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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEBAIXO DO CÉU / Pearl S. Buck
DEBAIXO DO CÉU / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DEBAIXO DO CÉU

Primeira Parte

 

POR uma manhã de Março do ano da Graça de 1950, o vento era tão forte que, no último andar de um arranha-céus da cidade de Nova York, William Lane sentia tremer-lhe o chão debaixo dos pés. Estava de pé, junto à imensa janela envidraçada que ficava por detrás da sua mesa de trabalho. A cidade estendia-se como um tapete em sua frente, e, além, no horizonte, via a trémula fulguração das colinas e do mar.

Religioso à sua maneira, começava os seus atarefados dias com aqueles poucos momentos de silencio atrás dos vidros da sua janela, com o Mundo do outro lado. Não tinha um desejo no coração nem pedia nada a Deus. A sua prece era uma afirmação de si mesmo e a sua crença consistia em ser um homem dotado de poder para o Bem, jamais igualado no seu próprio país. Nas ruas, em baixo, tão distantes que lhe pareciam carreiros de for­migas, havia a gente cujos pensamentos ele dirigia, cujos espíritos ele iluminava, cujas consciências ele guiava. que eles próprios não o soubessem, que sòmente uns poucos o soubessem, isso ainda mais aumentava o seu poder. Muitos anos antes, alimentara o sonho de ser um «leader» popular. Não tinha o dom de conquistar o amor do povo. Forçado, enfim, a reconhecer que a sua aparência, sombria e grave, inspirava mais medo que fé, havia-se emparedado naquele grande edifício. Dali, estendera sobre a nação a rede dos seus jornais. Para isso, comprava os serviços dos homens e os seus mais altos talentos. Não havia ninguém, pensava ele, embora sem cinismo, que não pudesse ser comprado. Ninguém o persuadiria, por outro lado, a comprar um talento que não desejasse ou que não pudesse amoldar à sua própria doutrina. Os maiores escritores não achavam espaço nas suas páginas se não pensavam como ele. Havia uns poucos, não mais de cinco ou seis, que não eram ten­tados por cinquenta mil dólares. Havia sòmente um que não fora tentado pelo dobro dessa quantia. Tinha a certeza de que nin­guém recusaria o que ele pudesse oferecer, se julgasse acertado fazê-lo. O que ele comprava não era apenas a onda fluída das palavras dos homens. Comprava também a qualidade dos seus espíritos. Um homem até então incorruptível era valioso quando cedia, embora apenas por algum tempo, pois ele também vendia a fé que lhe devotavam.

Naquela manhã de Março, enquanto comunicava consigo mesmo e com Deus, sentiu o tremor sob os seus pés. Sabia que uma construção rígida, incapaz de oscilar levemente aos ventos de uma tempestade, poderia vir abaixo. Cedendo um pouco que fosse, o edifício estava salvo. Contudo, não gostava do tremor. Lembrava­-lhe outras coisas que uma vez o tinham feito tremer.

Muitos anos antes, na China, quando menino, tinha visto uma agitação popular nas ruas de Pequim, uma furiosa agitação de gente que o odiava, não pelo que ele era, não por ter a pele branca e os olhos claros, mas pela sua condição. A sua insegurança, a insegurança da sua condição naquele dia, tinha-o arrastado a um pânico que, embora não mais o assaltasse, nunca pudera esquecer. Qualquer aglomeração de povo, qualquer massa de caras comuns acima de vestes humildes, lho fazia lembrar, embora nunca mais sentisse o medo, pois nada tinha a temer. Era mais rico do que quaisquer que conhecia e os seus amigos eram alguns dos homens mais ricos do mundo ocidental. Entre estes, ele era inatingível, um homem de rígida virtude, na sua vida pessoal. Que se tivesse divorciado da primeira esposa para casar com a segunda não podia ser considerado uma falta, uma vez que se tivesse visto Emory. Ela era uma criatura tão delicadamente pura como uma flor da neve; a sua beleza britânica, a sua graça mesclada de bondade tornavam-na irresistível. Comparada com Candace, sua primeira esposa, Emory era o Céu oposto à Terra.

Enquanto estava assim a pensar na mulher, a porta abriu-se atrás de si. Ninguém, excepto a sua secretária, ousava entrar sem ser chamado, e esperou até que a sua tímida voz se fez ouvir:

-Sinto interrompê-lo, Mr. Lane.

-Que há? -perguntou com a sua voz severa.

-Não teria vindo se não se tratasse do seu cunhado, Mr. Miller.

-Ele tem audiência marcada?

--Não, não tem, Mr. Lane, e fiz-lhe ver isso, mas ele disse que mesmo assim lhe desejava falar, pois tinha uma grande ideia.

Desejaria declarar peremptoriamente que não estava inte­ressado em nenhuma grande ideia que Clem Miller pudesse ter, mas não queria dar a Miss Smith ensejo para se divertir com aquilo entre os demais empregados. Chamá-lo-iam casmurro, como sabia que muitas vezes era chamado, simplesmente porque, por princípio, não confundia justiça com misericórdia. Em todo o caso, era ultrajante da parte de Clem entrar nos escritórios numa manhã de trabalho e esperar que desperdiçassem tempo com ele por causa de alguma ideia maluca. Não gostava de lembrar que o marido de Henrieta era, também, um homem de sucesso. Clem enriquecera por meio dos métodos mais absurdos, tão absurdos que acreditava no cunhado, ou quase acreditava, quando este dizia que nunca planeara tornar-se rico. Era duro de acreditar que Clem não ambicionasse ser rico, embora o modo como ele e Henrieta viviam fosse bastante estranho. A despeito da riqueza, moravam numa grande casa numa rua afastada de uma cidade de Ohio. O que Clem fazia com o seu dinheiro ninguém o sabia.

--Diga a meu cunhado que posso conceder-lhe exactamente quinze minutos. Se se demorar mais do que isso, faça-o sair.

-Sim, Mr. Lane-suspirou Miss Smith. O nome dela não era Smith, mas William Lane chamava Smith a todas as suas secretárias. As jovens ressentiam-se com isso, mas como eram muito bem pagas não se atreviam a dizê-lo.

Quando ouviu a porta abrir-se, William retirou-se da janela e sentou-se na grande poltrona atrás da mesa semicircular. Contra o vasto rectângulo de luz, a sua cabeça abobadada, o seu vulto elegante mas forte, de ombros quadrados, permaneciam tão sólida­mente assentes como se fossem talhados em pedra. Esperou, imóvel, olhando para a porta.

Então Clem, vindo daquela porta com o seu passo rápido e nervoso, defrontou o poderoso homem. Se sentia o mais leve terror diante dos olhos de William, cinzentos e verdes como líquenes, não o demonstrou. Era um homenzinho franzino, de cabelos cor de areia, e até a sua pele era de igual cor. Naquela geral insigni­ficância, estavam espetados os seus olhos, de um azul vivo.

-Olá, William - disse Clem jovialmente. -Os seus empre­gados são-lhe muito leais. Quase não consegui entrar.

-Se eu soubesse que você vinha... -começou William com dignidade.

-Eu próprio não sabia que vinha - disse Clem. Sentou-se, não na cadeira em frente de William, do outro lado da mesa, mas numa poltrona de couro perto da janela. -Linda vista tem você daqui... Sempre gosto de a apreciar. Como vai sua mulher?

-Emory vai muito bem.

-Henrieta também está de boa saúde -continuou Clem. -Vai visitar Candace hoje.

-Que veio fazer aqui? -perguntou William. Estava acos­tumado àquele marido da sua irmã, que saltava pela terra como um gafanhoto. Sòmente a frieza da sua voz poderia ter traído, e apenas para a própria Henrieta, o seu desprazer pela continuação da amizade da irmã com a sua antiga esposa.

-Tive uma ideia e corri até Washington - disse Clem. -­O Ministro da Alimentação em Nova Delhi escreveu-me que havia ali uma grande quantidade de trigo armazenado. Eu não tenho a certeza de se ele sabia do que estava a falar, sentado lá num escritório em Nova Delhi. Creio que sim, em todo caso. Há muito trigo guardado na índia, pelo que ouvi falar. Não creio que esteja nas mãos de negociantes. Foi oculto pelos próprios camponeses, da mesma forma que você ou eu poderíamos guardar dinheiro no banco para uma época difícil.

William não respondeu. Não podia imaginar-se a guardar dinheiro, nem podia imaginar uma época difícil. Mas Clem era incuràvelmente vulgar.

Clem coçou o pálido queixo e continuou: -Se eu pudesse persuadir esses nossos fiscais de géneros de Washington a afrouxar um pouco e mandar algum trigo para a índia, naturalmente isso faria aparecer no mercado o trigo de lá, e o preço baixaria de modo que o povo pudesse comprar. Não sei como possa fazer alguma coisa em Washington... Não compreendo os governos e muito menos o nosso.

-Creio que nesse ponto podemos concordar - disse William. -Acho que o que tínhamos na Casa Branca durante a guerra era bastante mau. O que temos agora é pior.

-Ah, sim? - disse Clem, ruminando. - Em todo o caso, não me importa: Não sou político. Quero apenas fazer aparecer o trigo.

-Que lhe disseram em Washington? -perguntou William.

-Oh! O mesmo de sempre... que seria interferir nos negó­cios internos da índia... isto é: que se o povo conseguir alimento, poderá apoiar o actual governo.

-Não gostam de Nehru? - perguntou William com algum interesse. Não soubera o que pensar daquele homem compósito, quando da sua única visita à América.

-Naturalmente gostam dele enquanto ele se sustentar - disse Clem. -Para alguns dos nossos republicanos ele não vai muito longe. Querem que jure eterna vingança aos russos e eterna leal­dade a nós. Nehru não quer jurar; nenhum homem sensato o faria. Mas que me interessa isso? O que me interessa é alimentar o povo, se não por outra razão, ao menos porque a fome é uma vergonha e uma desgraça para o Mundo e totalmente desneces­sária nos tempos modernos. Não acredito na utilização do ali­mento, saiba você, para manejar o povo. Demos de comer a todos e poderemos lutar em condições normais, é a minha opinião. Uma vez que todas as barrigas estejam cheias, o povo não terá de votar deste ou daquele modo para conseguir comida. Isto é democracia. Nós não estamos a praticá-la.

Alimento e democracia eram os temas de Clem, e desde muito William sentia-se enfastiado dele. Via o sonho crepitar nos brilhantes olhos azuis de Clem, a tensão tonalizava a sua voz quase infantil, e reconhecia essas duas coisas como sinais do que denominava o fanatismo de Clem.

-Não desejo apressar-te - disse ele com a sua voz cuida­dosamente controlada-, mas tenho uma entrevista de negócios da máxima importância dentro dos próximos quinze minutos.

Clem desviou os olhos do mundo além da vidraça. O sonho desvaneceu-se. Ergueu-se, dirigiu-se para a cadeira defronte de William, sentou-se e apoiou os cotovelos na mesa. A sua face quadrada pareceu subitamente longa e até mesmo aguda.

-William, recebi cartas da China.

-Como assim? -indagou William, impressionado. - Um conhecido meu de Pequim.

-Você vai meter-se em apuros, lidando assim com os comu­nistas.

-Creio que não - disse Clem. - O Velhote sabe. -O Velhote,

na linguagem de Clem, era sempre o Presidente dos Estados Unidos. -E que disse ele? -perguntou William.

- disse justamente que não aprovava. - Clem soltou um cacarejo agudo.

William não replicou e, como previa, Clem continuou a falar.

-William, há uma terrível fome lá na China. Não te lem­bras? Enchentes... os diques desmoronando-se...

-Até é bom - disse William. - Isso ensinará aos chineses que os comunistas não os podem salvar.

-Isso não basta, William - replicou Clem com insistente gravidade. -É sòmente metade da coisa. Nós temos de contribuir com a outra metade. Devemos mandar-lhes alimentos. O que os vermelhos não podem fazer, nós o faremos, senão o povo pensará que nós também nada podemos fazer, e então de que lhes serviria dar-nos uma boa oportunidade?

-O povo deve ser castigado por ter escolhido mal - disse William implacàvelmente.

Clem ouviu-o com piedade. - Você não deve sentir prazer em castigar, William. Isso é indigno do grande homem que você é agora. É um modo de pensar próprio do Velho Testamento, e foi abolido quando o Novo Testamento apareceu.

-Eu não discuto a minha religião com você - respondeu William com alguma violência.

-Eu também não discuto religião - disse Clem. - Até ser­-me-ia difícil dizer no que acredito, e se você quer ser católico, isso é lá consigo, foi o que eu disse a Henrieta. Não importa o que um homem seja, desde que seja bom homem, é o que eu sempre digo. Meu pai tinha fé, mas isso certamente não o salvou, e eu não a recomendaria. Não estou verdadeiramente interessado em religião. Só o que lhe digo é que, se um homem não tem a barriga cheia...

