouxos e falsos de Orrel, tinha algo sujo por trás, sujo e fétido.

— Foi ele?

— Que tal entrarmos no carro, você começa a dirigir e quem sabe eu conto? — Orrel questiona ficando centímetros longe de mim, podia sentir seu hálito quente e embriagado batendo em meu rosto. Os sorrisos frouxos tinham finalmente desaparecido.

Dou a volta, assumindo o banco do motorista e assim que Orrel sentou-se ao meu lado dei partida, encaixando-me no trânsito para fora do aeroporto.

— Que cidadezinha brilhante que escolheram morar. — Orrel exclamou quando atravessávamos o centro.

Suspiro em silêncio evitando dizer qualquer coisa. Sinto os olhos de meu primo sobre mim.

— Ok, vamos deixar as coisas bem claras. Estou aqui porque tem um carregamento em potencial que me interessa, na verdade apenas uma das belas moças que seu pai tem. Ela vale grande quantia para mim.

Desvio os olhos da rodovia, encarando seu rosto.

— Você nunca se meteu ou fez negócios com Czar. — Pergunto estreitando os olhos.

— Mas o chefe do meu chefe sim, e é por isso que estou aqui. — Diz. — Ou você acreditou que estava aqui para roubar seu lugar de cão fiel ao lado de Czar Baryshnikov?

Como não respondo, Orrel se torce todo no banco para me encarar. — Você, o Lobo feroz, deixou de ser o queridinho nas barbas cruéis de meu tio?

— Cale a boca!

Ao contrário do que mando, Orrel se entrega a grandes gargalhadas, fazendo meu cérebro recorrer à imagem de minha faca cortando sua garganta, de seu sangue banhando meu carro enquanto eu apenas encosto em uma dessas paisagens desérticas e atiro seu corpo para fora, dando mais um corpo para a polícia e quem sabe o FBI tentar resolver o caso.

— Ei, retire esse olhar assassino do rosto. — Orrel acusa sério, encerrando a bendita gargalhada.

O silêncio toma conta do carro por alguns minutos. Mas é óbvio que ele não dura muito.

— O que você aprontou? Sério, meu tio beija o chão que você pisa.

— Talvez tenha me libertado da venda que cobria meus olhos. — Retruco.

Orrel me encara surpreso, abre a boca para dizer algo, mas decide deixar o silêncio dominar nosso redor novamente, assim ficando até quando entramos na propriedade de meu pai.


18


— Coloque isso na cabeça. — O capanga empurra um gorro sujo em minha direção. — Eu posso agir como um cara bonzinho para não te assustar tanto ou posso ser o cara malvado. Você escolhe.

Pego o capuz contra a vontade colocando em minha cabeça, tampando minha visão; pequenos flashes de luz ultrapassam o tecido do gorro mostrando de forma embaçada para onde estamos indo.

Era um corredor largo, isso eu tinha certeza, assim como a luz era fraca, mentalmente fui contando a quantidade de passos que dava, 10, 11, 12... 20... E então paramos. Uma porta metálica foi aberta, o ruído era forte demais para ser uma simples porta de madeira.

O capanga me empurra fazendo-me tropeçar.

Será que o ato de vendar meus olhos era apenas para aumentar a sensação de terror que eles cultivavam ou por tentativa de desorientação?

— Pode tirar essa merda da cara.

Arranco o gorro deixando meus olhos se acostumarem com a falta de luz, pisco algumas vezes para que minha visão se adapte às novas condições.

— Espero que goste de suas novas instalações. — Debocha.

Recuo em direção oposta, querendo manter uma distância segura, sei que não posso demonstrar força ou noção de qualquer tipo de autodefesa, isso iria me denunciar. Eu tinha que demonstrar fraqueza, assim como aquelas garotas demonstravam.

— Eu vou ficar aqui? — questiono dando uma olhada ao meu redor, as paredes eram de um azul envelhecido e descascado, havia um colchão do outro lado da pequena sala, sujo, sua tonalidade variava em grandes níveis de marrom. Não tinha banheiro, o que logo deduzi que era uma maneira de manter aquelas garotas ainda mais reféns de seu poder.

— Você não consegue ficar de boca fechada, né?

Sua mão toca meu rosto me fazendo pular para trás.

Ele sorri zombeteiro, divertindo-se. — Muitas chegaram como você, mas logo perderam as forças, entenderam finalmente que ao cruzar aquela porta, vocês não são nada. Apenas pequenas baratinhas com as quais nós nos divertimos ao brincar.

— Vá à merda!

Ele ri, balançando a cabeça.

— Preciso ir ao banheiro.

— Sinto muito, nada de água, banheiro ou comida para você.

Minha respiração acelera com a raiva que circula em minhas veias, eu poderia voar em cima desse idiota e estourar seus miolos!

— Aproveite a estadia. — Diz ao sair, batendo a porta com força. Escuto uma série de cliques metálicos e o som de uma corrente.

Eles são espertos, não deixariam as portas apenas fechadas por um método de segurança! Engulo em seco olhando ao meu redor, chego perto da cama, se é que poderia chamar aquele colchão podre jogado no chão disso. As condições são de extremo maus tratos, não me surpreenderia se ao levantar esse colchão tivesse um rato morto. Não existia nenhuma espécie de janela, nada que facilitasse a fuga, aos poucos vou memorizando cada mínimo detalhe para enviar aos meus superiores. Sento no chão, abraçando as pernas. Mantendo o controle, fazendo minha respiração voltar ao normal.


Uma corrente de ar frio entra pelos dutos de ventilação no teto, assim como escuto vozes ao longe, mesmo que não consiga identificar o que eles estão dizendo, consigo identificar vozes femininas e algumas masculinas. A fina blusa de frio não estava sendo suficiente para aquecer minha pele, muito menos a calça jeans. Levanto indo até a porta, batendo e gritando para chamar atenção. Mas de nada adianta, ninguém aparece, o que me faz sentar novamente esperando que alguém apareça.


Não sei quantas horas se passam, meus olhos estão começando a ficar pesados e meus membros rígidos e doloridos por ficar muito tempo sentada no chão sujo e duro. A porta abre devagar, evito encarar quem entra, prefiro esperar até que entre em meu campo de visão.

— Tome, isso deve manter você aquecida.

Me surpreendo ao ver Netlen.

— Esconda quando não tiver mais usando, eles não vão querer que a novata tenha privilégios.

O sorriso sarcástico brinca em meus lábios. — Privilégios? Tá de brincadeira?

— Bom comportamento gera recompensas aqui.

— Preciso ir ao banheiro. — Retruco.

Netlen me encara. — Não posso aliviar seu lado, Ad...

— Pam. Meu nome é Pam e se você não tem nada de bom para fazer, pode sair.

— Olha, o que puder fazer para ajudar, eu tentarei, mas não vou arriscar minha cabeça por você.

Olho para seu rosto, mostrando o tamanho da raiva que me consumia. — Por que não me colocaram com as outras garotas?

— Você é como uma égua selvagem, eles vão adestrá-la. Não colocam nenhuma novata com as outras. Olha, — Ela respira fundo, antes de continuar. — não sei com o que você está acostumada no mundo lá fora, mas aqui é um verdadeiro inferno, tente não ser valentona.

— Acredito que você já falou tudo, obrigada pela coberta, mas pode sair.

Ela continua parada me encarando, mas não diz nada e sai.

Puxo a velha coberta enrolando-me nela, tentando aumentar a temperatura corporal. Fomos treinados para isso, eu mais do que ninguém me dediquei aos treinos, eduquei meu corpo para que sobrevivesse a tempos de sede, à dor aguda que o corpo dava aos primeiros sinais de fome. Aprendi a controlar sentimentos, administrar as sensações mundanas e levar a mente e o corpo para mais longe disso.

Vai ficar mais difícil daqui para frente. — Digo a mim mesma.

Naquele lugar não existia noções de tempo, me rendi ao sono que aquele colchão sujo pôde me permitir, mas alguma parte pessimista dentro de mim latejava de dor.

Acorde.

Outra dor aguda no estômago fez meus olhos se arregalarem e meu corpo se curvar, protegendo-se.

— Está na hora de acordar.

Enquanto ele me olhava rindo, sua mão tampava minha boca e nariz, cortando meu oxigênio e fazendo meus dentes cortarem meus lábios. Meus pulmões buscavam incansáveis maneiras de fazer o ar voltar, apertando meu peito, como se tivesse tomado um soco no diafragma.

O soco na mandíbula dele foi o primeiro golpe que me ocorreu, ele soltou meu rosto, dando dois passos para trás, massageando a boca, os olhos perversos brilhavam de prazer quando ele voltou agarrando novamente minha garganta.

— Adoro putinhas duronas, aumentam minha vontade de fodê-las, mostrando o quanto você não é nada.

— Deany.

O tal de Deany continua com os olhos cravados em mim, afrouxando aos poucos o aperto em minha garganta.

— Quem te trouxe essa coberta?

Viro meu rosto para o capanga parado na porta, a mandíbula quadrada e os olhos negros, assim como o farto cabelo puxado para trás, preso em um coque.

— Eu te fiz uma pergunta. — Repete.

Limpo o sangue de minha boca com o dorso de minha mão, continuando em silêncio.

— Ele te fez uma pergunta. — Deany grita em meu ouvido, desferindo um generoso tapa em meu rosto, fazendo meus olhos lacrimejarem com a ardência em minha pele.

— Eu encontrei debaixo do colchão. — Resmungo, cuspindo o sangue da boca, quase atingindo o sapato de um deles.

— Corajosa, essa tem fibra.

Eles trocam um olhar, rindo, como se tivessem acabado de ganhar um prêmio.

— Preciso ir ao banheiro.

A gargalhada de Deany preenche o ar fazendo minha pele se arrepiar. — Faça nas calças doçura, ou melhor, tire suas roupas.

Encaro os dois.

— Vamos, eu dei uma ordem.

— Vá a merda! — Digo rastejando pelo colchão encostando meu corpo contra a parede.

O sorriso que ele me lança acende a luz vermelha no meu bom senso, esse cara não era de brincadeira, ele não tinha nada a perder naquele momento. Deany sobe no colchão me encurralando contra a parede, enquanto rasgava minhas roupas; sua língua encostou em minha pele me fazendo querer vomitar, o enjoo retorcia meu estômago a cada beijo ou lambida suja que ele me dava, o hálito bêbado também não contribuiu para que minha bile ficasse no devido lugar.

— Não! — Grito — Seu bastardo, me deixe em paz!

Ele sussurra algo no meu ouvido que eu não entendi, seus dedos apertaram meus seios se infiltrando para dentro do sutiã, torcendo meus mamilos. O limite foi sentir sua boca ali, foi sentir a mordida cruel e firme que ele aplicou em meu seio, a dor me fez contorcer, chutá-lo e socá-lo esperando que isso fizesse aquele verme se afastar. Minha blusa rasgada e presa em minha cintura e a calça ia para o mesmo caminho. Sua mão nojenta passava por todo meu corpo, subindo pelas minhas coxas e ao alcançar minha intimidade meu corpo tremeu, de nojo, de medo.

Quando ele retirou a boca de meu seio as lágrimas brilharam em meus olhos, em volta de meu seio direito tinha impresso quase, senão todos os seus dentes, pequenas gotas de sangue brilhavam em alguns pontos onde a mordida tinha se intensificado.

— Ei, Glen, a putinha se mijou. — Deany riu alto. — Você não é tão valente quanto aparenta, não é mesmo? — pergunta esfregando a mão molhada pelo meu rosto, dando dois tapas em minha bochecha.

— Chega Deany. Não quero problemas com o chefe. — O tal de Glen reclama, olhando para os dois lados do corredor. Mal entrando na sala para deixar uma espécie de pote fechado perto do colchão, voltando para fora. — Coma. Se for uma boa menina pode ir se limpar.

