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CROMOSSOMO 6 / Robin Kook
CROMOSSOMO 6 / Robin Kook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

3 DE MARÇO, 1997 - 15:30 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Tendo feito a tese de doutoramento em Biologia Molecular do MITI, em colaboração com o Hospital Distrital de Massachusetts, Kevin Marshall sentia-se extremamente vexado por não conseguir enfrentar situações clínicas sem náusea. Embora jamais o tivesse admitido, o simples facto de ter de se submeter a uma análise de sangue ou a uma vacina era para ele uma agonia. As agulhas eram o seu terror. Ao vê-las, as pernas tornavam-se-lhe trémulas e um suor frio afluía à sua testa alta. Uma vez, até chegara a desmaiar quando, na escola, levara uma vacina contra o sarampo.

Aos 34 anos, muitos gastos em pesquisas em biomedicina, incluindo trabalhos com animais vivos, ele deveria ter superado a fobia, mas isso não acontecera. E era por esse motivo que não se encontrava nas salas de operações lAe IB naquele preciso momento. Tinha antes optado por ficar na sala de desinfecção, onde estava agora de pé, junto à pia, perspectiva que lhe permitia olhar, através da janela em ângulo, para as duas salas de operações, até que sentiu necessidade de desviar os olhos.

Os dois pacientes estavam nas respectivas salas de operações havia cerca de um quarto de hora, em preparação para as respectivas intervenções cirúrgicas. As duas equipas de cirurgiões conversavam calmamente enquanto aguardavam. Estavam de bata e luvas, prontos para dar início.

 

 

 

 

Tinha havido pouca troca de impressões técnicas nas SÓ, excepto entre os anestesistas, enquanto aplicavam a anestesia geral aos pacientes. Um dos anestesistas deslocava-se, silenciosamente, entre uma sala e outra, afim de supervisionar e estar acessível ao mínimo sinal de alarme.

Mas não havia qualquer problema. Pelo menos por enquanto. Contudo, Kevin sentia-se ansioso. Para surpresa sua, não experimentava a mesma sensação de triunfo que desfrutara anterior

 

1 Instituto Tecnológico de Massachusetts. (N. da T.)

 

mente, nas três ocasiões idênticas, em que se sentira enaltecido pelo poder da ciência e pela sua própria criatividade.

Em vez de júbilo, Kevin sentia um crescente constrangimento. A ansiedade começara havia quase uma semana, mas era agora, ao observar estes pacientes e ao ponderar sobre os diferentes vaticínios de cada um deles, que Kevin sentia a inquietação com uma intensidade lancinante. O efeito era semelhante ao que sentia quando pensava em agulhas: os suores afluíam-lhe à testa e as pernas tremiam. Teve de se agarrar bem à pia para não se desequilibrar.

Aporta de acesso à sala de operações ID abriu-se repentinamente, assustando Kevin. Viu-se confrontado com uma figura cujos olhos, de um azul-pálido, estavam emoldurados pelo gorro e a máscara. Reconheceu-a imediatamente: era Candace Brickman. uma das enfermeiras instrumentistas.

—As intervenções já começaram, e os doentes estão a dormir— disse Candace. — Tem a certeza de que não quer entrar? Poderá observar muito melhor.

— Obrigado, mas estou bem aqui — disse Kevin.

— Como queira — disse Candace.

A porta fechou-se atrás de Candace quando ela regressou a uma das salas. Kevin observava os movimentos apressados de um lado para outro da sala, e notou que ela dizia qualquer coisa aos cirurgiões. Em resposta, eles olharam na direcção de Kevin e fizeram-lhe um sinal com o polegar para cima. Kevin, conscientemente, retribuiu com igual gesto.

Os cirurgiões continuaram a sua conversa, mas o efeito daquela comunicação silenciosa com Kevin aumentou substancialmente a sua sensação de cumplicidade. Retirou as mãos da pia e recuou ligeiramente. Sentia agora um misto de inquietação e medo. Que é que ele tinha feito?

Dando meia volta, Kevin escapuliu-se da sala de desinfecção e do bloco operatório. Uma lufada de ar seguiu-o quando saiu do bloco operatório de pressão asséptica ligeiramente positiva, e entrou no seu deslumbrante laboratório futurista. Respirava com dificuldade como se tivesse feito um grande esforço.

Em qualquer outro dia, o simples facto de entrar no seu domínio tê-lo-ia enchido de expectativa, só de pensar nas descobertas que aguardavam a sua mão mágica. Os laboratórios estavam literalmente repletos de equipamento de alta tecnologia com que sempre sonhara. Agora, estas máquinas sofisticadas estavam à sua disposição dia e noite. Irreflectidamente, ao dirigir-se para o seu gabinete, passava os dedos pelas coberturas de aço inoxidável, friccionava casualmente os mostradores analógicos e os visores digitais. Tocava no sequenciador do ADN, de cento e cinquenta mil dólares, e na máquina de RNA globular, de quinhentos mil dólares, de onde despontava uma mecha de fios, como uma gigantesca anémona marinha. Olhou de relance para os PCR, cujas luzes piscavam como longínquos quassares, anunciando uma corrente sucessiva de ADN duplos. Era um ambiente que anteriormente enchera Kevin de esperanças e promessas. Mas agora cada tubo microcentrifugador Eppendorf e cada frasco de tecido animal pareciam lembrar-lhe, em surdina, o mau augúrio que se desenvolvia no seu íntimo.

Avançando para a secretária, Kevin olhou para o mapa de genes do segmento curto do...

A área principal estava sublinhada a vermelho. Era o complexo principal de histocompatibilidade. O problema era que o MHC1 constituía apenas uma pequena parte do segmento curto do . Havia grandes áreas em branco que representavam milhões e milhões de pares de base e, por conseguinte, centenas de outros genes. Kevin desconhecia quais eram as suas funções.

A resposta a um pedido de informação sobre estes genes, que ele fizera recentemente através da Internet, fora muito vaga. Vários cientistas tinham respondido que o segmento curto do cromossoma

6 continha genes que estavam relacionados com o desenvolvimento esquelético-muscular. Mas nada mais. Não havia pormenores.

Kevin, involuntariamente, estremeceu. Ergueu os olhos para a janela panorâmica por cima da secretária. Como sempre, estava tracejada com gotas das chuvas tropicais que varriam a paisagem em lençóis ondulantes. As gotas desciam vagarosamente até que uma determinada quantidade se fundia, atingido uma magnitude crítica. Depois, saíam em flecha da superfície, como faíscas de uma roda de afiar.

Os olhos de Kevin fixaram-se na distância. O contraste entre o vislumbrante interior de ar condicionado com o mundo exterior era sempre um choque. Nuvens rolantes de um cinzento-metálico enchiam o céu, apesar de a estação seca ter começado três semanas antes. A terra era dominada por uma vegetação turbulenta, tão verde que quase parecia negra. Ao longo da periferia da cidade, a vegetação erguia-se como uma gigantesca onda ameaçadora.

 

1 Complexo Maior da Histocompatibilidade. (N. da T.)

 

O gabinete de Kevin ficava na ala dos laboratórios do hospital, que era uma das poucas estruturas novas na cidade do Cogo

, cidade colonial espanhola, no pouco conhecido país africano da Guiné Equatorial, e que antes estava decadente e deserta. Era um edifício de três andares. O gabinete de Kevin ficava no último piso, virado a sudeste. Da sua janela, ele descortinava uma boa parte da cidade que se espreguiçava ao acaso em direcção ao Estuário dei Muni e seus afluentes.

Alguns dos prédios vizinhos tinham sido renovados, alguns estavam em vias de renovação, mas a maioria não tinha sido tocada. Meia dúzia de belas quintas estavam encobertas por vinhedos, trepadeiras e raízes de vegetação que se tornara selvagem. Sobre toda a paisagem pairava a névoa perenial do ar quente supersaturado.

Em primeiro plano, Kevin entrevia parte da cidade, por debaixo da arcada da velha Câmara da cidade. Na escuridão, lá estava o inevitável magote de soldados equatoguineenses, com fatos de combate, com as suas AK-47 atiradas casualmente ao ombro. Como habitualmente, fumavam, discutiam e consumiam cerveja camaroneana.

Finalmente, Kevin deixou que os olhos vagueassem para além da cidade. Inconscientemente, evitara fazê-lo, mas agora fixou os olhos no estuário, cuj a superfície chicoteada pela chuva parecia lata amolgada. Directamente a sul, mal conseguia descortinar o litoral arborizado do Gabão. Olhando a leste, seguiu o carreiro de ilhas que se estendiam em direcção ao interior do continente. No horizonte vislumbrava a maior das ilhas, a ilha Francesca, nome dado pelos portugueses no século xv. Em contraste com as outras ilhas, a ilha Francesca tinha uma escarpa de pedra calcária coberta de mata que descia pelo centro da ilha como a coluna dorsal de um dinossauro.

O coração de Kevin palpitou. Apesar da chuva e do nevoeiro, ele conseguia divisar aquilo que temia. Tal como há uma semana, lá estava o inconfundível tufo de fumo, que serpenteava preguiçosamente em direcção ao céu cor de chumbo.

Kevin enterrou-se na cadeira e pôs a cabeça entre as mãos. Perguntava-se o que tinha feito. Tendo estudado os Clássicos antes de se formar, conhecia a mitologia grega. Agora, questionava-se se teria feito um erro prometeano. Fumo significava lume, e ele interrogava-se se seria a proverbial chama inadvertidamente roubada aos deuses.

 

18:45 BOSTON, MASSACHUSETTS

Enquanto o vento frio de Março fazia chocalhar as persianas, Taylor Devonshire Cabot deliciava-se na segurança e calor do seu estúdio forrado a nogueira, na sua vasta casa rasteira em Manchester-by-the-Sea, a norte de Boston, Massachusetts. Harriette Livingstone Cabot, a mulher de Taylor, estava na cozinha a supervisionar os últimos preparativos para o jantar, que devia ser servido às sete e meia em ponto.

No braço da poltrona de Taylor estava um copo de uísque de malte puro. O lume crepitava no fogão de sala, enquanto música de Wagner se espalhava em tom suave através do estéreo. Havia, ainda, em nichos na parede, três televisores sintonizados para, respectivamente, uma estação local, a CNN e a ESPN.

Taylor era o espelho do contentamento. Passara um dia muito ocupado, mas muito produtivo, nas instalações da Gensys, uma empresa de biotecnologia relativamente nova, que ele fundara havia oito anos. A companhia tinha construído um edifício ao longo do rio Charles, em Boston, convenientemente situado na proximidade tanto de Harvard como do MIT, para efeitos de recrutamento de pessoal.

A viagem de regresso a casa fora mais rápida do que habitualmente e Taylor não tivera tempo de acabar a leitura prevista. Ciente dos hábitos do seu patrão, Rodney, o motorista, pedira desculpa por ter chegado a casa tão rapidamente.

— Tenho a certeza de que amanhã à noite arranjarás maneira de te demorares para compensar o tempo de hoje — tinha Taylor zombado.

— Farei o possível — respondera Rodney

Por isso, Taylor não prestava atenção ao estéreo ou à TV. Lia cuidadosamente o relatório financeiro, que deveria ser entregue na próxima reunião de accionistas da Gensys, prevista para a semana seguinte. Mas isso não significava que não estivesse consciente do que se passava à sua volta. Dava-se conta do ruído do vento, do crepitar do lume, da música, e estava atento aos vários gracejos trocistas das estações de TV. Por conseguinte, quando o nome Cario Franconi foi mencionado, a cabeça de Taylor ergueu-se bruscamente.

A primeira coisa que Taylor fez foi pegar no controlo remoto e aumentar o volume da televisão central. Eram as notícias da estação local da CBS. Os locutores eram Jack Williams e Liz Walker. Jack Williams mencionara o nome Cario Franconi, e ia a dizer que a estação tinha obtido uma cassete de vídeo do assassínio da conhecida figura da mafia, que estava de algum modo associado às famílias do crime de Boston.

— Esta cassete é bastante realista — preveniu Jack. — Recomenda-se a discrição dos pais. Deverão lembrar-se de que há alguns dias informámos que Franconi, que estava adoentado, desaparecera depois da acusação, e muitos receavam que ele tivesse furado a caução e desaparecido. Mas ele tinha acabado por reaparecer ontem, com a notícia de que chegara a um acordo com o Gabinete do procurador-geral da cidade de Nova Iorque, para entrar para o programa de protecção de testemunhas. Contudo, esta noite, ao sair de um dos seus restaurantes favoritos, o acusado escroque foi fatalmente atingido a tiro.

Taylor ficou perplexo ao observar um vídeo-amador de um homem gordo saindo de um restaurante acompanhado por várias pessoas que pareciam polícias. Com um aceno casual, o homem cumprimentou a multidão que se tinha aglomerado e em seguida dirigiu-se para uma limusina. Diligentemente, ignorou as perguntas dos jornalistas que tentavam chegar perto dele. Justamente na altura em que se curvava para entrar no carro, o corpo de Franconi sacudiu, e ele vacilou para trás, com a mão na base do pescoço. Ao cair para a direita, o corpo sacudiu novamente, batendo no chão. Os homens que o acompanhavam tinham empunhado as armas e olhavam freneticamente à sua volta, em todas as direcções. Todos os jornalistas que o perseguiam bateram em cheio.

— Ena! — comentou Jack. — Que cena! Quase me faz lembrar a morte de Lee Harvey Oswald. Para que serve a protecção policial!

— Eu pergunto-me, que efeito terá esta morte em futuras testemunhas semelhantes? — perguntou Liz.

— Nada bom, estou certo — disse Jack.

Os olhos de Taylor mudaram-se imediatamente para a CNN, que estava prestes a mostrar o mesmo vídeo. Ele observou a sequência novamente. Isto fê-lo estremecer. No final do vídeo, a CNN passou a transmitir em directo, com um repórter que estava no exterior do Instituto de Medicina Legal da cidade de Nova Iorque.

— A questão agora é se seria um ou dois atacantes — disse o repórter, tentando abafar o ruído do trânsito na First Avenue. — A nossa impressão é que Franconi foi atingido por dois tiros. A Polícia está, compreensivelmente, vexada por este episódio e recusa-se fazer comentários ou dar qualquer informação. Temos conhecimento de que está marcada uma autópsia para amanhã de manhã, e presumimos que do departamento de balística responderão à pergunta.

Taylor reduziu o volume da televisão, depois pegou no copo. Indo até à janela, fitou o furioso mar escuro. A morte de Franconi poderia significar problemas. Olhou para o relógio. Era quase meia-noite na África Ocidental.

Arrebatando o telefone, Taylor ligou para o telefonista da Gensys e disse-lhe que queria falar imediatamente a Kevin Marshall.

Pousando o auscultador, Taylor voltou de novo a olhar, pensativamente, através da janela. Nunca se sentira muito à-vontade quanto a este projecto, embora financeiramente parecesse muito lucrativo. O telefone interrompeu os seus pensamentos.

Levantando o auscultador, Taylor foi informado de que o Dr. Marshall estava em linha. Depois de uma pausa, a voz ensonada de Kevin crepitou do outro lado.

— É de facto Taylor Cabot? — perguntou Kevin.

— Você lembra-se de Cario Franconi? — interpelou Taylor, ignorando a pergunta de Kevin.

— Evidentemente — disse Kevin.

— Ele foi morto esta tarde — disse Taylor. — Há uma autópsia marcada para amanhã na cidade de Nova Iorque. O que eu quero saber é se poderá haver problemas?

Houve um momento de silêncio. Taylor estava prestes a perguntar se a ligação tinha sido cortada quando Kevin falou.

— Sim, poderá ser um problema — disse Kevin.

— Poderiam tirar conclusões a partir de uma autópsia?

— E possível — disse Kevin. — Eu não diria provável, mas possível.

— Eu não gosto de possível — disse Taylor. Desligou e voltou a ligar para o telefonista da Gensys. Taylor disse que queria falar imediatamente ao Dr. Raymond Lyons. Salientou que era uma emergência.

 

CIDADE DE NOVA IORQUE

— Com licença — sussurrou o empregado. Ele tinha-se aproximado do Dr. Lyons pelo lado esquerdo, e esperava uma oportunidade para interromper a conversa absorvente do médico com a sua jovem assistente loura e actual amante, Darlene Robson. Com o seu atractivo cabelo começando a ficar grisalho e traje conservador, o bom doutor parecia um requintado médico de telenovela. Estava nos seus cinquenta e poucos, era alto, moreno e invejavelmente esguio, com uma aparência refinada e aristocrata.

— Desculpe interromper—prosseguiu o empregado. — Mas há uma chamada urgente para si. Posso trazer-lhe o telefone portátil ou prefere usar o telefone no vestíbulo?

Os olhos de Raymond deslocavam-se como uma flecha de um para outro, entre o rosto afável mas ameno de Darlene e o atencioso empregado, cuja conduta impecável reflectia as estrelas atribuídas ao Aureole pelo guia de restaurantes Zagat. Raymond não parecia muito contente.

— Talvez eu deva dizer-lhes que não pode atender — sugeriu o empregado.

— Não, traga-me o portátil — disse Raymond. Não imaginava quem poderia estar a ligar-lhe com urgência. Raymond não praticava medicina desde que perdera a licença médica, depois de uma burla no serviço de saúde, burla essa que ele praticara durante uma dúzia de anos.

— Sim? — disse Raymond com uma voz um tanto ou quanto trémula.

— Fala Taylor Calbot. Há um problema. Raymond paralisou e a testa franziu.

Muito resumidamente, Taylor pôs Raymond ao corrente da situação de Cario Franconi e da sua conversa com Kevin Marshall.

— Esta operação é obra sua—concluiu Taylor com irritação. — E desde já o aviso: é uma gota no oceano adentro do grande empreendimento. Se houver problemas, eu acabo com o projecto. Não quero má publicidade, portanto, trate do assunto.

— Mas que é que eu posso fazer? — disse Raymond, impensadamente.

— Francamente, não sei — disse Taylor. — Mas seria bom que pensasse em qualquer coisa, e seria bom que fosse rápido.

—As coisas iam tão bem pelo meu lado! — exclamou Raymond. — Ainda hoje fiz um contacto positivo com uma médica de Los Angeles, que tem muitas estrelas de cinema e abastados negociantes da Costa Ocidental como clientes. Ela está interessada em fundar uma filial na Califórnia.

— Penso que não me ouviu bem — disse Taylor. — Não haverá filial alguma se este problema do Franconi não for resolvido. Por isso, é bom que meta mãos à obra. Digamos que tem doze horas.

O ruído do telefone desligado fez lançar para trás a cabeça de Raymond. Olhou para o telefone como se ele tivesse sido responsável pela fornia abrupta como a conversa terminara. O empregado, que se retirara para uma distância regulamentar, avançou para retomar o telefone antes de desaparecer.

— Problemas? — perguntou Darlene.

— Oh, meu Deus! — balbuciou Raymond. Com o nervosismo, roeu as peles do polegar. Era mais do que problemas. Era um potencial desastre. Com as tentativas para retirar a sua licença presa no charco do sistema judicial, ele dependia totalmente deste projecto, e só recentemente começava a produzir efeitos. Levara-lhe cinco anos para chegar onde chegou. Não podia deixar ir tudo por água abaixo.

— Que se passa? — perguntou Darlene. Ela estendeu o braço e arrancou a mão de Raymond da boca.

Raymond explicou-lhe rapidamente a prevista autópsia de Cario Franconi e repetiu a ameaça de Taylor Cabot de acabar com todo o projecto.

— Mas finalmente está a dar dinheiro — disse Darlene. — Ele não acaba.

Raymond deu uma gargalhada melancólica.

— Não é muito dinheiro para uma pessoa como Taylor Cabot e para a Gensys—disse ele.—De certeza que ele acabaria com tudo. Caramba, já foi tão difícil convencê-lo.

—Então, tens de dizer-lhes para não fazerem a autópsia—disse Darlene.

Raymond fixou os olhos na sua companheira. Sabia que estava bem intencionada, e nunca tinha estado atraído por ela pela capacidade do seu cérebro. Por isso, teve de se conter para não a atacar com violência. Mas a resposta foi sarcástica:

—Pensas que me basta telefonar para um instituto de medicina legal e dizer-lhes para não fazerem a autópsia? Deixa-te de tolices!

—Mas tu conheces muita gente importante—insistiu Darlene. — Pede-lhes para telefonarem.

— Por favor, querida... — dizia-lhe Raymond com condescendência, mas logo parou. Começou a pensar que, inconscientemente, Darlene tinha razão. Uma ideia começou a germinar.

— E o Dr. Levitz? — disse Darlene. — Era o médico do Sr. Franconi. Talvez ele possa ajudar.

— Estava precisamente a pensar nisso — disse Raymond. O Dr. Daniel Levitz era um médico de Clínica Geral da Park Avenue, com um grande consultório, muito bem instalado e com um número decrescente de pacientes, graças ao serviço nacional de saúde. Tinha sido fácil recrutá-lo e fora um dos primeiros médicos a aderir ao projecto. Além disso, tinha apresentado muitos pacientes, alguns deles no mesmo ramo de negócio que Cario Franconi.

Raymond levantou-se, tirou a carteira e atirou três notas de cem dólares amachucadas. Sabia que aquilo era mais do que suficiente para cobrir a conta e uma generosa gratificação.

— Vamos embora — disse ele. — Temos de fazer uma visita.

— Mas eu ainda não acabei a minha entrada — queixou-se Darlene.

Raymond não respondeu. Afastou a cadeira de Darlene da mesa, obrigando-a a levantar-se. Quanto mais pensava no Dr. Levitz, mais pensava que o homem poderia ser o salvador. Como médico de um grande número de famílias do crime rivais de Nova Iorque, Levitz conhecia pessoas que podiam fazer o impossível.

 

4 DE MARÇO, 1997 - 7:25 CIDADE DE NOVA IORQUE

Jack Stapleton inclinou-se para a frente e aplicou mais força de músculos nos pedais enquanto deslizava velozmente ao longo do último quarteirão da Thirtieth Street, em direcção a leste. A cerca de quarenta metros da First Avenue endireitou-se e largou as mãos antes de começar a travar. O semáforo à sua frente não estava a seu favor, e nem mesmo Jack era suficientemente arrojado para furar por entre os carros, autocarros e camiões que corriam pela cidade.

O tempo tinha aquecido consideravelmente e os cerca de dez centímetros de neve que tinham caído dois dias antes, tinham desaparecido, com excepção de uns sujos amontoados aqui e ali entre os carros estacionados. Jack sentia-se satisfeito por as ruas estarem limpas, pois não tinha conseguido deslocar-se de bicicleta havia já vários dias. A bicicleta tinha apenas três semanas. Viera substituir a que lhe tinham roubado no ano anterior.

Em princípio, Jack tinha pensado substituir a bicicleta de imediato. Mas mudara de opinião depois de um terrível acidente em que quase encontrou a morte e que o tornou, temporariamente, moderado no que se referia a enfrentar riscos. O episódio não tivera nada a ver com conduzir a bicicleta na cidade, mas, mesmo assim, amedrontara-o o suficiente para reconhecer que a sua condução tinha sido deliberadamente desastrosa.

Mas o tempo desvanecera os receios de Jack. O golpe final veio quando ficou sem o relógio e a carteira num assalto no metro. No dia seguinte, Jack comprou uma nova bicicleta Cannondale de montanha, e na opinião dos seus amigos, ele voltara de novo aos seus velhos truques. Mas, na verdade, já não desafiava o destino tentando passar entre camiões que se deslocavam com velocidade e carros estacionados; já não fazia corridas pela Second Avenue; e a maior parte do tempo evitava passar no Central Park depois do escurecer.

Jack parou na esquina, aguardando a mudança no semáforo, e, com o pé apoiado no pavimento, observava à sua volta. Quase de imediato notou o ajuntamento de carros da TV com antenas erguidas, estacionados no lado leste da Fifth Avenue, mesmo em frente do seu destino: o Instituto de Medicina Legal da Cidade de Nova Iorque, ou o que muitas pessoas chamavam, simplesmente, a morgue.

Jack era médico legista, e ocupava esse lugar havia quase um ano e meio, portanto, já tinha visto congestionamentos semelhantes em inúmeras ocasiões. Geralmente, significava que havia morrido alguém célebre, ou, pelo menos, alguém a quem os meios de comunicação tinham tornado momentaneamente célebre. Se não era a morte de uma só pessoa, então, era um grande desastre, como a queda de um avião ou o choque de um comboio. Por razões pessoais e também públicas, Jack tinha esperança que tivesse sido o primeiro caso.

Com a luz verde, Jack atravessou a Fifth Avenue e entrou na morgue através da doca de entrada na Thirtieth Street. Estacionou a bicicleta no local habitual, perto das urnas de Hart Island, que eram usadas para mortos não reclamados, e tomou o elevador para o primeiro andar.

Jack notou imediatamente que o local estava num tumulto. Várias secretárias do serviço diurno estavam atarefadas, atendendo os telefones na sala de comunicações: em geral, elas não chegavam antes das oito. As consolas estavam inundadas de pequenas luzes vermelhas a piscar. Até o cubículo do sargento Murphy estava aberto e a luz por cima da porta acesa, apesar do seu usual modus operandi ser chegar depois das nove.

Com a curiosidade a aumentar, Jack entrou na sala de ID1 e dirigiu-se directamente para a máquina do café. Vinnie Amendola, um dos técnicos do necrotério, estava escondido por detrás do jornal, como era seu hábito. Esta era a única ocorrência normal para esta hora da manhã. Jack era, em geral, o primeiro patologista a chegar, mas neste dia especial o delegado-chefe, Dr. Calvin Washington, a Dr.a Laurie Montgomery e o Dr. Chet McGovern já lá estavam. Os três estavam embrenhados numa grande discussão com o sargento Murphy e, para surpresa de Jack, com o detective-tenente Lou Soldano dos Homicídios. Lou era um frequente visitante da morgue, mas certamente não às sete e trinta da manhã. Mais ainda, parecia que ele não chegara a ir à cama, ou se fora, dormira com o uniforme.

 

1 Sala de identificação. (N. da T.)

 

Jack serviu-se de café. Ninguém pareceu dar pela sua chegada. Após ter deitado metade de café, metade de leite e um cubo de açúcar, Jack dirigiu-se da porta até ao vestíbulo. Espreitou para fora, e, como já esperava, a Zona estava quase a abarrotar de gente dos meios de comunicação conversando e tomando café. O que ele não esperava era ver tantos deles a fumarem. Uma vez que fumar era absoluto tabu, Jack disse a Vinnie para ir lá fora informá-los.

—Você está mais perto — disse Vinnie, sem desviar os olhos do jornal.

Perante a falta de respeito de Vinnie, Jack revirou os olhos, mas teve de admitir que Vinnie tinha razão. Por isso, Jack foi até à porta de vidro, que estava trancada, e abriu-a. Antes que pudesse anunciar que era interdito fumar, ele foi literalmente assaltado pela multidão.

Jack teve de afastar os microfones que lhe eram enfiados na cara. As perguntas sobrepunham-se de tal modo que se tornavam absolutamente incompreensíveis. Apenas conseguia compreender que eram sobre a anunciada autópsia. Jack gritou tão alto quanto pode que não podiam fumar, depois teve de, literalmente, descamar mãos do seu braço para poder fechar a porta.

Do outro lado, os repórteres lançaram-se como uma vaga, espremendo os colegas contra o vidro como tomates num frasco de conserva.

Com asco, Jack voltou para a sala ID.

— Será que alguém poderá dar-me uma ideia do que se passa? — disse ele em alto tom.

Toda a gente se voltou na direcção de Jack, mas Laurie foi a primeira a responder.

— Tu não sabes?

— Ora essa, estaria eu a perguntar se soubesse? — disse Jack. —A TV não fala de outra coisa, pelo amor de Deus! — retorquiu

Calvin.

— Jack não tem televisão — disse Laurie. — A vizinhança não o permite.

— Onde é que você vive, meu filho? — perguntou o sargento Murphy.—Nunca ouvi falar de vizinhos que não autorizem que os outros vizinhos tenham televisão. — O idoso polícia irlandês, de rosto avermelhado, tinha um ar paternalista. Fora colocado no instituto de medicina legal havia mais anos do que ele gostaria de admitir e considerava todos os funcionários como família.

— Ele vive em Harlem—disse Chet.—Na verdade, os vizinhos adoravam que ele comprasse uma para que eles a requisitassem definitivamente.

— Basta! — disse Jack. — Ponham-me ao corrente das interessantes notícias.

— Um dom da mafia foi morto a tiro ontem, ao fim da tarde — anunciou a voz ribombante de Calvin. — Mexeram num ninho de vespas, visto que ele tinha acordado cooperar com o DP e estava sob protecção da Polícia.

— Ele não era um dom da mafia — disse Lou Soldano. — Não era mais do que um funcionário, de segunda categoria, da família Vaccarro, uma família do crime.

— O que quer que seja — disse Calvin, com um aceno de mão. — A questão-chave é que ele sofreu um golpe enquanto estava protegido por um grupo dos melhores de Nova Iorque, o que não abona muito a favor deles no que diz respeito à sua eficiência para protegerem alguém que esteja à sua guarda.

— Ele foi avisado para não ir àquele restaurante — protestou Lou. — Isso sei eu. E é quase impossível proteger quem quer que seja, se esse alguém se recusa aceitar sugestões.

— Há alguma hipótese de que tenha sido assassinado pela Polícia? — perguntou Jack. Um dos papéis do médico legista era tentar ver de todos os ângulos, sobretudo quando se tratava de situações de custódia.

— Ele estava sob prisão — disse Lou, adivinhando o que se passava pela cabeça de Jack.—Tinha sido preso e processado, mas estava fora, sob fiança.

— Então, porquê tanto reboliço? — perguntou Jack.

— O reboliço é que o presidente da Câmara, o procurador distrital e o comissário da Polícia estão em apuros — disse Calvin.

— Ámen — disse Lou. — Em especial o comissário da Polícia. É por isso que estou aqui. Está a tornar-se num daqueles pesadelos de relações públicas que os meios de comunicação gostam de empolar. Temos de apreender o perpetrador ou perpetradores LQSP, ou vai haver cabeças cortadas.

— E para não desencorajar futuras potenciais testemunhas.

— Pois, há isso também — disse Lou.

— Eu não sei, Laurie — disse Calvin, voltando à discussão que decorria antes da interrupção de Jack.

— Obrigado por teres vindo cedo e por te ofereceres para fazer a autópsia, mas talvez Bingham queira fazê-la.

— Mas porquê? — reclamou Laurie. — Ora, é um caso simples, e eu tenho feito muitos casos de armas de fogo. Além disso, o Dr. Bingham tem uma reunião na Câmara, não estará cá antes do meio-dia. Por essa altura, já terei feito a autópsia e qualquer informação que eu possa ter estará nas mãos da Polícia. Com a urgência que eles têm, faz mais sentido. Calvin olhou para Lou.

— Acha que cinco ou seis horas faria diferença na investigação?

— Poderá fazer — admitiu Lou. — Caramba, quanto mais cedo a autópsia for feita, tanto melhor. Quero dizer, saber se procuramos uma ou duas pessoas será uma grande ajuda.

Calvin suspirou.

— Detesto decisões destas. — Ele deslocou a sua massiça argamassa musculosa de cento e catorze quilos de um pé para o outro. — O problema é que eu nunca sei qual poderá ser a reacção de Bingham. Mas que se lixe! Avança, Laurie. O caso é teu.

—- Obrigada, Calvin — disse Laurie, com júbilo. Ela arrebatou o relatório da mesa. — Será que Lou pode observar?

— Pois claro — disse Calvin.

— Vamos, Lou — disse Laurie. Ele retirou o casaco da cadeira e dirigiu-se para a porta.—Vamos direitos lá baixo fazer um exame externo e uma radiografia. Na confusão, ontem à noite, parece que não a fizeram.

— Eu vou já atrás de ti — disse Lou.

Jack hesitou durante um momento, depois apressou o passo atrás deles. Estava mistificado por a Laurie estar tão interessada em fazer a autópsia. Do seu ponto de vista, teria sido melhor ela se manter afastada. Tais casos ligados à política eram sempre uma batata quente nas mãos. Uma pessoa nunca acertava.

Laurie caminhava com rapidez, e Jack não conseguia apanhála nem ao Lou, até que os perdeu de vista. Laurie parou bruscamente para se debruçar no gabinete de Janice Jaeger. Janice era uma das investigadores forenses, também conhecidos por clínicos-assistentes ou CA. Janice dirigia o turno da noite e tomava o seu trabalho muito a sério. Saía sempre mais tarde.

— Ainda vês Bart Arnold antes de saíres? — Laurie perguntou a Janice. Bart Arnold era o chefe dos CA.

—Geralmente, vejo-o—disse Janice. Era uma mulher pequena, de cabelo escuro e protuberantes círculos por debaixo dos olhos.

— Faz-me um favor — disse Laurie. — Pede-lhe para ele telefonar à CNN para arranjar um vídeo do assassínio de Cario Franconi. Gostaria de tê-lo em meu poder o mais rápido possível.

— Está bem — disse Janice, jovialmente. Laurie e Lou continuaram o seu trajecto.

—Ei, mais devagar, vocês dois—disse Jack. Teve de correr para conseguir apanhá-los.

—Temos trabalho a fazer—disse Laurie, sem afrouxar o passo.

— Nunca te vi tão entusiasmada para fazer uma autópsia — disse Jack. Ele e Lou ladeavam Laurie enquanto ela se dirigia apressadamente para a sala de autópsias. — Qual é a atracção?

— Muitas coisas — disse Laurie. Ela chegou ao elevador e carregou no botão.

— Dá-me um exemplo — disse Jack. — Não quero estragar-te o prazer, mas este é um caso politicamente delicado. O que quer que faças, estarás a irritar alguém. Penso que Calvin tinha razão. Esta devia de ser feita pelo chefe.

— Tens o direito de ter a tua opinião — disse Laurie.

Ela carregou novamente no botão. O elevador das traseiras do edifício era excessivamente lento.

— Mas eu penso de modo diferente. Com o trabalho forense que tenho estado a fazer sobre feridas com armas de fogo, estou encantada por ter um vídeo do acontecimento para poder corroborar a minha reconstituição do que aconteceu. Estava a pensar em escrever um ensaio sobre feridas com armas de fogo, e este caso poderá ser a minha coroa de glória.

— Oh, meu Deus! — disse Jack em ar de lamento, erguendo os olhos para o alto. — E as motivações dela eram tão nobres. — Depois, olhando de novo para Laurie, disse: — Penso que devias reconsiderar. A minha intuição diz-me que vais meter-te numa dor de cabeça burocrática. E ainda estás a tempo de a evitar. Basta que dês meia volta e digas a Calvin que mudaste de ideias. Estou a prevenir-te, vais correr um risco.

Laurie riu.

— Tu és a última pessoa que pode aconselhar-me sobre riscos. — Estendeu a mão e tocou com a ponta do indicador no nariz de Jack.—Todos quantos te conhecem, eu, inclusive, rogaram-te para não comprares aquela bicicleta nova. Estás a arriscar a tua vida... não uma dor de cabeça.

O elevador chegou, e Laurie e Lou entraram. Jack hesitou, mas depois introduziu-se por entre as portas justamente quando estas estavam prestes a fecharem-se.

— Não conseguirás convencer-me — disse Laurie. — Por isso, poupa as tuas palavras.

— Okay — disse Jack, levantando a mão em sinal de rendição. —Prometo, não há mais conselhos. Agora, só estou interessado em

ver esta história desenrolar-se. Hoje é o meu dia de papelada, por isso, se não te importas, fico para observar.

—Podes fazer mais do que isso—disse Laurie.—Podes ajudar-me.

— Não quero passar por cima de Lou. — O duplo sentido era intencional.

Lou riu-se, Laurie enrubesceu, mas o comentário ficou sem resposta.

— Insinuaste que tinhas outras razões para o teu interesse neste caso — disse Jack. — Será que posso perguntar-te quais são elas?

Jack notou que Laurie lançou a Lou um olhar rápido, mas não o soube interpretar.

— Hum — disse Jack. — Estou a ficar com a impressão de que se passa aqui qualquer coisa que não me diz respeito.

— Não é nada disso — disse Lou com prontidão. — É apenas uma ligação pouco comum. A vítima, Cario Franconi, tinha tomado o lugar de um vagabundo do mundo do crime chamado Paulo Cerino. A posição de Cerino tinha ficado vaga quando ele foi atirado para as grades, sobretudo graças à persistência e trabalho árduo da Laurie.

— E teu também — acrescentou Laurie, quando o elevador parou com um solavanco e as portas se abriram.

— Sim, mas sobretudo ao teu — disse Lou.

Os três saíram do elevador e dirigiram-se ao necrotério.

— O caso Cerino envolveu aquela série de overdoses a que te referiste? — perguntou Jack a Laurie.

— Receio bem que sim — disse Laurie. — Foi horrível. A experiência aterrorizou-me, e o problema é que algumas das personagens ainda andam por aí, incluindo Cerino, embora ele esteja preso.

— E não é provável que seja libertado por muito tempo — acrescentou Lou.

— Isso gostaria eu de acreditar—disse Laurie. — De qualquer modo, espero que ao fazer este trabalho sobre Franconi, possa chegar a alguma conclusão. Ocasionalmente, ainda tenho pesadelos.

— Eles fecharam-na num caixão de pinho para raptá-la daqui — disse Lou. — Foi levada num dos carros funerários.

— Meu Deus! — disse Jack a Laurie. — Nunca me tinhas dito nada sobre isso.

— Tento nem pensar nisso — disse Laurie. Depois, sem perder o ritmo, acrescentou. — Esperem aqui fora... vocês dois.

Laurie esquivou-se para o escritório da morgue a fim de ir buscar a lista das gavetas frigoríficas atribuídas aos casos que tinham entrado na noite anterior.

— Não posso imaginar-me fechado dentro de um caixão — disse Jack. Ele estremeceu. Tinha a fobia das altitudes, mas espaços apertados e confinados não eram, para ele, menos aterrorizantes.

— Nem eu — concordou Lou. — Mas ela conseguiu recuperar notavelmente. Pouco mais ou menos uma hora depois de ter sido libertada, ela teve a presença de espírito para pensar numa forma de nos libertar aos dois. Foi particularmente humilhante, uma vez que eu tinha lá ido para salvá-la.

— Ena! — disse Jack, abanando a cabeça. — Até este minuto, pensava eu que ter sido algemado a uma pia por dois assassinos que discutiam qual deles iria dar cabo de mim, era o pior cenário possível.

Laurie saiu do gabinete, acenando com uma folha de papel.

— Gaveta um onze — disse ela. — E eu tinha razão. O corpo não foi radiografado.

Laurie começou a andar veloz como uma seta. Jack e Lou tiveram de se apressar para conseguirem acompanhá-la. Ela dirigiu-se directamente à respectiva gaveta. Quando lá chegou, meteu o dossier debaixo do braço esquerdo e com a mão direita soltou o trinco. Com um movimento simples, calmo e experiente, abriu a porta e fez deslizar o tabuleiro sobre o rodízios.

O sobrolho de Laurie franziu-se.

— É estranho — observou ela. O tabuleiro estava vazio, com excepção de umas gotas de sangue e umas secreções já secas.

Laurie empurrou o tabuleiro para dentro e fechou a porta. Verificou novamente o número. Não havia engano. Era a gaveta um onze.

Após ter olhado novamente para a lista a fim de se certificar de que não lera mal o número, voltou a abrir a gaveta, protegeu os olhos da intensidade das luzes e espreitou para o interior escuro. Não havia dúvida: a gaveta não continha os restos mortais de Cario Franconi.

— Que diabo! — reclamou Laurie. Empurrou a porta de isolamento com força. E para se certificar de que não havia nenhum estúpido erro logístico, abriu todos os compartimentos vizinhos, um a seguir ao outro. Naqueles que continham corpos, ela verificou os nomes e números de acesso. Mas logo se tornou óbvio: Cario Franconi não se encontrava entre eles.

— Não posso crer — disse Laurie com frustração e zanga. — O maldito do corpo desapareceu!

Um sorriso surgira na face de Jack a partir do momento em que ficou provado que o compartimento um onze estava vazio. Agora, ao enfrentar Laurie com um ar exasperado, não conseguiu conter-se. Riu-se com vontade. Infelizmente, a risada de Jack exacerbou Laurie ainda mais.

— Desculpa — conseguiu dizer Jack.—A minha intuição dizia-me que este caso ia dar-te dores de cabeça burocráticas. Eu estava errado. Vai dar dores de cabeça à burocracia.

 

4 DE MARÇO, 1997 - 13:30 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Kevin Marshall pousou o lápis e olhou através da janela por cima da secretária. Em contraste com o tumulto interior, o tempo lá fora estava agradável, com as primeiras manchas de céu azul que Kevin via em muitos meses. A estação seca tinha finalmente começado. Claro que não era seca; só não chovia tanto como na estação chuvosa. O lado negativo era que o sol, agora mais consistente, fazia as temperaturas se elevarem aos níveis de um forno. De momento, rondava os quarenta e um graus à sombra.

Kevin não trabalhara muito nessa manhã, nem dormira nessa noite. A ansiedade que sentira no dia anterior, no início da intervenção cirúrgica, não se amenizara. De facto, tinha-se agravado, especialmente depois da inesperada chamada do chefe das operações da Gensys, Taylor Cabot. Kevin falara com o homem apenas numa outra ocasião. A maioria das pessoas da companhia equiparava a experiência com falar a Deus.

O constrangimento de Kevin agravara-se ao ter notado outro tufo de fumo saindo em serpente da ilha Francesca, em direcção ao céu. E notara-o logo que chegara ao gabinete nessa manhã. Tanto quanto lhe era possível ajuizar, vinha do mesmo local que no dia anterior: o lado íngreme da escarpa de pedra calcária. O facto de o fumo já não ser visível não era lenitivo para ele.

Desistindo de qualquer tentativa de prosseguir o seu trabalho, Kevin despiu a bata e deixou-a cair nas costas da cadeira. Não sentia fome, mas sabia que a sua governanta, Esmeralda, teria feito almoço, portanto, sentia-se na obrigação de aparecer.

Kevin desceu os três lances de escadas como se estivesse entorpecido. Vários colaboradores passaram por ele e disseram-lhe olá, mas era como se Kevin não os visse. Estava demasiado preocupado. Nas últimas vinte e quatro horas chegara à conclusão de que teria de agir. O problema não iria ficar sanado como ele chegara a pensar na semana anterior, quando avistara o fumo pela primeira vez.

Infelizmente, não sabia o que fazer. Sabia que não era nenhum herói; na realidade, ao longo dos anos, começou a considerar-se um covarde. Odiava a confrontação e evitava-a. Quando rapazinho evitava competições excepto no xadrez. Tornara-se um homem solitário.

Kevin parou junto da porta de vidro que dava para o exterior. Do outro lado da praça avistava a usual roda de soldados equatoguineenses por debaixo das arcadas da velha Câmara. Estavam nas suas usuais ocupações sedentárias, passando parte do dia sem qualquer objectivo. Uns estavam sentados em velhas cadeiras de palhinha a jogar às cartas, outros estavam encostados ao edifício, discutindo em vozes estridentes. Quase todos fumavam. Os cigarros faziam parte do seu salário. Tinham vestidas fardas camufladas sujas de terra, botas de combate desgastadas e barretes vermelhos. Todos eles tinham espingardas automáticas ao ombro ou pousadas ao alcance.

Desde que Kevin chegara ao Cogo, havia cinco anos, os soldados amedrontavam-no. Cameron Mclvers, o chefe da segurança que inicialmente mostrara o local a Kevin, dissera-lhe que a Gensys contratara uma grande porção das forças armadas equatoguineenses para a segurança. Posteriormente, Cameron admitira que, o assim chamado, emprego das forças armadas, era na realidade uma compensação adicional para o governo assim como para o Ministério da Defesa e o Ministério da Administração Territorial.

Na opinião de Kevin, os soldados mais pareciam um bando de adolescentes sem objectivo do que protectores. A tez deles parecia ébano polido. Os seus rostos inexpressivos e as sobrancelhas arqueadas davam-lhes um ar de arrogância que reflectia o tédio. Kevin sempre teve a sensação inquietante de que eles estavam ávidos por um pretexto para usarem as armas.

Kevin empurrou a porta e atravessou a praça. Não olhou na direcção dos soldados, mas sabia, por experiência, que alguns estavam a observá-lo, e isso fazia-lhe encrespar a pele. Kevin não sabia nada de fang, o mais importante dialecto local, por isso, não fazia ideia do que eles diziam.

Quando se apercebeu de que estava fora do alcance da vista da praça central, Kevin relaxou um pouco e diminuiu o passo. A combinação do calor com cem por centro de humidade davam a impressão de um perpétuo banho a vapor. Qualquer movimento provocava transpiração. Poucos minutos depois, Kevin sentia que a camisa começava a colar-se às costas.

A casa de Kevin estava situada a um pouco mais de meio caminho entre o complexo de laboratórios do hospital e a marginal, a uma distância de três quarteirões. A cidade era pequena mas era óbvio que tinha sido encantadora nosseusdias.Os edifícios tinham originalmente sido construídos em estuque, em cores vivas, com telhados de tijolo vermelho. As cores, agora desvanecidas, eram de tons pastel. Os postigos tinham dobradiças na parte superior, tipo janelas basculantes. A maioria estava num estado degradado com excepção dos edifícios que tinham sido renovados. As ruas haviam sido desenhadas em tipo de grelha, sem qualquer imaginação, mas tinham sido pavimentadas ao longo dos anos com granito importado, que servira de lastro para veleiros. No tempo do colonialismo espanhol, a riqueza da cidade provinha da agricultura, particularmente da produção do cacau e do café, e tinha generosamente sustentado uma população de vários milhares de pessoas.

Mas a história da cidade mudou dramaticamente depois de

1959, no ano da Independência da Guiné Equatorial. O novo presidente, Macias Nguema, rapidamente se metamorfoseou, de um estimado presidente eleito no pior ditador sádico do continente, cujas atrocidades conseguiram ultrapassar as de Idi Amin, do Uganda e de Jean-Bedel Bokassa, da República da África Central. O efeito sobre o país fora apocalíptico. Depois de cinquenta mil pessoas terem sido assassinadas, um terço da população de todo o país evadiu-se, incluindo todos os colonizadores espanhóis. A maioria das cidades do país foi dizimada, em particular o Cogo, que fora completamente abandonado. A estrada que ligava o Cogo ao resto do país ficou em ruínas e em breve ficou intransitável.

Durante alguns anos, a cidade estivera condenada a ser uma mera curiosidade para o ocasional visitante que chegava de lancha a motor da cidade costeira de Acalayong. A mata tinha começado a reivindicar a terra quando um representante da Gensys lá chegou por acidente, havia sete anos. O indivíduo reconhecera o Cogo como o local ideal para o projecto dos primatas devido ao seu isolamento e à sua ilimitada floresta tropical. De regresso a Malabo, a capital da Guiné Equatorial, o representante da Gensys logo começou as negociações com o governo equatoguineense em exercício. Visto que o país era um dos mais pobres de África e, consequentemente, desesperado por moeda estrangeira, o novo presidente foi muito receptivo e as negociações decorreram de um modo célere.

Kevin passou o último quarteirão e aproximou-se de casa. Era de três pisos como a maioria das casas na cidade. Tinha sido renovada com muito gosto para lhe dar a atracção de uma casa de revista. Na realidade, era uma das casas mais agradáveis de toda a cidade, o que dava origem à inveja de um número de outros funcionários da Gensys, de um modo particular o chefe da segurança, Cameron Mclvers. Apenas Siegfried Spallek, director-geral da Zona, e Bertram Edwards, veterinário-chefe, tinham alojamentos semelhantes. Kevin atribuía a sua boa-sorte à influência do Dr. Raymond Lyons, mas não tinha a certeza.

A casa fora construída no século xix por um bem sucedido importador-exportador, num estilo tradicional espanhol. O primeiro piso era com arcos e arcadas como o edifício da Câmara, e originalmente continha lojas e armazéns. O segundo piso era a zona de residência, com três quartos de dormir, três casas de banho, uma grande sala de estar, uma casa de jantar, uma cozinha e um pequeno apartamento para empregados. Em toda a volta do piso havia uma varanda. O terceiro piso era um enorme salão, com chão assoalhado, iluminado por dois enormes candeeiros de ferro forj ado. Tinha capacidade para uma centena de pessoas e, aparentemente, fora usado para grandes reuniões.

Kevin entrou e subiu a escadaria que dava acesso a um estreito vestíbulo. De lá, passou à casa de jantar. Como já esperava, a mesa estava posta para o almoço.

A casa era demasiado grande para Kevin, sobretudo porque ele não tinha família. Manifestara a sua opinião quando lhe fora mostrada a casa, mas Siegfried Spallek dissera-lhe que a decisão fora tomada em Boston e avisou-o para não reclamar. Por conseguinte, Kevin aceitou a atribuição, mas a inveja dos colegas por vezes fazia-o sentir um certo desconforto.

Como por magia, Esmeralda apareceu. Kevin surpreendia-se com a precisão que ela mantinha. Era como se estivesse sempre a espreitar quando ele vinha para casa. Era uma mulher simpática, de idade indeterminada, traços arredondados e olhos tristes. Vestia uma bata de um estampado de cores vivas, com um lenço do mesmo tecido amarrado na cabeça. Além do seu dialecto, ela falava espanhol fluentemente e o seu deficiente inglês melhorava de dia para dia. Esmeralda vivia no apartamento dos empregados de segunda a sexta-feira. Ao fim-de-semana ficava com a família numa vila que a Gensys construíra a leste, ao longo do estuário, para alojar os muitos trabalhadores empregados da Zona, nome dado à área ocupada pelas operações Gensys na Guiné Equatorial. Ela e a família tinham sido transferidos de Bata, a cidade principal da metrópole equatoguineense, para a Zona. A capital do país, Malabo, era numa ilha chamada Bioko.

Kevin sugerira que Esmeralda fosse para casa durante a semana mas ela recusou. Quando Kevin insistiu, ela dissera-lhe que recebera instruções para ficar no Cogo.

— Há uma mensagem telefónica para si — disse Esmeralda.

— Ah! — disse Kevin com nervosismo. A pulsação acelerou. Mensagens telefónicas eram raras, e, no seu estado actual, não necessitava de mais acontecimentos inesperados. A chamada de Taylor Cabot perturbara-o o suficiente.

—Foi o Dr. Raymond Lyons, de Nova Iorque—disse Esmeralda. — Pede para lhe telefonar.

O facto de a chamada ser do estrangeiro não surpreendia Kevin. Com as comunicações via satélite instaladas pela Gensys, era mais fácil chamar para a Europa ou EU do que para Bata, que ficava apenas a sessenta milhas a norte. Chamadas para Malabo eram quase impossíveis.

Kevin dirigiu-se à sala de estar. O telefone ficava numa secretária na esquina.

— Vai almoçar? — perguntou Esmeralda.

— Sim — respondeu Kevin. Não tinha fome ainda, mas não queria magoar Esmeralda.

Kevin sentou-se à secretária. Com a mão sobre o telefone, ele rapidamente calculou que seriam oito horas da manhã em Nova Iorque. Tentou imaginar por que teria o Dr. Lyons telefonado, calculava que teria a ver com a breve conversa tida com Taylor Cabot. Kevin não gostava da ideia de uma autópsia em Cario Franconi, e, certamente, Raymond tão pouco.

Kevin conhecera Raymond havia seis anos. Fora em Nova Iorque, durante um Encontro da Associação Americana para o Avanço da Ciência, onde Kevin fizera uma apresentação oral. Kevin detestava fazer apresentações orais e raramente as fazia, mas nessa ocasião fora obrigado pelo director do seu departamento em Harvard. Desdequefizeraatese interessara-se pela transposição de cromossomas; um processo segundo o qual os cromossomas permutavam partículas para aumentar a adaptação da espécie e por conseguinte a evolução. Este fenómeno acontecia frequentemente em particular durante a procriação das células que determinam o sexo: um processo chamado meiose.

Por coincidência, no mesmo encontro e na mesma hora em que estava prevista a apresentação de Kevin, James Watson e Francis Crick fizeram uma apresentação de muito interesse sobre o aniversário da descoberta da estrutura do ADN. Consequentemente, muito poucas pessoas assistiram à apresentação de Kevin. Uma das pessoas presentes fora Raymond. Foi depois da apresentação que Raymond se dirigiu a Kevin. Como resultado da conversa, Kevin deixou Harvard e foi trabalhar para a Gensys.

Com a mão trémula levantou o auscultador e digitou o número. Raymond respondeu logo ao primeiro toque, o que sugeria que estivera amarrado ao telefone. A ligação estava absolutamente nítida, como se fosse do quarto ao lado.

—Tenho boas notícias — disse Raymond, logo que se apercebeu que era Kevin. — Não vai haver autópsia.

Kevin não respondeu. Os seus pensamentos estavam numaturbulência.

— Não se sente aliviado? — perguntou Raymond. — Sei que Cabot lhe telefonou ontem à noite.

— Estou aliviado até certo ponto — disse Kevin. — Mas com autópsia ou sem autópsia estou a pensar duas vezes sobre toda a operação.

Agora, era a vez de Raymond ficar silencioso. Mal tinha resolvido um potencial problema logo surgia um outro.

— Talvez tenhamos cometido um erro—disse Kevin. — Quero dizer, eu talvez tenha cometido um erro. A minha consciência começa a incomodar-me, e estou a ficar um pouco assustado. Eu sou apenas uma pessoa da ciência fundamental. Esta ciência aplicada não é a minha área.

— Oh, por favor — disse Raymond com irritação. — Não complique as coisas! Não agora. Quero dizer, tem aquele laboratório que sempre quis ter. Eu quebrei a cabeça para conseguir todas as peças de equipamento que você pediu. E mais, as coisas estão a correr muito bem, especialmente com o meu recrutamento. Caramba, com tudo o que você está a amealhar, será um homem rico.

— Eu nunca quis ser rico — disse Kevin.

— Podiam acontecer outras coisas piores — disse Raymond. — Vamos lá, Kevin. Não me faça isto!

— E de que me serve ser rico, se tenho de ficar aqui no meio da escuridão? — disse Kevin. Involuntariamente, Kevin pareceu ter visto a figura do director, Siegfried Spallek. Kevin estremeceu. Tinha pavor do homem.

— Não é para sempre — disse Raymond. — Você próprio me disse que está quase lá, que o sistema está quase perfeito. Quando estiver, e você tiver treinado uma pessoa, poderá voltar. Com o dinheiro poderá construir o laboratório dos seus sonhos.

— Vi mais fumo vindo da ilha — disse Kevin. — Justamente como na semana passada.

— Esqueça o fumo! — disse Raymond. — Está a dar asas à sua imaginação. Em vez de se enervar por uma coisa sem importância, concentre-se no que está a fazer para que possa acabar o mais rápido possível. Se tiver algum tempo livre, comece a fantasiar sobre o laboratório que irá construir aqui deste lado.

Kevin acenou com a cabeça. Raymond tinha razão. Parte da preocupação de Kevin era o facto de poder vir a saber-se que ele estava envolvido com África, poderiam não admiti-lo mais como académico. Ninguém mais o contrataria, muito menos iria subsidiá-lo. Mas se ele tivesse o seu próprio laboratório e um rendimento próprio, nada teria a temer.

— Ouça — disse Raymond. — Vou buscar o último paciente quando ele estiver pronto. Falaremos novamente nessa altura. Lembre-se apenas de que estamos quase lá e que o dinheiro está a correr para os cofres Offshore.

— Está bem — disse Kevin com relutância.

— Não faça nada precipitado — disse Raymond. — Prometa-me!

—Está bem—repetiu Kevin, ligeiramente mais entusiasmado.

Kevin desligou o telefone. Raymond era uma pessoa persuasiva, e sempre que Kevin falava com ele, inevitavelmente sentia-se melhor.

Kevin levantou-se da secretária e foi até à sala de jantar. Seguindo o conselho de Raymond, tentou imaginar onde iria construir o seu laboratório. Havia fortes argumentos a favor de Cambridge, Massachusetts, devido às ligações que Kevin tinha, tanto com Harvard como com o MIT. Por outro lado, talvez fosse melhor estar fora, no campo, como em New Hampshire.

O almoço era um peixe branco, que Kevin não reconhecia. Quando ele indagou, Esmeralda deu-lhe um nome emfang, que nada significava para Kevin. Surpreendeu-se por ter comido mais do que esperava. A conversa com Raymond tivera um efeito positivo no seu apetite. A ideia de ter o seu próprio laboratório continuava a ser uma atracção incontrolável. Depois do almoço, Kevin mudou a camisa molhada por uma limpa e acabada de engomar. Estava ansioso por voltar ao trabalho. Quando ia a descer as escadas, Esmeralda perguntou para que horas ele queria o jantar. Ele respondeu às sete, a hora habitual.

Enquanto Kevin almoçava, um grupo de nuvens carregadas, de um cinzento-arroxeado, tinham ondulado vindas do oceano. Quando chegou à porta da frente chovia torrencialmente, e a rua em frente à sua casa era uma cascata com a água a correr em direcção à marginal. Olhando para o sul, sobre o Estuário Dei Muni, Kevin vislumbrava uma linha de sol brilhante, assim como um arco-íris completo. O tempo no Gabão continuava bom. Kevin não estava surpreendido. Já tinha acontecido chover num lado da rua e no outro não.

Imaginando que a chuva continuaria pelo menos por mais meia hora, Kevin deslocou-se junto à casa, procurando a protecção das arcadas e meteu-se no seu jipe preto Toyota. Embora a distância até ao hospital fosse curta, Kevin decidiu que seria preferível ir de carro a ficar encharcado o resto da tarde.

 

4 DE MARÇO, 1997 - 8:45 CIDADE DE NOVA IORQUE

—Bem, que fazemos?—Franco Ponti perguntou ao seu patrão, Vinnie Dominick, através do retrovisor. Estavam no carro de Vinnie, umLincoln-Towncar. Vinnie sentava-se no assento de trás, inclinado para a frente, com a mão direita agarrada ao suporte do lado. Olhava para o número 126 da 64th Street, lado leste. Era um edifício de pedra castanha, construído em estilo rococó francês, com altas janelas em arco e com muitos painéis. As janelas do primeiro andar estavam protegidas por um forte gradeamento de ferro.

— Parece uma casa bem bacana — disse Vinnie. — O bom médico está a safar-se bem.

— Quer que pare?—perguntou Franco. O carro estava no meio da rua, e o táxi atrás apitava insistentemente.

— Pára! — disse Vinnie.

Franco deslizou um pouco mais até encontrar uma entrada de incêndio. Desviou-se. Enquanto ultrapassava, o motorista do táxi, furiosamente, fazia-lhes gestos com os dedos. Angelo Facciolo abanou a cabeça e fez um comentário depreciativo acerca dos condutores de táxi expatriados russos. Angelo sentava-se à frente, ao lado de Franco.

Vinnie saltou do carro. Franco e Angelo seguiram-no. Os três homens estavam impecavelmente vestidos com longos sobretudos Salvatore Ferragamo, em tons de cinzento.

— Acha que o carro está bem? — perguntou Franco.

— A entrevista deve ser breve — disse Vinnie. — Mas põe o dístico da Associação de Benevolência da Polícia no pára-brisas. Já agora, poupa-se cinquenta dólares.

Vinnie dirigiu-se ao número 126. Franco e Angelo caminhavam no seu imutável estilo vigilante. Vinnie olhou para o intercomunicador da porta.

— É um T2 — disse Vinnie. — O doutor não está a sair-se tão bem quanto eu pensava. — Vinnie carregou no botão do Dr. Raymond Lyons e aguardou.

— Sim? — perguntou uma voz feminina.

— Estou aqui para falar com o doutor—disse Vinnie. — O meu nome é Vinnie Dominick.

Houve uma pausa. Vinnie brincava com uma rolha na ponta do sapato Gucci. Franco e Angelo olhavam para um lado e outro da rua.

O intercomunicador estalou e ressuscitou.

— Sim, fala o Dr. Lyons. Posso ajudá-lo?

— Creio que sim — disse Vinnie. — Preciso que nos dispense cerca de quinze minutos.

— Não sei se o conheço, Sr. Dominick — disse Raymond. — Poderia dizer-me de que se trata?

—Trata-se do favor que eu lhe fiz ontem à noite—disse Vinnie.

— O pedido veio através dum nosso conhecido comum, o Dr. Daniel Levitz.

Houve uma pausa.

— Suponho que continua aí, doutor — disse Vinnie.

— Sim, claro — disse Raymond. Ouviu-se um zumbido rouco. Vinnie empurrou a pesada porta e entrou. Os seus lacaios seguiram-no.

—Acho que o bom doutor não está lá muito contente por nos ver

— disse Vinnie em ar de zombaria enquanto subiam no elevador. Os três homens estavam espremidos uns contra os outros como sardinhas em lata.