-Já sei o que vai dizer - murmurou William, cansado. - ­Vamos aos factos.

Clem entrou imediatamente no assunto. - William, ,posso conseguir alimentos para enviar para a China, e para a India, também. Estamos tão abarrotados de géneros aqui que os meus agentes podem comprar centenas e centenas de toneladas sem absolutamente incomodar Washington. Também posso dispor de navios. Nem mesmo o Velhote terá de fazer coisa alguma..— é só ficar sentado onde está e olhar para o outro lado. Mas eu preciso de si, William.

--Para quê? - perguntou William cautelosamente.

A chama evangélica reacendeu-se nos olhos azuis de Clem. Ele ergueu a mão direita num gesto inconsciente.

---William, quero que você estampe a ideia nos jornais, de modo que eu não seja impedido por nenhum senador ou coisa que o valha! Todos lêem os seus jornais, todos, neste vasto país. Há milhões de pessoas que lêem os seus jornais e não lêem mais coisa alguma. Até mesmo os senadores ainda têm medo de milhões de pessoas. Quero que você diga na sua Imprensa que, se man­darmos o nosso excedente de alimentos para a Ásia, será melhor do que qualquer número de bombas, de bombas atómicas, de hidrogénio até...

-Impossível! --A voz de William ergueu-se, colérica. - Se é essa a sua maravilhosa ideia...

-A minha ideia é alimentar os famintos, William! Não lhe peço que você mesmo o faça. Sei como fazê-lo. Tenho os meus amigos. Sòmente lhe peço que explique ao nosso povo...

-Os seus amigos devem ser comunistas!

-Não me importa o que eles sejam, como não me importa o que seja você, contanto que consigam os nossos mantimentos para os famintos. De onde veio o alimento? --indagarão os esfai­mados. Da América! Não compreende? A América nem sequer indaga se eles são comunistas. A boa velha América apenas dá de comer aos famintos. É essa a melhor propaganda para a nossa democracia.

-Impossível! -- disse William azedamente. - Sentimental, absurdo! Clem, aquela gente não perguntará coisa alguma. Limi­tar-se-á a comer. A maioria deles pensará que são os comunistas que lhes dão alimento. Você é demasiado ingénuo.

Clem recusava-se a ceder. - Mesmo que assine pensem, fica­rão mais fortes para ver a tirania afinal, não é? Um homem faminto não pensa certo nem errado. Só pensa em comida. Não temos opinião quando estamos com fome. Nem sequer podemos revoltar-nos.

Clem fitou por um segundo a face de William. Não tinha mudado. - Você nunca passou fome, William? Pois eu já passei.

William não precisava de responder.

Miss Smith abriu a porta de mansinho. - Sinto interrompê-lo, Mr. Lane, mas aqueles senhores estão à sua espera na sala das reuniões.

Clem ergueu-se. -Não precisa de usar esses métodos comigo, menina. Basta dizer-me que está na hora de me retirar. Bem, William...

-Não pretendo aceitar a sua sugestão - disse William. -Não concordo com você em nenhum ponto.

Clem ficou de pé, olhando do alto para o outro. -Deixá-los arrebentar, não é assim, William? - disse ele após uma pausa infinitesimal.

-Que arrebentem até se penitenciarem da sua loucura - ­retorquiu William com firmeza, e ergueu-se. - Até à vista, Clem. Lembranças a Henrieta.

-Até à vista - disse Clem e, dando meia volta, deixou a sala.

Nenhum deles estendeu a mão ao outro, mas William não o notou. Raras vezes apertava a mão a alguém. Não gostava do contacto, tanto mais que nos últimos anos tinha pontadas de neurite nas mãos, o que tornava penoso suportar o vigor dos dedos de Clem. Tirou o lenço, enxugou a testa e serviu-se de água gelada de uma garrafa térmica de prata que estava sobre a sua mesa. A mais estranha intervenção do destino em sua estranha vida era o facto de Clem Miller ser seu cunhado, Clem, que há meio século vira numa rua de Pequim pela primeira vez, sem pensar que algum dia o tornaria a ver... Clem, aquele pálido e faminto garoto, da família da _Missão de Fé, que morava numa viela barata, uma hutug no bairro mais pobre da cidade, Clein, por quem mesmo sentira desprezo. Como acontecera aquilo? Meio século antes...

 

O jovem William Lane, reclinado no jinriquixá particular de sua mãe, avistou a um quarto de milha à sua frente um ajunta­mento de povo. Isso numa rua de Pequim significava algum dis­túrbio. Possivelmente significava apenas diversão. O povo da cidade imperial, acostumado ao prazer, nunca estava demasiado ocupado para não se deter uma ou duas horas a olhar o que quer que passasse: desde o séquito de uma dama da Corte a caminho do Palácio de Verão às cabriolas de um urso amestrado ou às palhaçadas de um macaco. Como se estava agora na Primavera, devia tratar-se de um grupo de artistas de rua, recém-regressado da sua digressão de Inverno pelo Sul.

William curvou-se para a frente. - Lao Li, que é aquilo lá adiante? -perguntou ele ao condutor do jinriquixá.

O seu chinês era puro e quase académico, embora tivesse apenas dezassete anos. Na verdade, não se orgulhava muito do seu bom chinês. Isso revelava bastante claramente que ele era filho de um missionário. No internato inglês de Chefoo, onde passava a maior parte do ano, os aristocratas entre os rapazes eram filhos de diplomatas e homens de negócios e tinham o cui­dado de mostrar que não conheciam a língua dos nativos. Entre a população branca da China, os missionários eram decididamente da classe baixa. Na escola, William falava inglês pidgin com os criados e fingia não os compreender quando lhe respondiam em chinês. Agora, no entanto, estava a passar as férias da Páscoa em casa e, como nascera e crescera em Pequim, não adiantava dis­farçar.

-Algo de estranho, jovem senhor - replicou Lao Li. Enquanto corria, tirou a bata de algodão dos ombros e enxugou o suor da face. Os estrangeiros eram pesados... aquele jovem senhor, por exemplo,, embora ainda estivesse crescendo, era quase tão pesado como um homem. Lembrava-se de quando o puxava quando ele era uma criança. Os anos passavam. Ele não se atrevia a afrouxar o passo. Um condutor de jinriquixá não deve envelhecer. Não se pode perder um emprego fixo numa família branca, por mais pesadas que se tornem as crianças.

Veio uma esperança de descanso. - Não quer que eu pare para que o senhor veja melhor?

A altiva cabeça de William estava erguida. - Que tenho eu a ver com o que o povo da rua está a olhar?

-Estava apenas a perguntar - murmurou Lao Li.

Tentava apressar o passo à medida que se aproximava da multidão quando o grito de William o sobressaltou tanto que quase caiu entre os varais:

-Pára

William, sentado direito, podia enxergar por cima das cabe­ças. No centro da multidão, viu uma cena horrível. Um rapaz branco estava engalfinhado em luta com um rapaz chinês. Os espectadores não riam. Estavam tensamente silenciosos.

-Deixa-me descer - disse William imperiosamente.

Lao Li baixou os varais e William pulou sobre eles e encami nhou-se para a multidão.

-Deixem-me passar - disse com a mesma voz altiva. Os chineses apartaram-se em silencio até que ele alcançou o centro. Ali, em silêncio, lutavam os dois garotos, o da cara amarela e o da cara branca, ambos sombrios.

-Pare com isso, você aí- - gritou William em inglês.

O rapaz branco voltou-se. - Isso é da sua conta? -pergun­tou ele. Era pequeno e pálido, o corpo magro e a roupa de algodão, encolhida por muitas lavagens, aderia-lhe aos ossos. No entanto, havia certa firmeza na sua face quadrada e, sob os cabelos cor de areia, os olhos eram de um azul brilhante.

-Naturalmente que é da minha conta - replicou William. Ele sentiu o seu próprio contraste. O seu fato de tweed inglês fora feito por um excelente alfaiate chinês e os seus sapatos eram engraxados todas as noites pelo criado da casa-as suas botas, como aprendera a denominá-los na escola. Para seu horror, viu que o outro rapazinho calçava sapatos chineses de pano, rasgados na ponta.

-É degradante para um estrangeiro lutar com um chinês­disse ele severamente. -Isso faz com que olhem do alto para todos nós. Você não tem o direito de se comportar de modo a desacre­ditar-nos.

O rapaz pálido pestanejou ràpidamente e fechou os punhos. -Brigarei com quem bem quiser! -A sua voz era aguda e vibrante.

-Então comunicarei ao Cônsul - declarou William. E dignou-se passear lentamente os seus olhos um tanto frios pela figura franzina do outro. - Em todo o caso, como é o seu nome? Eu nunca o vi antes.

-Eu sou Clem Miller.

Aquele leve movimento dos lábios de William não era um sorriso. - Quer dizer a Missão de Fé Miller?

-Sim. - Os brilhantes olhos azuis desafiavam o desprezo de William.

-Nesse caso - William ergueu os seus largos ombros. Voltou-se como se tencionasse ir embora e depois parou. - Ainda assim, como americano, você devia pensar na honra da sua pátria.

-Meu pai diz que a nossa pátria é o Mundo.

Para William Lane, filho de um missionário episcopal, um aristocrata da igreja, nada podia ser mais mortificante do que essa observação. Encaminhou-se para o menino pálido. - Como se isso pudesse ser. Você é americano, não importa o que fizer, por pior que seja para nós! Porque brigava com esse chinesinho?

-Ele disse que meu pai era um mendigo.

-De certo modo, não deixa de o ser... - observou William.

-Não é, não! - retorquiu Clem. Fechou de novo os punhos e começou a brandi-los na direcção da face de William.

William deu um passo atrás. - Não seja parvo! Você sabe tão bem como eu que o seu pai não tem um conselho director de missões a apoiá-lo, nem salário, nem coisa nenhuma.

--Nós temos Deus - disse Clem, em voz alta e clara.

William sorriu com escárnio. - Isso é Deus, diz você? Minha mãe diz que é pura mendicidade. Diz que sempre que vocês não têm que comer, seu pai sai a contá-lo a todos nós. Diz a todos que vocês não têm nada para comer, mas que Deus providenciará. Mas quem é que providencia realmente? Bem, a minha mãe, por exemplo. Nós não podemos ver americanos a morrer de fome. Isso diminuir-nos-ia perante os chineses.

Ele sentiu um pequeno e forte pulso sob o seu queixo e, contra todo o seu senso do que era decente para um gentlenian, deu um pontapé com o pé direito. O seu sapato era de excelente couro, fino na ponta, e apanhou Clem debaixo do joelho de tal modo que a dor o fez cair no chão. William não parou para ver o que acontecia. Voltou-se e, atravessando de novo a multidão de es­pectadores, foi tomar assento no jinriquixá.

-Vamos - disse ele a Lao Li.

Nas suas costas, a multidão murmurava. Mãos estenderam-se para erguer o garoto que caíra, e o garoto chinês esqueceu a briga.

-Aquele grandalhão americano deve morrer - declarou ele. -Vocês são da mesma espécie de gente, do outro lado do mar.

Clem não replicou. Depois de alguns segundos de intensa dor, afastou-se manquejando.

-Os estrangeiros têm mau génio - murmurava a multidão. -São muito orgulhosos. Não viram como eles são, mesmo uns com os outros?

Alguns aconselhavam o menino chinês. - Você, filho de Han, seja mais cuidadoso da próxima vez. Naturalmente, ninguém gosta de ouvir dizer que o seu pai é um mendigo, mesmo que seja verdade.

-Nós estávamos a falar do deus estrangeiro - explicou o rapaz. -O pai dele pediu ao meu um dos nossos pães. Disse que não tinham pão e, como o meu pai é padeiro, o deus estrangeiro tinha-o mandado à nossa casa. Meu pai deu-lhe três pães e ele disse que o deus estrangeiro sempre providenciava. Mas eu disse: «Como é que ele não providencia entre vocês mesmos?» Aquele menino estrangeiro estava com o seu pai e ouviu-me dizer essas palavras, e disse-me que o acompanhasse e, quando ficámos sòzinhos, começou a atacar-me, como viram.

O povo ouvia com interesse e houve divisão de opiniões. Alguns pensavam que o garoto tinha falado muito bem e outros diziam que o silêncio era melhor do que quaisquer palavras quando se tratava de estrangeiros.

-Em todo o caso - disse um homem que, a julgar pela sua longa saia, era professor - não é estranho que a gente de Jesus seja toda rica, com excepção desta única família, que vive entre os nossos pobres?

-Quem pode compreender os estrangeiros? Há estrangeiros demais aqui - disse um açougueiro. Carregava jardas de entranhas de porco pendentes do braço nu; tinham começado a cheirar levemente ao Sol, lembrando-lhe que deveria seguir o seu caminho. Lentamente a multidão afastou-se e, em breve, havia, apenas, as marcas dos pés na areia para lembrar a luta.