— Senão, Deany aqui vem te pegar. — Cantarolou antes de se juntar ao outro na porta.


KIRAN


— Orrel! — Czar chamou, cumprimentando meu primo com um grande abraço.

Acompanhei os homens pelo corredor enorme da casa, o chão branco com pequenos detalhes prateados combinava com a decoração em tons de preto.

— Deve ser uma merda lidar com todo o trabalho sujo que o negócio de armas lhe dá, não é mesmo?

— Ah, tio, adoro ver aqueles homens se borrando! Assumo que tenho prazer nisso.

Czar sorri entregando um copo de uísque para meu primo, convidando-o a se sentar em nossa sala de estar. — Fico contente que você não tenha desapontado o nome de sua família. — diz bebendo sua bebida.

— Fico contente que tenha aceitado este pequeno encontro. — Orrel diz sentando-se de forma relaxada. — Os negócios podem ser interessantes se você aceitar a proposta.

Czar mata sua bebida em seu copo, pousando o copo em cima da mesa. — Não sei no que seu tipo de negócio pode ser interessante para mim.

Orrel sorri, deixando sua bebida de lado. — Vincenzo aprecia algumas de suas garotas, isso seria de grande avalia, já que andei me encrencando com o pessoal do lado dele.

— Então limparei sua bunda como ublyudok12 que é.

— Diferente do que pensa, querido tio, meu negócio com Vincenzo anda muito bem. E como bom ouvinte, sei que anunciou três damas no submundo, elas são interessantes para ele e isso torna o negócio entre nós aceitável.

— Está disposto finalmente a encarar os negócios da família? — O sorriso que meu pai dava poderia fazer qualquer homem recuar pedindo desculpas, por sequer ousar trocar algumas palavras com ele. Mas Orrel nem humano era, aquele era sangue do sangue de meu pai e só por isso já eriçava os pelos de qualquer pessoa que soubesse o que o sobrenome Baryshnikov significava.

— O que acha, Kiran? Está se mantendo calado.

— Seus negócios, meu pai. — Meu tom não foi tão educado.

— Meu filho anda colocando algumas asinhas de fora, Orrel, acredito que o tempo que passará aqui pelos negócios pode ser bem aproveitado. — Desdenhou.

Czar tornou a encher seu copo, colocando-se de pé. — Mandarei um de meus homens entrar em contato com você, Kiran pode levá-lo para escolher as garotas.

Ele coloca o terno, nos deixando sozinhos na sala.

— O que anda acontecendo entre vocês?

Suspiro de forma audível, encarando meu primo nos olhos, pela primeira vez desde que entramos na sala. — Punição.

— Punição? O que você andou aprontando?

— Czar acredita que minha compaixão pelas garotas possa estar estragando seu brinquedo favorito.

Orrel me encarou surpreso. — Compaixão? Estamos falando da mesma pessoa com quem eu passei metade dos meus verões?

Cerro os dentes. — Se quiser manter sua fachada de bobo da corte, acredito que os capangas de meu pai aprovariam...

— Ei, calma aí! Só fiquei surpreso. Não precisa me morder, lobinho!

Levanto, não me importando com as pequenas súplicas de curiosidade que Orrel disparava da sala para mim. Eu tinha algo mais importante para fazer.


— Lobo, me chamou?

— Entre e feche a porta.

Lutter concordou, obedecendo instantaneamente minha ordem.

— Preciso de um de seus serviços, mas que fique entre nós, se isso vazar de qualquer forma, principalmente para seu chefe, eu mesmo terei o prazer em sujar minhas mãos ao arrancar suas tripas para fora de seu corpo.

Lutter concordou novamente.

— Preciso que encontre uma pessoa, quero saber até sua preferência ao tomar café. Quero que me traga essas informações o quanto antes, entendido?

— Sim, senhor.

— Dentro desta pasta contém as informações para iniciar sua pesquisa, assim como o que eu desejo descobrir.

— Pode deixar, Lobo, trarei isso o mais rápido possível.

— Ótimo, pode ir. — Digo dispensando-o.


— O que faz você quase marcar seus passos no piso, primo?

Olho para trás vendo Orrel sentado na beirada de minha cama. Bastardo! Estava tão absorto em meus pensamentos que mal o ouvi entrar.

— Nada do seu interesse.

— Não desconverse, estou aqui a bons minutos te observando, algo está mexendo com você. — O tom dele era de diversão, uma diversão muito perigosa. — Está ressentido por Czar?

— Não. — Encaro meu reflexo no amplo espelho do quarto.

— Não vá dizer então que é por uma boceta?

— Vou ter que lhe ensinar algum respeito novamente, primo? — ameaço voltando a encarar seus olhos. — Acreditei que apreciava seu pescoço onde ele está e não pendurado em um espeto.

Orrel passa a ponta da língua felina pelos dentes, se divertindo às minhas custas.

— Proposta atraente, mas prefiro ver as bocetas que seu pai tanto esbanja.

— Eu deveria me importar com isso porque...

— Ah, quem sabe por uma pequena noite de diversão em família.

— Dispenso, tenho negócios, mas se quiser posso te largar na sarjeta da boate.

Ele sorri ficando de pé. — Estou esperando.

Depois de quase meia hora e estrada, ouvindo apenas os barulhos que os cascalhos faziam pelo asfalto com o carro em alta velocidade, encarei Orrel e seu enorme ego sentado ao meu lado. Não me interessava a vida que levava em Munique, mas a curiosidade bateu.

— Vale a pena entrar em dívida com Czar?

Orrel sorriu, olhando rapidamente para mim. — Apesar de não me meter nos negócios da família, eu tenho direito a isso, mesmo que o rabugento do meu tio diga algo contra. Mas os negócios em Munique são arriscados, mais do que mexer com garotas traficadas, meu amigo. E não é legal quando você é pego deflorando a filha do seu chefe; aquela vadiazinha me ferrou.

Ele ergue a barra da camisa mostrando o grande corte na direção do baço.

— O filho da puta me pegou em cheio. Só não terminou o serviço porque soltei que poderia arranjar as tais garotas.

— Moeda de troca. — Digo a contragosto.

— Hoje em dia, meu querido primo, trafico é melhor e mais rentável do que arma de fogo. Por que um cidadão iria querer ter uma arma se pode entrar no submundo e adquirir algumas putas e pronto? É ganho de dinheiro vitalício!

— Isso me enoja.

Orrel me encara, realmente me encara enquanto estaciono no fundo da boate.

— Agora entendi o que está acontecendo, você encontrou alguém, uma delas mexeu com você, não foi? Porque o Kiran que eu conheço é impiedoso, treinado e criado para matar, mais veloz que um lobo à procura de sua presa. Não é à toa que esse apelido foi lhe dado.

— Não é porque eu gosto de caçar que devo torturar a presa até perder a sanidade, o que meu pai aprova, o que os homens dele fazem é ainda mais cruel do que passar a faca pelo pescoço de uma delas e se sentir excitado pelo sangue jorrando, Orrel. É arrancar a alma dessas garotas na tortura.

Encaro a janela. — Homens como nós, não merecem sequer sentir algo como compaixão. Mas sinto, não sei porque, não sei qual ruptura isso conseguiu penetrar e Czar viu.

— Você sabe que as proteger, agir em nome disso, não te leva a nada, hoje você as protege em seu território e quando são vendidas por meros acordos cordiais ou grandes malas de dinheiro? Quem vai proteger essas mulheres, primo? Czar não é um homem piedoso e sequer posso chamá-lo de homem. Ele matou a própria mulher por traição e não se esqueça do meu pai.

Viro meu rosto para Orrel, vendo raiva pintar seus traços. — Isso nunca foi provado.

— Porque minha mãe foi taxada como louca e colocada longe de tudo e todos. Como você disse, não temos mais cinco anos e foi o próprio Czar que nos iniciou nessa vida.

— Vou levá-lo para Netlen, ela está hoje aqui e pode mostrar todo esquema para você, eu tenho algo a fazer.

— Ok. Cuide-se.

Orrel estava certo em somente uma coisa. Ter sentimento, qualquer tipo de sentimento era perigoso e destrutivo, fosse para o lado bom ou ruim, entrar na linha tênue entre a razão e a sensibilidade era o mesmo que deixar as desgraças sorrirem satisfeitas por sua escolha, as coisas eram fadadas a acontecer.


Eu estava à espreita, nas sombras, assim como sempre havia estado. Observando a entrada do prédio, aguardando até mesmo pelo pequeno vislumbre que ela poderia me dar ao aparecer perto da janela como sempre costumava a fazer, mas nesta noite, isso não aconteceu. Não importa de quanto em quanto tempo eu tenha olhado em direção à sua casa ou observei seu prédio. Adria não apareceu.


Eu estava irritado, querendo saber onde ela esteve nos últimos quatro dias. Estive parado nos arredores por tempo demais, me perguntando o que havia acontecido. Atravesso a rua, sorrindo para uma senhora que cuidava das plantas.

— Boa tarde. — Diz me cumprimentando.

— Boa tarde, desculpe incomodá-la, eu sou novo morador... — enrolo, colocando um sorriso no rosto.

— Já sei, esqueceu o código de acesso. — A senhora sorri abertamente, largando as luvas de jardinagem de lado. — Isso é normal, muitas vezes até os antigos moradores esquecem, mas qual andar está morando?

— 3d. — respondo lembrando do apartamento desocupado que ficava ao lado do de Adria.

— Nossa, isso é muito bom, rapaz, agora que a mocinha saiu aquele andar ficaria basicamente vazio!

Forço mais um sorriso, entrando assim que ela destrava a porta. — Muito obrigado pela ajuda.

— Imagine, meu rapaz.

No andar de Adria tudo está vazio, assim como a sensação de algo errado brilha de maneira incansável em minha mente. Certifico-me que ninguém vá aparecer antes de forçar a entrada do apartamento. Fecho a porta de maneira silenciosa atrás de mim, segurando firmemente minha faca em uma das mãos.

A sala está exatamente como eu me recordava, as almofadas perfeitamente alinhadas, o porta chaves vazio, assim como não havia nenhum casaco ou sapato no armário da entrada. Caminho como um fantasma pelo cômodo, analisando cada pedaço de espaço possível.

Meus olhos vão direto para a lareira antiga no meio da sala de estar, uma pequena camada de pó também cobre a superfície, assim como notei na mesa de jantar. Esse lugar foi limpo, extremamente limpo e abandonado.

Parte de mim não acreditava que Adria era o tipo de mulher que corre e se esconde. Ela é daquelas que enfrentam tudo de frente, então, por que seu apartamento continha essa aparência de esquecimento? Vou até a cozinha vendo que o armário que continha mantimentos hoje não tem mais nada, está vazio, abro a primeira gaveta, vendo que a arma que existia ali também havia sumido...

Pense, Kiran, o que você está deixando de lado, o que sua obsessão por essa mulher não está permitindo ver?

Guardo minha faca, indo até o quarto e não é uma surpresa notar que está igual aos outros cômodos, nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de luta. E pouco acredito que se jogasse luminol com peróxido de hidrogênio em todo o ambiente não detectaria nenhuma gota de sangue, assim como digitais; foi um serviço limpo, coisa de profissional.

Sinto meu telefone vibrar, fico satisfeito com o que mostra na tela.

— Sim.

— Desculpe incomodá-lo, Lobo.

— Encontrou algo?

— Sim, acho melhor você ver com seus próprios olhos.

Respiro fundo me sentindo como um bicho acuado, se minhas suspeitas tivessem certas, alguém tinha pego Adria e isso não era bom para a pessoa corajosa desse ato, eu iria caçá-lo e quando terminasse nem precisaria me preocupar em contar para Czar que tínhamos outro aliciador pela cidade. O certo seria parar com tudo, deixar essa maldita obsessão de lado, talvez, apenas talvez, ela tivesse ido embora, recebido uma promoção no emprego e se mudado, mas por que isso parecia errado quando passava por minha mente?