Raymond esperava-os à saída do elevador. Enquanto se apresentavam e davam apertos de mão, ele não conseguia esconder o seu nervosismo. Com um gesto convidou-os a entrar no apartamento e depois indicou-lhes um estúdio forrado a mogno.

— Café? — perguntou Raymond Franco e Angelo olharam para Vinnie.

—Eu não recusaria um expresso, se isso não for muito incómodo.

— Franco e Angelo disseram que aceitariam o mesmo. Raymond deu a ordem através do telefone que estava sobre a

secretária.

Os piores receios de Raymond tinham-se materializado logo que viu os convidados impostos. Na sua perspectiva, pareciam o estereótipo dos filmes degangsters. Vinnie tinha um metro e setenta e cinco, uma compleição escura e um ar distinto, traços cheios e cabelo brilhante penteado para trás. Era sem dúvida o patrão. Os outros dois mediam ambos cerca de um metro e oitenta e tinham um ar esquelético. Tinham o nariz e os lábios afiados, e os pequenos olhos lustrosos eram encovados. Poderiam ser irmãos. A principal diferença entre eles era a pele de Angelo que se parecia com o lado escuro da Lua.

— Querem tirar os casacos? — perguntou Raymond.

— Não nos vamos demorar — disse Vinnie.

— Pelo menos, sentem-se — disse Raymond.

Vinnie descontraiu-se numa poltrona de cabedal. Franco e Angelo sentaram-se muito aprumados num sofá de veludo. Raymond sentou-se à secretária.

— Em que posso ser-lhes útil, cavalheiros? — disse Raymond, tentando aparentar um ar confiante.

— O favor que lhe fizemos ontem à noite não foi fácil — disse Vinnie. — Pensámos que gostaria de saber como foi executado.

Raymond deixou escapar uma gargalhada melancólica através de um sorriso amargo. Pôs as mão no ar como se fosse aparar qualquer coisa que vinha em sua direcção.

— Isso não é necessário. Estou certo que...

—Nós insistimos—interrompeu Vinnie.—Dará assim mais ar de negócio. Sabe, nós não gostaríamos que pensasse que não nos empenhámos por si.

— Nem por um momento me passou isso pela cabeça — disse Raymond.

— Bem, era só para me certificar—disse Vinnie. — Sabe, tirar um corpo da morgue não é tarefa fácil, uma vez que eles estão abertos vinte e quatro horas por dia, e têm um segurança fardado de serviço a todas as horas.

— Não é necessário — disse Raymond. — Eu preferia que me poupassem os pormenores, mas fico-lhes muito grato pelos vossos serviços.

—Cale-se, Dr. Lyons, e ouça!—disse Vinnie. Fez umapausapor uns momentos para organizar os seus pensamentos. — Tivemos sorte porque aqui o Angelo conhece um rapazinho chamado Vinnie Amendola, que trabalha na morgue. Este rapazinho devia uns favores a Pauli Cerino, um tipo para quem Angelo trabalhava mas que, neste momento, está na prisão. Angelo agora trabalha para mim, e sabendo o que ele sabe, conseguiu convencer o rapazinho a nos dizer onde estavam os restos mortais do Sr. Franconi. O rapazinho deu-nos mais algumas informações para que pudéssemos entrar lá a meio da noite.

Nesse momento os expressos chegaram. Trouxe-os Darlene Polson, que Raymond apresentou como sua assistente. Logo que os cafés foram distribuídos, Darlene saiu.

— Uma assistente muito bonita — disse Vinnie.

— Ela é muito eficiente — Raymond comentou. Inconscientemente, esfregou a sobrancelha.

— Esperamos não estar a fazê-lo sentir-se incomodado — disse Vinnie.

— Não, de modo algum — ripostou Raymond, um tanto ou quanto precipitado.

— Conclusão, retirámos o corpo sem problema — disse Vinnie. — E desaparecemos com ele. Mas como pode compreender, não foi um passeio pelo parque. Aliás, foi um grande bico de obra, pois tivemos muito pouco tempo para planeá-lo.

— Bem, se algum dia eu puder ser-lhes útil — comentou Raymond depois de uma pausa desconfortável.

— Obrigado, doutor — disse Vinnie. Ele friccionava o seu expresso como se fosse uma bebida alcoólica. Colocou a chávena e o pires na ponta da secretária. — Disse exactamente aquilo que eu esperava ouvir, então, vamos ao que me trouxe aqui. Ora, provavelmente, sabe que eu sou um cliente, tal como Franconi. Mais importante, o meu filho de 11 anos, Vinnie Júnior, é também cliente. Aliás, é provável que ele venha a precisar dos seus serviços mais do que eu. Por isso, estamos a falar em duas propinas, como vocês lhe chamam. O que quero propor é a isenção do pagamento deste ano. Que acha?

Os olhos de Raymond baixaram-se em direcção ao tampo da secretária.

— Estamos a falar de um favor por um favor — disse Vinnie. — É justo.

Raymond clareou a garganta.

— Terei de falar às instâncias superiores — disse ele.

— Ora, é a primeira coisa pouco simpática que você disse — acrescentou Vinnie. — Estou informado de que o doutor é “as instâncias superiores”. Por isso, este jogo é insultante. Vou mudar a minha oferta. Não pagarei nada este ano, nem no próximo ano. Espero que compreenda o caminho que esta conversa está a tomar.

—Compreendo—disse Raymond. Ele engoliu com um evidente esforço. — Eu tratarei disso.

Vinnie levantou-se. Franco e Angelo fizeram o mesmo.

— Assim é que é — disse Vinnie. — Então, conto consigo para falar ao Dr. Daniel Levitz e pô-lo a par do nosso acordo.

— Claro — disse Raymond, erguendo-se.

— Obrigado pelo café — disse Vinnie. — Caiu mesmo bem. Os meus cumprimentos à sua assistente.

Raymond fechou a porta do apartamento atrás dos tratantes e encostou-se a ela. A sua pulsação estava acelerada. Darlene surgiu na porta que dava para a cozinha.

— Foi tão mau quanto temias? — perguntou ela.

— Pior! — disse Raymond. — Mostraram mesmo o que são. Agora, tenho de lidar com um bando de criminosos vulgares que exigem uma borla. Eu pergunto, que poderá acontecer a seguir?

Raymond desencostou-se da porta e dirigiu-se para o escritório. Andou dois passos e cambaleou. Darlene correu para ele e segurou-o pelo braço.

— Estás bem? — perguntou ela.

Raymond aguardou um momento antes de acenar com a cabeça.

— Estou, estou bem — disse ele. — Só um pouco estonteado. Graças a este golpe do Franconi, não preguei olho esta noite.

—Talvez pudesses cancelar o encontro que tinhas marcado com aquele novo médico.

— Penso que tens razão — disse Raymond. — Neste estado, suponho que não seria capaz de convencer quem quer que fosse a aderir ao nosso grupo, até que estivessem prestes a ir a tribunal por falência.

 

4 DE MARÇO, 1997 - 19:00 CIDADE DE NOVA IORQUE

Laurie acabou de preparar a salada de legumes, pôs uma toalha de papel a cobrir a saladeira e meteu-a no frigorífico. Depois preparou o molho, uma simples mistura de azeite, alho fresco e vinagre branco, com uma pitada de bálsamo. Pô-lo no frigorífico. Voltando a sua atenção para o lombo de carneiro, tirou o pouco de gordura que ainda trazia, pôs a carne numa marinada que preparara antes e pô-la no frigorífico com os outros. A última tarefa era preparar as alcachofras. Foi apenas um momento para tirar algumas das folhas maiores e mais fibrosas.

Limpando as mãos na toalha da loiça, Laurie olhou para o relógio da parede. Conhecia bem o horário de Jack, por isso pensou que seria a hora certa para telefonar. Usou o telefone de parede, junto à pia. Enquanto esperava a ligação, imaginou Jack a subir as turbulentas escadas do delapidado prédio onde ele vivia. Embora ela compreendesse a razão que originalmente o levara a arrendar aquele apartamento, era-lhe difícil compreender o porquê de ele continuar ali. O prédio era tão deprimente. Por outro lado, ao olhar à sua volta, teve de admitir que havia pouca diferença entre os dois apartamentos uma vez estando lá dentro, excepto que o de Jack era mais espaçoso.

O telefone tocava no outro lado. Laurie contou os toques. Quando chegou à décima vez, começou a duvidar da sua familiaridade como o horário de Jack. Estava prestes a desligar quando Jack atendeu.

— Está! — disse ele sem qualquer cerimónia. A respiração era ofegante.

— Esta é a tua noite de sorte — disse Laurie.

— Quem fala? — perguntou Jack. — És tu, Laurie?

— Pareces ofegante — disse Laurie. — Quer isso dizer que perdeste no basquetebol?

— Não, quer dizer que tive de correr quatro lances de escadas para atender o telefone — disse Jack. — Que se passa? Não me digas que ainda estás no serviço?

— Meu Deus, não — disse Laurie. — Já estou em casa há uma hora.

— Então, por que é que esta é a minha noite de sorte? — perguntou Jack.

—Parei no Gustede, a caminho de casa, e comprei os ingredientes para o teu jantar favorito — disse Laurie. — Está tudo pronto para ir para o forno. Basta que tomes um duche e venhas para aqui.

— E eu que pensei que te devia uma desculpa pela gargalhada que dei perante o desaparecimento do mafioso — disse Jack. — Se é necessário uma rectificação é da minha parte.

— Isto não tem nada a ver com compensações — disse Laurie. — Eu apenas gostaria de ter a tua companhia. Mas há uma condição.

— Ah, oh! — disse Jack. — Qual é?

— Nada de bicicleta — disse Laurie. — É pegar ou largar! Se e quando tu te enfiares debaixo de um autocarro e acabares com uma placa na sepultura, não quero ser responsável. — Laurie sentiu o rosto corar. Era um assunto com que não gostava de brincar.

— Okay — disse Jack, prazenteiramente. — Estarei aí dentro de trinta e cinco a quarenta minutos. Levo vinho?

— Seria formidável — disse Laurie.

Laurie estava contente. Estivera na dúvida se Jack aceitaria o convite. No último ano eles encontravam-se socialmente, e já há vários meses, Laurie tinha de admitir, que se apaixonara por ele. Mas Jack parecia relutante em permitir que a relação progredisse ao ponto de compromisso. Quando Laurie tentou forçar o assunto, Jack respondera distanciando-se. Sentindo-se rejeitada, Laurie reagira com ira. Durante uma semana, só se falavam por questões profissionais.

No último mês, o relacionamento tinhamelhorado. Encontravam-se de novo casualmente. Desta vez, Laurie estava consciente que devia dar-lhe tempo. O problema era que aos 37 anos não era fácil. Laurie sempre ansiara ser mãe um dia. Com os quarenta anos a aproximarem-se muito em breve, sentia que o tempo estava a expirar.

Com o jantar praticamente pronto, Laurie procurou pôr o seu pequeno apartamento em ordem. Isto significava colocar livros nos seus lugares nas prateleiras, pôr a pilha de jornais médicos em ordem, e despejar os excrementos de Tom. Tom era o seu gato de seis anos e meio, de cor amarelo-torrado, que continuava tão rebelde como quando era bebé. Laurie endireitou o cortinado Klint estampado, que o gato retorcia na sua rotina diária das prateleiras para a sanefa da janela.

Em seguida, Laurie tomou um duche rápido, vestiu uma camisola de gola olímpica ejeans, e maquilhou-se ligeiramente. Ao fazê-lo, olhou demoradamente para os pés-de-galinha que se formavam nos cantos dos olhos. Não se sentia nada mais velha do que quando saíra da Universidade de Medicina, no entanto, não podia ignorar o avançar da idade.

Jack chegou à hora prevista. Quando Laurie olhou pelo olho magnético da porta, viu apenas uma imagem deformada do rosto de Jack, com um rasgado sorriso irónico, que ele tinha colocado a poucos centímetros da lente. Riu-se da brincadeira enquanto abria os fechos de segurança da porta.

— Entra, palhaço — disse Laurie.

—Era para ter a certeza de que me reconhecias—disse Jack ao passar por ela no portal. — O meu incisivo superior esquerdo rachado tornou-se a minha marca registada.

Justamente quando Laurie ia a fechar a porta, entreviu a sua vizinha, a Sr.a Engler, que espreitava pela fresta da porta para ver quem era a visita. Laurie olhou-a fixamente. Era tão bisbilhoteira.

O jantar foi um sucesso. A comida estava perfeita e o vinho era razoável. A desculpa de Jack era que a loja de bebidas perto da sua casa especializava-se em vinho a retalho, não vinho bom.

No decurso do jantar, Laurie teve de morder o lábio várias vezes para não tocar em áreas sensíveis. Adoraria falar sobre a relação, mas não ousava. Sentia que parte da hesitação de Jack derivava da terrível tragédia pessoal. Seis anos antes a esposa e as duas filhas tinham morrido num desastre aéreo. Poucos meses depois de saírem juntos, Jack falara-lhe no assunto, mas depois recusara-se a voltar ao mesmo. Ela sentia que essa perda era o maior obstáculo na relação entre eles. Por conseguinte, de certo modo, ela compreendia a relutância de Jack em se envolver numa relação mais estreita.

Jack não tinha qualquer dificuldade em manter uma conversa. O jogo de basquetebol que jogara no campo de jogos do seu prédio tinha corrido bem e ele gostava de falar sobre isso. Por acaso, o seu parceiro tinha sido Warren, um impressionante afro-americano, que era o líder do bando local e de longe o melhor jogador. A equipa Jack e Warren não perdera uma única vez.

— Que tal está Warren? — perguntou Laurie. Jack e Laurie tinham saído frequentemente com Warren e Natalie Adams, a sua namorada. Laurie não os via desde que a sua relação com Jack esfriara.

—Warren é o Warren—disse Jack. Encolheu os ombros. — Ele tem tanto potencial. Tenho tentado convencê-lo a fazer um curso universitário, mas ele está renitente. Diz que os meus valores não são os dele, por isso já desisti.

— E Natalie?

— Bem, suponho — disse Jack. — Não a vejo desde que saímos todos juntos.

— Devíamos juntarmo-nos novamente — disse Laurie. — Tenho saudades deles.

— É uma boa ideia — disse Jack, evasivamente.

Houve uma pausa. Laurie ouvia o rosnar do gato. Depois de comer e levantar a mesa Jack sentou-se no sofá. Laurie sentou-se em frente dele, na cadeira de arte decorativa que comprara na Village.

Laurie suspirou. Sentia-se frustrada. Parecia um sinal de imaturidade não conseguir falar de assuntos emocionais que eram importantes.

Jack olhou para o relógio.

— Oh! — disse ele. Desencostou-se e sentou-se na beira do sofá. —Um quarto para as onze — acrescentou. — Tenho de ir andando. É uma noite de escola e a cama chama-me.

— Mais vinho? — perguntou Laurie. Pegou no jarro. Apenas tinham bebido um quarto.

—Não posso—disse Jack.—Tenho de manter os meus reflexos rápidos para a viagem de táxi para casa. — Ergueu-se e agradeceu a Laurie o jantar.

Laurie descansou o copo e pôs-se de pé.

— Se não te importas, gostaria de ir contigo até à morgue.

— O quê!? — exclamou Jack. Ele franziu o rosto com um ar incrédulo. — Não vais trabalhar a estas horas? Quero dizer, nem estás de serviço.

— Apenas quero interrogar o técnico da noite e o segurança — disse Laurie, enquanto se dirigia para o armário do corredor para retirar os casacos.

— Mas para quê? — perguntou Jack.

— Quero averiguar como desapareceu o corpo de Franconi — respondeu Laurie. Entregou-lhe o casaco de bombardeiro. — Falei com o turno da tarde quando eles entraram.

— Que te disseram?

— Não foi grande coisa — disse Laurie. — O corpo entrou por volta das oito e quarenta e cinco com um séquito de polícias e jornalistas. Aparentemente, era um circo. Penso que é a razão porque a radiografia não foi feita. A identificação foi feita pela mãe. Um espalhafato emocional para os repórteres. Às dez e quarenta e cinco, o corpo foi colocado na câmara frigorífica, na gaveta um onze. Por isso, penso que é óbvio que o rapto ocorreu durante o turno da noite, das onze às sete da manhã.

— Por que estás tão preocupada com isso? — perguntou Jack. — Isso é um problema de administração.

Laurie vestiu o casaco e pegou na chave.

— Digamos que eu tenho um interesse pessoal neste caso. Jack revirou os olhos enquanto saía do vestíbulo.

— Laurie — entoou ele —, vais meter-te em sarilhos por causa disto. Lembra-te das minhas palavras.

Laurie carregou no botão do elevador. Depois olhou intencionalmente para a Sr.a Engler, que espreitava à porta como costume.

— Aquela mulher põe-me maluca! — disse Laurie ao entrar no elevador.

— Não me prestaste atenção — disse Jack.

—Eu ouvi—disse Laurie.—Mas mesmo assim, vou fazer umas pesquisas. Entre este golpe e o meu sarilho com o antecessor de Franconi, preocupa-me que estes bandos de criminosos pensem que podem fazer o que lhes apetece. Pensam que as leis são para os outros. Pauli Cerino, o homem que Lou mencionou esta manhã, matou várias pessoas só para que ele não tivesse de esperar muito por um transplante da córnea. Isto dá-te uma ideia da ética deles. Não gosto do facto de eles pensarem que é só entrar na morgue e sair de lá com um corpo de um homem que eles tinham acabado de matar.

Chegaram à 19th Street e foram a pé em direcção à First Avenue. Laurie levantou a gola do casaco. Vinha uma brisa do East River, e estavam apenas no princípio da rua.

—Que te faz pensar que os criminosos estão por detrás disto?— interrogou Jack.

— Não é preciso ser perito para se chegar a essa conclusão — disse Laurie.

Ela levantou a mão ao ver um táxi a aproximar-se, mas ele passou velozmente sem afrouxar.

— Franconi ia depor como parte dum contrato de redução de pena. Os grandes chefes da organização Vaccaro ficaram furiosos, ou amedrontaram-se ou as duas coisas. É uma velha história.

— Por isso mataram-no! — disse Jack. — Porquê levar o corpo? Laurie encolheu os ombros.

— Eu não sei o que se passa na cabeça desses bandidos — disse ela —, nem faço a mínima ideia por que quiseram o corpo. Talvez para que não tivesse um funeral como deve ser. Talvez porque eles receiem que uma autópsia possa levar à identificação do assassino. Caramba, eu não sei. Mas, em última análise, não interessa o porquê.

— Tenho a impressão de que o “porquê” poderá ser importante

— disse Jack. — Penso que se te envolveres vais caminhar sobre areias movediças.

— Talvez — disse Laurie. Ela encolheu os ombros novamente.

— Fico embevecida por coisas deste género. Suponho que parte do problema é que o único objectivo da minha vida neste momento é o meu trabalho.

—Vem aí um táxi livre—disse Jack, evitando deliberadamente ter de responder ao último comentário de Laurie. Ele apercebeu-se da insinuação e estava relutante em se envolver numa discussão pessoal.

Foi uma viagem de táxi curta, até à esquina da First Avenue e Thirtieth Street. Laurie saiu e ficou surpreendida ao ver Jack fazer o mesmo.

— Não és obrigado a acompanhar-me — disse Laurie.

— Eu sei — disse Jack. — Mas vou de qualquer modo. No caso de não teres percebido ainda, estás a pôr-me preocupado.

Jack debruçou-se na janela do táxi e pagou.

Enquanto se deslocavam entre os carros funerários do hospital, Laurie continuava a insistir que a presença de Jack não era necessária. Entraram na morgue pela entrada da Thirtieth Street.

— Pensei que tinhas dito que a cama te chamava.

—Pode esperar—respondeu Jack.—Depois da história de Lou, de que te tiraram daqui para fora encaixotada e fechada num caixão, acho que devo acompanhar-te.

— Isso foi uma situação completamente diferente — disse Laurie.

— Achas que sim? — retorquiu Jack. — Envolveu criminosos, tal como agora.—Laurie ia continuar a protestar mas o comentário de Jack fez-lhe sentido. Tinha de admitir que havia semelhanças.

A primeira pessoa com quem se depararam foi o segurança da noite, sentado no seu cubículo. Cario Novak era um velhote afável, de cabelo esbranquiçado, que parecia ter encolhido dentro do seu uniforme, que era pelo menos dois tamanhos acima. Estava a jogar o solitário mas levantou os olhos quando Laurie e Jack passaram em frente da janela e pararam junto à sua porta aberta.

— Precisam de alguma coisa? — perguntou Cari. Depois reconheceu Laurie e pediu desculpa por não a ter reconhecido antes.

Laurie perguntou-lhe se ele fora informado do desaparecimento do corpo de Franconi.

—Pelo amor de Deus—disse Cari —, Robert Harper, o chefe da segurança, telefonou-me para casa. Estava alvoroçado e fez-me uma série de perguntas.

Não foi preciso muito tempo para que Laurie se apercebesse de que Cari não podia dar qualquer pista sobre o mistério. Ele insistia que nada de anormal se passara. Tinham entrado e saído corpos, como acontecia todos os dias do ano. Admitiu ter-se afastado do seu posto para ir ao WC. Focou que em ambas as ocasiões se afastara apenas por alguns minutos e que, de cada vez, informara o técnico da noite, Mike Passano.

— E as refeições? — perguntou Laurie.

Cari abriu o gavetão da secretária de metal e levantou uma lancheira hermética.

— Eu como aqui mesmo.

Laurie agradeceu-lhe e continuou a andar. Jack seguiu-a.

— Este lugar, definitivamente, parece diferente à noite — disse Jack ao passarem no grande átrio que dava acesso às câmaras frigoríficas e à sala de autópsias.

— É um pouco sinistro sem o usual reboliço do dia — admitiu Laurie.

— Olharam para o necrotério e viram Mike Passano ocupado com impressos de entradas. Tinha entrado recentemente um corpo que fora pescado do oceano junto à Guarda Costeira. Ele levantou os olhos quando se apercebeu de que tinha companhia.

Mike tinha à volta dos trinta, falava com uma acentuada pronúncia de Long Island, e parecia ser do sul da Itália. Era de estatura média, com traços faciais bem definidos. Tinha cabelo escuro, tez escura e olhos escuros.

Nem Laurie nem Jack tinha trabalhado com ele, embora o tivessem encontrado em diversas ocasiões.

— Vieram cá para ver o flutuador? — perguntou Mike.

— Não — disse Jack. — Há algum problema?

— Não, não há qualquer problema—disse Mike. — Só que está mal tratado.

— Viemos falar acerca de ontem à noite — disse Laurie.

— Sobre quê? — perguntou Mike.

Laurie pôs as mesmas questões que pusera a Cari. Para surpresa sua, Mike logo ficou exaltado. Ela estava prestes a retorquir quando Jack a agarrou pelo braço e lhe fez sinal para que ela se retirasse para o vestíbulo.

— Acalma-te! — recomendou Jack, logo que teve a certeza de que ninguém os ouvia.

— Acalma-me com quê? — perguntou Laurie. — Não estou a confrontar ninguém.

— Concordo—disse Jack.—Eu sou a última pessoa a ser perita em políticas administrativas ou relações interpessoais, mas Mike pareceu-me na defensiva. Se queres arrancar alguma informação dele, terás de ter isso em consideração e caminhar mais suavemente.

Laurie pensou por uns instantes, depois fez um sinal de assentimento com a cabeça.

— Talvez tenhas razão.

Voltaram ao necrotério e antes que Laurie pudesse proferir qualquer palavra, Mike disse:

— Caso não saibam, o Dr. Washington telefonou-me esta manhã e acordou-me por causa desta história. Ele leu-me a cartilha toda. Mas eu fiz o trabalho normal ontem à noite, e garanto que não tive nada a ver com o desaparecimento do corpo.

— Peço desculpa se alguma coisa que eu possa ter dito te fez chegar a essa conclusão — disse Laurie. — O que eu queria dizer é que o corpo desapareceu durante o teu turno. Não é o mesmo que dizer que és o responsável.

— Tive a impressão de que estava a ser acusado — disse Mike.

— Eu sou a única pessoa aqui além do segurança e dos homens da limpeza.

— Aconteceu alguma coisa fora do normal? — perguntou Laurie.

Mike abanou a cabeça.

— Foi uma noite calma. Entraram dois corpos e saíram dois.

— E como chegaram os corpos?—perguntou Laurie. — Vieram com os nossos?

— Sim, senhora, nos nossos carros — respondeu Mike. — Jeff Cooper e Peter Molina. Ambos os corpos eram de hospitais locais.

— E os corpos que saíram? — perguntou Laurie.

— Que têm?

— Bem, quem veio buscá-los?

Mike apanhou o livro de registos da secretária e abriu-o. O dedo indicador percorreu a coluna, depois parou.

— A Agência Spoletto Funeral Home, no Parque Ozone e a Dickson Funeral Home, no Summit, Nova Jérsia.

— Quais eram os nomes dos falecidos? — perguntou Laurie. Mike consultou o livro.

— Frank Gleason e Dorothy Kline. Os números de acesso são

100385 e 101455. Mais alguma coisa?

—Estavas à espera de que fossem essas as agências funerárias?

— perguntou Laurie.

— Pois claro — disse Mike. — Tinham telefonado antecipadamente, como sempre.

— Então, estava tudo pronto?

— Obviamente — disse Mike. — Eu tinha a papelada toda pronta. Eles só tiveram de assinar a saída.

— E os corpos? — Laurie perguntou.

— Estavam na antecâmara frigorífica, como costume — disse Mike. — Logo à frente, nas macas.

Laurie olhou para Jack.

— Lembras-te de mais alguma pergunta? Jack encolheu os ombros.

— Suponho que cobriste as questões principais, excepto se ele abandonou o posto.

—Boa questão!—disse Laurie. Voltando-se para Mike disse: — Cari disse-nos que quando saiu para ir ao WC, duas vezes, contactou contigo. Contactas o Cari sempre que precisas sair do teu posto?

— Sempre — disse Mike. — Muitas vezes somos as únicas pessoas aqui em baixo. Temos de ter alguém a vigiar a porta.

— Estiveste fora do teu posto muito tempo ontem à noite? — indagou Laurie.

— Não, senhora — respondeu Mike. — Não mais do que o costume. Umas duas vezes para o WC e uma meia hora para almoçar no segundo andar. Já lhe disse que foi uma noite normal.

—E os homens da limpeza—perguntou Laurie—andavam por perto?

— Não, durante o meu turno — disse Mike. — Eles geralmente limpam aqui em baixo ao fim da tarde. O turno da noite é lá em cima, a não ser que haja alguma coisa fora do normal.

Laurie tentou pensar noutras questões, mas nada lhe ocorreu.

— Obrigada, Mike — disse ela.

— Não há problema — disse Mike.

Laurie dirigiu-se para a porta, mas parou. Voltou-se eperguntou.

— Por acaso chegaste a ver o corpo de Franconi? Mike hesitou um segundo antes de admitir que vira.

— Em que circunstâncias? — perguntou Laurie.

— Quando eu chego ao trabalho, Marvin, o técnico da noite, geralmente põe-me ao corrente do que se passa. Ele estava como que fascinado pelo caso de Franconi, por causa de todo o aparato da Polícia e a maneira como a família se comportou. De qualquer modo, ele mostrou-me corpo.

— Quando o viste, estava no compartimento um onze?

— Sim, senhora.

—Diz-me uma coisa, Mike—disse Laurie.—Tens alguma ideia de como é que o corpo possa ter saído daqui?

— Não faço a mínima ideia — disse Mike. — A não ser que ele tivesse saído pelos seus próprios pés.—Riu-se, mas depois pareceu embaraçado. — Eu não queria brincar. Estou confuso como toda a gente. O que sei, é que saíram apenas dois corpos daqui ontem à noite, e foram os dois que eu dei saída.

— E nunca mais voltaste a ver o corpo de Franconi depois de Marvin o ter mostrado?

— Claro que não — disse Mike. — Por que é havia de ver?

— Não havia razão alguma — disse Laurie. — Por acaso sabes onde estão os condutores?

— Lá em cima, na sala de almoços—disse Mike.—É lá que eles param sempre.

Laurie e Jack tomaram o elevador. Quando estavam a subir, Laurie notou que as pálpebras de Jack estavam prestes a fechar-se.

— Pareces cansado — comentou Laurie.

— Não admira. Estou mesmo cansado — disse Jack.

— Por que não vais para casa? — perguntou Laurie.

—Aguentei até agora — disse Jack —, penso que vou aguentar até ao fim.

A intensidade da luz fluorescente da sala de almoços fez que Laurie e Jack pestanejassem. Encontraram Jeff e Pete numa mesa, junto à máquina automática, concentrados no jornal, enquanto comiam batatas fritas. Vestiam macacões azuis amarrotados, com o dístico Corporação de Hospitais e Saúde na parte superior do braço. Ambos tinham rabos-de-cavalo.

Laurie apresentou-se, explicou o seu interesse no corpo desaparecido, e perguntou se tinha havido alguma coisa de especial na noite anterior, sobretudo no que dizia respeito aos dois corpos que tinham entrado.

Jeff e Pete trocaram o olhar, em seguida Pete respondeu.

— O meu estava num estado terrível — disse Pete.

— Não me refiro aos corpos em si — disse Laurie. — Refiro-me se teria havido qualquer coisa de anormal no processo. Viram na morgue alguém que não reconheceram? Aconteceu alguma coisa fora do comum?

Pete novamente olhou de relance para Jeff e depois abanou a cabeça.

— Nadinha. Foi o normal.

— Lembra-se em que gaveta pôs o seu corpo? — perguntou Laurie.

Pete coçou o alto da cabeça.

— Na verdade, não — disse ele.

— Foi perto do um onze? — perguntou Laurie. Pete abanou a cabeça.

— Não, foi do outro lado. Parece que no cinquenta e cinco. Não me recordo bem. Mas está escrito lá em baixo.

Laurie voltou-se para Jeff.

— O meu corpo foi para o vinte e oito — disse Jeff. — Lembro-me, porque é essa a minha idade.

—Algum de vocês viu o corpo de Franconi?—perguntou Laurie. Os dois condutores trocaram de novo o olhar. Jeff retorquiu:

— Sim, vimos.

— A que horas?

— Mais ou menos a esta hora — respondeu Jeff.

—Em que circunstâncias?—perguntou Laurie.—Geralmente, não vêm os corpos que transportam.

— Depois de Mike nos falar dele, quisemos vê-lo por causa de todo o alvoroço. Mas não tocámos em nada.

— Foi uma questão de segundos — acrescentou Pete.—Apenas abrimos a porta e olhámos para dentro.

— Estavam com Mike? — perguntou. Laurie.

— Não — disse Pete. — Ele só nos disse qual era a gaveta.

— O Dr. Washington falou-vos sobre o que se passou ontem à noite? — perguntou Laurie.

— Sim, senhora, e o Sr. Harper também — disse Jeff.

— Disseram ao Dr. Washington que tinham visto o corpo? — perguntou Laurie

— Não — respondeu Jeff.

— Por que não? — perguntou Laurie.

— Ele não perguntou — disse Jeff. — Sabemos que é uma coisa que não devemos fazer. Mas como eu disse, com toda a agitação, estávamos curiosos.

— Talvez seja conveniente dizer ao Dr. Washington — sugeriu Laurie. — Só para que ele fique a par de todos os factos.

Laurie voltou-se e dirigiu-se para o elevador. Jack seguiu-a submissamente.

— Que pensas sobre isto? — perguntou Laurie.

— Para mim, torna-se cada vez mais difícil raciocinar quanto mais se aproxima da meia-noite — disse Jack. — Mas acho que o facto de eles terem visto o corpo não significa nada.

— Mas Mike não o mencionou — disse Laurie.

— É verdade — disse Jack. — Mas todos eles sabiam que estavam a furar os regulamentos. É próprio da natureza humana em tais situações não ser completamente aberto.

— Talvez — disse Laurie com um suspiro.

—Para onde, agora?—perguntou Jack ao entrarem no elevador.

— As minhas ideias estão a ficar esgotadas — disse Laurie.

— Ainda bem — disse Jack.

— Não achas que devia perguntar a Mike por que é que ele não mencionou o facto dos motoristas terem visto o corpo de Franconi? — perguntou Laurie.

— Podias, mas suponho que estarás a bater na mesma tecla — disse Jack.—Realmente, suponho que não houve nada se não mera curiosidade.

—Então, vamos dar isto por acabado—disse Laurie.—A cama parece-me uma boa ideia.

 

5 DE MARÇO, 1997 - 10:15 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Kevin voltou a colocar os frascos de cultura animal na incubadora e fechou a porta. Tinha estado a trabalhar desde antes da madrugada. A sua pesquisa actual era encontrar uma transponase para estimular um gene secundário de histocompatibilidade no cromossoma Y. Sentia-se frustrado, pois havia mais de um mês que tentava em vão, apesar de usar a técnica que tinha usado com sucesso para encontrar e isolar as transponases associadas com o segmento curto do...

Habitualmente, Kevin chegava ao laboratório cerca das oito e trinta, mas, nessa manhã, acordara às quatro horas e não conseguira voltar a adormecer. Depois de se virar e revirar na cama durante três quartos de hora, decidiu que poderia utilizar o tempo de um modo mais útil. Chegara ao laboratório às cinco da manhã, estava ainda escuro como breu.

O que perturbava o sono de Kevin era a sua consciência. A obsessiva ideia de que tinha cometido um erro prometeano vinha à superfície como uma vingança. Embora, na altura, ele tivesse serenado quando o Dr. Lyons mencionou a construção do seu próprio laboratório, fora um bálsamo que não durara muito. Com laboratório ou sem ele, não poderia negar o horror, que temia, estivesse a evoluir na ilha Francesca.

O que Kevin sentia não estava relacionado com o facto de ter visto mais fumo. Não vira, mas ao quebrar da aurora, conscientemente, evitara olhar através da janela e ainda menos na direcção da ilha.

Kevin apercebeu-se de que não poderia continuar assim. Decidiu que o curso de acção mais racional seria descobrir se os seus receios eram fundados. A melhor maneira de fazê-lo, ajuizou ele, seria aproximar-se de alguém que estivesse dentro da situação e pudesse deitar alguma luz sobre aquilo que o preocupava. Mas Kevin não se sentia à vontade com muitas pessoas da Zona. Ele não era nada sociável, em especial no Cogo, onde era o único académico. Mas havia uma pessoa que trabalhava na Zona com quem se sentia um pouco menos constrangido, sobretudo porque admirava o seu trabalho: Bertram Edwards, o veterinário-chefe.

Impetuosamente, Kevin despiu a bata, dobrou-a e pousou-a na cadeira. Dirigiu-se ao gabinete do veterinário. Descendo o primeiro andar, saiu para o ar escaldante da área de estacionamento, a norte do hospital. O tempo estava límpido, com umas balofas nuvens brancas suspensas. Algumas nuvens escuras de chuva formavam-se no céu, mas estavam lá mais para longe, sobre o oceano, amontoadas ao longo do horizonte, a oeste; se traziam chuva, não chegaria antes da tarde.

Kevin subiu para o seu jipe Toyota e saiu da área de estacionamento do hospital. Atravessando o lado norte da praça central, passou pela antiga igreja católica. A Gensys renovara o edifício para funcionar como centro de lazer. Às sextas e sábados à noite havia cinema. Às segundas havia bingo. Na cave havia uma cantina militar que servia hamburguers americanos.

O gabinete de Bertram Edwards era no centro veterinário, que estava incluído na grande área dos animais, uma área que ficava afastada. Todo o complexo era maior do que a própria cidade do Cogo. Ficava situado a norte da cidade, numa densa floresta equatorial, e separado da cidade por uma grande extensão de floresta virgem.

O trajecto tomado por Kevin levou-o para leste, até à estação da frota de camiões, onde, então, desviou paranorte. O tráfego, que era considerável para um lugar tão remoto, reflectia as dificuldades logísticas de dirigir uma operação do tamanho da Zona. Tudo, desde o papel higiénico aos tubos centrífugos, tinha de ser importado, o que significava uma grande movimentação de mercadorias. A maioria dos fornecimentos vinha em camião de Bata, onde havia um rudimentar porto de grande profundidade e um aeroporto com capacidade para um grande avião a jacto. O Estuário dei Muni, com acesso a Libreville, Gabão, era servido por canoas a motor.

Na periferia da cidade, a rua de granito dava lugar a uma rua recentemente asfaltada. Kevin deu um suspiro de alívio. O ruído e a vibração que vinham da barra de direcção devido ao empedrado eram intensos.

Depois de conduzir durante quinze minutos através de uma sinuosa garganta de vegetação verde-escura, Kevin, finalmente, avistou os primeiros edifícios do complexo dos animais. Eram construídos em betão armado e lajes que eram rebocados e pintados de branco. O desenho tinha um fulgor espanhol, para condizer com a arquitectura colonial espanhola da cidade.

O enorme edifício principal parecia mais um terminal de aeroporto do que um alojamento de primatas. A sua fachada consistia em três andares e talvez uns cento e cinquenta metros de comprimento. Da parte posterior do edifício projectavam-se múltiplas alas que literalmente desapareciam por entre um pálio de vegetação. Do lado oposto do edifício principal havia diversos edifícios mais pequenos. Kevin não tinha a certeza qual a finalidade deles, excepto dois dos edifícios no centro. Um alojava um contingente de soldados equatoguineenses. Tal como os seus colegas na praça da cidade, estes soldados espreguiçavam-se por lá com as suas carabinas, cigarros e cervejas camaroneanas. O outro edifício era o quartel-general de um grupo, que na perspectiva de Kevin, era ainda mais intimidante do que os adolescentes soldados. Eram os mercenários marroquinos que faziam parte da guarda presidencial equatoguineense. O presidente local não confiava nas suas próprias forças armadas.

Estes comandos especiais estrangeiros vestiam-se, inadequadamente, de fatos pretos mal confeccionados e gravatas pretas, e nos ombros tinham umas grandes saliências provenientes dos coldres. Todos eles tinham a tez escura, olhos penetrantes e bigode cerrado. Ao contrário dos soldados, eles eram raramente vistos, mas a sua presença era sentida como uma sinistra força maligna.

O mero tamanho do centro dos animais da Gensys era um tributo ao seu sucesso. Reconhecendo as dificuldades inerentes à pesquisa biomédica de primatas, a Gensys construíra as suas instalações na África Equatorial, de onde os animais eram indígenas. Esta estratégia, inteligentemente, evitava a inconveniência das restrições relacionadas com importações/exportações de primatas no industrializado ocidente, assim como a influência incómoda dos zelosos defensores dos direitos dos animais. Como incentivo adicional, os corruptos líderes, esfomeados por moeda estrangeira, estavam imoderadamente receptivos a tudo quanto uma companhia como a Gensys tinha para oferecer. Leis obstrutivas eram convenientemente ignoradas ou abolidas. Alegislação era tão complacente que até fora aprovada umalei, segundo aqual, qualquer interferência com a Gensys era considerada uma ofensa capital.

Kevin estacionou junto a outro jipe. Sabia que era o do Dr. Edwards pelo dístico no pára-choques que dizia: O HOMEM É UM MACACO. Empurrou as portas duplas de vidro onde estava inscrito CENTRO VETERINÁRIO. Ò gabinete e as salas de observações do Dr. Edwards eram logo em frente à porta principal.

Martha Blummer cumprimentou-o.

— O Dr. Edwards está na ala dos chimpanzés — disse ela. Martha era a secretária do veterinário. O marido era um dos supervisores da estação da frota dos camiões.

Kevin dirigiu-se para a ala dos chimpanzés. Era umas das poucas áreas no complexo com que ele estava familiarizado. Passou por um segundo par de portas duplas de vidro e caminhou ao longo do corredor central do hospital-veterinário. Esta unidade parecia um hospital normal, incluindo os funcionários que estavam vestidos com batas de cirurgia, muitos deles com estetoscópios em volta do pescoço.

Algumas pessoas cumprimentavam com a cabeça, outras sorriam e algumas diziam olá a Kevin. Ele, atentamente, correspondia aos cumprimentos. Não sabia os nomes de qualquer destas pessoas.

Um outro par de portas duplas levaram-no à porta principal do edifício que alojava os primatas. O ar tinha um ligeiro odor a selvagem. Intermitentes guinchos e uivos reverberavam no corredor. Através das portas com janelas de vidro e tela metálica embebida, Kevin olhava de relance para as grandes jaulas, onde os macacos estavam encarcerados. Do lado de fora das jaulas, havia homens vestidos com fatos-de-macaco e botas de borracha puxando mangueiras.

A ala dos chimpanzés era uma das unidades que se estendia da parte posterior do edifício até à floresta. Também era de três pisos. Kevin entrou no primeiro piso. Os ruídos mudaram completamente. Agora era uma mistura de pios e guinchos.

Espreitando por uma porta entreaberta, Kevin conseguiu atrair a atenção de um dos funcionários de macacão. Perguntou pelo

Dr. Edwards e foi informado de que o veterinário se encontrava na unidade dos bonobos.

Kevin encontrou uma escadaria e daí subiu para o segundo piso. Pensou que era uma coincidência o Dr. Edwards estar na unidade dos bonobos precisamente quando Kevin andava à procura dele. Foi através dos bonobos que Kevin e o Dr. Edwards se tinham encontrado.

Até seis anos antes, Kevin nunca ouvira falar de bonobos. Mas isso mudou subitamente quando os bonobos foram escolhidos para o seu projecto da Gensys. Agora sabia que eram umas criaturas excepcionais. Eram primos dos chimpanzés, mas tinham vivido em isolamento numa área de vinte cinco mil milhas quadradas de floresta virgem no Zaire Central durante um milhão e meio de anos. Ao contrário dos chimpanzés, a sociedade de bonobos era matriarcal, com menos agressividade masculina. Por conseguinte, os bonobos conseguiam viver em grupos mais alargados. Algumas pessoas chamavam-lhe chimpanzés-pigmeus, mas essa designação era incorrecta, pois alguns bonobos eram na verdade maiores do que alguns chimpanzés, e eram uma espécie distinta.

Kevin encontrou o Dr. Edwards em frente de uma jaula de aclimatização relativamente pequena. Esticava os braços através das grades, tentando estabelecer contacto com um bonobo fêmea adulto.

Um outro bonobo fêmea estava sentado, encostado à parede do fundo da jaula. Com nervosismo, lançava os olhos em redor, para as suas novas instalações. Kevin pressentia o seu terror.

O Dr. Edwards guinchava suavemente, imitando um dos muitos ruídos emitidos pelos bonobos e chimpanzés como meio de comunicação. Era um homem relativamente alto, uns bons oito a dez centímetros mais alto do que Kevin, que media cerca de um metro e setenta e cinco. O cabelo era acentuadamente branco que contrastava dramaticamente com as sobrancelhas e pestanas negras. O arqueado pronunciado das suas sobrancelhas combinado com o hábito de franzir o sobrolho davam-lhe um constante ar de eterna surpresa.

Kevin observou-o por um instante. O evidente bom relacionamento do Dr. Edwards com os animais tinha sido uma das coisas que Kevin tinha apreciado desde o seu primeiro encontro. Kevin tinha a percepção de que era um dom e não qualquer coisa adquirida, e isto sempre o impressionara.

— Dá-me licença? — disse Kevin, finalmente.

O Dr. Edwards deu um salto como se tivesse ficado assustado. Até o bonobo guinchou e fugiu para o fundo da jaula.

— Peço imensa desculpa — disse Kevin.

O Dr. Edwards sorriu e pôs a mão no peito.

— Não tem de pedir desculpa. Eu é que estava tão absorto que não o ouvi aproximar-se.

— Não tinha intenção de assustá-lo, Dr. Edwards — começou Kevin —, mas eu...

— Kevin, por favor! Eu já te disse mais de uma dúzia de vezes que o meu nome é Bertram. Quero dizer, já nos conhecemos há cinco anos. Não achas que é mais adequado tratarmos-nos por tu?

— Claro — disse Kevin.

— É um feliz acaso que tivesses vindo — disse Bertram. — Apresento-te as nossas mais recentes procriadoras femininas! — Bertram apontou para os dois macacos que, entretanto, se tinham afastado ligeiramente do fundo dajaula. Achegada de Kevin tinha-as assustado, mas, agora, estavam curiosas.

Kevin olhou fixamente para os focinhos, dramaticamente antropomórficos, dos dois primatas. Os focinhos dos bonobos eram menos prognatas do que os dos seus primos, os chimpanzés, e, como tal, consideravelmente mais humanos. Olhar para os olhos dos bonobos era uma coisa que Kevin sempre achara desconcertante.

— Parecem animais saudáveis — comentou Kevin, por não saber o que devia dizer.

— Chegaram esta manhã de camião, do Zaire—disse Bertram. — São cerca de mil milhas em linha recta. Mas, pelos circuitos que tiveram de fazer para atravessar as fronteiras do Congo e do Gabão, provavelmente, viajaram três vezes mais.

— Isso equivale a atravessar os EUA — disse Kevin.

— Em termos de distância — concordou Bertram. — Mas aqui, eles provavelmente não viram mais do que curtas extensões de estradas pavimentadas. É uma viagem dura sob todos os aspectos.

— Mesmo assim, parecem estar em boa forma — disse Kevin. Pensava para si mesmo, como é que ele estaria se tivesse feito aquela viagem encaixotado em grades de madeira, escondido no fundo de um camião.

—Agora, os condutores já estão bem treinados—disse Bertram. —Eles tratam-nos melhor do que tratam as suas próprias mulheres. Sabem que se os macacos morrerem, não recebem dinheiro. É um incentivo bastante bom.

— Com a procura que temos é bastante bom para eles — disse Kevin.

— Estas duas já estão comprometidas, como sabes. Se elas passarem o teste, e espero que passem, estaremos no teu laboratório dentro de dois dias. Quero observar novamente. Penso que és um génio. E Melanie... bem, eu nunca vi tal coordenação de mãos e olhos, mesmo incluindo um cirurgião de olhos que conheci nos EUA.

Kevin corou pela referência feita a ele próprio.

— Melanie tem muito talento — disse ele para desviar a conversa. Melanie Becket era a técnica de reprodução. A Gensys tinha-a contratado sobretudo para o projecto de Kevin.

— Ela é boa — disse Bertram. — Mas nós, os poucos felizardos, ligados ao teu projecto, sabemos que tu és o herói.

Bertram olhou para um lado e outro do espaço entre a parede do corredor e as jaulas para se assegurar de que não havia ninguém que pudesse ouvir a conversa.

— Sabes, quando eu assinei o contrato pensei que seria bom para mim e para a minha mulher — disse Bertram — no que diz respeito a dinheiro. Seria tão lucrativo como ir para a Arábia Saudita. Afinal, é muito melhor do que eu jamais tinha sonhado. Através do teu projecto e das inerentes bonificações, vamos ficar ricos. Ainda ontem Melanie me disse que temos mais dois clientes de Nova Iorque. Isso fará que fiquemos com perto de cem.

— Não ouvi falar de dois clientes adiccionais — disse Kevin.

— Não...? Mas é verdade — disse Bertram. — Melanie contou-me ontem à noite, quando tropecei nela no Centro. Disse-me que tinha falado com Raymond Lyons. Ainda bem que ela me informou, para eu poder mandar os motoristas ao Zaire para outro carregamento. Só espero que os nossos colegas pigmeus Lomato possam manter a promessa.

Kevin voltou a olhar para a jaula, para as duas fêmeas. Elas devolveram-lhe o olhar com uma expressão tão suplicante que Kevin sentiu o coração a desfazer-se. Desejava poder dizer-lhes que elas nada tinham a temer. A única coisa que lhes iria acontecer era que ficariam grávidas dentro de um mês. Durante a gravidez ficariam resguardadas e receberiam um tratamento especial com uma dieta nutritiva. Depois dos bebés nascerem, seriam postas ao ar livre no enorme recinto fechado dos bonobos, criando os seus filhos. Quando os jovens atingissem os três anos, o ciclo repetir-se-ia.

—De facto, parecem humanos—disse Bertram, interrompendo a meditação de Kevin. — Às vezes, não podemos deixar de nos perguntarmos em que é que estarão a pensar...

— Ou preocuparmo-nos sobre o que os seus filhos poderão pensar — disse Kevin.

Bertram lançou um olhar a Kevin. As suas sobrancelhas negras arquearam-se mais do que o usual.

— Não sei o que queres dizer?! — disse ele.

—Ouve, Bertram—disse Kevin.—Eu vim cá propositadamente para te falar do projecto.

— Mas que coincidência maravilhosa! — disse Bertram. — Eu ia telefonar-te hoje para vires ver os progressos que temos feito. E aqui estás tu. Vamos!

Bertram abriu a porta mais próxima de acesso ao corredor, fez um gesto para Kevin o seguir, e começou a caminhar com largos passos. Kevin teve de se apressar para o apanhar.

— Progressos? — interrogou Kevin. Embora ele admirasse Bertram, a inclinação do homem para o comportamento maníaco eradesconcertante. Mesmo nas melhores das circunstâncias, Kevin teria dificuldade em expor o que lhe ia na mente. Abordar o assunto já em si era difícil e Bertram não estava a colaborar. Aliás, estava a torná-lo mais difícil.

— Pois claro que é progresso! — disse Bertram, entusiasticamente. — Resolvemos o problema técnico da grelha da ilha. Está em ordem, como terás ocasião de ver. Basta carregar num botão e podemos localizar cada um dos animais na ilha. E foi na altura certa, devo acrescentar. Com doze milhas quadradas e quase cem indivíduos, estava a tornar-se impossível com os pesquisadores manuais. Parte do problema é que nós não prevíamos que eles se separassem em dois grupos sociológicos distintos. Esperávamos que eles ficassem num grupo natural.

— Bertram — disse Kevin, hesitantemente, tentando controlar a sua coragem. — Eu queria falar contigo porque tenho estado ansioso...

—Não admira—disse Bertram, logo que Kevin fez uma pausa. — Eu também ficaria ansioso se me debruçasse tantas horas sobre o trabalho sem qualquer espécie de relaxamento ou distracção. Cos diabos!, às vezes vejo a luz do teu laboratório acesa quando eu e a minha mulher regressamos do centro de recreio depois do cinema. Até já comentámos isso. Já te convidámos diversas vezes para jantares connosco em nossa casa para que tu saias um pouco. Por que é que nunca apareceste?

Kevin suspirou para dentro. Esta não era a conversa que ele procurava.

—Está bem, não precisas de responder—disse Bertram.—Não quero aumentar a tua ansiedade. Nós gostaríamos que viesses, por isso, se mudares de opinião, dá-nos um telefonema. E o ginásio ou o centro, ou até ir à piscina? Nunca te vi em nenhum desses lugares. Estar aqui entalado nesta estufa, nesta parte de África, já é suficientemente mau, mas fazer-se prisioneiro do seu laboratório ou casa ainda se torna pior.

— Tens razão — disse Kevin. — Mas...

—É claro que tenho razão—disse Bertram.—Mas há um outro aspecto que eu tenho de te prevenir. As pessoas começam a falar.

— Que queres dizer? — perguntou Kevin. — A falar de quê?

— As pessoas andam a dizer que és arrogante, porque te julgas superior — disse Bertram. — Sabes, um académico com todos os seus cursos de Harvard e MIT. É fácil as pessoas deturparem o teu comportamento, especialmente se são invejosas.

— Por que é que alguém há-de ter inveja de mim? — perguntou Kevin. Estava perplexo.

— Muito fácil — disse Bertram. — Tu, obviamente, recebes tratamento diferenciado da sede. Tens carro novo de dois em dois anos, e as tuas instalações são tão boas como as do Siegfried Spallek, o director de toda a operação. Isso é susceptível de fazer algumas dores de cotovelo, particularmente a pessoas como o Cameron Mclvers, que foi estúpido ao ponto de trazer toda a família para aqui. Mais... tu recebeste aquela máquina NMR. O administrador do hospital e eu temos andado a pedir uma MRI desde o primeiro dia.

— Eu tentei convencê-los a não me darem aquela casa — disse Kevin. — É demasiado grande para mim.

— Ei, não tens que justificar os bónus que recebes — disse Bertram.—Eu compreendo, porque sou uma das partes interessadas no teu projecto. Mas muito poucas pessoas o são e algumas delas não estão satisfeitas. Até o próprio Spallek não compreende, embora a ele lhe agrade participar no bónus que o teu projecto tem trazido àqueles que estão envolvidos nele.

Antes que Kevin pudesse ripostar, Bertram foi interrompido por uma série de consultas de corredor. Kevin aproveitou a interrupção para reflectir sobre os comentários de Bertram. Kevin sempre se considerou como sendo invisível. A ideia de que fizera gerar animosidades era-lhe difícil de conceber.

— Desculpa — disse Bertram depois da última consulta. Empurrou as últimas portas duplas. Kevin seguiu-o.

Passando pela sua secretária, Martha, apanhou uma resma de mensagens telefónicas. Folheou-as ao mesmo tempo que fazia um gesto para Kevin entrar no seu gabinete. Fechou a porta.

— Vais adorar isto — disse Bertram, lançando as mensagens para o lado. Sentou-se em frente do computador e mostrou a Kevin como fazer aparecer o gráfico da ilha Francesca. — Está dividida através de uma grelha. Agora, dá-me o número de qualquer criatura que queiras localizar.

— A minha — disse Kevin. — O número um.

— Vem já — disse Bertram. Entrou a informação e deu um clique. De repente, apareceu no mapa da ilha uma luz vermelha intermitente. Estava a norte da escarpa de pedra calcária, mas a sul do rio, que tinha sido ironicamente intitulado rio Diviso. O rio dividia a ilha de seis milhas em duas partes, no sentido do comprimento, fluindo do leste para oeste. No centro da ilha havia um lago a que chamavam lago Hippo, por razões óbvias.

— Muito engenhoso, hum? — disse Bertram, orgulhosamente. Kevin estava fascinado. Não era tanto pela tecnologia, embora

isso também o interessasse. Era pelo facto de a luz vermelha estar a piscar justamente no local onde ele presumia ter visto sair o fumo. Bertram ergueu-se e abriu a gaveta do ficheiro. Estava cheia de pequenos dispositivos electrónicos, que se pareciam com blocos de notas em miniatura, com pequenos ecrãs LCD. Em todos eles havia urna antena extensível.

— Estes funcionam de uma maneira semelhante — disse Bertram. Deu um a Kevin. — Nós chamamos localizadores. Claro, são portáteis e podem ser levados para o local. Com isto, a recolha faz-se num foguete comparado com a luta que tínhamos inicialmente.

Kevin brincou com o teclado com a ajuda de Bertram, e logo conseguiu obter o gráfico da ilha com a grelha intermitente à vista. Bertram mostrou-lhe como passar para os sucessivos mapas com escalas cada vez mais pequenas, até que todo o ecrã representava um quadrado de um metro e cinquenta por um metro e cinquenta.

—Quando estiveres assim tão perto, usas isto—disse Bertram. Entregou um pequeno teclado que se parecia com uma lanterna eléctrica.—Neste introduzes a mesma informação. O que este faz, é funcionar como um farol de orientação. Quanto mais próximo está o animal que procuras, mais alto será o silvo. Quando estiver ao alcance da vista, ele emite um som contínuo. Depois, basta usar a espingarda de setas.

—Como é que funciona este sistema de localização?—perguntou Kevin.

Tendo estado envolvido nos aspectos biomoleculares do projecto, não tinha prestado atenção à parte logística. Dera uma volta pela ilha havia cinco anos, no início do empreendimento, mas nada mais. Nunca tinha inquirido sobre os pormenores do dia a dia da operação.

— É um sistema por satélite — disse Bertram. — Não direi que sei os pormenores. E claro que cada animal tem um microchip com uma bateria cadmium de níquel de longa duração embebida logo por debaixo da derme. O sinal aferente do microchip é minúsculo, mas é captado pela grelha, aumentado, etransmitidopormicrondas.

Kevin começou a devolver os dispositivos a Bertram, mas Bertram gesticulou com a mão, dizendo:

— Guarda-os. Temos muitos ainda.

— Mas eu não necessito deles — protestou Kevin.

—Vamos lá, Kevin — ralhou-lhe em brincadeira, enquanto lhe batia com a mão nas costas. A pancada foi tão forte que Kevin quase caiu para a frente. — Descontrai-te! Levas tudo muito a sério. — Bertram sentou-se na secretária, pegou nas mensagens de telefone, e, casualmente, começou a ordená-las consoante a importância.

Kevin olhou para os aparelhos que tinha nas mãos e perguntouse a si próprio o que fazer com eles. Era óbvio que eram instrumentos de custos elevados.

—Que querias discutir comigo sobre o teu projecto?—perguntou Bertram. Levantou os olhos das mensagens de telefone. — As pessoas estão sempre a queixar-se que eu não lhes dou oportunidade de falar. Que te vai na cabeça?

— Estou preocupado — gracejou Kevin.

— Com quê? — perguntou Bertram. — As coisas não podiam ir melhor.

— Vi fumo novamente — conseguiu Kevin dizer.

— O quê? Queres dizer, como aquele tipo de fumo de que me falaste na semana passada? — perguntou Bertram.

— Exactamente — disse Kevin. — E no mesmo ponto da ilha.

— Ah! Não é nada — declarou Bertram com um aceno de mão. —Temos tido tempestades com descargas eléctricas quase todas as noites. Os raios pegam lume, toda a gente sabe isso.

—Com tudo tão molhado como está?—disse Kevin.—Pensava que os relâmpagos pegavam lume em savanas durante a estação seca, não nas florestas tropicais húmidas.

— Os raios podem pegar lume em qualquer sítio — disse Bertram.—Pensa no calor que eles geram. Lembra-te, o trovão não é mais do que a dilatação do ar devido ao calor. É inacreditável.

— Bem, talvez — disse Kevin. Não estava convencido. — Mas mesmo que pegasse, o lume mantinha-se?

— Tu és como um cão com o osso — comentou Bertram. — Mencionaste esta tua ideia maluca a alguém?

— Só a Raymond Lyons — disse Kevin. — Ele telefonou-me ontem por um outro problema.

— E qual foi a resposta dele? — perguntou Bertram.

— Disse-me para eu não dar asas à minha imaginação — disse Kevin.

— Eu diria que foi um bom conselho — disse Bertram. — Eu apoio-o.

— Não sei — disse Kevin. — Talvez fosse bom ir lá verificar.

— Não! — disse Bertram, bruscamente. Por uma fracção de segundos a boca tornou-se numa linha dura e os olhos brilharam com fulgor. Depois, o seu rosto relaxou. — Eu não quero ir à ilha se não para a recolha. Esse era o plano original e para já vamos mantelo. Vai tudo tão bem que não quero correr riscos. Os animais têm de ficar isolados e sem perturbações. A única pessoa que lá vai é o pigmeu, Alphonse Kimba, e ele vai apenas para arremessar comida suplementar para a ilha.

— Talvez eu possa ir sozinho — sugeriu Kevin. — Eu não ia demorar muito, e, então, deixava de me preocupar.

—Absolutamente não! — disse Bertram, enfaticamente. — Eu sou responsável por esta parte do projecto, e proíbo-te, ou a qualquer outra pessoa, de ir à ilha.

—Não vejo que faça assim tanta diferença—disse Kevin. — Eu não perturbaria os animais.

— Não! — disse Bertram. — Não há excepções. Queremos que sejam animais selvagens. Isso significa um contacto mínimo. Além disso, pequeno como este local é, provocaria conversas, e isso não queremos nós. Além do mais, poderia ser perigoso.

— Perigoso? — disse Kevin. —Afastar-me-ia dos hipopótamos e dos crocodilos. Os bonobos certamente que não são perigosos.

— Um dos pigmeus foi morto durante a última recolha — disse Bertram. — Mantivemos isso em segredo por razões óbvias.

— Como é que ele foi morto? — perguntou Kevin.

— Por uma rocha — disse Bertram. — Um dos bonobos atirou uma rocha.

— Isso não é fora do vulgar? — perguntou Kevin. Bertram encolheu os ombros.

— Sabe-se que os chimpanzés por vezes atiram paus quando estão sob tensão ou assustados. Não, penso que não é fora do normal. Foi apenas um gesto de reflexo. A rocha estava lá, ele atirou-a.

— Mas é também agressivo — disse Kevin. — E isso é pouco normal nos bonobos, em especial num dos nossos.

—Todos os macacos defendem o seu grupo quando são atacados — disse Bertram.

— Mas que é que os levou a sentirem-se atacados?—perguntou Kevin.

— Era a quarta recolha — disse Bertram, encolhendo de novo os ombros. — Talvez já saibam o que os espera. Mas seja qual for a razão, não queremos ninguém na ilha. Já discuti isso com Spallek, e estamos ambos em absoluto acordo.