 

William Lane parou na porta da frente da sua casa e ficou à espera. Experimentou a porta e viu que estava desaferrolhada, mas não quis entrar. Apesar das suas instruções, o criado não estava à sua espera no «hall» para lhe apanhar o chapéu e o sobretudo. Desejara ter trazido a sua bengala de rotim, como o fazia na escola, mas não se atrevera a tanto. A sua irmã Henrieta, dois anos mais nova do que ele, haveria de rir, e não havia coisa que temesse tanto como o ridículo. Apertou a campainha e esperou de novo. Quase instantâneamente a porta abriu-se e Wang, o criado, sorriu e acenou-lhe para entrar. - Hoje é dia de recepção de sua mãe, a t'ai-t'ai- - disse ele em chinês. -Vieram tantas senhoras que eu não tenho mãos a medir.

William não deu resposta. Havia muitos anos que Wang estava com a família, e William tinha um trabalhão em fazer-lhe compreender que os velhos tempos de camaradagem infantil tinham passado. Um jovem gentleman não tagarelava com os criados. - Onde está meu pai? - perguntou.

--O Mestre ainda não voltou da igreja grande - replicou Wang. Sorriu afectuosamente para o alto rapazote, de quem se lembrava como um bebé. «Senhorzinho», chamavam-no os criados. Agora era chamado «Senhorzinho Grande». Era pena que a família não tivesse mais filhos, sômente as duas jovens.

-Onde está a minha irmã mais nova? --perguntou William. Das duas irmãs ele preferia Ruth.

-Está com a sua mãe e também com a sua irmã mais velha -- - replicou Wang. - Perdoe-me, jovem senhor. Haveria de ficar espantado como essas senhoras estrangeiras comem e bebem.

Pendurou o chapéu de William num grande cabide de mogno, pôs o seu sobretudo no armário debaixo da escada e encaminhou-se apressada e silenciosamente para a sala de visitas.

William hesitava. A algazarra das vozes femininas, apenas abafada pela porta fechada do amplo vestíbulo em que se encon­trava, tentava-o e afastava-o ao mesmo tempo. A maioria das mulheres era de senhoras de meia-idade, amigas de sua mãe, que o tinham conhecido na infância. Quando muito, devia ali haver uma ou duas estranhas. Pequim estava, naquela época, cheia de esu•angcir s, turistas e visitantes, e seu pai era um dos mais liberais entre os missionários. A sua mãe, bem o sabia, frequente­mente declarava que ela própria não era missionária, mas apenas esposa de um missionário, e nisso não mentia. A sós, muitas vezes se queixara ao filho de que era uma tragédia que seu pai houvesse escolhido para ser missionário um lugar tão repulsivo como a China, tão distante de Nova York, onde vivia a família dela.

--Teu pai podia ter sido alguma coisa - dissera-lhe muitas vezes. --Em Harv ard era um rapaz belo e brilhante. Naturalmente todos pensavam que ele seria advogado, como o pai. Pertences a uma boa família, William, e espero que não te esqueças disso. Não desejaria que te desprestigiasses.

A sua mãe ministrava-lhe subtilmente uma boa porção de heresia, a que ele não replicava, mas que ia acumulando no coração. Naturalmente que não desejava ser missionário. Os cole­gas ingleses da escola já o tinham compreendido. Um magnate do comércio, talvez, ou um diplomata, ainda não sabia bem o quê. Embora sonhasse com a América, não se imaginava vivendo em outra parte a não ser na China. Era bom ali para um homem branco. Não gostava das histórias que ouvira acerca de missioná­rios em licença, que tinham de cozinhar e fazer a limpeza da casa. jamais havia entrado na cozinha ou nos quartos dos criados, pelo menos depois que havia crescido. Quando era pequeno, frequentemente sentia-se só e aborrecido, e como não lhe fosse permitido brincar com as crianças chinesas, tinha ido às vezes aos quartos dos criados em busca de companhia. Wang era então jovem e temia o cozinheiro e recebera jubilosamente a amizade de William. Algumas vezes, em segredo, Wang levara-o consigo para a rua, a fim de assistirem a um espectáculo de fantoches ou comprar alguns doces.

Isso, naturalmente, fora há muito tempo. Lembrando-se dos doces, William resolveu súbitamente entrar na sala de visitas. O cozinheiro fizera irresistíveis bolos para as recepções de sua mãe, dois dourados, com chocolate, e dois brancos de neve, com coco. Como fazia poucos dias que estava em casa, muitas das amigas de sua mãe não o viam desde vários meses, e ele poderia exibir o seu extraordinário crescimento. Tinha acrescentado algumas polegadas à sua altura desde as férias grandes do Natal, e estava bem a caminho, esperava ele, dos seis pés, que era a altura de seu pai. Vezes houvera em que receara não a poder atingir, pois tinha as mãos e os pés muito pequenos. Mas, agora, sentia-se animado a esse respeito.

Abriu a porta e entrou, de busto desempenado e cabeça erguida. Adoptou uma fisionomia de precoce gravidade. Por um momento ficou parado, esperando, de costas contra a porta.

A mãe olhou para ele. - Vem cá, William - disse ela, com a sua voz argentina. - Deixa a porta aberta; está fazendo um pouco de calor.

Os seus olhos cinzentos, um tanto juntos um do outro, sob escuras sobrancelhas muito carregadas, tomaram uma expressão de orgulho. Relanceou o olhar pela sala, onde as senhoras estavam sentadas a meia dúzia de mesinhas de chá. - William acaba de chegar da escola - anunciou ela. -Não acham que está enorme? É o seu último semestre.

Era um ambiente reconfortante para William. A grande sala estava quente e iluminada. Sobre o soalho encerado estendiam-se grandes tapetes de Pequim bordados a azul e ouro, e os móveis rebrilhavam como um negro mogno. Eram, contudo, mais preciosos do que mogno, de uma madeira negra, pesada como ferro, antiguidades chinesas, roubadas dos palácios e vendidas por uma ninharia aos revendedores por eunucos famintos. As casas dos americanos em Pequim estavam atulhadas dessas mesas, biombos e sofás. Entre eles havia confortáveis poltronas modernas com almofadas de cetim. Nesse dia, ramalhetes de flores de pessegueiro precoces e dois vasos de ameixeiras anãs floriam a sala. Entre esses agradáveis luxos, as senhoras tomavam chá e voltavam agora a face para ele. As vozes ergueram-se para saudá-lo.

- Mas William... como cresceste! Vem cá cumprimentar-me, rapagão.

Ele avançou gentilmente e apertou a mão de cada uma das dez senhoras, sem dar importância às suas duas irmãs. Ruth estava sentada num escabelo, junto às grades da lareira, enquanto Hen­rieta comia uma sanduíche, acomodada no assento da janela. Não olhou para ele, mas Ruth ficou a observá-lo com os seus risonhos e luminosos olhos azuis.

-Senta-te, William. Vem tomar chá - disse-lhe a mãe. Era uma mulher alta, de sólida ossatura, e o filho saíra à mãe, embora ela fosse quase feia. Mas o que constituía a falta de deli­cadeza na mulher fazia a força no homem.

Uma vez sentado numa cadeira junto dela, Wang trouxe-lhe sanduíches e bolo, e ele começou a comer silenciosamente e com bom apetite. As mulheres recomeçaram a conversa. Logo viu que elas se referiam à Missão Evangélica Familiar e diziam exacta­mente as coisas que ele pensava. Mrs. Tibbert, metodista, muito embora um pouco abaixo dos episcopais e presbiterianos, mas ainda assim acima dos baptistas, era redimida pelo facto de ser esposa de um bispo. Era uma mulher pequena e pálida, trazia um vestido copiado por um alfaiate chinês de um modelo Deli­neator, e faltava-lhe um dente da frente, o que a fazia ciciar quando falava.

-É realmente estúpido falar na fé em Deus a propósito de tudo e fazer colectas, realmente, entre todos nós. Naturalmente que não os podemos deixar morrer de fome... Quem sabe se uma petição ao cônsul...?

-O modo como eles vivem! - exclamou Mrs. Haley. Era uma adventista do sétimo dia, e ainda menos que uma baptista. Era impressionante para os chineses ouvirem dizer que o domingo era no sábado, embora a imersão, na qual os baptistas e adventistas insistiam, fosse considerada pelos presbiterianos e episcopais como a mais desconcertante de todas as práticas doutrinárias. Os chineses ignorantes deixavam-se impressionar pela quantidade de água, e a aspersão parecia avareza, especialmente em tempo de calor. Mrs. Henry Lodge, esposa do primeiro-ministro presbiteriano, era caritativa, como bem podia permitir-se, pois a sua casa era uma das mais belas de Pequim e seu marido o mais bem pago dos missionários, além de ser aparentado com os Lodges de Boston. -Fico tão triste por causa dos pequenos - disse ela gentilmente. De cabelos brancos, bonita, com um leve vestido cinzento de crepe da China enfeitado de cor-de-rosa, era como uma pintura que as outras damas, embora cristãs, se viam obrigadas a invejar. William olhava-a aprovativamente. Assim é que uma dama devia ser, e, para chamar a atenção dela para si mesmo, resolveu contar a sua aventura.

-Mrs. Lodge, talvez goste de saber. Quando eu vinha hoje para casa...

Contou bem a história e foi bastante sensato para se mostrar modesto e piedoso para com o garoto maltrapilho que ele havia repreendido publicamente. Quando terminou, foi felicitado.

-Estimo que você o tenha ajudado, William - disse Mrs. Lodge. - Foi uma atitude cristã da sua parte... e muito fraternal. «Ainda o último destes...», como disse Nosso Senhor...

-Obrigado, Mrs. Lodge - respondeu William.

 

Clem Miller afastou-se da multidão o mais depressa que pôde. Desejaria correr, mas os seus rotos sapatos de pano e o seu joelho magoado impediam-no de tal. O que ele lembrava de William Lane eram os seus sapatos, aqueles fortes e elegantes sapatos de couro castanho que protegiam as solas dos pés e a ponta dos dedos. Um bom pontapé com um sapato daqueles era para deixar marca.

-Quando é que poderei ter uns sapatos americanos? - ­resmungava ele.

Articulava os seus pensamentos sempre em chinês, não o fluido chinês de Pequim, mas o chinês das sarjetas, o gutural vernáculo «cooly» dos portos abertos onde viviam os barqueiros. O seu primeiro lar fora num barco, pois seu pai, ansioso por seguir as exactas pegadas de Jesus, tinha pregado das águas do sujo Whangpu em Xangai, para os que se ajuntavam na margem para o ouvir. Fora mais olhado que ouvido, e respeitáveis cristãos tinham ido à noite censurar seus pais por os terem envergonhado com aquele comportamento de mendigos.

Ainda viviam como mendigos. Clem, andando pela poeira de Pequim, não podia negar a acusação que William lhe fizera. Tinha espreitado mais de uma vez através das grades do compound em que residia William, e pelo estalão daqueles que moravam em grandes casas de tijolo cinzento, de telhas palacianas azuis e verdes, os quatro quartos em que morava com os pais e as irmãs eram mesmo de mendigos. Sua mãe, que nunca se queixava e tinha uma fé a toda a prova, recusara-se contudo a morar no barco depois que o pequeno Arthur caíra à água e morrera afogado.

Houve longas discussões a respeito disso entre os seus pais.

-Mary, até parece que já não acreditas em Deus, por causa dessa provação - dissera Paul Miller à sua soluçante esposa.

Ela tentara afogar os soluços, apertando contra a boca um lenço roto. --Creio, sim. Só o que acontece é que eu não posso olhar para a água, agora.

O corpo do pequeno Arthur não viera à tona. Haviam pesquisado as margens dia após dia, mas o rio tinha amarrado e arrebatado a criança com as suas irresistíveis correntes. De modo que, após algumas semanas, tinham abandonado a busca e vindo para o norte de Pequim. Paul Miller deixara a Deus o encargo de conseguir os dólares necessários para a passagem de terceira classe, e depois fora cumprimentar os outros missionários de Shangai, como irmãos em Cristo. Estes haviam respondido com espontânea generosidade, conseguindo uma bolsa para ele, e as esposas dos missionários tinham arranjado entre si uma caixa de roupas para Mrs. Miller e as crianças.

-Vejam como Deus nos provê quando acreditamos n'Ele!­Assim havia proclamado seu pai, com os seus doces olhos azuis humedecidos de lágrimas de gratidão.

-Clem, teu pai tem razão - dizia a mãe. -Sempre temos sido atendidos, embora às vezes Deus resolva experimentar a nossa fé.