— Estou indo, nos encontramos no local de sempre.

— Ok. — Lutter diz encerrando a ligação.


20


— Não demore. — diz abrindo a porta do banheiro.

Arranco o gorro fedorento quando a porta do banheiro se fecha, meu reflexo no pequeno espelho pendurado não ameniza minha raiva, meu rosto está marcado pelas constantes agressões, olheiras cobrem meus olhos pelas noites mal dormidas e as que não dormi. É complicado render-se ao sono quando você sabe que aqueles vermes poderiam entrar a qualquer hora...

Respiro fundo jogando uma grande quantidade de água em meu rosto, braços e nuca, mal sei quantos dias se passaram desde que cheguei, mas pelo fedor de minhas roupas e o cheiro de suor, sei que fazem alguns dias. Preciso encontrar uma maneira de me comunicar com Luigi, passar tudo que tenho observado para os outros agentes, principalmente para o diretor, para que ele elabore algum plano de explodir isso daqui.

— Seu tempo acabou. — Anuncia do outro lado da porta. Essa voz é diferente, ele não é o mesmo que vem me acompanhando nos últimos dias, não que eu realmente veja os rostos deles, já que estou com o meu sempre enfiado nesse gorro.

— Estou terminando. — Grito.

Ao me limpar e subir a calça rasgada vejo um pequeno plano se formando em minha mente. Volto para frente do espelho, forçando-o contra meu abdômen até escutá-lo quebrando, coloco um generoso pedaço por dentro da calça, mesmo sentindo as pontas perfurarem aos poucos meu quadril conforme ando. Isso serviria para defesa se aquele imundo do Deany voltasse a me visitar.

Coloco rapidamente o gorro, ficando de frente da porta, tampando a visão para o resto do banheiro, para que esse imbecil não note os pequenos cacos espalhados atrás da pia.

— Pronto. — Grito novamente.

A porta se abre quase no mesmo instante que fecho a boca, sinto o aperto firme em meu bíceps, assim como a sacudida que ele me dá.

— Eu disse cinco minutos!

— Desculpe, dor de barriga. — Retruco.

— Você acha que cairei na sua armadilha, já me alertaram sobre você, boneca! Eu corto sua garganta antes que consiga gritar!

O homem me empurra pelo caminho, fazendo-me tropeçar diversas vezes por não saber a direção que estamos seguindo; outra coisa que pude observar, é que eles sempre mudam as rotas, por isso me leva a acreditar que eu não estou mais nos fundo daquela boate, estou em um verdadeiro cativeiro, mesmo que as paredes continuem com o mesmo azul desbotado e sujo, assim como os dutos de ventilação no teto são os mesmos, mas algo tinha mudado.

— Assim que possível trago sua comida. — Diz jogando-me contra o colchão imundo.

Espero para que a porta se feche para respirar aliviada e também soltar o pequeno gemido pelo corte que o pedaço do espelho quebrado fez em meu corpo. Merda! Termino de rasgar um pedaço de minha blusa, estancando o sangue, fazendo a pequena ferida arder ainda mais em contato com o pano.

***

Eu gemi, por que queria que ele continuasse tocando meu corpo, gostava do cheiro másculo de sua pele sobre a minha, assim como o sorriso que Kiran me dava ao terminar de beijar minha boca, eu não queria que ele sumisse na escuridão, muito menos que meus olhos entreabrissem ao ser chacoalhada e perceber que o sorriso não era de dentes brancos e hálito de hortelã como os de Kiran, e sim amarelados pelo excesso de bebida e cigarro.

— Aposto que você é uma foda quente. — Ele sussurrou em meu ouvido, trazendo minha consciência para o prumo. Sua mão apertando meus ombros contra o colchão, depois indo para meu pescoço enquanto a outra atingia meu seio em cheio.

Minha respiração se abalou e minha boca ficou seca. Eu queria gritar, mas ele enfiou um pedaço de tecido em minha boca, impossibilitando até mesmo que eu respirasse de verdade.

Ele agarrou meus seios novamente, rosnando baixo em meu ouvido: — Eles não sabem foder uma mulher como você, mas eu quero tanto, prometo que farei você gritar enquanto meto.

Ele estendeu a mão brincando com o botão de minha calça. Meu pulso batia em meus ouvidos e quanto mais eu me debatia embaixo dele, mais me via amarrada e controlada por seus braços e pernas sobre mim. Inalei uma respiração profunda, expirando lentamente e de forma constante, me acalmando.

— Se você se manter quietinha deixo você curtir tanto quanto eu, ou posso apenas tomar o que quero. Que tal? — ele me encarava como um maníaco.

Concordo com um pequeno gesto, sentindo imediatamente o peso ceder sobre meus braços e pernas. Eu só precisava que ele continuasse acreditando nisso, para colocar minhas mãos no pequeno caco de espelho entre o colchão e a parede.

Mas então sua mão segurou meu cabelo, me fazendo gritar. — Não tente bancar a espertinha, já me alertaram sobre você! — Suas mãos apertaram meu pescoço, sufocando minha respiração. — Você pode chorar se quiser, muitas adoram, é só abrir as malditas pernas!

Encolho-me, tateando o espaço em busca do caco de espelho, aproveitando enquanto ele se preocupava em abaixar minha calcinha, respiro aliviada quando meus dedos se fecham envolta do objeto, agradecendo até mesmo por sentir a dor ao furar a palma de minha mão.

Deixei um pequeno grito irromper de meu peito ao sentir o pau dele se esfregar contra mim. A onda de raiva encheu meus músculos e eu ataquei. Firmei minhas costas puxando seu corpo para o lado, vendo-o despencar sobre o colchão, dois golpes, foram apenas dois golpes que consegui dar antes que ele voasse sobre mim. O primeiro foi um corte no lado direito do seu rosto, arrancando sua pele, rasgando uma linha direto de sua orelha até seu queixo e o outro um golpe torto em seu pescoço, vendo o líquido vinho derramando sob a pele dele.

— Sua puta! — gritou, acertando um tapa forte em meu rosto, o caco voou longe quando caí para trás, sangue escorria de meu nariz por meu rosto e pescoço. — VOCÊ CORTOU MINHA CARA!

— Seu doente, filho da puta! — Reclamo tentando conter a torrente de sangue que saía de meu nariz.

O punho bateu contra meu rosto, me deixando tonta, turvando minha visão. O resto foi um misto de dor e confusão, em minha mente vi Netlen e mais alguém pegando os dois braços, puxando o verme

 

imundo para longe de mim, prendendo-o contra a parede. Mas também senti alguém me agarrando, levando-me dali.


KIRAN


— Não irá jantar, filho?

Czar estava com uma taça de vinho na mão, caminhando para fora da sala de jantar.

— Tenho um compromisso. — Digo.

Orrel aparece ao lado de meu pai, segurando um envelope entre os dedos, pelo visto tinham assinado o bendito acordo.

— Orrel trouxe notícias inquietantes hoje.

Mesmo com os olhos de Czar colados em mim, desvio encarando meu primo. Se esse sukin syn13, tiver dito algo, eu juro que minha Randall14 ficaria feliz em ser alimentada com o sangue dele.

— Que tipo de notícias?

— Como sabe, fechamos um acordo com aquele imbecil do Sebastian, ele trouxe sua garota para nós. Pelo relato de Try, ela é uma verdadeira obra prima.

— Ainda não vejo problema nisso, se for por aquele verme, posso dar um jeito nisso, se assim desejar. — Retruco.

Czar sorri, mostrando o sorriso afiado de um comandante cruel do submundo. — Ele está sendo bem utilizado, o problema está sendo com a garota.

Aguardo que ele tome seu gole de vinho e retome com o assunto.

— Ela tem dado trabalho para nossos homens, sabe que eu sempre quis o melhor para nossa família, ainda mais para quem nos serve com tanta fidelidade.

— Darei um jeito na garota. — Respondo friamente.

Czar dá a volta na sala, sentando-se confortavelmente em sua poltrona, erguendo o queixo ao olhar para mim. — Espero mesmo que você cuide dela, tenho um homem nesse instante remendando o rosto e pescoço porque a suka15 decidiu retalhá-lo com um caco de vidro.

Aquilo me surpreende, em todos esses anos, vi mulheres fortes enfrentando aqueles homens, mas nenhuma acabou chegando aos ouvidos de meu pai, quase todas desistiram depois de alguns dias aprisionadas.

— Espero que seu último ato de compaixão com a filha daquele bastardo não seja um problema entranhado em suas veias, meu filho.

— O que você deseja? Se quer a morte dela, eu trago sua cabeça numa bandeja. É só pedir. — Resmungo armando a postura.

Czar sorri satisfeito, pelo visto estava gostando de minha raiva contida, mesmo que essa raiva não tivesse nada com seus negócios, isso era coisa daquela erva venenosa que se embrenhou para dentro de minha mente, me fazendo questionar tudo...

— Matar não é necessário, por enquanto. Apenas faça-a entender como lidamos com mulheres como ela.

— Sim, senhor. — Digo virando em direção a porta.

— Antes de ir, filho, quero que você vá com Orrel, estamos ajeitando as coisas para a operação de entrega das garotas, ficaria mais tranquilo se você acompanhasse seu primo.

Viro encarando os dois. — Onde será a entrega? Não acredito que seja um bom negócio nos arriscarmos atravessar o oceano com três garotas marcadas pela Interpol.

— Concordo com você, mas faremos a troca aqui mesmo, em nosso território. Por mais que o negócio tenha sido feito em família não vou arriscar perder meu melhor soldado.

— Isso poderia me ofender, titio. — Orrel retruca bebendo sua bebida, com os olhos cravados em Czar.

— As novas identidades e modificações já estão sendo realizadas por Martin, ele irá com você para verificar o pagamento.

— E meu chefe também cobrou alguns pequenos favores das autoridades para que eu viaje tranquilamente de volta para casa.

Concordo com um pequeno gesto.

— Pode ir, vejo que está ansioso para sair. Aguardo você amanhã, pronto para os negócios.

***

Sabia que as probabilidades de encontrá-la ali seriam escassas, mas sabia do apreço que tinha por esse bar. Por isso escolho a mesa fora do foco das luzes, isso sempre foi meu rito, não chamar atenção era o primeiro passo se você deseja observar e não ser observado. Enquanto aquelas pessoas bebiam, rindo e totalmente descontraídas, mal tinham noção que um cara qualquer estava sentado na pequena mesa alta no canto do bar, ganhando uma ampla visão de tudo que acontecia. Ali tinha a visão da porta principal, assim como o salão adjacente onde o barulho era maior.

Agora era aguardar.

Por um lado, a pequena espera de uma hora foi frustrante, ver tantos rostos femininos entrarem e saírem de meu campo de visão me deixava irritado. Por outro, analisar cada rosto me trouxe o dela... Não conseguia recordar o nome, mas eu já tinha sido apresentado a ela pela Adria, era a mulher de sorrisos fáceis, ela era solitária, do tipo que vinha para o bar em busca de alguém que fizesse suas pernas se abrirem, o que hoje não seria tão complicado pela gana que ela tomava sua bebida.

Saio do meu pequeno esconderijo atravessando a massa de corpos lentos, preferindo agir antes que a bebida faça isso primeiro. Puxo o homem que está prestes a sentar ao lado dela, tirando-o do meu caminho, tudo que precisei foi manter a cara séria para que ele desistisse rapidamente.

— Acho que te conheço. — Digo sorrindo, usando a cantada mais furada dos homens.

Ela me encara, buscando algo na mente.

— Kiran. — Respondo sua pergunta não pronunciada estendendo a mão para ela.

— Oh, claro! Amigo da Adria! — Diz sorridente.

— Isso mesmo, mas acho que sua amiga anda me evitando.

Ela toma um generoso gole sorrindo. — Adria é uma mulher durona.