Bertram levantou-se da secretária e pôs um braço sobre os ombros de Kevin. Kevin tentou libertar-se mas Bertram manteve o braço.

— Vamos lá, Kevin! Descontrai-te. Era precisamente a esta imaginação fértil que eu me referia há pouco. Tens de sair do laboratório e fazer qualquer coisa para desgastar essa tua imaginação superactiva. Estás a ficar doido varrido e obsessivo. Quero dizer, esta história do fogo é ridícula. A ironia é que o projecto está a correr lindamente. E quanto a pores a hipótese de aceitar o convite para jantar? Eu e Trish ficaríamos encantados.

— Vou pensar a sério — disse Kevin. Sentia-se nitidamente constrangido com o braço de Bertram em volta do pescoço.

— Bom — disse Bertram, dando uma última palmada nas costas de Kevin. — Talvez os três possamos ir ao cinema também. Há um belíssimo filme previsto para esta semana. Quero dizer, devias tirar partido do facto de termos aqui os mais recentes filmes. É um grande esforço da parte da Gensys mandar filmes novos todas as semanas. Que achas?

— Suponho que sim — disse Kevin, evasivamente.

— Bom — disse Bertram. — Vou falar com Trish, ela depois telefona-te. Okay?

— Okay — disse Kevin. Ele fez um ligeiro sorriso. Minutos mais tarde, Kevin voltou para o carro mais confuso do que antes de ter vindo ver Bertram Edwards.

Não sabia o que pensar. Talvez a sua imaginação estivesse a trabalhar exageradamente. Era possível, mas sem visitar a ilha Francesca não haveria maneira de se certificar. E agora havia ainda uma nova preocupação, o facto das pessoas estarem ressentidas com ele.

Travando à saída do estacionamento, Kevin lançou o olhar para um lado e outro da rua em frente ao complexo dos animais. Esperou que um camião passasse. Quando ia a arrancar, vislumbrou um homem estático na janela do quartel principal dos Marroquinos. Kevin não via bem devido aos reflexos do sol nos vidros da janela, mas conseguiu ver que era um dos guardas de bigode. Também conseguiu ver que o homem estava a olhá-lo atentamente.

Kevin sentiu um calafrio sem saber exactamente porquê.

Aviagem de regresso ao hospital decorreu sem qualquer incidente e foi rápida, mas as paredes de vegetação verde-escuras, aparentemente impenetráveis, faziam Kevin sentir uma confrangedora claustrofobia. A reacção de Kevin foi pisar o acelerador. Sentiu um alívio quando chegou à entrada da cidade.

Kevin estacionou no seu lugar. Abriu a porta, mas hesitou. Era perto do meio-dia e debatia-se se devia ir para casa almoçar ou ir para o seu laboratório por cerca de uma hora. O laboratório venceu. A Esmeralda nunca o esperava antes da uma hora.

Só de se deslocar do carro até ao hospital, Kevin sentia a intensidade do sol do meio-dia. Era como um cobertor sufocante que dificultava todos os movimentos, incluindo os respiratórios. Até vir para África nunca tinha sentido o verdadeiro calor tropical. Logo que entrou no edifício, envolvido pela frescura do ar condicionado, Kevin agarrou no colarinho da camisa e afastou-o do pescoço.

Começou a subir as escadas mas não chegou muito longe.

— Dr. Marshall — chamou-o uma voz.

Kevin voltou-se para trás. Não estava habituado a que o abordassem na escadaria.

— Que vergonha, Dr. Marshall — disse uma figura feminina que estava no patamar da escada. A sua voz era trepidante, o que sugeria que não falava a sério. Vestia roupas de cirurgia e casaco branco. As mangas do casaco estavam enroladas até ao meio do braço.

— Perdão—disse Kevin. Parecia que a conhecia mas não sabia dizer quem era.

— Não veio ver o paciente — disse ela. — Com os outros casos, vinha todos os dias.

—Bem, é verdade—disse Kevin, conscientemente. Finalmente, tinha-a reconhecido. Era a enfermeira Candace Brickmann. Fazia parte da equipa que viera de avião com o paciente. Era a sua quarta visita ao Cogo. Kevin encontrara-a brevemente durante as três visitas anteriores.

— Magoou os sentimentos do Sr. Winchester — disse Candace, agitando o indicador a Kevin. Era uma rapariga vivaz que andava perto dos trinta, de cabelo louro, penteado em carrapito à francesa. Kevin não se lembrava de a ter visto sem que ela não estivesse a sorrir.

—Não pensei que ele desse pela minha falta—balbuciou Kevin.

Candace inclinou a cabeça para trás e riu-se. Depois, cobriu a boca com as mãos para suprimir o riso quando notou a expressão confusa de Kevin.

— Estava apenas a gracejar — disse ela. — Nem sei se o Sr. Winchester se lembrará de tê-lo visto no dia da chegada.

— Bem, era minha intenção perguntar como ele estava—disse Kevin. — Mas tenho estado muito ocupado.

— Muito ocupado neste sítio, no meio do deserto? — perguntou Candace.

— Bem, suponho que devia dizer que tenho estado preocupado

— admitiu Kevin. — Têm acontecido muitas coisas

— Como por exemplo? — perguntou Candace, reprimindo um sorriso. Ela gostava deste despretensioso investigador.

Kevin fez uns gestos desajeitados com as mãos enquanto o rosto corava.

— Todas as espécies de coisas — disse ele, por fim.

—Vocês, os académicos, dão-me cabo do juízo—disse Candace.

— Mas, pondo de lado os gracejos, estou contente por poder informar que o Sr. Winchester está muito bem e, segundo o cirurgião, é sobretudo graças a si.

— Eu não diria tanto — disse Kevin.

— Oh, modesto, também! — comentou Candace. — Inteligente, atraente e humilde. É uma combinação de matar.

Kevin gaguejou, mas não conseguiu proferir qualquer palavra. —Seria sair dos limites se eu o convidasse para almoçar comigo?

— disse Candace. — Pensei ir ali à frente comer um hambúrguer. Estou um pouco cansada da comida da cantina do hospital, e seria bom apanhar um pouco de ar, agora que o Sol já descobriu. Que acha?

A mente de Kevin rodopiou. O convite era inesperado, e em circunstâncias normais teria encontrado uma desculpa para recusar, justamente por ser inesperado. Mas com os comentários de Bertram ainda frescos na memória, ele vacilou.

— O gato comeu-lhe a língua? — perguntou Candace. Ela baixou a cabeça e com coquetismo observou-o por debaixo das sobrancelhas arqueadas.

Kevin fez um gesto, indicando o seu laboratório, depois mencionou algumas palavras dizendo que Esmeralda o esperava.

— Não lhe pode ligar? — disse Candace. Ela teve a percepção que Kevin gostaria de acompanhá-la, por isso insistiu.

— Suponho que sim — disse Kevin. — Suponho que posso telefonar do meu laboratório.

— Perfeito — disse Candace. — Quer que espere aqui ou que suba consigo?

Kevin nunca tinha conhecido uma mulher tão desinibida, não que ele tivesse tido muitas oportunidades ou experiências. O seu último e único amor, além de paixonetas por colegas do liceu, tinha sido uma sua colega do doutoramento, Jacqueline Mortou. Aquela relação levara meses a desenvolver-se depois de muitas horas de trabalho conjunto, ela era tão tímida quanto Kevin.

Candace subiu os cinco degraus para se colocar ao lado de Kevin. Media cerca de um metro e sessenta com os Nikes.

— Se não consegue decidir, e se lhe é indiferente, então, por que não subo consigo?

— Okay — disse Kevin.

O nervosismo de Kevin minorou rapidamente. Geralmente o que mais o preocupava em circunstâncias sociais com mulheres era o esforço de tentar pensar em coisas para dizer. Com Candace, não necessitava de pensar. Ela mantinha uma conversa continuamente. Durante a subida dos dois lances de escadas, ela abordou o tempo, a cidade, o hospital e como tinha decorrido a cirurgia.

— Este é o meu laboratório — disse Kevin ao abrir a porta.

— Fantástico! — disse Candace com sinceridade

Kevin sorriu. Notou que ela estava verdadeiramente impressionada.

—Vá, ande e faça a chamada—disse Candace. — Vou dar uma volta por aqui, se não se importar.

— À vontade — disse Kevin.

Embora Kevin estivesse preocupado por ter de dar a notícia à Esmeralda de que não iria almoçar, com tão pouca antecedência, ela surpreendeu-o com a sua serenidade. A única reacção foi perguntar a que horas ele gostaria de jantar

—Àhora normal—disse Kevin. Depois de uma breve hesitação, surpreendeu-se a si próprio ao acrescentar: — Eu talvez leve companhia. Haveria problema?

— De modo algum — disse Esmeralda. — Quantas pessoas? —Apenas uma—disse Kevin. Desligou o telefone e esfregou as

palmas das mãos. Estavam húmidas.

— Sempre vamos almoçar? — disse Candace do outro lado do gabinete.

— Vamos — disse Kevin.

—Isto é que é um laboratório!—comentou ela.—Nunca pensei encontrar um laboratório destes aqui no coração da África Tropical. Diga-me, que está a fazer com todo este fantástico equipamento?

— Estou a tentar aperfeiçoar o protocolo — disse Kevin.

— Não poderia ser mais específico? — perguntou Candace.

— Quer mesmo saber? — perguntou Kevin.

— Sim — disse Candace. — Estou interessada.

— Nesta fase, estou a trabalhar com antigenes secundários de histocompatibilidade. Sabe, as proteínas que definem que uma pessoa é um indivíduo ímpar.

— E que faz com eles?

— Bem, eu localizo os seus genes nos respectivos cromossomas — disse Kevin. — Depois, procuro a transponase que esteja associada aos genes, se houver, para eu poder tirar os genes.

Candace deixou escapar uma pequena gargalhada.

— Sinto-me perdida—admitiu ela.—Não faço a mínima ideia do que seja uma transponase. Lamento dizer que a maior parte desta biologia molecular é areia de mais para o meu barco.

— Na verdade, não é — disse Kevin. — Os princípios não são assim tão complicados. O factor crítico, de que muito pouca gente tem consciência, é que alguns genes movem-se no seu cromossoma. Isto acontece particularmente nos linfócitos B para aumentar a diversidade de anticorpos. Há ainda outros que são mais móveis e podem permutar com os seus gémeos. Certamente que se lembra de que há duas cópias de cada gene.

— Sim — disse Candace —, assim como há duas cópias de cada cromossoma. As nossas células têm vinte e três pares de cromossomas.

— Exactamente — disse Kevin. — Quando os genes permutam nos seus pares de cromossomas chama-se transposição homóloga. É um processo particularmente importante na procriação de células do sexo, tanto óvulos como espermas. O que faz é ajudar a aumentar a mistura genética e, assim, a capacidade das espécies evoluírem.

—Então, esta transposição homóloga tem um papel importante na evolução — disse Candace.

— Absolutamente — afirmou Kevin. — De qualquer modo, os segmentos dos genes que se movem são chamados transponsores e as enzimas que catalisam o seu movimento são chamadas transponases.

— Okay — disse Candace. — Até agora, estou consigo.

— Bem, neste momento, estou interessado em transponsores

que contenham genes para os antigenes secundários da histocompatibilidade — disse Kevin.

— Ah, pois — disse Candace, acenando com a cabeça. — Estou a ver. O seu objectivo é mudar o gene por um antigene secundário de histocompatibilidade de um cromossoma para um outro.

— Exactamente — disse Kevin. — O truque está em encontrar e isolar a transponase. Esse é que é o passo difícil. Mas uma vez encontrada a transponase, é relativamente fácil localizar o seu gene. E tendo localizado e isolado o gene, posso usar a tecnologia normal de recombinação do ADN para produzi-la.

— O que significa pôr a bactéria a fazê-lo em seu lugar — disse Candace.

— Bactéria ou tecido de cultura mamalian — disse Kevin. — O que resultar melhor.

— Chi! — comentou Candace. — Este jogo de cérebro fez-me lembrar de que estou cheia de fome. Vamos comer um hambúrguer antes que o meu nível de açúcar baixe.

Kevin sorriu. Gostava desta mulher. Até começou a descontrair-se.

Ao descer as escadas do hospital, Kevin sentia-se atordoado ao ouvir e responder ao não acabar de perguntas, gracejos e tagarelices de Candace. Não podia crer que ia almoçar com uma mulher tão atractiva e envolvente. Tinha a impressão de que lhe tinham acontecido mais coisas nestes dois últimos dias do que nos cinco anos anteriores, desde que chegara ao Cogo. Estava tão enlevado que nem prestou atenção aos soldados equatoguineenses quando ele e Candace atravessaram a praça.

Kevin não tinha ido ao centro de recreio desde a sua inicial visita guiada. Esquecera-se da sua singularidade. Esquecera também da blasfémia cometida ao transformarem a igreja num centro de divertimento. O altar desaparecera, mas o púlpito estava no mesmo local à esquerda. Era usado para palestras e para chamar os números nas noites de bingo. No local do altar estava um ecrã de cinema: sinal inevitável dos tempos.

A cantina era na cave e o acesso era feito através de uma escadaria no nártex. Kevin estava atónito com o movimento. Um ininteligível ruído de vozes ecoava no sólido tecto de cimento armado. Ele e Candace tiveram de aguardar numa longa fila até conseguirem fazer os seus pedidos. Depois de serem atendidos, tiveram de procurar, no meio da confusão, um lugar para se sentarem. As mesas eram todas longas e tinham de ser partilhadas. Os assentos eram bancos anexados, como nas mesas de piquenique.

— Há alguns lugares ali—disse Candace, gritando por cima da vozearia. Apontou para o fundo do salão com a bandeja. Kevin acenou com a cabeça.

Kevin lançou um olhar furtivo aos rostos na multidão enquanto furava o caminho atrás de Candace. Fazia-o conscientemente, devido à conversa tida com Bertram sobre a opinião das pessoas a seu respeito. No entanto, ninguém lhe prestava atenção.

Candace tentava passar entre duas mesas e Kevin seguiu-a. Segurava a bandeja bem no alto para evitar bater em alguém, depois, colocou-a num lugar vago. Teve dificuldade em passar as pernas sobre o banco e colocá-las por debaixo da mesa. Quando finalmente se acomodou, Candace já se tinha apresentado às duas pessoas que se sentavam na extremidade da mesa. Kevin cumprimentou de cabeça. Não reconhecia nenhuma delas.

— É um lugar alegre—disse Candace.—Vem cá muitas vezes? Antes que pudesse responder, alguém chamou o seu nome.

Voltou-se e reconheceu o único rosto familiar. Era Melanie Becket, a técnica da parte de reprodução.

— Kevin Marshall! — exclamou Melanie, novamente. — Estou abismada. Que fazes aqui?

Melanie era aproximadamente da mesma idade que Candace. Tinha celebrado o trigésimo aniversário no mês anterior. Enquanto Candace era de tez clara, ela era escura, com cabelo castanho médio e coloração quase mediterrânica. Os olhos castanho-escuros eram quase negros.

Kevin teve dificuldade em apresentar a sua companheira, e ficou perturbado por se aperceber de que, naquele momento, não se recordava do nome dela.

— Sou Candace Brickmann — disse Candace, sem deixar escapar qualquer incidente. Estendeu a mão. Melanie apresentou-se e perguntou se poderia sentar-se.

— Por favor — disse Candace.

Candace e Kevin sentavam-se lado a lado. Melanie sentou-se no lado oposto.

— É responsável pela presença do nosso génio local neste palácio ptomaína? — perguntou Melanie a Candace. Melanie era uma mulher sagaz, irreverentemente jocosa, que tinha crescido em Manhattan.

— Suponho que sim — disse Candace. — É pouco comum para ele?

— Isso é o eufemismo do ano — disse Melanie. — Qual é o seu segredo? Convidei-o para cá vir tantas vezes sem qualquer resultado, que acabei por desistir, e isso foi há vários anos.

— Nunca me convidaste directamente — disse Kevin em sua própria defesa.

— Oh, realmente? — interrogou Melanie. — Querias que fizesse, desenhasse um mapa? Eu costumava perguntar-te se te apetecia um hambúrguer. Não é suficientemente directo?

— Bem — disse Candace, endireitando-se no seu assento. — Este deve ser o meu dia de sorte.

Melanie e Candace logo se puseram a conversar, trocando informações sobre os seus trabalhos. Kevin ouvia, mas concentrou-se no seu hambúrguer.

—Então, nós três fazemos parte do mesmo projecto?—comentou Melanie, quando soube que Candace era a enfermeira dos Cuidados Intensivos da equipa cirúrgica de Pittsburgh. — Somos peças da mesma máquina.

—Você está a ser generosa — disse Candace. — Eu sou apenas uma pequena esfera que faz mexer a roda. Não me colocaria ao vosso nível. Vocês são o eixo central. Se me permite a pergunta, como é que consegue?

— Ela é a heroína — disse Kevin, falando pela primeira vez e apontando com a cabeça na direcção de Melanie.

— Vamos lá, Kevin! — reclamou Melanie. — Não fui eu quem desenvolveu as técnicas que uso. Há montes de pessoas que poderiam fazer o meu trabalho, mas só tu podias ter feito o teu. Foi a tua descoberta que abriu as portas.

— Nada de discussões, vocês dois — disse Candace. — Digam-me apenas como se faz. Tenho estado curiosa desde o primeiro dia, mas parece ser um assunto ultra-secreto. Kevin explicou a parte científica, mas ainda não compreendi a parte logística.

— Kevin tira uma amostra de osso com tutano de um cliente — disse Melanie. — Daí, ele isola uma célula que esteja no processo de separação, de modo que os cromossomas estejam condensados, de preferência uma célula com segmento, se não estou em erro.

— É raríssimo encontrar uma célula com segmento — disse Kevin.

— Bem, então diz-lhe tu o que fazes — disse Melanie a Kevin, com um gesto de desdém. — Eu ainda sou capaz de confundir tudo.

—Eu trabalho com uma transponase que descobri há quase sete anos — disse Kevin. — Ela catalisa a transposição homoligna, cruzando por cima do segmento curto do cromossoma seis.

— Que é o segmento curto do cromossoma seis? — perguntou Candace.

— Os cromossomas têm o que se chama o centrómero, que os divide em dois segmentos, que são particularmente desiguais. Os mais pequenos são chamados os segmentos curtos.

— Obrigada — disse Candace.

— Continuando... — disse Kevin, tentando organizar os seus pensamentos. — O que eu faço é adicionar a minha transponase secreta a uma célula do cliente que se esteja a preparar para se dividir. Mas eu não permito que o processo se complete. Eu suspendo-o com os dois segmentos curtos desligados dos respectivos cromossomas. Depois extraio-os.

— Uau! — observou Candace. — Você, na realidade, tira essas minúsculas fibras dos núcleos. Mas como consegue fazer isso?

— Isso é uma outra história — disse Kevin. — Na verdade, uso o sistema do anticorpo monoclonal, que reconhece a parte posterior da transponase.

— É de mais para a minha cabeça — disse Candace.

— Bem, esqueça como ele tira os segmentos curtos — disse Melanie. — Aceite apenas.

—Okay—disse Candace.—Que faz com esses segmentos, uma vez desmembrados?

Kevin apontou em direcção a Melanie.

— Espero que ela opere a sua magia.

—Não é magia—disse Melanie.—Eu apenas sou uma técnica. Aplico aos bonobos as técnicas de fertilização in vitro, as mesmas técnicas que foram desenvolvidas para aumentar a fertilização dos gorilas cativos nas montanhas. Aliás, eu e Kevin temos de coordenar os nossos esforços, porque o que ele quer é um óvulo fertilizado que não se tenha dividido ainda. O timing é importante.

— Quero-os mesmo prestes a dividirem-se — disse Kevin. — Portanto, é o ritmo da Melanie que determina o meu. Não começo a minha parte sem que ela me dê luz verde. Quando ela me entrega o zigoto, repito exactamente o mesmo processo que acabei de usar para a célula do cliente. Depois de remover os segmentos curtos do bonobo, injecto o segmento curto do cliente no zigoto. Graças à transponase, elas enlaçam exactamente onde se espera.

— É só isso? — disse Candace.

— Bem, não — admitiu Kevin. — Na realidade, eu introduzo quatro transponases, não uma. O segmento principal que nós transferimos é o segmento curto do cromossoma seis, mas também transferimos uma parte, relativamente pequena, dos cromossomas nove, doze e catorze. Estes contêm genes para os grupos de sangues ABO e uns outros antigenes de histocompatibilidade secundários, como as moléculas de adesão CD-3I. Mas isto torna-se muito complicado. Pense apenas no cromossoma seis. É a parte mais importante.

—Isso porque o cromossoma seis contém os genes que compõem o primeiro complexo de histocompatibilidade — disse Candace, com ar de bem informada.

—Exactamente—disse Kevin. Estava impressionado e atraído. Candace não só era socialmente competente como também inteligente e instruída.

— Este protocolo resultaria com outros animais? — perguntou Candace.

— Em que espécie de animais está a pensar? — perguntou Kevin.

— Porcos — disse Candace. — Eu conheço outros centros nos EUA e na Inglaterra que têm estado a tentar reduzir o efeito destrutivo de complemento nas transplantações com órgãos de porcos, inserindo genes humanos.

— Comparado com aquilo que estamos a fazer, isso é como usar lixívia — disse Melanie. — E tão antiquado, porque é tratar o sintoma e não eliminar a causa.

—É verdade—disse Kevin.—No nosso protocolo não nos temos preocupado com a reacção imunológica. No que diz respeito à histocompatibilidade nós oferecemos um duplo imunológico, sobretudo se eu conseguir incorporar mais alguns dos antigenes secundários.

— Não sei por que te preocupas tanto com eles!? — disse Melanie. — Nas nossas três primeiras transplantações, os clientes não tiveram qualquer espécie de rejeição.

— Quero que seja perfeito — disse Kevin.

—Perguntei sobre os porcos por várias razões—disse Candace. — Primeiramente, penso que usar bonobos pode ofender algumas pessoas. Segundo, tanto quanto sei, não há muitos.

— Isso é verdade — disse Kevin. — A população de bonobos é, apenas, cerca de vinte mil.

— É aí que eu quero chegar — disse Candace. — Enquanto os porcos são mortos para bacon às centenas de milhares.

— Não creio que o meu sistema resulte com porcos — disse Kevin.—Não posso assegurar, mas duvido. A razão porque resulta tão bem com bonobos, ou até mesmo com chimpanzés, é que os genomas deles e os nossos são muito semelhantes. De facto, só diferem em cerca de um e meio por cento.

— Só? — interrogou Candace. Estava perplexa.

— É um tanto ou quanto humilhante, não é — disse Kevin.

— É mais do que humilhante — disse Candace. — É um indicador de quão perto estão os bonobos, chimpanzés e seres humanos no que se refere à evolução—disse Melanie.—Crê-se que nós e os nossos primos primatas descendemos de um antepassado comum, que viveu há cerca de sete milhões de anos.

— Isso só reforça mais a questão ética no que diz respeito ao uso deles — disse Candace. — E a razão porque muitas pessoas podem sentir-se ofendidas pela sua utilização. Eles parecem tão humanos. Quero dizer, vocês não ficam incomodados quando um deles tem de ser sacrificado?

— Este transplante de fígado do Sr. Winchester é apenas o segundo caso em que foi necessário sacrificar — disse Melanie. — Os outros dois foram rins, e os animais estão bem.

—Bem, como se sentiram vocês dois com este caso?—perguntou Candace. — A maioria de nós, na equipa cirúrgica, sentiu-se mais perturbada desta vez, se bem que pensássemos estar já preparados, em particular por este ser o segundo.

Kevin olhou para Melanie. A boca tinha-se-lhe secado. Candace estava a obrigá-lo a enfrentar uma questão que ele se esforçava por evitar. Era em parte a razão por que o fumo vindo da ilha Francesca o perturbava tanto.

— Sim, incomoda-me — disse Melanie. — Mas como estou tão entusiasmada com a parte da ciência e o que ela pode fazer por um paciente, tento não pensar nisso. Além disso, não esperamos ter de sacrificar muitos deles. São mais uma questão de seguro no caso dos clientes virem a ter necessidade. Nós não aceitamos pessoas que necessitem de um transplante de imediato, só quando podem aguardar três anos, que é quanto levam os seus duplos a atingirem a maioridade. E não temos de contactar com estas criaturas. Eles vivem numa ilha isolados. Isso é propositado para que ninguém aqui possa estabelecer ligações emocionais de qualquer espécie.

Kevin engolia com dificuldade. Na sua mente via o fumo serpenteando preguiçosamente em direcção ao monótono céu cinzento-chumbo. Via também o bonobo tenso apanhar uma rocha e atirá-la com uma precisão certeira, atingindo mortalmente um dos pigmeus, durante uma das recolhas.

— Qual é o termo quando os animais têm genes humanos incorporados neles? — perguntou Candace.

— Transgénicos — disse Melanie.

— Exacto — disse Candace. — Gostaria que pudéssemos usar porcos transgénicos em vez de bonobos. Esta prática incomoda-me. Por muito que eu goste do dinheiro e da Gensys, não creio que vá continuar no projecto.

— Eles não vão gostar disso — disse Melanie. — Lembre-se de que assinou um contrato. Tanto quanto sei, eles são inflexíveis quanto a fazerem as pessoas cumprirem os contratos originais.

Candace encolheu os ombros. Eu devolver-lhes-ia tudo, incluindo as bonificações. Vivo bem sem isso. Quero apenas saber como me sinto. Ficaria muito mais feliz se usássemos porcos. Quando pusemos o último bonobo sob anestesia, eu poderia ter jurado que ele tentava comunicar-nos qualquer coisa. Tivemos de usar uma tonelada de sedativos.

— Oh! Parem com isso! — irrompeu Kevin, com uma fúria repentina. O seu rosto estava ruborizado.

Os olhos de Melanie abriram-se desmesuradamente.

— Meu Deus, mas que é que te deu? Kevin logo lamentou a sua explosão.

— Desculpem — disse ele. O coração ainda pulsava aceleradamente. Detestava o facto de ser sempre transparente, ou, pelo menos, pensava que era.

Melanie revirou os olhos, tentando comunicar com Candace, mas Candace não se apercebeu. Ela observava Kevin.

— Tenho a percepção de que você está tão chocado quanto eu — disse Candace.

Kevin respirava ruidosamente, depois deu uma dentada no hambúrguer para evitar dizer alguma coisa de que viesse a arrepender-se mais tarde.

— Por que não quer falar sobre isto? — perguntou Candace. Kevin abanou a cabeça enquanto mastigava. Imaginava que o

seu rosto continuava vermelho como uma beterraba.

— Não se preocupe com ele — disse Melanie. — Ele vai acabar por se recompor.

Candace olhou para Melanie.

— É que os bonobos são tão humanos—comentou ela, voltando a tocar num dos seus pontos originais — que não devemos ficar admirados que eles difiram apenas de um e meio por cento. Mas ocorreu-me uma coisa agora. Se vocês estão a substituir os segmentos curtos do genoma dos bonobos com ADN humano, com que percentagem estão vocês a lidar?

Melanie olhou para Kevin enquanto fazia um cálculo mental. Arqueou as sobrancelhas.

— Hum — disse ela. — É um ponto curioso. Seria mais de dois por cento.

—Exacto, mas o um e meio por cento não está no segmento curto do cromossoma seis — irrompeu Kevin, novamente com rispidez.

— Ei, acalma-te, fanfarrão — disse Melanie. Ela descansou o seu refresco, estendeu o braço e colocou a mão sobre o ombro de Kevin. — Perdeste o controlo. Estamos apenas a conversar. Sabes, é normal as pessoas sentarem-se e conversarem. Eu sei que para ti é estranho, uma vez que tu preferes interagir com os teus tubos de ensaio, mas que se passa?

Kevin suspirou. Era contra a suanatureza, mas decidiu partilhar o seu segredo com estas duas mulheres confiantes. Admitiu que estava desorientado.

— Como se nós não soubéssemos—disse Melanie, revirando de novo os olhos.—Não podes ser mais preciso? Que bicho te mordeu?

— Exactamente aquilo que Candace está a discutir — disse Kevin.

— Ela disse tanta coisa — disse Melanie.

—Pois, e todas elas me fazem sentir como se eu tivesse cometido um tremendo erro.

Melanie retirou a mão do ombro dele e fixou os olhos cor de topázio em Kevin.

— Em que sentido? — interrogou Melanie.

— Por adicionar tanto ADN humano — disse Kevin. — O segmento curto do cromossoma seis tem milhões de pares de base e centenas de genes que não têm nada a ver com o complexo principal de histocompatibilidade. Eu devia ter isolado o complexo em vez de ter escolhido o caminho mais fácil.

— Isso significa que as criaturas têm um pouco mais de proteínas humanas — disse Melanie. — E daí?, não é grave.

— Isso foi exactamente o que eu senti ao princípio — disse Kevin. — Pelo menos até colocar uma questão através da Internet, a perguntar se alguém sabia que outras espécies de genes havia no segmento curto do cromossoma seis. Infelizmente, uma das pessoas que respondeu informou-me de que havia um grande segmento de genes relativos ao desenvolvimento. Agora, não faço ideia o que é que criei.

— Claro que faz — disse Candace. — Criou um bonobo transgénico.

— Eu sei — disse Kevin com os olhos em chama. Ele respirava ofegantemente e na testa surgiu-lhe transpiração.—E, ao fazê-lo, receio ter ultrapassado os limites.

 

5 DE MARÇO, 1997- 13:00 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Bertram levou o seu jipe Cherokee, que tinha três anos, para o estacionamento, por detrás da Câmara, e deu um esticão no travão. O carro tinha estado a dar-lhe problemas e estivera imensos dias a ser reparado na estação da frota de camiões. Mas a avaria persistia, e esse facto tornava-o particularmente irritado quando Kevin Marshall parecia não se dar conta de quanta sorte tinha por ter um Toyota novo de dois em dois anos. Bertram só receberia um novo carro no ano seguinte.

Bertram subiu as escadas que ficavam por detrás da arcada do primeiro andar, de acesso à varanda que circundava o edifício. Daí, caminhou até ao escritório central. Por opção de Siegfried Spallek, não tinha ar condicionado. Uma ventoinha de tecto rodava preguiçosamente com um particular zumbido oscilante. As longas lâminas achatadas mantinham o ar húmido e quente do enorme quarto em movimento.

Bertram telefonara com antecedência, por isso o secretário de Siegfried, um homem negro de rosto largo, chamado Aurielo, oriundo da ilha de Bioko, esperava-o e fez-lhe sinal com a cabeça para ele entrar. Aurielo fizera o curso de professor em França, mas estivera desempregado até a Gensys ter fundado a Zona.

O gabinete interior era maior do que o outro e estendia-se em toda a largura do edifício. Tinha janelas com venezianas, que davam para o parque de estacionamento na parte traseira e para a praça na parte da frente. As janelas da frente tinham uma vista

que permitia um empolgante panorama do novo complexo hospital-laboratório. De onde Bertram estava, ele inclusivamente via as janelas do laboratório de Kevin.

— Sente-se — disse Siegfried, sem erguer os olhos. A sua voz tinha um tom gutural áspero, com uma ligeira pronúncia germânica. Era uma voz autoritária de comando. Ele assinava uma pilha de correspondência. — Já estou a terminar.

Bertram deambulava os olhos pelo gabinete desordenado. Era um lugar onde nunca se sentia descontraído. Como veterinário e ambientalista moderado, não aprovava a decoração. Cobrindo as paredes e todas as superfícies horizontais havia cabeças de animais empalhados, de olhos vidrados, muitos dos quais eram espécies raras em vias de extinção. Havia felinos, tais como leões, leopardos e chitas. Havia uma espantosa variedade de antílopes, mais do que Bertram imaginava que pudessem existir. Várias cabeças de rinocerontes observavam inexpressivamente das suas posições de destaque na parede, por detrás de Spallek. No topo da estante de livros havia cobras, incluindo uma cobra recém-nascida. No chão havia um enorme crocodilo com uma mandíbula parcialmente aberta, deixando entrever os temíveis dentes. A mesa junto à cadeira onde se encontrava Bertram era um pé de elefante com um tampo de mogno. Nos cantos, havia dentes de elefante cruzados.

Ainda mais incómodo para Bertram do que os animais empalhados eram as caveiras. Na secretária de Siegfried havia três. Todas elas tinham o topo cerrado. Uma tinha o que parecia ser uma bala numa das têmporas. Eram usadas, respectivamente, para clips, cinzeiros e para suporte de uma grande vela. Embora o sistema eléctrico da Zona fosse o mais seguro do país, ocasionalmente havia cortes de electricidade devido à trovoada.

A maioria das pessoas, em especial os visitantes da Gensys, presumiam que as caveiras eram de macacos. Bertram conhecia bem as suas origens. Eram caveiras de pessoas executadas pelos soldados equatoguineeses. As três criaturas tinham sido condenadas por ofensa capital, por interferirem com as operações da Gensys. Na realidade, tinham sido apanhadas a roubar chimpanzés selvagens num território de cem milhas quadradas, área designada como propriedade da Zona. Siegfried considerava essa área como a sua reserva privada de caça. Anos antes, quando Bertram tinha delicadamente questionado o bom senso de exibir essas caveiras, Siegfried reagira, dizendo que mantinha os nativos na linha.

— É o género de comunicação que eles entendem — explicara Siegfried. — Eles compreendem símbolos como estes.

Bertram não se surpreendia que eles compreendessem a mensagem. Especialmente num país que tinha sofrido as atrocidades de um ditador diabolicamente cruel. Bertram lembrava-se sempre da reacção de Kevin às caveiras. Kevin dissera que elas lhe faziam lembrar o personagem Kurtz, do livro de Joseph Conrad, The Heart of Darkness1.

—Já está — disse Siegfried, puxando os papéis assinados para o lado. Com o seu sotaque acentuado parecia ter dito “chá”. — Que o traz aqui? Espero que não seja problemas com os bonobos.

— Não, de modo algum. As duas fêmeas de reprodução estão perfeitas — disse Bertram. Olhou para o patrão da Zona. A sua característica física mais proeminente era uma grotesca cicatriz que saía por debaixo da orelha esquerda, atravessava a face até debaixo do nariz. Com os anos, a cicatriz contraíra-se, puxando o canto da boca de Siegfried, o que lhe dava um eterno ar de escárnio.

Tecnicamente, Bertram não dependia de Siegfried. Como veterinário-chefe do maior centro do mundo de pesquisa e reprodução, Bertram estava directamente subordinado ao vice-presidente superior das operações em Cambridge, Massachusetts, que tinha acesso directo a Taylor Calbot. Mas, no dia-a-dia, em especial no que se referia ao projecto Bonobo, era do próprio interesse de Bertram manter uma cordial relação de trabalho com o patrão local. O problema era que Siegfried era temperamental e uma pessoa com quem era difícil lidar.

Começara em África como caçador branco, que, por determinado preço, fornecia ao cliente tudo quanto ele requeria. Tal reputação obrigou-o a mudar da África Oriental para a África Ocidental, onde as leis da caça eram aplicadas com menos rigidez. Siegfried estabelecera uma longa organização e tudo corria bem, até que um dia, uns perseguidores o traíram numa situação crucial, tendo resultado daí o seu espancamento por um enorme elefante e a morte do casal de clientes.

O episódio pôs fim à carreira de Siegfried como caçador branco. Mais, deixara-o com a cicatriz facial e o braço direito paralisado. A extremidade suspendia inerte e inútil da ligação do ombro.

A raiva proveniente do acidente tornara-o num homem cáustico e vingativo. Todavia, a Gensys reconhecera a sua capacidade de organização na selva, o conhecimento do comportamento animal, o seu braço-de-ferro mas eficaz de lidar com o carácter indígena

 

1 O Centro da Escuridão. (N. da T.)

 

africano. Eles acreditavam que ele era o indivíduo perfeito para dirigir a operação africana de muitos milhões de dólares.

— Há um outro problema com a operação dos bonobos — disse Bertram.

— É- uma nova inquietação para além da sua estranha preocupação pelo facto dos macacos estarem divididos em dois grupos? — perguntou Siegfried, arrogantemente.

— Reconhecer uma mudança na organização social, é uma maldita inquietação legítima — disse Bertram, com o rosto afogueado.

— Isso foi o que você disse — retorquiu Siegfried. — Mas tenho estado a pensar e não vejo que isso tenha importância. O que nos pode preocupar se eles andam num grupo ou em dez? O que queremos é que eles estejam bem e saudáveis.

—Discordo—disse Bertram. —Adivisão surge quando eles não se dão bem. Isso não é normal no comportamento típico dos bonobos, e pode significar que se avizinham problemas.

—Vou deixar que vocês, os profissionais, se preocupem com isso — disse Siegfried. Recostou-se e a cadeira chiou. — Pessoalmente, não me preocupa o que esses macacos façam, desde que nada ameace o dinheiro que está caindo das árvores e as benesses. O projecto está a transformar-se numa mina de ouro.

— O novo problema tem a ver com Kevin Marshall — disse Bertram.

—Por Deus, que é que esse esquelético simplório fez agora para pô-lo preocupado? — perguntou Siegfried. — Com a sua paranóia, é bom que não esteja no meu lugar.

— O idiota ficou todo nervoso porque viu fumo a sair da ilha — disse Bertram. — Já veio ter comigo duas vezes. Uma vez na semana passada e esta manhã novamente.

— E que é que tem o fumo? — perguntou Siegfried. — Por que é que ele se preocupa? Parece ainda pior do que você.

— Ele pensa que os bonobos poderão estar a usar lume — disse Bertram. — Ele não foi explícito, mas estou seguro de que isso é o que lhe passou pela mente.

— Que quer dizer com “usar lume”? — perguntou Siegfried. Inclinou-se para a frente. — Quer dizer, como fazer uma fogueira para aquecimento e cozinhar? — Siegfried deu uma gargalhada sem perturbar o seu escárnio omnipresente. — Eu não sei quanto a vocês, americanos citadinos. Aqui na selva tem-se medo até da própria sombra.

— Eu sei que é prepóstero — disse Bertram. — Claro que mais ninguém viu, ou se viram, pensam que é da trovoada. O problema é que ele quer lá ir.

—Ninguém se aproxima da ilha!—resmungou Siegfried. — Só durante a recolha, e apenas a equipa de recolha. São directrizes da sede. Não há excepções, salvo para Kimba, o pigmeu, que vai fazer a entrega da comida suplementar.

— Foi isso justamente que eu lhe disse — disse Bertram. — E creio que ele não fará nada sozinho. Todavia, pensei que devia pô-lo ao corrente.

—Ainda bem que o fez—disse Bertram.—Aquela mosquinha. Ele é a minha dor de cabeça.

— Há uma outra coisa — disse Bertram. — Ele falou no fumo a Raymond Lyons.

Siegfried bateu com a palma da mão no tampo da secretária com tal força que Bertram deu um salto. Levantou-se e dirigiu-se até à janela que dava para a praça. Olhou para o hospital com um olhar fixo e penetrante. Nunca gostara daquele epiceno pesquisador livresco, desde o primeiro momento. Quando foi informado de que Kevin ia ser obsequiado e alojado na segunda melhor casa da cidade, Siegfried ferveu de ira. Ele queria ter dado a casa como bónus a um dos seus leais subalternos.

Siegfried cerrou o punho da mão boa e rangeu os dentes.

— Mas que grandessíssimo chato metediço! — disse ele.

— A pesquisa dele está quase completa — disse Bertram. — Será uma pena se ele estragar tudo, justamente quando tudo está a correr tão bem.

— Que lhe disse Lyons? — perguntou Siegfried.

— Nada — disse Bertram. — Acusou Kevin de estar a dar asas à sua imaginação.

— Poderei ter de pôr alguém a vigiar Kevin — disse Siegfried. — Não admito que quem quer que seja destrua este programa. E ponto final. É demasiado lucrativo.

Bertram levantou-se.

— Esse é o seu departamento — disse ele. Dirigiu-se à porta, confiante de que tinha plantado a semente adequada.

 

5 DE MARÇO, 1997 - 7:25 CIDADE DE NOVA IORQUE

A combinação do vinho barato e poucas horas de sono fizeram abrandar o andamento de Jack na sua deslocação habitual de bicicleta para o trabalho, nessa manhã. A sua hora de chegada à sala ID do Instituto de Medicina Legal era invariavelmente às sete horas e quinze minutos. Mas quando saiu do elevador, no primeiro andar da morgue, no trajecto para a sala ID, notou que eram já sete e vinte e cinco e isso transtornou-o. Não era que ele estivesse atrasado, simplesmente, Jack gostava de manter o seu esquema pessoal. A disciplina no que dizia respeito ao trabalho, aprendera ele, era uma das formas de evitar o stress.

A sua ordem de trabalhos começava por servir-se de café da cafeteira comum. Até o aroma parecia ter um efeito benéfico, que Jack atribuía à condição pavloviana. Sorveu um pequeno trago. Era uma experiência divinal. Embora duvidasse que a cafeína pudesse funcionar tão rapidamente, ele sentia que a ligeira dor de cabeça proveniente da ressaca estava já a melhorar.

Dirigiu-se a Vinnie Amendola, o técnico do necrotério, cujo turno diurno se sobrepunha ao turno nocturno. Estava recôndito, como sempre, numa secretária de metal. Os pés descansavam na esquina da secretária, e a cara escondia-se por detrás do jornal da manhã.

Jack puxou a ponta do jornal para expor ao mundo os traços italianos de Vinnie. Ele tinha cerca de trinta anos, um físico num estado lamentável, mas era bem-parecido. O espesso cabelo negro era uma coisa que Jack invejava. No último ano, Jack notara que o seu cabelo castanho com mechas branqueadas tornava-se cada vez mais escasso na coroa da cabeça.

— Ei, Einstein, que é que o jornal diz sobre o incidente de Franconi?—perguntou Jack. Jack e Vinnie trabalhavam regularmente juntos e ambos apreciavam a irreverência, a perspicácia e o humor negro um do outro.

— Não sei — disse Vinnie. Tentou libertar o seu amado jornal da mão de Jack. Ele estava embrenhado nos resultados do jogo de basquetebol dos Knicks, da noite anterior.

A testa de Jack franziu-se. Vinnie podia não ser um génio académico, mas no que dizia respeito a notícias, ele era uma autoridade. Lia o jornal de ponta a ponta e tinha uma excelente capacidade de retenção.

— O jornal não diz nada sobre isso? — interrogou Jack. Estava chocado. Imaginara que a imprensa dedicaria o dia ao embaraçoso desaparecimento do corpo da morgue. A gestão burocrática era um dos temas favoritos dos jornalistas.

—Não prestei atenção—disse Vinnie. Deu um puxão com mais força, libertou o jornal e voltou a enterrar o rosto nele.

Jack abanou a cabeça. Estava verdadeiramente surpreendido e perguntava-se a si próprio como teria Harold Bingham conseguido o silêncio da comunicação social. Justamente quando Jack estava prestes a voltar-se, entreviu as legendas. Dizia:

QUADRILHA PASSA TRAPO Às AUTORIDADES

No subtítulo lia-se:

“A criminosa família Vaccaro mata um dos seus e depois rouba o corpo debaixo do nariz das autoridades.”

Jack puxou o jornal das mãos do estupefacto Vinnie. As pernas de Vinnie tombaram no chão com um estrondo.

— Ei, que é isso! — reclamou ele.

Jack dobrou o jornal de modo que Vinnie foi obrigado a olhar para a página da frente.

— Pensei que tu dizias que o jornal não falava do assunto — disse Jack.

— Eu não disse que não falava — disse Vinnie. — Disse que não vi.

— E a notícia da página da frente, pelo amor de Deus! — disse Jack. Ele apontava para os títulos com a chávena de café, para indicar melhor.

Vinnie precipitou-se para agarrar o jornal. Jack afastou-o do alcance dele.

— Dá-me isso! — resmungou Vinnie. — Compra um maldito jornal para ti.

— Despertaste-me a curiosidade — disse Jack. — Metódico como tu és, de certeza que devias ter lido a primeira página na tua viagem de metro. Que se passa, Vinnie?

— Nada! — disse Vinnie. — Só que eu fui logo para as páginas do desporto.

Jack examinou o rosto de Vinnie por momentos. Vinnie afastou o olhar para evitar o contacto de olhos.

— Estás doente? — perguntou Jack, chistosamente.

— Não! — disse Vinnie. — Dá-me mas é o jornal.

Jack tirou as páginas do desporto e deu-lhas. Depois, foi para a secretária do expediente e começou a ler o artigo. Começava na página da frente e continuava na terceira página. Como Jack antecipara, a notícia era dada de um ponto de vista sarcástico e trocista. Caluniava de igual modo o departamento da Polícia e o gabinete de Medicina Legal. Dizia que toda aquela história sórdida era mais um brilhante exemplo da grande incompetência de ambas as organizações.

Laurie entrou de rompante no gabinete e interrompeu Jack. Enquanto tirava o casaco, disse-lhe que esperava que ele estivesse a sentir-se melhor do que ela.

— Provavelmente, não — admitiu Jack. — Foi o vinho barato que eu levei. Desculpa.

— Foi também das cinco horas de sono — disse Laurie. — Levei um tempo terrível a içar-me da cama. — Pousou o casaco na cadeira. — Bom dia, Vinnie — disse ela.

Vinnie continuou em silêncio por detrás das páginas do desporto.

—Ele está a fazer beicinho porque eu violei o jornal dele—disse Jack. Jack levantou-se para que Laurie pudesse sentar-se na secretária do expediente. Competia à Laurie, nessa semana, distribuir as autópsias entre os funcionários. — Os títulos e a notícia de primeira página são sobre o incidente de Franconi.

— Não me surpreende — disse Laurie. — É a notícia do dia nos meios de comunicação locais e ouvi que Bingham estará noBom Dia, América para tentar minimizar os danos.

— Ele tem uma batata quente nas mãos — disse Jack.

—Já viste os casos para hoje? — perguntou Laurie, ao começar a folhear os vinte e tal casos.

— Acabei de chegar — admitiu Jack. Continuou a ler o artigo.

— Oh! Esta é boa! — comentou Jack, depois de um momento de silêncio.—Estão a alegar que há uma espécie de conspiração entre nós e o departamento policial. Sugerem que nós, deliberadamente, demos fim ao corpo, para benefício da Polícia. Já ouviste esta! Esta gente dos meios de comunicação é tão paranóica que vê conspiração em tudo.

— É o público que é paranóico — disse Laurie. — Os meios de comunicação gostam de dar o que o público quer. Mas é por causa desse género de teoria selvagem que vou tentar descobrir o corpo desaparecido. O público tem de saber que somos imparciais.

— Estava com esperança de que tivesses mudado de ideias e tivesses desistido dessa investigação depois de uma noite de sono

— murmurou Jack, enquanto continuava a ler.

— Isso nunca — disse Laurie.

—Isto é um absurdo!—disse Jack, batendo com a palma da mão na página do jornal. — Primeiro, sugerirem que nós aqui, no gabinete de ML, somos responsáveis pelo desaparecimento do corpo, e depois dizerem que sem dúvida a quadrilha enterrou os restos na mata de Westchester, para que não sejam encontrados.

—A última parte, provavelmente, está correcta—disse Laurie.

— A menos que o corpo apareça com o degelo, na Primavera. Com gelo, é difícil cavar mais de trinta centímetros abaixo da superfície.

— Vagabundos, que escória! — comentou Jack, quando acabou de ler o artigo.—Aqui... queres lê-lo?—ofereceu a primeira página a Laurie.

Laurie dispensou-a, acenando com a mão.

— Obrigada, mas já li a versão do Times — disse ela. — É suficientemente cáustica. Não preciso do ponto de vista doNew York Post.

Jack caminhou até junto de Vinnie e chacoteou que estava disposto a pôr o jornal de novo no seu estado virgem. Vinnie recebeu as páginas sem comentários.

—Hoje... estás extremamente sensível!—disse Jack ao técnico.

— Deixa-me em paz — retorquiu Vinnie.

— Uau, cuidado, Laurie! — disse Jack. — Suponho que Vinnie está numa depressão pré-mental. Provavelmente, está a tentar concentrar-se muito a sério, e está com as hormonas todas fora do sítio.

— Oh! — exclamou Laurie. — Aqui está o flutuador que Mike Passano mencionou ontem à noite. A quem devo atribuí-lo? O problema é que não me sinto bem em deixá-lo nas mãos seja lá de quem for, e, para evitar culpabilidade, provavelmente, fá-lo-ei eu própria.

— Dá-mo! — disse Jack.

— Não te importas? — perguntou Laurie. Ela detestava em especial os que permaneciam na água por muito tempo. Tais autópsias eram desagradáveis e muitas vezes tarefas difíceis.

— Não — disse Jack. — Uma vez ultrapassado o cheiro, já está no papo.

— Por favor — disse Laurie. — Que nojo!

— A sério — disse Jack. — São um desafio. Eu prefiro-os aos casos de feridas com armas de fogo.

—Este apresenta os dois—comentou Laurie, enquanto atribuía o caso a Jack.

— Que beleza! — comentou Jack. Ele regressou à secretária e olhou por cima do ombro de Laurie.

— Há um presumível tiro, dado a curta distância, no quadrante superior direito — disse Laurie.

— Cada vez soa melhor — disse Jack. — Qual é o nome da vítima?

—Não tem nome—disse Laurie.—De facto, isso é parte do teu desafio. Não tem cabeça nem mãos.

Laurie entregou a pasta com o relatório a Jack. Ele encostou-se à secretária e deixou deslizar a documentação da pasta. Não havia muita informação. O que havia vinha da investigadora de medicina legal, Janice Jaeger.

Janice escrevera que o corpo fora descoberto no oceano Atlântico, fora da costa de Coney Island. Fora inadvertidamente encontrado por um barco da Guarda Costeira que estivera a vigiar passadores de droga, pela calada da noite. A Guarda Costeira actuara segundo uma informação anónima, e, na altura da descoberta, o barco estava estacionado silenciosamente, com as luzes apagadas e o radar ligado. O barco tinha literalmente chocado com o corpo. A alegação é que eram os restos do informador-passador de droga.

— Não há muito por onde começar — disse Jack.

— O desafio é ainda maior — gracejou Laurie.

Jack saiu da secretária e dirigiu-se à sala de comunicações a caminho do elevador.

— Vamos lá, rabugento — disse ele a Vinnie. Bateu com a mão no jornal de Vinnie e deu-lhe um puxão no braço. — Estamos a desperdiçar tempo.—Mas na porta, ele literalmente foi de encontro a Lou Soldano. O tenente vinha concentrado no seu alvo: a máquina do café.

— Eh, pá! — comentou Jack. — Devias tentar juntar-te aos gigantes de Nova Iorque.—Parte do seu café entornara-se no chão.

— Desculpa — disse Lou. — Eu preciso desesperadamente de java.

Dirigiram-se ambos para a cafeteira. Jack usou umas toalhas de papel para limpar o café derramado na frente do seu casaco de veludo vincado. Lou encheu uma caneca de café até à beira, com a mão trémula, depois sorveu um pouco para dar espaço para o leite e o açúcar.

Lou suspirou.

— Têm sido dois dias extenuantes.

— Andaste em festa a noite toda outra vez? — perguntou Jack. Lou tinha a barba hirsuta com umas grandes suíças. Tinha vestido uma camisa azul amarfanhada, com o colarinho desabotoado e a gravata desapertada e de lado. O seu casaco impermeável, estilo Colombo, parecia mais o casaco de um sem-lar.

— Quem me dera — resmungou Lou. — Dormi cerca de três horas nestas últimas noites. — Atravessou a sala, disse olá a Laurie, e deixou-se cair na cadeira junto à secretária.

— Qualquer progresso no caso Franconi? — perguntou-lhe Laurie.

— Nada que agrade o intendente, o comandante de zona, ou o comissário da Polícia—disse Lou, um tanto ou quanto decepcionado. — Que trapalhada. O problema é que vai haver cabeças cortadas. Nós, nos Homicídios, estamos a começar a ficar preocupados porque nos podem ter preparado uma armadilha e sermos usados como bodes expiatórios, a não ser que descubramos uma aberta no caso.

— Vocês não têm culpa que ele tenha sido assassinado — disse Laurie, indignadamente.

— Diz isso ao comissário — comentou Lou. Ele sorveu ruidosamente um trago de café. — Importam-se que fume? — Olhou para Laurie e para Jack. — Esqueçam — disse ele, logo que viu a expressão no rosto deles. — Nem sei por que perguntei. Deve ter sido um momento de ansiedade temporária.

— Que descobriste? — perguntou Laurie. Laurie sabia que antes de ter sido indigitado para os Homicídios, Lou estivera no departamento do Crime Organizado. Com a sua experiência, não havia mais ninguém qualificado para investigar o caso.

— Foi definitivamente um golpe dos Vaccaro — disse Lou. — Soubemo-lo através de um dos nossos informadores. Mas como Franconi estava prestes a testemunhar, já tínhamos presumido isso. A única verdadeira pista que temos é a arma do crime.

— Isso deve ser uma ajuda — disse Laurie.

— Não tanto quanto pensas — disse Lou. — Não é fora do comum que durante um golpe duma quadrilha a arma do crime sej a deixada para trás. Encontrámo-la no telhado, no lado oposto ao Restaurante Positano. Era uma Remington 30-30, com mira telescópica, e faltavam dois cartuchos da cartucheira. Os dois invólucros estavam no telhado.

— Impressões digitais? — perguntou Laurie.

— Completamente limpas — disse Lou. — Mas os rapazes da parte criminal estão a trabalhar nisso.

— Conseguem descobrir uma pista? — perguntou Jack.

— Sim — disse Lou com um suspiro. — Já tentámos. A espingarda pertencia a um caçador extravagante lá no Melon Park. Mas foi um beco sem saída, conforme já esperávamos. Acasa do tipo tinha sido assaltada no dia anterior. A única coisa que desapareceu foi a espingarda.

— Então, agora, que se segue? — perguntou Laurie.

— Ainda estamos a seguir outras pistas — disse Lou. — Há ainda alguns informadores que não conseguimos contactar. Mas, no geral, estamos a fazer figas para que surja qualquer coisa. E vocês? Alguma ideia como é que o corpo saiu daqui?

—Ainda não, mas eu própria estou a investigar—disse Laurie.

— Ei, não lhe dês força — disse Jack. — Isso é trabalho para Bingham e Washington.

— Ele tem razão, Laurie — disse Lou.

— É claro que tenho razão — disse Jack. — A última vez que Laurie se envolveu com uma quadrilha, foi levada daqui, fechada num caixão. Pelo menos, foi o que tu me disseste.

— Isso foi nessa altura e isto é agora — disse Laurie. — Eu não estou envolvida neste caso da maneira que estava nesse. Creio que é importante descobrir como o corpo desapareceu, para bem destes serviços. E, francamente, estou convicta que nem Bingham nem Washington farão qualquer esforço. Do ponto de vista deles, é melhor deixar o episódio esmorecer.

— Compreendo isso — disse Lou. — De facto, se os malditos meios.de comunicação deixassem cair, o comissário poderia dizer para abrandarmos. Quem sabe?

— Vou descobrir como é que isto aconteceu! — repetiu Laurie com convicção.

— Bem, sabendo quem e como ajudaria a minha investigação— disse Lou. — O mais certo é que tenham sido as próprias pessoas da organização Vaccaro. É mais do que lógico.

Jack levantou as mãos.

— Vou sair daqui — disse ele. — Já vejo que nenhum de vocês ouve a voz da razão.—Puxou de novo pela camisa de Vinnie ao sair.

Jack espreitou no gabinete de Janice.

— Alguma coisa que eu deva saber sobre o flutuador que não esteja no relatório? — perguntou ele à investigadora.

— O pouco que há, está aí — disse Janice. — Excepto a coordenada, onde a Guarda Costeira apanhou o corpo. Disseramme que alguém contactaria hoje para dar a certeza se era classificada ou qualquer coisa assim. Mas não vejo que essa informação possa ser importante. Não é como se se pudesse lá ir e encontrar a cabeça e as mãos.

— Concordo — disse Jack. — Mas mande alguém telefonar, de qualquer modo. Só para ficar no processo.

— Deixarei uma nota a Bart — disse Janice. Bart Arnold era o médico legista-chefe.

—Obrigado, Janice—disse Jack.—Agora, vá dormir.—Janice era tão dedicada ao seu trabalho que trabalhava sempre fora de horas.

—Espere um segundo—chamou Janice.—Há uma outra coisa que me esqueci de apontar no relatório. Quando o corpo foi recolhido, estava nu. Nem um fio de roupa.

Jack assentiu com a cabeça. Era uma informação curiosa. Despir um cadáver era um esforço redobrado para o assassino. Jack ponderou por uns momentos, e chegou à conclusão que coincidia com a necessidade de esconder a identidade da vítima, um facto que era óbvio perante a falta da cabeça e das mãos. Jack acenou a Janice.

— Não me digas que vamos fazer um flutuador — lamuriou Vinnie, enquanto ele e Jack se dirigiam para o elevador.

— Tu de facto desligas quando lês as páginas do desporto — disse Jack. — Laurie e eu discutimos isso durante dez minutos.

Entraram no elevador e desceram para o andar das autópsias. Vinnie recusava-se olhar de frente para Jack.

— Estás terrivelmente maldisposto — disse Jack. — Não me digas que estás a tomar este desaparecimento de Franconi como coisa pessoal.

— Deixa-me em paz — disse Vinnie.

Enquanto Vinnie saiu para pôr o fato lunar, preparar a parafernália necessária para fazer a autópsia, e depois levar o corpo para a morgue e pô-lo sobre a mesa, Jack voltou a ler o resto do dossier, para se certificar de que não se esquecera de nenhum pormenor. Em seguida, foi buscar as radiografias que tinham sido tiradas quando o corpo chegara.

Jack vestiu o seu fato lunar, desligou a corrente que tinha estado a carregar durante a noite, e fechou os colchetes. Detestava o fato em geral, mas, para trabalhar com um flutuador, detestava-o menos. Conforme havia dito a Laurie em ar de gracejo, o cheiro era a parte mais desagradável.

Àquela hora da manhã, Jack e Vinnie eram as duas únicas pessoas na sala de autópsias. Para desgosto de Vinnie, Jack invariavelmente insistia em começar muito cedo. Frequentemente, Jack estava a acabar o seu primeiro caso quando os colegas estavam a começar.

O primeiro trabalho a fazer era verificar as radiografias, e Jack colocou-as no negatoscópio. Com as mãos nas ancas, Jack recuou um passo e olhou atónito para a radiografia anteroposterior do corpo inteiro. Sem cabeça nem mãos, a imagem era definitivamente anormal, como a radiografia de alguma criatura primitiva não humana. A outra anormalidade era uma densa mancha reluzente de balas de chumbo na área do quadrante superior direito. A impressão imediata de Jack era que houvera múltiplos disparos, não apenas um. Parecia um favo de balas de chumbo.

As balas eram opacas aos raios X e encobriam qualquer pormenor existente naquela área. No ecrã luminoso pareciam brancas.

Jack estava prestes a voltar a sua atenção para a radiografia de perfil quando qualquer coisa além da sua opacidade lhe despertou a atenção. Em dois locais, a periferia tinha uma aparência estranha, mais rugosa do que o contorno normal de uma bala.

Jack olhou para a radiografia de perfil e verificou o mesmo fenómeno. A sua primeira impressão era de que as balas atiradas de perto poderiam talvez ter disseminado qualquer produto radiopaco na ferida. Poderia ter sido alguma parte da roupa da vítima.

— Quando estiver pronto, maestro! — disse Vinnie. Ele tinha preparado tudo.

Jack desviou-se do negatoscópio e aproximou-se da mesa da autópsia. Com a luminosidade da luz fluorescente, o flutuador estava lívido. Quem quer que fosse a vítima, era relativamente obeso e não fizera nenhuma viagem às Caraíbas recentemente.

— Para usar uma das tuas citações favoritas — disse Vinnie —, não me parece que ele vá conseguir ir aos concertos de Verão.

Jack sorriu do humor negro de Vinnie. Coadunava-se mais com a sua personalidade, o que sugeria que ele recuperara do seu mau humor da manhã.

O corpo estava em muito mau estado, embora o facto de ter estado a boiar o tivesse tornado limpo. Uma boa notícia era que o corpo estivera na água apenas algumas horas. O trauma ia muito para além dos múltiplos disparos até à parte superior do abdómen. Não só a cabeça e as mãos tinham sido cortadas, mas havia ainda uma série de largos e profundos golpes no torso e coxas que deixavam expostas camadas do gorduroso tecido adiposo. Os bordos de todas as feridas estavam esfarpados.

— Parece que os peixes estavam a fazer um banquete — disse Jack.

— Oh, grosseirão! — comentou Vinnie.

Os golpes das balas tinham exposto e danificado muitos órgãos abdominais internos. Alguns cordões intestinais estavam à vista e um rim estava pendente.