Clem não respondera. Naquela época da sua vida, achava-se numa profunda confusão, que não se atrevia a encarar, nem mesmo quando sòzinho. O Mundo estava dividido entre ricos que tinham alimento e pobres que não o tinham, e embora muitas vezes lhe houvessem dito que era muito mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Céu, ainda assim Deus parecia-lhe indulgente com eles e muito descuidado com os pobres. Os pobres chineses, por exemplo, sempre a morrer de fome. Deus que via tudo, devia vê-los também, mas, se os via, mantinha-se em silêncio.

Pensando no silêncio de Deus, o próprio Clem foi crescendo em progressivo silêncio. Havia vezes em que desejava deixar a família, partir sozinho, alcançar a costa, achar um vapor, onde arranjaria serviço, indo assim, através do Pacífico, até à fabulosa terra onde seus pais tinham nascido. Uma vez lá, iria directamente a pé até à granja de seu avô, na Pensilvânia.

Mas não poderia deixar a sua lastimável família, embora já tivesse feito quinze anos, e preocupava-se muito com o seu futuro. Tais pensamentos, guardava-os para si mesmo, sabendo que, se os exteriorizasse, seus pais, incorrigíveis na sua fé, apenas lhe diriam que confiasse em Deus. Estava muito bem, mas quem lhe ensinaria latim e matemática e gramática inglesa? Comprara alguns velhos compêndios ingleses num alfarrabista chinês e pagara-os ensinando inglês ao filho de dez anos do livreiro. Aqueles livros, estudava-os sôzinho, mas bem sentia a necessidade de um professor. E não podia mendigar. Embora comesse o que os seus pais angariavam, não podia pedir aos prósperos missionários nada para si próprio. Hoje, ao voltar da loja de Mr. Fong, vira o pai com o padeiro e tivera aquela briga, depois de o pai se ter retirado.

Aliás o dia fora belo, embora o ar da tarde estivesse agora quebrado por um vento frio do Noroeste. Gostava da cidade àquela hora. A gente era bastante boa para ele, mesmo que tivesse brigado com um menino sem educação. Lamentava-o agora. Do ponto de vista do garoto, ele tivera razão. Os membros da família Miller, embora acreditassem em Deus, eram uns men­digos.

Entrou em casa com um ar tão amargurado que a mãe, que estava a pôr a mesa para o jantar, com tigelas e pauzinhos, parou para olhar para ele. Tigelas de barro e pauzinhos de bambu eram mais baratos do que pratos e facas e garfos.

-Que tens, meu filho? -A sua voz era infantilmente suave e a face ainda redonda e juvenil. Os cabelos, outrora do mais suave loiro, eram agora de um cinzento de areia. Apesar das suas restrições de adolescente a seu respeito, amava-a, tão terna era ela, tão bondosa com ele e com a família toda.

Naquele momento, no entanto, endureceu o coração e desa­bafou os seus pensamentos. - Mãe, seja como for, estou come­çando a compreender: nós somos mesmo uns mendigos.

Ela apoiou na mesa as mãos abertas. - Que dizes, Clem?!

Clem continuou, contrafeito, mas implacàvelmente. - Um chinesinho chamou-nos mendigos e eu briguei com ele. Não me olhes desse jeito, mãe. William Lane chegou naquele momento e... e ajudou-me a parar com a briga. Mas achava que o chinesinho tinha razão.

-Temo por ti, querido. Se perdermos a fé, não nos resta nada. -Eu quero mais fé, mãe. -O seu cérebro, honesto mas vivo, procurava finalmente uma prova.

-Não vejo como o pai poderia mostrar mais fé, Clem. Ele nunca vacilou, nem mesmo quando perdemos o nosso pequeno Arthur. Ele amparou-me.

A sua voz quebrou-se e os seus lábios carnudos tremeram. As lágrimas, sempre prontas como o seu sorriso, correram-lhe dos claros olhos castanhos.

-Ele poderia ter mais fé - disse Clem. -Mas como, querido?

-Se não fosse dizer aos outros que não há mais pão... se não fosse, afinal, contar essas coisas aos missionários.

Ergueu os olhos para os olhos dela e, para seu espanto, leu neles o terror. As suas faces redondas, sempre pálidas, tornaram-se esverdeadas. Ela nunca o enganava, e por isso o amor de Clem lhe ficava ligado para sempre. Ergueu as mãos num gesto de súplica, e, como Clem não se movesse, veio ajoelhar-se ao lado do banco de bambu onde ele estava sentado, com a face à altura da sua.

-Querido, tudo o que estás dizendo, eu já o disse muitas vezes, também, dentro do meu próprio coração.

-Então, porque não o diz ao pai? - perguntou Clem. Não podia compreender como, embora a amasse tanto, não desejava mais tocar-lhe ou ser tocado por ela. Temia uma carícia.

Ela não tentou nenhuma carícia. Ergueu-se e olhou para ele. -Pelo mesmo motivo que tu também não o fazes - disse ela.

-Só de pensar que nós duvidamos, isso lhe partiria o coração. -Mas não se trata de duvidar: apenas de pedir provas - insistiu o garoto.

-Mas pedir provas a Deus é duvidar, querido - disse ela ràpidamente. -O pai já nos explicou isso, não é verdade? Não te lembras, Clem?

Ele lembrava-se. Nas longas orações de família, pela manhã e à noite, dizia-lhes, na sua obstinada e cuidadosa maneira, insistindo em cada pormenor da misericórdia divina para com eles, que pedir a Deus que se provasse a Si próprio era cortejar a Satanás. A dúvida era a poeira que Satanás atirava aos olhos dos homens para os cegar.

-Além disso - dizia-lhe a mãe - estimo muito o teu pai para que possa feri-lo, e tu também deves estimá-lo, Clem. Não tem nin­guém no Mundo a não ser nós, e na verdade a não ser nós dois, pois as crianças são muito pequenas. Ele tem de acreditar na nossa fé, para se conservar forte. E o pai é tão bom, Clem... Ele é o melhor homem que já vi. Ele é como Jesus. Nunca pensa em si próprio. Só pensa nos outros.

Era verdade. Embora às vezes odiasse o desinteresse do pai, embora a humildade do pai o fizesse corar de vergonha, sabia que não eram mais que aspectos de uma bondade tão pura que não podia ser menosprezada. Cedeu ante essa verdade e suspirou. Depois ergueu-se do banco e olhou para a mesa.

-Papá está em casa?

-Não... ainda não. Foi pregar na praça do mercado.

 

Paul Miller deixara a praça do mercado aonde tinha ido pregar a Graça de Jesus, pois o povo estava muito atarefado e indiferente. A caminho de casa, encontrou-se com o Dr. Lane, que voltava da sua aula de catecismo das quartas-feiras na igreja. Ordinàriamente, o alto e bem-apessoado missionário passava pelo pequeno vulto que palmilhava a poeira sem mais que um amigável, embora um tanto embaraçado aceno de cabeça. Desta vez, porém, mandou parar o jinriquixá. - Miller, posso falar com o senhor?

-Pois não, Irmão Lane.

Henry Lane pestanejou ante esse título. Irmão era, por certo, espiritualmente, de toda a Humanidade, pois pensava ser um verdadeiro cristão. Mas ouvi-lo proclamar tão calorosamente em plena rua por um homem branco de roupa remendada não era nada agradável. Não apoiava a mulher ou o filho quando criti­cavam a Missão Evangélica da Família Miller. Na verdade, lem­brava-lhes que Cristo poderia ser pregado de muitas e diversas maneiras. Agora, contudo, tinha de ocultar sentimentos que era demasiado honesto para negar a si mesmo que não fossem muito semelhantes aos seus. Era humilhante para a comunidade estran­geira de Pequim ter os Millers ali. O pior de tudo era que eles fossem missionários também, que afinal de contas pregavam o mesmo Deus. A Missão Evangélica Miller provocara espanto e perguntas até mesmo na sua própria igreja.

Na rua, os chineses começavam a aglomerar-se em torno dos dois americanos, instantânea multidão que parecia brotar da própria poeira. Henry Lane tinha como facto assente que nenhum chinês falava inglês e não deu atenção à sua presença.

-Miller, julgo de meu dever avisá-lo que é muito provável que rebente agora aqui um movimento contra os estrangeiros. Não me agrada nada o que tenho ouvido.

Relanceou um olhar à multidão. No pálido e dourado lusco­-fusco as faces estavam imersas na sua tranquila curiosidade habitual.

-Que foi que ouviu, Irmão Lane? -indagou Paul Miller.

Descansou as mãos na guarda do jinriquixá e admirou, como já o fizera antes, a delicada espiritualidade das feições do outro. Não lhe ocorreu invejar o fino tecido preto das vestes do missio­nário, ou a brancura do seu colarinho engomado e o cetim da sua gravata. O Dr. Lane baixou a voz.

-Contou-me um dos meus conselheiros paroquiais, cujo irmão é ministro da Corte Imperial, que a Imperatriz Viúva está a favor dos Boxers. Ela assistiu hoje pessoalmente a uma dessas absurdas demonstrações de invulnerabilidade às balas e baionetas. É só o que ela teme -os nossos exércitos estrangeiros. Se se conven­cer de que esses patifes são imunes às nossas armas, pode realmente animá-los a escorraçar-nos daqui à força. Deve pensar na sua famí­lia, Miller.

--E os seus, Irmão Lane?

--Vou mandá-los para Xangai. Os nossos vasos de guerra estão lá - replicou Henry Lane.

Paul Miller retirou as mãos da madeira envernizada do jinriquixá. Olhou para as caras dos chineses, pálidas na escuridão crescente. - Ponho a minha fé em Deus, e não em navios de guerra - disse ele simplesmente.

Henry Lane, por bom cristão que fosse, sentiu um aperto no coração. - É meu dever preveni-lo - disse. -Obrigado, Irmão.

-Boa noite - proferiu Henry e fez sinal ao condutor do jinriquixá para que seguisse avante.

Paul Miller ficou parado a olhar para o carro que se afastava. Tinha a face quadrada e magra e a sua pele era rósea e branca, embora já tivessem passado vinte anos desde que recebera o cha­mado de Deus em uma reunião religiosa ao ar livre na Pensilvânia, abandonando a granja paterna, com grande consternação do velho, fora para a China, como a única terra de gentios de que tinha ouvido falar. A fé provera os magros recursos para ele e Mary atravessarem o continente num carro de turistas, e o Pacífico como passageiros de terceira classe. Nunca mais tinham estado na sua terra desde então. Não achava certo pedir férias a Deus, embora os outros missionários as tomassem de sete em sete anos. Ele vivia para a fé.

Os lábios tremeram-lhe e sentiu uma ardência nos olhos. Até então nunca havia encarado a possibilidade da morte. Muitas vezes tinham passado fome e algumas vezes tinham estado doentes, e a dor da morte de Arthur ainda continuava, embora tentasse não pensar em tal coisa. Mas a morte nas mãos de homens cruéis, a morte de Mary e dos seus pequenos, nisso jamais havia pensado, nem mesmo nas noites em que Satanás o tentava com dúvidas e com a saudade da doce amenidade da granja em que vivera. Muitas vezes sentia saudades, mas já não o confessava a Mary. No princípio tinham chorado até dormir-ele, um homem feito! Sua mãe escrevia-lhe de vez em quando, até que morrera, dez anos antes,, mas nunca recebera uma carta do pai. Nem sequer sabia se ainda estava vivo.

Ali, na escura rua chinesa, entre as luzes foscas das lâmpadas de azeite e das velas de sebo, escutando os ruídos da noite que descia, mães a chamarem pelos filhos, uma criança chorando, uma discussão nalguma parte, as pancadas das portas das lojas que se fechavam, um queixoso violino de duas cordas, o gemer do vento nocturno que se erguia, sentiu-se tomado de terror. Para onde poderiam ele e sua pequena família fugir? Pensou na meiguice da esposa, na graça das duas pálidas meninas, no filho que se estava tornando um homem. Ali estava tudo o que possuía e que lhe fora dado por Deus. Mas eles... que possuíam eles? Havia-lhes roubado os seus direitos de sangue sobre a granja, a segurança da proximidade de gente como eles, um tecto seguro sobre as suas humildes cabeças. Se os homens perversos matassem aqueles por quem era responsável, não mais poderia acreditar em Deus. No escuro, estendeu as mãos para o Céu. As frias estrelas cintilavam lá no alto. Não havia Lua. Ninguém podia vê-lo, e ele caiu de joelhos ali mesmo, na rua, e clamou por Deus. Depois, cruzando as mãos no peito, ergueu a face e fechou os olhos sob as sorridentes estrelas.