— E tem que ser, pelo que aconteceu com o pai... é uma coisa horrível... Meu Deus, desculpe, estou sendo indelicado. — Digo com falso remorso.

Os olhos dela se arregalam minimamente, mas tiro minha confirmação dali. Lutter não estava mentindo, Adria era mesmo filha de um agente do FBI. O que mais aquela mulher me escondia?

— Ela contou? — Era um misto de pergunta com afirmação.

— Gosto muito dela, mas sinto que ao citar compromisso ela escapa por entre meus dedos. — Brinco.

— Mas ela vale a pena. Posso ver em seus olhos.

— Desculpe, isso irá soar muito indelicado. Mas você sabe quando ela retorna para cidade? Pelo visto não foi hoje.

— Ah, eu não posso te ajudar, não sabia que ela tinha se afastado da cidade.

Analiso seus olhos, notando o tom de surpresa, ela realmente deveria estar no escuro quanto ao paradeiro de Adria e, se ela não contou para sua companheira de bar, significava que não eram tão amigas assim.

Adria mantém mais segredos do que Lutter conseguiu descobrir.

— Realmente ser assistente do senador deve ser esgotante. — Comento, pelo canto dos olhos vejo o sorriso sem graça que ela me lança. Talvez aí estaria mais uma das mentiras. Será mesmo que ela era assistente do senador? — Mesmo assim, obrigado.

— Não quer beber algo comigo? Poderíamos ser companhia um para o outro.

Esboço meu melhor sorriso, agradeço e vou embora. Ali não teria as informações que eu precisava.

Novamente invado o apartamento dela, por incrível que pareça seu cheiro ainda está presente no ar, como se ela tivesse passado neste exato segundo. Porém, sei que isso não ocorreu, o apartamento continua do mesmo jeito, nada fora do lugar e nada para me dizer. Mas isto não impede que adentre o quarto, que mexa em gavetas ou que procure os segredos e o motivo do sumiço dela por todos os cantos.


Dirigir geralmente é uma pequena válvula de escape quando preciso aliviar as pressões do dia; mas hoje, isso não me ajudará, não importa o quão fundo pise no acelerador e quão rápido o carro me corresponda. Hoje não funcionará.

Onde ela está? Essa porra não saía de minha mente. Por que diabos seu apartamento foi limpo? E quem era Adria Hamer de verdade? Essas perguntas também não deveriam orbitar meus pensamentos, eu estava ali por um propósito, vivia simplesmente para executar o que fui criado e ensinado para fazer melhor que qualquer outro. Eu era basicamente o culpado de declarar muitas pessoas para o inferno. Então por que, depois de todos esses miseráveis anos eu estava pela primeira vez questionando tudo isso? Por causa de uma porra de uma foda?


22


— É bom que se comporte.

Caio sentada, encarando meu agressor com repulsa e ódio nos olhos, mas ele não se abala, manda um beijo em minha direção antes de trancar a porta. Ao escutar todas as trancas se fechando e os passos dele para longe respiro aliviada, olho pela primeira vez ao meu redor e rostos, diversos rostos é o que eu encontro.

— Você é de onde?

Viro encarando uma mulata, sentada do outro lado do quarto encostada contra a parede.

— Nova York. — Minto.

— Sou do Brasil. — comenta.

Olho para o restante da sala, vendo todos os tipos de mulheres, devia ter umas dez garotas ali, algumas tinham grandes hematomas no rosto, outras tinham os punhos e tornozelos marcados, até mesmo o pescoço de algumas garotas estavam marcados.

— Quanto tempo vocês estão aqui? — questiono.

— Isso importa, já nem sei meu nome. — Outra menina responde, por sua aparência eu não daria mais que dezessete anos para ela, mas suas feições eram duras, seus olhos demonstravam que apesar de sua aparência nova tinha visto e sofrido demais.

— Meu nome é Andreia. — Responde a mulata.

— Pam. — Retribuo.

— Eles foram cruéis com você. — Uma garota morena chega mais perto de mim, analisando meus ferimentos. — Isso significa que você testou os limites, garota estúpida!

— Kim, não fale assim. — Andreia a repreende. — Não ligue, algumas de nós já se desligaram da humanidade faz um bom tempo.

— Imagino como vocês devem ter sofrido, temos que arranjar um jeito de fugir.

A tal da Kim gargalha, — Você ainda tem esperanças? Deixe-os te levar para os clientes então.

— Clientes?

— De dia ficamos trancadas aqui, tem outras meninas espalhadas em algum lugar desse inferno. De noite, alguns deles vêm nos buscar.

— E onde nos levam? — questiono.

— Não sabemos, eles tampam nossas visões, trocam de turnos quase todos os dias...

— E os caminhos também. — Responde outra garota.

— A verdade é que somos jogadas em um buraco menor que esse, nos trocamos e somos a sobremesa desses idiotas, porcos de uma figa.

Vejo a olhada feia que Andreia dá para as mais esquentadinhas, como se tentasse alertar para não falar demais, como se monitorasse as outras de perto. Uma observação que sempre esteve presente durante as investigações é do porque não havia nenhuma mulher comandando essas garotas, por que só homens? E agora, sentada ali, rodeada de mulheres, eu percebia que eles não precisavam ter uma mulher fora do cativeiro, eles poderiam muito bem ter uma dentro, uma que controlasse as outras, que fosse astuta o suficiente para aproveitar os dias ruins e fazer um acordo com o diabo.

— Quantos anos você tem? — uma loirinha, miúda e magra sai do fundo do cômodo vindo até mim. Seus olhos azuis estão apagados, seu rosto sujo, assim como suas roupas.

— Trinta e dois.

Vejo um pequeno brilho surgir em seus olhos. — Sorte sua, as mais novas sempre somem, não sabemos o que acontece com elas, mas já percebemos que as mais velhas sempre ficam como escravas deles.

— Quem aqui tem menos de vinte e cinco anos? — pergunto.

Fico assombrada com o número de meninas que ergue timidamente as mãos.

— A questão, Pam, é que os clientes podem fazer o que quiser conosco. Como Tasha disse, as mais velhas viram prostitutas e escravas aqui dentro, já que as mais novas sempre somem primeiro. — A tal de Kim vira-se mostrando as costas, mesmo com a luz fraca do ambiente vejo vários cortes em suas costas, alguns tão grosseiros e profundos que deixariam cicatrizes horríveis.

— Você terá sorte se continuar inteira depois de poucas semanas.

— Chega meninas, logo eles estarão aqui e não queremos sofrer por contar demais para a novata. — Andreia diz, fazendo as outras recuarem para seus lugares.


O som das travas faz minha pele se arrepiar, eu já não tinha boas lembranças da porta se abrindo. Mas suspiro contente por ser Netlen quem surge na entrada.

— Vim trazer a comida de vocês.

Ela me olha por um instante antes de retomar o trabalho, quando abre mais a porta vejo que não está sozinha um capanga acompanha seus passos, ficando de guarda na porta. Aos poucos ela vai entregando para todas as garotas, mas quando se agacha em minha frente é repreendida pelo capanga.

— Essa daí ficará com fome.

— Desculpe. — Escuto Netlen dizer baixinho, voltando para o pequeno carrinho, devolvendo o pote de alumínio.

Aquelas garotas eram tratadas como animais, eram agredidas, torturadas e ainda não tinham direito nem a um par de talheres para se alimentarem. Apesar de que eles estavam certos, eu poderia planejar alguma coisa com um garfo, assim como fiz com o caco do espelho.

— Ei.

— Novata... — escuto baixinho, viro o rosto, vendo uma ruiva acenar rapidamente para mim. Saio de minha posição no canto oposto, sentando ao seu lado. — Posso dividir com você, parece faminta.

Acho que o primeiro sorriso sincero se mostra em meus lábios.

— Obrigada, mas coma. Eu fiquei bons dias sem comer, já sei como é o modo de operação deles.

— Você não é como nós... — sussurra colocando um punhado generoso de comida na boca e lambendo os dedos.

— Como assim? — questiono arqueando a sobrancelha.

Ela dá de ombros.

Permito que ela continue comendo e que sua observação sobre ser diferente delas, acabe no esquecimento.

— Sabe... — diz mastigando. — Fique esperta com algumas garotas.

Encaro seus olhos, vendo o toque de verdade espelhado ali.

— Algumas sabem bem como tirar proveito deles, principalmente do chefão. — Quando ela diz isso encara diretamente Andreia, comendo mais afastada das outras garotas.

— E o Lobo? — questiono, vendo seus olhos se arregalarem.

Ela suspira, abandonando a comida. — Faz tempo que ele não aparece, pelo menos aqui. E isso dá espaço para os caras lá fora fazerem o que quiserem conosco. Não que eles não façam mesmo com ele vindo, mas eles têm medo, ficam mais contidos.

— Quantos anos você tem? — pergunto admirando as pequenas sardas em seu rosto, o cabelo alaranjado com cachos emaranhados.

— Vinte.

— E...

— Como vim parar aqui? — advinha minha pergunta, concordo esperando que responda. — Oportunidade de vida melhor, fiz um intercâmbio para Nova York, estava procurando empregos em agência de modelos. Um dia um homem me parou, fez algumas perguntas e me convidou para tomar um café.

Posso até imaginar a cena em minha mente, uma garota nova, numa cidade desconhecida...

— Eu fui burra, meu pai sempre falou para não dar atenção a estranhos, mas lá estava eu, indo com esse cara para tomar um café, ele soube me enrolar, deve ter visto minhas pastas ou devia estar me seguindo, não sei, o que me lembro é que virando uma rua, outro rapaz me segurou por trás tampando meu rosto com um pano úmido. O que recordo no final é de estar sendo jogada numa sala imunda e depois me juntar a elas.

— Quanto tempo faz isso?

Ela me encara, um sorriso desanimado no rosto. — Acho que alguns meses ou ano... perdi a conta.

***

Com os dias vieram a regularidade e a rotina, eles permitiam que fôssemos aos poucos ao banheiro, sempre sozinhas e acompanhadas de dois capangas. Comigo a única diferença pelo visto era a alegria que eles tinham em me aterrorizar, desde mostrar que usavam armas ou quando o tal de Deany era um dos caras, ele sentia prazer em me encurralar contra a parede passando a faca sob meu rosto numa ameaça velada.

De noite as meninas mais velhas eram levadas encapuzadas para fora. Como desconfiei, Andreia era a única que não sofria tantas ameaças como as outras, ela era privilegiada, todos sabiam, mas ninguém sequer questionava ou parecia se importar com isso. As garotas que ficavam naquele cômodo eram as mais novas, durante algumas noites elas saíam e demoravam para retornar, mas quando voltavam estavam limpas e posso dizer que tinham até um pequeno toque de maquiagem pelo rosto.

— Tudo bem? — questiono assim que um dos capangas empurrou Erika em minha direção, seus cabelos ruivos estavam penteados e limpos.

— Eles nos fizeram tomar banho e não banho na torneira do banheiro, banho mesmo.

— Não veria isso como um bom sinal. — Digo quebrando o sorriso que aparece em seu rosto.

— Sou tola. — diz de maneira tristonha.

— Não pense assim, só que eles não dariam um privilégio por nada.

Eu mesma mal sabia quantos dias tinham se passado, senão semanas sem que eu pudesse entrar realmente debaixo de um chuveiro. Os banhos com água aquecida e meus produtos de higiene pareciam remotamente um sonho.

— Eles estavam nos catalogando.

Encaro Kim, ao sentar perto de nós.

— Tráfico. — Digo mais para mim mesma do que para elas.

— Exato. Escutei um deles dizer que três garotas foram escolhidas e vendidas para um cara grande.

— Por Deus! — Erika exclama com olhos arregalados.


KIRAN


Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, passando a mão pelo cabelo úmido. Jogo a toalha sobre a cama, colocando a calça e o coldre, dando a volta no quarto para pegar minha faca sob o travesseiro, assim como a arma.