Jack levantou um dos braços e olhou para os ossos expostos.

— O meu palpite é que foi uma serra em arco — disse ele.

— O que são todos estes golpes enormes? — questionou Vinnie. — Alguém tentou cortá-lo às fatias como um peru para férias?

— Não, eu diria que passaram por cima dele com um barco — disse Jack. — Parecem feridas feitas por uma hélice.

Jack começou a fazer um exame minucioso do exterior do cadáver. Com tantos traumas visíveis, ele sabia que seria mais fácil deixar escapar pormenores mais subtis. Trabalhava vagarosamente, parando frequentemente para fotografar as lesões. A sua meticulosidade compensou. Na base do pescoço esfarpado, justamente anterior à clavícula, encontrou uma pequena lesão circular. Encontrou outra semelhante no lado esquerdo, por debaixo da caixa torácica.

— Que são essas lesões? — perguntou Vinnie.

— Não sei — disse Jack. — São feridas de perfuração de qualquer espécie.

— Quantas vezes pensas que o atingiram no abdómen? — perguntou Vinnie.

— É difícil dizer — disse Jack.

— Ena, não queriam mesmo deixar nada ao acaso — disse Vinnie. — Queriam-no morto a toda força.

Uma hora mais tarde, quando Jack ia começar na parte interna da autópsia, a porta abriu-se e Laurie entrou. Vestia uma bata e trazia uma máscara na cara, mas não trazia o fato lunar. Visto que ela era rigorosa no que dizia respeito a regulamentos e uma vez que os fatos eram obrigatórios no local, Jack logo suspeitou.

— Pelo menos o teu caso não esteve na água muito tempo — disse Laurie, olhando para o cadáver. — Não tinha entrado em decomposição.

— Foi só um mergulho para refrescar — gracejou Jack.

— Mas que tiro! — disse Laurie, olhando atónita para a medonha ferida. Depois olhou para os múltiplos golpes e acrescentou:

— Estes parecem ter sido feitos por uma hélice. Jack endireitou-se.

— Laurie, que te traz aqui? Não vieste aqui só para me ajudar, não é verdade?

— Não — admitiu Laurie. A sua voz vacilou por detrás da máscara. — Suponho que gostaria de um pouco de apoio moral.

— Acerca de quê? — questionou Jack.

— Calvin acaba de me dar uma descompostura—disse Laurie.

— Aparentemente, o técnico da noite, Mike Passano, queixou-se que, ontem à noite, eu o tinha acusado de estar envolvido no rapto do corpo de Franconi. Já viste? De qualquer maneira, Calvin estava realmente zangado, e tu sabes como eu detesto confrontos. Acabei por chorar, o que me fez ficar furiosa comigo própria.

Jack soprou através dos lábios comprimidos. Ele tentou dizer qualquer coisa além de... Eu avisei-te, mas nada lhe veio à cabeça.

— Lamento — disse Jack, desajeitadamente.

— Obrigada — disse Laurie.

— E daí, derramaste umas lágrimas — disse Jack. — Não sejas tão rígida contigo própria.

— Mas eu detesto isso — queixou-se Laurie. — É tão pouco profissional.

— Ah! Eu não me preocuparia com isso — disse Jack. — Quem me dera derramar algumas lágrimas de vez em quando. Talvez se pudéssemos negociar, ambos nos sentiríamos melhor.

— Quando quiseres — disse Laurie com convicção.

Jack nunca estivera tão perto de admitir aquilo que ela já há muito suspeitava: a sua dor reprimida era o maior obstáculo à sua própria felicidade.

— Então, pelo menos, agora vais abandonar a tua minicruzada

— disse Jack.

— Oh, céus, não! — disse Laurie. — Só serve para me afincar mais, porque isto denota aquilo que eu já temia. Calvin e Bingham vão tentar deitar o episódio para trás das costas. Não está correcto.

— Oh, Laurie! — resmungou Jack. — Por favor! Este ligeiro encontrão com Calvin foi apenas o começo. O que vais lucrar com isso serão apenas desgostos.

— É o princípio que está em causa — disse Laurie. — Portanto, não me passes sermões. Vim pedir-te apoio moral.

Jack suspirou, embaciando a máscara de plástico por um momento.

— Okay — disse ele. — Que queres que faça?

— Nada em particular — disse Laurie. — Apenas gostaria de saber que posso contar contigo.

Quinze minutos mais tarde, Laurie saía do quarto das autópsias. Jack mostrara-lhe todos os achados externos do seu caso, incluindo as duas feridas por perfuração. Ela ouvira, mas parte dela estava ausente, obviamente preocupada com o caso Franconi. Jack teve de se conter para não lhe repetir o que sentia sobre o assunto.

—Já basta do exterior—disse Jack a Vinnie.—Vamos começar no interior.

—Já não era sem tempo—queixou-se Vinnie. Já passavam das oito e começavam a chegar corpos com os nomes dos respectivos técnicos e médicos legistas. Apesar de terem iniciado cedo, Jack e ele não estavam significativamente adiantados em relação aos outros.

Jack ignorou o simpático gracejo invocado pelo infortunado cadáver. Com todos os óbvios traumas, Jack teve de alterar a sua tradicional técnica de autópsia e isso requeria concentração. Ao contrário de Vinnie, Jack estava absorto em relação ao passar do tempo. Mas uma vez mais a sua meticulosidade compensara. Se bem que o fígado tivesse sido quase totalmente obliterado pelas balas, Jack descobriu qualquer coisa estranhíssima que poderia ter passado despercebida a alguém que estivesse a fazer um apressado trabalho mais ao acaso. Encontrou pequenos vestígios de suturas cirúrgicas na veia cava na afractuosa extremidade da artéria hepática. Suturas dessas eram bastante invulgares. A artéria hepática transportava para o fígado, enquanto a veia cava era a maior veia no abdómen. Jack não encontrou quaisquer suturas na veia porta, porque esse vaso estava destruído.

— Chet, vem cá — chamou Jack. Chet McGoven era um colega de trabalho de Jack. Ele estava ocupado na mesa ao lado.

Chet descansou o seu bisturi e dirigiu-se à mesa de Jack. Vinnie afastou-se para a cabeceira da mesa, para dar espaço.

—Que há?—perguntou Chet.—Alguma coisa interessante?— Espreitou para o buraco onde Jack trabalhava.

—É, é—disse Jack.—Tenho um punhado de balas de chumbo, mas também tenho algumas suturas vasculares.

— Onde? — perguntou Chet. Ele não conseguia ver nenhuma descoberta anatómica excepcional.

—Aqui!—disse Jack. Ele indicou com a extremidade do bisturi.

— Okay, já as vejo — disse Chet, com surpresa. — Bom achado. Há bastante endotelialização. Eu diria que não são muito antigas.

—Isso é justamente o que penso—disse Jack.—Provavelmente, há um mês ou dois. Seis meses no máximo.

— Que achas que isso significa?

— Penso que as probabilidades de eu conseguir identificar o corpo subiram cem por cento — disse Jack. Endireitou-se e espreguiçou-se.

— Ora essa, a vítima fez uma cirurgia abdominal — disse Chet. — Muitas pessoas fazem operações ao abdómen.

— Não a espécie de operação que este tipo parece ter feito — disse Jack. — Com suturas na veia cava e na artéria hepática, aposto como é de um grupo muito distinto. Tenho um palpite de que ele fez um transplante de fígado e não há muito tempo.

 

5 DE MARÇO, 1997 - 10:00 CIDADE DE NOVA IORQUE

Raymond Lyons afastou o punho da camisa e deitou um rápido olhar para o seu finíssimo relógio Peaget. Eram exactamente dez horas. Estava satisfeito. Gostava de ser pontual, especialmente para reuniões de negócios, mas não gostava de chegar cedo. Em sua opinião, chegar cedo cheirava a desespero, e ele tinha uma inclinação para regatear, pondo-se em posição de força.

Estivera durante alguns minutos na esquina da Park Avenue e Seventy-eighth Street a fazer tempo. Agora estava na hora exacta, endireitou a gravata, ajustou o chapéu de feltro, e começou a andar para a entrada do 972, Park Avenue.

—Procuro o consultório do Dr. Anderson—anunciou Raymond ao homem de libré que abrira a pesada porta de vidro e ferro forjado.

— O consultório do doutor tem entrada própria — respondeu o porteiro. Ele voltou a abrir a porta a Raymond, saiu para o passeio e apontou para sul.

Raymond tocou na aba do chapéu em sinal de apreço antes de se dirigir à entrada privada. Numa placa de bronze gravada lia-se: POR PAVOR, TOQUE E ENTRE. Raymond seguiu as instruções.

Quando a porta se fechou, Raymond sentiu-se satisfeito. O consultório parecia e até cheirava a dinheiro. Estava sumptuosamente mobilado com antiguidades e grossos tapetes orientais. As paredes estavam cobertas com arte do século xix.

Raymond avançou em direcção a uma secretária francesa trabalhada. Uma recepcionista matrona, bem vestida, olhou-o por cima dos óculos. Sobre a secretária havia uma placa com o nome: A. P. AUCHINCLOSS.

Raymond deu o seu nome, procurando salientar o facto de que era médico. Estava consciente de que algumas recepcionistas de consultórios eram arrogantes quando desconheciam que o visitante era um membro da mesma profissão.

— O Sr. Doutor está à sua espera — disse a Sr.a Auschincloss. Depois, delicadamente, pediu a Raymond para aguardar na sala de espera.

— É um belo consultório — disse Raymond para entabular conversa.

— Pois — disse a Sr.a Auschincloss.

— É grande? — interrogou Raymond.

—Evidentemente—disse a Sr.a Auschincloss.—O Dr. Anderson tem muita clientela. Temos quatro consultórios e uma sala de raios X.

Raymond sorriu. Não era difícil calcular as despesas que o Dr. Anderson tinha sido obrigado a suportar durante o apogeu das “consultas pagas”. Do ponto de vista de Raymond, o Dr. Anderson era a presa perfeita para potencial sócio. Embora o doutor ainda tivesse um reduzido volume de negócio de pacientes abastados que estavam dispostos a pagar para manter a sua antiga relação, o Dr. Anderson deve ter sido oprimido pelo serviço de saúde público.

— Suponho que isso significa muito pessoal — disse Raymond.

— Estamos reduzidos a uma enfermeira — disse a Sr.a Auschincloss. — É difícil encontrar pessoal eficiente nos dias de hoje.

Pois, com certeza, disse Raymond para consigo próprio. Uma enfermeira para quatro consultórios, incontestavelmente significava que o doutor estava com sérias dificuldades. Mas Raymond não exteriorizou os seus pensamentos. Em alternativa, os seus olhos vaguearam pelas paredes cuidadosamente forradas a papel e disse:

—Eu sempre admirei estes consultórios da velha escola na Park Avenue. São tão civilizados e serenos. Não podem deixar de transmitir uma sensação de confiança.

— Estou segura que os pacientes sentem o mesmo — disse a Sr.a Auschincloss.

Uma porta interior abriu-se, e uma idosa senhora, com um fato Gucci e cheia de jóias entrou na recepção. Era dolorosamente magra e tinha passado por tantas operações plásticas no rosto, que a boca esboçava um tenso, ininterrupto sorriso arrogante. Atrás dela estava o Dr. Waller Anderson.

Os olhares de Raymond e de Waller cruzaram-se por uns escassos segundos enquanto o doutor acompanhava a paciente até à recepcionista e dava instruções sobre o paciente seguinte.

Raymond examinou o médico. Era alto, com um ar refinado, e Raymond prognosticava que ele era mesmo refinado. Mas Waller não era moreno. Na realidade, tinha uma tez acinzentada um ar fatigado com olhos tristonhos e faces cavernosas. Na opinião de Raymond, ele tinha tempos difíceis escrito em todo o rosto.

Depois de calorosas despedidas à sua cliente, Waller fez um sinal para que Raymond o seguisse. Indicou o caminho ao longo de um corredor que dava para os consultórios. Ao fundo, entrou à frente de Raymond no seu gabinete particular e fechou a porta.

Waller apresentou-se cordialmente mas com umanítida reserva. Pegou no casaco e chapéu de Raymond, que depois pendurou cuidadosamente num pequeno vestiário.

— Café? — perguntou Waller.

— Por favor — disse Raymond.

Uns minutos mais tarde, ambos com os seus cafés, e o Waller sentado à secretária e Raymond na cadeira em frente, Raymond começou a lançar a sua mercadoria.

— São tempos duros, estes, para praticar clínica — disse Raymond.

Waller produziu um som que se assemelhava a uma risada, mas era um despojo de humor. Obviamente, ele não estava divertido.

— Nós podemos oferecer-lhe uma oportunidade de aumentar o seu rendimento assim como de fornecer um serviço quase artístico aos seus pacientes seleccionados — disse Raymond. A maior parte da apresentação de Raymond era um discurso estudado que ele tinha aperfeiçoado através dos anos.

— Há alguma coisa de ilegal nisso?—interpelou Waller. O tom era sério, quase irritante. — Se há, não estou interessado.

— Nada de ilegal — assegurou Raymond. — Apenas extremamente confidencial. Ao telefone, disse-me que estaria disposto a manter esta conversa apenas entre nós dois e o Dr. Daniel Levitz.

— Desde que o meu silêncio não seja criminoso em qualquer aspecto — disse Waller. — Não permitirei que me usem como um acessório.

— Não há motivo para preocupações — disse Raymond. Ele sorriu. — Mas se decidir aderir ao nosso grupo, solicitar-lhe-emos que assine uma declaração de compromisso de confidencialidade e só nessa altura ser-lhe-ão dados os pormenores.

— Não tenho problema em assinar uma declaração — disse Waller. — Desde que não esteja a furar a lei.

— Então, tudo bem — disse Raymond. Descansou a chávena do café na beira da secretária do Waller para que as mãos ficassem libertas. Veementemente, acreditava que gestos com as mãos eram importantes para causar impacte. Começou por narrar o encontro perfeito, havia sete anos, com Kevin Marshall, que tinha feito uma apresentação num encontro nacional, à qual tinham assistido muito poucas pessoas, e em que ele tratara da transposição homóloga de partes do cromossoma entre células.

—Transposições homólogas? — interrogou Waller. — Que vem a ser isso? — Tendo cursado medicina antes da revolução em biologia molecular, não estava familiarizado com os termos.

Raymond, pacientemente, explicou e usou como exemplo os segmentos curtos do cromossoma.

— Então, este Kevin Marshall inventou uma forma de tirar um pedaço de cromossoma de uma célula e substituí-la pelo mesmo pedaço, no mesmo local, de uma outra célula — disse Waller.

— Exactamente — disse Raymond. — E para mim foi como a epifania. Imediatamente, vi a aplicação clínica. De repente, era potencialmente possível criar um duplo imunológico de um indivíduo. Como certamente sabe, o segmento curto do cromossoma seis contém o maior complexo de histocompatibilidade.

— Como um gémeo idêntico — disse Waller, com um crescente interesse.

— Ainda melhor do que um gémeo idêntico — disse Raymond. —Cria-se um duplo imunológico numa espécie animal no tamanho adequado, que é sacrificado quando necessário. Poucas pessoas teriam a possibilidade de sacrificar um gémeo idêntico.

— Por que é que isso não foi publicado? — perguntou Waller. —O Dr. Marshall estava absolutamente decidido a publicá-lo — disse Raymond. — Mas havia uns pequenos pormenores que ele queria acertar antes de o fazer. Foi o chefe do departamento dele que o obrigou a apresentar o trabalho naquele encontro. Felizmente para nós! Depois de ouvir a sua apresentação, dirigi-me a ele e convenci-o a manter o trabalho secreto. Não foi difícil, mas o que fez dar a volta a nosso favor foi o facto de eu prometer dar-lhe o laboratório dos seus sonhos sem interferências das esferas académicas. Garanti-lhe que teria toda e qualquer peça de equipamento que ele requisitasse.

— E tinha esse laboratório? — questionou Waller.

—Não, na altura—admitiu Raymond.—Uma vez obtida a sua concordância, contactei uma empresa gigante da biotecnologia internacional, que se manterá anónima até que o contrato seja assinado. Com alguma dificuldade, vendi-lhes a ideia de comercializar criativamente este fenómeno.

— E como é que isso é feito? — perguntou Waller. Raymond sentou-se na ponta da cadeira e olhou Waller nos olhos.

—Por um determinado preçonós criamos um duplo imunológico para um cliente — disse ele. — Como pode bem imaginar, é um valor significativo, mas não irrazoável para uma pessoa que pode pagar. Mas a forma como nós fazemos dinheiro, é que o cliente tem de pagar um montante anualmente para manutenção do seu duplo.

— Uma espécie de taxa inicial e depois quotas — disse Waller.

— E uma outra forma de pôr o assunto — concordou Raymond.

— E como é que eu beneficio? — perguntou Waller.

— De inúmeras maneiras — disse Raymond. Eu organizei o negócio tipo comércio em pirâmide. Por cada cliente que recrute, ganha uma percentagem, não só da taxa inicial mas da quota anual. Para além disso, nós sugerimos que recrute outros médicos que estejam nas suas condições, com uma redução de clientes, mas que ainda tenham um número de abastados clientes particulares que se preocupam com a saúde. Receberá uma percentagem sobre os esforços de cada médico por si recrutado. Por exemplo, se se decidir a aderir, o Dr. Levitz, que o recomendou, receberá uma percentagem sobre todos os seus sucessos. Não precisa ser um contabilista para compreender que, com um pequeno esforço, poderá ter um rendimento substancial. E, como incentivo adicional, nós podemos pôr o dinheiro em offshore e assim isento de impostos.

— Porquê tanto segredo? — questionou Waller.

— Por razões óbvias, no que diz respeito às contas offshore — disse Raymond. — Quanto ao programa em si, há uns pormenores de ética que não estão a ser respeitados. Consequentemente, a companhia de biotecnologia, que tornou possível o projecto, é paranóica quanto à má publicidade. Francamente, o uso de animais para efeitos de transplantes ofende certas pessoas, e, é claro, nós não queremos ser obrigados a enfrentar os fanáticos dos direitos dos animais. Mais ainda, isto é uma operação dispendiosa e só poderá ser participada por pessoas rigorosamente seleccionadas. Isso viola o conceito de igualdade.

— Será que posso perguntar quantos clientes estão a beneficiar deste plano?

— Leigos ou médicos? — perguntou Raymond.

— Leigos — respondeu Waller.

— Cerca de uma centena — respondeu Raymond.

— Já alguém teve de utilizar os recursos?

— Na realidade, quatro pessoas — respondeu Raymond. — Foram transplantados dois rins e dois fígados. Todos estão a recuperar lindamente, sem medicação e sem qualquer sinal de rejeição. E, devo acrescentar, há um encargo adicional pela colheita e transplante, e os médicos envolvidos recebem a mesma percentagem sobre estes custos.

— Quantos médicos estão envolvidos? — perguntou Waller.

— Um pouco menos de cinquenta — respondeu Raymond. — Começámos lentamente com o recrutamento, mas agora está a começar a acelerar.

— Há quanto tempo existe o programa? — perguntou Waller.

— Cerca de seis anos — respondeu Raymond. — Tem sido um dispêndio de capital bastante significativo e requereu muito esforço, mas os resultados são razoavelmente notórios, agora. Devo realçar que o doutor está a entrar numa fase relativamente inicial, pelo que colherá maiores benefícios da estrutura da pirâmide.

— Parece interessante — disse Waller. — Deus sabe que um rendimento extra vem mesmo a propósito, agora que o número de clientes está a decair. Tenho de fazer qualquer coisa antes que perca este consultório.

— Seria uma pena — concordou Raymond.

— Poderá dar-me um ou dois dias para reflectir? — perguntou Waller.

Raymond levantou-se. A experiência dizia-lhe que tinha marcado mais um ponto.

— Por favor—disse ele, graciosamente.—Também sugiro que telefone ao Dr. Levitz. Ele deu muito boas referências a seu respeito, e está extraordinariamente satisfeito com o acordo.

Cinco minutos mais tarde, Raymond saiu para o passeio e voltou para o lado sul da Park Avenue. Caminhava com um saltitar exagerado. Com o céu azul, o ar límpido, o cheiro a Primavera, sentia-se no topo do mundo, especialmente com o agradável fluxo de adrenalina, como sempre acontecia perante a perspectiva de um novo recrutamento. Até os inconvenientes desagradáveis dos últimos dois dias pareciam insignificantes. O futuro era brilhante e cheio de promessas.

Mas logo a seguir, sem saber como, ele esteve à beira de um desastre. Embevecido com a sua vitória, Raymond quase saiu da borda do passeio para a frente de um autocarro que passava a toda a velocidade. O vento da deslocação do precipitado veículo fez-lhe voar o chapéu, enquanto a água imunda da sarjeta pulverizou o seu casaco de caxemira.

Raymond cambaleou para trás, estupefacto por ter escapado por um triz ao que poderia ter sido uma horrível morte. Nova Iorque era uma cidade de abruptos extremos.

— Está bem, companheiro? — perguntou-lhe um transeunte. Entregou a Raymond o seu chapéu ameigado.

— Estou bem, obrigado — disse Raymond. Olhou para a frente do casaco e sentiu-se doente. O episódio pareceu-lhe metafórico e trouxe-lhe de novo uma certa ansiedade em relação ao problema do infortunado Franconi. A imundice lembrara-lhe que tinha de falar a Vinnie Dominick.

Sentindo-se punido, Raymond atravessou a rua com muito mais cuidado. A vida estava cheia de ameaças. Enquanto caminhava em direcção à Sixty-fourth Avenue, começou a preocupar-se quanto aos outros dois casos de transplantes. Nunca tinha tomado em consideração o problema que uma autópsia colocava ao seu programa até ao episódio de Franconi.

Imediatamente, Raymond decidiu queseriaconvenienteverificar a situação dos outros pacientes. Não tinha a menor dúvida de que a ameaça de Cabot tinha sido verdadeira. Se um dos pacientes por acaso tivesse de ser autopsiado num futuro, por qualquer razão, e os meios de comunicação tivessem acesso aos resultados, poderia implicar um desastre. A Gensys, provavelmente, desistiria de toda a operação.

Raymond apressou o passo. Um paciente vivia em Nova Jérsia, outro em Dálias. Decidiu que seria melhor telefonar aos respectivos médicos recrutadores.

 

5 DE MARÇO, 1997 - 17:45 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

— Olá! — chamou Candace. — Está alguém em casa?

A mão de Kevin estremeceu devido ao inesperado ruído. Os técnicos do laboratório tinham deixado o trabalho já havia algum tempo, e o laboratório estava em silêncio, excepto pelo suave zumbido das câmaras frigoríficas. Kevin ficara para fazer mais uma análise da mancha sul, para separar os fragmentos do ADN, mas ao ouvir a voz de Candace, ele deixou escapar uma porção das micropipetas. O fluido tinha deslizado sobre a superfície de gel. O teste estava destruído; teria de começar tudo de novo.

— Aqui! — gritou Kevin. Descansou a pipeta e levantou-se. Através dos frascos de reagentes no cimo da prateleira do laboratório via Candace do outro lado do laboratório, à entrada da porta.

— Cheguei em má altura? — perguntou Candace, enquanto se aproximava.

— Não, eu estava mesmo a terminar — respondeu Kevin. Ele esperava não estar a ser muito transparente.

Embora estivesse frustrado pela perda de tempo do processo, Kevin ficou satisfeito ao ver Candace. Durante o almoço naquele dia, arranjara coragem para convidar a Candace e Melanie para um chá na sua casa. Ambas tinham aceite com alacridade. Melanie admitira que sempre estivera curiosa por ver a casa por dentro.

A tarde for a um grande sucesso. Indubitavelmente, o ingrediente-chave para o sucesso da tarde fora o carácter das duas senhoras. Não tinha havido uma única pausa na conversa. Um outro factor que igualmente contribuiu fora o facto de terem preferido vinho ao chá. Como membro de elite da Zona, Kevin recebia regularmente um fornecimento de vinho francês que raramente consumia. Consequentemente, possuía uma impressionante garrafeira.

O tema principal da conversa fora os EUA, o passatempo favorito dos expatriados americanos temporários. Cada um dos três tinha enaltecido e discutido as virtudes da sua terra natal. Melanie adorava Nova Iorque e defendia que era uma classe em si própria. Candace dizia que a qualidade de vida em Pittsburgh era avaliada como sendo das melhores; e Kevin elogiou o estímulo intelectual de Boston. O que eles propositadamente evitaram discutir foi a reacção emocional explosiva de Kevin durante o almoço.

Na altura, tanto Candace como Melanie questionaram o que ele queria dizer por temer ter ultrapassado os limites. Mas não insistiram quando se aperceberam de que Kevin estava bastante transtornado e relutante em explicar. Intuitivamente, elas tinham decidido mudar de assunto, pelo menos por ora.

— Vim ver se consigo arrastá-lo para ir visitar o Sr. Horace Winchester—disse Candace.—Falei-lhe de si, e ele gostaria de lhe agradecer pessoalmente.

— Não sei se será boa ideia! — disse Kevin. Sentia-se tenso.

— Pelo contrário — disse Candace. — Depois daquilo que você disse ao almoço, penso que deveria ver o lado bom do que conseguiu fazer. Lamento que aquilo que eu disse lhe tenha provocado tanto mal-estar.

A observação de Candace foi a primeira referência à explosão de Kevin à hora do almoço desde a sua ocorrência. A pulsação de Kevin acelerou.

— A culpa não foi sua — disse Kevin. — Já estava perturbado antes dos seus comentários.

— Então venha conhecer Horace — disse Candace. — Ele está a ter uma recuperação fantástica. Está tão bem, que de facto não necessita de uma enfermeira de cuidados intensivos como eu.

— Eu não saberia o que dizer — murmurou Kevin.

— Oh, não interessa o que possa dizer — disse Candace. — O homem está tão grato. Há apenas alguns dias, estava tão doente que pensava que ia morrer. Agora, sente-se como se o seu prazo de vida tivesse sido prorrogado. Vamos lá! A visita não poderá deixar de fazer você sentir-se bem.

Kevin esforçou-se por inventar uma desculpa para não ir e foi salvo por uma outra voz. Era Melanie.

— Ah, os meus favoritos companheiros de bebida — disse Melanie, entrando no laboratório. Avistara Candace e Kevin através da fresta da porta. Ia a caminho do laboratório, em baixo, no átrio. Vestia uma longa bata que tinha CENTRO DOS ANIMAIS bordado no bolso do peito.

—Algum de vocês dois está com a ressaca, amigos?—perguntou Melanie. — Eu ainda estou zonza. Meu Deus, nós acabámos com duas garrafas de vinho. Vocês acreditam?

Nem Candace nem Kevin responderam.

Melaníe olhou para um e para outro. Ela pressentia que algo estava mal.

— Que é isto... uma vigília? — perguntou ela.

Candace sorriu. Ela adorava a irreverência espontânea de Melanie.

— Quase — disse Candace. — Kevin e eu estávamos numa encruzilhada. Eu estava a tentar convencê-lo a ir ao hospital conhecer o Sr. Winchester. Ele já saiu da cama e sente-se feliz. Falei-lhe de vocês dois, e ele gostaria de vos conhecer.

— Ouvi dizer que ele é proprietário de uma rede de hotéis — disse Melanie com um piscar de olho. — Ei, talvez pudéssemos arranjar alguns vouchers extra para bebidas.

—Tão agradecido e tão saudável como ele está, podem conseguir mais do que isso — disse Candace. — O problema é que Kevin não quer ir.

— E porquê não, pá? — perguntou Melanie.

— Pensei que lhe faria bem ver o lado bom do seu feito — acrescentou Candace.

Candace piscou o olho a Melanie. Melanie compreendeu imediatamente a intenção de Candace.

— Sim — disse Melanie. — Vamos receber feedback positivo de um paciente real, vivo. Isso deverá justificar todo este trabalho árduo e poderá recarregar as nossas baterias.

— Penso que me fará sentir pior — disse Kevin. Desde que voltara ao seu laboratório, tinha estado concentrado em pesquisas básicas para evitar enfrentar os seus receios. A ocupação tinha resultado até certo ponto, até que a sua curiosidade o levou a localizar o gráfico da ilha Francesca no terminal de computador. Brincar com a base de dados tivera um efeito tão mau como o fumo.

Melanie colocou as mãos nas ancas.

— Porquê? — perguntou ela. — Não compreendo!

— É difícil de explicar — disse Kevin, evasivamente.

— Tenta — desafiou Melanie.

— Porque vê-lo, far-me-á lembrar coisas que estou a tentar não pensar — disse Kevin. — Como o que aconteceu ao outro paciente.

— Queres dizer o seu duplo, o bonobo? — perguntou Melanie. Kevin fez um sinal de assentimento com a cabeça. O seu rosto

estava agora afogueado, quase tanto como na cantina.

—Você está a tomar este assunto dos direitos dos animais ainda mais a sério do que eu — observou Candace.

—Receio que isto vá para além dos direitos dos animais—disse Kevin.

Houve um silêncio tenso. Melanie olhou bruscamente para Candace. Candace encolheu os ombros, sugerindo que não compreendia.

—Okay. Agora basta!—disse Melanie, tomando uma resolução repentina. Aproximou-se de Kevin, pôs-lhe ambas as mão nos ombros, e fê-lo sentar-se na banqueta do laboratório.

—Até esta tarde eu pensava que éramos apenas colegas—disse ela. Inclinou-se sobre ele e pôs o seu rosto de traços penetrantes junto ao do Kevin. — Mas agora eu sinto de um modo diferente. Comecei a conhecer-te um pouco melhor, o que devo dizer que gostei, e já não te julgo gélido, arrogante e um intelectual snobe. Na realidade, penso que somos amigos. Estou correcta?

Kevin anuiu com a cabeça. Ele era obrigado a olhar para os olhos de Melanie, pretos como granito.

— Amigos falam uns com os outros — disse Melanie. — Comunicam. Não escondem os seus sentimentos e não fazem os outros se sentirem constrangidos. Compreendes o que estou a dizer?

— Penso que sim — disse Kevin. Nunca tinha considerado a ideia de que o seu comportamento pudesse fazer que os outros se sentissem constrangidos.

— Penso que sim — ralhou Melanie. — Como poderei explicar para que tu de facto o entendas!

Kevin engoliu em seco.

— Eu acho que compreendo. Melanie revirou os olhos de frustração.

—Tu és tão evasivo, que me pões louca. Mas está bem; eu cá me aguento. O que não aguento é a tua explosão ao almoço. E quando tentei perguntar-te o que se passava, fizeste um comentário vago sobre “ultrapassar limites” e depois calaste-te, incapaz de falar sobre isso. Não podes deixar de despejar, o que quer que esteja a magoar-te Só vais sair magoado e vais impedir a camaradagem.

Candace acenou com a cabeça em sinal de acordo com tudo o que Melanie tinha proferido.

Kevin olhava ora para uma, ora para a outra das duas desinibidas e determinadas mulheres. Por muita resistência que ele oferecesse para exprimir os seus receios, naquele momento sentia que não tinha muita opção, especialmente com o rosto de Melanie apenas a uns centímetros do seu. Sem saber como começar, balbuciou:

— Tenho visto fumo a sair da ilha Francesca.

— Que é a ilha Francesca? — interrogou Candace.

— E a ilha para onde vão os bonobos transgénicos uma vez atingidos os três anos de idade—disse Melanie. — E, então, que se passa como o fumo?

Kevin ergueu-se e fez-lhes sinal para o seguirem. Dirigiu-se para a secretária. Com o dedo indicador apontou para a janela em direcção à ilha Francesca.

— Eu já vi o fumo três vezes — disse ele. — E sempre no mesmo sítio, justamente à esquerda da encumeada de rocha calcária. É apenas um pequeno caracol serpenteando em direcção ao céu, mas persiste.

Candace semicerrou os olhos. Ela via ligeiramente mal, mas, por questões de vaidade, não usava óculos.

— É a ilha mais distante? — perguntou ela. Conseguia apenas vislumbrar uma mancha acastanhada na crista da ilha que bem poderia ser uma rocha. Com a luminosidade do entardecer, as outras ilhas da cadeia pareciam pequenos outeiros de um tom verde-escuro.

— É essa mesmo — disse Kevin.

— Então, grande coisa! — comentou Melanie. — Duas fogueirinhas. Com todas as descargas eléctricas atmosféricas que tem havido, não admira.

— Isso foi o que sugeriu Bertram Edwards — disse Kevin. — Mas não pode ser dos raios.

— Quem é Bertram Edwards? — perguntou Candace.

— Por que não pode ser dos raios? — perguntou Melanie, ignorando a pergunta de Candace.—Talvez haj a algum minério na encumeada.

— Já alguma vez ouviste a expressão que o raio nunca atinge o mesmo lugar duas vezes? — interrogou Kevin. — O fogo não é das descargas eléctricas. Além disso, o fumo persiste e nunca se moveu.

— Talvez vivam lá alguns nativos — disse Candace.

—A Gensys certificou-se de que não havia lá ninguém antes de escolher a ilha — disse Kevin.

—Talvez seja a visita de alguns pescadores—sugeriu Candace.

— Todas as pessoas daqui sabem que é proibido — disse Kevin. — Segundo uma nova lei equatoguineense sofreriam de uma pena capital. Não há lá nada por que valha a pena morrer.

— Então, quem fez as fogueiras? — perguntou Candace.

— Por Deus, Kevin! — exclamou Melanie, subitamente. — Estou a começar a perceber onde tu queres chegar. Mas deixa-me dizer-te que é prepóstero.

—Que é prepóstero?—perguntou Candace.—Será que alguém me dá uma ideia do que se passa?

—Deixem-me mostrar-lhes uma coisa—disse Kevin. Voltou-se para o terminal de computador e, carregando em algumas teclas, obteve o gráfico da ilha. Explicou-lhes o sistema e, para demonstrar, localizou o duplo de Melanie. Uma minúscula luz vermelha cintilou a norte da escarpa, muito perto do local onde a luz do seu duplo piscara no dia anterior.

— Vocês têm um duplo? — interrogou Candace. Estava estupefacta.

— Kevin e eu fomos as cobaias — disse Melanie. — Os nossos duplos foram os primeiros. Tivemos de provar que a tecnologia realmente funcionava.

—Pronto, agora que vocês duas sabem como o sistema funciona

— disse Kevin —, deixem-me mostrar-lhes o que eu fiz há cerca de uma hora, e veremos se eu obtenho os mesmos resultados assustadores.—Os dedos de Kevin correram pelo teclado. — O que eu estou a fazer é dar instruções para que o computador me mostre automaticamente todos os setenta e três duplos em sequência. Os números das criaturas vão aparecer no canto, seguidos de uma luz a piscar no gráfico. Agora observem! — Kevin deu um clique para começar.

O sistema funcionava suavemente com apenas um breve intervalo entre o aparecimento do número e o piscar da luz vermelha.

— Pensava que havia muito perto de uma centena de animais

— disse Candace.

— Há — respondeu Kevin —, mas vinte e dois deles têm menos de três anos. Estão na cerca dos bonobos, no centro dos animais.

— Pronto—disse Melanie, depois de observar o funcionamento do computador durante alguns minutos. — Funciona tal como disseste. Que há de tão assustador?

— Aguarda um momento — disse Kevin. Imediatamente, o número 37 apareceu mas a luz não cintilava.

Depois de alguns momentos, um brilho súbito apareeeu no ecrã. Dizia: “Animal não localizado. Dê um clique para recomeçar.” Melanie olhou para Kevin.

— Onde está o número trinta e sete? Kevin suspirou.

—O que resta está no incinerador—disse ele.—Número trinta e sete era o duplo do Sr. Winchester. Mas não era isso que eu vos queria mostrar. — Kevin deu um clique e o programa recomeçou. Depois parou novamente no quarenta e dois.

— Era o duplo do Sr. Franconi? — interrogou Candace. — O outro transplante de fígado?

Kevin abanou a cabeça. Carregou em várias teclas, ordenando ao computador a identificação do número quarenta e dois. Apareceu o nome Warren Prescott.

— Então, onde está o número quarenta e dois? — perguntou Melanie.

— Não sei bem, mas sei o que temos — disse Kevin. Kevin deu novo clique e novamente números e luzes apareceram alternadamente no ecrã.

Quando todo o programa chegou ao fim, concluíram que não havia indícios de sete dos bonobos duplos, sem incluir o do Franconi, que já fora sacrificado.

—Foi isto que encontraste anteriormente?—interrogou Melanie.

Kevin acenou com a cabeça.

— Mas não eram sete, mas sim doze. E embora alguns dos que estavam em falta esta manhã continuem a faltar, a maioria deles reapareceu.

— Não compreendo — disse Melanie. — Como é que pode ser?

— Quando eu dei uma volta pela ilha antes de tudo isto começar — disse Kevin —, lembro-me de ter visto algumas grutas na encosta de rocha calcária. O que estou a pensar é que as nossas criações vão para as grutas, talvez mesmo vivam lá. É a única explicação que me ocorre para que alguns deles não sejam detectados na grelha.

Melanie levantou a mão e levou-a à boca. Os seus olhos reflectiam um cintilar de horror e desânimo.

Candace notou a reacção de Melanie.

— Ei, vamos lá companheiros — suplicou ela. — Que se passa? Que estão vocês a pensar?

Melanie baixou a mão. Os seus olhos estavam fixos nos de Kevin.

—O que Kevin se referia quando disse que temia ter ultrapassado os limites — explicou ela numa voz deliberadamente lenta — era o medo de ter criado um ser humano.

— Não estão a falar a sério! — exclamou Candace, mas um relance de olhos para Kevin e depois para Melanie fê-la compreender que era mesmo a sério.

Durante um bom minuto ninguém falou. Finalmente, Kevin quebrou o silêncio.

— Estou a sugerir que, inadvertidamente, eu criei uma espécie de proto-humanos. Talvez qualquer coisa semelhante aos nossos longínquos antepassados que espontaneamente apareceram na natureza a partir de animais tipo macacos há quatro ou cinco milhões de anos. Talvez nessa altura, as mutações críticas responsáveis pela mudança ocorressem nos genes de desenvolvimento, que eu mais tarde descobri estarem no segmento curto do cromossoma seis.

Candace apercebeu-se de que olhava através da janela para o vazio, enquanto na sua mente se desenrolavam as cenas de dois dias antes na SÓ, quando um dos bonobos estava prestes a ser submetido à anestesia. Ele produzira uns sons muito semelhantes aos de um ser humano, e desesperadamente tentava libertar as patas dianteiras para poder continuar a fazer os mesmos gestos selvagens. Estivera constantemente a abrir e a fechar os dedos e depois passava vigorosamente as patas pelo corpo.

— Estás a falar de alguma criatura primitiva tipo hominídeo, qualquer coisa na ordem do Homo Erectus — disse Melanie. — É verdade que os bonobos bebés transgénicos tinham a tendência de caminhar erectos, mais do que as suas mães. Na altura, achámos que era muito interessante.

— Não é um hominídeo tão primitivo que não tenha usado lume — disse Kevin. — Só o verdadeiro homem primitivo teve de usar lume. E é isso que eu receio ter visto na ilha: fogueiras.

— Então, posto friamente — disse Candace, saindo da janela, temos um bando de homens das cavernas lá, tal como nos tempos pré-históricos.

—Uma coisa semelhante—disse Kevin. Conforme já esperava, estavam ambas horrorizadas. Estranhamente, ele, na realidade, sentia-se melhor agora que tinha exteriorizado as suas ansiedades.

—Que vamos fazer?—quis saber Candace.—Eu de certeza não me vou envolver em mais sacrifícios até que isto esteja resolvido para um lado ou para outro. Já me sentia suficientemente mal com a situação quando pensava que a vítima era uma macaco.

— Espera um segundo — disse Melanie. Ela pôs a mão aberta no ar, com os dedos afastados. Os seus olhos brilhavam de novo. — Talvez estejamos aqui a tirar conclusões precipitadas. Não temos provas de nada disto. Tudo o que temos estado aqui a falar é meramente circunstancial.

—Verdade, mas há mais—disse Kevin. Voltou-se de novo para o computador e deu instruções para que aparecesse simultaneamente no ecrã a localização de todos os bonobos da ilha. Dentro de segundos, duas manchas vermelhas começaram a pulsar. Uma era no local onde o duplo da Melanie tinha estado. O outro era a norte do lago. Kevin olhou para Melanie. — Na tua opinião, que é que esta informação sugere?

— Sugere que há dois grupos — disse ela. — Achas que é permanente?

—Anteriormente apareceu o mesmo—disse Kevin. —Acho que é um verdadeiro fenómeno. Até Bertram mencionou esse facto. Não é típico dos bonobos. Eles vivem em grupos sociais maiores do que os dos chimpanzés, além disso, estes são animais muito mais jovens. Deviam estar num único grupo.

Melanie acenou com a cabeça. Nos últimos cinco anos tinha aprendido muito sobre o comportamento dos bonobos.

— E há mais qualquer coisa perturbante — disse Kevin. — Bertram disse-me que um dos bonobos matou um dos pigmeus quando retiraram o duplo do Winchester. Não foi acidente. O bonobo atirou apedra agressivamente. Essa espécie de agressividade está mais associada com o comportamento humano do que com o dos bonobos.

—Tenho de concordar contigo—disse Melanie.—Mas continua a ser circunstancial. Tudo isso.

— Circunstancial ou não — disse Candace —, não quero ficar com isto na minha consciência.

— Eu sinto o mesmo — disse Melanie. — Passei hoje o dia a incubar duas bonobos fêmeas segundo o protocolo da colecção do óvulo. Não prosseguirei sem descobrirmos se esta ideia selvagem acerca dos possíveis proto-humanos é válida ou não.

— Não será fácil — disse Kevin. — Para conseguirmos provar, alguém teria de ir à ilha. O problema é que há apenas duas pessoas que podem autorizar uma visita: Bertram ou Siegfried Spallek. Já tentei falar a Bertram, e, embora eu tivesse levantado o problema do fumo, ele deixou bem claro que ninguém estava autorizado a ir à ilha, excepto o pigmeu que lhes leva a ração suplementar.

— Não lhe falaste do que te preocupa? — interrogou Melanie.

— Não em tantas palavras — disse Kevin. — Mas ele sabia. Tenho a certeza. Não estava interessado. O problema é que ele e Siegfried também recebem comissão do projecto. Por conseguinte, hão-de fazer tudo para que nada ameace o projecto. São suficientemente mercenários para não quererem saber nada do que se passa na ilha. Para além de ser mercenário, há que considerar a sociopatia de Siegfried.

— Ele é assim tão mau? — questionou Candace. — Ouvi uns rumores.

— O que quer que tenhas ouvido, ele deve ser dez vezes pior — disse Melanie. — Ele é o sórdido-mor. Só para dar um exemplo, ele executou alguns miseráveis equatoguineenses porque os apanhou a caçar ilicitamente na Zona, onde ele próprio gosta de caçar.

— Ele próprio os matou? — interrogou Candace, chocada e com repulsa.

— Não ele — disse Melanie. — Levou-os a julgamento num tribunal de cangurus aqui no Cogo. Eles depois foram fuzilados por um grupo de soldados equatoguineenses num campo de futebol.

— E para juntar o insulto à injúria — disse Kevin —, ele pôs os crânios na secretária como taças para guardar coisas.

— Lamento ter perguntado — disse Candace com um calafrio.

— E o Dr. Lyons? — perguntou Melanie. Kevin riu-se.

— Esquece. Ele é mais mercenário do que Bertram. Toda esta operação é obra dele. Tentei falar-lhe do fumo, também. Ainda foi menos receptivo. Disse que era tudo imaginação minha. Com franqueza, não confio nele, embora eu tenha de lhe dar crédito por ser generoso no que diz respeito a bons fornecimentos. Ele certificou-se de que todas as pessoas ligadas ao projecto recebiam uma boa fatia da parada, em particular Bertram e Siegfried.

— Então, quer dizer que agora é connosco — disse Melanie. — Vamos descobrir se é ou não imaginação tua. Que dizem de nós três fazermos um excursão rápida à ilha Francesca?

— Estás a brincar!—disse Kevin.—É um crime capital, ir sem autorização.

—É um crime capital para os locais—disse Melanie.—Isso não pode aplicar-se a nós. No nosso caso, Siegfried tem de prestar contas à Gensys.

—Bertram, expressamente, proibiu as visitas—disse Kevin. — Ofereci-me para lá ir, e ele disse que não.

— Bem, grande façanha!—disse Melanie. — Que fique furioso. Que é que ele pode fazer, despedir-nos? Já estou aqui há tanto tempo que isso pouco me incomoda. Além disso, eles não passam sem ti. Isso é que é a realidade.

— Acham que poderá ser perigoso? — perguntou Candace. —Os bonobos são criaturas pacíficas—disse Melanie.—Muito

mais do que os chimpanzés, e os chimpanzés não são perigosos a não ser que sejam confrontados com dificuldades — disse Melanie.

— E o homem que foi morto? — perguntou Candace.

— Isso foi durante uma recolha — disse Kevin. — Tiveram de se aproximar bastante para dispararem um arma de setas. Era, também, a quarta recolha.

— O que queremos fazer é apenas observar — disse Melanie.

— Está bem, como é que se vai para lá? — perguntou Candace.

— De carro, suponho — disse Melanie. — É o que eles fazem quando vão largar ou recolher algum. Deve haver uma espécie de ponte.

— Há uma rua para leste ao longo da costa — disse Kevin. — Está pavimentada até à aldeia dos nativos, depois transforma-se num atalho. Foi assim que eu visitei a ilha quando iniciámos o programa. Durante uns cerca de trinta metros a ilha e o continente são separados apenas por um canal com nove metros de largura. Nessa altura, havia uma ponte de ferro suspensa, presa a duas árvores de mogno.

— Talvez possamos avistar os animais sem ir ao outro lado — disse Candace. — Vamos lá, então.

— Vocês, minhas senhoras, são atrevidas — observou Kevin.

— Nem por isso — disse Melanie. — Mas não vejo nenhum problema em ir até lá e verificar a situação. Quando soubermos o que se passa, poderemos melhor decidir o que fazer.

— Quando querem ir? — interrogou Kevin.

— Eu diria já—respondeu Melanie. Ela olhou para o relógio. — Não há melhor altura. Noventa por cento da população da cidade ou está no Huty da marginal, padejando na piscina, ou está a transpirar a potes no centro de atletismo.

Kevin suspirou, deixou os braços caírem sem energia e rendeu-se.

— Que carro levamos? — perguntou ele.

— O teu — disse Melanie, sem hesitação. — O meu nem tem tracção às quatro rodas.

Enquanto o trio descia as escadas e se dirigia para o escaldante terraço que cobria o parque de estacionamento, Kevin teve um pressentimento de que estava a cometer um erro. Mas, perante a resolução das senhoras, ele sentia receio em exteriorizar as suas reservas.

Na saída leste da cidade, passaram pelo campo de ténis do centro de atletismo, que estava a abarrotar de jogadores. Entre a humidade e o calor, os jogadores pareciam estar tão ensopados como se tivessem mergulhado numa piscina com os seus fatos de treino.

Kevin conduzia. Melanie sentou-se no banco da frente, enquanto Candace se sentou atrás. As janelas estavam todas abertas, visto que a temperatura tinha descido para os quarenta. O Sol estava a descer a leste, justamente por detrás deles e espreitava por entre as nuvens ao longo do horizonte.

Logo atrás do campo de futebol, a vegetação fechava-se à volta da estrada. Pássaros de cores vivas adejavam dentro e fora da intensa sombra. Grandes insectos aniquilavam-se no pára-brisas como pilotos suicidas em miniatura.

— A mata parece densa — disse Candace. Ela nunca tinha ido para leste da cidade.

— Não fazes ideia — disse Kevin. Quando ele chegou à Zona tentou fazer longas caminhadas na área, mas com a profusão de videiras e trepadeiras, era quase impossível sem uma machete.

— Acabo de ter uma ideia sobre o assunto da agressão — disse Melanie. — A passividade da sociedade dos bonobos é em geral atribuída ao seu carácter matriarcal. Devido à procura desproporcionada de duplos masculinos, o nosso programa tem uma população que é sobretudo masculina. Deve haver muita competição pelas poucas fêmeas.

— É um bom argumento — concordou Kevin. Ele perguntava-se por que é que Bertram não tinha pensado nisso.

— Parece que é o meu género—gracejou Candace.—Talvez eu deva marcar as minhas próximas férias na ilha Francesca em vez do Clube Mediterrané.

Melanie riu-se.

— Vamos juntas — disse ela.

Passaram por vários equatoguineenses que vinham do trabalho no Cogo, a caminho de casa. A maioria das mulheres levava bilhas e pacotes na cabeça. Os homens em geral iam de mãos vazias.

—É uma cultura estranha—comentou Melanie.—As mulheres fazem quase todo o trabalho: cuidam dos campos e dos filhos, carregam a água, cozinham e tomam conta da casa.

— Que fazem os homens? — perguntou Candace.

— Sentam-se e discutem metafísica — disse Melanie.

— Tive uma ideia — disse Kevin. — Não sei por que não me ocorreu antes. Talvez pudéssemos primeiro falar ao pigmeu que leva a comida à ilha, e ouvir o que ele tem para dizer.

— Parece-me uma boa ideia — disse Melanie. — Sabes o nome dele?

— Alphonse Kimba — disse Kevin.

Quando chegaram à aldeia dos nativos, pararam em frente a um movimentado armazém e saíram. Kevin entrou para pedir informações do pigmeu.

— Este lugar é quase demasiado encantador — disse Candace, olhando à sua volta. — Parece africano, mas é o género de coisa que se vê na Disneylândia.

A Gensys construíra a aldeia com a cooperação do Ministério do Interior Equatoguineense. As casas eram circulares, com tijolos de lama, caiadas de branco e telhados de palha. Os currais para os animais domésticos eram feitos de tapetes de junco atados a estacas de madeira. As estruturas pareciam tradicionais, mas eram todas novas e estavam imaculadamente limpas. Também tinham electricidade e água canalizada. Os cabos de electricidade e esgotos estavam soterrados.

Kevin voltou logo.

—Não há problema—disse ele.—Ele vive aqui perto. Venham, vamos a pé.

A aldeia regurgitava com homens, mulheres e crianças. As fogueiras tradicionais para cozinhar começavam a ser acendidas. Todas as pessoas pareciam felizes e afáveis por terem sido libertadas recentemente do cativeiro da interminável estação chuvosa.

Alphonse Kimba media menos de um metro e meio, com pele escura como o ónix. Um sorriso constante dominava o seu largo rosto achatado enquanto dava as boas-vindas aos inesperados visitantes. Tentou apresentar a mulher e os filhos, mas eles eram tímidos e encolhiam-se na sombra.

Alphonse convidou os seus hóspedes a sentarem-se nos tapetes de junco. Depois, foi buscar quatro copos e, pegando numa garrafa verde que antes contivera óleo para motores, deitou, em cada um deles, uma porção de um fluido transparente.

Os visitantes, cautelosamente, fizeram rodopiar o copo. Não queriam dar a impressão de mal-agradecidos, mas estavam com relutância em beber.

— Álcool? — perguntou Kevin.

—É, sim—disse Alphonse. O seu sorriso alargou-se.—É lotoco de milho. Muito bom! Trago da minha casa em Lomako. — Sorveu o fluido com intenso prazer. Ao contrário dos equatoguineenses, o inglês de Alphonse tinha um sotaque francês, não espanhol. Era membro da tribo Mongandu, do Zaire. Viera para a Zona com o primeiro carregamento de bonobos.

Uma vez que a bebida continha álcool, que presumivelmente mata potenciais microorganismos, os convidados prudentemente provaram a infusão. Todos fizeram uma carranca apesar do esforço para o não fazerem. A bebida era extremamente picante.

Kevin explicou que tinham vindo para falar dos bonobos da ilha. Ele não mencionou a preocupação de que havia alguns proto- humanos. Apenas perguntou se Alphonse achava que eles se comportavam como os bonobos lá na terra dele, na província do Zaire.

— Eles são todos muito jovens—disse Alphonse.—Por isso são muito travessos e rebeldes.

— Vai à ilha muitas vezes? — perguntou Kevin.

— Não, estou proibido — disse Alphonse. — Só quando recolhemos ou vamos lá pôr algum, e, mesmo assim, é com o Dr. Edwards.

— Como é que leva a comida suplementar à ilha? — perguntou Melanie.

—Há um pequeno flutuador—disse Alphonse.—Eu puxo-o na água com uma corda, depois puxo de novo para lá!

— Os bonobos são agressivos com a comida ou eles partilham-na? — perguntou Melanie.

— Muito agressivos — disse Alphonse. — Eles lutam como doidos, em especial por causa da finita. Eu também vi um deles matar um macaco.

— Porquê? — perguntou Kevin.

— Penso que para comer — disse Alphonse. — Ele levou-o, depois da comida que eu lhes dei ter desaparecido.

— Isso parece mais típico dos chimpanzés — disse Melanie a Kevin.

Kevin concordou com um aceno da cabeça.

—Em que ponto da ilha têm feito as recolhas?—perguntou ele.

— Têm sido todos neste lado do lago e do rio — disse Alphonse.

— Nunca fizeram nenhuma no outro lado, na encosta? — perguntou Kevin.

— Não, nunca — respondeu Alphonse.

— Como é que vai para a ilha para a recolha? — perguntou Kevin. — Toda a gente usa o flutuador?

Alphonse riu-se com vontade. Ele teve de secar os olhos com as costas das mãos.

— O flutuador é muito pequeno, íamos ser todos ceia para os crocodilos. Usamos a ponte.

— Por que não usam a ponte para a comida? — perguntou Melanie.

— Porque o Dr. Edwards tem de mandar alongar a ponte — disse Alphonse.

— Alongar? — disse Alphonse.

— Alongar? — questionou Melanie.

— Sim — disse Alphonse.

Os três convidados trocaram os olhares. Estavam confusos.

— Viu fogueiras na ilha? — perguntou Kevin, mudando de assunto.

— Nada de fogueiras — disse Alphonse. — Mas vi fumo.

— E que é que pensou?

— Eu? — questionou Alphonse. — Não pensei nada.

— Alguma vez viu uni dos bonobos fazer isto? — perguntou Candace. Ela abriu e fechou os dedos e depois, bruscamente, passou os braços pelo corpo, imitando o bonobo na sala de operações.

—Sim, senhora—disse Alphonse.—Muitos fazem isso quando acabam de dividir a comida.

—E quanto ao barulho?—perguntou Melanie.—Eles produzem muitos sons?

— Muitos — disse Alphonse.

— Como os bonobos lá do Zaire? — perguntou Kevin.

— Mais — disse Alphonse. — Mas lá no Zaire eu não via tantos bonobos como vejo aqui, e não lhes dava comida. Lá, eles procuram a comida na selva.

— Que espécie de barulho fazem eles?—perguntou Candace. — Pode dar-nos um exemplo?

Alphonse riu-se, um pouco envergonhado. Olhou em volta para se certificar de que a mulher não estava a ouvir. Depois, muito suavemente vocalizou:

— Em, ba da, lu lu, tad lat. — Riu-se outra vez. Estava embaraçado.

— Eles apupam como os chimpanzés? — perguntou Melanie.

— Alguns — disse Alphonse.

Os visitantes olharam uns para os outros. Não tinham mais perguntas de momento. Kevin levantou-se. As duas fizeram o mesmo. Agradeceram a Alphonse pela hospitalidade e entregaram-lhe os copos ainda com a bebida. Se Alphonse ficou ofendido, não revelou. O seu sorriso não esmoreceu.

— Há outra coisa — disse Alphonse, antes dos visitantes partirem. — Os bonobos na ilha gostam de se exibir. Sempre que eles vêm buscar comida, põem-se de pé.

— Sempre? — perguntou Kevin.

— A maior parte do tempo — respondeu Alphonse.

O grupo caminhou através da aldeia até ao carro. Não falaram até que Kevin tivesse ligado o motor.

— Bem, que é que vocês pensam? — perguntou Kevin. — Continuamos? O Sol já se pôs.

— Eu voto sim — disse Melanie. — Já que viemos até aqui...

— Concordo — disse Candace. — Estou curiosa por ver essa ponte que cresce.

Melanie riu-se.

— Eu também. Que homem encantador.

Kevin afastou-se do armazém, que estava agora com mais movimento do que antes. Mas não tinha a certeza da direcção que devia tomar. A rua que levava à aldeia expandia-se, dando lugar à área de estacionamento da loja, e não havia qualquer indicação de um trajecto que levasse mais a leste. Para encontrá-lo, tiveram de dar a volta ao estacionamento. Uma vez estando no caminho, ficaram impressionados com a diferença entre o pavimento anterior e este. Era um atalho estreito, lamacento e com covas. Havia erva com cerca de três pés de altura na faixa central. Frequentemente, havia ramos de árvore que se estendiam de um lado ao outro, batiam no pára-brisas e enfiavam-se através das janelas abertas. Para evitar serem atingidos pelos impertinentes ramos, tiveram de fechar os vidros das janelas. Kevin ligou o ar condicionado e as luzes. O feixe luminoso reflectia-se na vegetação e dava a impressão de estarem a conduzir através de um túnel.

— Quanto temos de andar neste atalho de vacas?—perguntou Melanie.

— Apenas três ou quatro milhas — respondeu Kevin.

— É bom termos um jipe — observou Candace. Ela segurava-se com firmeza e mesmo assim baloiçava de um lado para outro. O cinto de segurança pouco ajudava. — A última coisa que eu queria era ficar aqui entalhada. — Olhou através da janela para o negrume da mata e teve um calafrio. Era medonho. Não conseguia ver nada apesar das manchas luminosas no céu. E depois havia o barulho. Justamente durante a curta visita a Alphonse, as criaturas noctívagas da selva tinham começado o seu alto e monótono coro.

— Que acham das coisas que Alphonse disse? — perguntou, finalmente, Kevin.

— Eu diria que o júri ainda está fora — disse Melanie. — Mas eles ainda estão a deliberar.

—Eu penso que o comentário dele de que os bonobos são bípedes quando vêm buscar a comida é muito inquietante — disse Kevin.

— As provas circunstanciais estão a aumentar.

— A sugestão de que eles estão a comunicar impressionou-me — disse Candace.

—Sim, mas aos chimpanzés e gorilas foi-lhes ensinado linguagem gestual—disse Melanie.—E nós sabemos que os bonobos são mais bípedes do que qualquer macaco. O que me impressionou foi o comportamento agressivo, embora eu mantenha a opinião de que poderá ser devido ao nosso erro de não termos produzido mais fêmeas para manter o balanço.

— Os chimpanzés conseguem produzir os sons que Alphonse tentou imitar? — perguntou Candace.

—Penso que não—disse Kevin.—E isso é um ponto importante. Isso talvez sugira que as laringes são diferentes.

— E os chimpanzés realmente matam macacos? — perguntou Candace.

— Sim, ocasionalmente — disse Melanie. — Mas nunca ouvi falar que um bonobo matasse.

— Aguentem-se! — gritou Kevin, enquanto travava.

O carro guinou sobre um tronco atravessado no caminho.

— Estás bem? — perguntou ele a Candace, enquanto olhava através do retrovisor.

— Não há problema — disse Candace, embora tivesse sido severamente sacudida. Felizmente, o cinto de segurança tinha funcionado e evitou que a cabeça batesse no tecto.

Kevin afrouxou consideravelmente com receio de encontrar outro tronco. Quinze minutos mais tarde, encontraram uma clareira que marcava o fim do caminho. Kevin parou. Directamente em frente, o feixe luminoso dos faróis iluminava a fachada de uma construção de blocos de escória, de um piso só, com uma porta de garagem.

— Será isto? — questionou Melanie.

—Suponho—disse Kevin.—Esta construção é nova para mim.

Kevin desligou o motor e as luzes. Como a clareira era aberta até ao céu havia luminosidade suficiente. Por momentos, ninguém se moveu.

— Qual é a ideia? — perguntou Kevin. — Vamos verificar ou quê?

— Já agora — disse Melanie. — Viemos até aqui. — Ela abriu a porta e saiu do carro. Kevin fez o mesmo.

— Penso que vou ficar no carro — disse Candace.

Kevin foi até à construção e experimentou a porta. Estava trancada. Ele encolheu os ombros.

— Não faço ideia o que possa estar aqui! — Kevin bateu com a mão na testa para matar um mosquito.

— Como é que se vai para a ilha? — perguntou Melanie. Kevin apontou para a direita.

— Há uma vereda ali adiante. São apenas quarenta a cinco metros até à margem.

Melanie olhou para o céu. Era num tom de alfazema-claro.

— Vai escurecer em breve. Tens uma lanterna no carro?

— Penso que sim — disse Kevin. — Mais importante ainda, tenho mata-mosquitos. Vamos ser comidos vivos se não o usarmos.