-Ó meu Deus... - murmurou. - Vós que, neste momento, talvez estejais olhando para o velho lar que eu abandonei, pen­sando que era essa a Vossa vontade... Vós podeis ler dentro dos corações e saber se é verdade que os homens perversos querem as nossas vidas... Humildemente digo que eu próprio notei alguma diferença nos chineses nestes últimos meses... O nosso senhorio quer que nos mudemos sem motivo. Estou com os alugueres em dia, embora nem sempre tenha sido fácil conseguir dinheiro a tempo. Mas Vós sempre providenciastes. Salvai as nossas vidas e conser­vai-nos em segurança, especialmente a vida daqueles que Vós me destes, ainda que eu diga que seja feita a Vossa vontade e que não os amo acima de Vós.

A cabeça tombou-lhe sobre o peito, com o queixo repousando nas mãos cruzadas. Esperou que a fé despertasse em seu coração.

Chegou, afinal, aquecendo-lhe o sangue nas veias, reaniman­do-lhe o coração como um vinho, convencendo-o de que o que fazia era bem feito. «Não temas, pois Eu sempre estarei contigo...» Podia até ouvir as palavras que tão bem conhecia.

-Amem, Senhor - replicou com reverência. Ergueu-se e encaminhou-se, pela rua deserta, para os quatro pequenos quartos onde aqueles que tanto amava o esperavam. Sim, lutava constan­temente por não os amar demasiado, pois não eram tudo quanto possuía. Ele possuía o incomensurável amor de Deus.

Em menos de meia hora já abria a porta da casa e via a cena que sempre o alegrava. A mesa estava posta para o jantar. Mary achava-se sentada junto ao lampião de azeite, consertando alguma roupa, e Clem estudava um de seus livros. As duas pequenas brincavam com uma boneca de pasta que uma bondosa chinesa lhes dera.

Ergueram a cabeça quando entrou, e ele ouviu as suas sauda­ções. Por alguma tola razão, não pôde reter as lágrimas. Mary ergueu-se e veio ao seu encontro e ele estimou que a luz fosse tão fraca. Mas, mesmo que fechasse os olhos enquanto a beijava, não pôde impedir que uma lágrima caísse sobre a face dela. Depois parou junto das meninas, evitando o olhar do filho.

Só depois de ter dominado o seu súbito desejo de chorar é que falou a Clem.

-Que livro é esse, filho?

-Um livro de História, pai. Trouxe-o da loja de Mr. Fong. -Que História?

-Uma História da América.

Mal ouviu a voz de Clem. Estava saboreando o seu alívio, a segurança que Deus lhe dava. Ali estavam todos eles, a salvo.

Não lhes diria nada sobre o perigo. Não havia necessidade. O perigo passara. «Porei a minha confiança no Senhor». Com estas silenciosas palavras, obrigou o seu coração a calar-se.

As lâmpadas da casa da missão estavam todas acesas, e o Dr. Lane achava-se no quarto, preparando-se para o jantar. Não compartilhava das ideias da mulher a ponto de mudar de roupa todas as noites como o faziam os ingleses, mas punha uma camisa limpa e mudava o casaco. Quando deixara o colégio, vinte anos antes, era o que hoje chamavam um sonhador. Isto é, acreditava no ascetismo para os homens de Deus. A dureza dos anos de guerra tinha-o marcado, embora ninguém da casa de seu pai tivesse ido realmente para a guerra. Mas tinham asilado escravos do Sul e gasto bom dinheiro para os ajudar a estabele­cer-se e encontrar trabalho, e seu pai fora um chefe da igreja episcopal em Cambridge. Contudo, quando anunciou a sua vocação para as missões, o pai ficou muito aborrecido.

-Naturalmente que devemos mandar missionários para as terras infiéis-declarara ao jovem Henry-, mas não acho que devemos mandar os nossos melhores rapazes. Meu pai não queria que eu fosse para a guerra e eu não fui.

-Deus não o chamou para ir para a guerra - replicara Henry.

A luta com o pai, na qual não cedera, servira-lhe alguns meses mais tarde, quando se enamorou de Helen Vandervent em Old Harbour. Era a mais linda rapariga que já vira, uma criatura de nobre tipo, mesmo na sua juventude. Era alta, um pouco acima dos seus ombros, altiva e mundana, como ele cedo veio a saber. Ele rogara a Deus que lhe desse forças para a domar, não forças para renunciar a ela. Mesmo assim, ela não cedera nos próximos dois anos. Ela amava-o, e até lho havia dito, mas a sua crença no amor da jovem era abalada pela sua má vontade em compartilhar da vida que ele devia levar. Neste ponto ela não cedia.

-Não te peço que deixes de ser um ministro de Deus - dissera ela-, mas há almas que precisam de ser salvas aqui mesmo.

Dissera-o vinte anos antes, e ele ainda se lembrava do seu aspecto naquele momento, uma linda e alta rapariga de jaqueta azul-claro. Até o seu chapéu tinha plumas azuis, mas um friso de cetim branco lhe debruava a aba.

-Ah! Mas eu tenho de servir a Deus onde Ele me chama - ­retorquira ele, concentrando as reservas da sua decisão.

Ela encolhera os ombros, conservando ao mesmo tempo o seu amor e a sua temosia por seis meses mais, enquanto dia e noite ele pedia a Deus que lhe desse forças e aprofundasse o amor da noiva para que ela afinal cedesse. Forças conseguira, mas não via nenhum abrandamento no coração dela, de modo que, por uma terrível tarde de Verão, afastou-se dela em Old Harbour. Assim resolvera, para pôr à prova uma última vez o seu amor. Não tinha nenhuma sorte. Ela estava cercada por outros jovens, que não eram asse­diados por Deus e, portanto, estavam livres para lhe agradar. Resolvera deixá-la, pois, e, na extremidade do rochedo, junto à baía, ainda lhe dissera:

-Helen, eu vou para a China... sozinho, se não quiseres acompanhar-me.

Não tinha a certeza de que ela fosse acreditar em tal coisa. Ela meneara a cabeça teimosamente e ele deixara-a e viera para a China, sem saber se ela o acompanharia. Somente quando se convenceu de que em Pequim poderia levar uma vida civilizada foi que ela lhe escreveu para lhe dizer que casaria com ele. O noivo cedera o suficiente para lhe oferecer Pequim. Os primeiros dois anos passara-os sòzinho numa cidade do interior, onde a vida era primitiva. No íntimo do coração, Helen jamais havia cedido, bem o sabia ele, embora se julgasse cristã. A seu modo, ela não deixava de o ser, isso ele também acreditava. Mantinha o seu lar confortável, tratava os criados com equanimidade e transferia as suas ambições para os filhos.

Ele aborrecia-se secretamente por causa do filho. Havia algo de duro e orgulhoso naquele garoto. William raras vezes ria e ficava furioso com qualquer pequena mas afectuosa brincadeira da família à sua custa.

Às vezes, pensando nesse querido filho único, lembrava uma coisa tola que sua mulher fizera. Levara o menino, quando ele tinha apenas nove anos, para uma audiência com a Imperatriz­-Mãe. Uma vez por ano, a Velha Buda oferecia uma festa às senhoras americanas. Numa dessas ocasiões dissera Helen à primeira dama de honor. que gostaria de levar seu filho para apresentar os seus respeitos à Imperatriz. A dama rira e dissera algo à Imperatriz, que estava num dos seus dias de humor capri­choso, alternando entre a puerilidade e a tirania. Depois a dama respondera : «A nossa velha Antepassada diz que gostaria de ver um menino estrangeiro. Queira trazê-lo no próximo dia de festa, que é o da Entrada da Primavera».

Por um dia frio William fora com a mãe ao Palácio Imperial e esperara horas e horas numa gelada ante-sala. Afinal, ao meio­-dia, um alto eunuco chamara-os à Presença. William seguiu atrás da mãe e, a um sinal do eunuco, inclinou-se profundamente ante a espectacular velha sentada num fulgurante trono em forma de dragão. Era tácito que nenhum americano seria obrigado a prostrar-se.

A Imperatriz estava num dos seus bons momentos. O Sol ainda hibernal derramava-se pelo chão ladrilhando até à sua saia bordada a ouro e às suas mãos cheias de jóias que descansavam sobre os joelhos. William viu primeiro a barra bordada da saia de cetim amarelo, e, erguendo mais os olhos, viu as fabulosas mãos e, depois, o seu colar de jade, e assim os seus olhos afinal ergueram-se até à face esmaltada, até aos grandes e rasgados olhos, até ao caprichoso tòucado de pedrarias. Eunucos e damas, ante a ousadia do menino, estavam esperando que se desenca­deasse a fúria real. Mas não houve nada disso. Nos olhos daquele bonito menino americano, a Imperatriz viu tal deslumbramento, tão encantado espanto, que não pôde deixar de rir. Então todos riram, com excepção de William, que ficou de pé, a contemplá-la, sem um gesto, sem uma palavra. Súbitamente o humor mudou. A Imperatriz franziu as sobrancelhas, fez um gesto com os seus dedos metidos em ponteiras e virou a cabeça.

O Primeiro Eunuco avançou imediatamente e fê-los sair.

-Porque seria que a Imperatriz ficou zangada comigo? - ­perguntou William ao pai, depois que se viu em casa, aquecido e alimentado.

-Quem pode compreender o coração da Imperatriz? - ­retorquiu ele.

Mrs. Lane apressou-se a falar. - William, devemos levar em conta que tu és o único menino americano que viu a grande Imperatriz Viúva da China. Isso é importante, não é?

O Dr. Lane não gostou da observação.

-Helen, aos olhos de Deus, somos todos iguais - disse à mulher.

-Eu bem sei. Mas o facto é que nós não somos Deus. A Impe­ratriz é sempre a Imperatriz e não adianta pretender que William não teve uma grande honra, pois teve mesmo. É uma coisa mara­vilhosa, e devo dizer que se não tivesse tido a coragem de tomar a iniciativa ele jamais teria essa oportunidade.

O Dr. Lane, pensando agora no filho, suspirou, como muitas vezes o fazia, sem saber porquê. Helen não tinha mudado muito. Às vezes, embora ela observasse cuidadosamente as formas exte­riores da religião, ele receava que, no fundo, ela ainda tivesse espírito mundano.

William, que fora baptizado com o nome do pai de Helen, não com o de seu pai, crescera inteligente e altivo. Se o coração do garoto jamais fora tocado, não o sabia. Talvez um coração de criança nunca fosse tocado até que o orvalho da mocidade caísse sobre ele. O Dr. Lane lembrava-se de si próprio como um jovem insensível até que, de súbito, um dia, quando tinha quase vinte anos, descobriu que a vida era um dom em suas mãos, para ser usado ou desperdiçado. Deus falara-lhe naquele momento.

O gongo chinês tocou suavemente para o jantar e ele baixou a lâmpada de azeite. Era um belo objecto, que Helen havia fabri­cado, por assim dizer, com um jarro Ming. Helen tinha o prazer do luxo. Fora de Pequim, isso poderia não ficar bem a um ministro de Cristo que secretamente acreditava na pobreza, mas, em Pequim, as casas dos diplomatas eram tão luxuosas que a sua não se fazia notar. A fantástica extravagância da Corte Imperial condicionava a atmosfera da cidade. Entretanto, a velha Imperatriz andava agora cheia de remorsos. O dinheiro que fora angariado entre o povo para uma marinha moderna, tinha-o ela gasto num grande barco de mármore para o lago do Palácio de Verão. Enquanto os seus ministros profetizavam perigos vindos do Oci­dente e o jovem Imperador fomentava a rebelião, ela negociava com aquela absurda sociedade secreta dos Boxers. Estes, excitados com a atenção dela, viviam a jactar-se de que eram invulneráveis. Nem espadas nem balas, declaravam, poderiam atravessar-lhes o corpo. Tinham um poder mágico, diziam à supersticiosa Impe­ratriz, e ela devia estar assaz desesperada para acreditar neles.

Desceu lentamente os degraus atapetados, com o coração inquieto, sem saber ao certo o que fazer. A Embaixada Americana, naturalmente, tomaria providências. Mas devia esperar por isso? William estava pronto para o colégio e Helen suspirava por um Verão em casa. «Em casa» era sempre na América.

Entrou na sala de jantar, onde a família estava à sua espera, e sentou-se à cabeceira da mesa oval. A coberta da mesa era fina, as monjas chinesas do convento católico tinham-na bordado com um grande e pesado monograma. Era a espécie de coisas, dizia ele consigo, que pareciam caras mas não eram. As freiras trabalhavam barato e ele não tinha coragem de negar beleza a Helen por tão baixo custo. Afinal de contas, ela sacrificara muita coisa para se tornar sua mulher. Perdia cada ano a temporada de Nova York, concertos, teatros, festas... Ela jamais gostara do teatro chinês, embora as melhores companhias estivessem ali em Pequim, mas talvez assim fosse melhor, pois os missionários, na maioria, eram ainda puritanos, e ele sempre tinha uma incómoda consciência da sua crítica, não falada, a respeito de Helen. A maioria deles provinha de lares mais modestos que o seu na América, e isso não os tornava mais tolerantes. Talvez, se ela tivesse tido tempo de aprender chinês... embora pouco pudesse censurá-la por isso. William nascera um ano escasso após o casamento, seguindo-se logo as duas meninas. Desde a fúria da mulher, no dia em que se vira grávida pela terceira vez, não tinha havido mais filhos.