— Vejo que já está de pé.

Encaixo a arma no coldre embaixo do meu braço, colocando a jaqueta preta por cima. — Mesmo de costas eu poderia atingir sua orelha daqui.

— Meu Deus, quanto mau humor, primo!

Viro para encarar Orrel. — Estamos atrasados.

— A boceta me manteve aquecida por um longo tempo. — diz rindo. — Três buracos em uma noite só, verdadeiramente uma boceta de luxo. Melhor maneira para me despedir dos Estados Unidos.

— Sairemos em quinze minutos. — Digo saindo do quarto. — Eles estarão esperando em um dos armazéns de Czar.

Caminho pela casa, até a entrada, precisava de homens que confiava comigo, não iria de peito aberto encontrar com traficantes de armas do mercado negro com apenas o bocó do Orrel e Martins.

— Quem foi escalado para hoje? — pergunto para o pequeno grupo de homens de Czar.

— Try, Martin e eu, senhor. — Lutter responde.

— Ótimo, temos tudo que precisamos para constatar o pagamento?

— Sim, senhor. — Martin responde imediatamente.

— Preparem o carro, em cinco minutos sairemos, onde estão as garotas? — questiono.

— Try está no galpão sul aguardando por nós.

— Perfeito. Tem mais algum relato dos problemas que a tal novata está causando?

— Ela é difícil, além de fatiar Kyhun, chamou atenção de Deany. — Um dos homens disse.

— Vou resolver isso quando retornarmos, temos que evitar as rotas mais comuns, depois que Deany e Ron fizeram aquela merda com as duas garotas, a polícia ficou alerta nas interestaduais e perto da fronteira.

— Sim, senhor.

Volto para dentro de casa, parando na porta do escritório de meu pai, bato duas vezes e aguardo esperando sua permissão.

— Entre.

— Estamos saindo. — Comunico ignorando a mulata sentada sobre seu colo. Andreia era uma cobra venenosa, inflava o medo nas garotas por ordens de meu pai, assim como foi bastante ardilosa conquistando um lugar na cadeira para não ser vendida quando houve oportunidade.

— Aqui contém os documentos necessários. — diz estendendo a pasta preta em minha direção. — Quero que verifique e tome cuidado, ao menor sinal de traição vindo de Orrel, mate-o.

— Sim, senhor.


Eu executava o trabalho sujo, limpava as merdas que os outros deixavam para trás, arrancava dedos ou as línguas dos traidores, matava se necessário, entrava como um fantasma na vida dessas garotas e lhes arrancava a alma. Era bom, muito bom no que fazia, sentia o frenesi que o sangue jorrando do corpo dos inimigos me dava, e mesmo dado a ter um pouco de compaixão com essas garotas, o lobo dentro de mim gostava das pequenas caças. Mesmo que acabassem tão rapidamente, era eletrizante sentir o medo delas correr por minhas veias. Por isso, já não me importava com minha própria alma, pois sabia que ser o que sou, fazer o que faço, não me deixaria ileso. Muito menos sem um lugar no inferno.

Inclino-me para trás, indiferente, colocando as mãos nos bolsos de minha calça. Orrel estava certo, não tinha mais nada que poderia fazer por essas garotas, era como pequenas partículas de areia esvaindo-se por meus dedos e o demônio dentro de mim sorria por eu não ser um fracote. Sorria por minha postura indiferente e pelo olhar decepcionado que elas me lançavam. Expectativa, esse era o maior problema. Elas acreditavam que por eu mantê-las com um resto de sanidade e decência que eu as deixaria fugir. Hoje eu não estava ali para livrá-las dos homens maus, eu era um deles.

A partir do momento que Orrel partisse com elas, seus futuros eram tão ou mais incertos do que no dia que elas vieram para mim.

— Porra, seu pai não estava brincando quando falou que tinha um belo arsenal de carne de primeira! Depois de um trato, até que elas ficaram realmente prestáveis.

— Contenha-se.

Orrel me lança um sorriso arrogante.

— Estamos prontos. — Try anuncia colocando sua arma no cós da calça.

— Iremos nestes carros? — Orrel reclama.

— Bons pneus, iremos precisar ao sair da estrada.

Try tira as abraçadeiras de nylon dos punhos, encarando sério as meninas. Ninguém ali estava disposto a ganhar um tiro de Czar por deixar essas meninas sumirem.

— Vocês não tentarão nada, irão conosco sem nos causar problemas.

Elas concordam rapidamente, seus olhos arregalados, assustadas.

— Lutter irá com vocês, Martin e eu levaremos a encomenda no outro carro. — Try diz.

Meia hora depois, estávamos enfrentando os trechos irregulares do deserto a caminho de um dos armazéns de Czar, usávamos pouco esse local, por isso o risco de enfrentarmos qualquer problema seria quase nulo. Lutter acelerou fazendo terra subir ao nosso redor e o frouxo do Orrel agarrar a porta como se tivesse sendo ameaçado a pular do veículo em movimento.

— Pelo visto não está reclamando do carro agora. — Digo sorrindo.

— Syn Shlyukhi! 16— Rosnou em minha direção.

Saio do carro acompanhado de Orrel e Lutter, um dos homens de meu pai sai de dentro do armazém nos cumprimentando em silêncio.

— Tudo certo, senhor.

— Ótimo.

Todos nos sentamos ao redor de uma mesa retangular no meio do armazém. Ocupo a cabeceira da mesa com Orrel sentado ao meu lado. Os dois traficantes estavam sentados do outro lado, com olhares presunçosos em seus rostos. Os capangas ocuparam seus lugares, dois atrás de mim e outro perto das garotas, que estavam sentadas um pouco mais longe com os punhos amarrados, assim como alguns homens do lado dos traficantes estavam observando da porta.

— Frank, mein guter Gefährte17. — Orrel exclama sorrindo.

— Detesto quando acha que pode falar em alemão comigo. — Reclama o gordão alto, mostrando a arma no coldre embaixo de seu braço.

Por um segundo fiquei calculando quantos tiros ele tomaria até que conseguisse retirar a arma debaixo de tanta gordura.

— Estou bem também, muito obrigado por perguntar. — Orrel diz.

— Você deveria estar com suas bolas presas na garganta, tem sorte de seu tio ter salvo sua pele. — Retruca nos encarando. — Não é como se você e sua laia merecesse boas-vindas.

— Acredito que deveria manter a língua dentro da boca, se não quiser que a lâmina de minha faca arranque um pedaço dela. — Digo encarando-os.

Ele descansa a mão sobre a arma no coldre, mas não a puxa.

— Não queremos que isso acabe mal, não é? — Orrel pergunta, em voz baixa. — Nosso chefe não irá gostar que a mercadoria que ele tanto esperou não chegue até ele.

O gordão assente, relaxando a postura, acenando para que os outros fizessem o mesmo. Mas o cara em nossa frente não estava se importando das consequências em nos atacar. Por vários segundos nenhum de nós se moveu, até que todos os homens tivessem recuado com suas armas nos coldres.

— Podemos começar a tratar do que realmente interessa? — questiono.

— São elas? — O tal Frank pergunta olhando com cobiça para as garotas.

Não precisava olhá-las para saber que estavam tremendo de medo, que seus olhos estavam arregalados.

Um dos homens sai de sua posição, colocando no meio da mesa uma imensa caixa.

— Aqui estão as armas combinadas.

— Verifique. — Ordeno olhando para Lutter.

— Quanto a outra parte do combinado, aqui está uma conta da Deep Web, não é rastreável e totalmente segura. — Deslizo a pasta na direção deles. Frank examina o conteúdo, encarando Orrel por cima da pasta.

— Isso não foi o combinado.

Orrel se mexe impaciente na cadeira.

— Estamos entregando as três peças que seu chefe tanto se interessou, abrindo mão de uma venda mais significativa em nome da família. Tudo que vocês têm que fazer é pagar o valor que está na pasta, juntamente com os rifles. Ou podem enfiar essas armas no cu e explicar para seu chefe como vocês atravessaram o oceano para se tornarem incompetentes, acredito que dessa vez, serão vocês que terão as bolas enfiadas no meio da garganta com a boca costurada. — Digo. — É simples. Vocês irão pagar o que meu chefe combinou com o seu ou irão voltar sem nada?

Frank limpou a garganta, olhando para os outros. — Certo, ninguém precisa sair prejudicado.

— Terei que verificá-las.

Faço um gesto, permitindo que ele olhe as meninas. — Se tiver um toque abusivo, atire nele. Try.

Try confirma tirando a arma do coldre, deixando em frente ao seu corpo.

— Como você desafia esses caras? — Orrel sussurra.

Bufo. — Pelo visto o Orrel sanguinário que eu conheci virou um grande patife.

— Tá falando o quê? O Sr. Compaixão quer discutir comigo sobre ter prudência? Esses caras não são um dos capangas de seu pai que você controla, eles nem ousariam em arrancar nossas tripas pelo nariz.

— Então que sorte tivemos. — Retruco sem desviar os olhos.

Martin confirma que o pagamento foi feito corretamente, mostrando o saldo total. Ele fecha o pequeno computador, levando junto de si a caixa com o armamento. Frank se levanta, abotoando o paletó, faço o mesmo.

— Foi um prazer fazer negócio.

Concordo, me mantendo em silêncio. Assistindo quando Try entrega as garotas para os outros capangas, eu os assisto saírem sem darem um segundo olhar para trás.

— Foi muito agradável esse tempo por aqui. — Orrel diz em despedida.

— Veja se mantenha as bolas dentro de suas cuecas. — Brinco.

Ele sorri como o sacana que é.

— Nos vemos pelo mundo, primo.

Assinto, vendo-o seguir os capangas entrando nos carros e sumirem de vista erguendo uma parede de poeira lá fora.


Estados Unidos, 2002

Aperto meus olhos, em completa confusão para aqueles doentes fodidos em minha frente.

— Você entendeu seu trabalho? — meu pai perguntou para seu capanga.

Nunca tinha visto um homem aguentar tomar tanta porrada, não tinha uma parte do seu corpo sem alguma marca de corte, soco ou agressão que sofreu. Por que ele estava passando por isso, não sei dizer, mas segundo Czar era importante eu ver o que acontecia com aqueles que nos traíam.

— Eu vou repetir quantas vezes mais, não tive nada com isso! Se elas fugiram não foi culpa minha! — Ele literalmente rosnava em direção ao meu pai.

Czar sorriu de maneira assassina e caminhou até uma maleta vermelha disposta na mesa. — Eu admiro homens como você, Remy. — Czar tirou uma furadeira elétrica de dentro da maleta de metal.

Os olhos do homem se arregalaram ao ver meu pai testando seu instrumento.

— Eu prefiro mortes rápidas, limpas. Mas quando preciso ensinar não só os homens que me traem assim como meu rebanho, é necessário deixar o trabalho sujo. A tortura é uma arte.

Czar enfia a ponta da furadeira no meio da coxa do capanga, ele literalmente se morde para não gritar. O sangue se espalha no terno impecável de meu pai, assim como no abdômen do capanga.

— Existem pessoas que conseguem evitar que o grito saia de maneira rasgante da garganta, isso é um bravo sinal de força. — Czar tira a furadeira, enfiando-a na outra coxa, só que mais perto do joelho. Aquele sangue todo jorrando me fazia querer vomitar, minha bile azedava minha boca. — Mas uma hora ou outra, todos acabam falando.

Czar retirou a furadeira, a broca girando no ar enquanto ele mantinha o dedo apertando o gatilho, fez o sangue espirrar no rosto do seu capanga. — Você está com sorte, estou me sentindo completamente bondoso hoje.

O tom frio de Czar não deixou Remy confortável com suas palavras.