Voltaram para o carro. Assim que chegaram, Candace saltou.

— Não consigo ficar aqui sozinha — disse ela. — É demasiado amedrontante.

Kevin tirou o mata-mosquitos. Enquanto elas se enchiam do produto, ele procurava a lanterna. Encontrou-a no porta-luvas.

Depois de deitar o produto em si próprio, Kevin fez sinal para que Melanie e Candace o seguissem.

— Mantenham-se juntas — disse ele. — Os hipopótamos e os crocodilos saem fora de água à noite.

— Ele está a brincar? — perguntou Candace a Melanie.

— Penso que não — respondeu Melanie.

Logo que entraram na vereda, a luz decaiu consideravelmente, embora ainda estivesse suficientemente claro para conseguirem caminhar sem lanterna. Kevin liderava enquanto as duas seguiam bem juntas atrás. Quanto mais se aproximavam da água, mais alto se tomava o coro dos insectos e das rãs.

—Como é que eu me meti nisto?—perguntava Candace.—Não sou nada pessoa de andar ao ar livre. Nem consigo conceber a ideia de um crocodilo ou hipopótamo fora do jardim zoológico. Caramba, qualquer percevejo maior do que a minha unha do polegar aterroriza-me, e aranhas... nem falar.

Repentinamente, houve um estrondo à esquerda. Candace deu um grito abafado, enquanto se agarrava ao braço de Melanie, que por sua vez também gritava. Kevin lamuriou e acendeu a lanterna. Apontou a lanterna na direcção do barulho mas o feixe de luz só atingia uma curta distância.

— Que foi aquilo? — quis saber Candace, quando conseguiu recuperar a fala.

— Talvez seja um duiquer — disse Kevin. — São uma raça de antílopes pequenos.

— Antílope ou elefante — disse Candace. — Assustou-me!

— Também me assustou — disse Kevin. — Talvez seja melhor irmos para trás e depois voltarmos cá de dia.

— Valha-me Deus, já viemos até aqui... — disse Melanie. — Estamos lá. Já ouço a água.

Durante um momento ninguém se moveu. Certamente que ouviam a água a chapinhar na margem.

— Que aconteceu a todas as criaturas noctívagas?—perguntou Candace.

— Boa pergunta — disse Kevin. — O antílope também deve tê-las assustado.

— Desliga a lanterna — disse Melanie.

Logo que Kevin a apagou, todos conseguiram ver o tremeluzir da água através da vegetação. Parecia prata líquida.

Melanie conduziu-os pelo caminho enquanto o coro das criaturas noctívagas recomeçou. A vereda abriu-se numa outra clareira à beira do rio. No meio da clareira havia um objecto escuro quase do tamanho da garagem onde eles tinham deixado o carro. Kevin dirigiu-se para lá. Não foi difícil conseguir ver o que era: a ponte.

— É um mecanismo telescópico — disse Kevin. — Foi por isso que Alphonse disse que ela crescia.

A cerca de nove metros do outro lado da água lá estava a ilha Francesca. Na luz que se desvanecia, a sua vegetação parecia ser do tom azul da meia-noite. Directamente em frente da ponte telescópica havia uma estrutura de cimento armado que servia de suporte à ponte quando estava desdobrada. Para além disso, havia uma vasta clareira que se estendia para leste.

— Tenta alongar a ponte — sugeriu Melanie.

Kevin ligou a lanterna. Encontrou o painel de controlo. Havia dois botões: um vermelho outro verde. Puxou o vermelho. Quando nada aconteceu, puxou o verde. Continuou a náo obter qualquer reacção, até que notou uma fechadura cuja ranhura estava na posição “desligado”.

— É preciso uma chave — disse ele em voz alta. Melanie e Candace tinham ido até à beira de água.

— Há um pouco de corrente — disse Melanie. Folhas e outros destroços deslizavam suavemente.

Candace olhou para cima. O topo das árvores que se alinhavam ao longo das duas margens quase se tocavam. — Por que é que as criaturas ficam na ilha? — perguntou ela.

— Os macacos e gorilas não vão para a água, em especial água com profundidade — explicou Melanie. — É por isso que os jardins zoológicos só necessitam de um fosso para os primatas.

— E quanto a atravessar as árvores? — perguntou Candace. Kevin juntou-se às suas companheiras na margem do rio.

— O bonobos são criaturas relativamente pesadas — explicou ele —, particularmente os nossos. A maioria deles pesa mais de quarenta e cinco quilos, e os ramos lá no alto não são suficientemente fortes para suportarem o peso deles. No início, antes de colocarmos animais na ilha, havia uns pontos que suscitaram dúvidas, por isso essas árvores foram cortadas. Mas os macacos colobus continuam a andar para trás e para diante.

— O que são todos aqueles objectos quadrados no campo? — perguntou Melanie.

Kevin apontou a lanterna. O feixe de luz não era suficientemente forte para que pudessem distinguir. Apagou a lanterna e semicerrou os olhos.

— Parecem jaulas do centro dos animais — disse ele

— Que será que estão ali a fazer?—perguntou Melanie. — São tantas.

— Não faço ideia — disse Kevin.

— Como é que se consegue que alguns bonobos apareçam? — perguntou Candace.

—A esta hora, provavelmente, estão a acomodar-se para dormir — disse Kevin. — Duvido que possamos ver algum.

— E o flutuador? — perguntou Melanie. — O mecanismo que o puxa de um lado para o outro deve ser do tipo da linha da roupa. Se fizer barulho, talvez eles oiçam. Seria como a campainha para o jantar e isso poderia fazer que viessem cá fora.

— Suponho que vale a pena tentar — disse Kevin. Ele olhou para cima e para baixo ao longo da margem. — O problema é que não fazemos ideia onde poderá estar o flutuador.

— Não deverá estar muito longe, creio eu — disse Melanie. — Eu vou para leste e tu vais para oeste.

Kevin e Melanie caminharam em direcções opostas. Candace ficou onde estava, enquanto pensava que desejaria estar de volta no seu quarto, no hospital.

— Está aqui! — gritou Melanie. Ela seguiu um trilho na densa floresta durante uma curta distância, até chegar à roldana de retorno que estava amarrada a uma grossa árvore. Havia uma pesada corda dependurada em volta da roldana. Uma das extremidades desaparecia dentro da água. A outra estava amarrada a um flutuador quadrado, com cerca de um metro e vinte, que estava resguardado na margem.

Kevin e Candace juntaram-se a Melanie. Kevin apontou a lanterna para a ilha. Do outro lado, uma roldana semelhante estava amarrada a uma árvore semelhante.

Kevin passou a lanterna a Melanie e agarrou a parte da corda que tombava na água. Quando puxou a corda, notou que a roldana se desprendeu do tronco da árvore.

Kevin pôs uma mão sobre a outra e puxou a corda. As roldanas queixaram-se com azedume, fazendo uma chiadeira aguda. De imediato, o flutuador desviou-se da margem em direcção ao outro lado.

—Isto talvez resulte—disse Kevin. Enquanto puxava, Melanie varria a outra margem com o feixe luminoso da lanterna. Quando o flutuador ia a meio caminho, houve um grande estrondo na água, à direita, provocado pela queda de um grande objecto que caiu da ilha.

Melanie dirigiu a lanterna na direcção do ruído. Duas frinchas incandescentes de luz reflectiam à superfície da água. Um grande crocodilo olhava para eles com um ar perscrutador.

— Meu Deus! — disse Candace, enquanto recuava.

— Não tem importância — disse Kevin. Ele largou a corda, baixou-se e apanhou um forte espeto. Atirou o espeto ao crocodilo. Com outro estrondo, o crocodilo desapareceu sob a superfície da água.

— Oh, bonito! — disse Candace. — Agora, não fazemos ideia onde é que ele está!

— Desapareceu! — disse Kevin. — Não são perigosos a não ser que estivesses na água ou eles estivessem muito esfomeados.

— Quem é que me diz que ele não está esfomeado? — comentou Candace.

—Há por ali muito para eles comerem—disse Kevin, enquanto levantava a corda e recomeçava a puxar. Quando o flutuador chegou ao outro lado, mudou as cordas de mão e começou a puxá-lo de novo em sentido contrário.

—Ah, é demasiado tarde, isto não vai resultar. A área de refúgio mais próxima que nós vimos no computador fica a cerca de uma milha. Teremos de voltar cá durante o dia.

Apenas tinha acabado de pronunciar estas palavras, quando a noite foi abalada por uns gritos assustadores. Ao mesmo tempo, havia uma agitação selvagem na mata da ilha, como se um pesado elefante em debandada fosse surgir a qualquer momento.

Kevin deixou cair a corda. Tanto Candace como Melanie fugiram para trás, ao longo da vereda, em seguida pararam. Com as pulsações agitadas, elas ficaram paralisadas, à espera de outro grito. Com a mão trémula, Melanie dirigiu a lanterna para o sítio onde tinha havido a agitação. Tudo estava sossegado. Nem uma folha se movia.

Passaram-se dez segundos de emoção, que mais pareceram dez minutos. O grupo escutava com grande tensão, atentos ao mínimo ruído. Não havia nada excepto absoluto silêncio. Todas as criaturas

noctívagas caíram num tremendo mutismo. Era como se toda a selva estivesse à espera de uma catástrofe.

—Que poderá ter sido aquilo?—perguntou Melanie, finalmente.

— Nem sei se quero saber — disse Candace. — Vamo-nos mas é embora daqui.

— Devem ter sido dois bonobos — disse Kevirí. Estendeu a mão e pegou na corda. O flutuador estava a levar pancadas no meio da corrente. Ele recolheu-o com rapidez.

— Penso que Candace tem razão — disse Melanie. — Está demasiado escuro para conseguirmos vê-los, mesmo que eles apareçam. Estou assombrada. Vamos!

— Não sou eu quem se vai opor — dizia Kevin, enquanto se aproximava das suas companheiras. — Não sei o que estamos a fazer aqui a esta hora! Voltamos cá com a luz do dia.

Apressaram-se ao longo da vereda o mais depressa possível. Melanie liderava com a lanterna. Candace caminhava logo atrás dela, agarrada à sua blusa. Kevin ia na retaguarda.

— Seria formidável conseguir a chave desta ponte — disse Kevin ao passarem pela estrutura.

— E que é que te propões fazer para adquiri-la? — perguntou Melanie.

— A chave de Bertram — disse Kevin.

—Mas tu disseste que ele proibia expressamente toda e qualquer pessoa de ir à ilha — disse Melanie. — De certeza que ele não te empresta a chave.

— Temos de usá-la sem o seu conhecimento — disse Kevin.

— Oh, pois, sem dúvida — disse Melanie, sarcasticamentc. Entraram na vereda tipo túnel que os levaria até ao carro. A

meio do trajecto, Melanie disse:

— Meu Deus, como isto está escuro! Será que estou a segurar bem a lanterna para vocês?

— Está bem — disse Candace. Melanie abrandou o passo e depois parou.

— Que se passa? — perguntou Kevin.

—Há qualquer coisa estranha—disse ela. Pôs a cabeça de lado, tentando escutar.

— Agora não me metas medo — avisou Candace.

—As r as e os grilos não voltaram a fazer a sua algazarra—disse Melanie.

Logo de seguida, o diabo ficou à solta. Um alto ruído tartamudeante estilhaçou a quietude da noite. Ramos, galhos e folhas choviam sobre o grupo. Kevin reconheceu o barulho e reagiu por reflexo. Estendendo os braços, agarrou as suas companheiras, de modo que os três caíram no chão infestado de insectos.

A razão de Kevin ter reconhecido o ruído era porque, inadvertidamente, já tinha presenciado os soldados equatoguineenses a fazerem exercícios. O barulho era o ruído de metralhadoras.

 

5 DE MARÇO, 1997 - 14:15 CIDADE DE NOVA IORQUE

— Dá-me licença, Laurie?—disse Cheryl Myers, na entrada do gabinete de Laurie. Cheryl era um dos investigadores forenses. — Recebemos este pacote enviado durante a noite, pensámos que tivesse interesse em recebê-lo de imediato.

Laurie ergueu-se e pegou no pacote. Estava curiosa quanto ao seu conteúdo. Olhou para o endereço para ver quem o enviava. Era da CNN.

— Obrigadinha, Cheryl—disse Laurie. Estava estupefacta. De momento não fazia ideia do que a CNN poderia ter para lhe enviar.

— Já vejo que a Dr.a Mehta não está — disse Cheryl. — Eu trouxe-lhe uma tabela que veio do Hospital da Universidade. Ponho na secretária dela?—A Dr.a Ri vá Mehta era a companheira de gabinete de Laurie. Partilhavam o espaço desde que as duas tinham começado a trabalhar nos serviços de Medicina Legal, havia seis anos e meio.

— Claro — disse Laurie, preocupada com o seu pacote. Enfiou o dedo na aba do envelope e rasgou-o Dentro vinha uma cassete de vídeo. Laurie olhou para o rótulo. Dizia: “ASSASSÍNIO DE CARLO FRANCONI, 3 de Março, 1997.”

Após ter acabado a última autópsia daquela manhã, Laurie estivera metida no seu gabinete, tentando completar cerca de vinte casos que tinha pendentes. Estivera ocupada a rever slides microscópicos, resultados dos laboratórios e relatórios da Polícia. Durante várias horas não pensara no caso Franconi. A chegada do vídeo fez voltar tudo à sua memória de novo. Infelizmente, o vídeo era inútil sem o corpo.

Laurie enfiou o vídeo na mala e tentou voltar ao trabalho. Mas após quinze minutos de esforço vão, desligou a luz do microscópio. Não conseguia concentrar-se. Na sua mente rodopiava a desconcertante pergunta de como teria desaparecido o corpo. Era como se tivesse sido um espantoso truque mágico. Em dado momento o corpo estava armazenado com segurança no compartimento um onze e fora visto por três funcionários, de repente, zás, desaparecera. Teria de haver uma explicação, mas por muito que tentasse, Laurie não conseguia encontrá-la.

Laurie decidiu descer à cave para fazer uma visita ao necrotério. Esperava encontrar pelo menos um técnico de serviço, mas quando lá chegou o gabinete estava vazio. Arrojada, Laurie foi direita ao livro de registos forrado a cabedal. Folheou as páginas à procura das entradas que Mike Passano lhe mostrara na véspera. Encontrou-as sem dificuldade. Tirando um lápis de entre uma colecção deles que se encontravam enfiados numa caneca de café, e um pedaço de papel, Laurie escreveu os nomes e números de acesso dos dois corpos que tinham entrado durante o turno da noite: Dorothy Mine, 101455, e Frank Gleason, 100385. Também anotou os nomes das duas agências funerárias: Spoletto Funeral Home no Ozone Park, Nova Iorque, e Dickson, em Summit, Nova Jérsia.

Laurie ia a sair quando deu com os olhos no grande telefone Rolodex que estava num canto da secretária. Decidiu telefonar para as duas agências. Depois de se identificar, pediu para falar ao gerente.

A ideia de telefonar surgiu na eventualidade de que um dos levantamentos tivesse sido fictício. Ela admitia que as hipóteses era mínimas, visto que o técnico da noite, Mike Passano, dissera que as agências tinham telefonado antecipadamente e presumivelmente ele conhecia bem as pessoas.

Conforme ela esperara, os levantamentos tinham sido legítimos, os dois gerentes afirmaram que os corpos tinham dado entrada nas suas agências e que nessa altura estavam em vigília.

Laurie foi de novo ao livro de registos e voltou a verificar os nomes. Parafinalizar, copiou-os, assim como os respectivos números de acesso. Os nomes eram-lhe familiares, pois ela atribuíra essas autópsias a Paul Plodgett, para serem feitas na manhã seguinte.

Mas não estava tão interessada nas chegadas como nas saídas. Os corpos tinham entrado com funcionários dos serviços internos, que trabalhavam lá havia muito tempo, enquanto, por outro lado, tinham saído com pessoas estranhas.

Sentindo-se frustrada, Laurie tamborilou com o lápis no tampo da secretária. Tinha a certeza de que qualquer coisa lhe escapava. De novo, os seus olhos deram no Rolodex que estava ligado para a Agência Funerária Spoletto. Nos recônditos da memória, o nome trazia-lhe vagas recordações. Por que é que o nome lhe era familiar? De repente, recordou-se. Fora durante o caso de Cerino. Um homem fora morto na Agência Funerária Spoletto segundo instruções de Paul Cerino, o antecessor de Franconi.

Laurie guardou os apontamentos no bolso, afastou-se da secretária e voltou ao quinto andar. Foi directamente ao gabinete de Jack. A porta estava entreaberta. Bateu na ombreira da porta. Tanto Jack como Chet levantaram os olhos dos seus respectivos trabalhos.

— Tive uma ideia — disse Laurie a Jack.

— Só uma? — zombou Jack.

Laurie atirou-lhe o lápis, que ele desviou com facilidade. Ela deixou-se cair na cadeira à direita dele e falou-lhe da ligação da quadrilha com a Agência Funerária Spoletto Funeral Home.

— Valha-me Deus, Laurie! — reclamou Jack. — Só porque houve um golpe da quadrilha numa agência funerária, não quer dizer que a agência esteja ligada à quadrilha.

— Achas que não? — perguntou Laurie. Jack não teve de responder. Ela conseguia ler na sua expressão. E, agora, ao reflectir, compreendeu que era uma ideia ridícula. Estava a agarrar-se a esperanças vãs.

— Além disso — disse Jack —, por que é que não deixas de te preocupar com este assunto?

—Eu já te disse—respondeu Laurie —, é uma questão pessoal.

— Talvez eu possa canalizar as tuas energias numa direcção mais positiva — disse Jack. Dirigiu-se ao microscópio. — Dá uma olhadela à secção congelada. Diz-me o que pensas.

Laurie levantou-se da cadeira e debruçou-se sobre o microscópio.

— Que é isto, é a ferida produzida pela entrada da bala? — perguntou ela.

— Perspicaz como sempre — comentou Jack. — Estás quase lá.

— Bem, não é assim tão difícil — disse Laurie. — Eu diria que o cano estava a poucos centímetros da pele.

— É exactamente isso que eu penso — disse Jack. — Mais alguma coisa?

— Estranho, não há absolutamente qualquer extravasamento de sangue! — disse Laurie. — Absolutamente nenhum, por isso é uma ferida que só poderia ter sido feita depois de morto. — Levantou a cabeça e olhou para Jack. Estava perplexa. Ela tinha presumido que aquela era a ferida mortal.

— Ah, o poder da ciência moderna — comentou Jack. — Este caso do flutuador que me impingiste está a sair-me um osso difícil de roer.

— Ei, tu apresentaste-te como voluntário — disse Laurie.

— Estou a brincar contigo — disse Jack. — Estou contente por estar a tratar deste caso. Os tiros, definitivamente, foram dados depois de o homem ter morrido, tal como a decapitação e o serrar das mãos. Evidentemente, que as feridas com a hélice também o foram.

— Qual foi a causa da morte? — perguntou Laurie.

— Dois outros tiros — disse Jack. — Um na base do crânio. — Apontou para a área justamente acima da clavícula direita. — E um outro no lado esquerdo que despedaçou a décima costela. A ironia é que as duas balas acabaram por ficar na massa dos cartuchos no lado superior da área do abdómen e tornou-se difícil localizá-las através do raio X.

— Isso é inédito — disse Laurie. — Balas escondidas em cartuchos. Espantoso! A beleza deste trabalho é que se vêem coisas novas todos os dias.

— O melhor está ainda para vir — disse Jack.

—Isto é uma “beldade”!—disse Chet. Ele tinha estado a escutar a conversa. — Será perfeito para o jantar de um dos seminários de patologia forense.

— Creio que a rajada de tiros foi uma tentativa para esconder a identidade da vítima assim como a decapitação e a remoção das mãos — disse Jack.

— Como assim? — perguntou Laurie.

—A meu ver, este paciente tinha feito um transplante de fígado — disse Jack. — E não foi há muito tempo. O assassino deve ter compreendido que esse facto colocava o paciente entre um grupo minoritário, por conseguinte, tentou esconder evidências que pudessem revelar a identidade da vítima.

— Restava ainda muito do fígado? — perguntou Laurie.

— Muito pouco — disse Jack. — A maior parte foi destruída pelas balas.

— E os peixes ajudaram — disse Chet.

Laurie estremeceu.

—Mas consegui encontrar algum tecido do fígado—disse Jack. — Usaremos isso para corroborar o transplante. Neste preciso momento, Ted Lynch, no departamento do ADN, está a fazer um teste DQ Alpha. Teremos os resultados dentro de pouco mais ou menos uma hora. Mas, para mim, o veredicto final são as suturas na veia cava e na artéria hepática.

— Que é um DQ Alpha? — perguntou Laurie. Jack riu-se.

— Ainda bem que não sabes, isso faz-me sentir melhor — disse ele. — Porque eu tive de fazer a mesma pergunta a Ted. Disse-me ele que é um indicador ADN rápido e conveniente para diferenciar dois indivíduos. Compara a região DQ do complexo de histocompatibilidade no cromossoma seis.

— E a veia porta? — perguntou Laurie. — Havia lá suturas também?

— Infelizmente, a veia porta estava praticamente destruída — disse Jack. — Assim como grande parte dos intestinos.

— Bem — disse Laurie.—Tudo isso deve tornar a identificação relativamente fácil.

— É exactamente o que eu penso — disse Jack. — Já pus Bart Arnold ao baralho. Ele tem estado a contactar a organização nacional de aquisição de órgãos UNOS. Ele também está a contactar todos os centros que estej am envolvidos em transplantes de fígados, especialmente aqui na cidade.

—Isso é uma lista curta—disse Laurie. — Bom trabalho, Jack.

A face de Jack enrubesceu ligeiramente e Laurie ficou

sensibilizada. Ela pensava que ele era imune a tais cumprimentos.

— E as balas... — perguntou Laurie — da mesma arma?

—Enviámo-las para o laboratório da Polícia, para o departamento de Balística — disse Jack. — Foi difícil dizer se eram ou não da mesma arma devido à sua distorção. Uma delas fez contacto directo com a décima costela e ficou numa chapa. Até mesmo a segunda estava em muito mau estado. Suponho que roçou pela coluna vertebral.

— Qual o calibre? — perguntou Laurie.

— Só através da observação, não consegui distinguir — disse Jack.

—Qual a opinião de Vinnie?—perguntou Laurie.—Ele tornou-se um bom diagnosticador.

— Hoje, Vinnie não vale nada — disse Jack. — Nunca o vi com tão má disposição. Perguntei-lhe a opinião, mas ele não adiantou nada. Disse que era trabalho meu, e que não lhe pagavam para estar sempre a dar opiniões.

— Sabes, eu tive uma situação semelhante a esta aquando do caso Cerino — disse Laurie. O seu olhar ficou fixo e, por uns momentos, os olhos ficaram brilhantes.—A vítima era a secretária do médico que estava envolvido na conspiração. Obviamente, ela não tinha feito um transplante de fígado, mas a cabeça e as mãos tinham desaparecido e consegui proceder à identificação devido à sua história clínica.

—Um dia destes terás de me contar toda essa história macabra — disse Jack. — Estás continuamente a deixar escapar episódios dessa história que são aterrorizantes.

Laurie suspirou.

— Quem me dera poder esquecer tudo. Ainda hoje me causa pesadelos.

Ao abrir a porta para o consultório do Dr. Levitz, na Fifth Avenue, Raymond olhou para o relógio. Eram duas e quarenta e cinco. Raymond telefonara ao doutor três vezes a partir das onze horas da manhã, sem qualquer sucesso. Em todas as ocasiões, a recepcionista prometera que ele telefonaria, mas não telefonou. No estado de ansiedade em que se encontrava, Raymond considerava a descortesia uma ofensa. Uma vez que o consultório do Dr. Levitz era perto, Raymond pensou que seria melhor lá ir do que esperar junto ao telefone.

— Dr. Raymond Lyons — disse Raymond com autoridade à recepcionista. — Venho falar ao Dr. Levitz.

— Pois, Dr. Lyons — disse a recepcionista. Ela tinha o mesmo ar de matrona culta que a recepcionista do Dr, Anderson. — O seu nome não consta na lista de marcações. O doutor espera-o?

— Propriamente não — disse Raymond.

— Bem, vou comunicar ao doutor que o Sr. Doutor está cá — disse a recepcionista com um ar casual.

Raymond sentou-se na sala de espera, que estava apinhada de clientes. Pegou numa das tradicionais revistas de consultórios médicos e folheou as páginas sem olhar para as gravuras. A sua agitação estava a ficar com laivos de irritação, e começou a pensar se a sua ida ao consultório do Dr. Levitz não teria sido uma má decisão.

A tarefa de verificar o primeiro dos dois pacientes submetidos ao transplante fora fácil. Com uma chamada telefónica, Raymond tinha falado ao médico de Dálias, Texas, que recrutara o paciente. O médico assegurara que o seu cliente, que se submetera a um transplante de rins, um conceituado negociante local, estava muito bem e que não havia hipótese de vir a ser um possível candidato a uma autópsia. Antes de desligar, o médico prometera informar Raymond caso a situação se alterasse.

Mas, visto que o Dr. Levitz não respondera aos seus telefonemas, Raymond não tinha conseguido verificar o último caso. Era frustrante e causava-lhe ansiedade.

Os olhos de Raymond vaguearam pela sala. Tinha traços de sumptuosidade tal como a do Dr. Anderson, com pinturas a óleo, paredes em cor de vinho-escuro, e carpetes orientais. Os pacientes que aguardavam eram todos pessoas abastadas, a julgar pelo vestuário, pelo porte e pelas jóias.

À medida que o ponteiro dos minutos deslizava, Raymond sentia a irritação a avolumar-se. O que se tornava insultuosamente agravante neste momento era o sucesso óbvio do Dr. Levitz. Isso lembrava-lhe o absurdo da sua situação: a sua carteira profissional estava no limbo judicial só porque ele tinha sido apanhado a cobrar mais do que devia ao Serviço de Saúde. Mas aqui estava o Dr. Levitz a trabalhar em todo o seu esplendor com, pelo menos, parte dos recibos provenientes do seu trabalho com famílias do mundo do crime. Obviamente, tudo representava dinheiro sujo. E, para além disso, Raymond tinha a certeza de que Levitz cobrava ao Serviço de Saúde acima do devido. Para o Inferno, todos o faziam!

Uma enfermeira apareceu e clareou a garganta. Esperançado, Raymond chegou-se para a beira do assento. Mas a enfermeira chamou um outro nome. Enquanto o paciente que fora chamado se levantava, colocava a revista no devido lugar e desaparecia no interior do consultório, Raymond deixou-se cair para trás no sofá, desmazeladamente e encolerizado.

Estar à mercê de tais pessoas fazia que Raymond ansiasse, cada vez mais, por segurança financeira. Com o programa dos “duplos” estava muito perto. Não poderia permitir que todo o empreendimento se desmoronasse por uma inesperada causa estúpida que poderia ser facilmente remediada.

Eram três horas e quinze minutos quando finalmente Raymond foi acompanhado ao reservado de Daniel Levitz. Levitz era um homem pequeno, ligeiramente careca com múltiplos tiques nervosos. Tinha um escasso bigode que não era nada adulto. Raymond sempre se perguntava o que era que havia naquele homem que aparentemente inspirava tanta confiança a tantos pacientes.

— Tem sido um destes dias — disse Daniel, como se tivesse a justificar-se. — Não esperava que passasse por cá.

— Eu próprio não esperava passar — disse Raymond. — Mas como não respondeu aos meus telefonemas pensei que não tinha outra alternativa.

—Telefonemas?—perguntou Daniel.—Eu não recebi chamadas suas. Terei de falar novamente com a minha recepcionista. É tão difícil encontrar pessoas eficientes hoje em dia.

Raymond sentiu-se tentado a dizer a Daniel para se deixar de tretas, mas resistiu fazê-lo. Ao fim e ao cabo, estava finalmente a falar com ele, e tornar o encontro num confronto não iria resolver problema algum. Além disso, por muito irritante que Daniel Levitz pudesse ser, era ele quem recrutava mais clientes para o projecto. Inscrevera doze clientes no programa bem como quatro médicos.

—Em que lhe posso ser útil?—perguntou Daniel. A sua cabeça contorceu-se várias vezes de um modo que lhe era peculiar e desconcertante.

— Primeiramente, quero agradecer-lhe por ter colaborado no outro dia — disse Raymond. — Lá dos altos comandos estavam convictos de que era uma emergência. Publicidade nesta altura teria significado o fim de todo o projecto.

—Foi com todo o prazer—disse Daniel.—E fiquei satisfeito por o Sr. Vincent Dominick estar disposto a preservar o seu investimento.

— Falando do Sr Dominick — disse Raymond. — Ele fez-me uma visita inesperada ontem de manhã.

— Espero que tenha sido uma visita cordial—disse Daniel. Ele conhecia bem a carreira de Dominick assim como a sua personalidade, e presumiu que não era improvável que tivesse havido extorsão.

— Sim e não — admitiu Raymond. — Insistiu em descrever pormenores em que eu não estava interessado. Depois insistiu em não pagar propina durante dois anos.

— Poderia ter sido pior — disse Daniel. — Que é que isso significa em termos da minha percentagem?

— A percentagem mantém-se — disse Raymond. — Só que é uma percentagem sobre zero.

— Então, eu ajudo e depois fico penalizado! — queixou-se Daniel. — Não é lá muito justo.

Raymond fez uma pausa. Não tinha considerado o prejuízo de Daniel como resultado do corte de Dominick, contudo, era um ponto que teria de ser ponderado. Neste momento, Raymond não gostaria, de modo algum, de preocupá-lo.

—O seu argumento é válido—concordou Raymond.—Digamos que isso será discutido numa próxima oportunidade. De momento, tenho outra preocupação. Qual é o estado de Cindy Carlson?

Cindy Carlson era unia jovem de 16 anos, filha de Albright Carlson, o importante e influente corretor da Wall Street. Daniel recrutara Albright e a sua filha como clientes. Em criança a filha sofrera de uma infecção nos rins. A doença agravara-se durante a juventude ao ponto de os rins deixarem de funcionar. Consequentemente, Daniel não só tinha o recorde do número de doentes como tinha o recorde no número de colheitas, duas: Cario Franconi e Cindy Carlson.

— Ela está a passar muito bem — disse Daniel. — Pelo menos sob o ponto de vista da saúde. Por que é que pergunta?

—Com este assunto de Franconi apercebi-me da vulnerabilidade de toda esta operação — admitiu Raymond. — Quero ter a certeza de que não corremos mais riscos.

— Não se preocupe com os Carlsons — disse Daniel. — De certeza que não causarão qualquer problema. Eles não poderiam estar mais gratos. Aliás, justamente na semana passada, Albright falava em levar a esposa às Baamas para extrair uma amostra da medula, para que ela também se torne cliente.

— É encorajante — disse Raymond. — Faz-nos sempre jeito ter mais clientes. Mas não é o lado da procura do projecto que me está a preocupar. Financeiramente, não poderíamos estar em melhor situação. Ultrapassámos todas as previsões. São as surpresas como Franconi que me preocupam.

Daniel abanou a cabeça e depois contorceu-se.

— Há sempre um certo grau de incerteza — disse ele, filosoficamente. — É a vida!

— Quanto mais baixo for o grau de incerteza, melhor eu me sentirei — disse Raymond. — Quando lhe pus a questão sobre o estado de saúde da Cindy Carlson, você qualificou de muito positivo no que se referia à saúde. Porquê?

—Porque ela é um problema no que se refere ao aspecto mental — disse Daniel.

—Que é que isso quer dizer?—perguntou Raymond. Novamente, o ritmo do seu pulso acelerou.

—É difícil imaginar uma criança que cresça numa família como os Albright Carlson e não seja maluca — disse Daniel. — Pense nisso. E depois acrescente a sobrecarga de ter uma doença crónica. Se foi isso que contribuiu para a sua obesidade, não sei. A rapariga tem um peso muito acima do normal. Isso é bastante traumatizante para qualquer pessoa, mas de um modo especial para uma adolescente. A miúda está deprimida, o que é bastante compreensível.

— Qual a gravidade da sua depressão?—perguntou Raymond.

— Suficientemente deprimida para ter tentado suicidar-se em duas ocasiões. E não foi apenas uma birra de criança para chamar a atenção. Foram tentativas bona fíde, e a única razão de ela estar ainda entre nós foi ter sido descoberta quase imediatamente, e porque ela tentou drogas da primeira vez e enforcar-se da segunda. Se ela tivesse uma pistola teria sido, certamente, bem sucedida.

Raymond soltou um gemido.

— Que se passa? — perguntou Daniel.

—Todos os suicídios passam pelos médicos patologistas—disse Raymond.

— Eu não tinha pensado nisso — disse Daniel.

— São estas espécies de incertezas que eu me referia — disse Raymond. — Caramba! É a nossa sorte!

— Lamento ser o portador de maus ventos — disse Daniel.

— A culpa não é sua — disse Raymond. — O que é importante é nós reconhecermos as coisas pelo que elas são, e compreendermos que não nos podemos sentar de braços cruzados à espera da catástrofe.

—Penso que não temos muito por onde escolher—disse Daniel.

—E Vincent Dominick?—disse Raymond.—Eleja nos ajudou uma vez e com o seu próprio filho doente, ele tem todo o interesse no futuro do programa.

O Dr. Daniel Levitz encarou fixamente o Raymond.

— Está a sugerir...? Raymond não respondeu.

—Eu fico por aqui—disse Daniel. Ergueu-se.—Desculpe, mas eu tenho uma sala cheia de doentes à minha espera.

— Não poderia telefonar ao Sr. Dominick e pedir-lhe? — disse Raymond. Ele sentia uma onda de desespero a cair-lhe em cima.

— Claro que não — disse Daniel. — Eu posso tratar de um número de indivíduos ligados ao mundo do crime, mas recuso a envolver-me nos seus negócios.

—Mas você ajudou no caso de Franconi—queixou-se Raymond.

— Franconi era um cadáver gelado na morgue — disse Daniel.

— Então, dê-me o número de telefone do Sr. Dominick — disse Raymond. — Eu telefono-lhe. E preciso do endereço dos Carlsons.

— Peça à minha recepcionista — disse Daniel. — Diga-lhe apenas que é um amigo pessoal.

— Obrigado — disse Raymond.

— Mas lembre-se — disse Daniel —, eu mereço e quero as percentagens que me são devidas, independentemente do que possa acontecer entre si e Vinnie Dominick.

Inicialmente, a telefonista estava relutante em dar os números de telefone e endereços a Raymond, mas, após um breve contacto telefónico com o patrão, ela cedeu. Sem proferir palavra, copiou a informação no verso de um cartão de visita do Dr. Levitz e deu-o a Raymond.

Raymond voltou de imediato ao seu apartamento na Sixty-fourth Street. Logo que entrou, Darlene perguntou-lhe que tal correra o encontro com o Dr. Levitz.

— Não faças perguntas — disse Raymond num tom cortante. Foi para o seu estúdio forrado, fechou a porta, e sentou-se à secretária. Com nervosismo, marcou o número de telefone. Já imaginava Cindy Carlson, sorrateiramente, à procura de soporíferos no armário dos medicamentos da mãe, ou num armazém local a comprar uma corda.

— Sim, quem é? — disse uma voz do outro lado da linha.

—Gostaria de falar com Sr. Vincent Dominick—disse Raymond, com um tom tão autoritário quanto possível. Detestava ter de lidar com pessoas daquela espécie, mas não tinha alternativa. Sete anos de intenso trabalho e empenho estavam em jogo, para não mencionar todo o seu futuro.

— Quem quer falar-lhe?

— Dr. Raymond Lyons.

Houve uma pausa até que o homem dissesse:

— Espere!

Ficou surpreendido por ouvir uma das sonatas de Beethoven, enquanto aguardava a ligação. Para Raymond parecia-lhe uma espécie de oxímoro.

Alguns minutos mais tarde a voz suave de Vinnie Dominick fez-se ouvir ao telefone. Raymond imaginava a banalidade decepcionante e ensaiada daquele homem, como se ele fosse um actor bem trajado representando a sua própria personagem.

— Como é que arranjou este número, doutor? — perguntou Vinnie. O seu tom não era de desafio, contudo, justamente por essa razão, era um tanto ou quanto ameaçador. A boca de Raymond ficou seca que nem palha. Teve de tossir.

— Deu-mo o Dr. Levitz - conseguiu dizer Raymond.

— Em que posso servi-lo, doutor? — perguntou Vinnie.

— Surgiu mais um problema—titubeou Raymond. Clareou de novo a garganta. — Gostaria de me encontrar consigo para discuti-lo.

Houve uma pausa muito mais longa do que Raymond podia tolerar. Justamente quando estava prestes a perguntar se Vinnie ainda estava em linha, o meliante respondeu:

—Quando me envolvi com vocês, pensei que ia ter paz na minha cabeça. Nunca pensei que a minha vida se ia tornar mais complicada.

— Estas são apenas umas dores de cabeça sem grande importância — disse Raymond. — Na realidade, o projecto está a correr extremamente bem.

— Encontramo-nos no Restaurante Neopolitan, na Corona Avenue, em Elmhurst, dentro de meia hora—disse Vinnie.—Acha que consegue chegar a tempo?

— Com certeza — disse Raymond. — Apanho um táxi, vou já sair.

— Vemo-nos lá — disse Vinnie antes de desligar. Raymond, precipitadamente, vasculhou a gaveta de cima da

secretária à procura do mapa da cidade de Nova Iorque que incluía os cinco distritos. Abriu o mapa sobre a secretária, e, com a ajuda do índice, localizou a Corona Avenue, em Elmhurst. Calculou que poderia lá chegar em meia hora, desde que o trânsito não estivesse intenso na Ponte de Queensborough. Isso era uma preocupação, pois eram quase quatro horas: o início da hora de ponta.

Quando Raymond saía apressadamente do estúdio, tentando vestir de novo o sobretudo, Darlene perguntou-lhe para onde ia. Respondeu-lhe que não havia tempo para explicações. Disse que estaria de volta dentro de, aproximadamente, uma hora.

Raymond correu para a Park Avenue, onde apanhou um táxi. Ainda bem que trouxera o mapa, pois o motorista de táxi, um afegão, não fazia ideia onde ficava Elmhurst e muito menos a Corona Avenue.

A viagem de táxi não fora fácil. Só para atravessar o lado leste de Manhattan fora quase um quarto de hora. E, depois, na ponte, era um pára arranca. À hora que ele deveria estar no restaurante, o táxi estava ainda na Queens. Mas a partir daí foi fácil, e quando Raymond entrou no restaurante e afastou uma pesada cortina de veludo, estava apenas com quinze minutos de atraso.

Tornou-se logo evidente que o restaurante não estava aberto ao público. A maior parte das cadeiras estavam voltadas ao contrário em cima das mesas. Vinnie Dominick estava sentado sozinho num recanto, num daqueles sofás acolchoados de costas altas, fixos ao longo das paredes. À sua frente ele tinha um jornal e uma chávena pequena de expresso. Um cigarro ardia no cinzeiro.

Quatro homens fumavam no Huty, estatelados nos bancos. Raymond reconheceu dois deles da visita ao apartamento. Por detrás do Huty, um homem gordo, barbudo, lavava copos. O resto do restaurante estava vazio.

Vinnie fez sinal com a mão para que Raymond se aproximasse.

— Sente-se, doutor — disse Vinnie. — Café?

Raymond acenou com a cabeça enquanto se deixava escorregar no assento. Foi necessário um certo esforço devido ao aveludado do tecido. A sala estava ligeiramente fria, húmida e cheirava a alho da noite anterior, e ao fumo do tabaco acumulado durante pelo menos cinco anos. Raymond estava contente por ter o chapéu e o casaco vestido.

— Dois cafés — disse Vinnie para o homem que estava por detrás do Huty. Silenciosamente, o homem voltou-se para uma complicada máquina expresso e começou a manipular os botões de controlo.

— Você surpreendeu-me, doutor—disse Vinnie.—Realmente, pensei que jamais voltaria a ter notícias suas.

— Conforme lhe disse ao telefone, há um outro problema — disse Raymond. Inclinou-se para a frente e falou num tom de voz muito suave, quase um sussurro.

Vinnie abriu as mãos.

— Sou todo ouvidos.

Raymond descreveu-lhe a situação de Cindy Carlson tão sucintamente quanto possível. Salientou o facto de todos os casos de suicídio serem casos para os médicos legistas, e, portanto, sujeitos a autópsia. Não havia excepções.

O homem gordo do Huty trouxe os cafés. Vinnie não reagiu ao monólogo de Raymond até que o barman tivesse voltado à lavagem de copos.

—Esta Cindy Carlson é a filha do Albright Carlson?—perguntou Vinnie. — A lenda de Wall Street?

Raymond acenou com a cabeça.

— É por isso que esta situação é tão importante — disse ele. — Se ela cometer suicídio, sem dúvida que despertará uma atenção considerável por parte dos meios de comunicação. Os médicos legistas estarão particularmente vigilantes.

— Eu entendo—disse Vinnie, enquanto sorvia um golo de café, — Que quer que se faça precisamente?

— Longe de mim dar sugestões — disse Raymond, com nervosismo. — Mas compreende que este problema está ao mesmo nível que o de Franconi.

— Conclusão, quer que esta rapariga de 16 anos, muito convenientemente, desapareça? — perguntou Vinnie.

— Bem, ela já tentou suicidar-se duas vezes — disse Raymond, receosamente. — De certo modo, estaríamos a fazer-lhe um favor.

Vinnie riu-se. Pegou no cigarro, tirou uma fumaça, e depois passou a mão pelo alto da cabeça. O cabelo era puxado para trás, ligeiramente afastado da testa. Ele olhou para Raymond com os seus olhos escuros.

—Você é cá uma peça de arte, doutor — disse Vinnie. — Tenho de lhe dar crédito por isso.

—Talvez possa oferecer-lhe mais uma propina—disse Raymond.

— É muita generosidade da sua parte — disse Vinnie. — Mas sabe uma coisa, doutor, não é suficiente. Aliás, estou a ficar farto de toda esta situação. E vou dizer-lhe uma coisa de caras: se não fosse pelo problema de rins do Vinnie Júnior, eu, provavelmente, ia exigir o meu dinheiro de volta, e cada qual ia à sua vida. Sabe, já começo a antever problemas do primeiro favor que lhe fiz. Tive um telefonema do irmão da minha mulher, que dirige a Agência Funerária Spoletto. Ele está aborrecido porque a Dr.a Laurie Montgomery telefonou a fazer perguntas embaraçosas. Diga-me, doutor. Conhece esta Dr.a Montgomery?

—Não, nãoconheço—disse Raymond. Ele engoliu ruidosamente.

— Ei, Angelo, chega aqui! — chamou Vinnie.

Angelo deixou-se escorregar do seu banco do Huty e veio até à mesa.

— Senta-te, Angelo — disse Vinnie. — Eu quero que fales aqui ao nosso doutorzinho sobre Laurie Montgomery.

Raymond teve de se deslocar no assento para dar lugar a Angelo. Sentia-se nitidamente desconfortável sentado entre os dois homens como se fosse uma sanduíche.

—Laurie Montgomery é uma pessoa inteligente e persistente— disse Angelo com a sua voz rouca. — Para ser mais claro, ela é uma grandessíssima chata.

Raymond evitava olhar para Angelo. Todo o seu rosto era como uma cicatriz. Como os olhos não fechavam completamente, estavam vermelhos e ramelosos.

—Angelo teve um infeliz incidente com Laurie Montgomery há alguns anos — explicou Vinnie. — Angelo, diz a Raymond o que soubeste hoje, depois de termos tido notícias da agência funerária.

—Telefonei a Vinnie Amendola, o nosso contacto no Instituto de Medicina Legal — disse Angelo. — Ele disse-me que Laurie Montgomery afirmou que faz questão de ser ela a tentar investigar como desapareceu o corpo de Franconi. Escusado será dizer que ele está muito preocupado.

— Entende onde quero chegar? — disse Vinnie. — Temos um potencial problema pela frente, só porque lhe fizemos um favor.

— Lamento — disse Raymond de modo pouco convincente. Não lhe ocorria qualquer outra resposta.

— Isto faz-nos voltar ao assunto da propina — disse Vinnie. — Nestas circunstâncias, penso mesmo que as propinas deviam ser abolidas. Por outras palavras, absolutamente nada de propinas para mim e para o Vinnie Júnior.

— Eu tenho de prestar contas à sede — disse Raymond num gemido. Ele clareou a garganta.

—Tudo bem—disse Vinnie.—Não me incomoda minimamente. Explique-lhes que é uma despesa imputável. Ei, talvez possa até usá-la para deduzir nos impostos. — Vinnie riu-se com vontade.

Raymond estremeceu imperceptivelmente. Sabia que estava a ser injustamente explorado, contudo tinha pouca escolha.

— Okay — conseguiu ele dizer.

— Obrigado—disse Vinnie.—Bem, parece que ao fim e ao cabo as coisas vão funcionar bem. Tornámo-nos numa espécie de sócios. Agora, suponho que você tem o endereço dessa Cindy Carlson?

Raymond remexeu no bolso e tirou o cartão do Dr. Levitz. Vinnie copiou o endereço que estava no verso do cartão e devolveu-o. Vinnie passou o endereço a Angelo

— Englewood, Nova Jérsia — disse Angelo, lendo em voz alta.

— Há algum problema? — perguntou Vinnie. Angelo abanou a cabeça.

— Então, está assente — disse Vinnie, olhando para Raymond. —O seu último problemajá está resolvido. Mas desde já o aviso, não venha com mais nenhum. Depois do nosso acordo sobre as propinas penso que não há mais nada para negociar.

Alguns minutos mais tarde, Raymond encontrou-se na rua. Quando olhou para o relógio apercebeu-se de que estava trémulo. Era já perto das cinco e estava a escurecer.

Saindo do passeio, levantou a mão para fazer sinal a um táxi.

“Que desastre!”, pensou ele. De um modo ou de outro teria de suportar os custos de manutenção dos duplos de Vinnie Dominick e do seu filho para o resto da sua vida.

Um táxi parou. Raymond entrou e deu o seu endereço. À medida que se afastava do Restaurante Neopolitan, começou a sentir-se melhor. O custo real da manutenção dos dois duplos era mínimo, visto que os animais viviam isolados na ilha. Por isso, a situação não era assim tão má, especialmente agora que o potencial problema de Cindy Carlson estava resolvido.

Quando entrou no apartamento, a sua disposição tinha melhorado significativamente, pelo menos até passar a soleira da porta.

— Tiveste duas chamadas de África — informou Darlene.

—Problemas?—perguntou Raymond. Havia qualquer coisa na voz de Darlene que fez tocar as sirenes.

— Houve boas notícias e más notícias — disse Darlene. — As boas notícias foram do cirurgião. Diz ele que Horace Winchester está a recuperar miraculosamente e que devias começar a planear a viagem para ires buscá-lo e à equipa médica.

— E quais são as más notícias? — perguntou Raymond.

— O outro telefonema foi de Siegfried Spallek—disse Darlene. — Ele foi um tanto ou quanto lacónico. Disse que havia problemas com Kevin Marshall.

— Que espécie de problemas? — perguntou Raymond.

— Ele não adiantou muito — disse Darlene.

Raymond lembrava-se de ter expressamente pedido a Kevin que não fizesse nenhum disparate. Perguntava a si próprio se o investigador teria ignorado o seu aviso. Devia ser algo relacionado com aquele estúpido fumo que Kevin vira.

— Spallek pediu para eu lhe telefonar?—perguntou Raymond.

— Eram onze horas, no fuso horário de lá, quando ele ligou — disse Darlene. — Ele disse que voltaria a ligar amanhã.

Raymond resmungou para dentro. Agora teria de passar a noite toda preocupado. Perguntava-se quando é que tudo aquilo teria fim.

 

5 DE MARÇO, 1997 - 23:30 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Kevin ouviu a porta pesada de metal abrir-se no alto da escada e uma torrente de luz penetrou como uma cascata. Dois segundos mais tarde, acenderam-se as lâmpadas que estavam suspensas do tecto por simples fios. Através das grades da sua cela, conseguia ver Melanie e Candace nas respectivas celas. Elas semicerraram os olhos como se ele estivesse envolto num clarão.

Ouviram-se uns passos pesados nas escadas de granito e logo surgiu a figura de Spallek. Fazia-se acompanhar por Cameron Mclvers e Mustapha Aboud, chefe dos guardas marroquinos.

— Já não era sem tempo, Sr. Spallek! — disse Melanie, bruscamente. — Exijo que me tirem daqui neste instante, ou vocês estarão metidos em sérios problemas.

Kevin pestanejou. Jamais alguém falava daquele modo a Siegfried Spallek, muito menos nas circunstâncias actuais.

Kevin, Melanie e Candace tinham sido atirados em absoluta escuridão para celas separadas, na prisão instalada na cave da Câmara, que era excessivamente quente e desagradavelmente húmida. Cada cela tinha uma pequena janela em arco, que abria para uma outra janela bem no fundo da última arcada do edifício. As aberturas tinham grades de ferro mas não tinham vidros, por isso, as ratazanas passavam sem qualquer dificuldade. Os três prisioneiros tinham ficado aterrorizados com os ruídos de seres viventes que passavam numa corrida rápida, particularmente porque antes de as luzes se acenderem eles haviam visto várias tarântulas. O único conforto era o facto de poderem falar uns com os outros.

Os primeiros cinco minutos da aventura daquela noite tinham sido a parte mais desagradável. Logo que cessou o ruído das rajadas de metralhadoras, Kevin e as suas companheiras ficaram ofuscados pela incidência de feixes de luz vindos de grandes lanternas de mão. Quando finalmente os olhos se adaptaram à luz viram que tinham caído numa emboscada. Estavam rodeados por um grupo de jovens soldados equatoguineenses zombeteiros, que se tinham deliciado em apontar-lhes de um modo acidental as suas AK-47. Alguns deles tinham sido tão insolentes ao ponto de interferirem com as duas mulheres, usando o cano das suas armas.

Temendo o pior, Kevin e a suas companheiras não tinham movido nem um músculo. Tinham ficado petrificados pelo fogo atirado indiscriminadamente, e temiam que tudo pudesse recomeçar à mínima provocação. Os insubordinados soldados só recuaram quando surgiram vários guardas marroquinos. Kevin nunca imaginara que os intimidantes árabes alguma vez pudessem vir a ser potenciais salvadores, mas fora isso justamente que acontecera. Os guardas tomaram a custódia de Kevin e das suas companheiras. Depois, conduziram-nos no carro de Kevin, primeiramente para a sede da guarda marroquina junto ao centro dos animais, onde eles tinham sido colocados num quarto sem janela durante várias horas, e, mais tarde, para a cidade, onde finalmente foram feitos prisioneiros na velha cadeia.

— Isto é um tratamento ultrajante — persistiu Melanie.

—Pelo contrário—disse Siegfried.—Mustapha assegurou-me de que foram tratados com o devido respeito.

—Respeito!—disse Melanie, colericamente.—Sermos atacados com rajadas! E sermos mantidos encerrados às escuras nesta pocilga! É a isso que chama respeito?

— Ninguém disparou directamente contra vocês — corrigiu Siegfried. — Foram apenas uns tiros de alerta por cima das vossas cabeças. Ao fim e ao cabo, violaram uma regra importante na Zona. A ilha Francesca está fora dos limites. Toda a gente sabe disso.

Siegfried fez sinal a Cameron na direcção de Candace. Cameron abriu a cela com uma grande chave antiga. Candace não demorou nada a sair da cela. Sacudiu a roupa freneticamente para se certificar de que não havia percevejos. Ela ainda trazia vestida a roupa de trabalho do hospital.

—As minhas desculpas—disse Siegfried a Candace. Creio que foi desencaminhada por estes dois investigadores. Talvez até desconheça que há uma lei que proíbe as visitas à ilha.

Cameron abriu a cela de Melanie e em seguida a de Kevin.

— Logo que soube da vossa detenção tentei telefonar ao Dr. Raymond Lyons — disse Siegfried. — Queria saber a opinião dele sobre a melhor forma de lidar com esta situação. Uma vez que não consegui falar-lhe, tomo inteira responsabilidade. Espero que agora estejam bem conscientes da gravidade da vossa conduta. De acordo com a lei equatoguineense poderia ser considerada uma pena capital.

— Oh, tretas! — disse Melanie com fúria.

Kevin contraiu-se. Receava que Melanie provocasse Siegfried ” ao ponto de, com raiva, ele dar ordens para que eles fossem encarcerados novamente. Benevolência não era uma das características de Siegfried.

Mustapha estendeu o braço e entregou as chaves do carro a Kevin.

— O seu veículo está lá atrás — disse ele, com um forte sotaque francês.

Kevin recebeu as chaves. A sua mão tremia de tal modo que as chaves só deixaram de chocalhar quando meteu a mão no bolso.

— Certamente vou falar com o Dr. Lyons durante o dia de amanhã — disse Siegfried. — Contactá-los-ei individualmente. Agora, podem ir.

Melanie começou a falar novamente, e Kevin, sem reflectir, arrebatou o braço dela com brusquidão e arrastou-a em direcção às escadas.

— Já estou farta de ser manobrada por homens — disse Melanie, colericamente, ao mesmo tempo que tentava libertar-se de Kevin.

—Vamos mas é para o carro — disse Kevin, entre dentes e com dureza. Ele obrigou-a a caminhar.

— Que noite! — queixou-se Melanie. No fundo da escada ela conseguiu libertar o braço. Com grande indignação, começou a andar apressadamente.

Kevin esperou que Candace passasse à sua frente, depois seguiu-as até ao rés-do-chão. Foram dar a um escritório geralmente usado pelos soldados equatoguineenses, que regularmente eram vistos a vagabundear junto à Câmara. Estavam lá quatro deles. Com o gerente da base, o chefe da segurança e o chefe dos guardas marroquinos no edifício, os soldados estavam mais atentos do que era usual. Os quatro homens estavam de pé, com as armas aos ombros, posição que consideravam ser de respeito. Ao verem surgir Kevin e as companheiras, a expressão nos seus rostos denotava a sua perplexidade.

Melanie admoestou-os com o dedo enquanto Kevin tentava conduzi-las para a rua, para o parque de estacionamento.

— Por favor, Melanie — implorou Kevin. — Não os provoques! Kevin não sabia se os soldados não teriam apreendido o

significado do gesto de Melanie ou se estavam na verdade surpreendidos com a situação anómala. De qualquer modo, não vieram a correr atrás deles, conforme Kevin chegara a temer.

Chegaram ao carro. Kevin abriu a porta do lado dos passageiros. Candace sentia-se feliz por poder subir para o jipe. Mas Melanie não. Ela voltou-se para Kevin com os olhos a faiscar na fraca luminosidade do dia.

— Dá-me as chaves — exigiu ela.

— O quê? — perguntou Kevin, como se não tivesse ouvido.

— Eu disse dá-me as chaves — repetiu Melanie.

Confuso por esta reacção inesperada, e não querendo encolerizá-la mais, Kevin entregou-lhe as chaves do carro. Melanie deu a volta ao carro e sentou-se ao volante. Kevin sentou-se ao lado. Não queria saber quem iria conduzir, desde que saíssem dali o quanto antes.

Melanie ligou o carro, rodou os pneus e saiu do parque de estacionamento.

— Caramba, Melanie — disse Kevin. — Mais devagar!

— Estou chateada — disse Melanie.

— Não precisavas de dizer — disse Kevin.

— Eu não vou para casa ainda — disse Melanie. — Mas posso ir pô-los a casa, se quiserem.

— Onde é que queres ir? — perguntou Kevin. — É quase meia-noite.

— Eu vou ao centro dos animais — disse Melanie. — Não vou tolerar que me tratem desta maneira sem saber o que diabo se está a passar.

— Que há no centro dos animais? — perguntou Kevin.

— A chave para aquela maldita ponte — disse Melanie. — Eu quero uma, porque, para mim, este assunto já ultrapassou a curiosidade.

— Talvez devêssemos parar e falar sobre isso — sugeriu Kevin. Melanie travou bruscamente, fazendo o carro parar com um

solavanco. Tanto Kevin como Candace escorregaram do assento.

— Eu vou ao centro — repetiu Melanie. — Vocês podem vir ou posso deixá-los em qualquer parte. Fica à vossa escolha.

— Por que tem de ser esta noite? — perguntou Kevin.

— Uma, porque estou mesmo furiosa neste momento — disse Melanie. — E duas, porque eles não vão suspeitar. Obviamente, o que eles esperam é que vamos para casa e para a cama a tremer de medo. Foi por isso que fomos maltratados. Mas sabes uma coisa, não é o meu género.

— E o meu género — disse Kevin.

— Penso que Melanie tem razão — disse Candace, do banco de trás. — Eles estavam deliberadamente a querer pregar-nos um susto.

—E, a meu ver, fizeram um bom trabalho—disse Kevin. — Ou será que eu sou a única criatura com bom senso neste grupo?

— Vamos a isso — disse Candace.

— Oh, não! — resmungou Kevin. — Estou em minoria.

— Deixamos-te em casa — disse Melanie. — Não há qualquer problema. — Ela começou a pôr o carro em marcha atrás.

Kevin esticou o braço e agarrou a mão dela.

— Como é que pensas obter as chaves? Nem sabes onde elas estão!

— Suponho que é óbvio que estarão no gabinete de Bertram — disse Melanie. — Ele é que é responsável pela parte logística do programa dos bonobos. Para o diabo, tu próprio sugeriste que ele é que as tinha.

— Okay, estão no gabinete de Bertram — disse Kevin. — E a segurança? Os gabinetes estão trancados.

Melanie meteu a mão no bolso do peito da sua bata do centro e tirou um cartão magnético.

—Esqueces-te de que eu faço parte da hierarquia do centro. Isto é um cartão-mestre, e não um daqueles que faz concorrência ao cartão VISA. Esta coisa aqui abre-me as portas do centro durante as vinte e quatro horas do dia. Lembra-te que o meu trabalho com o projecto dos bonobos é apenas uma parte do trabalho de fertilização que eu faço.

Kevin olhou para Candace por cima das costas do assento. O seu cabelo loiro parecia luminoso na penumbra do interior do carro.

— Se tu entras no jogo, Candace, suponho que eu também entro — disse ele.

— Vamos! — disse Candace.

Melanie acelerou e voltou para norte, passando pela estação da frota de camiões. A estação estava a operar em pleno, com enormes lâmpadas de vapor de mercúrio a iluminar toda a área de operações. O turno da noite era maior do que os outros dois turnos, visto que era essa a altura de maior tráfego de camiões de carga entre a Zona e Bata.

Melanie ultrapassou com velocidade um comboio de tractores e o desvio para Bata ficou para trás. A partir daí até ao centro não encontraram um único veículo.

O centro dos animais funcionava com três turnos tal como a estação da frota de camiões, embora, no centro, o turno da noite fosse o mais reduzido. A maior parte do pessoal do turno da noite trabalhava no hospital-veterinário. Melanie aproveitou este facto para estacionar o Toyota junto a uma das portas do hospital. Ali, o carro tinha bastante companhia.

Melanie desligou o motor e olhou para a entrada do centro que dava directamente para o hospital-veterinário. Ela tamborilava os dedos no volante.

— Bem? — disse Kevin. — Já cá estamos, qual é o plano?

— Estou a pensar—disse Melanie.—Não consigo decidir o que seria melhor: vocês esperarem aqui ou virem comigo.

— Este lugar é enorme — disse Candace. Ela chegara-se para a frente no assento e, debruçada, olhava para o edifício que estava à sua frente. Estendia-se por toda a estrada até se perder na folhagem da mata. — De todas as vezes que eu vim ao Cogo, nunca tinha vindo ao centro dos animais. Não fazia ideia de que fosse tão grande. Esta parte que está à nossa frente é o hospital?

— Sim, senhora — disse Melanie. — Toda esta ala.

— Gostaria muito de vê-lo — disse Candace. — Nunca estive num hospital-veterinário, muito menos num com todo este aparato monumental.

— É uma obra de arte — disse Melanie. — Devias ver as salas de operações.

— Oh, meu Deus! — disse Kevin com um suspiro e revirando os olhos.—Eu fui enredado por estas insensatas. Acabámos de passar pela experiência mais devastadora das nossas vidas, e vocês estão a falar em fazer uma visita turística.

— Não será uma visita turística — disse Melanie, enquanto descia do carro.—Vamos, Candace, preciso da tua ajuda. Kevin, tu podes esperar aqui, se quiseres.

— Por mim, tudo bem — disse Kevin. Mas bastou alguns minutos a vê-las caminhar penosamente em direcção à entrada para ele saltar do carro também. Decidiu que a ansiedade de esperar seria pior do que a tensão de ir.

— Esperem — chamou Kevin. Teve de correr para conseguir apanhá-las.

— Não quero ouvir queixumes — disse Melanie a Kevin.