Ele desenrolou o guardanapo e olhou, através da mesa, para cada uma das faces. Ruth estava a tornar-se bem bonita. Parecia-se com o lado paterno da família. William e Henrieta tinham saído à mãe. O rapaz era formoso, mas Henrieta não possuía a distinção de Helen. Teria de se dedicar às boas obras. Ele não tinha a certeza se desejava que quaisquer de seus filhos fossem missioná­rios. Seria o que Deus quisesse. O pai sorriu para a família.

-Gostariam vocês de passar este Verão em casa?

Wang, com uma longa túnica de linho branco, estava ser­vindo a sopa, de onde se erguia um cheiro de frango levemente temperado de gengibre.

-Como, Henry! - exclamou a mulher. - Não tinhas dito que não poderíamos ir este ano, por causa das despesas com a casa de Peitaiho?

Como a maioria dos missionários, possuíam uma casa de Verão à beira-mar. Durante o Inverno, um furacão arrancara as telhas, o que custara algumas centenas de dólares chineses para a reparar.

-Podemos alugar a casa - replicou ele. -Dará para pagar parte das passagens. Acho que não podemos pedir auxílio ao Conselho, pois ainda não chegou a época da minha licença.

-Eu não quero ir - anunciou Henrieta com voz monótona. Tomava sôfregamente a sopa, mas o dr. Lane não a corrigiu. Tinha uma simpatia por Henrieta que ele próprio não podia explicar.

-Mas William está realmente preparado para Harvard? -indagou Mrs. Lane. Os seus olhos estavam pousados em Wang enquanto servia croutons.

-Como estudou pelos métodos chineses, creio que não haverá dificuldade - replicou o dr. Lane. Não gostava de sopa, e esperou pelos croutons.

-Eu gostaria de ir - disse William. Agradava-lhe o pensa­mento de não mais ter de enfrentar a arrogância dos rapazes ingleses, que ainda chamavam rebeldes a todos os americanos e aos missionários cães vadios. Começou a comer com súbito apetite.

Ruth estava silenciosa, com os meigos olhos azuis a passear de rosto em rosto.

-É melhor que lhes diga a verdade-decidiu o dr. Lane. -Não me agrada nada como as coisas vão correndo. Alguma coisa está a preparar-se aí. O jovem Imperador não está em boas relações com a velha Imperatriz e ela trá-lo encerrado. Dizem que está resolvida a mandar matar os seus tutores para animar as suas ideias ocidentais. Mas terá de fazer alguma coisa para contentar os ministros, que estão ofendidos com as novas con­cessões estrangeiras que foi obrigada a fazer ao governo alemão. Se vier àquela cabeça ignorante a ideia de exterminar todos os estrangeiros, eu não quero que a minha família esteja aqui.

Tentava falar humoristicamente, mas notaram que ele estava angustiado. A sua tranquila e delicada face, sempre pálida, mos­trava-se agora branca acima do bigode e da barba grisalhos.

-Eu sempre disse que os chineses nos têm ódio - disse Mrs. Lane.

-Não acredito que nos odeiem - respondeu ele brandamente.

-Mataram os missionários alemães -sublinhou ela.

Ele pousou o talher. -Foi um acidente, como já te disse, Helen. Aconteceu precisamente que os bandidos atacaram uma cidade onde os alemães estavam.

-Nem mesmo os bandidos têm direito de matar estrangeiros - observou ela. Ninguém tinha prestado a mínima atenção a Wang, até que ela ordenou, quase violentamente-Wang, retire os pratos de sopa!

-Eu não acredito que Wang nos odeie, mãe - disse Ruth, depois de ele se ter retirado. A sua voz, suave e tímida, era dife­rente das outras vozes. Até mesmo o dr. Lane, afeito a muitos anos de pregação, falava com uma tão apurada clareza que era quase forçada.

-É porque ele é pago - replicou Mrs. Lane.

O dr. Lane, em consideração aos filhos, sentiu-se na obrigação de dizer a verdade. -Se os chineses são contra os estrangeiros, isso é o resultado da maneira como se comportaram os alemães. Apoderar-se dos portos e demandar o uso de toda a baía, além de qualquer indemnidade, foi justamente uma desculpa para a morte dos missionários. E depois a Rússia, e a Inglaterra, e até mesmo o nosso próprio governo.., tudo isso está no fundo dessas chamadas agitações contra os estrangeiros. Naturalmente os chineses não querem ver o país dividido em fatias.

Mrs. Lane interrompeu: -Claro, Henry, tu sempre pensas que os chineses têm razão! - Ela continuou, para evitar a sua esperada réplica. - Se houver algum perigo, quero-me ir embora de uma vez por todas. Mas não quero ir sem ti. Não permitirei que te sacrifiques por essa gente. O teu primeiro dever é para com os filhos e comigo.

-Não creio que possa ir - replicou ele. -Não creio que deva ir. Os chineses cristãos esperam que eu fique. Os Boxers estarão tanto contra eles como contra nós, se a coisa rebentar. Naturalmente os soldados da Legação hão-de proteger-nos, mas eu não quero que tu e as crianças enfrentem um cerco. Mas fugir não me ficaria bem. Não seria possível perante a minha consciên­cia. O meu dever para com Deus está em primeiro lugar.

As crianças mantinham-se em silêncio. Pela paciente firmeza com que o pai falava, compreendiam que ele estava decidido a sustentar uma discussão com a mulher. Geralmente, ela vencia, mas quando seu pai trazia Deus para o campo, elas esperavam o fim. Sozinho, poderia perder, mas, sob aquela divina protecção, prevaleceria, até contra ela.

Sòmente alguns dias mais tarde, foi que Mrs. Lane se resolveu a ir embora, e de uma vez por todas. Era um sábado, e o dr. Lane estava a preparar o seu habitual sermão dominical. Escolhera um tema estranhamente inadequado para a época, «Os perversos fogem quando ninguém os persegue», e estava desenvolvendo os seus pensamentos, divinamente dirigidos, sobre a profunda signi­ficação oculta nessas palavras, quando ouviu a voz de Mrs. Lane gritar pelo seu nome. Quase imediatamente abriu-se a porta do seu escritório e avistou 'William. As roupas do garoto estavam cobertas de poeira, tinha o rosto lívido e um corte na testa. Ficou ali parado, sem falar.

--William! - exclamou o dr. Lane, erguendo-se da cadeira. -Que foi que te aconteceu?

Os lábios de William moveram-se. - O... o povo... um tumulto...

-O quê?! - exclamou o dr. Lane. Correu até ao vestíbulo e ali encontrou a esposa como que desmaiada numa das cadeiras chinesas esculpidas.

-Helen, o que...

--Foi um tumulto! Pensei que não nos pudéssemos livrar. Se não fosse Lao Li... William e eu apertados no mesmo jinri­quixá...

--Onde foi isso?

-Na alfaiataria de Hatamen Street, onde sempre mando fazer as roupas de William. Ele precisa de um fato novo...

-Que fez William? - indagou o dr. Lane. Instintivamente sabia que sucedera alguma coisa. Os tumultos não rebentam_ sem motivo.

Mrs. Lane suspirou. -Nada... não sei! Havia um homem a dormir junto do jinriquixá quando saímos.., um mendigo. William empurrou-o com o pé: não lhe bateu. De todas as portas surgiu gente que avançou sobre nós. Oh! Henry, eu quero sair daqui... nós todos!

Ele acalmou-a brandamente e mandou Wang -preparar chá. -Helen, estou inteiramente de acordo que tu vás. O povo está muito irritado. Não saias mais, minha querida. Pode haver um verdadeiro incidente.

--Foi um incidente! - insistiu ela. - Se tivesses visto aquelas caras medonhas... onde está William? Henry, vai procurar William! Arrastaram-no pelo chão e, se Lao Li não tivesse ido em seu auxílio, tê-lo-iam matado.

-Vai para o teu quarto e espera o teu chá - disse o dr. Lane. Estava muito perturbado, mas não queria demonstrá-lo. Quantas vezes já tinha dito a William que não tocasse num chinês! Uma vez, lembrava-se, num ajuntamento de Ano Novo na rua, quando levara o garoto a passear, tinha puxado pelo rabicho de um velho cavalheiro que estava à sua frente, e o homem tinha-se voltado furiosamente para eles. O dr. Lane fora obrigado a desfazer-se em desculpas e sómente a pouca idade de William os livrara de um sério incidente.

Procurou William e foi encontrá-lo em cima, no seu quarto, a mudar de roupa. Pusera um pouco de gaze e adesivo na testa. -Desinfectaste esse ferimento? -perguntou o Dr. Lane. -Sim, senhor, desinfectei-o bem.

A face do rapaz ainda estava branca, notou o Dr. Lane. -É melhor que vás lá abaixo tomar chá com a tua mãe. Pareces um pouco abalado.

-Sim, um pouco.

-Nunca toques num chinês. Não te lembras? - disse o Dr. Lane com desusada severidade.

-Era um mendigo que estava encostado ao jinriquixá. -Não importa quem seja ou o que esteja fazendo. Nunca toques num chinês! - repetiu mais alto o dr. Lane. -Sim, senhor.

William voltou as costas para o pai e começou a dar o laço numa gravata nova. As mãos estavam trémulas e permaneceu nessa posição de modo que seu pai não o pudesse ver. O povo tinha-se voltado contra ele, a ignorante gente vulgar que não sabia o seu nome! Ele, americano e branco, filho do privilégio, fora atacado por gente suja e miserável. Nunca mais se sentiria em segurança. Desejava ver-se longe de Pequim, da China, de toda aquela cambada...

-Podias ter sido assassinado - disse o pai.

William não o negou. Podia ter sido pisado até à morte por imundos pés descalços. Lao Li tinha-o erguido e protegido até o jinriquixá onde a sua mãe estava aos gritos. Tinham-se aglo­merado em torno do carro enquanto Lao Li, curvando a cabeça, abria caminho através da multidão, e William esgazeava os olhos para o povo que se comprimia, furioso, contra as rodas. Jamais esqueceria aquelas caras, enquanto tivesse vida.

Na semana seguinte, com a mãe e as irmãs, deixou Pequim.

 

Avançava a Primavera. As tempestades de poeira abranda­vam, os chorões reverdeceram e os pessegueiros floriram. O festival da Primavera Plena era seguido com a tradicional alegria e liber­dade. O povo passeava pelas ruas, os homens com gaiolas de passa­rinhos e as mulheres com seus filhos, e, sobre os portais das casas, estavam suspensos ramos entrelaçados de salgueiro verde e pesse­gueiro florido. A Corte Imperial decretou um grande feriado, e a Velha Imperatriz encomendou espectáculos especiais. Exterior­mente, a cidade era tão calma, tão estável como o fora por centenas de anos, embora cada chinês que tivesse passado da infância sou­besse que não era assim.

A Imperatriz expressara os seus sentimentos em Dezembro, quando foram mortos os dois missionários alemães na província de Shantung. Os governos estrangeiros tinham solicitado que o governador provincial, Yu Hsien, fosse transferido. As novas do palácio corriam pela cidade através dos eunucos e criados. Todos sabiam que a Velha Buda, como chamavam à Imperatriz, se recusara, a princípio, a despachar Yu Hsien. Os seus ministros assediaram-na, lembrando-lhe o tamanho dos canhões estrangeiros e o número dos soldados prontos, à primeira voz, nas legações. Ela não queria acreditar que os estrangeiros pudessem vencê-la, mas fora coagida pelos seus ministros. Mas, embora tivesse des­pachado Yu Hsien e nomeado Yuan Shih K'ai em seu lugar, como os ministros haviam recomendado, entregara a grande província interior de Shansi a Yu Hsien. Na sua ira, ela tinha-o colocado mais alto do que antes, e o povo rira de admiração.

-A nossa Velha Buda - diziam uns para os outros-a nossa Velha Buda sempre sabe o que faz. Sabe ser tão mulher como sabe governar. -Estavam orgulhosos dela, embora a odiassem.

Nunca a Primavera se mostrara tão bela. Os americanos da cidade sentiam-se tranquilizados com o calor do Sol, com as árvo­res em flor, com a amabilidade das multidões na rua. Os guardas enviados no ano anterior para guarnecer as legações tinham sido mandados retirar, e o assassínio dos missionários fora compen­sado. Slnansi estava bastante longe para que Yu Hsien, embora tão alto governador como antes, fosse considerado banido, e a vida nas grandes ruas desenrolava-se como habitualmente.