Foi um piscar. Eu simplesmente pisquei, o tiro foi disparado, acertando diretamente na testa de Remy, espirrando os miolos pela parte de trás de sua cabeça, respingando para todos os lados. Sangue e morte pairavam no ar, um cheiro que era conhecido para mim, mas que sempre me assombrava. O corpo do capanga ficou dependurado na cadeira, o resto de sua cabeça jogada para trás, assim como o pequeno gotejar do sangue soava alto pelo galpão. Czar atirou sem olhar, uma execução sem hesitação, sem aviso e qualquer tipo de remorso.

Czar vem em minha direção, arregaçando as mangas da camisa social manchadas de sangue. Aceita a toalha de mão que um de seus capangas lhe entrega, limpando do rosto os vestígios de sangue do seu homem.

— Não sabia que ainda se colocava em ação. — Retruco.

— Quando necessário. Tem coisas que só saem do jeito que planejamos se nos arriscamos.

— Tráfico de mulheres?

Czar me encara.

— Estamos vendendo mulheres agora? Acreditei que estava mais interessado nas armas.

— Há quem diga que sou perverso por isso, afinal, todos têm uma mãe ou uma criança. Como não tenho ambas, não posso dizer que sinto tal apego. E é exatamente por isso que lhe chamei aqui.

— Pensei que era para assistir ao espetáculo de agora há pouco.


— Você anda um rapazola insolente.

Olho em seus olhos, frios e como sempre assustadores e sem qualquer tipo de emoção. — Desculpe.

 

— Com a morte de Mikhal, preciso de alguém de confiança no lugar. Abra a pasta.

Volto em direção à mesa, pegando a pequena pasta, abrindo-a. No interior tinha todo tipo de informações, informações essas de uma jovem, estudante de jornalismo. Em resumo, ela estava sendo investigativa demais, estava enfiando seu nariz onde nunca deveria sequer ter sonhado: no rabo de meu pai.

— O que deseja? — pergunto, tornando a olhá-lo.

— Dê um susto nela. Você mais que ninguém sabe como ser um lobo feroz, mostre o quanto o silêncio dela pode ser apreciado.

— Você quer a língua dela? — questiono de maneira sarcástica.

Czar me olha sorrindo. — Quero-a para mim, será um belo item para se ter.

— O que você faria com ela?

Czar arranca a camisa suja, jogando-a no pequeno cesto de lixo, retirando outra limpa e imaculada de sua pasta de couro. — Capture-a e logo saberá. Seu verdadeiro propósito começa hoje, Lobo.

Aperto os olhos, absorvendo suas palavras.


24


— Você precisa comer. — Erika comenta pela segunda vez.

— Estou bem. — Minto.

Eu já estava começando a perder certas percepções das coisas, uma delas era os dias. Já não conseguia perceber se estávamos no meio do dia ou meio da tarde. O fato de não comer era um grande motivo, meu estômago não reclamava mais, a dor tinha se instalado em meu abdômen, assim como a grande fraqueza que tomava conta do meu corpo.

Erika chegou mais perto, dividindo sua comida. — Coma, não quero que morra por fome, se dividirmos eu não fico com fome e você recupera um pouco das forças.

Encaro seu rosto cheio de sardas e os olhos acolhedores. Desviar o olhar para a comida faz minha boca salivar, aquilo parecia uma lavagem, mas até mesmo essa comida duvidosa era melhor que nada.

— Obrigada. — Digo pegando um punhado, colocando-o na boca. A primeira vez que engoli fez arder minha garganta, mas não parei, continuei mastigando de maneira rápida e esfomeada.

Erika encarou a porta fechada, voltando seu olhar para mim. — Vai com calma, vai morrer entalada. — diz rindo.

Sorrio, mastigando melhor a comida.

O som da porta se abrindo com violência fez com que pulássemos no lugar; óbvio que assim que o capanga entra naquele cômodo que chamávamos de quarto, avista Erika dividindo sua comida comigo. Ele caminha como um búfalo enlouquecido para cima dela, agarrando seus cabelos, dando tapas em seu rosto cada vez que abria a boca para dizer algo. Ao contrário de mim, que largo tudo para voar em cima dele, atingindo-o onde era possível, nenhuma das outras sequer nos encaram e isso é errado. Elas não lutam pela vida das outras, evitam se colocar em evidência pela própria sobrevivência naquele inferno.

— Chega, agora você vai ter o que merece! — Diz agarrando em meu cabelo, fazendo com que eu não me livrasse de suas mãos nojentas. — E você, vadiazinha, vai aprender como é ruim ficar na solitária!

Erika chorava baixinho, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Cale a boca! — Diz acertando um tapa no meio do rosto dela com a mão livre.

Ele nos arrasta para fora dali, fazendo o restante de comida voar longe, rapidamente outro capanga vem ao seu encontro, segurando Erika com os braços para trás.

— Leve essa daí para um passeiozinho na solitária, enquanto eu vou dar um jeito de mostrar bons modos para esta vadia. Já está na hora de alguém ensinar-lhe algo.

O outro concorda, sumindo de vista pelos corredores, fazendo meu pedido de desculpas para Erika ficar entalado na garganta juntamente com o remorso.

— Deixe-a em paz, eu sou a culpada! — Digo enquanto ele me arrasta pelo lado contrário que o outro levou Erika.

— Que nobre de sua parte, mas aqui não funciona assim. Se ela dividiu sua comida é tão culpada quanto você!

Passamos por uma sala, a porta estava aberta e o barulho de uma possível TV saía dali; alguns homens nos encararam sorrindo e no meio deles Luigi. Aquele verme deveria estar me ajudando a mandar informações para o FBI. E não estar sorrindo no meio daqueles homens.

Entramos em um pequeno espaço aberto, ali parecia mais um galpão acoplado com o que quer fosse aquele inferno, do que os fundos de uma boate do centro da cidade.

O capanga coloca uma algema em meus punhos, amarrando a uma corda sobre minha cabeça. Afasta minhas pernas com um chute em cada pé que me faz ranger os dentes de ódio.

— Vou pegar uns brinquedinhos para colocar você na linha. E não adianta gritar pelo Lobo, pois o protetorzinho de vocês não está aqui.

Quando ele volta, uma pequena barra de ferro está em suas mãos, assim como trouxe plateia. Um deles sendo Luigi.

— É bom aprender como as coisas funcionam por aqui.

Não sei se foi mais um dos avisos para mim ou se ele estava falando com Luigi.

— Aproveitamos que Try e Lobo não estão aqui, não teremos nenhum delator para o chefe. O que nos garante diversão. — Ele se vira encarando os comparsas, que sorriem concordando. — Porque se um falar, todos caem.

Ele se voltou para mim com a barra nas mãos e com força bateu em minha coxa direita. O estalo em meu osso foi audível para todos, o grito irrompeu minha garganta, correndo pelo espaço, fazendo aqueles homens sorrirem. — Se eu bater nos lugares certos vai causar bastante dor, mas não será suficiente para que morra, posso te deixar aqui durante os próximos dias, e nos revezarmos para surrar de novo.

Ele parou de falar, entregando a barra para Luigi e sorriu.

— Quer tentar?

Os olhos de Luigi encontram com os meus e mesmo que disfarce tenho receio do tamanho de rivalidade que ainda exista dentro dele por causa de nossa última operação. Ele dá alguns passos em minha direção, batendo a barra em uma das mãos, como uma mãe faz com o chinelo antes de castigar o filho.

— Não leve para o lado pessoal, colega. — Sussurra em meu ouvido, de forma que ninguém escute.

Viro o rosto, encarando-o com ódio.

Escuto o barulho da barra no ar antes mesmo de tocar meu braço, a dor é tão forte, que me faz remexer agoniada nas correntes. Luigi segura meu rosto, dando um beijo em minha bochecha.

— Você precisa avisá-los. — Sussurro quase engasgando de dor.

Seus olhos encontram os meus, ele confirma rapidamente antes de dar outro golpe em minha barriga.

Meu grito enche o local fazendo os homens ali presentes sorrirem satisfeitos, excitados por torturarem alguém.


BAKER


Três meses, esse era o tempo que Adria estava infiltrada na organização. E em nenhum momento houve qualquer interação ou mensagem dela ou do agente Wenth.

— Atolado em papelada Stone?

— Pois é. — respondo com um sorriso.

Clain se senta na ponta da mesa me encarando. — Você também está achando estranho, posso ver em seu rosto.

Encosto na cadeira, deixando de lado o caso em minha frente.

— Nenhum recado?

— Não.

— Wenth também sumiu do mapa, ficamos esperando no ponto combinado, mas não apareceu. Informamos ao diretor.

— Alguma posição dele?

Pela simples desviada de olhar, sei que não. Se nosso diretor não estava vendo um erro ali, obviamente sabia de algo que não estava passando para nós.

— Posso esperar você aniquilar isso e quem sabe tomar uma cerveja, o que acha?

— Acho que deve ir para casa, quem sabe outro dia.

— Até mais, cara.

Faço um gesto com a mão vendo meu amigo sair do escritório. Olho em direção ao escritório do diretor, fecho o caso em minha frente, enfiando na gaveta.

Bato na porta e aguardo.

— Stone, pensei que todos tinham ido para o happy hour.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Entre, entre. Quer uma bebida? — diz dando a volta na mesa.

— Obrigado.

— Desembucha, agente. Posso ver fumaça saindo de sua cabeça. — diz entregando-me um copo.

— Temos algum relatório dos agentes, senhor?

Menfys coça o queixo e esse gesto não é algo bom.

— Até o momento o agente Wenth não compareceu aos dois últimos encontros, como sabe, a agente Hamer não pode entrar em contato conosco, o que implica tudo para seu parceiro.

— Que no caso está fugindo de seu compromisso conosco? — retruco.

— Infelizmente sim. Enviei um agente para aguardá-lo em casa, de alguma maneira iremos encontrá-lo.

— Adria tinha suspeitas sobre o agente Wenth, tinha suspeitas que ele não levasse seu trabalho a sério.

— Stone, sei o caminho que está querendo ir, mas somos agentes, enfrentamos riscos, Wenth não seria diferente.

— Senhor...

— Está ficando tarde, por que não descansamos e retomamos o trabalho amanhã?

Concordo. — Sinto muito.

***

Entro no departamento, deixando minhas coisas sobre a mesa.

— Agente, Menfys está procurando você.

Como a porta do escritório está aberta, apenas bato antes de entrar. — Senhor.

Quando entrei, ele estava sentado atrás de sua mesa, seus braços estabelecidos na frente dele, a cabeça inclinada levemente para o lado.

— Entre e feche a porta, agente.

Faço como pede e ao me virar dou de cara com Wenth.

Eu me aproximo e sento em uma das cadeiras na frente de sua mesa, olhando nos olhos de Wenth.

— O agente Wenth explicou sobre os motivos de nos deixar aguardando uma posição dele.

— Estava em uma festa? Curtindo umas férias? — retruco.

— Stone...

— Queria ver você aturar toda aquela merda!

— Agente Hamer, como ela está? Você deveria ter passado informações!

— Stone. — O diretor adverte novamente.

Engulo em seco. Eu queria socar a cara desse imbecil, hoje consigo compactuar com todos os sentimentos de repulsa que Adria tinha por Luigi.

— Está tudo sob controle, ali não é uma colônia de férias, é preciso dançar conforme a música para não levantar suspeitas. A Penlin é apenas algo de fachada, eles se revezam entre galpões, tenho apenas ciência de um.

— Só isso? Foram três meses para dizer apenas essas merdas?

— Stone, ou se acalma ou o mandarei sair!

Inclino para trás em minha cadeira, cruzando os braços sobre o peito, e não recuando.

— Vamos lá... Dê seu relato, agente. — Rebato, encarando Wenth.

Wenth retribui meu olhar. E sei que por dentro ele quer realmente me mandar à merda.

— Os Rootns estão mais cautelosos depois que capturamos Rowsend, eles trocam diariamente de turnos, fazem o mesmo com as garotas, poucas pessoas têm acesso livre a elas.