— Não te preocupes — disse Kevin. Sentiu-se como um adolescente a ser repreendido pela mãe.

— Eu não antevejo quaisquer problemas — disse Melanie. — O gabinete de Bertram Edwards é na parte do edifício onde está toda a administração, que a esta hora estará deserta. Mas só para ter a certeza de que não levantamos qualquer suspeita, uma vez lá dentro vamos direitos ao vestiário. Quero que vocês dois vistam o equipamento do centro. Está bem? Quero dizer, não é propriamente a hora em que alguém espere encontrar visitas. — Acho uma boa ideia — disse Candace.

—Está bem—disse Bertram ao telefone. Olhou para o mostrador luminoso do seu relógio digital na mesa-de-cabeceira. Era meia-noite e um quarto.

— Vou ter consigo ao seu gabinete dentro de cinco minutos. Bertram sentou-se na beira da cama e afastou o mosquiteiro.

— Algum problema? — perguntou Trish, a sua mulher. Ela tinha-se soerguido sobre o cotovelo.

— Só uma asneirada — disse Bertram. — Dorme! Volto dentro de mais ou menos meia hora.

Bertram fechou a porta do quarto de dormir antes de acender a luz do quarto de vestir. Vestiu-se rapidamente. Embora tivesse minimizado a situação a Trish, Bertram sentia-se ansioso. Não fazia qualquer ideia do que se estava a passar, mas teria de ser algum problema. Siegfried nunca lhe telefonara a meio da noite pedindo para que ele fosse ao seu gabinete.

Lá fora, com a Lua quase cheia, lá no alto para leste, estava tão claro como se fosse dia. O céu estava cheio de nuvens de um prateado-arroxeado. O ar nocturno era pesado, húmido e absolutamente tranquilo. Os sons da selva eram quase uma constante cacofonia de zumbidos, chilreios e grasnidos interrompidos com ocasionais gritos curtos. Era um ruído a que Bertram se habituara ao longo dos anos, e que nem registava na mente.

Apesar de a distância até à Câmara ser apenas de alguns metros, Bertram levou o carro. Sabia que seria mais rápido, e a cada minuto que passava a sua curiosidade aumentava. Quando se dirigiu para o parque de estacionamento, notou que os soldados, habitualmente letárgicos, estavam estranhamente agitados, movendo-se pelos postos, agarrados às suas armas. Quando ele apagou as luzes e saiu do carro, eles olharam-no com nervosismo.

Enquanto caminhava em direcção ao edifício, Bertram conseguia ver um fraca luz a tremeluzir através das ripas dos estores que cobriam as janelas do segundo andar do gabinete de Siegíried. Subiu as escadas, passou pela área escura da recepção normalmente ocupada por Aurielo, e entrou no gabinete de Siegíried.

Siegíried estava sentado à secretária com os pés apoiados numa das esquinas. Com a mão do braço bom, ele rodopiava suavemente um brande no copo. Cameron Mclvers, chefe da segurança, estava sentado numa cadeira rotativa com um copo semelhante. A única iluminação no gabinete vinha de uma vela que ardia num dos crânios. A fraca luz tremeluzente projectava sombras escuras que davam vida à colecção de animais embalsamados.

— Obrigado por ter vindo a uma hora tão pouco apropriada — disse Siegfried, com o seu usual sotaque alemão. — Um pouco de brande?

— Será que vou precisar? — perguntou Bertram, enquanto puxava uma cadeira rotativa para junto da secretária.

Siegfried deu uma gargalhada.

— Nunca fez mal.

Cameron tirou a bebida de um armário. Ele era um robusto escocês, barbudo, com um bolboso nariz vermelho e uma forte inclinação para qualquer bebida alcoólica, embora o uísque fosse compreensivelmente a sua favorita. Passou a bebida a Bertram e retomou o seu lugar e a sua bebida.

— Em geral, quando sou chamado a meio da noite, trata-se de uma emergência médica com algum animal — disse Bertram. Sorveu um golo do brande e respirou fundo. — Esta noite tenho o pressentimento de que é um assunto completamente diferente.

— Na realidade—disse Siegfried. — Primeiro, tenho de elogiá-lo. O seu aviso desta tarde sobre Kevin Marshall foi bem fundado e na altura própria. Pedi a Cameron para mandar os marroquinos vigiarem-no, e a verdade é que, ao fim da tarde, ele, Melanie Becket e uma das enfermeiras da equipa cirúrgica foram de carro até à área de acesso à ilha Francesca.

— Maldição! — exclamou Bertram. — Chegaram a ir à ilha?

— Não — disse Siegfried. — Apenas se entretiveram com o flutuador da comida. Também pararam para falar com Alphonse Rimba.

— Isso irrita-me imenso! — exclamou Bertram. — Não gosto que quem quer que seja chegue perto da ilha, e não gosto que quem quer que seja fale com aquele pigmeu.

— Nem eu — concordou Siegfried.

— Onde estão eles agora? — interrogou Bertram.

— Deixámo-los ir para casa—disse Siegfried. — Mas não antes de lhes darmos o maior susto da vida deles. Suponho que não voltarão a fazer o mesmo, pelo menos durante uns tempos.

— Era a última coisa que eu precisava! — queixou-se Bertram. — Detesto ter de me preocupar com isto para além de ter a preocupação dos bonobos se separarem em dois grupos.

— Isto é pior do que os animais viverem em dois grupos — disse Siegfried.

— As duas coisas são más — disse Bertram. — Qualquer das questões tem fortes probabilidades de interromper os bons progressos da operação e, possivelmente, fazer que acabem de vez. Penso que a minha ideia de enjaulá-los todos e trazê-los para o centro dos animais devia ser reconsiderada. Tenho as jaulas lá. Não seria difícil e ia tornar as recolhas muito mais acessíveis.

Desde o momento em que Bertram verificara que os bonobos estavam a viver em dois grupos sociais, acreditava que seria preferível cercá-los e mantè-los em jaulas separadas onde pudessem ser observados. Mas fora contrariado por Siegfried. Bertram já considerara a hipótese de passar por cima de Siegfried, apelando ao patrão em Cambridge, Massachusetts, mas decidira não o fazer. Essa atitude poderia alertar as altas estâncias da Gensys para os potenciais problemas com o programa dos bonobos.

—Não vamos começar de novo essa discussão!—disse Siegfried, com firmeza. — Não vamos desistir da ideia de mantè-los isolados na ilha. Todos acordámos, quando tudo isto começou, que essa era a melhor ideia. Continuo a pensar que é. Mas com este episódio do Kevin Marshall, a ponte está a preocupar-me.

— Porquê? — perguntou Bertram. — Está trancada.

— Onde estão as chaves? — perguntou Siegfried.

— No meu gabinete — disse Bertram.

— Penso que deveriam estar aqui no cofre central — disse Siegfried. — A maioria do seu pessoal tem acesso ao seu gabinete, incluindo Melanie Becket.

— Talvez tenha razão — disse Bertram.

— Ainda bem que concorda — disse Siegfried. — Por isso, gostaria que as fosse buscar. Quantas são?

— Não me lembro exactamente — disse Bertram. — Quatro ou cinco. Qualquer coisa assim.

— Eu quero-as aqui — disse Siegfried.

— Está bem — disse Bertram, amavelmente. — Por mim, não há problema.

— Bom — disse Siegfried. Deixou cair as pernas de cima da secretária e levantou-se. — Vamos lá. Eu vou consigo.

— Quer ir agora? — perguntou Bertram, incrédulo.

—Porquê deixar para amanhã aquilo que se pode fazer hoje? — disse Siegfried. — Não é uma ideia que vocês americanos prezam muito? Com as chaves no cofre, sei que vou dormir muito melhor esta noite.

— Querem que eu vá também? — perguntou Cameron. —Não é necessário—disse Siegfried.—Tenho a certeza de qi eu e Bertram nos desembaraçamos sozinhos.

Kevin observou-se no espelho ao alto que havia junto aos cacifos nos vestiários dos homens. O problema com os fatos-de-macaco era que o tamanho pequeno era demasiado pequeno para ele e o médio era um pouco grande. Teve de enrolar as mangas e as pernas das calças.

— Que diabo estás a fazer aí dentro? — disse Melanie em voz alta. Ela tinha aberto a porta do vestíbulo.

— Já vou — disse Kevin. Fechou o cacifo depois de ter deixado lá a sua roupa e saiu apressadamente para o vestíbulo.

— Pensei que as mulheres é que levavam muito tempo a vestirem-se — reclamou Melanie.

— Não conseguia decidir qual era o tamanho melhor — disse Kevin.

— Entrou alguém enquanto estavas lá? — perguntou Melanie.

— Nem viva alma — disse Kevin.

— Bom — disse Melanie. — O mesmo no lado das mulheres. Vamos?!

Melanie começou a subir as escadas e fez sinal para que os outros a seguissem.

—Para ir daqui à área administrativa, temos de passar através do hospital-veterinário. Penso que seria melhor evitarmos o primeiro andar, que tem a sala de emergência e a unidade dos cuidados intensivos. Há sempre muita actividade lá. Por isso, vamos até ao segundo andar e atravessamos a unidade de fertilização. Até posso dizer que estou a verificar alguns pacientes, caso alguém pergunte.

— Tudo bem — disse Candace.

Passaram pelo primeiro andar e subiram ao segundo. Ao entrarem no corredor principal, depararam-se com o primeiro funcionário do centro. Se o homem achou que a presença de Kevin e de Melanie no meio da noite tinha qualquer coisa de estranho, não deu a perceber. Passou por eles com um simples cumprimento de cabeça.

— Este foi fácil — murmurou Candace.

— É dos fatos — disse Melanie.

Voltaram à esquerda através de um conjunto de portas duplas e entraram num vestíbulo estreito, com muita luz, onde havia uma série de portas sem nada. Melanie abriu ligeiramente uma delas e espreitou. Cautelosamente, fechou a porta.

—É um dos meus pacientes. É uma gorila fêmea que está quase pronta para a recuperação do óvulo. Elas, por vezes, tornam-se desordeiras devido ao nível hormonal que temos de atingir, mas está a dormir profundamente.

— Posso ver? — perguntou Candace.

—Suponho que sim—disse Melanie.—Mas silêncio e não faças qualquer movimento brusco.

Candace assentiu com a cabeça. Melanie abriu a porta e entrou cuidadosamente. Candace seguiu-a. Kevin ficou junto à porta, mantendo-a aberta.

— Não seria melhor fazermos aquilo que nos trouxe aqui? — sussurrou Kevin

Melanie pôs o indicador nos lábios.

Havia quatro jaulas no compartimento, estando apenas uma delas ocupada. Uma grande gorila dormia numa cama de palha. A luz vinha da parte superior, das luzes indirectas que estavam reduzidas quase na totalidade.

Agarrando-se às grades cuidadosamente, Candace debruçou-se para a frente, para poder observar melhor. Nunca tinha estado tão perto de um gorila. Se ela quisesse, poderia ter tocado no enorme animal.

Com uma velocidade inacreditável, a gorila despertou e saltou da frente da jaula. No mesmo instante, ela esmurrava o chão com os punhos como um tímbale enquanto soltava gritos.

Candace deixou sair, ela própria, um grito ao recuar com um salto, para se colocar fora de alcance. Melanie deitou-lhe a mão.

— Não tem importância — disse Melanie.

Nessa altura, a gorila deu uma outra investida para a frente da jaula. Ao mesmo tempo, atirou violentamente uma mão-cheia de fezes frescas, que se empastaram contra a parede oposta.

Melanie conduziu Candace para a porta e Kevin fechou-a.

— Peço imensa desculpa — disse Candace a Melanie. A tez nórdica de Candace estava mais pálida do que o normal.

— Estás bem?

— Penso que sim — disse Candace. Ela olhou para a frente do seu fato.

— Um pouco de SPM1 — disse Melanie. — Ela não te chegou a atingir com as fezes, pois não?

 

’Síndroma Pré-Menstrual. (N. da T.)

 

— Suponho que não—disse Candace. Passou a mão pelo cabelo e examinou-a.

—Vamos buscar as chaves—disse Kevin.—Estamos a abusar da nossa sorte.

Caminharam ao longo da unidade de fertilização e passaram por um segundo par de portas giratórias para entrar numa grande sala dividida em compartimentos. Cada compartimento tinha várias jaulas, e a maioria das jaulas estavam ocupadas por jovens primatas de diferentes espécies.

— Este é o sector pediátrico — murmurou Melanie. — Age com naturalidade.

Havia quatro pessoas a trabalhar na unidade pediátrica. Estavam todas vestidas de batas de cirurgia com os estetoscópios dependurados ao pescoço. Foram todas simpáticas mas estavam ocupadas e preocupadas, e o trio passou, colhendo nada mais do que alguns sorrisos e cumprimentos de cabeça.

Depois de mais um conjunto de portas duplas e um curto corredor, chegaram a uma pesada porta contra incêndios que estava trancada. Melanie teve de usar o cartão para abri-la.

— Aqui estamos — cochichou Melanie, enquanto fechava a porta cautelosamente. Depois da azáfama que eles tinham acabado de presenciar, o silêncio e a escuridão pareciam absolutos. — Esta é a parte administrativa. A escadaria fica lá ao fundo do vestíbulo, à esquerda. Por isso, agarrem-se.

Houve apalpadelas na escuridão até que Candace colocou a mão no ombro de Melanie e Kevin pôs a sua no de Candace.

— Vamos lá — encorajou Melanie. Ela começou a mover-se pouco a pouco ao longo do corredor, com a mão apoiada à parede. Os Outros deixavam-se levar. Gradualmente, os seus olhos foram-se adaptando. Quando o grupo se aproximou da porta que dava para a escadaria agradeceram a reduzida quantidade de luz da Lua que penetrava através das frestas.

Na escadaria, estava relativamente claro. Grandes janelas em cada patamar inundavam as escadas com a luz do luar.

O vestíbulo no primeiro andar era muito mais fácil de andar do que o do segundo devido às janelas nas portas de entrada.

Melanie conduziu-os até junto do gabinete de Bertram.

— Agora, vem o osso mais duro — disse Kevin, enquanto Melanie tentava introduzir o cartão na fechadura.

Houve um estalido imediato e encorajante. A porta abriu-se.

— Tudo bem — disse Melanie, com júbilo.

Os três entraram no gabinete e novamente ficaram submersos em quase absoluta escuridão. A única luz era uma escassa claridade que se infiltrava através da porta de acesso ao gabinete interior.

— E agora? — interrogou Kevin. — Não vamos conseguir encontrar coisa alguma às escuras.

— Concordo — disse Melanie. Ela tacteou ao longo da parede à procura do interruptor. Logo que o dedo tocou nele, ligou-o.

Por uns instantes, olharam uns para os outros pestanejando.

— Caramba, parece luz a mais — disse Melanie.

—Espero que não acorde os guardas marroquinos do outro lado da rua — disse Kevin.

— Nem brinques com isso — disse Melanie. Ela foi até ao gabinete interior e acendeu a luz. Kevin e Candace seguiram-na.

— Penso que devemos ser metódicos nisto — disse Melanie. — Eu procuro na secretária. Candace, tu ficas com o arquivo. E tu, Kevin, por que não vais para o gabinete de fora, e já que estás lá, deita o olho para o átrio. Dá um grito se aparecer alguém.

— Isso é um pensamento muito saudável — disse Kevin.

Siegfried voltou à esquerda, junto à estação da frota de camiões e acelerou o seu novo Land-Cruiser, Toyota, em direcção ao centro dos animais. O veículo tinha sido adaptado para a sua deficiência, de modo que ele pudesse fazer as velocidades com a mão esquerda.

— Cameron faz alguma ideia por que é que nós estamos tão preocupados com a ilha Francesca? — perguntou Bertram.

— Não, de modo algum — disse Siegfried.

— Ele perguntou?

— Não, não é esse género de pessoa. Ele recebe ordens. Não as questiona.

— E se lhe disséssemos e lhe déssemos uma pequena percentagem? — sugeriu Bertram. — Ele poderia ser muito útil.

— Eu não vou diluir a nossa percentagem! — disse Siegfried. — Nem alvitre isso. Além disso, Cameron já é bastante útil. Ele faz tudo quanto eu lhe digo para fazer.

— O que me preocupa mais nesta história do Kevin Marshall é que ele deve ter dito qualquer coisa às amigas — disse Bertram. — A última coisa que eu quero é que eles comecem a pensar que os bonobos na ilha estão a usar lume. Se isso sai cá para fora, é só uma questão de tempo para termos os defensores dos animais a sair das florestas. A Gensys fechava o programa num abrir e fechar de olhos.

— Que acha que devemos fazer? — perguntou Siegfried. — Posso providenciar para fazê-los desaparecer... todos três.

Bertram olhou para Siegfried e arrepiou-se. Sabia que o homem não estava a gracejar.

— Não, isso podia ser pior — disse Bertram. Olhou para trás, através do pára-brisas. — Isso podia levantar uma investigação grave por parte do Estado. Repito, penso que devíamos apanhar os bonobos, pô-los nas jaulas que eu levei para lá e trazê-los para cá. De certeza que eles não vão usar lume no centro.

— Não, amaldiçoado seja! — disse Siegfried, num tom seco. — Os animais ficam na ilha. Se os trazemos para cá, não vamos poder manter o segredo. Mesmo que não usem lume, já sabemos que eles são uns malditos de uns espertalhõezinhos pelos problemas que temos tido nas recolhas, e podem fazer qualquer coisa que seja igualmente esquisita. Se isso acontecer, os vigilantes vão dar com a língua nos dentes. Então, ficamos numa situação muito pior.

Bertram suspirou e passou a mão pelo cabelo branco. Relutantemente, ele admitiu para si próprio que Siegfried não deixava de ter uma certa razão. Contudo, pensava que seria melhor trazer os animais para o centro, sobretudo para isolá-los uns dos outros.

—Amanhã vou falar com Raymond Lyons — disse Siegfried. — Tentei telefonar-lhe há algumas horas. Pensei que uma vez que Kevin Marshall já lhe falou no assunto podíamos pedir a opinião dele. Ao fim e ao cabo, toda esta operação é criação dele. Ele está tão ansioso por evitar problemas como nós.

— Verdade — disse Bertram.

— Diga-me uma coisa—disse Siegfried. — Se os animais estão a usar lume, onde acha que eles o foram buscar? Continua a pensar que foi dos raios?

— Não tenho a certeza—disse Bertram. — Poderia ter sido dos raios. Mas, a verdade, é que eles conseguiram roubar ferramentas, cordas e outro material quando nós tínhamos a equipa a construir o mecanismo da ponte lá na ilha. Ninguém jamais pensou na possibilidade de roubo. Quero dizer, estava tudo bem guardado em caixas de ferramentas. De qualquer modo, eles podem ter arranjado fósforos. Claro, que não faço ideia como é que eles descobriram como utilizá-los.

—Acabou de me dar uma ideia—disse Siegfried.—Por que não dizemos a Kevin e às suas amigas que houve uma equipa que esteve lá na semana passada a fazer trabalhos como, por exemplo, a abrir caminhos. Podíamos dizer que acabámos de descobrir que foram eles que têm estado a fazer fogueiras.

— Boa, isso é uma belíssima ideia! — disse Bertram. — E faz muito sentido. Temos andado a considerar a ideia de colocar uma ponte sobre o rio Diviso.

— Por que diabo não pensámos nisso antes? — questionou Siegfried. — É tão óbvio.

Logo adiante, as luzes doLand-Cruiser iluminaram os primeiros edifícios do centro dos animais.

— Onde quer que estacione? — perguntou Siegfried.

— Pare mesmo na parte da frente — disse Bertram. — Pode esperar no carro. E só um segundo.

Siegfried tirou o pé do acelerador e começou a travar.

— Oh, diabo! — disse Bertram.

— Que se passa?

— Está uma luz acesa no meu gabinete — respondeu Bertram.

— Isto promete — disse Candace em voz alta enquanto tirava uma pasta de arquivo da gaveta de cima do ficheiro. A pasta era azul-escura e fechava com um elástico. No canto superior direito dizia: ILHA FRANCESCA.

Melanie fechou a gaveta onde tinha estado a procurar e foi ter com Candace. Kevin veio do gabinete exterior ter com elas.

Candace retirou o elástico e abriu a pasta. Deixou cair o conteúdo sobre uma mesa de biblioteca. Havia diagramas em fios de equipamento electrónico, folhas de computador e muitos mapas. Havia ainda um grande envelope de manilha volumoso que tinha escrito: PONTE STEVENSON.

— Estamos a ficar quentes — disse Candace. Ela abriu o envelope, meteu a mão dentro e retirou um chaveiro com cinco chaves idênticas.

—Voilà!—disse Melanie. Pegou no chaveiro e começou a retirar uma das chaves.

Kevin espreitou para os mapas e escolheu um mapa de perfil pormenorizado. Estava a desdobrá-lo quando, pelo canto do olho, se apercebeu de uma luz a tremeluzir. Olhando para a janela, viu os reflexos do feixe das luzes de um carro dançando nas folhas dos estores, que estavam meio abertos. Foi até à janela e espreitou.

— Oh! — crocitou Kevin. — É o carro de Siegfried.

— Rápido! — disse Melanie. — Mete tudo isto de novo no ficheiro.

Melanie e Candace, apressadamente, enfiaram tudo dentro da pasta, puseram a pasta dentro do ficheiro e fecharam a gaveta. Mal a tinham fechado, ouviram o guizo da porta da frente do edifício a abrir-se.

— Por aqui! — sussurrou Melanie, freneticamente. Ela dirigiu-se para uma porta por detrás da secretária de Bertram. Apressadamente, os três passaram através da porta. Quando Kevin estava a fechá-la, ouviu a porta do gabinete exterior a abrir-se.

Tinham entrado num dos consultórios de Bertram. Era de azulejos brancos e ao centro havia uma marquesa de alumínio inoxidável. Como no gabinete interior de Bertram, as janelas eram cobertas de estores. Penetrava luz suficiente para permitir que eles corressem para a porta que dava acesso ao átrio. Infelizmente, na corrida, Kevin bateu com o pé num balde de alumínio inoxidável que estava no chão junto à marquesa.

O balde fez um som estridente ao bater contra o pé da mesa. Na tranquilidade, soou como um gongo num parque de diversões. Melanie reagiu, atirando com a porta para o átrio e correndo pela escadaria. Candace seguiu-a. Enquanto Kevin se precipitava para o átrio, ouviu a porta do gabinete de Bertram a abrir-se com um estrondo. Ele não fazia ideia se fora visto ou não.

Na escadaria, Melanie desceu tão rapidamente quanto a luz do luar o permitia. Ela ouvia Candace e Kevin a segui-la. Abrandou no fundo das escadas para procurar, às apalpadelas, a porta de acesso à cave. Abriu-a no momento exacto. Lá em cima, ouviram abrir a porta de acesso às escadas do primeiro andar, seguido por uns passos pesados que desciam os degraus metálicos.

A cave estava escura como breu, com excepção de uns débeis raios de luz que entravam através de uma linha que contornava um rectângulo, lá no fundo. Apoiando-se uns nos outros, dirigiram-se em direcção à luz. Só quando chegaram muito próximo, Kevin e Melanie se aperceberam de que era uma saída de emergência com a luz a infiltrar-se na sua periferia. Melanie abriu-a com o cartão magnético assim que conseguiu localizar a ranhura.

Para além da saída de emergência havia um pátio de entrada brilhantemente iluminado o que lhes permitiu correr a toda a velocidade. Melanie fê-los parar a meio de uma passagem estreita. Lá, abriu uma porta que dizia: PATOLOGIA.

—Para dentro—disse Melaniecomose latisse. Silenciosamente, todos obedeceram.

Fechando a porta, Melanie trancou-a com um fecho de correr.

Depararam-se numa antecâmara de duas salas de operações. Havia pias de lavagem, várias secretárias e uma grande porta isolada que dava para uma câmara frigorífica.

—Por que é que viemos para aqui?—perguntou Kevin com uma voz de pânico. — Estamos encurralados!

— Não, propriamente — disse Melanie, ofegantemente. — Por aqui. — Fez-lhes sinal para que a seguissem. Para surpresa de Kevin havia um elevador. Melanie bateu com os punhos no botão de chamada, o que resultou num gemido imediato do seu mecanismo. Ao mesmo tempo, o indicador acendeu-se para mostrar que o elevador estava no terceiro andar.

— Depressa! — rogava Melanie, como se a sua insistência fosse acelerar o aparelho. Visto que era um elevador de carga, era desesperantemente vagaroso. Estava justamente a passar pelo segundo andar quando a porta para o pátio de entrada chiou ao rodar nas missagras, seguido de um ruído abafado.

Os três trocaram olhares de pânico.

— Vão chegar aqui dentro de segundos — disse Kevin. — Há outra saída?

Melanie abanou a cabeça.

— Somente o elevador.

— Temos de nos esconder — disse Kevin.

— E o frigorífico? — disse Candace.

Sem tempo para discutir, os três correram em flecha para a câmara frigorífica. Kevin abriu a porta. Uma névoa fluiu para fora, indo assentar numa camada no chão. Candace entrou primeiro, seguida de Melanie e depois Kevin. Kevin puxou a porta e fechou-a. As ferragens deram um estalido firme.

O compartimento tinha seis metros quadrados, com prateleiras em alumínio inoxidável em toda a volta, desde o chão até ao tecto, e havia ainda uma placa central. Nas prateleiras havia algumas carcaças de primatas. O mais empolgante era o corpo de um enorme gorila macho, preto-prateado, que estava na prateleira do meio, na placa central. A claridade no compartimento provinha de lâmpadas dentro de redes, fixas ao tecto a intervalos regulares nas zonas de passagem.

Instintivamente, os três precipitaram-se para a parte traseira da placa central e acocoraram-se. Arespiração pesada deles formava fugazes bolas de névoa na temperatura frígida. O odor, com um laivo de amónia, não era agradável mas era tolerável.

Rodeados por um isolamento completo, Kevin e as companheiras não conseguiam ouvir qualquer som dentro da câmara frigorífica, nem mesmo o guinchar do elevador. Pelo menos, até ouvirem o inconfundível estalido do trinco da porta da câmara frigorífica.

Kevin sentiu o coração começar a falhar enquanto a porta se abria. Preparado para ver a cara escarnecedora de Siegfried, Kevin lentamente levantou a cabeça para espreitar por cima do corpo do gorila morto. Para surpresa sua, não era Siegfried. Eram dois homens com batas cirúrgicas que traziam o corpo de um chimpanzé.

Sem proferir palavra, os dois homens colocaram os restos do macaco morto numa prateleira à direita, mesmo à entrada da porta e saíram. Logo que a porta se fechou, Kevin olhou para Melanie e suspirou.

— De certeza que este é o pior dia da minha vida!

—Ainda não terminou—disse Melanie.—Ainda temos de sair daqui. Mas, pelo menos, levamos aquilo que nos trouxe. — Ela abriu o punho e mostrou a chave. Da sua superfície cromada reflectia-se uma luz.

Kevin olhou para a sua mão. Sem se aperceber, ele ainda se agarrava ao mapa de perfil da ilha Francesca.

Bertram acendeu a luz do vestíbulo quando acabou de subir a escada. Tinha subido para o segundo andar e entrado na unidade de pediatria. Perguntara ao pessoal se alguém tinha passado por lá a correr. A resposta foi não.

Entrando no seu consultório, ele acendeu também aluz. Siegfried apareceu na porta do gabinete de Bertram.

— Então? — perguntou Siegfried.

—Não sei se esteve alguém aqui ou não—disse Bertram. Olhou para o balde de alumínio inoxidável que não estava na sua posição normal, debaixo da marquesa.

— Viu alguém? — perguntou Siegfried.

— Na verdade, não — disse Bertram. Ele abanou a cabeça. — Talvez o pessoal de limpeza tenha deixado as luzes acesas.

— Bem, isto reforça a minha preocupação no que diz respeito às chaves — disse Siegfried.

Bertram baixou a cabeça em sinal de acordo. Esticou o pé e puxou o balde para a sua posição normal. Apagou a luz do consultório antes de seguir Siegfried para o gabinete.

Bertram abriu a gaveta superior do ficheiro e retirou a pasta da ilha Francesca. Tirou o elástico de segurança e removeu o conteúdo.

— Que se passa? — perguntou Siegfried.

Bertram tinha hesitado. Como uma pessoa compulsivamente arrumada, ele não imaginava ter enfiado tudo na pasta tão desordenadamente. Temendo o pior, foi com um certo alívio que apalpou o envelope e sentiu o volume do chaveiro.

 

5 DE MARÇO, 1997 - 18:45 CIDADE DE NOVA IORQUE

— Isto é a coisa mais estranha — disse Jack. Ele observava através do microscópio um determinado slide e estivera debruçado sobre ele durante a última meia hora. Chet tentara falar-lhe, mas tinha desistido. Quando Jack estava concentrado, era impossível desviar-lhe a atenção.

— Gosto de saber que estás a divertir-te — disse Chet. Acabara de se levantar e ia pegar na pasta preparando-se para sair.

Jack recostou-se e abanou a cabeça.

— Tudo o que diz respeito a este caso é de endoidecer. — Olhou para Chet e ficou surpreendido ao vê-lo de casaco vestido. — Oh, estás de saída?

—Estou, e há cerca de quinze minutos que tento dizer-te adeus.

— Dá aqui uma espreitada antes de saíres — disse Jack. Fez sinal para o microscópio e afastou-se da secretária para dar lugar a Chet.

Chet hesitou. Verificou o relógio. Tinha de estar no ginásio às sete horas para uma classe de aeróbica. Andava com o olho numa rapariga que era frequentadora habitual. Numa tentativa de se aproximar dela, passou a ir a essa classe. O problema era que ela estava em melhor forma do que ele fisicamente, pelo que no fim da aula, em geral, estava demasiado cansado para falar.

— Vamos lá, camarada — disse Jack. — Dá-me a tua preciosíssima opinião.

Chet deixou a pasta, debruçou-se e olhou através do microscópio.

Não tendo havido qualquer explicação da parte de Jack, em primeiro lugar teve de descobrir o que era o tecido.

— Então, ainda estás a observar a secção congelada do fígado? — disse ele.

— Manteve-me entretido toda a tarde — disse Jack.

— Por que não esperas pelas lâminas fixas? — disse Chet. — Estas secções congeladas são tão limitativas.

— Pedi à Maureen para mas dar logo que fosse possível — disse Jack. — Mas, entretanto, isto é tudo quanto tenho. Que achas da área que está sob o indicador?

Chet focou a lente. Um dos muitos problemas com as secções congeladas era o facto de muitas vezes serem grossas e por isso a estrutura celular revelava-se indistinta.

— Eu diria que parece um granuloma — disse Chet. Um granuloma era o sintoma celular de uma inflamação crónica nas células.

— Essa é a minha opinião, também — disse Jack. — Agora, move o campo para a direita. Vais ver parte da superfície do fígado. Que vês aí?

Chet seguiu as instruções, enquanto pensava que se chegasse tarde, não haveria um lugar vago na classe de aeróbica. O instrutor era muito popular.

— Eu vejo o que me parece ser um grande quisto cheio de cicatrizes — disse Chet.

— Parece-te normal? — perguntou Jack.

—Não diria que seja—disse Chet.—Na realidade, eu diria que me parece muito esquisito.

— Muito bem dito — observou Jack. — Agora, deixa-me fazerte uma pergunta.

Chet levantou a cabeça e olhou para o seu colega de gabinete. A testa arredondada de Jack estava enrugada devido ao intrincado da situação.

— Esperarias ver um fígado desses num transplante relativamente recente?

— Certamente que não! — disse Chet. — Esperaria ver uma inflamação aguda mas nunca um granuloma. Especialmente, se o processo pudesse ser visto grosso modum, como é sugerido pela superfície colapsada do quisto.

Jack suspirou.

— Muito obrigado! Estava a começar a questionar a minha capacidade de diagnosticar. É encorajante ouvir que tu chegaste à mesma conclusão.

— Bate, Bate! — chamou uma voz.

Jack e Chet olharam e viram Ted Lynch, o director do Laboratório de ADN, junto à porta. Era um homem grande, quase do tipo de Calvin Washington. Tinha sido médio por Princeton antes de ir para a universidade.

— Tenho alguns resultados para ti, Jack — disse Ted. — Mas lamento, não é o que querias ouvir, por isso, vim cá dizer-te pessoalmente. Sei que estás convencido de que tens aqui um transplante de fígado, mas o DQ alpha é perfeitamente idêntico, o que sugere que é o fígado do próprio indivíduo.

Jack deitou as mãos ao ar.

— Eu desisto! — disse ele.

—Agora, ainda há a hipótese de que tenha sido um transplante — disse Ted. — Há vinte e um genotipos da sequência DQ alpha possíveis, e o teste não consegue discriminar sete por cento das vezes. Mas eu continuei e fiz os testes ABO dos grupos sanguíneos no cromossoma nove, e eram perfeitamente idênticos também. Combinando os dois resultados, as hipóteses de não ser o fígado do paciente são muito remotas.

— Estou arrasado! — disse Jack. Com os dedos entrelaçados, deixou as mãos descansarem na cabeça. — Eu até telefonei a um cirurgião amigo meu e perguntei-lhe se haveria outras razões para que houvesse suturas na veia cava, na artéria hepática e no sistema biliar. Ele disse que não: que teria de ter havido um transplante.

— Que queres que diga? — comentou Ted. — É claro que por ti eu teria muito prazer em forjar os resultados. — Ele riu-se, e Jack fingiu que lhe dava um murro.

O telefone de Jack tocou insistentemente. Jack fez sinal a Ted para ficar, enquanto levantava o auscultador.

— Que é? — disse ele, grosseiramente.

— Eu estou de saída — disse Chet. Acenou a Jack e passou em frente de Ted.

Jack ouvia com atenção. Lentamente, a sua expressão mudava de exaspero para interesse. Acenou com a cabeça algumas vezes enquanto olhava para Ted. Em consideração a Ted, ele levantou um dedo e disse:

— Um minuto. Pois, com certeza—dizia Jack ao telefone. — Se a UNOS sugere que tentemos a Europa, tenta. — Olhou para o relógio. — Claro que lá é alta noite, mas faz o que puderes!

Jack desligou o telefone.

— Era Bart Arnold — disse ele. — Eu pus todo o departamento forense à procura de um recente transplante de fígado desaparecido.

— Que é a UNOS? — perguntou Ted.

— União Nacional de Partilha de Órgãos1 — disse Jack.

— Boas notícias? — perguntou Ted.

—Nadinha—disse Jack.—É desconcertante, Bart até verificou os mais importantes centros de transplante de fígados.

— Talvez não tenha sido um transplante — disse Ted. — Eu digo-te, a probabilidade de que os meus dois testes sejam idênticos, por acaso é muito remota.

— Estou convicto de que foi um transplante — disse Jack. — Não há absolutamente qualquer razão para tirarem o fígado a uma pessoa e depois voltarem a pô-lo novamente.

— Tens a certeza?

— É claro que tenho — disse Jack.

— Pareces muito empenhado neste caso?! — comentou Ted. Jack deu uma gargalhada irrisória.

— Eu decidi que tenho de desvendar este mistério até que me caia o céu em cima — disse ele. — Se eu não conseguir, perderei o respeito por mim próprio. Não há assim tantos transplantes de fígado. Quero dizer, se eu não consigo resolver este, é melhor mudar de profissão.

— Está bem — disse Ted. — Já te digo o que posso fazer. Posso fazer um teste polimarcador, que compara áreas no cromossoma quatro, seis, sete, nove, onze e dezanove. Há uma hipótese num bilião de encontrar pares idênticos por mero acaso. E para meu próprio sossego, até vou fazer a sequência do DQ alpha tanto na amostra do fígado como no paciente para tentar descobrir até que ponto são idênticos.

— Agradeço-te imenso tudo o que puderes fazer — disse Jack.

— E mais, vou subir e começar já esta noite — disse Ted. — Assim, poderei ter os resultados amanhã.

— Que grande camarada — disse Jack. Estendeu a mão e Ted deu-lhe uma palmada.

Depois de Ted sair, Jack apagou a luz do microscópio. Sentia-se como se o slide tivesse estado a troçar dele com os seus pormenores dúbios. Tinha estado a observá-lo durante tanto tempo que os olhos lhe doíam.

Durante alguns minutos, Jack sentou-se na secretária e olhou para o monte de casos inacabados. Havia pastas amontoadas em várias pilhas. Na sua estimativa haveria entre vinte e cinco a

 

1 United National Organ Sharing. (N. da T.)

 

trinta. Eram mais do que o costume. Papelada nunca fora o forte de Jack, e agravava-se sempre que ele estava embrenhado num caso particular.

Praguejando para si mesmo devido à frustração da sua incompetência, Jack levantou-se da secretária e tirou o casaco de bombardeiro do cabide por detrás da porta. Já tinha estado sentado e reflectido mais do que sua capacidade permitia.

O panorama da cidade de Nova Iorque visto da Ponte George Washington era deslumbrante. Franco Ponti tentou voltar a cabeça para apreciá-lo, mas era difícil devido ao trânsito da hora de ponta. Franco ia ao volante de uma Ford Sedem roubada, a caminho de Englewood, Nova Jérsia. Angelo Facciolo sentava-se ao lado, olhando em frente através do pára-brisas. Os dois homens usavam luvas.

— Enche os olhos com a vista à esquerda — disse Franco. — Olha para todas aquelas luzes. Vê-se a ilha toda, até mesmo a Estátua da Liberdade.

—Sim, já vi—disse Angelo, um tanto ou quanto mal humorado.

— Que se passa contigo? — interrogou Franco. — Estás a agir como se estivesses num farrapo.

— Não gosto de trabalhos deste género — disse Angelo. — Fazem-me lembrar de quando Cerino ficou meio chalupa e me obrigou, a mim e a Tony Ruggerio, por toda a maldita cidade, a fazer a mesma espécie de porcaria. Devíamos continuar a fazer o nosso trabalho de sempre, lidando com as pessoas do costume.

— Vinnie Dominick não é Paulo Cerino — disse Franco. — E o que há de mal em apanhar uns trocos extras?

— O dinheiro está bem — concordou Angelo. — Do que eu não gosto é do risco.

— Que queres dizer?—questionou Franco.—Não há qualquer risco. Somos profissionais. Não corremos riscos.

—Há sempre o imprevisto—disse Angelo.—E, quanto a mim, o imprevisto sempre ocorreu.

Franco olhou para a silhueta do rosto cicatrizado de Angelo na média-luz do interior do carro. Notou que Angelo falava mesmo a sério.

— Que estás a dizer? — perguntou ele.

— O facto de esta Laurie Montgomery estar envolvida — disse Angelo. — Ela dá-me pesadelos. Eu e Tony tentámos dar-lhe uma surra, mas não conseguimos, era como se Deus estivesse a protegê-la.

Franco riu-se apesar da seriedade de Angelo.

— Esta Laurie Montgomery ia se sentir lisonjeada se soubesse que um tipo como tu tinha pesadelos por causa dela. Isso é hilariante.

— Não acho que tenha piada — disse Angelo.

— Não fiques magoado comigo — disse Franco. — Além disso, ela não está envolvida com aquilo que estamos a fazer aqui.

— Está relacionado — disse Angelo. — E ela disse a Vinnie Amendola que vai tomar o caso nas mãos dela e vai tentar descobrir como é que conseguimos tirar o corpo da morgue.

— Mas como é que ela vai fazer isso? — disse Franco. — E se acontecer o pior, mandamos Freddie Capuso e Richie Herns fazerem o trabalho sujo do costume.

— Ah, sim! — questionou Angelo. — Tu não conheces esta mulher. Ela é uma filha da mãe persistente!

— Está bem! — disse Franco, com resignação. — Queres estar chateado, por mini tudo bem.

Quando chegaram à ponte do lado de Nova Jérsia, Franco foi direito a Palisades Interstate Parkway. Como Angelo insistia em estar de mau humor, ele esticou o braço e ligou o rádio. Depois de passar por vários botões apanhou uma estação que tocava oldies but goodies1. Aumentando o volume, cantou Sweet Caroline com Neil Diamond.

Ao chegar ao segundo refrão, Angelo debruçou-se e desligou o rádio.

— Tu ganhas — disse ele. — Eu ponho-me bem disposto se tu prometes que não cantas.

— Não gostas daquela canção? — interrogou Franco, como se estivesse magoado.—Traz-me tão boas recordações. — Estalou os lábios como se estivesse a saborear. — Faz-me lembrar quando andei com a Maria Provolone.

— Ora, dessa nem faço caso!—disse Angelo, rindo-se apesar de tudo. Ele gostava de trabalhar com Franco Ponti. Franco era um profissional. Também tinha sentido de humor, o que Angelo tinha consciência lhe faltava a ele próprio.

Franco saiu da Parkway para a Palisades Avenue, passou Route

9W e foi em direcção a oeste, descendo uma colina que dava para Englewood, Nova Jérsia. O ambiente mudou completamente, de franchises de comidas rápidas e estações de serviço para classe alta suburbana.

 

1 Velhos mas bons. (N. da T.)

 

— Tens o mapa e o endereço à mão? — perguntou Franco.

—Tá tudo aqui—disse Angelo. Acendeu a luz sobre o mapa. — Estamos à procura de Overlook Place — disse ele.

— É à esquerda.

Foi fácil encontrar Overlook Place, e, cinco minutos mais tarde, eles passeavam ao longo de uma rua sinuosa com árvores em ambos os lados. Os relvados que se estendiam até às espaçosas casas eram tão vastos que pareciam as partes planas de um campo de golfe.

— Já imaginaste viver numa casa destas? comentou Franco, abanando a cabeça de um lado para outro. — Ó diabo!, eu perdia-me entre a porta da frente da minha casa e a rua.

—Eu não gosto disto—disse Angelo.—É demasiado sossegado. Vamos dar nas vistas como um treçolho.

— Não te ponhas para aí todo desajeitado — disse Franco. — Neste momento estamos só a fazer uma viagem de reconhecimento. Que número é que andamos à procura?

Angelo consultou o pedaço de papel que tinha na mão.

— Overlook Place, Número Oito.

— Quer dizer que é à nossa esquerda — disse Franco. Estavam a passar pelo número doze.

Uns momentos mais tarde, Franco afrouxou a marcha e parou no lado direito da rua. Ele e Angelo olhavam boquiabertos para uma alameda em serpentina, com candeeiros em ambos os lados, conduzindo a uma mansão estilo Tudor, que tinha como painel de fundo uma encosta de pinheiros frondosos. Havia luz na maior parte das janelas. A propriedade era do tamanho de um campo de futebol.

— Parece um maldito dum castelo!—disse Angelo, num tom de queixume.

— Devo dizer que não é o que eu esperava — disse Franco.

— Bem, que vamos fazer? — perguntou Angelo. — Não vamos ficar aqui sentados. Ainda não vimos um carro desde que nos aproximámos daqui.

Franco preparou o carro para arrancar. Admitia que Angelo tinha razão. Não podiam esperar ali. Poderia alguém dar pela presença deles, suspeitar, e chamar a Polícia. Já tinham passado por um daqueles estúpidos sinais VIGILÂNCIA DA ZONA, com a silhueta de um homem com um lenço estampado.

— Vamos tentar arranjar mais informações acerca desta rapariguinha de 16 anos — disse Angelo. — Como por exemplo, em que escola anda, o que ela gosta de fazer, e quem são os amigos dela. Não podemos arriscar ir até à casa. Isso é que era bom!

Franco deu um grunhido em sinal de concordância. Justamente quando ia a carregar no acelerador, viu uma pequena figura surgir na frente da casa. Àquela distância, não conseguia dizer se era macho ou fêmea.

— Alguém acaba de sair — disse ele.

— Eu reparei — disse Angelo.

Os dois homens observavam em silêncio enquanto a figura descia uns degraus de pedra e depois começava a descer a alameda.

— Quem quer que seja, parece gordo — disse Franco.

— E tem um cão — disse Angelo.

— Minha nossa Senhora! — disse Franco, depois de alguns momentos. — É a rapariga.

—Não posso crer—disse Angelo.—Pensas que é mesmo Cindy Carlson? Não estou habituado a que as coisas sejam tão fáceis.

Estupefactos, os dois homens observavam a rapariga enquanto ela continuava a descer a alameda como se viesse em direcção a eles, cumprimentá-los. Àfrente dela caminhava um minúsculo cão-de-água cor de mel, com a sua cauda pompom erguida.

— Que fazemos? — questionou Franco. Ele não esperava uma resposta. Estava meramente a pensar em voz alta.

— E se fizesses a cena da Polícia? — sugeriu Angelo. — Sempre resultou comigo e com Tony.

— Parece boa ideia — disse Franco. Voltou-se para o Angelo e, estendendo a mão, disse: — Deixa-me usar a tua identificação da Polícia de Ozone Park.

Angelo meteu a mão na algibeira do colete do seu fato Brioni e deu-lhe o crachá.

— Deixa-te ficar aqui por enquanto — disse Franco. — Não há necessidade de afugentá-la com essa tua cara.

— Obrigado pelo elogio — disse Angelo, com azedume. Angelo preocupava-se com a sua aparência, e vestia-se ao point numa tentativa vã de compensar o rosto, que estava severamente cicatrizado devido a uma combinação de incidentes: varicela em criança, acne na juventude e queimaduras de terceiro grau resultantes de uma explosão havia cinco anos. Ironicamente, a explosão tinha sido provocada por Laurie Montgomery.

— Não sejas tão sensível — zombou Franco. Bateu ao de leve com a mão na parte de trás da cabeça. — Sabes que gostamos de ti, embora tu pareças uma figura de um filme de terror.

Angelo defendeu-se da mão de Franco. Havia duas pessoas a quem permitia comentários sobre o seu problema: Franco e o seu patrão Vinnie Dominick. Contudo, não apreciava muito.

A rapariga estava agora a aproximar-se da rua. Ela vestia uma parka de esqui cor-de-rosa, que a fazia parecer ainda mais pesada. O seu rosto era rechonchudo com um ligeiro acne. O cabelo era liso, repartido ao meio.

— Ela parece-se com a Maria Provolone? — perguntou Angelo, para se vingar de Franco.

— Muito engraçado — disse Franco. Abriu a porta do carro e saiu.

— Desculpe! — disse Franco, tão gentilmente quanto possível. Por ter fumado desde os oito anos, a sua voz era áspera e desagradável. — Por acaso é a popular Cindy Carlson?

— Talvez — respondeu a adolescente. — Quem pergunta? — Ela tinha parado na entrada. O cãozinho levantou a pata junto ao poste do portão.

— Nós somos polícias — disse Franco. Levantou o crachá de modo a que a luz da rua fizesse brilhar a superfície cromada. — Andamos a investigar alguns rapazes e disseram-nos que talvez nos pudesse ajudar.

— Realmente? — interrogou Cindy.

—Absolutamente — disse Franco. — Por favor, venha até aqui para que o meu colega possa falar consigo.

Cindy olhou para um lado e outro da rua, embora não tivesse passado qualquer carro durante os últimos cinco minutos. Atravessou a rua, puxando o cão que intencionalmente farejava o tronco de um ulmeiro.

Franco desviou-se para que Cindy Carlson pudesse debruçar-se para olhar para o banco da frente do carro, para Angelo. Antes de proferir qualquer palavra, Franco empurrou-a de cabeça para dentro do carro.

Cindy deixou sair um guincho mas foi rapidamente abafado por Angelo, que fazia esforços para metê-la dentro do carro.

Franco puxou a trela da mão de Cindy com destreza e afugentou o cão com o pé. Depois, sentou-se no banco da frente, comprimindo Cindy contra Angelo. Ligou o carro e arrancou.

Laurie ficou surpreendida consigo própria. Depois da entrega da cassete de vídeo de Franconi, ela conseguira voltar de novo a sua atenção para a papelada. Tinha trabalhado com eficiência e tinha feito um progresso significativo. Agora havia uma pilha de relatórios completos na esquina da sua secretária, o que era gratificante.

Tirando o último tabuleiro de slides de histologia, começou no último caso, que podia ser terminado com o material e relatórios que tinha em sua posse. Quando ia a debruçar-se sobre o microscópio para examinar o primeiro slide, ouviu bater à porta. Era Lou Soldano.

— Que fazes aqui tão tarde? — perguntou Lou. Deixou-se cair pesadamente na cadeira ao lado da secretária de Laurie. Ele não fez qualquer esforço para tirar o casaco ou o chapéu, que estava atirado para trás na cabeça.

Laurie olhou para o relógio.

— Ena, pá! — observou ela. — Não fazia a mínima ideia das horas.

— Tentei telefonar-te para casa quando estava a atravessar a Ponte Queensborough — disse Lou. — Como não obtive qualquer resposta, decidi parar aqui. Eu tinha uma suspeita de que ainda estarias aqui. Sabes uma coisa, tu trabalhas muito!

— Ora quem fala! — disse Laurie, com uma ponta de sarcasmo — Olha para ti! Quando foi a última vez que dormiste? Não estou a falar de uma soneca na secretária.

— Vamos falar de coisas mais agradáveis — sugeriu Lou. — E se fôssemos comer qualquer coisa? Eu tenho de ir ao comando central dar umas instruções, é coisa de uma hora, depois adoraria ir comer qualquer coisa. As crianças estão com a tia, que Deus a abençoe. Que dizes de uma comida italiana?

—Tens a certeza de que estás disposto a sair?—indagou Laurie. Os círculos por debaixo dos olhos de Lou eram enormes. A barba hirsuta era mais do que apenas de algumas horas. Laurie calculava que seria de pelo menos dois dias.

—Tenho de comer—disse Lou.—Estás a pensar em trabalhar muito mais tempo?

—Estou no meu último caso—disse Laurie.—Talvez mais uma meia hora.

— Também tens de comer — disse Lou.

— Fizeste algum progresso no caso de Franconi? — perguntou Laurie.

Lou deixou sair uma golfada de ar exasperada.

— Quem me dera — disse ele. — E o problema é que com estes casos de gentalha célebre, se não se avança rápido, os rastos apagam-se com bastante rapidez.

— Lamento — disse Laurie.

— Obrigado — disse Lou. — E tu? Mais alguma ideia de como o corpo de Franconi possa ter saído daqui?

— Esse rasto está, pode dizer-se, a esbater-se—disse Laurie. — Calvin até me deu uma repreensão por eu ter interrogado o técnico da noite do necrotério. A única coisa que fiz foi falar com o homem. Receio que o objectivo da administração seja mesmo esse, que o caso se desvaneça.

— Então, Jack tinha razão em dizer para deixares o caso de parte — disse Lou.

— Suponho que sim — concordou Laurie, com relutância. — Mas não lhe digas isso.

— Quem me dera que o comissário deixe o caso cair no esquecimento — disse Lou. — Caramba, ainda posso vir a ser despromovido por causa deste caso.

— Mas eu tive uma ideia — disse Laurie. — Uma das agências funerárias que recolheu um dos corpos na noite em que o corpo de Franconi desapareceu chama-se Spoletto. Fica no Ozone Park. Não sei porquê, mas o nome dizia-me qualquer coisa. Depois lembrei-me de que um dos mais macabros assassinatos de um jovem meliante ocorreu lá durante o caso Cerino. Achas que é pura coincidência que eles viessem cá levantar um corpo na noite em que desapareceu o corpo de Franconi?

— Sim — disse Lou. — E digo-te porquê. Conheço essa agência desde que trabalhei em Queens, na luta contra o crime organizado. Existe uma certa ligação inocente, por casamento, entre a Agência Spoletto Funeral Home e o crime organizado em Nova Iorque. Mas é com a família errada. É com os Lucias, não com os Vacarros, que mataram Franconi.

— Enfim — disse Laurie. — Foi só uma ideia.

— Mas não estou a querer desfazer, pelo facto de teres posto a questão — disse Lou. — A tua capacidade de memória sempre me impressionou. Não sei se eu teria feito essa ligação. De qualquer forma... quanto ao jantar?

— Cansado como estás, por que não vens ao meu apartamento e eu faço lá um espaguete?—sugeriu Laurie. Lou e Laurie tinham-se tornado grandes amigos ao longo dos anos. Depois de serem postos a trabalhar juntos no caso Cerino, havia cinco anos, eles envolveram-se num relação romântica. Mas não resultou. Decidiram mutuamente tornarem-se amigos. Desde então, faziam questão de jantarem juntos de duas em duas semanas.

—Não te importas?—perguntou Lou. A ideia de relaxar no sofá de Laurie era divinal.

— De modo nenhum — disse Laurie. — Sinceramente, até prefiro. Tenho molho no congelador e bastantes ingredientes para uma salada.

—Formidável!—disse Lou.—Eu compro Chianti lá na cidade. Depois dou-te um telefonema quando sair da esquadra.

— Perfeito — disse Laurie

Quando Lou saiu, Laurie voltou ao seu slide. Mas a visita de Lou tirou-lhe a concentração ao trazer-lhe à memória o caso Franconi. Além disso, estava cansada de olhar através do microscópio. Recostando-se na cadeira esfregou os olhos.

—Que se lixe tudo isto!—murmurou ela. Suspirou e olhou para o tecto. De cada vez que se perguntava como é que o corpo de Franconi poderia ter desaparecido da morgue, ela agonizava de novo. Também sentia uma certa culpabilidade por não poder minimamente dar uma ajuda a Lou.

Laurie levantou-se e foi buscar o casaco, fechou a pasta e saiu do gabinete. Mas não saiu da morgue. Em vez disso, ela fez nova visita ao necrotério. Havia uma questão que andava a importuná-la e que ela se esquecera de perguntar na véspera a Marvin Fletcher, o técnico do turno da tarde.

Encontrou Marvin na sua secretária, ocupado a preencher os formulários para os corpos que estavam previstos serem levantados nessa noite. Marvin era um dos colaboradores de Laurie. Ele estivera no turno do dia antes do trágico assassínio de Bruce Pomowski, durante o caso Cerino. Depois desse incidente, Marvin fora transferido para o turno da tarde. Significava uma promoção, porque os técnicos da tarde tinham muita responsabilidade.

— Olá, Laurie! Que se passa? — perguntou Marvin quando a viu. Marvin era um afro-americano bonito, com a pele mais impecável que Laurie jamais vira. Parecia brilhar como se fosse iluminada interiormente.

Laurie conversou com Marvin durante alguns momentos, actualizando-se sobre os acontecimentos e bisbilhotices da véspera, antes de entrar no assunto.

— Marvin, eu quero fazer-te uma pergunta, mas não quero que te sintas atingido. — Laurie não podia deixar de se lembrar da reacção de Mike Passano às suas perguntas, e ela não queria que Marvin apresentasse queixa a Calvin.

— Acerca de quê? — perguntou Marvin.

— Franconi — disse Laurie. — Eu queria perguntar-te por que é que não radiografaste o corpo?

— De que é que estás a falar? — interrogou Marvin.

— Apenas o que eu disse — observou Laurie. — Não havia o talão da radiografia na pasta e não havia chapas cá em baixo junto às outras antes de eu ter descoberto que o corpo tinha desaparecido.

— Eu radiografei — disse Marvin. Mostrou-se magoado por Laurie ter sugerido que ele não o tinha feito. — Eu tiro sempre radiografias, a menos que um dos médicos me diga para não tirar.

—Então, onde está o talão e onde estão as chapas?—perguntou Laurie.

— Ei, não faço ideia o que aconteceu ao talão! — disse Marvin. — Mas as radiografias estão com o Dr. Bingham.

—Bingham levou-as?—interrogou Laurie. Até isso era estranho, embora ela admitisse que provavelmente Bingham estava aplanear fazer o turno na manhã seguinte.

— Ele disse-me que ia levá-las para o gabinete dele — disse Marvin. — Que querias que eu fizesse, dissesse ao patrão que não podia levar as radiografias. De jeito nenhum! Não eu.

—Claro, é óbvio—disse Laurie, vagamente. Estava preocupada. Aqui estava uma nova surpresa. Afinal, havia radiografias de Franconi! Evidentemente, que não interessavam nada sem o corpo, mas ela perguntava-se por que não lhe teriam dito. Mas também não vira Bingham até saber que o corpo de Franconi tinha sido roubado.

— Bem, ainda bem que falei contigo — disse Laurie, saindo do seu estado de reflexão. — E peço desculpa por ter sugerido que te tinhas esquecido de tirar as radiografias.

— Ah, não tem importância! — disse Marvin.

Laurie estava já para sair quando se lembrou da Agência Funerária Spoletto Funeral Home. Num capricho, perguntou a Marvin sobre a agência.

Marvin encolheu os ombros.

— Que queres saber? — perguntou ele. — Eu não sei lá muito. Nunca estive lá.

— Que tipo de pessoas são aqueles que vêm cá? — perguntou Laurie.

— Normais — disse Marvin, com outro encolher de ombros. — Provavelmente, só os vi duas ou três vezes. Quero dizer, eu não sei bem onde queres chegar.

Laurie abanou a cabeça.

— Foi uma pergunta estúpida. Nem sei por que perguntei. Laurie deixou o necrotério e saiu pela morgue através da parte

de cargas e descargas para a Thirtieth Street. Tinha a impressão de que tudo o que dizia respeito ao caso Franconi saía da rotina. Quando Laurie começou a andar para sul, ao longo da First Avenue, foi acometida de um outro capricho. Subitamente, visitar a Spoletto Funeral Home parecia-lhe uma ideia muito atraente.

Hesitou durante um segundo enquanto ponderava, e depois saiu para a rua à procura de um táxi.

— Para onde, minha senhora? — perguntou o condutor. Pela licença do táxi, Laurie viu que o nome do condutor era Michael Neuman.

— Sabe onde fica Ozone Park? — perguntou Laurie.

— Certamente, é em Queens — disse Michael. Era um homem idoso, que devia estar, Laurie calculava, perto dos setenta anos. Ele sentava-se numa almofada, cujo forro já gasto, deixava sair a esponja. Nas costas tinha uma protecção de contas de madeira.

— Quanto tempo leva a lá chegar? — perguntou Laurie. Se levasse horas, ela não iria.

Michael comprimiu os lábios numa expressão de dúvida enquanto pensava.

— Não muito — disse ele, vagamente. — O tráfego está leve. Aliás, acabei de ir ao Aeroporto Kennedy, e foi um instante.

— Então, vamos — disse Laurie

Conforme Michael prometera, a viagem fora rápida, principalmente depois de chegarem a Van Wyck Expressway. Durante o trajecto, Laurie soube que Michael era motorista de táxi havia mais de trinta anos. Era um homem eloquente e opinioso que ressumava um encanto paternal.

— Por acaso sabe onde fica Gold Road, no Ozone Park? — perguntou Laurie. Sentia-se privilegiada por ter encontrado um motorista tão experiente. Ela lembrava-se do endereço da Agência Spoletto Funeral Home pelo Rolodex no necrotério. O nome da rua fixara-se na sua memória, pois parecia uma alusão metafórica ao negócio de serviços fúnebres.

— Gold Road—disse Michael. — Não há qualquer problema. É a continuação da Eighty-ninth Street. Procura uma casa ou quê?

—Procuro a Agência Funerária Spoletto Funeral Home—disse Laurie.

— Ponho-a lá num foguete — disse Michael.

Laurie recostou-se com uma sensação de contentamento, e mal ouvia o contínuo tagarelar de Michael. Por agora, a sorte parecia estar do seu lado. A razão de ela decidir visitar a Spoletto Funeral Home era o facto de Jack se ter enganado. A agência tinha ligações com a gentalha do crime, e embora fosse com a família errada, de acordo com a opinião de Lou, o simples facto de estar associada, para Laurie, tornava-se suspeita.

Fiel à sua promessa, dentro de um tempo surpreendentemente curto, Michael parou em frente de uma casa de madeira com três andares, encravada entre vários prédios de apartamentos em tijolo. Tinha umas colunas de estilo grego a segurar um vasto alpendre. Num letreiro luminoso, colocado no centro de um relvado minúsculo, lia-se: — SPOLETTO FUNERAL HOME, NEGÓCIO DE FAMÍLIA, DUAS GERAÇÕES AO SERVIÇO DOS OUTROS.

O estabelecimento estava em plena actividade. Havia luzes acesas em todas as janelas. Algumas pessoas fumavam no alpendre. Através das janelas do rés-do-chão, viam-se ainda outras pessoas

Michael estava prestes a desligar o taxímetro quando Laurie disse:

— Será que pode esperar por mim? — perguntou ela. — Tenho a certeza de que me vou demorar pouco tempo e suponho que apanhar um táxi daqui será difícil.

— Com certeza, minha senhora — disse Michael. — Não há qualquer problema.

— Poderei deixar a minha pasta aqui? — disse Laurie. — Não tem nada de valor dentro.

— De qualquer modo, estará segura — disse Michael. Laurie saiu do táxi, sentindo-se um tanto ou quanto insegura.