Em todo o caso, os cônsules haviam recomendado a todos os ocidentais que permanecessem afastados das ruas durante o fes­tival, para que não saísse algum tumulto que pudesse trazer novas complicações. O dia passou-se em paz, e à tarde os estrangeiros saíram das suas residências. De manhã os hortelãos tinham trazido verduras, nabos e rabanetes e cebolas e alho das suas novas hortas, e o povo, cheio do pão e das batatas doces do Inverno, comia para renovar o sangue. As centenas de pobres que não podiam comprar saíam para fora das portas da cidade a arrancar o trevo branco e a bolsa-de-pastor para enrolar nas suas folhas de massa cozida. As crianças brincavam ao Sol ao lado das mães, largando os casacos acolchoados e correndo de um lado para outro com as costas nuas.

Clem Miller, seguindo a sua rota diária, não achou diferença nas ruas. Desde o dia em que William Lane fizera travar a luta, não tinha falado com nenhuma pessoa branca fora de sua própria família. Seu pai, bem o sabia, andava preocupado e inquieto, mas ele sempre andava preocupado, com medo que faltasse alimento e sempre procurando ocultar as preocupações, até para si mesmo, com receio de que Deus, que ele ensinava a considerarem cuida­doso e caritativo por sua própria conta, se encolerizasse com a descrença de Paul .Miller a suprir de alimentos aqueles que depen­diam deste. O próprio Clem não tinha experiência directa de Deus.

Embora rezasse, como lhe fora ensinado, pela manhã e à noite, e às vezes fervorosamente nos intervalos, na possibilidade de que isso pudesse servir quando o alimento era pouco ou quando não havia dinheiro para pagar o senhorio, ainda não tinha a certeza de que Deus dava tais presentes. Perguntava a si mesmo se o pai também não teria a certeza, e se essa incerteza não seria a causa do seu desassossego. Amava o pai, e sentia algo de infantil nele; já não pedia provas de fé, mas limitava-se a comer menos em casa. Era mais fácil dizer que não tinha fome, e enchia-se com os doces que estavam sempre em cima da mesa quando ia leccionar o filho mais velho de Mr. Fong.

Quanto a Mr. Fong, ao ver o corpo magro e as faces cavadas do menino americano, enchera-se de piedade. Disse a Mrs. Fong, a mãe de seus filhos: «Vê como o jovem estrangeiro come os doces! Ele não se alimenta suficientemente. Põe amanhã alguns croquetes no prato e prepara ovos cozidos».

Mrs. Fong era budista, e ela própria não comia carne nem ovos, mas não acreditava que os estrangeiros fossem para o Céu de qualquer modo, e, como afinal ganharia mérito para a sua alma alimentando alguém que não lhe poderia retribuir, obedeceu ao marido. Todos os dias, dali por diante, Clem achava alguma espécie de nutritivo alimento à espera, e o seu aluno Yusan insistia com ele para que comesse, como lhe fora recomendado por sua mãe. Clem comia, pensando que talvez aquilo também era provisão de Deus. Mas era duro de acreditar que Deus se utilizasse dos infiéis para fazer as suas mercês. Na sua confusão, acreditava e não acre­ditava, e, no entanto, o seu corpo em crescimento não teria resis­tido se não fosse aquela alimentação.

Ninguém lhe falava na Imperatriz e nos seus caprichos, nem nas actuais exigências da Itália e da Alemanha. A Itália era um lugar de que nunca ouvira falar, a não ser pelo facto de que Cris­tóvão Colombo tinha vindo de lá. Ninguém lhe falava nos navios da Inglaterra, Alemanha e França que estavam nos portos chi­neses. O seu mundo era na poeira de Pequim e, quando sonhava, era com uma granja num lugar chamado Pensilvânia. De que tamanho era a Pensilvânia, não o sabia. Sabia apenas que era maior do que uma cidade. Desde pequeno aprendera a não interrogar os pais a tal respeito, porque isso entristecia-os e às vezes sua mãe chorava.

O festival findou. Um dia de Primavera seguiu-se a outro e de Maio se passou a junho. O povo comia agora grandes albri­coques amarelos e, uma manhã, Mrs. Fong pôs um prato deles na mesa.

-Come, Irmãozinho - disse ela a Clem. - Isso limpa o sangue. Ele comeu dois e, contra os seus sentimentos de decência, ocultou mais outros dois no bolso, para os dar às irmãs quando voltasse para casa, depois da lição. Obrigou-as a comê-los em segredo, receoso de que o pai descobrisse em Mrs. Fong uma nova fonte de alimento e fosse lá pedir em nome de Deus. Desde que ouvira a voz de escárnio de William Lane não podia pensar em seu pai senão a pedir comida a um chinês. Mas, depois que viu a vontade com que suas duas irmãs apanharam as frutas que lhes levara, não pôde deixar, no outro dia, de esconder alguns bolos nos bolsos e dois dos croquetes de carne. Era uma espécie de roubo, dizia-lhe a sua recta consciência, e acaso seria melhor roubar que pedir, e não seria ele pior do que o pai? «Ao menos eu não tiro o alimento em nome de Deus», disse ele consigo, e continuou a tirá-lo.

Mas a culpa encheu-o de ansiedade certa manhã em que Mr. Fong entrou na sala ladrilhada e ensoalheirada. Mr. Fong sentou-se e puxou para os joelhos a sua gordurosa saia de seda preta. Era um homem alto, natural da cidade, e a sua face lisa tinha a forma de um ovo. Hoje, como estava calor, tinha tirado o gorro preto. Estava recém-barbeado e trazia o rabicho entrançado com uma fita de seda preta.

-Bem - começou ele, olhando para Clem - tenho uma coisa para te dizer, Irmãozinho.

-Que é, Velho Tio? - perguntou Clem, cheio de medo.

-Come, enquanto eu falo - disse Mr. Fong bondosamente. Bateu as mãos para o filho mais velho, sem deixar de fitar Clem. -Yusan, vai brincar lá para fora.

Yusan, contente por se ver em liberdade, colocou o livro numa pasta de algodão azul, guardou-a numa gaveta e deixou a sala. -Toma algum chá - disse Mr. Fong a Clem. - O que tenho a dizer-te não significa que esteja zangado.

Clem não podia comer nem beber depois dessas palavras. Que faria, se o bondoso Mr. Fong não quisesse que ele voltasse mais? Seria o fim dos livros e dos alimentos.

Mr. Fong ergueu-se, fechou a porta e trancou-a. Depois sen­tou-se tão próximo de Clem que a sua voz quase se infiltrava nos seus ouvidos.

-A Velha Imperatriz vai ordenar que todos os estrangeiros deixem a nossa cidade... até mesmo o nosso país.

Estas eram as horríveis- palavras que ele agora ouvia. -Mas porquê? -perguntou.

-Oh!... Não sabes? Teu pai não te contou nada? Vocês devem partir imediatamente ou...

E Mr. Fong levou a mão ao pescoço.

-Que fizeram eles? - perguntou Clem.

Não lhe ocorreu no momento que ele próprio era estrangeiro, e a palavra «eles» veio aos seus lábios em vez de «nós».

Que seus pais eram estrangeiros, bem o sabia. Eram estran­geiros até para ele, cujo nascimento e recordações estavam ligados à terra chinesa. Não tinham dinheiro para se irem embora. Mas onde poderiam ocultar-se? Quem se atreveria a acolhê-los? Não acreditava que os orgulhosos missionários o fizessem, nem poderia pedir que Mr. Fong arriscasse a vida da sua própria família.

Sentiu um arrepio e os joelhos começaram a tremer-lhe.

Mr. Fong compôs a garganta, coçou o queixo glabro e come­çou de novo o seu sussurro gutural.

-Os governos estrangeiros - compreendes? - estão a cortar o nosso país como um melão. Este pedaço é para o povo Ying, este é para o povo Teh, aquele é para I-Ta-Lee, aquele outro para o grosseiro povo Ruh do Norte.

-Meus pais são americanos - retorquiu Clem.

Mr. Fong sacudiu ràpidamente a cabeça. -O teu povo Mei bem o conheço. Eles não cortam com uma faca, mas chegam depois de as fatias estarem cortadas e dizem-nos: «Já cortaram isso para os outros, também queremos a nossa parte». A falar verdade, o teu povo Mei é melhor. Mas, se são contra os cortes, também não deixam de reclamar o seu.

-Nunca ouvi falar nisso - disse Clem.

-Agora não há tempo para te contar tudo - respondeu Mr. Fong. - Ouve só isto, Irmãozinho. Vai para casa e dize a teus pais que fujam de Pequim. Os tempos estão maus. Não se demorem até que os caminhos fiquem fechados. Tenho um parente que trabalha no palácio. Creio que a coisa está para acontecer.

-Meu pai não irá - observou Clem tristemente. - Ele acredita em Deus.

-Não é tempo para acreditar em Deus - disse Mr. Fong no seu tom sensato. - Dize-lhe que salve primeiro a sua família.

Ergueu-se e, abrindo a gaveta, tirou a pasta azul do livro do filho e encheu-a de bolos e frutas. - Leva isto contigo. Lembra-te de que não te odeio. Se eu me animasse, pediria que a tua família viesse para cá, mas isto de nada serviria e só poderia acontecer que a minha família fosse morta juntamente com vocês. Nós fomos avisados. Não venhas mais, Irmãozinho.

Assim dizendo, levou Clem para uma pequena porta dos fundos. Clem achou-se numa pequena passagem. Na rua parecia impossível acreditar que a catástrofe pairasse sobre a cidade. Era uma manhã tão suave como de Verão. A gente da cidade erguera-se da cama, tinha-se lavado, comido, erguido as faces para ver o mesmo que nos outros dias. Como de costume, Clem tinha saído da cidade muito cedo, antes de se abrirem as lojas, pois Mr. Fong acreditava que o cérebro humano era mais activo de madrugada. Muitas vezes encontrava no caminho, já próximo da escola, barulhentos grupos de colegiais com as suas pastas azuis debaixo do braço. Naquela manhã, lembrava-se hoje, não tinha encontrado ninguém e espantara-se de se haver levan­tado tão cedo.

Apressando-se agora a caminho de casa, sabia que as escolas deveriam estar abertas, mas não encontrava qualquer aluno, como também sabia que os lojistas já deviam ter retirado os postigos, mas nenhum o tinha feito, embora a manhã já fosse alta. Seguiu por estranhas ruas silenciosas. Ainda que o não pudesse compreender, sabia, por algum sinal que não tinha visto nem ouvido, que a cidade começava a movimentar-se, não para a sua vida usual, mas para algo de novo e terrível. A boa gente permanecia atrás das suas portas, mas a gente má saía. Clem, caminhando ao longo dos muros e ocultando-se nos portais, ouviu uma gritaria feroz, uma crescente agitação, próximo do quarteirão onde estavam localizadas as legações estrangeiras. Ali, também, viviam os missionários ricos, os príncipes da igreja. Ele apressou-se a caminho de casa. Talvez ficassem a salvo entre as casas dos pobres. Talvez Deus tivesse algum propósito, afinal de contas, em ocultar aqueles que carregavam uma cruz.

Naquele momento Mr. Fong estava a observar a rua. Também sabia que aquele dia era diferente de qualquer outro, e sabia porquê. Seu primo tinha-o visitado à meia-noite e contara­-lhe o que acontecera no palácio. Sem dúvida metade da gente da cidade também sabia. Muitas famílias tinham parentes no palácio, criadas e damas de corte, eunucos que ocupavam cargos, desde o de cozinheiro até ao de ministro, e estes contavam ao povo fora da Cidade Proibida as palavras e actos dos que lá moravam. Não havia nada que o povo não soubesse a respeito dos seus governadores.

Mr. Fong, relembrando as agitadas horas da noite passada, resolveu fechar as portas e desistir de negócios por aquele dia. O que quer que acontecesse, não queria presenciar. Era um homem corajoso, mas não um louco. Sabia que a Velha Imperatriz havia de perder, pela certa, mas que se mostraria desesperada­mente arrogante mesmo que soubesse que estava perdida. Mr. Fong tinha lido muito a respeito da ciência ocidental. Sabia que os Boxers não poderiam de modo algum sobreviver às balas. Ainda assim, seria preciso tempo para provar isso. A Velha Impe­ratriz era tão teimosa que teria de ver os exércitos estrangeiros marchando pela cidade antes de acreditar que tal coisa pudesse acontecer. Suspirou na penumbra da loja e sentiu-se contente por ter tido a prudência de comprar dois meses de provisão de milho e trigo. No pátio, a mulher tinha onze galinhas e uma pequena horta de couves. De fome não haveriam de morrer.