— Agente Hamer está entre elas?

— Sim, só tivemos contato na semana passada, estava esperando eles saírem do meu pé para vir aqui. Ela tem sido um pé no saco deles, não tem facilitado em nada, o que faz com que tome correções deles.

Merda, Adria! Foi a primeira coisa que alertei para não fazer, ela é tão bocuda quanto seu pai!

O diretor suspira. — Algum indício que eles desconfiam de algo?

— Não, senhor. Está caminhando tudo perfeitamente.

— Hamer mandou algum relatório? — torna a questionar.

— A agente está bem, mas como disse, eles são cautelosos e um cara que a entregou para eles não tem muitos acessos logo de cara.

— Existe alguma forma de você se comunicar com a informante da agente Hamer? — pergunto.

— Posso ver.

— Tudo bem, agente. Marcarei o ponto de encontro e deixaremos no lugar de sempre.

— Perfeito. — diz se levantando. — Até, Stone.

Travo minha mandíbula encarando o diretor.

— Desembuche. — diz assim que a porta se fecha.

— Menfys, por Deus! O que esse palerma nos trouxe? Nada, não passou uma informação válida do caso, não passou onde estão localizados, como operam. Por Deus! — Digo levantando da cadeira. — Até um cão farejador seria mais eficaz!

— Acalme-se, Stone. Sei que o fato da filha do antigo parceiro estar no meio do furacão te deixa assim. Mas eles estão fazendo seus trabalhos. Não quero você metendo o nariz onde não é chamado e acabar colocando toda uma operação em risco.

— Não faria... — travo novamente a mandíbula.

— Agente Hamer é uma das melhores, se algo estivesse errado, acredita mesmo que ela já não estaria aqui em pessoa?

Aceno com a cabeça.

— Mantenha o foco em sua missão. Sei que pegou o caso dos Olivaras, posso confiar que continuará fazendo seu trabalho?

— Sim, senhor.

Ele balança a cabeça. — Dispensado.


26


— Solte-me!

O pedido é baixo e minha cabeça doía.

— Por favor! — A voz era de uma menina.

— Shiuu, shiuu! Fique calma, vai ser bem rapidinho, prometo que não vai sentir nada. Apenas abra as pernas.

Forço meus olhos abrirem, mas minha cabeça lateja tanto que torna isso difícil. Eles ardem, me fazendo piscar diversas vezes. Ergo a cabeça olhando para meus punhos, ambos vermelhos e cortados pela força que fiz contra as correntes. O frio também não é nada agradável, assim como o ato de me mexer é tão doloroso que preferia cair de novo naquele torpor que me encontrava, mas aquele choro mínimo chama minha atenção, faz com que meus olhos o cacem pelo galpão.

A menina me olhava, implorando por uma ajuda que eu não poderia. Seu rosto estava banhado em lágrimas, seus punhos amarrados acima da cabeça e seu corpo nu.

— Ainda vou comer essa bocetinha apertada, estou louco de tesão desde que chegou. Olha meu pau, sente desejo por ele? Quer ele na sua boca? Podemos ser muito felizes aqui, sabia?

Não consigo ver o rosto do verme sob a menina, mas o fato de ficar encarando-o molestar essa garota me dá náuseas, ele coloca seu pau entre as pernas, roçando seu corpo contra o dela.

— Bocetinha gostosa!

Me remexo nas correntes, atraindo a atenção dele para mim.

— Você ficará quietinha, senão eu corto sua língua, sua vadia! — Rosna para mim. Ele volta para a garota, passando a mão em seu rosto e enxugando as lágrimas que correm por suas bochechas. — Calma, eu serei bonzinho com você, você será uma boa garota, não vai? Não quer acabar como sua amiga, arrombada por dois homens maus, quer?

Ela chora mais alto, negando com a cabeça. — Por favor, por favor!

— Shiuu, quietinha! Quer que alguém nos escute? Quer tomar uma surra por isso?

— Não... — choramingou novamente.

Eu poderia gritar, chamar atenção para o que ele estava fazendo, mesmo sabendo que isso não resolveria nada, aquela garota, como tantas outras lá dentro, estava perdida. Se eu fosse imprudente agora, só traria mais dor para ela.

Remexo novamente nas correntes, sentindo as pontas de dor espalhadas pelo meu corpo, aqueles filhos da puta se divertiram me surrando.

A agonia, desespero e o medo faziam parte da minha alma naquele momento. Os olhos da menina cravados em mim me passavam todas suas emoções, fazendo-as percorrer minha corrente sanguínea, me corroendo por dentro, corroendo tudo...

Ele penetrou ela com força, tampando sua boca para não gritar, ele estocava com toda sua força, seu corpo esmagando o dela para evitar qualquer movimento. A cada saída e entrada que ele fazia naquela garota eu me sentia mais suja, mais nauseada e com mais vontade de matar todos eles.

— Caralho, caralho! — ele exclamou jogando a cabeça para trás.

Selou a boca dela com a sua, saindo finalmente de cima dela, guardou seu pau sem cerimônia alguma, recompôs sua postura. Deixando-a estirada no chão.

— Vou cortar as cordas, vista-se e não tente nada, amanhã vou lhe entregar uma pequena recompensa por ter sido tão amável. — diz cortando a corda em torno do pulso dela.

A garota ficou ali, deitada no chão em posição fetal, engolindo o choro.

— Levante-se. — Sussurro.

Ela vira, me encarando.

— Não deixe que ele encontre você assim, tem um banheiro ali. — Me remexo nas cordas tentando mostrar o lugar exato.

Ela chora ainda mais. — Eu... eu era virgem.

Respiro fundo, sentindo minhas próprias lágrimas escorrerem. — Qual é seu nome?

— March.

— March, vá até o banheiro, com calma. Limpe-se, sei que a sensação que está sentindo não vai passar, mas não deixe que ele retorne e encontro você assim.

Ela concorda, fazendo força para se levantar, indo até o pequeno lavabo imundo que eu tinha indicado.

Quando retorna, recolhe suas roupas, vestindo uma por uma, com calma. Mas não conseguimos mais conversar, ele retorna para sala, levando-a dali. Deixando para mim apenas seu olhar perdido e o testemunho de sua alma arrancada do corpo.

***

Meu estômago se revirava só de lembrar a cena que presenciei, de sentir a dor, o medo daquela menina exalando até mim, além das outras mulheres sequestradas. Depois de meses dentro dessa organização, não tinha visto uma única vez o líder disso tudo, o encarregado de organizar o esquema e de receber o dinheiro das vendas. Não tinha nem sequer visto o rosto do tal de Lobo. Tudo continuava numa imensa incógnita e secretamente, mesmo odiando esse fato, desejei que Luigi tivesse conseguido ir mais longe do que eu tinha conseguido chegar.

Várias perguntas ainda passam pela minha mente: como e onde as pessoas eram sequestradas? Quem as comprava? Quantos eram os envolvidos? Sabia que o chefão tinha uma boa equipe de capangas, tão ampla que conseguia fazer grandes revezamentos, durantes os dias. E o pior pensamento circulava pelo meu cérebro: por que em todos esses anos investigando, invadindo possíveis esconderijos, nunca conseguimos realmente acabar com eles? Será que os traficantes tinham consentimento das autoridades?

“Vamos minha superagente. Mantenha-se firme”.

Ergo a cabeça, olhando assustada para os lados. A voz do Baker foi tão real, poderia jurar que ele estava aqui. Esboço um sorriso idiota, estou ficando esquizofrênica! Puxo os punhos gemendo devido a dormência e a dor constante que se instalaram nos meus punhos.

— Ei, seus filhos da puta! — Grito.

Eles estavam sendo bons nos métodos de inutilizar uma pessoa, a privação de sono, além do fato de não comer estava fazendo-me perder a noção do tempo, assim como os espancamentos surpresas toda vez que eu tentava ao menos cochilar também ajudavam a intensificar o terror.

A vontade de gritar mais e me debater é grande, mas a dor que sinto espalhada por todos os meus membros me impede; quando olho para baixo vejo grandes hematomas espalhados, assim como sei que as pequenas fraturas em meus ossos vão me dar trabalho quando eu precisar realmente agir.

A porta do galpão é aberta, fazendo minha pele se arrepiar.

Um pequeno grupo de capangas entra rindo e comentando sobre suas conquistas quando o tal de Try para no meio me olhando.

— O que ela está fazendo aqui?

— Obra do Burn. — Comenta o mais baixo deles.

— Que porra, já avisei que aqui não é lugar! Logo o chefe estará aqui e não vão gostar dele atirando no nosso cu, vão? — Try resmunga, apagando o cigarro com a ponta do sapato. — Eu vou dar uma coça no Burn!

— Vou levá-la para o dormitório.

— Espere. — Try diz colocando a mão sobre o peito do capanga que vinha em minha direção. — Pelo visto te deram uma excelente surra, hein?

Estreito os olhos, mantendo meus dentes cerrados, só Deus sabe o que eu poderia fazer se deixasse minha raiva tomar conta de minha boca.

Try chega mais perto, me remexo tentando afastar meu corpo do seu toque, mesmo que seja inútil. As pontas de seus dedos circulam meus hematomas, assim como ele se diverte em descer os dedos pelas minhas pernas nuas. Malditos!

— Acho que terá que ver nosso médico.

— Isso não foi nada, ela aguentou firme todas as porradas. — diz o maldito que me bateu com a barra de ferro, entrando no galpão.

— Porra, Burn! Não sabe que elas serão levadas por estes dias? Você praticamente fodeu essa daqui! — Try resmunga.

— Ela estava merecendo.

— Chame o Doutor, depois coloque junto com as outras.

Burn dá de ombros, ainda encarando meus olhos. — Como quiser.

Meu corpo treme, não me sinto fraca por admitir que o medo corre por minhas veias cada vez que um deles chega perto de mim. Eu fui ensinada a me defender de homens como estes, mas quando você está com as mãos atadas e os pés, totalmente à mercê deles, o medo e tudo que presenciei esses dias tomam conta de mim, fazendo minha respiração acelerar, assim como meus batimentos cardíacos enlouquecerem.

— Parece que está com sorte. Se tentar alguma gracinha eu mato você aqui mesmo, entendeu? — Burn cospe em minha direção.

Confirmo com um gesto, me mantendo em silêncio.

Ele solta as correntes dos meus punhos, fazendo-me cair de quatro no chão. Sua mão se enrola em meu cabelo, me colocando novamente de pé, assim como a mão livre aperta minha nuca.

— Viu, alguns dias amarrada e a cadelinha ficou obediente. — Se vangloria para os outros.

Reviro os olhos respirando fundo, mas ao dar o primeiro passo meu corpo fraqueja, minhas pernas doem devido às porradas e a falta de comida, mas o verme ao meu lado não se importa, continua me arrastando de maneira cambaleante até um cômodo ao lado, trancando a porta assim que me empurra para dentro.


— E aí?

Abro os olhos sentindo o amargor tomar conta de minha boca.

— Ela tem um pequeno calo consolidado onde quebrou o osso, um processo automático do corpo em resposta à fratura. Creio que em duas semanas a fissura desapareça, mas tem que tomar cuidado. Evitem espancá-la nos próximos dias.

Burn esboça um sorriso sacana para o médico. — Vamos tentar!

O médico devolve um olhar incrédulo. — Se ela não tiver as condições mínimas para uma boa recuperação, seu chefe vai perder dinheiro. Eu não faço milagres, nem adianta vir com ameaças!

— Tudo bem, doutor, tudo bem. — Burn se vira para mim, notando que estava acordada. — Você ouviu, seja uma boa menina, senão, pedirei para o doutor vir costurar sua boca!

— Por Deus! — exclama o médico.

Burn gargalha alto. — Ele não existe, doutor, não existe. Venha vou lhe dar seu pagamento.