Lembrava-se, como se fosse ontem, do caso que o Dr. Dick Katzenburg apresentara na conferência de quinta-feira à tarde havia cinco anos. Um homem com 20 anos tinha sido praticamente embalsamado vivo na Spoletto Funeral Home, depois de estar envolvido no caso em que foi atirado ácido de bateria à cara de Paul Cerino.

Laurie arrepiou-se mas fez questão de subir os degraus da frente. Ela jamais se libertaria completamente do caso Cerino.

As pessoas que fumavam ignoraram-na. Através da porta fechada ouvia-se música de órgão num tom suave. Laurie deitou a mão à porta. Estava destrancada e ela entrou.

Com excepção da música havia muito pouco ruído. O chão estava coberto com uma pesada carpete. Havia pequenos grupos de pessoas de pé, no vestíbulo, mas conversavam num murmúrio abafado.

À esquerda de Laurie havia um quarto cheio de caixões e urnas em câmara ardente. À direita havia uma sala onde estava um velório com pessoas sentadas em bancos desdobráveis. No fundo do quarto, estava um caixão que assentava sobre uma base de flores.

— Posso ser-lhe útil? — perguntou uma voz suave.

Um homem magro, aproximadamente da idade de Laurie, com um rosto ascético e traços tristonhos, dirigira-se a ela. Com excepção da camisa, todo o seu vestuário era preto. Era certamente um funcionário. Para Laurie, ele era o protótipo de um pregador puritano.

— Está aqui para prestar as suas condolências à família de Jonathan Dibartolo? — perguntou o homem.

— Não — disse Laurie. — Frank Gleason.

— Como? — inquiriu ele.

Laurie repetiu o nome. Houve uma pausa.

— E qual é o seu nome? — perguntou o homem.

— Dr.a Laurie Montgomery.

— Um momento, por favor — disse o homem, enquanto literalmente se esquivava.

Laurie olhou em volta para as pessoas que estavam no velório. Este era o lado da morte com que ela tivera contacto apenas uma vez. Foi quando o irmão morrera de uma overdose. Ele tinha 19 anos e Laurie tinha 15. Fora uma experiência muito traumatizante em todos os aspectos, mas em especial porque fora ela que o tinha encontrado.

—Dr.a Montgomery—entoou uma voz suave, aduladora.—Eu sou Anthony Spoletto. Soube que veio cá prestar condolências ao Sr. Frank Gleason.

—Exactamente—disse Laurie. Ela voltou-se e deparou-se com um homem também todo vestido de preto. Ele era gordo e tão seboso como a sua voz. A testa luzia sob as suaves luzes incandescentes.

— Lamento, mas é impossível. — disse o Sr. Spoletto.

— Telefonei esta tarde e disseram-me que estava em câmara ardente — disse Laurie.

— Pois, claro, disse o Sr. Spoletto. — Mas isso foi esta tarde. A pedido da família, foi fechado às dezoito horas.

—Entendo—disse Laurie, embaraçada. Ela não tinha nenhum plano em mente no que dizia respeito à sua visita e tinha pensado nisto apenas como uma forma de poder entrar no local. Agora, que o corpo já lá não estava, não sabia o que fazer.

— Talvez eu possa assinar o livro de condolências, de qualquer modo — disse Laurie.

— Lamento, mas isso também não é possível — disse ele. — A família também já o levou.

—Bem, então, não há nada a fazer—disse Laurie, deixando cair os braços.

— Infelizmente — retorquiu o Sr. Spoletto.

— Muito obrigada — disse Laurie.

— De nada — disse o Sr. Spoletto. Ele abriu a porta a Laurie. Laurie saiu e entrou no táxi.

— Agora... para onde? — perguntou Michael.

Laurie deu o seu endereço, a Nineteenth Street, e inclinou-se para olhar para a Spoletto Funeral Home enquanto o táxi se desviava. Tinha sido uma viagem perdida. Ou não? Depois de ter estado a falar com o Sr. Spoletto por alguns momentos, notou que a testa não era oleosa. O homem transpirava embora a temperatura interior fosse relativamente fria. Laurie coçou a cabeça e perguntava-se se de facto aquilo significava alguma coisa ou se não seria mais uma das suas fantasias, como se quisesse agarrar-se a esperanças vãs.

— Foi um amigo? — perguntou Michael.

— Quem era amigo?

— O falecido? — disse Michael.

Laurie deixara escapar um gargalhada desconsolada.

— Não, propriamente — disse ela.

— Entendo — disse Michael, olhando para Laurie através do retrovisor. — Os relacionamentos hoje são muito complicados. E quer saber porquê...

Laurie sorriu enquanto se recostava no assento para ouvir. Ela adorava motoristas de táxi filosóficos, e Michael era um verdadeiro Platão na sua profissão.

Quando o táxi parou em frente à casa de Laurie, ela viu uma figura familiar no vestíbulo. Era Lou Soldano, desmazeladamente encostado às caixas de correio, agarrando uma garrafa de vinho num cesto de vime. Laurie pagou a tarifa acrescida de uma generosa gratificação e correu para dentro de casa.

—Desculpa—disse Laurie.—Pensei que ias telefonar antes de vires.

Lou pestanejou como se tivesse estado a dormir.

—Telefonei—disse ele, depois de um ligeiro ataque de tosse. — Foi o atendedor de chamadas que respondeu. Deixei a mensagem que vinha a caminho.

Laurie espreitou o relógio enquanto abriu a porta interior. Tinha demorado pouco mais de uma hora, que era exactamente o tempo que previra.

—Pensei que ias trabalhar apenas mais meia hora—disse Lou.

— Não estive a trabalhar — disse Laurie, enquanto chamava o elevador. — Dei um passeio até à Agência Funerária Spoletto Funeral Home.

Lou franziu o sobrolho.

— Não me aborreças ainda mais — disse Laurie, quando entraram no elevador.

— E que descobriste? Franconi deitado em esplendor? — perguntou Lou, sarcasticamente.

—Não te conto nada se te comportas dessa maneira—queixou-se Laurie.

— Está bem, peço desculpa.

— Não encontrei nada — admitiu Laurie. — O corpo que eu fui ver já não estava acessível. A família tinha mandado fechar a urna às seis horas da tarde.

As portas do elevador abriram-se. Enquanto Laurie tentava abrir a porta, Lou fez uma vénia a Debra Engler, cuja porta estava entreaberta, como costume.

— Mas o director agiu de uma maneira suspeita—disse Laurie — Pelo menos, foi o que me pareceu.

—Como assim?—perguntou Lou, ao entrarem no apartamento de Laurie. Tom saiu a correr do quarto de dormir para se esfregar nas pernas de Laurie.

Laurie colocou a sua mala na mesa do vestíbulo em forma de meia lua, para poder curvar-se e fazer mimos a Tom.

— Transpirava enquanto eu falava com ele — disse Laurie Lou parou de tirar o casaco.

— Só isso? — perguntou ele. — O homem transpirava?

—Sim, é isso mesmo—disse Laurie. Ela sabia o que ia na cabeça de Lou; estava estampado na sua cara.

— Ele começou a transpirar depois de tu fazeres perguntas difíceis e incriminadoras sobre Franconi? — perguntou Lou. — Ou ele estava a transpirar antes de falares com ele?

— Antes — admitiu Laurie. Lou revirou os olhos.

— Uau! Temos aqui mais um Sherlock Holmes encarnado — disse ele. — Talvez devesses ocupar o meu lugar. Eu não tenho os teus poderes de intuição nem o teu raciocínio indutivo!

— Prometeste que não me arreliavas — disse Laurie.

— Não prometi, não — respondeu Lou.

— Está bem, foi uma viagem em vão — disse Laurie. — Vamos comer. Estou cheia de fome.

Lou mudou a garrafa de vinho de uma mão para outra, o que lhe permitiu soltar o braço do impermeável. Ao fazê-lo, desajeitadamente, deitou a pasta de Laurie ao chão. Com o impacte a pasta abriu-se e todo o seu conteúdo se espalhou. Ao ouvir o estrondo, o gato assustou-se e desesperadamente tentou ganhar tracção no chão encerado para depois desaparecer de novo no quarto de dormir.

— Que argolada! — disse Lou. — Peço desculpa! — Ele baixou-se para levantar os papéis, canetas, slides de microscópio e outra parafernália e, ao fazê-lo, foi de encontro a Laurie.

— Talvez seja melhor ficares sentado — sugeriu Laurie com uma gargalhada.

— Não, eu insisto — disse Lou.

Quando já tinham posto quase tudo na pasta, Lou apanhou a cassete de vídeo.

— Que é isto, é o teu filme pornográfico favorito?

— Não, propriamente — comentou Laurie.

Lou virou a cassete para ler a etiqueta. ’

— O assassínio de Franconi? — interrogou ele. — A CNN enviou-te isto sem mais nem menos?

Laurie endireitou-se.

— Não, eu requisitei-a. Eu ia usar a cassete de vídeo para corroborar as minhas conclusões quando fizesse a autópsia. Pensei que poderia tornar-se um trabalho interessante para mostrar como se pode confiar na medicina legal.

— Importas-te que veja? — perguntou Lou.

— Claro que não — disse Laurie. — Não viste na TV?

— Assim como toda a gente — disse Lou. — Mas de qualquer modo, seria muito interessante ver a cassete.

—Surpreende-me que não tenhas uma cópia no quartel-general da Polícia — disse Laurie.

— Olha, talvez até tenha — disse Lou. — Mas não a vi.

— Ena, pá, hoje não é a tua noite — disse Warren a Jack, com um tom trocista. — Deves estar a ficar muito velho.

Quando Jack chegou ao campo, já tarde, e teve de esperar para entrar no jogo, decidiu que iria ganhar, independentemente de quem fosse o seu adversário. Mas isso não aconteceu. Na realidade, Jack perdeu todos os jogos que jogou porque Warren e Spit tinham ficado na mesma equipa e nenhum falhava. A equipa deles tinha ganho todos os jogos incluindo o último, que tinha sido encestado com um delicioso “dar e entrar”, o que deu a Spit unia vitória fácil.

Jack foi até às linhas laterais com as pernas como borracha. Tinha jogado com grande empenho e transpirava profusamente. Puxou a toalha da rede da vedação onde a tinha enfiado e enxugou a cara. Sentia o coração a pulsar violentamente no peito.

— Vamos lá, pá! — espicaçou Warren, da beira do campo, onde

ele driblava a bola de basquete para trás e para a frente entre as pernas. — Mais uma jogada. Desta vez, deixamos-te ganhar.

— Ah, pois claro! — respondeu Jack. — Tu nunca deixas ninguém ganhar nada. — Jack fazia questão de adaptar a sua sintaxe ao ambiente. — Vou dar o fora.

Warren caminhou a passo lento até lá e, enfiando um dedo na rede, encostou-se a ela.

— Que se passa com a tua garota? — perguntou ele. — Natalie tem me posto a cabeça a andar à roda com perguntas acerca dela, porque nunca mais os vimos juntos... sabes o que quero dizer!?

Jack olhou para a cara esculpida de Warren. Para juntar insultos à injúria, no que dizia respeito a Jack, Warren nem transpirava, nem respirava com grande dificuldade. E, para piorar a questão, começara a jogar antes de Jack. O único indício de esforço era um pequeníssimo triângulo de transpiração no peito, na abertura da camisola.

— Diz a Natalie que Laurie está bem — disse Jack. — Ela e eu estávamos apenas a dar umas férias um ao outro. Foi sobretudo culpa minha. Eu queria deixar esfriar as coisas um pouco.

— Entendo — disse Warren.

— Estive com ela a noite passada — acrescentou Jack. — E parece que as coisas estão a melhorar, ela também perguntou por ti e por Natalie, portanto, vocês não estão sós.

Warren acenou com a cabeça.

—Tens a certeza de que estás acabado ou queres fazer mais uma jogada?

— Estou acabado — disse Jack.

— Tem cuidado contigo, pá — disse Warren, enquanto se afastava da vedação. Depois gritou para os outros: — Vamos, mexam esses rabos.

Jack abanou a cabeça com ar de desânimo enquanto olhava para Warren, que se afastava com um passo vagaroso. Invejava a capacidade de resistência daquele homem. Warren não estava de facto cansado.

Jack vestiu a camisola e dirigiu-se a casa. Não ganhara um único jogo, e, embora durante o jogo a incapacidade de ganhar lhe tivesse parecido extremamente frustrante, agora já não interessava. O exercício tinha sido benéfico para a mente, e durante a hora e meia em que estivera a jogar não tinha pensado no trabalho.

Mas Jack não estava ainda a meio caminho da 106th Street, quando a torturante ideia do flutuador começou a apoquentá-lo de novo. Enquanto subia as escadas cheias de lixo, perguntava-se se haveria possibilidade de Ted ter feito um erro nas análises do ADN. Em sua opinião, a vítima fizera um transplante.

Jack estava a chegar ao patamar do terceiro andar quando ouviu o telefone tocar. Sabia que era o seu porque Denise, a mãe solteira de duas crianças, que vivia no mesmo piso, não tinha telefone.

Com algum esforço, Jack conseguiu que os seus cansados membros inferiores escalassem com maior rapidez o último lance. Atabalhoadamente, ele tentava abrir a fechadura com a chave. Precisamente no momento em que abriu a porta, Jack ouviu o atendedor de chamadas arrancar com uma voz que Jack recusava a acreditar que fosse a sua.

Correu para o telefone e agarrou-o, interrompendo a voz.

— Sim? — disse ele com um ar ofegante. Depois de uma hora e meia no campo a jogar basquetebol, a corrida no lance final de escadas fê-lo ficar quase no ponto de um colapso.

— Não me digas que acabas de chegar a casa do basquetebol — disse Laurie. —Já são quase nove horas. Já está fora do teu horário normal.

— Só cheguei a casa por volta das sete e meia — explicou Jack, por entre exalações.

— Isso quer dizer que ainda não comeste — disse Laurie.

— Adivinhaste — disse Jack.

— Lou está cá e íamos comer uma salada e espaguete — disse Laurie. — Por que não vens até cá comer connosco?

—Não quero estragar a festa—disse Jack, em ar de brincadeira. Ao mesmo tempo sentia uma picada de ciúmes. Tinha conhecimento do breve romance entre Laurie e Lou e perguntava-se se não estariam a começar qualquer coisa de novo.

Jack estava consciente de que não tinha direito a tais sentimentos, considerando a ambivalência que sentia em relação a comprometerse com qualquer mulher. Depois da perda da sua família, não tinha a certeza se jamais estaria disposto a tornar-se de novo vulnerável a tal dor. Por outro lado, passou a admitir tanto a sua solidão, como o muito que apreciava a companhia de Laurie.

— Não estragas qualquer festa — assegurou-lhe Laurie.—Vai ser um jantar muito casual. Mas temos uma coisa que te queremos mostrar. Qualquer coisa que te vai surpreender e que provavelmente fará que sintas vontade de dar uns murros em ti próprio. Como provavelmente já adivinhaste, estamos muito agitados.

— Ai, sim? — questionou Jack. A sua boca ficou seca. Ouvindo Laurie rir-se lá no fundo, e juntando dois mais dois, Jack sabia o que era que eles lhe queriam mostrar; teria de ser um anel! Lou tínha-lhe proposto casamento!

— Vens? — perguntou Laurie.

—Parece que já é tarde—disse Jack.—E ainda tenho de tomar duche.

— Ei, seu velho cirurgião — disse Lou. Ele arrebatou o telefone da mão de Laurie. — Traz o teu arcaboiço até aqui. Laurie e eu estamos doidos para partilhar isto contigo.

— Okay — disse Jack, com resignação. — Vou tomar um duche rápido e estarei aí dentro de quarenta minutos.

— Até já, peralvilho — disse Lou. Jack desligou o telefone.

—Peralvilho?—murmurou ele. Nem parecia Lou. Jack imaginou que o detective devia estar mesmo nas nuvens.

— Quem me dera saber o que fazer para te animar! — disse Darlene. Ela fizera um esforço para vestir um vestido de seda da Victoria Street cingido ao corpo, mas Raymond nem notara.

Raymond estava estendido no sofá com uma borracha de gelo na cabeça e com os olhos fechados.

— De certeza que não queres nada para comer? — perguntou Darlene. Ela era uma mulher com cerca de um metro e oitenta, com cabelo oxigenado e um corpo curvilíneo. Tinha 26 anos de idade, o que, conforme ela e Raymond gracejavam, era metade da idade dele. Fora modelo antes de Raymond a conhecer num simpático Huty no East Side, chamado Auction House.

Raymond, vagarosamente, retirou a borracha da cabeça e fixou os olhos em Darlene. A sua vivacidade esfuziante só aumentava a irritação dele.

— Tenho uma bola no estômago — disse ele, deliberadamente. — Não tenho fome. É assim tão difícil de entender?

— Bem, não compreendo por que estás tão aborrecido? — insistiu Darlene. — Acabaste de receber uma chamada da médica de Los Angeles, e ela decidiu aderir ao projecto. Isso significa que em breve teremos estrelas de cinema como clientes. Penso que devíamos celebrar.

Raymond voltou a colocar o saco de gelo e fechou os olhos.

—Os problemas não têm a ver com esse lado do negócio. Aí, tudo tem funcionado certinho como um relógio. É a trapalhada inesperada, como Franconi e Kevin Marshall.—Raymond tinha relutância em falar na Cindy Carlson. Aliás, ele próprio tinha estado a evitar pensar na rapariga.

— Por que é que estás ainda preocupado com Franconi? — interrogou Darlene. — Esse problema já está resolvido.

—Ouve—disse Raymond, tentando ser paciente.—Talvez seja melhor ires ver TV e deixares-me aqui a sofrer em paz.

— E umas torradas ou um pouco de cereais? — perguntou Darlene.

— Deixa-me em paz! — gritou Raymond. Ele, entretanto, erguera-se e agarrava o saco de gelo na mão. Os seus olhos estavam arregalados e o rosto estava em chama.

— Okay, eu sei quando sou indesejada—disse Darlene com um trejeito nos lábios. Quando ia a sair da sala o telefone tocou. Olhou para trás, para Raymond. — Queres que atenda?—perguntou ela.

Raymond assentiu com a cabeça e disse-lhe para atender a chamada no escritório. Também lhe disse que se a chamada fosse para ele que ela fosse lacónica quanto ao local onde ele se encontrava, uma vez que não lhe apetecia falar com ninguém.

Darlene voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o escritório. Raymond respirou fundo e colocou de novo o saco de gelo na cabeça. Deitando-se para trás, tentava relaxar. Estava justamente a começar a sentir-se confortável quando Darlene entrou de novo na sala.

— É o intercomunicador, não o telefone — disse ela. — Há um homem lá em baixo que quer falar contigo. O nome dele é Franco Ponti, e diz que é importante. Eu disse que ia ver se estavas em casa. Que queres que diga?

Raymond voltou a sentar-se com um sobressalto. Durante uns instantes não conseguia lembrar-se do nome, mas teve um pressentimento. Então, recordou-se. Era um dos homens de Vinnie Dominick, que acompanhara o meliante ao apartamento na manhã anterior.

— Então? — indagou Darlene. Raymond engoliu com um ruído.

— Eu falo com ele. — Raymond esticou o braço e apanhou a extensão telefónica por detrás do sofá. Tentou dar um ar autoritário quando disse “sim”.

—Olá, doutor—disse Franco.—Eu ia ficar desapontado se você não estivesse em casa.

— Já ia deitar-me — disse Raymond. — Já é uma hora tardia para visitas.

— As minhas desculpas pela hora — disse Franco. — Mas Angelo Facciolo e eu temos uma coisa que lhe queremos mostrar.

— Por que não espera até amanhã? — perguntou Raymond. — Digamos, entre as nove e as dez.

—O que é não pode esperar—disse Franco.—Vamos lá, doutor! Não se faça difícil. Vinnie Dominick faz questão que você conheça bem a qualidade do nosso serviço.

Raymond tentou inventar uma desculpa para não ter de ir até lá baixo. Mas, devido às suas dores de cabeça, nada lhe ocorria.

— Dois minutos — disse Franco. — É só o que lhe pedimos. —Estou extremamente cansado—disse Raymond.—Lamento...

— Espere aí, doutor—disse Franco. — Eu tenho de insistir que venha até cá, ou vai arrepender-se, espero ter sido bem claro.

— Está bem — disse Raymond, reconhecendo o inevitável. Não era tão ingénuo ao ponto de acreditar que Vinnie Dominick e o seu pessoal fizessem ameaças em vão. — Eu desço já.

Raymond foi ao armário do corredor e tirou o sobretudo. Darlene estava perplexa.

— Vais sair?

—Parece que não tenho alternativa—disse Raymond.—Penso que devo dar-me por feliz por eles não terem exigido vir cá cima.

Enquanto descia no elevador, Raymond tentava acalmar-se, mas era muito difícil, pois a dor de cabeça piorara. Esta inesperada visita indesejada era justamente o género de incidente que estava a tornar a sua vida num inferno. Não fazia a mínima ideia o que esta gente poderia querer mostrar-lhe, embora imaginasse que teria qualquer coisa a ver com a forma como iriam lidar com o caso de Cindy Carlson.

—Boa noite, doutor—disse Franco, logo que Raymond apareceu. — Lamentamos incomodá-lo.

— Sejamos rápidos — disse Raymond, parecendo mais seguro do que na realidade estava.

— Será rápido e doce, confie em mim — disse Franco. — Se não se importa — ele apontou para o local onde estava estacionado o Ford Sedan, na borda do passeio junto à boca de incêndio. Angelo estava meio sentado, ligeiramente deitado no capot da bagageira, fumando um cigarro.

Raymond seguiu Franconi até ao carro. Angelo reagiu, endireitando-se e desviando-se para o lado.

— Só queremos que dê uma espreitada no porta-bagagens. Venha até aqui para poder ver. A luz não é lá muito boa.

Raymond colocou-se entre o Ford e o carro que estava atrás, literalmente apenas alguns centímetros do capot quando Franco o levantou. Raymond teve a sensação de que o coração lhe tinha parado. No momento em que olhava o corpo morto de Cindy Carlson, espremido no porta-bagagens, houve um clarão súbito.

Raymond cambaleou para trás. Sentiu náuseas com a imagem do rosto de porcelana da rapariga gorda gravado no seu cérebro e ficou estonteado devido ao clarão, que ele depois se apercebeu ter vindo de uma máquina Polaroid.

Franco fechou o porta-bagagens e limpou a mãos.

— Que tal está a fotografia? — perguntou ele a Angelo.

— Temos de esperar um minuto — informou Angelo. Ele segurava as extremidades da foto que estava a revelar.

— Só mais um segundo — disse Franco a Raymond. Involuntariamente, Raymond deixou escapar um gemido ao

respirar, enquanto os olhos olhavam em volta para examinar a área. Temia que alguém mais pudesse ter visto o cadáver.

— Ficou boa — disse Angelo. Ele passou a fotografia a Franco, que concordou.

Franco estendeu a mão com a foto para que Raymond pudesse vê-la.

— Eu diria que este é o seu lado melhor — disse Franco. Raymond engoliu em seco. A foto revelava precisamente o seu

ar de choque, assim como a terrível imagem da rapariga morta. Franco meteu a foto no bolso.

— Já está, doutor — disse ele. — Eu disse-lhe que não lhe ocuparíamos muito tempo.

— Por que fizeram isto? — resmungou Raymond.

— Foi ideia de Vinnie — disse Franco. — Ele pensou que era melhor ter uma prova do favor que fez, só para o caso de...

— Para o caso de quê? — perguntou Raymond. Franco abriu as mãos.

— Para o caso do que quer que seja.

Franco e Angelo meteram-se no carro. Raymond subiu para o passeio. Ficou a observá-los até o Ford desaparecer na esquina.

— Meu Deus do Céu! — murmurou Raymond, e dirigiu-se para a porta de casa com as pernas trémulas. De cada vez que resolvia um problema, um outro surgia.

O duche reanimara Jack. Uma vez que Laurie não havia dado nenhuma ordem formal desta vez, Jack decidiu ir de bicicleta. Ele foi em direcção a sul a uma boa velocidade. Dado a má experiência que tivera no parque no ano anterior, ele manteve-se ao longo da Central Park West até Columbus Circle.

De Columbus Circle, Jack disparou através da Fifty ninth Street até Park Avenue. Aquela hora da noite, Park Avenue era um sonho, e ele foi sempre a direito até à rua onde vivia Laurie. Segurou a bicicleta com a sua colecção de cadeados e foi até à porta de Laurie. Antes de tocar a campainha, fez uma pausa para se compor, tentando decidir qual a melhor forma de reagir e o que dizer.

Laurie veio recebê-lo à porta com um largo sorriso no rosto. Antes que ele tivesse oportunidade de proferir palavra, ela deitou o seu braço livre em volta do pescoço para abraçá-lo. Na outra mão ela segurava um copo com vinho.

— Oh! — disse ela, recuando um pouco. Notou o estado de desalinho do seu cabelo eriçado. — Esqueci-me de mencionar o assunto da bicicleta. Não me digas que vieste de bicicleta até aqui!?

Jack encolheu os ombros com um ar de culpabilidade.

— Bem, pelo menos chegaste aqui — disse Laurie. Ela abriu o feixe do seu casaco de cabedal e ajudou-o a despi-lo.

Jack via Lou sentado no sofá com um largo sorriso, que era o oposto da Gioconda.

Laurie puxou pelo braço de Jack e levou-o até à sala de estar.

— Queres a surpresa ou preferes primeiro comer?—perguntou ela.

— Venha a surpresa — disse Jack.

— Óptimo — disse Lou. Ele levantou-se do sofá e foi até à TV. Laurie conduziu Jack para o local que Lou acabara de deixar

vago.

— Queres um copo de vinho?

Jack acordou com a cabeça. Estava confuso. Não vira qualquer anel, e Lou estava compenetrado a estudar o controlo remoto. Laurie desapareceu para a cozinha mas logo voltou com o vinho.

— Não sei como isto funciona — queixou-se Lou. — Em casa, a minha filha é quem mexe nestas coisas.

Laurie pegou no controlo remoto, depois disse a Lou que primeiramente tinha de ligar a TV.

Jack sorveu um golo de vinho. Não era muito melhor que aquele que ele trouxera na noite anterior.

Laurie e Lou juntaram-se a Jack no sofá. Jack olhava de um para o outro, mas eles ignoraram-no. Tinham os olhos postos no ecrã da TV.

— Qual é a surpresa? — perguntou Jack.

— Olha — disse Laurie, apontando para a TV.

Mais confundido do que nunca, Jack olhou para o ecrã. De repente, houve música e o logo da CNN, seguido da imagem de um homem ligeiramente obeso, saindo de um restaurante em Manhattan, que Jack reconheceu como sendo O Positano. O homem estava rodeado por um grupo de pessoas.

— Queres que ponha o som? — perguntou Laurie.

— Não, não é necessário — respondeu Lou.

Jack observou as imagens. Quando a reportagem terminou, olhou para Lou e para Laurie. Ambos tinham um grande sorriso nos lábios.

— Que se passa aqui?—interrogou Jack. — Quanto vinho é que já beberam?

— Reconheces o que acabaste de ver? — perguntou Laurie.

— Eu diria que é alguém a ser alvejado a tiro — disse Jack.

— É Cario Franconi — disse Laurie. — Esta reportagem faz-te lembrar alguma coisa?

— Faz-me lembrar aquelas cassetes antigas do Lee Harvey Oswald a ser alvejado a tiro — disse Jack.

— Mostra-lhe outra vez — sugeriu Lou.

Jack observou as imagens pela segunda vez. Ele dividiu a sua atenção entre o ecrã e os rostos de Laurie e Lou. Estavam ambos absortos.

Quando acabou a segunda rodagem, Laurie voltou-se de novo para Jack e disse:

— Então?

Jack encolheu os ombros.

— Não sei o que querem que diga.

— Deixa-me passar certas secções ao retardador — disse Laurie. Ela usou o controlo remoto para seleccionar as imagens de quando Franconi estava a entrar na limusina. Pôs ao retardador e depois parou exactamente no momento em que ele foi alvejado. Ela foi até ao ecrã e apontou para a base do crânio do homem.—Foi aqui que entrou — disse ela.

Usando de novo o controlo remoto, ela avançou até ao momento do impacte seguinte, quando a vítima estava a cair para a direita.

— Macacos me mordam! — observou Jack com surpresa. — O meu flutuador pode muito bem ser Cario Franconi!

Laurie voltou-se de costas para a TV. Os seus olhos estavam a brilhar.

— Exactamente! — disse ela, triunfantemente. — É óbvio, que ainda não provámos nada, mas com a coincidência das feridas das balas, estaria disposta a apostar cinco dólares.

— Uau! — comentou Jack. — Eu aceito a tua aposta de cinco

186

dólares, mas quero lembrar-te de que é a oferta mais alta que jamais fizeste na minha presença.

— Significa que estou bem segura — disse Laurie.

— Laurie é tão rápida a fazer associações — disse Lou. — Ela pegou logo nas semelhanças. Com ela, sinto-me sempre estúpido.

— Oh, vai à vida!—disse Laurie, dando um amigável empurrão a Lou.

—É esta surpresa que vocês dois tinham para mim?—perguntou Jack com cautela. Não queria alimentar esperanças vãs.

— É — disse Laurie. — Que se passa? Não estás tão contente como nós estamos?

Jack deu uma gargalhada com alívio.

— Oh, estou a derreter-me de contente!

— Nunca sei quando falas a sério — disse Laurie. Detectou um certo laivo de sarcasmo típico de Jack na resposta.

— É a melhor notícia que tive nos últimos dias — acrescentou Jack. — Talvez nas últimas semanas.

— Está bem, não exageremos — disse Laurie. Ela apagou a TV e o vídeo. — Já basta de surpresas, vamos mas é comer.

Durante o jantar discutiram qual a razão por que não ocorrera a ninguém que o flutuador e Franconi pudessem ser a mesma pessoa.

— Para mim, foi a ferida de pistola — disse Laurie — que eu sabia não ser o caso de Franconi. Também o que me despistou foi o facto de o corpo ter aparecido a milhas de Coney Island. Se tivesse sido apanhado em East River, a história poderia ter sido outra.

— Penso que fui iludido pelas mesmas razões — disse Jack. — E depois, quando conclui que a ferida fora feita já depois de morto, estava já demasiado embevecido com a história do fígado. A propósito, Lou, Franconi fez um transplante de fígado?

—Não, que eu saiba—disse Lou. — Ele tinha estado doente há alguns anos, mas nunca soube qual era o diagnóstico. Nunca ouvi falar nada sobre um transplante de fígado.

—Se ele não fez um transplante de fígado, então, o flutuador não é Franconi — disse Jack. — Embora o Laboratório do ADN esteja a ter um trabalhão para o confirmar, eu, pessoalmente, estou convicto de que o flutuador recebeu um fígado.

— Que podemos fazer mais para confirmar que o flutuador e Franconi são a mesma pessoa? — perguntou Lou.

— Podemos pedir uma amostra de sangue da mãe — disse Laurie.—Comparando o mitocondrial ADN, o que todos herdamos apenas das nossas mães, podemos dizer imediatamente se o flutuador é Franconi. Tenho a certeza de que a mãe será simpática, visto que ela foi a primeira a vir identificar o corpo.

— E pena que não tenha sido feita uma radiografia quando ele entrou — disse Jack. — Isso teria sido suficiente.

— Mas houve uma radiografia! — disse Laurie, com excitação.

— Acabei de descobrir esta tarde. Marvin fez uma.

— Onde, diabo, a guardou? — perguntou Jack.

— Marvin disse que Bingham a tinha levado—disse Laurie. — Deve estar no escritório dele.

—Então, sugiro que façamos uma pequena pilhagem à morgue

— disse Jack. — Quero ver este assunto esclarecido.

— O gabinete de Bingham está fechado — disse Laurie.

— Eu penso que esta situação exige uma actuação com criatividade — disse Jack.

—Ámen—disse Lou.—Esta poderá ser a tal oportunidade que tenho estado à espera.

Logo que acabaram de comer e de limpar a cozinha, o que Jack e Lou insistiram em fazer, os três apanharam um táxi até à morgue. Entraram directamente pela doca de entradas e foram directamente para o gabinete do necrotério.

— Meu Deus! — comentou Marvin, logo que viu Laurie e Jack. Era raro os dois patologistas aparecerem ao mesmo tempo à noite.

— Houve algum desastre natural?

— Onde estão os homens da limpeza? — perguntou Jack.

— Lá no fundo, na cave, da última vez que os vi — respondeu Marvin. — A sério... que se passa?

— Uma crise de identidade — disse Jack, com ar trocista. Jack conduziu os outros à sala de autópsias e abriu a porta.

Marvin tinha razão. Os dois homens limpavam o vasto chão de ladrilhos.

— Presumo que vocês têm as chaves do gabinete do chefe — disse Jack.

— Temos, temos — disse Daryl Foster. Daryl trabalhava no Instituo de Medicina Legal havia quase trinta anos. O seu parceiro, Jim OTJonnel, era um funcionário relativamente recente.

— Temos de lá ir — disse Jack. — Será que você podia abrir a porta?

Daryl hesitou.

— O chefe não gosta lá muito que entrem pessoas no seu gabinete — disse ele.

— Eu tomo a responsabilidade — disse Jack. — Isto é uma emergência. Além disso, nós temos o tenente-detective Lou Soldano do departamento da Polícia connosco, que fará o possível para que não seja um roubo muito grande.

— Eu não sei — disse Daryl. Era óbvio que ele se sentia contrafeito, assim como muito pouco impressionado com o humor de Jack.

— Então, dê-me a chave — disse Jack. Ele estendeu a mão. — Assim, já não fica envolvido.

Com nítida relutância, Daryl tirou duas chaves do seu chaveiro e deu-as a Jack.

— Uma é para o escritório de fora e a outra é para o gabinete particular do Dr. Bingham.

— Eu devolvo-lhas em cinco minutos — disse Jack. Daryl não respondeu.

— Penso que o pobre do homem se sentiu intimidado — comentou Lou, quando os três estavam no elevador em direcção ao primeiro andar.

— Quando Jack está numa missão, é preciso cautela! — disse Laurie.

— A burocracia aborrece-me — disse Jack. — Em primeiro lugar, não há razão alguma para a radiografia estar encafuada no gabinete do chefe.

Jack abriu o escritório exterior e depois o gabinete particular do Dr. Bingham. Acendeu as luzes.

O gabinete era grande, com uma grande secretária por baixo de umas altas janelas à esquerda e uma grande mesa de biblioteca à direita. Parafernália para aulas, incluindo um quadro e um negatoscópio, estavam na cabeceira da mesa.

— Procuramos onde? — perguntou Laurie.

— Eu contava que estivessem naquele visor — disse Jack. Mas não as vejo. Fazemos assim, eu vejo na secretária e no ficheiro, tu procuras por aí, junto ao negatoscópio.

— Okay — disse Laurie.

— Que querem que faça? — perguntou Lou.

— Tu ficas aí a verificar se roubamos alguma coisa — troçou Jack.

Jack abriu várias gavetas do ficheiro, mas fechou-as de imediato. As radiografias de corpo inteiro que eram tiradas na morgue vinham em capas grandes. Não era uma coisa que se escondesse com facilidade.

— Isto promete — disse Laurie em voz alta. Encontrou uma pilha de radiografias no armário, mesmo por debaixo do visor. Tirou para fora os relatórios e pô-los sobre a mesa para verificar os nomes. Encontrou o de Franconi e puxou-o.

Regressando ao piso da cave, Jack pegou nas radiografias do flutuador e levou os dois relatórios para a sala das autópsias. Devolveu as chaves do gabinete de Bingham a Daryl e agradeceu. Daryl acenou com a cabeça.

— Vamos lá, todos — disse Jack, dirigindo-se ao negatoscópio.

— Chegou o momento crítico. — Primeiramente, colocou a radiografia de Franconi e depois a do flutuador sem cabeça. — Sabem uma coisa—disse Jack, alguns segundos depois de observar.

— Devo cinco dólares a Laurie!

Laurie deu um grito de triunfo, quando Jack lhe deu o dinheiro. Lou coçou a cabeça e aproximou-se para olhar de perto para as chapas.

— Como é que vocês conseguem dizer tão rapidamente? — perguntou ele.

Jack apontou para a mancha grumosa das balas quase obscurecida pela massa dos cartuxos na radiografia do flutuador, e mostrou como elas correspondiam às balas nas radiografias de Franconi. Depois, apontou para idênticas fracturas cicatrizadas da clavícula, que apareciam em ambos os corpos.

— Isto é formidável! — disse Lou, esfregando as mãos com um entusiasmo que era idêntico ao de Laurie. Agora, que temos o corpus delicti, pode ser que consigamos dar sentido a esta história.

— E de certeza que serei capaz de descobrir o que se passa com o fígado deste tipo — disse Jack.

—E eu talvez vá às compras com o meu dinheiro—disse Laurie, dando um beijo na nota de cinco dólares. — Mas não sem antes descobrir o como e o porquê de o corpo ter saído daqui.

Não conseguindo dormir apesar de ter tomado dois comprimidos, Raymond saiu da cama cuidadosamente para não perturbar Darlene. Não que isso o preocupasse muito. Darlene tinha um sono tão pesado que o tecto podia cair que ela nem daria por isso.

Raymond foi até à cozinha sem fazer ruído e acendeu a luz. Não tinha fome mas pensou que talvez um pouco de leite quente pudesse acalmar o seu estômago irritado. Desde o momento do choque, por ter sido obrigado a olhar para o corpo da rapariga na bagageira do Ford, tinha ficado com azia. Já tentara Maalox, Pepcid AC e, finalmente, Pepto-Bismol. Nada resultara.

Raymond não se desembaraçava lá muito bem na cozinha, sobretudo porque não sabia o local das coisas. Consequentemente, levou um certo tempo para aquecer o leite e encontrar o copo apropriado. Quando estava pronto, levou-o para o estúdio e sentou-se à secretária.

Depois de sorver uns tragos, notou que eram três e um quarto da manhã. Apesar da efervescência no seu cérebro devido aos soporíferos, conseguiu calcular que na Zona já passava das nove, uma boa hora para telefonar a Spallek.

Aligação foi quase instantânea. Àquela hora, o tráfego telefónico na América do Norte estava reduzido ao mínimo. Aurielo respondeu imediatamente e fez a ligação para o director.

— Levantou-se cedo — comentou Siegfried. — Eu ia telefonar-lhe dentro de quatro ou cinco horas.

— Não conseguia dormir—disse Raymond. — Que se passa aí? Qual é o problema com Kevin Marshall?

— Penso que o problema já está sanado — disse Siegfried. Siegfried sintetizou o que acontecera e deu crédito a Bertram Edwards por o ter alertado sobre Kevin, de modo que ele pudesse ser seguido. Disse que Kevin e as suas amigas tinham apanhado um susto tão grande que não se atreveriam a aproximar-se da ilha novamente.

—Que quer dizer com “amigas”?—perguntou Raymond. Kevin sempre fora tão solitário.

—Ele estava com a técnica de reprodução e uma das enfermeiras da cirurgia—disse Siegfried.—Francamente, até nos surpreendeu a nós, uma vez que ele sempre foi um schlemiel, ou o que vocês, americanos, chamam a um inadaptado social.

— Um idiota! — disse Raymond.

— Isso mesmo — disse Siegfried.

— E, presumivelmente, o que o levou a tentar visitar a ilha foi o tal fumo que anda a preocupá-lo?

— Isso é o que Bertram Edwards diz — disse Siegfried. — E Bertram teve uma boa ideia. Vamos dizer-lhe que temos uma equipa de trabalho lá a construir uma ponte sobre o rio que divide as duas ilhas.

— Mas não têm — disse Raymond.

—É claro que não—disse Siegfried.—A última vez que tivemos uma equipa de trabalho lá foi quando construímos a plataforma para a ponte extensiva para o continente. Claro, Bertram mandou lá algumas pessoas quando ele mudou para lá todas aquelas centenas de jaulas.

—Eu não sei nada sobre jaulas na ilha—disse Raymond.—De que está a falar?

— Ultimamente, Bertram tem tentado convencer-me a desistir da ideia do isolamento da ilha — disse Siegfried. — Ele crê que os bonobos deviam ser trazidos para o centro dos animais e um tanto ou quanto escondidos.

— Eu quero que eles fiquem na ilha — disse Raymond, enfaticamente. — Foi esse o acordo que eu fiz com a Gensys. Eles poderão fechar o programa se trouxermos os animais de lá. São paranóicos acerca de publicidade.

— Eu sei — disse Siegfried. — Foi exactamente o que eu disse a Bertram. Ele compreende, mas quer deixar as jaulas para uma eventualidade. Não vi nenhum problema nisso. Aliás, é bom estar preparado para quaisquer contingências inesperadas.

Raymond, nervoso, passou a mão pelo cabelo. Não queria ouvir falar de inesperadas contingências.

— Eu ia perguntar-lhe como é que queria que nós lidássemos com Kevin e com as companheiras — disse Siegfried. — Mas com esta explicação acerca do fumo e dado que lhes demos um bom susto, penso que a situação está sob controlo.

— Eles não chegaram a ir à ilha, ou chegaram? — perguntou Raymond.

— Não, estavam apenas na área de acesso — disse Siegfried.

— Compreendo — disse Siegfried. — Creio que Kevin não voltará pelas razões que já apontei. Mas, parajogar pelo seguro, vou pôr lá um guarda marroquino e um contingente de soldados equatoguineenses durante alguns dias, desde que você ache que é uma boa ideia.

—Acho bem—disse Raymond.—Mas diga-me, pessoalmente, que pensa do fumo que sai da ilha, assumindo que Kevin tem razão?

— Eu?—questionou Siegfried. — Não me preocupa nada o que os animais possam fazer lá. Desde que eles lá permaneçam e estejam saudáveis. Isso preocupa-o a si?

— Nem minimamente — disse Raymond.

— Talvez devêssemos mandar um punhado de bolas de futebol — disse Siegfried. — Pode ser que eles se entretenham. — Riu-se com vontade.

— Não penso que isto seja um caso para rir — disse Raymond, irritadamente. Raymond não gostava de Siegfried, embora apreciasse o seu estilo de gestão disciplinada. Raymond visualizava o director na sua secretária, rodeado pela sua colecção de animais ferozes embalsamados e as caveiras a decorarem a secretária.

—Quando é que vem buscar o paciente?—perguntou Siegfried. — Ouvi dizer que ele está a reagir extraordinariamente bem e está pronto para voltar.

—Parece que sim—disse Raymond.—Fiz um telefonema para Cambridge, e logo que o avião da Gensys esteja disponível, irei buscá-lo. Deverá ser dentro de um ou dois dias.

—Avise-me — disse Siegfried. — Mandarei um carro esperá-lo a Bata.

Raymond pousou o auscultador e deu um pequeno suspiro de alívio. Estava contente por ter telefonado para África, visto que parte da sua ansiedade actual tinha tido origem na perturbadora mensagem de Siegfried, de que havia um problema com Kevin. Era consolador saber que a crise tinha sido resolvida. De facto, Raymond pensava que se conseguisse tirar da sua mente aquela fotografia sua debruçado sobre o corpo de Cindy Carlson, poderia voltar de novo a ser ele próprio.

 

6 DE MARÇO, 1997 - 12:00 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Kevin estava alheio ao tempo, profundamente concentrado no ecrã do computador havia já várias horas, quando foi interrompido por alguém que batia à porta. Abriu a porta do laboratório e deparou-se com Melanie que, cumprimentando-o apressadamente, irrompia pelo gabinete dentro.

— Onde estão os teus técnicos? — perguntou ela.

— Dei-lhes o dia de folga — disse Kevin. — Sei que não vou conseguir fazer qualquer trabalho hoje, por isso, disse-lhes para irem gozar o sol. Foi uma estação chuvosa prolongada, e, sem darmos por isso, em breve estará de volta.

— Onde está Candace? — perguntou Melanie. Ela pousou um pacote na banqueta do laboratório.

— Não sei — disse Kevin. — Não a vi nem falei com ela desde que a deixámos no hospital esta manhã.

Fora uma longa noite. Depois de terem estado escondidos na câmara frigorífica da Patologia durante mais de uma hora, Melanie conseguiu convencer tanto Kevin como Candace a saírem furtivamente para o quarto, lá no centro, que Melanie usava para descansar quando estava de serviço. Os três tinham dormido muito pouco, até à mudança do turno da manhã. Misturando-se com os funcionários que iam e vinham, o grupo conseguira regressar ao Cogo sem incidentes.

— Sabes como contactá-la? — perguntou Melanie.

— Calculo que bastará ligar para o hospital e pedir que a contactem através do bip — sugeriu Kevin. — A não ser que ela esteja no quarto, lá na Estalagem, o que é muito provável, uma vez que Horace Winchester está a passar bastante bem.—A Estalagem era o nome dado às instalações temporárias usadas pelo pessoal eventual. Fisicamente, era parte do complexo do hospital e laboratórios.

— Boa ideia! — disse Melanie. Pegou no telefone e pediu à telefonista para ligar ao quarto de Candace. Ao terceiro toque, Candace atendeu. Era óbvio que estava a dormir.

— Kevin e eu vamos à ilha — disse Melanie, sem qualquer preâmbulo. — Queres ir ou ficas por cá?

—De que é que estás a falar?—perguntou Kevin com nervosismo. Melanie fez-lhe sinal para que se calasse.

— Quando? — perguntou Candace.

— Assim que chegares aqui — disse Melanie. — Estamos no laboratório de Kevin.

— Vou levar pelo menos uma meia hora — disse Candace. — Tenho de tomar um duche.

— Esperamos por ti — disse Melanie. E desligou o telefone.

— Melanie, estás maluca? — disse Kevin.—Tens de dar algum tempo antes de fazermos outra tentativa de ir à ilha.

— Esta rapariga, aqui, não pára — disse Melanie, batendo com a mão no peito. — Quanto mais depressa formos melhor. Se Bertram descobre que falta uma chave, pode mandar mudar a fechadura, e nós voltamos à estaca zero. Além disso, conforme disse na noite passada, eles esperam que estejamos aterrorizados. Se formos agora, apanhamo-los desprevenidos.

— Não sei se estou na disposição de alinhar — disse Kevin.

— Ah, sim? — disse Melanie de um modo arrogante. — Olha, foste tu que levantaste o problema daquilo que tu próprio criaste. Agora, estou verdadeiramente preocupada. Vi mais provas circunstanciais esta manhã.

— Como por exemplo? — perguntou Kevin.

— Eu fui à zona dos bonobos no centro dos animais — disse Melanie. — Certifiquei-me de que ninguém ia entrar, por isso, não vale a pena ficares todo nervoso. Levou-me cerca de uma hora, mas consegui encontrar uma mãe com um dos nossos bebés.

— E...? — interrogou Kevin. Não sabia se queria ouvir o resto. —O bebé andou sob as partes traseiras... tal como eu e tu... todo

o tempo que estive lá a observar — disse Melanie. Os seus olhos brilhavam com uma emoção que era muito semelhante à ira. — O comportamento que nós consideramos mimoso é bípede.

Kevin acenou com a cabeça e desviou o olhar. A intensidade do nervosismo de Melanie e a descrição reforçavam os seus receios.

— Temos de descobrir de uma vez por todas qual é o estatuto daquelas criaturas—disse Melanie.—E só lá indo, conseguiremos descobrir.

Kevin anuiu com um movimento de cabeça.

—Por isso, fiz algumas sanduíches—disse Melanie, apontando para um saco de papel que trouxera consigo.—Digamos que vamos fazer um piquenique.

— Esta manhã defrontei-me com qualquer coisa perturbadora também — disse Kevin. — Eu mostro-te. — Pegou na banqueta e pôs-se junto ao terminal do computador. Com um gesto, convidou Melanie a sentar-se. Carregou em algumas teclas e logo apareceu o gráfico da ilha Francesca.—Programei o computador para seguir a pista dos sessenta e três bonobos durante várias horas de actividade normal — explicou Kevin. — Depois condensei a informação para que pudesse observar em sequência. Vê o resultado.

Kevin deu um clique no rato para começar. A profusão de pequenas luzes vermelhas de imediato delineou uns desenhos geométricos muito esquisitos. Foram apenas alguns segundos.

—Parece um punhado de arranhões de galinha—disse Melanie.

— Com excepção destes dois pontos — disse Kevin. Apontou para dois pontos minúsculos.

— Aparentemente, não se moveram — disse Melanie.

— Exactamente — disse Kevin. — A criatura número um e a criatura número sessenta e sete. — Kevin pegou no mapa pormenorizado do contorno da ilha que inadvertidamente trouxera do gabinete de Bertram. — Localizei a criatura número sessenta numa clareira pantanosa justamente a sul do lago Hippo, De acordo com o mapa, não há árvores lá.

— Qual é a tua explicação? — interrogou Melanie.

—Espera — disse Kevin. — O que eu fiz em seguida foi reduzir a escala da grelha, de modo a representar um metro e meio por um metro e meio da porção da ilha onde o número sessenta foi localizado. Deixa mostrar-te o que aconteceu.

Kevin introduziu a informação e depois deu um clique para começar novamente. Mais uma vez, a luz vermelha da criatura número sessenta era um ponto minúsculo.

— Não se moveu absolutamente nada — disse Melanie.

— Receio bem que não — disse Kevin.

— Supões que ele possa estar a dormir?

— A meio da manhã? — perguntou Kevin.

— E, com tal escala, até o revirar-se no sono deveria produzir algum movimento. O sistema é extremamente sensível.

— Se não está a dormir, que estará a fazer? — perguntou Melanie.

Kevin encolheu os ombros.

— Não sei. Talvez tenha encontrado uma fornia de remover o chip do computador.

— Nunca tinha pensado nisso — disse Melanie.

— É uma ideia amedrontante.

—A outra explicação que me ocorre é que ele poderá ter morrido

— disse Kevin.

— Suponho que é também uma possibilidade — disse Melanie.

— Mas suponho que não será muito provável. São animais jovens, extremamente saudáveis. Procurámos que assim fossem. E estão num ambiente sem inimigos naturais e têm alimentação mais do que suficiente.

Kevin suspirou.

—O que quer que seja é perturbador. E, quando lá formos, penso que deveríamos verificar.

— Será que Bertram já sabe disto? — indagou Melanie. — Não é nada bom para o programa em geral.

— Acho que deveria pô-lo ao corrente — disse Kevin.

—Esperemos pelos resultados da nossa visita—disse Melanie.

— Obviamente — disse Kevin.

— Detectaste mais alguma coisa com este programa?

—Detectei—disse Kevin.—Confirmei a minha suspeita inicial de que eles estão a utilizar as cavernas. Vê!

Kevin mudou as coordenadas expostas na tabela no ecrã do computador, de modo a corresponder a uma área específica da colina de pedra calcária. Depois, tentou seguir a pista do seu próprio duplo, criatura número um.

Melanie viu o ponto vermelho desenhar uma forma geométrica e logo desaparecer. Em seguida, reapareceu num local idêntico e desenhou uma segunda figura geométrica. Uma sequência semelhante repetiu-se pela terceira vez.

— Tenho de concordar que tens razão — disse Melanie. — Definitivamente, parece que o teu duplo entra e sai da face da rocha.

— Quando formos lá, temos de procurar ver os nossos duplos — disse Kevin. — São os mais velhos, e se algum dos bonobos transgénicos estiverem a comportar-se como proto-humanos?

Melanie assentiu com a cabeça.

—Aideia de enfrentar o meu próprio duplo dá-me arrepios. Mas não vamos ficar muito tempo lá. E uma vez que a ilha tem doze milhas quadradas, será verdadeiramente difícil encontrar uma criatura específica.

— Estás enganada — disse Kevin. — Tenho os instrumentos que eles usam para recolhas. — Levantou-se do computador e foi até à secretária. Quando regressou, trazia consigo o localizador e o indicador de direcção que Bertram lhe dera. Mostrou os aparelhos a Melanie e explicou-lhe a sua utilidade. Melanie ficou impressionada.

— Onde está aquela rapariga?—perguntou Melanie, depois de olhar para o relógio. — Queria estar de regresso por volta da hora do almoço.

— Siegfried falou contigo esta manhã? — interrogou Kevin.

— Não, mas Bertram falou — disse Melanie.

— Ele estava furioso e disse que estava desapontado comigo. Imaginas? Quero dizer, ele pensa que me verga com aquilo ou quê?

—Deu-te alguma explicação sobre o fumo que eu vi?—perguntou Kevin.

— Oh, deu — disse Melanie. — Ele deu-se ao trabalho de dar uma longa explicação de como tinha tomado conhecimento recentemente de que Siegfried tinha uma equipa de trabalho na ilha, a construir a ponte e a queimar lixo. Disse ele que estava a ser feito sem o seu conhecimento.

— Já imaginava — disse Kevin. — Siegfried chamou-me logo depois das nove. Contou-me precisamente a mesma história. Até me disse que tinha acabado de falar com o Dr. Lyons e que o Dr. Lyons também estava desapontado connosco.

— Isso faz-nos chorar — disse Melanie.

— Não creio que ele estivesse a falar a verdade no que se refere à equipa de trabalho — disse Kevin.

— Claro que não estava — disse Melanie. — Quero dizer, Bertram faz questão de saber tudo quanto se passa na ilha Francesca. Quem sabe se eles pensam que nascemos ontem?

Kevin levantou-se, mostrando inquietação, e olhou fixamente através da janela para a ilha distante.

— Que se passa agora? — perguntou Melanie.

— Siegfried — disse Kevin. Ele voltou a olhar para Melanie. — Quanto ao aviso de aplicar a lei eguatoguineense. Lembrou-nos que ir à ilha poderia ser considerado uma ofensa capital. Não achas que devíamos levar a ameaça a sério?

— Certamente que não! — disse Melanie.

— Como podes ter tanta certeza — disse Kevin. — Siegfried mete-me medo.

— Ele também me meteria medo se nós fôssemos equatoguineenses — disse Melanie. Mas não somos. Somos americanos. Enquanto estivermos aqui na Zona, a boa velha lei aplica-se a nós. O pior que nos poderá acontecer é sermos despedidos. E como já disse ontem à noite, não sei se não é isso mesmo que eu gostaria. Nestes últimos dias tenho pensado muito em Manhattan como sendo um lugar ideal.

— Quem me dera estar tão confiante como tu — disse Kevin.

— Enquanto te entretinhas no computador esta manhã, confirmaste se os bonobos permanecem em dois grupos?

Kevin anuiu com a cabeça.

— O primeiro grupo é maior e permanece nos arredores das furnas. Inclui os bonobos mais velhos, incluindo o meu e o teu. O outro grupo está na área da floresta, a norte do rio Diviso. Consiste sobretudo em animais mais jovens, embora o terceiro mais velho esteja com eles. É o duplo de Raymond Lyons.

— Muito curioso — disse Melanie.

—Olá, pessoal—disse Candace em voz alta ao entrar sem bater à porta. — Demorei-me muito? Nem sequei o cabelo. — Em vez do carrapito estilo francês, o seu cabelo estava penteado para trás, afastado da testa.

— Não, de maneira nenhuma — assegurou-lhe Melanie. — E foste a única que teve o bom senso de dormir uma soneca. Tenho de admitir que estavas exausta.

— Siegfried contactou contigo? — perguntou Kevin.

— Cerca das nove e trinta — disse Candace. — Eu dormia profundamente quando ele me despertou. Espero ter dito coisas com nexo.

— Que te disse ele? — perguntou Kevin.

— Aliás, foi muito simpático — disse Candace. — Até pediu desculpa por aquilo que aconteceu ontem à noite. Também deu uma explicação sobre o fumo que aparece na ilha. Diz ele que é de uma equipa que está a fazer trabalhos e a queimar ramos secos.

— Nós recebemos a mesma mensagem — disse Kevin.

— Que dizem a isso? — indagou Candace.

— Nós não enfiámos esse barrete — disse Melanie. — É demasiado evidente.

— Calculei isso — disse Candace. Melanie pegou no seu saco de papel.

— Vamos começar a nossa tourné.

— Tens a chave? — perguntou Kevin. Ele pegou no localizador e no indicador de direcção.

— Claro que tenho a chave — disse Melanie.

Quando saíram, Melanie disse a Candace que tinha trazido qualquer coisa para comerem.

— Formidável! — disse Candace. — Estou esfomeada.

— Esperem lá — disse Kevin, quando chegaram às escadas.— De repente, lembrei-me de uma coisa. Seguiram-nos ontem. É a única explicação para a forma como fomos surpreendidos. Claro, quer dizer que eu é que fui seguido, visto que fui eu quem levantou o problema do fumo a Bertram Edwards.

— Bem visto — disse Melanie.

Os três olharam uns para os outros durante alguns momentos.

— Que fazemos? — perguntou Candace. — Não queremos que nos sigam.

—A primeira coisa é que não devíamos ir no meu carro — disse Kevin. — Onde está o teu, Melanie? Com o tempo seco, passamos bem sem o carro de tracção às quatro rodas.

— Lá em baixo, no estacionamento — disse Melanie. — Acabo de vir do centro dos animais.

— Alguém te seguiu?

— Quem sabe? — respondeu Melanie. — Não estava a prestar atenção.

— Hum — ponderou Kevin. — Continuo a pensar que é a mim que me vão seguir. Portanto, Melanie, vai para baixo, mete-te no carro e dirige-te para casa.

— E vocês dois, que fazem?

— Há um túnel na cave que vai até à central eléctrica. Espera na tua casa durante cerca de cinco minutos, depois vai ter connosco à central. Há uma porta que dá para o parque de estacionamento. Sabes onde me refiro?

— Penso que sei — disse Melanie.

— Está bem — disse Kevin. — Até já.

Separaram-se no primeiro andar. Melanie saiu para o calor do meio.dia, enquanto Candace e Kevin desceram para o andar da cave.

Depois de caminharem durante quinze minutos, Candace comentou que aquelas passagens eram um autêntico labirinto.

— Há apenas uma central — explicou Kevin. — O túnel liga todos os edifícios principais excepto o centro dos animais, que tem a sua própria central eléctrica.

— Uma pessoa perde-se cá em baixo — disse Candace.

—Eu perdi-me—adiantou Kevin—muitas vezes. Mas durante a estação chuvosa, acho que estes túneis são muito úteis. São secos e frescos.

À medida que se aproximavam da central ouviam e sentiam a vibração das turbinas. Um lance de escadas metálicas conduziu-os à porta lateral. Logo que apareceram, Melanie, que estava estacionada debaixo de uma árvore, foi ter com eles.

Kevin entrou para a parte de trás, para que Candace pudesse ir à frente. Melanie arrancou de imediato. O ar condicionado do carro era muito agradável, dado o calor e os cem por cento de humidade do exterior.

— Viste alguma coisa suspeita? — perguntou Kevin.

— Absolutamente nada — disse Melanie. — E andei à volta como se andasse a fazer compras. Não havia ninguém a seguir-me. Tenho noventa e nove por cento de certeza.

Kevin olhou através do vidro de trás do Honda de Melanie, e, enquanto se distanciavam, ele olhava para a área em redor da estação de serviço, até que a perdeu de vista quando entraram na curva. Não aparecera absolutamente ninguém, e não havia carros a segui-los.

— Eu diria que as perspectivas são boas—disse Kevin. Sentou-se no banco de trás, de modo a não ser visto.

Melanie conduziu pela orla norte da cidade. Entretanto, Candace abriu as sanduíches.

— Nada mal — disse Candace, dando uma dentada numa sanduíche de atum em pão integral.

— Mandei-as fazer na cantina do centro dos animais—explicou Melanie. — Há bebidas no fundo do saco.

— Queres alguma coisa, Kevin? — perguntou Candace.

—Suponho que sim—disse Kevin. Deixou-se ficar onde estava. Candace passou-lhe uma sanduíche e um refresco por entre os bancos da frente do carro.

Em breve, estavam na estrada que conduzia para fora da cidade, a leste, em direcção à vila dos nativos. A posição de Kevin permitia-lhe ver apenas o topo das árvores de liana que se alinhavam nas margens da estrada mais uma tira de céu azul ligeiramente nublado. Depois de tantos meses de céu encoberto e de chuva, era bom ver o sol.

— Alguém nos está seguir? — perguntou Kevin, quando já estavam na estrada havia algum tempo.

Melanie olhou pelo retrovisor.

— Não vi nenhum carro — disse ela. Não tinha havido trânsito numa ou noutra direcção, embora houvesse muitas mulheres indígenas a carregar várias coisas à cabeça.

Após terem passado o parque de estacionamento em frente do armazém na vila dos indígenas e de entrarem no atalho que levava à área de acesso à ilha, Kevin endireitou-se. Já não se preocupava que o vissem. De quando em quando, olhava para trás para se certificar de que não estavam a ser seguidos. Embora não o admitisse às suas companheiras, sentia-se extremamente nervoso.

—Aquele tronco em que batemos ontem à noite deve estar perto — avisou Kevin.

— Mas eles não passaram por ele quando nos trouxeram de volta — disse Melanie. — Devem tê-lo removido.

—Tens razão—disse Kevin. Ficou impressionado pelo facto de Melanie se lembrar. Depois do tiroteio, os pormenores da noite anterior estavam um tanto ou quanto confusos na mente de Kevin.

Calculando que deviam estar perto, Kevin sentou-se na beira do assento para conseguir ver por entre os dois bancos.

Apesar do sol do meio-dia, a visibilidade era quase tão má como na noite anterior devido à densidade da mata em ambos os lados. A vegetação deixava passar muito pouca luz; era como deslocar-se entre duas paredes.

Dirigiram-se até à clareira e pararam. A garagem estava à esquerda, enquanto à direita havia a entrada da vereda que dava acesso à margem e à ponte.

— Será melhor levar o carro até junto da ponte? — perguntou Melanie.

O nervosismo de Kevin aumentava. Entrar num beco sem saída preocupava-o. Ele considerou a ideia de ir de carro até à margem, mas receava que não houvesse espaço para manobrar o carro. Isso significaria que teriam de fazer o trajecto em marcha atrás.

— Sugiro que estacionemos aqui — disse Kevin. — Mas, primeiro, vira o carro.

Kevin esperava uma contestação, mas Melanie pôs o carro em marcha sem qualquer lamúria. Não se referiram ao facto de terem que passar pelo local onde tinham sido alvejados.

Melanie completou a manobra.

— Okay, pessoal, chegámos — disse ela, de modo descontraído, enquanto puxava o travão de mão. Estava a tentar levantar a moral de todos eles. Estavam todos muito tensos.

— Acabo de ter uma ideia que não me agrada muito — disse Kevin.

— Que foi agora? — perguntou Melanie, olhando através do retrovisor.

— Talvez devesse ir até à ponte sozinho, só para ter a certeza de que não está ninguém por lá — disse Kevin.

— Como por exemplo? — interrogou Melanie, mas a ideia de companhia indesejada já lhe tinha ocorrido.

Kevin respirou fundo para reavivar a coragem que esmorecia, e saiu do carro.

— Quem quer que seja — disse ele. — Até mesmo Alphonse Kimba. — Endireitou as calças e começou a andar,

A vereda em direcção à água estava tão encoberta com uma vegetação densa, que mais parecia um túnel do que um atalho. Logo à entrada, a vereda fazia uma curva para a direita.

O pálio de árvores e trepadeiras bloqueavam grande parte da luz. A facha central da vereda tinha vegetação tão alta que parecia ter dois trilhos paralelos.

Kevin passou a primeira curva, depois parou. O inconfundível ruído de botas a correrem no terreno húmido misturado com o tilintar de metal contra metal deu-lhe a volta ao estômago. Em frente, a vereda virava à esquerda. Kevin conteve a respiração. Logo em seguida, viu um grupo de soldados equatoguineenses com os seus camuflados surgirem na curva e dirigirem-se a ele. Todos eles traziam metralhadoras chinesas.

Kevin rodou sobre os calcanhares e correu pela vereda acima com uma velocidade como nunca correra antes. Quando chegou à clareira, gritou a Melanie para sair dali imediatamente. Ao chegar ao carro, abriu a porta de trás e atirou-se para o assento. Melanie tentava pôr o carro a trabalhar.

— Que aconteceu? — gritou ela.

— Soldados — gaguejou Kevin. — Um bando deles!

O motor pegou e começou a funcionar. Ao mesmo tempo, os soldados emergiram da vereda para a clareira. Um deles gritou, quando Melanie pisou o acelerador com toda a força.

O pequeno carro deu um solavanco para a frente, e Melanie tentou controlar o volante. Houve uma rajada de tiros e o vidro de trás do Honda estilhaçou-se em mil pedaços. Kevin estendeu-se no banco de trás. Candace gritou quando o vidro da sua janela foi também ao ar.

Logo à frente, para além da clareira, havia uma curva à esquerda. Melanie conseguiu meter o carro nos trilhos do atalho e depois acelerou tanto quanto pôde. Quando tinham percorrido cerca de sessenta metros, houve outra rajada de fogo à distância. Algumas balas dispersas chiaram sobre o carro quando Melanie contornava uma outra curva ligeira.

— Meu Deus! — disse Kevin, enquanto se sentava e limpava os estilhaços de vidro que caíram sobre ele.

— Agora estou mesmo furiosa! — disse Melanie.

—Aquilo não foi propriamente uma rajada por cima das nossas cabeças. Olha para o vidro de trás!

— Penso que me quero reformar — disse Kevin. — Sempre tive medo daqueles soldados e agora já sei porquê.

— Penso que a chave da ponte não nos vai ajudar em nada — disse Candace. — Que desperdício, depois de todo o nosso esforço para consegui-la.

— É deveras irritante — concordou Melanie. — Vamos ter de inventar um outro plano alternativo.

— Eu vou para a cama — disse Kevin. Não queria crer nas suas companheiras; pareciam realmente destemidas. Pôs a mão sobre o coração; batia mais acelerado do que nunca.

 

6 DE MARÇO, 1997 - 6:45 CIDADE DE NOVA IORQUE

Aumentando um pouco a velocidade, Jack conseguiu passar o sinal verde na intersecção da First Avenue e Thirtieth Street, e avançou sempre, sem abrandar a marcha. Pedalando ao longo da entrada da morgue, só travou no último minuto. Momentos depois, tinha a bicicleta trancada e estava a caminho do gabinete de Janice Jaeger, a investigadora forense do turno da noite.

Jack estava inquieto. Depois de ter praticamente concluído que o flutuador era Cario Franconi, Jack dormira muito pouco. Tinha passado o tempo ao telefone com Janice, tendo finalmente implorado para que ela tentasse obter o historial clínico de Franconi do Hospital Distrital de Manhattan. A sua investigação preliminar determinara que Franconi estivera hospitalizado lá.

Jack também tinha solicitado a Janice para obter os números de telefone das organizações europeias de distribuição de órgãos humanos, que se encontravam na secretária de Bart Amold. Devido à diferença horária de seis horas, Jack começara a fazer as chamadas depois das três da manhã. Estava sobretudo interessado na organização holandesa, cujo nome era Fundação Europeia de Transplantes. Quando foi informado de que o nome de Cario Franconi não constava da lista dos pacientes que tinham feito um transplante recentemente, Jack telefonou para todas as outras organizações nacionais, a cujos números de telefone tivera acesso. Entre elas havia organizações em França, Inglaterra, Itália, Suécia, Hungria e Espanha. Nenhuma delas tinha o nome de Cario Franconi. Para além disso, a maior parte das pessoas com quem falara, informaram-no que seria um caso raro que um cidadão estrangeiro fosse atendido nesses serviços, visto que na maioria dos países havia uma longa lista de espera de cidadãos nacionais.

Após apenas algumas horas de sono, a curiosidade de Jack despertou-o. Como não conseguira voltar a adormecer, decidira que tinha de ir à morgue cedo para verificar o material que Janice pudesse ter obtido.

—Ena, pá, estás ansioso!—comentou Janice, ao ver Jack entrar no seu gabinete.

— Este é um daqueles casos que torna o trabalho forense interessante — disse Jack. — Que tal te saíste no HDM?

—Consegui bastante material—disse Janice.—O Sr. Franconi esteve internado muitas vezes ao longo dos anos, sobretudo devido a hepatites e cirroses.

— Ah, o enredo torna-se mais interessante — disse Jack. — Quando foi a última vez?

— Há cerca de dois meses — disse Janice. — Mas não houve transplante. Fazem referência a essa hipótese, mas se ele o fez, não foi no HDM. — Entregou um grosso dossier a Jack.

Jack pegou no dossier e sorriu.

— Suponho que tenho muito que ler.

— A mim, parece-me muito repetitivo — disse Janice.

— E o médico dele? — perguntou Jack. — Ele tinha um regular ou saltava de um para outro?

— O mesmo quase todo o tempo — respondeu Janice. — O Dr. Daniel Levitz, na Fifth Avenue, entre a Sixty-fourth e Sixtyfifth Avenue. O número de telefone está aí no dossier.

— Tu és muito eficiente — disse Jack.

— Tento fazer o melhor que posso — disse Janice. — Tiveste alguma sorte com as organizações de distribuição de órgãos?

— Um falhanço absoluto — disse Jack. — Pede ao Bart que me telefone logo que ele chegue. Temos de tentar de novo todos os centros de transplante neste país, agora que já temos o nome do paciente.

—Se Bart não tiver chegado quando eu sair, deixo-lhe uma nota sobre a secretária — disse Janice.

Jack assobiava enquanto caminhava através das comunicações a caminho da sala de ID. Saboreava já o café enquanto pensava na euforia que a primeira chávena da manhã lhe provocava. Mas quando lá chegou, apercebeu-se de que tinha chegado demasiado cedo. Vinnie Amendola estava justamente a fazê-lo.

— Despacha-te com esse café! — disse Jack, enquanto deixava cair o pesado dossier em cima da mesa de metal onde Vinnie costumava ler o jornal. — É uma emergência, esta manhã.

Vinnie não respondeu o que era contra o seu costume, e Jack notou-o.

— Ainda continuas mal disposto?

Vinnie continuou a não responder, mas a mente de Jack já estava algures. O título que lera no jornal de Vinnie chamara-lhe à atenção: CORPO DE FRANCONI ENCONTRADO. Por baixo do título, em letras ligeiramente mais pequenas, lia-se: “Cadáver de Franconi inerte no Instituto de Medicina Legal durante vinte e quatro horas, até ser identificado.”

Jack sentou-se para ler o artigo. Como costume estava escrito com um laivo de sarcasmo, implicando que os patologistas eram incompetentes. Jack pensou que era interessante que enquanto o jornalista tivera a informação suficiente para escrever o artigo, ele parecia desconhecer que o corpo estava decapitado e sem mãos, o que fora feito intencionalmente, para tentar ocultar a identidade. Nem mencionava o tiro no quadrante superior direito.

Tendo acabado de preparar o café, Vinnie dirigiu-se para a secretária e manteve-se de pé enquanto Jack lia. Impacientemente, remexia-se, ora descansando sobre o pé direito ora sobre o esquerdo. Quando finalmente Jack levantou os olhos, Vinnie disse irritadamente:

— Importas-te! Gostaria de ler o meu jornal.

— Vês este artigo? — perguntou Jack, batendo com a mão na página da frente.

— Sim, já lho vi — disse Vinnie.

Jack resistiu à tentação de corrigir o seu inglês. Em vez disso, disse:

— Surpreendeu-te? Quero dizer, quando ontem fizemos a autópsia, passou-te pela cabeça que poderia ser o desaparecido Franconi?

— Não. Porquê, devia ter pensado? — disse Vinnie.

— Não estou a dizer que devia — disse Jack. — Só perguntei se te ocorreu?

— Não — disse Vinnie. — Dá-me o meu jornal! Por que não compras um? Estás sempre a ler o meu.

Jack ergueu-se, atirou-lhe o jornal e levantou o dossier de cima da mesa.

— Tu, de facto, estás fora de ti ultimamente. Talvez precises de umas férias. Estás a ficar um velho rabugento.

— Pelo menos, não sou forreta — disse Vinnie. Pegou no jornal e endireitou as páginas, que Jack deixara em desalinho.

Jackfoi até à máquina do café e encheu uma chávena bem cheia. Levou-a para uma das secretárias. Enquanto sorvia o café com prazer, ia passando os olhos pelo relatório de Franconi. Na sua primeira pesquisa, concentrava-se apenas no essencial, por conseguinte, lia apenas a página com o resumo ao alto da alta. Conforme Janice já lhe havia dito, os internamentos eram sobretudo

por problemas de fígado, tendo começado com um ataque de hepatite que ele contraíra em Nápoles, em Itália.

Entretanto, Laurie chegou. Antes mesmo de tirar o casaco, perguntou a Jack se ele lera os jornais ou ouvira os noticiários. Jack disse-lhe que tinha lido o Post.

— Foste tu? — perguntou Laurie, enquanto dobrava o seu casaco e o punha na cadeira.

— De que estás a falar?

— De deixar sair a informação de que tínhamos identificado o flutuador como sendo Franconi — disse Laurie.

Jack deu uma ligeira gargalhada de descrença.

— Estou surpreendido que isso te passe pela cabeça. Por que é que havia de fazer uma coisa dessas?

—Não sei, talvez porque estavas muito excitado por causa disso ontem à noite—disse Laurie.—Mas não quis ofender-te. Só fiquei perplexa por a notícia sair nos jornais com tanta rapidez.

— Então, estamos os dois — disse Jack. — Talvez tenha sido Lou.

— Penso que isso me surpreenderia ainda mais—disse Laurie.

— Porquê eu? — disse Jack. Tinha um tom magoado.

— No ano passado, deixaste sair a história da epidemia—disse Laurie.

—Isso foi uma situação completamente diferente—disse Jack, na defensiva. — Isso foi para salvar vidas.

— Bem, não fiques furioso — disse Laurie. Para mudar de assunto, ela perguntou: — Que casos temos para hoje?

— Ainda não vi — admitiu Jack. — Mas a pilha é pequena e eu tenho um pedido. Se possível, gostaria de ter ou um dia de papelada ou um verdadeiro dia de pesquisa.

Laurie virou-se para a secretária e contou os relatórios para as autópsias.

— Temos apenas dez casos; não há problema — disse ela. — Penso que eu própria vou fazer só um. Agora, já que o corpo de Franconi está de volta, estou ainda mais interessada em descobrir como é que ele saiu daqui. Quanto mais penso no assunto, mais me convenço que terá partido de um trabalho cá de dentro, de uma forma ou de outra.

Houve um som de líquido espalhado seguido de uma maldição. Tanto Lauriecomo Jack olharam para Vinnie,que se tinhalevantado de um salto. Ele tinha derramado o café em cima da secretária e até mesmo no colo.

—Cautela com Vinnie—disse Jack a Lauríe.—Ele está de novo com uma má disposição danada.

— Estás bem, Vinnie? — indagou Laurie.

— Estou okay — disse Vinnie. Ele dirigiu-se com as pernas tensas até à máquina do café para ir buscar umas toalhas de papel.

— Estou confuso — disse Jack a Laurie. — Por que é que o regresso do corpo de Franconi faz que te interesses ainda mais pelo seu desaparecimento?

— Sobretudo por aquilo que tu encontraste durante a autópsia — disse Laurie. — No princípio, convenci-me que quem quer que tivesse roubado o corpo o tivesse feito só por represália, como, por exemplo, o assassino querer privá-lo de um funeral decente, ou qualquer coisa do género. Mas agora parece que o corpo foi levado para destruir o fígado. Isso é esquisito. Inicialmente, pensei que resolver a charada de como o corpo foi levado daqui era uma espécie de desafio. Agora, creio que se conseguir descobrir como o corpo foi levado, conseguiremos descobrir quem o levou.

— Estou a começar a compreender o que disse Lou quanto a sentir-se estúpido perante a tua aptidão para fazer associações — disse Jack. — Com o desaparecimento de Franconi, sempre pensei que o “porquê” era mais importante do que o “como”. Estás a sugerir que estão relacionados?

— Exactamente — disse Laurie. — O “como” levar-nos-á a “quem” e o “quem” explicará o “porquê”.

— E pensas que alguém que trabalha aqui está envolvido? —Receio bem que sim—disse Laurie.—Não vejo como possam

ter conseguido a proeza, sem ter alguém cá dentro para ajudar. Mas ainda não faço a mínima ideia de como aconteceu.

Após o seu telefonema a Siegfried, o cérebro de Raymond tinha finalmente sucumbido aos altos níveis hipnóticos medicamentosos que circulavam no seu sistema sanguíneo derivado dos dois soporíferos. Dormiu profundamente o resto da madrugada. Despertou quando Darlene abriu as cortinas para deixar entrar a luz do dia. Eram quase oito horas, a hora que ele pedira para ser despertado.

— Sentes-te melhor, querido? — perguntou Darlene. Ela fê-lo sentar-se para lhe aconchegar a almofada.

—Sinto-me—admitiu Raymond, embora a sua mente estivesse atordoada dos comprimidos.

— Até te preparei o teu pequeno-almoço favorito — disse

208

Darlene. Ela foi até à cómoda e pegou numa bandeja de vime. Levou-a até à cama e colocou-a no colo de Raymond.

Os olhos de Raymond viajaram pela bandeja. Havia sumo de laranja fresco, duas fatias de bacon, uma omoleta com um ovo só, torrada e café fresco. Num dos lados estava o jornal da manhã.

— Que tal? — perguntou Darlene, orgulhosamente.

— Perfeito — disse Raymond. Ele endireitou-se e deu-lhe um beijo.

— Diz-me se quiseres mais café — disse Darlene. Em seguida, saiu do quarto.

Com o prazer de uma criança, pôs manteiga numa torrada e sorveu o sumo de laranja. Em sua opinião, não havia nada tão bom como o cheiro do café e bacon pela manhã.

Tirando um pouco de omoleta e bacon ao mesmo tempo para saborear a mistura de paladares, Raymond levantou o jornal, abriu-o e olhou para os títulos.

Teve um sobressalto, e inalou inadvertidamente alguma comida. Tossiu tanto que entornou o conteúdo da bandeja, fazendo-a cair em cima da carpete.

Darlene entrou no quarto a correr e ficou de pé, torcendo as mãos, enquanto Raymond continuava com acessos de tosse que o faziam ficar como um tomate.

—Agua! — disse ele com um grito agudo por entre os acessos de tosse.

Darlene correu para a casa de banho e voltou com um copo. Raymond agarrou-o e conseguiu beber um pouco. O bacon e a omoleta que ele tinha na boca estavam agora espalhados num círculo em volta da cama.

— Estás bem? — perguntou Darlene. — Queres que chame o 112?

— Foi-me ao goto! — resmungou ele. Apontou para a maçã-deadão.

Levou cerca de cinco minutos até que Raymond recuperasse. A garganta estava agora dorida e a voz rouca. Darlene já tinha limpo a maior parte da imundície que ele tinha causado, excepto a mancha de café na carpete.

— Viste o jornal? — perguntou Raymond a Darlene. Ela abanou a cabeça. Então, ele abriu-o sobre a cama.

— Oh, céus! — disse ela.

—Oh, céus!—repetiu Raymond, sarcasticamente.—E estavas admirada por eu ainda estar preocupado com Franconi!—Raymond, violentamente, amarrotou o jornal.

— Que vais fazer? — perguntou Darlene.

— Suponho que tenho de ir falar com Vinnie Dominick — disse Raymond. — Ele prometeu-me que o corpo tinha desaparecido. Foi um trabalho bem feito!

O telefone tocou e Raymond deu um salto na cama.

— Queres que atenda? — perguntou Darlene.

Raymond acenou com a cabeça. Perguntava-se quem poderia estar a ligar tão cedo.

Darlene levantou o auscultador e disse olá seguido de vários sins. Depois, pousou o auscultador.

— É o Dr. Waller Anderson — disse Darlene com um sorriso. — Ele quer vir para bordo.

Raymond exalou. Até essa altura, nem se dera conta de que estivera a suster a respiração.

— Diz-lhe que estamos contentes, mas que lhe ligo mais tarde. Darlene seguiu as instruções e depois desligou o telefone.

— Pelo menos, eram boas notícias — disse ela.

Raymond esfregou a testa e grunhiu alto. Quem me dera que fosse tudo tão bem como o lado dos negócios.

O telefone tocou novamente. Raymond fez sinal a Darlene para responder. Depois de dizer olá e escutar durante um momento, o seu sorriso logo se desvaneceu. Tapou o bocal e disse a Raymond que era Taylor Cabot.

Raymond engoliu em seco. A garganta, já de si irritada, tornarase seca. Tomou um trago de água e pegou no auscultador.

— Olá, Sr. Cabot! — conseguiu dizer Raymond. A voz ainda estava rouca.

—Estou a telefonar do meu carro—disse Taylor.—Por isso não darei muitos pormenores. Mas fui informado do ressurgimento de um problema que eu pensei tivesse sido resolvido. O que eu disse antes sobre este assunto continua válido. Espero que compreenda.

— Pois claro, Sr. Cabot — gaguejou Raymond. — Eu vou... Raymond deixou de falar. Tirou o auscultador do ouvido e

olhou-o surpreso. Taylor tinha desligado.

— Era mesmo o que eu precisava — disse Raymond, enquanto devolvia o auscultador a Darlene.—Mais uma ameaça de Cabot de fechar o programa.

Raymond pôs os pés fora da cama. Quando se ergueu e enfiou o robe ainda sentia os vestígios das dores de cabeça da véspera.

—Tenho de ir à procura do número de Vinnie Dominick. Preciso de outro milagre.

Às oito horas, Laurie e os outros estavam no “fosso” a começar as autópsias. Jack ficara na sala de ID para ler os relatórios dos internamentos de Cario Franconi. Quando reparou nas horas, voltou ao departamento forense para saber por que é que o investigador-chefe não tinha vindo nesse dia. Jack ficou surpreendido por encontrá-lo no seu gabinete.

— Janice não falou contigo esta manhã? — perguntou Jack. Bart e ele eram suficientemente amigos para que Jack entrasse no escritório de Bart e se deixasse cair numa cadeira.

— Cheguei há minutos — disse Bart. — A Janice já tinha saído.

— Não havia uma mensagem na tua secretária? — perguntou Jack.

Bart começou a espreitar por entre a desordem. A secretária de Bart era bastante semelhante à de Jack. Bart puxou uma nota que leu em voz alta:

— “Importante! Contactar Jack Stapleton imediatamente. Assinado: Janice.”

— Desculpa — disse Bart. — Ia acabar por encontrá-la. — Esboçou um ligeiro sorriso, sabendo que não havia desculpa.

—Suponho que já ouviste falar que o flutuador foi praticamente identificado como sendo Cario Franconi — disse Jack.

— Sim ouvi dizer — disse Bart.

— Isso significa que eu queria que voltasses aos UNOS e a todos os centros que façam transplantes de fígado.

— Isso é mais fácil do que perguntar se algum dos casos de transplantes desapareceu — disse Bart. — Como tenho todos os números de telefone à mão, faço isso num fósforo.

— Passei a maior parte da noite ao telefone com organizações responsáveis pela distribuição de órgãos na Europa — disse Jack. — Acabei com patavina.

— Contactaste o Euro Transplant nos Países Baixos? — perguntou Bart.

—Foram os primeiros que eu contactei—disse Jack.—Não têm qualquer referência de Franconi.

— Então, podemos quase afirmar que Franconi não fez o transplante na Europa — disse Bart. — A Euro Transplant mantém ligações com todo o continente.

— A seguir, gostaria que alguém fosse falar com a mãe de Franconi e a convencesse a dar uma amostra de sangue. Quero que Ted Lynch faça uma identificação do mitocondrial do ADN com a do flutuador. Isso resolverá o problema da identidade, de modo que não será apenas especulação. Pede também ao investigador que pergunte se o filho fez algum transplante de fígado. Será interessante ouvir o que ela tem para dizer.

Bart tomou nota dos pedidos de Jack.

— Que mais? — perguntou Bart.

— Penso que é tudo por agora — disse Jack.—Janice disse-me que o nome do médico de Franconi era Daniel Levitz. É alguém com quem tenhas contactado?

— Se é o Levitz, na Fifth, então, já o contactei.

— Qual foi a tua impressão? — perguntou Jack.

— Um consultório de alto calibre, com uma clientela rica. É um bom médico de Medicina Interna, tanto quanto sei. O curioso é que ele tem ao seu cuidado uma grande quantidade das famílias do crime, por isso não é de surpreender que ele fosse o médico de Cario Franconi.

—Diferentes famílias?—questionou Jack.—Mesmo as famílias rivais?

— Estranho, não é — disse Bart. — Deve ser uma dor de cabeça para a pobre da recepcionista que faz as marcações. Podes imaginar ter duas figuras do crime, rivais, cada qual com os seus guarda-costas na sala de espera ao mesmo tempo?

— A vida é mais estranha do que a ficção.

— Queres que vá ao Dr. Levitz ver o que consigo acerca de Franconi? — perguntou Bart.

— Penso que isso faço eu mesmo — disse Jack. — Tenho um pressentimento que ao falar com o médico de Franconi o que ficar por dizer será mais importante do que aquilo que for dito. Concentra-te em saber onde Franconi fez o transplante. Penso que isso será a informação-chave neste caso. Quem sabe, talvez possa explicar tudo!

—Ah, estás aqui! — entoou uma voz robusta. Tanto Jack como Bart olharam para a porta que estava literalmente cheia com a figura do Dr. Calvin Washington, o subchefe dos serviços.

— Tenho andado à tua procura por todo o lado, Stapleton — resmungou Calvin. — Vamos! O chefe quer falar contigo.

Jack piscou o olho a Bart antes de se levantar da cadeira.

— Talvez mais um dos muitos prémios de mérito que ele tem para me dar.

— Se eu fosse a ti não estaria de ânimo tão leve — disse Calvin com rispidez, enquanto se afastava para deixar passar Jack. — Mais uma vez fizeste o homem ir aos arames.

Jack seguiu Calvin à área administrativa. Justamente antes de entrar no gabinete, Jack entreviu a sala de espera. Havia mais jornalistas do que era normal.

— Passa-se alguma coisa? — perguntou Jack.

— Como se fosse preciso dizer-te — resmungou Calvin. Jack não compreendia, mas não teve oportunidade de perguntar.

Calvin perguntava já à Sr.a Stanford, secretária de Bingham, se podiam entrar no gabinete do chefe.

Acabou por ser na altura errada, e Jack teve de se sentar num banco, de frente para a secretária da Sr.” Stanford. Obviamente, ela estava tão mal disposta como o seu patrão e deu um olhar de desaprovação a Jack. Jack sentia-se como um menino de escola mal comportado à espera de ser chamado ao director. Calvin aproveitou para ir ao seu gabinete fazer uns telefonemas.

Tendo uma ideia da razão da má disposição do chefe, Jack tentou preparar uma explicação. Infelizmente, não lhe ocorria coisa alguma. Afinal, ele poderia ter esperado para ver as radiografias de Franconi quando Bingham chegasse nessa manhã.

— Pode entrar agora — disse a Sr.a Stanford, sem levantar os olhos do seu trabalho. Notou que a luz da linha telefónica se apagara, querendo dizer que o chefe já não estava ao telefone.

Jack entrou no gabinete do chefe com uma sensação de qualquer coisa déjà vu. Um ano antes, durante uma série de casos infecciosos, Jack conseguira pôr o chefe fora de si e tinha havido vários confrontos.

— Entra e senta-te! — disse Bingham, com rudeza.

Jack ocupou a cadeira em frente dele. Bingham envelhecera nos últimos anos. Parecia muito mais velho do que os 63 anos que tinha. E olhava intensamente para Jack, através do seus óculos com aro de metal. Apesar das bochechas e do rosto flácido, Jack notou que os seus olhos eram tão perscrutadores e inteligentes como sempre.

— Quando eu começava a pensar que finalmente estavas a adaptar-te aqui dentro... agora isto — disse Bingham.

Jack não respondeu. Pensou que seria melhor não dizer nada sem que lhe fosse dirigida alguma pergunta.

— Posso, pelo menos, perguntar porquê? — disse Bingham, amavelmente, na sua profunda voz enrouquecida.

Jack encolheu os ombros.

— Curiosidade — disse Jack. — Eu estava inquieto e não podia esperar.

— Curiosidade! — reclamou Bingham. — Isso foi a mesma desculpa esfarrapada do ano passado quando desobedeceste às minhas ordens e foste ao MGH.

— Pelo menos, sou consistente — disse Jack.

Bingham resmungou.

— E agora vem a impertinência. Na verdade, não mudaste muito, pois não?

— Melhorei no basquetebol — disse Jack.

Jack ouviu a porta abrir-se. Voltou-se e viu Calvin entrar no gabinete. Calvin cruzou os braços maciços no peito e pôs-se de lado como um guarda de elite de um harém.

— Não estou a conseguir chegar a sítio nenhum com ele — queixou-se Bingham a Calvin, como se Jack já não estivesse no gabinete.—Pensei que tinhas dito que o comportamento dele tinha melhorado.

— Tinha até este episódio — disse Calvin. Depois olhou com dureza para Jack. — O que me aborrece — disse Calvin, dirigindo-se finalmente a Jack — é que tu sabes muito bem que qualquer informação deste instituto tem de sair do gabinete do Dr. Bingham ou através do relações públicas, ponto final! Vocês, investigadores, não podem chamar a si o papel de divulgar informações. A realidade é que este trabalho é altamente politizado, e em face dos acontecimentos recentes, não queremos má publicidade da imprensa.

— Vamos por partes — disse Jack. — Há qualquer coisa aqui que não está a bater certo. Não tenho a certeza se estamos a falar a mesma linguagem.

— Isso digo eu — afirmou Bingham.

— O que eu quero dizer é — disse Jack — que penso que não estamos a falar do mesmo assunto. Quando vim cá, pensei que estava a ser chamado à pedra porque insisti com um dos homens da limpeza para me dar a chave deste gabinete para que pudesse encontrar as radiografias de Franconi.

— Não é nada disso! — gritou Bingham. Apontou o dedo indicador para o nariz de Jack. — É porque tu deixaste sair a informação de que o corpo de Franconi tinha sido encontrado aqui na morgue depois de ter sido roubado. Que pensaste? Que isso iria trazer-te uma promoção?

— Mais devagar—disse Jack. — Em primeiro lugar, não estou ansioso por uma promoção na carreira. Em segundo lugar, não sou responsável por esta história ter chegado aos meios de comunicação.

— Não foste tu? — exclamou Bingham.

—Certamente que não estás a sugerir que foi trabalho de Laurie Montgomery? — insinuou Calvin.

— De modo nenhum — disse Jack. — Mas não fui eu. Olhem, para falar verdade, nem penso que seja uma história.

— Não é isso que a imprensa pensa — disse Bingham. — Nem tão pouco o presidente da Câmara. Eleja me telefonou duas vezes esta manhã, perguntando-me que espécie de circo é que nós estamos a dirigir aqui. Este assunto de Franconi continua a mostrar aos olhos da cidade inteira a nossa má figura... particularmente, quando notícias sobre os nossos próprios serviços nos apanham de surpresa.

— A verdadeira história sobre Franconi não é por o corpo ter desaparecido durante a noite da morgue—disse Jack.—Tem a ver com o facto de o homem, aparentemente, ter feito um transplante de fígado que toda a gente desconhece e que é muito difícil detectar através da análise do ADN. E alguém quis esconder esse facto.

Bingham olhou para Calvin, que levantou a mão em ar defensivo.

— E a primeira vez que oiço tal coisa! — disse ele.

Jack fez um breve resumo dos resultados da autópsia e depois falou dos resultados desconcertantes das análises de Ted Lynch.

— Isto é esquisito—disse Bingham. Tirou os óculos e limpou os olhos ramelosos. — E parece-me mau, porque eu preferia que este caso de Franconi esfriasse. Se há alguma coisa ilegal, como por exemplo, Franconi ter feito um transplante sem estar devidamente autorizado, então, isso não vai acontecer.

— Espero mais informações hoje — disse Jack. — Pus Bart Arnold a contactar todos os centros de transplante do país. John Vries está a fazer testes para verificar os imunossupressores. Maureen O’Connor, na histologia, está a avançar com os slides. E Ted está a fazer o teste polimarcador do ADN, que segundo ele, será a prova concludente. Esta tarde, teremos a certeza se houve ou não transplante, e, se tivermos sorte, onde é que foi feito.

Bingham olhou para Jack de olhos semicerrados.

— E tens a certeza de que não deixaste sair informação para os jornais?

— Juramento de escuteiro — disse Jack, pondo dois dedos em V no ar.

— Bem, peço desculpa. Mas ouve, Stapleton, mantém tudo isso em segredo. Não vás por aí irritar toda a gente na face da Terra, de maneira a eu receber telefonemas a queixarem-se do teu comportamento. Tens o dom de irritares as pessoas. E, por fim, promete-me que nada sairá para a imprensa sem passar por mim. Compreendido?

— Claro como cristal — disse Jack.

Jack, raramente, tinha uma oportunidade de conduzir a sua bicicleta durante o dia, de modo que era com grande prazer que pedalava ao sabor do trânsito na First Avenue, a caminho do consultório do Dr. Daniel Levitz. Não havia sol, mas a temperatura estava aprazível, nos vinte graus, anunciando a Primavera. Para Jack, a Primavera era a melhor estação na cidade de Nova Iorque.

Com a sua bicicleta segura junto ao sinal PROIBIDO ESTACIONAR, Jack dirigiu-se para a entrada do consultório do Dr. Daniel Levitz. Jack telefonara antes para se certificar de que o médico estaria, mas tinha evitado propositadamente fazer uma marcação. Jack tinha o pressentimento de que uma visita de surpresa seria mais frutífera. Se Franconí, de facto, fizera um transplante, havia qualquer coisa ilícita.

— O seu nome?—perguntou a matrona recepcionista de cabelo prateado.

Jack mostrou-lhe o dístico de médico de Medicina Legal. A superfície polida e a apresentação oficial confundiam muitas pessoas, levando-as a pensar que eram da Polícia. Em situações como estas, Jack não explicava a diferença. O dístico nunca deixa de causar uma reacção.

—Preciso de falar com o doutor—disse Jack, metendo o dístico no bolso. — Quanto mais depressa melhor.

Quando a recepcionista recuperou a voz, perguntou o nome de Jack. Ele deu-o, sem mencionar o título de doutor, para não ilustrar a natureza do seu trabalho.

A recepcionista imediatamente puxou a cadeira para trás e desapareceu nas profundezas do consultório.

Os olhos de Jack vaguearam pela sala. Era relativamente grande e estava sumptuosamente decorada. Era uma aberração comparada com o consultório simples que Jack tivera, quando era médico oftalmologista. Isso fora antes da reciclagem exigida pela invasão do serviço público. Para Jack, parecia ter sido numa outra vida, e em muitos aspectos era.

Havia cinco pessoas bem vestidas na sala de espera. Todas olhavam para Jack clandestinamente, fingindo que estavam a ler revistas. Ao voltarem as páginas ruidosamente, Jack pressentia uma aura de irritação, como se elas soubessem que ele iria perturbar a agenda e relegá-los para uma espera ainda mais longa. Jack tinha esperanças de que nenhum deles fosse uma das figuras nobres do mundo do crime, que pudesse considerar tal inconveniente uma razão para vingança.

A recepcionista reapareceu, e com uma subserviência embaraçosa, conduziu Jack ao estúdio privado do doutor. Uma vez lá dentro, ela fechou a porta.

O Dr. Levitz não estava na sala. Jack sentou-se numa das cadeiras em frente à secretária e examinou o ambiente em seu redor. Havia os usais diplomas emoldurados, fotografias de família e até mesmo as pilhas de jornais médicos por ler. Tudo era familiar a Jack, e ele encolheu os ombros. Visto da perspectiva actual, perguntava-se como tolerara tanto tempo um ambiente confinado, semelhante a este.

O Dr. Daniel Levitz surgiu por uma segunda porta. Vestia um casaco branco completo, com a algibeira cheia de abaixa-linguas e um sortido de canetas. Dependurado no pescoço tinha um estetoscópio. Comparado com o arcaboiço musculoso de Jack, de um metro e oitenta e largos ombros, o Dr. Levitz era relativamente baixo e de uma aparência quase débil.

Jack notou imediatamente os tiques nervosos do homem, que consistiam em contorções e acenos de cabeça. O Dr. Levitz não deu indicação de estar consciente destes movimentos. Deu um aperto de mão muito tenso a Jack e, em seguida, retirou-se para trás da vastidão da sua secretária.

— Estou muito ocupado — disse o Dr. Levitz. — Mas, é claro, tenho sempre tempo para a Polícia.

— Eu não sou polícia — disse Jack. — Eu sou o Dr. Stapleton, do Instituto de Medicina Legal de Nova Iorque.

O Dr. Levitz fez um súbita contracção muscular e o seu bigode também. Pareceu engolir em seco.

— Ah! — comentou ele.

— Quero falar muito brevemente consigo por causa de um dos seus pacientes — disse Jack.

— As condições dos meus pacientes são confidenciais — disse o Dr. Levitz, como se fosse rotina.

— Evidentemente — disse Jack. Ele sorriu. — Isso, é claro, até que eles morram e passem a ser um caso dos médicos de Medicina Legal. Sabe, eu quero informações sobre o Sr. Cario Franconi.

Jack observava enquanto o Dr. Levitz fazia uma série de movimentos, o que fez Jack pensar que era bom que ele não se tivesse dedicado à cirurgia.

—Continuo a respeitar a confidencialidade dos meus clientes— disse ele.

— Compreendo a sua posição sob o ponto de vista ético — disse Jack.—Mas devo lembrar-lhe que nós, médicos de Medicina Legal no Estado de Nova Iorque, temos o poder de dar uma notificação para testemunhar em tais circunstâncias. Por isso, por que é que não temos uma simples conversa? Quem sabe, talvez possamos clarificar as coisas.

— Que quer saber? — perguntou o Dr. Levitz.

—Através da leitura do extenso historial clínico do Sr. Franconi, fiquei a saber que ele teve vários problemas com o fígado, levando mesmo a que o fígado deixasse de funcionar — disse Jack.

O Dr. Levitz anuiu com a cabeça, o que fez que o seu ombro esquerdo se sacudisse por várias vezes. Jack aguardou que estes movimentos involuntários serenassem.

— Para ir directo ao assunto — disse Jack —, a grande questão é se o Sr. Franconi fez ou não um transplante de fígado?

Inicialmente, Levitz não falou. Apenas se contorceu. Jack estava decidido a dar-lhe tempo.

— Eu não sei nada acerca de transplantes de fígado — disse, finalmente, o Dr. Levitz.

— Quando é que o viu pela última vez? — perguntou Jack.

O Dr. Levitz pegou no telefone e pediu a uma das suas assistentes para lhe trazer a ficha clínica do Sr. Cario Franconi.

— Só um momento, por favor — disse o Dr. Levitz.

— Num dos internamentos hospitalares do Sr. Franconi, há cerca de três anos, o doutor, especificamente, escreveu que em sua opinião seria necessário um transplante de fígado. Lembra-se de ter escrito isso?

— Não especificamente — disse o Dr. Levitz. — Mas estou consciente de uma condição de deterioração, assim como do facto de que o Sr. Franconi não conseguiu abster-se de beber.

— Mas nunca mais voltou a mencionar o transplante — disse Jack. — Achei isso estranho, quando era fácil ver a gradual e implacável deterioração nos testes feitos ao fígado durante os dois anos seguintes.

— O médico só pode influenciar o comportamento dos seus pacientes até certo ponto — disse o Dr. Levitz.

A porta abriu-se e a atenciosa recepcionista trouxe o grosso relatório. Sem proferir palavra, colocou-o na secretária do Dr. Levitz e retirou-se.

O Dr. Levitz levantou-o e, depois de um olhar breve, disse que vira Cario Franconi pela última vez havia um mês.

— Por que é que o viu?

— Uma infecção nas vias respiratórias superiores — disse o Dr. Levitz. — Receitei antibióticos. Aparentemente, resultaram.

— Examinou-o?

— Evidentemente! — disse o Dr. Levitz com indignação. — - Eu examino sempre os meus doentes.

— Ele tinha feito um transplante de fígado?

— Bem, não fiz um exame físico completo — explicou o Dr . Levitz — Examinei-o de acordo com a queixa e com os sintomas — Nem sequer examinou o fígado, conhecendo tão bem o seu historial? — perguntou Jack.

— Se o fiz, não tomei nota — disse o Dr. Levitz.

— Fez-lhe algum exame de sangue que reflectisse o funcionamento do fígado? — perguntou Jack.

— Apenas bilirrubina — disse o Dr. Levitz.

— Porquê apenas bilirrubina?

— Ele tinha tido hepatite no passado — disse o Dr. Levitz. — Parecia estar melhor, mas eu queria comprovar.

— Qual foi o resultado? — perguntou Jack.

— Estava dentro dos limites normais — disse o Dr. Levitz.

— Por isso, com excepção da infecção nas vias respiratórias, ele estava a passar muito bem — disse Jack.

— Sim, suponho que se poderia dizer que sim — disse o Dr. Levitz.

— Quase como um milagre — disse Jack. — Particularmente, atendendo ao que o doutor já disse, que ele não estava disposto a dispensar a bebida alcoólica.

— Talvez ele, finalmente, tivesse parado — disse o Dr. Levitz.

— Apesar de tudo, as pessoas mudam.

— Importava-se de me deixar ler o relatório? — disse Jack.

— Importava-me, sim — disse o Dr. Levitz. — Já revelei a minha posição ética quanto à confidencialidade. Se quiser estes relatórios, terá que trazer uma ordem judicial. Peço desculpa, não pretendo obstruir o seu trabalho.

— Está tudo bem — disse Jack, agradavelmente. Levantou-se.

— Comunicarei ao Ministério Público o seu ponto de vista. Entretanto, obrigado pelo tempo dispensado e, se não se importar, provavelmente, entrarei de novo em contacto consigo num futuro próximo. Há qualquer coisa estranha com este caso, e eu tenciono ir até ao fundo.

Jack sorriu para si próprio enquanto tirava os cadeados da bicicleta. Era óbvio que o Dr. Levitz sabia muito mais do que aquilo que disse. Até que ponto, Jack não sabia, mas certamente que aumentava a intriga. Jack tinha a intuição de que este era não só o caso mais interessante que ele jamais tivera como médico legista como o mais interessante que ele possivelmente jamais teria.

De volta à morgue, estacionou a bicicleta no lugar usual, subiu ao seu gabinete para pendurar o casaco, e subiu directamente ao laboratório do ADN. Mas Ted ainda não estava pronto.

— Preciso de mais umas duas horas — disse Ted. — Depois contacto-te! Não precisas de subir.

Desapontado mas não derrotado, Jack desceu ao andar da histologia para verificar o progresso das secções microscópicas fixas do, agora denominado, caso Franconi.

—Meu Deus!—queixou-se Maureen.—Que esperas... milagres? Estou a passar os teus slides à frente de todos, mas tens sorte se conseguires recebê-los ainda hoje.

Ainda numa tentativa de m anter o ânimo em cima e a curiosidade em baixo, Jack desceu de elevador até o segundo piso e procurou John DeVries no laboratório.

— As análises para verificar a ciclosporina A e FK506 não são fáceis — disse John, com rispidez. — Além disso, já estamos emperrados. Não podes esperar serviço instantâneo com o orçamento que me dão para eu trabalhar.

— Okay! — disse Jack, prazenteiramente, enquanto saía do laboratório. Sabia que John era um indivíduo irascível, e, se provocado, podia ser passivamente agressivo. Se isso acontecesse, poderiam passar algumas semanas até que ele obtivesse os resultados do teste.

Descendo ainda um outro andar, Jack foi até ao gabinete de Bart Arnold e implorou para que ele lhe desse qualquer coisa, visto que encontrara todas as outras portas fechadas.

— Fiz imensas chamadas — disse Bart. — Mas sabes o que se passa com o E-mail. Agora, raramente se consegue apanhar alguém por telefone. Por isso, fiz imensas chamadas para lá, à espera de respostas para cá.

—Jesus!—queixou-se Jack.—Sinto-me como uma adolescente com o vestido pronto, à espera que a convidem para o baile.

—Lamento—disse Bart.—Se te serve de consolo, já obtivemos a amostra do sangue da mãe do Franconi e já está lá em cima, no laboratório do ADN.

— Perguntaram à mãe se o filho tinha feito um transplante de fígado?

— Absolutamente — disse Bart. — A Sr.” Franconi afirmou à investigadora que não sabia nada sobre transplantes. Mas admitiu que o filho andara muito mais saudável ultimamente.

—Ao que é que ela atribuiu essa melhoria súbita?—perguntou Jack.

— Diz ela que ele foi a umas termas algures e que veio de lá outro homem novo.

— Ela por acaso mencionou onde? — interrogou Jack.

— Não sabia — disse Bart. — Pelo menos, foi o que ela disse à investigadora E a investigadora confirmou que ela parecia estar a ser sincera.

Jack acenou com a cabeça enquanto se erguia.

— É natural — disse ele. — Obter uma pista bona fide da mãe teria sido demasiado fácil.

—Vou mantendo-te ao corrente, conforme me forem respondendo às chamadas — disse Bart.

— Obrigado — disse Jack.

Sentindo-se frustrado, Jack atravessou as comunicações e foi até à sala do ID. Pensou que um café poderia animá-lo. Ficou surpreendido por encontrar o tenente-detective Lou Soldano a servir-se de café.

— Ah! — exclamou Lou. — Apanhado com a mão na botija! Jack olhou para o detective dos Homicídios. Parecia muito

melhor do que nos últimos dias. Não só o botão do colarinho da camisa estava abotoado como a gravata estava posta no seu lugar. Além disso, tinha a barba feita e o cabelo penteado.

— Hoje, quase pareces humano! — disse Jack.

— Sinto-me humano — disse Lou. — Tive a minha primeira noite de sono decente, depois de muitos dias. Onde está Laurie?

— No fosso, presumo — disse Jack.

— Tenho de dar-lhe uma palmadinha nas costas novamente, por ela ter feito aquela associação com o nosso flutuador após ter visto o vídeo — disse Lou. — Todos nós, no Comando-Geral, pensamos que isto nos pode levar a grandes progressos. Já temos boas pistas dos nossos informadores, porque isto tem gerado muita conversa na rua, sobretudo em Queens.

— Laurie e eu ficámos surpreendidos por vermos o assunto nos jornais esta manhã—comentou Jack. — Foi muito mais rápido do que esperávamos. Fazes ideia de quem partiu?

— De mim — disse Lou, inocentemente. — Mas tive o cuidado de não dar pormenores, além do facto de o corpo ter sido identificado. Porquê, há algum problema?

— Foi só o Bingham que foi moderamente aos arames — disse Jack. — E eu fui arrastado como réu.

—Caramba, peço desculpa!—disse Lou.—Não me passou pela cabeça que pudesse causar problemas aqui. Suponho que eu é que devia ter sido chamado à atenção. Bem, fico em dívida para contigo

—Esquece—disse Jack. — Já está sanado.—Serviu-se de café, deitou açúcar e um pingo de leite.

— Pelo menos, teve o efeito desejado na rua — disse Lou. — E já ficámos a saber dados importantes. As pessoas que o mataram não são de certeza as que raptaram o corpo daqui e o maltrataram.

— Não me surpreende nada — disse Jack.

— Não? — interrogou Lou. — Pensei que isso fosse a ideia generalizada por aqui. Pelo menos, foi o que Laurie disse.

— Ela agora pensa que as pessoas que levaram o corpo daqui levaram-no porque não queriam que ninguém soubesse que ele tinha feito o transplante de fígado — disse Jack. — Eu continuo a acreditar que foi feito para esconder a identidade do indivíduo.

— Realmente — disse Lou, pensativo, sorvendo o café. — Isso não faz sentido. Estamos quase certos de que o corpo foi tirado por ordem da família Lúcia, os concorrentes directos dos Vaccaros, que segundo nos consta mataram Franconi.

— Valha-me Deus! — exclamou Jack. — Tens a certeza disso?

— Relativamente — disse Lou. — O informador que o divulgou é, em geral, de confiança. É claro, não temos nomes. Essa é a parte frustrante.

— Só a ideia de que o crime organizado está envolvido é horripilante — disse Jack. — Isso significa que os Lúcia estão de qualquer modo implicados nos transplantes de órgãos. Se isso não te tirar o sono, nada te vai tirar.

—Acalme-se!—gritava Raymond ao telefone. No momento em que estava pronto para sair do apartamento, o telefone tocou. Quando soube que era o Dr. Levitz em linha, aceitou a chamada.

—Não me diga para me acalmar!—gritava Daniel, por sua vez. —Viu os jornais. Eles têm o corpo de Franconi! E um médico legista, de nome Dr. Jack Stapleton, esteve aqui no meu gabinete a perguntar pela ficha clínica dele.

— Não a deu, pois não? — perguntou Raymond.

— Claro que não! — disse Daniel, rispidamente. — Mas ele lembrou-me com condescendência que poderia solicitá-la através de uma ordem jurídica. Estou a dizer-lhe, este tipo foi muito directo e muito agressivo, e prometeu chegar ao fundo da questão. Ele suspeita que Franconi fez um transplante. Perguntou-mo directamente.

— Os seus relatórios mencionam qualquer coisa sobre o transplante ou sobre o programa? — perguntou Raymond.

— Não, eu segui o seu conselho à letra — disse Daniel. — Mas se alguém verificar os meus relatórios, vai achar muito estranho. Afinal, eu tinha estado a atestar a deterioração do estado de Franconi durante anos. Depois, de repente, os exames ao funcionamento do fígado tornaram-se normais, sem qualquer explicação... nada! Nem mesmo um comentário. Estou a dizer-lhe que vai haver perguntas, e eu não sei se aguentarei. Estou bastante preocupado. Estou arrependido de me ter metido nisto tudo.

— Não percamos a cabeça — disse Raymond, com uma calma que ele próprio não sentia. — Não há maneira de Stapleton chegar ao fundo do caso. A nossa preocupação acerca de uma autópsia era puramente hipotética e baseada numa infinitesimalmente pequena hipótese de alguém com o IQ de Einstein poder descobrir a origem do transplante. Isso não vai acontecer. Mas agradeço que me tenha chamado acerca da visita do Dr. Stapleton. Aliás, eu vou a caminho de fazer uma visita a Vinnie Dominick. Com todo o seu expediente, estou certo de que ele será capaz de tratar do assunto. Ao fim e ao cabo, em grande parte, ele é o responsável pela situação actual.

Assim que teve oportunidade, Raymond desligou o telefone. Ao apaziguar o Dr. Levitz não estava a fazer nada pela sua própria ansiedade. Após ter instruído Darlene sobre o que dizer, na improvável eventualidade de Taylor Cabot telefonar, saiu do apartamento. Apanhando um táxi na esquina da Madison e Sixty-fourth, deu instruções ao condutor de como ir até Corona Avenue, em Elmhurst.

A cena no Restaurante Neopolitan repetiu-se como no dia anterior, adiccionando o cheiro de mais umas centenas de cigarros. Vinnie Dominick estava sentado no mesmo recanto e os seus capangas estavam sentados nos mesmos bancos. O gordo homem barbudo estava novamente ocupado a lavar os copos.

Raymond não perdeu tempo. Passando pela pesada cortina de veludo vermelho foi directamente até Vinnie e deixou-se escorregar no assento sem aguardar convite. Colocou o jornal amachucado, que ele tinha meticulosamente alisado, sobre a mesa.

Vinnie olhou para o jornal com um ar de indiferença.

— Como vê, há um problema — disse Raymond. — Você prometeu-me que o corpo ia desaparecer. É óbvio, que arruinou tudo.

Vinnie pegou no seu cigarro, deu uma longa fumaça e depois soprou o fumo para o tecto.

— Doutor — disse Vinnie —, você nunca deixa de me espantar. Ou tem muita coragem ou, então, é doido. Não tolero este género de desrespeito nem dos meus leais tenentes. Ou você retira tudo o que disse, ou você levanta-se e desaparece antes que eu me chateie a valer.

Raymond engoliu em seco enquanto metia o dedo entre o colarinho e o pescoço. Lembrando-se com quem estava a falar, deu-lhe um arrepio. Um simples gesto de cabeça de Vinnie Dominick e ele ficaria a boiar no East River.

— Peço desculpa — disse Raymond, submissamente. — Estou fora de mim, estou muito preocupado. Depois de ter lido os títulos, recebi uma chamada do grande chefe da Gensys, ameaçando todo o programa. Depois tive um telefonema do médico de Franconi, que me informou que tinha tido a visita de um médico do Instituto de Medicina Legal. Um ML, chamado Jack Stapleton, foi até ao consultório dele e queria ver o historial clínico de Franconi.

— Angelo! — chamou Vinnie. — Vem cá!

Angelo caminhou sem pressas até ao recanto onde Vinnie se encontrava. Vinnie perguntou-lhe se ele conhecia o Dr. Jack Stapleton, da morgue. Angelo abanou a cabeça.

— Nunca o vi — disse Angelo. — Mas Vinnie Amendola mencionou o nome dele quando me telefonou esta manhã. Ele disse que Stapleton estava todo excitado por causa de Franconi... era um caso dele.

— Como vê, eu também recebo alguns telefonemas — disse Vinnie. — Não só recebi uma chamada de Vinnie Amendola, que ainda está a transpirar por nos termos dependurado nele para nos ajudar a pôr o Franconi fora da morgue, mas também recebi uma chamada do irmão da minha mulher, o que dirige a agência funerária e roubou o corpo. Parece que a Dr.a Laurie Montgomery fez-lhes uma visita e perguntou por um corpo que não existia.

— Lamento que tudo tenha corrido tão mal — disse Raymond. —Você e eu... ambos—disse Vinnie.—Para lhe dizer a verdade,

não compreendo como é que conseguiram recuperar o corpo. Nós fizemos um grande esforço, sabendo que o terreno era demasiado óbvio para o enterrarmos em Westchester. Por isso, levámos o diabo para os lados de Coney Island e deitámo-lo no oceano.

— Qualquer coisa correu mal! — disse Raymond. — Com o devido respeito, que se pode fazer neste ponto?

— No que diz respeito ao corpo, não se pode fazer coisa alguma. Vinnie Amendola disse a Angelo que a autópsia já foi feita. Por isso, nada há a fazer.

Raymond lamentou-se e pôs a cabeça entre as mãos. A dor de cabeça era agora mais intensa.

— Só um segundo, doutor — disse Vinnie. — Quero assegurar-lhe uma coisa. Visto que eu sabia a razão por que a autópsia poderia trazer problemas ao vosso programa, mandei Angelo e Franco destruírem o fígado de Franconi.

Raymond levantou a cabeça. Um raio de esperança aparecia no horizonte.

— Como é que fizeram isso? — perguntou ele.

— Com uma pistola—disse Vinnie.—Eles estoiraram-lhe com o fígado. Destruíram-lhe por completo todo o abdómen. — Vinnie fez um círculo com a mão sobre o seu quadrante superior direito. — Não foi, Angelo?

Angelo anuiu com a cabeça.

— Foi um tambor inteiro de uma Remington. As tripas do tipo pareciam um hambúrguer.

— Por isso, acho que você não tem tanto com que se preocupar como pensa — disse Vinnie a Raymond.

— Se o fígado de Franconi foi todo destruído, por que é que Jack Stapleton anda a perguntar se ele fez um transplante? — disse Raymond, Vinnie encolheu os ombros.

— Ele deve ter tido outra pista qualquer. De qualquer modo, o problema agora parece estar centrado nestas duas personagens: Dr. Jack Stapleton e Dr.a Laurie Montgomery.

Raymond ergueu as sobrancelhas em expectativa.

— Conforme eu já lhe disse, doutor — continuou Vinnie. — Se não fosse pelo Vinnie Júnior e os seus malditos rins, eu não me teria envolvido nisto tudo. O facto de ter envolvido o irmão da minha mulher nesta situação agrava o meu problema. Não posso deixá-lo pendurado, compreende o que quero dizer? Por isso, vou dizer-lhe o que estou a pensar fazer. Vou mandar Angelo e Franco fazerem uma visita a estes dois doutores e tratarem do assunto. Importas-te, Angelo?

Raymond olhou para Angelo esperançado, e, pela primeira vez desde que Raymond vira Angelo, Angelo sorria. Não era propriamente um sorriso, porque todo o tecido cicatrizado impedia quase totalmente o movimento facial, mas era um sorriso para todos os efeitos.

— Há cinco anos que ansiava por me encontrar com Laurie Montgomery — disse Angelo.

— Eu já calculava — disse Vinnie. — Será que consegues os endereços deles através de Vinnie Amendola?

— Tenho a certeza de que ele terá muito prazer em mos dar — disse Angelo. — Está ansioso por ver a sua situação resolvida tanto como toda a gente. Quanto a Laurie Montgomery, já sei o endereço. Vinnie apagou o cigarro e levantou as sobrancelhas.

— Então, doutor, que pensa da ideia de Angelo e Franco irem fazer uma visita a esses incómodos médicos legistas, a fim de convencê-los a verem as coisas à nossa maneira? Eles têm de ser convencidos de que estão a ser muito inconvenientes, penso que me entende. — Um sorriso retorcido apareceu no seu rosto e ele piscou o olho.

Raymond deixou sair uma pequena risada de alívio.

— Não consigo pensar numa solução melhor. Arrastou-se no assento de veludo e levantou-se.

— Obrigado, Sr. Dominick, estou muito grato, e peço desculpa novamente pela maneira impensada como eu reagi quando cá cheguei.

— Espere lá, doutor—disse Vinnie. — Ainda não discutimos a compensação.

— Pensei que isto ficasse coberto pela rubrica do acordo que fizemos anteriormente—disse Raymond, tentando dar um tom de negócio, sem ofender Vinnie. — Afinal, o corpo de Franconi não deveria ter aparecido.

—Eu não vejo as coisas assim—disse Vinnie.—Isto é um extra. Uma vez que já negociámos a minha propina, agora estamos a falar em recuperar parte da minha cota inicial. Que tal vinte mil? Parece-me um número razoável.

Raymond estava injuriado, mas conseguiu reprimir a resposta. Também se recordava do que acontecera da última vez em que tentou regatear com Vinnie Dominick: custou-lhe o dobro.

— Vai levar-me algum tempo a juntar esse dinheiro — disse Raymond.

— Não tem importância, doutor — disse Vinnie —, desde que haja acordo. Pelo meu lado, vou mandar Angelo e Franco de imediato.

— Formidável! — conseguiu dizer Raymond antes de sair.

— Está a falar a sério? — perguntou Angelo a Vinnie.

— Receio bem que sim — disse Vinnie. — Suponho que não foi muito boa ideia meter o meu cunhado neste sarilho, embora na altura não tivéssemos muita escolha. De um modo ou doutro, tenho de mandar limpar a porcaria, se não a minha mulher tira-me os tomates. A única coisa boa é que eu pus o doutor a pagar por aquilo que eu de qualquer modo teria de pagar.

— Quando é que quer que a gente tome conta desses dois? — [perguntou Angelo.

— Quanto mais cedo melhor — disse Vinnie. — De facto, era melhor fazermos isso ainda esta noite!

 

 

 

                                                                      CONTINUA

 

 

 

6 DE MARÇO, 1997 - 19:30 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

— A que horas espera os seus convidados? — perguntou Esmeralda a Kevin. A cabeça dela e o seu corpo estavam envolvidos num bonito tecido cor de laranja.

— Às sete horas — respondeu Kevin, feliz pela interrupção. Tinha estado sentado à secretária, tentando enganar-se a si próprio com a leitura de um jornal de biologia molecular. Na verdade, estava torturado por repetidamente tentar rever as atormentadoras cenas daquela tarde.

Ainda via os soldados com as boinas vermelhas e fardas camufladas, que pareciam surgir não se sabia de onde. Ainda ouvia o bater das botas na terra lamacenta e o tilintar do equipamento quando eles corriam. Pior ainda, ele sentia o mesmo terror nauseabundo que sentira quando deu meia volta tentando escapar, enquanto esperava, a qualquer momento, ouvir o ribombar das metralhadoras.

 

 

 

 

A correria através da clareira para chegar até à viatura e a selvática corrida de carro foram um anticlimax em relação ao susto inicial. As janelas a serem atingidas pelos tiros tiveram uma qualidade quase surrealista, que não se podia comparar com o que ele sentira quando entreviu aqueles soldados.

Mais uma vez, Melanie reagira ao acontecimento de um modo completamente diferente de Kevin. Kevin perguntava-se se o facto de ela ter crescido em Manhattan a teria, de certo modo, insensibilizado para tais circunstâncias. Em vez de expressar medo, Melanie estava mais furiosa do que receosa. Estava furiosa pela deliberada destruição feita pelos soldados daquilo que ela considerava propriedade sua, embora o carro tecnicamente pertencesse à Gensys.

— O jantar está preparado — disse Esmeralda. — Vou mantê-lo aquecido.

Kevin agradeceu à sua atenciosa governanta, e ela desapareceu para a cozinha. Pondo o jornal de lado, Kevin levantou-se da secretária e foi até à varanda. A noite tinha caído e ele começava a ficar preocupado com a demora de Melanie e Candace.

A casa de Kevin ficava em frente de um parque relvado iluminado por quatro lampiões antigos. Logo do outro lado do parque ficava a casa de Siegfried Spallek. Era semelhante à de Kevin, com uma arcada no primeiro piso, uma varanda em volta do segundo, e janelas de sótão no inclinado telhado. De momento, havia luzes apenas no lado da cozinha. Aparentemente, o gerente ainda não...

 

 

                                                                 

 

                                                   

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