KIRAN


Perversamente, havia uma parte dentro de mim que esperava que essas garotas possuíssem um sexto sentido para detectar monstros em plena luz do dia. Mas assim como as outras, ela estava alheia à minha presença.

Solto um suspiro, eu era um monstro que ninguém pensava em procurar na luz do dia. Um erro comum, um erro fatal, muitos acreditavam que ficavam mais seguros à luz do dia, mas apesar de ser contra a natureza, meu lobo não saía para caçar apenas de noite. Segurança, um muro falso que todos se apegam; por detrás, o mundo inteiro está mergulhado em trevas.

Czar sabia disso, apreciava esse falso senso de segurança que as pessoas levavam consigo. Exatamente como me ensinou, garotas de famílias pobres eram mais fáceis de desaparecerem, de serem ludibriadas, mesmo na América. Em especial, quando a pessoa tinha idade suficiente para simplesmente fugir ou romper laços com a família, mudar de cidade. As desculpas eram infinitas. Garotas rebeldes fugindo, era a desculpa típica dada pelas autoridades quando não tinham mais onde procurá-las.

Do outro lado da rua, a garota brincava com um pequeno enfeite da bolsa, totalmente distraída, sua cabeça balançava ligeiramente acompanhando o ritmo da música que devia estar escutando pelos fones de ouvido. Seus olhos encaravam friamente o chão. Ela era bonita. Mas meu alvo hoje não era aquela garotinha.

Ela para, encarando o ponto onde estava escondido de seu olhar, mas logo sorri voltando sua atenção para a inútil tentativa de arrancar o pequeno enfeite.

— Discrição. — Digo sentindo Lutter se aproximar.

— Desculpe, Lobo.

— O que você tem para mim? — pergunto ainda de olho na cena em minha frente.

— Nada, sinto muito, Lobo. Mas essa mulher virou fumaça. Fomos até o senador que havia passado, mas ela nunca trabalhou com ele. Nos arredores do prédio onde mora nem sinal, literalmente sumiu.

— Impossível! Ela deve estar em algum lugar!

Vejo pelo canto dos olhos Lutter me encarando. — Por que está tão fixado nessa mulher?

— Não seria da sua conta, correto?

Ele concorda. — Mas sendo um pouco mais que seu capanga e sim, um amigo, posso pelo menos saber por que estou correndo pela cidade em busca de um fantasma? É algo para o chefe?

Viro olhando em seus olhos. — Czar não deve saber sobre ela, nem mesmo sonhar que anda investigando algo para mim!

— Por que estamos aqui? — questiona analisando a cena que se desenrola à nossa frente.

— Ordens. — Resmungo. — Ao que parece desci ao seu nível. — Olho para Lutter, dando de ombro, algo como um pedido de desculpas.

— Pelo visto os rumores são verdadeiros.

— Não sabia que era fofoqueiro.

Lutter sorri. — Eles gostam de uma tragédia, ainda mais quando é com você. Sabe que não é amado por muitos dentro da organização.

Suspiro. — Não estou ali para isso, mas ao que parece, caí em desgraça ao salvar uma inocente de Czar.

E depois de tanto esperar por meu alvo, ali está ele. O homem sai de dentro de casa, troca algumas palavras com a garota sentada na varanda, se enfiando dentro de um sedan.

— Guilhermo Sant? — Lutter questiona.

—Czar quer ter uma conversinha com ele. — Comento.

Enfio minhas mãos nas luvas de couro, entrando no carro, uma olhada em direção a Lutter e ele pula para dentro, acomodando-se no banco do passageiro.

Sigo o sedan a uma pequena distância, os vidros escuros do carro impossibilitam que ele nos reconheça, senão, estaria correndo tanto que logo atravessaria a fronteira.

Esperei que ele rumasse para o lado pouco movimentado da cidade; quando entramos em uma rua totalmente deserta, acelero o carro, ultrapassando o sedan de Guilhermo, pisando no freio ao jogar o carro com tudo na pista.

— Com certeza ele se cagou. — Lutter diz sorrindo.

Sim, o pavor nos olhos dele era nítido quando descemos do carro. Não sabia porque Czar estaria atrás de um traficante de drogas, mas não havia interesse nenhum em questionar.

— Guilhermo. — Digo girando minha faca entre os dedos.

— Lo-lo-bo. — Gaguejou erguendo as mãos.

— Que tal um passeio? — pergunto.

Lutter abre a porta do sedan jogando o homem para fora, fazendo-o rolar sobre o asfalto.

— Eu não sei o que fiz, mas podemos negociar!

Dou de ombros abrindo o porta-malas. — Isso já não é comigo.

— Lobo, não, me escute, eu tenho minha filha, não saí da linha.

— Não adianta implorar para mim, velho. Como disse, não me importo. Agora, se não entrar nessa porra de carro, eu não vou levar você inteiro, como meu pai pediu; quem sabe levo faltando alguns dedos.

Ele nega rapidamente, pulando para dentro do porta-malas, dobrando o corpo o máximo que consegue para caber.

— Leve o carro dele. — ordeno para Lutter.

Estaciono o carro no meio do galpão, Czar já nos aguardava, sentado de modo imponente na ampla mesa de mogno. Desço do carro, abrindo o porta-malas e jogando Guilhermo para fora.

— Entregue.

— Ótimo, agora faça aquele outro pequeno favor.

Ad18! Virei moleque de recados agora.

***

— Lobo.

Retiro o casaco pesado colocando no balcão do bar. — Net.

— Quer tomar algo? — pergunta erguendo seu próprio copo.

— Não, quero as atualizações.

Netlen dá a volta no balcão, sentando-se ao meu lado.

— O chefe quer levar as garotas para aquele bendito leilão. Tirando o fato que sua ausência aqui deixou tudo uma bagunça. — diz dando de ombro.

Garota abusada. Nunca entendi porque Czar aceitou Netlen em seu esquema, ele tinha mostrado diversas vezes que não tinha tolerância alguma com mulheres. Segundo os boatos, Netlen tinha uma dívida com Rowsend, por isso foi levada para nós.

— Não brinque com meu humor. — retruco.

— Desculpe.

Olho para seu rosto, vendo que morde avidamente seu lábio interior. — O que eles estão aprontando?

— Tenho duas garotas que mal conseguem abrir a boca, eles estão descontando a raiva de não conseguir aprontarem com a novata que Sebastian trouxe, então, descontam nas mais novas. A garota problema está com fraturas pelo corpo devido a última porrada que eles deram.

— Der’mo!

— É. — Netlen retrucou. — Mas não se engane, ela é osso duro de roer, ficou mais de cinco dias sem comer, tomou algumas surras, mas seus atos também não passaram despercebidos.

— É verdade que ela conseguiu cortar um dos nossos?

— Sim, com um caco do espelho. Assim como deu um belo soco em Deany.

Encaro surpreso, realmente essa garota não era das mais fáceis.

— Eu vou para o armazém, quero ver o que andam fazendo.

Ela concorda, terminando sua bebida.

Uso a passagem secreta para ir aos fundos da boate, giro a pedra de ferro revelando a pequena passagem para o armazém. A falta de luz e a pequena camada de pó que levei comigo ao descer as escadas fizeram com que parasse por um segundo.

Aquele abrigo parecia mais uma cadeia escondida debaixo do solo, suja, escura; se isso já não era capaz de causar medo naquelas meninas, ainda tinham que enfrentar aqueles homens sem alma, tomados e guiados pelos seus demônios e suas ambições.

A voz de Czar gritou em minha mente, trazendo lembranças ruins novamente.

— Vamos, está se tornando um truslivyy!

Covarde?

Olho para os quatro homens à minha frente. Meu pai acabava de me colocar numa luta injusta e mesmo mascarando minhas feições por dentro eu estava com receio. Os homens em minha frente giravam facas entre os dedos e eu estava totalmente desarmado.

O armazém era fétido, mal tinha luz naquele ambiente.

— Vamos transformar isso daqui num abrigo para nossas meninas.

— Lute com eles! É uma ordem! — gritou novamente.

Eles vieram para cima de mim, dois tentando me imobilizar, mas acabo usando-os como apoio para acertar um chute no rosto do que estava mais atrás. Desfiro um soco no homem que vem com tudo para cima de mim, terminando de me soltar ao dar uma cabeçada no nariz do capanga que me segurava por trás.

Socos, chutes e mais socos, quem olhasse de fora saberia que não havia técnica no que eu estava fazendo e sim apenas meu instinto de sobrevivência.

A mão batendo em minhas costas me trouxe de volta à realidade, encarando Try parado ao meu lado no corredor.

— Chefe.

— Não me venha com essa cara de assombro, sabia que eu viria.

— Sim, Lobo...

— Não quero ouvir um, “mas”! Vamos comigo até elas.

Try concorda, andando ao meu lado até o final do corredor, onde abre a porta de ferro saindo em direção ao armazém. Passamos pela sala com alguns dos homens de meu pai, todos nos encararam, mas não ousaram sair dali.

Try tirou todo aquele sistema de segurança e correntes da porta, permitindo que eu entrasse. As garotas se encolheram no mesmo instante, nas mais antigas pude sentir seu relaxamento ao constatar que era eu.

Meus olhos foram instantaneamente para uma criança. Pois era isso que aquela garota era, suas roupas estavam rasgadas e ela tremia tanto, mal ousando olhar em direção à porta.

— Quem é? — questiono ao Try.

— Chegou cinco dias atrás. — Ele coçou rapidamente a barbicha sobre o queixo.

Entro mais no cômodo que elas dividiam, indo até a garota. Cada passo em sua direção ela afundava mais contra a parede, literalmente como um bicho acuado.

— Ei, calma. — Digo me abaixando em sua altura.

Seus olhos se desviaram rapidamente para mim, mas logo encarando novamente a parede.

— Qual é seu nome?

— March. — responde no mesmo instante. Sua voz sai rouca, trêmula.

— Isso é culpa do Burn. Assim como quero saber o que houve com Pam.

Viro em direção à voz. Erika.

— Fique calada. — Try retruca.

— Quem é essa Pam? E o que Burn aprontou? — pergunto voltando minha atenção para Try.

Posso ver que ele se amaldiçoa em silêncio.

— Try? — ordeno.

— Burn foi além do limite com ela, chefe. E a tal de Pam é a novata trazida pelo Sebastian, ela está no outro alojamento.

— O que ele fez?

É nítido ver o quanto Try morde a língua por estar dedurando um dos seus companheiros, mas pelo estado de choque e medo que essa menina está, boa coisa é que não foi.

— Podemos conversar lá fora? — Try pergunta.

Viro novamente para a garota. — Quantos anos você tem?

— Quinze — Gagueja.

Levanto bruscamente saindo dali, Try mal pode me seguir, ando feito um animal enfurecido pelo corredor voltando para onde os homens de Czar estavam; entro na sala, atravessando a nuvem de fumaça que tinha ali, torcendo o nariz para o cheiro de bebidas e cigarros baratos, agarrando Burn pelo pescoço.

— Lobo.

— Não dei permissão para que falasse. — Digo erguendo-o, tirando seu corpo nojento do chão.

Pelo canto do olho vejo Try entrar correndo na sala, estancando na porta ao ver a cena. Ninguém seria otário de me interromper.

— O que eu já disse sobre molestar aquelas garotas? O que eu disse sobre vocês capturarem crianças? — Pergunto apertando mais a garganta de Burn, vendo seu rosto adquirir tons de vermelho. Com a mão livre enchi o rosto débil de Burn com socos, vendo seu rosto estourar com pequenos jatos de sangue. Ali eu era uma máquina de morte.

— Chega, Lobo. Chega! — Try e outros dois homens grudaram em minhas costas, tentando fazer com que soltasse um Burn totalmente desorientado.

— Vamos, Lobo. Pare! — Martin segura meus braços, fazendo com que Burn caísse no chão e os outros fossem verificar como ele estava.

— Me solta! — Ordeno, jogando Martin para longe.

 

 


CONTINUA