Não se sentia, porém, bastante forte para estar com a família durante uma hora ou duas. Desejava estar sòzinho e, segundo o seu habitual pretexto, tirou da gaveta o seu livro de contas, abriu a caixa de tintas e preparou os pincéis. A esposa nunca o pertur­bava quando estava a pensar, como ela o supunha, em assuntos financeiros. Na realidade o seu espírito estava cogitando sobre aquilo que o primo lhe contara na noite anterior.

A cidade, dissera o primo, enchera-se de Boxers. Estavam agora bastante ousados para entrar em qualquer porta. Na ver­dade, não tinham medo algum desde que o príncipe Tuan persua­dira a Imperatriz a deixá-los vir à sua presença para lhe mostrarem os seus poderes mágicos.

-Mas eles são mágicos? -perguntara ansiosamente Mr. Fong a seu primo. No silêncio da meia-noite a sua razão não era tão forte como de dia.

-Eles são de carne e osso - replicara o primo desdenhosa­mente. Esse parente era apenas um escriba, do palácio, mas era um homem de senso e instrução.

Depois, no dia 9 do mês, o primo viera dizer-lhe exactamente o dia em que a Imperatriz voltara do Palácio de Verão para a cidade, que alguns Boxers tinham ido a um campo de corridas a três milhas de Pequim, acendido uma fogueira e, por fim, arrastado um cristão chinês para as chamas, queimando-o vivo. No interior do palácio, a Imperatriz dizia aos ministros que expul­saria os estrangeiros da cidade.

No dia 11, dissera o primo, o Chanceler da Legação japonesa fora morto fora dos muros da cidade. Tinha ido à estação ferro­viária talvez para saber quando os comboios carregariam nova­mente para Pequim. Agora o tráfego está interrompido.

Depois de dizer tudo isso, o primo retirara-se, cheio de tristeza.

Mr. Fong curvou-se outra vez sobre as suas contas, depois fechou os livros e guardou-os na gaveta. Voltou para o interior da casa, onde o esperava a família. Todos estavam silenciosos, até mesmo Mrs. Fong, que preparava o almoço.

-Põe mais água na sopa de agora em diante - disse-lhe ele. -Devemos contentar-nos com caldo...

-Ah! Se ao menos a gente tivesse a certeza de viver... - ­suspirou ela.

Ele não deu resposta. Nada mais tendo a fazer, foi para o quarto e começou a ler o Livro das Mudanças, onde muitas vezes costumava dizer que tudo estava previsto desde que a gente tivesse a sabedoria de compreender.

Depois daquele silencioso almoço, em que estritamente proibiu que qualquer dos seus saísse à rua e ordenou às crianças que fossem brincar quietinhas para o fundo do quintal, foi para a cama fazer a sesta. Ergueu-se apenas à tardinha para comer outra vez e voltou para a cama. Nada havia para fazer, disse ele à mulher, e era melhor conservar as forças para os dias que viessem.

À meia-noite, despertou de repente ao ouvir a mulher que lhe gritava

-Fong-ah! - chamava ela. - Fong-ah, acorda!

Tinha mergulhado tão profundamente no sono que levou um ou dois minutos antes que pudesse resmungar uma resposta.

-O quê? Como? - murmurou.

-A cidade está em chamas! - gritou ela.

Então ele despertou de novo e meteu cuidadosamente os pés nos chinelos, com receio de que pudesse haver ali uma centopeia, correu ao pátio e olhou para cima. O Céu estava vermelho e a noite clara como o dia.

As crianças estavam agora acordadas, e todas choravam de medo. Ele dirigiu-se-lhes severamente, quando voltou para dentro de casa. - Fiquem quietas - ordenou-lhes. -Querem que os vizi­nhos pensem que estão a chorar por causa dos estrangeiros?

As crianças calaram-se imediatamente. Ele foi para a loja e entreabriu a porta da frente umas duas polegadas, apenas o suficiente para observar a rua. Vinte fogueiras clareavam o Céu, e viu de que se tratava. As casas e as igrejas dos cristãos ardiam. Fechou de novo a porta e voltou para junto da família. Estavam todos juntos em pequeno grupo na penumbra da sala principal.

-Vão para a cama - ordenou-lhes. - Felizmente não somos cristãos, e havemos de sobreviver.

Clem tinha acordado o pai, depois de um instante de hesitação. Os incêndios não estavam perto do bairro em que moravam, mas sim na parte melhor da cidade, perto do bairro das Legações. Não tinha saído à rua desde que Mr. Fong o havia prevenido. Até mesmo seu pai saía sòmente à noite - para mendigar, supunha ele, a alguma porta de missionário, pois tinha voltado com três pães estrangeiros e algumas latas de conservas. Uma das latas continha manteiga australiana. Clem nunca havia provado manteiga. Naquela noite todos comeram uma fatia com a manteiga amarela espalhada por cima e ele saboreara-a curiosamente.

-Lá na granja, nós mesmos fabricávamos a nossa manteiga - disse o pai de repente. Clem estava a ponto de perguntar como se fazia isso, quando a mãe disse em voz magoada: - Paul, não fales na granja!

Clem tinha ido para a cama logo depois da oração da noite e dormira até que a luz do Céu vermelho o havia acordado no seu canto da pequena sala do centro onde preparara a sua cama. Acordara e fora até ao pátio e, depois, temerosamente, até à estreita rua. Não havia ninguém à vista, mas foi fechar o portão. Depois, como se sentiu com medo e solitário, viu-se compelido a acordar o pai.

O pai logo abriu os olhos, silencioso e compreensivo, e Clem acenou-lhe que viesse para o outro quarto:

-Incêndios na cidade! - murmurou.

O pai veio descalço e em trajos menores e ficaram ambos a contemplar o Céu.

-Não despertes a tua mãe nem as meninas - pediu-lhe o pai. – É uma terrível visão... O julgamento de Deus. Eu devo sair para as ruas, Clem, para ver o que posso fazer. O povo deve estar sofrendo. Tu ficarás aqui.

-Oh! pai... - - sussurrou Clem. - Não vá. Como o poderei achar se lhe acontecer alguma coisa?

-Nada acontecerá. Nós rezaremos juntos antes de eu sair, logo que me vista.

Ràpidamente o pai foi ao quarto, de onde voltou com o seu trajo de algodão.

-De joelhos, meu filho - disse ele no mesmo sussurro fantasmal.

Clem ajoelhou-se de bom grado. Estava sem esperança. Estavam todos sem esperança. Se Deus havia de os salvar, tinha de ser agora.

-Meu Deus que tudo vedes - rezava o pai - bem sabeis o que está acontecendo nesta cidade. Sinto que devo tratar do meu trabalho e do Vosso. Provàvelmente há muitos sofredores dos quais deveremos cuidar. O fogo traz sofrimento, como sabeis. Protegei os meus, enquanto eu vou, e especialmente dai força ao meu querido filho.

O pai fez uma pausa e, depois, na sua habitual voz firme, acrescentou

-Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu. Amem!

Ergueram-se, e o pai sacudiu fortemente a mão do filho e saiu para as ruas.

Era quase dia quando Clem, sem poder dormir, ouviu os passos do pai que entrava cautelosamente. Sentou-se na cama e viu o pai à porta, banhado em suor e todo sujo de carvão.

-Tenho de me lavar antes que tua mãe me veja. Traze água para a bacia... e sabão, se houver. Eu lavo-me aqui no pátio. Tua mãe já acordou?

-Não - disse Clem, e ergueu-se da cama. Dirigiu-se para o velho poço do pátio e desceu o balde de madeira. Um pedaço de sabão estava oculto ali onde ele o deixara sobre uma viga, o seu próprio pedaço de sabão, que restava de uma barra amarela que a mãe conseguira para ele no Natal. Ficou ao lado do pai, enquanto este se despia e começava a lavar-se.

-Os Boxers estão na cidade - disse o pai em voz baixa. -A Velha Imperatriz abandonou-nos. Estamos nas mãos de Deus. Começou a perseguição dos cristãos.

-E os outros estrangeiros? - perguntou Clem. Pela primeira vez na vida sabia que o seu lugar devia ser entre aqueles que o tinham repelido. William Lane, aquele orgulhoso menino...

-Vou à casa de Lane - dizia o pai. - De todos eles, Lane é o mais bondoso. Deu-me o alimento que eu trouxe e um pouco de dinheiro. Um homem de bom coração! Está sòzinho. Mandou a família para Xangai. Foram antes que as linhas férreas se interrompessem. Andou a ocultar cristãos chineses, mas agora estes vão-no deixando. É mais seguro para eles ficar entre o seu próprio povo.

Agora Clem estava realmente com medo. Se as linhas estavam interrompidas, Pequim ficaria completamente isolada.

O pai olhou-o ternamente. - Estás com medo, Clem. Nada disso, meu filho. O Senhor é a força das nossas vidas. De quem poderemos ter medo?

Clem não respondeu. Achavam-se sòzinhos entre inimigos. Enviou a sua própria e indignada prece para o Céu, onde a aurora e o fumo estavam em luta. -Meu Deus, se abandonares meu pai, eu nunca mais rezarei.

Depois entrou em casa e ouviu as suas irmãs a falar baixinho, sobre a boneca de pasta, enquanto sua mãe ainda dormia.

 

Mr. Fong sabia diàriamente o que sucedia no palácio. Seu velho primo escapulia-se à noite para comunicar os actos da Imperatriz, a quem agora chamava o Velho Demónio.

-Está a travar-se uma terrível luta - declarava ele a Mr. Fong nas profundezas da noite. Os dois homens sentavam-se na loja às escuras. O primo não deixava que acendessem uma vela, nem queria a presença de Mrs. Fong. Tão violento se tornara o seu ódio à Imperatriz que não acreditava em nenhuma mulher. Mas o seu sentimento de família era tal que se sentia obrigado a dizer a Mr. Fong todos os perigos possíveis, para que o clã Fong se pudesse manter a salvo.

Mr. Fong não se atrevia a falar ao primo no único verdadeiro perigo que corriam e que era Clem. Os vizinhos tinham visto diàriamente o menino estrangeiro na sua casa.

-Continua - disse Mr. Fong ao primo.

-O Príncipe Fong foi demitido. Era o único razoável. Ela nomeou aquele estúpido do Príncipe Tuan e mais três outros que não compreendem nada. Isto é para preparar a sua união aberta com os loucos dos Boxers.

No dia 16 daquele mês, o primo comunicou que a Imperatriz convocara uma reunião dos do seu clã e depois dos manchus, a quem ela pertencia, e dos chineses a quem governava. A estes, ela falou longamente dos males que os estrangeiros haviam feito. Disse que os manchus queriam a guerra.

-Então ela sentiu-se confundida - murmurou o primo - ­pois mesmo entre os manchus havia Natsung, um homem de senso, que lhe disse que ela não poderia lutar com o Mundo. Foi apoiado por um chinês, Hsu Ching-cheng. O jovem Imperador, como seu sobrinho, também lhe pediu que não arruinasse o país. Isto provocou uma grande querela. Aquele idiota do Príncipe Tuan falou em favor dos Boxers, embora o Príncipe Su o contradissesse, dizendo que era uma loucura acreditar que aqueles homens ignorantes não podiam ser reduzidos a postas de carne.

No dia 18 o primo disse a Mr. Fong que a Imperatriz tinha visto os Boxers provarem os seus poderes e resolvera unir-se a eles.

-Quando o jovem Imperador ouviu o Velho Demónio declarar tal coisa - disse o primo-começou a Soluçar alto e reti­rou-se da sala. Agora é muito tarde para ainda termos esperanças. Prepare-se, Velho Irmão, e prepare a sua família para o que deve vir, pois estamos perdidos. Os fortes de Tientsin já caíram em poder dos exércitos estrangeiros, mas o nosso povo não o sabe. Nem o sabem os forasteiros da cidade, pois não têm comunicação alguma com os exércitos enviados para os socorrer. E o Velho Demónio põe toda a sua fé naqueles monstros, os Boxers! Amanhã, antes que os estrangeiros possam saber da perda dos fortes ou da aproximação das suas forças, ela ordenará que deixem a cidade. Mas como poderão sair centenas deles com mulheres e filhos pequenos? Não sairão. Então os Boxers procurarão matá-los todos. Por isso o nosso povo será cruelmente punido quando os exércitos estrangeiros alcançarem a cidade. Prepare-se... pre­pare-se, Velho Irmão!

No dia 20 daquele mês, Clem foi despertado de madrugada por sua mãe. Abriu os olhos e viu-a com o dedo nos lábios. Ergueu-se e seguiu-a até o pátio. Havia vezes em que sentia que, entre seus pais, não tinha vida própria. Cada um fazia-o portador dos segredos do outro, cada um procurava suportar sòzinho o perigo, apenas com a ajuda de Clem.

-Querido Clem - disse-lhe a mãe, na sua linda voz persua­siva. À luz da madrugada, tinha um pálido aspecto cadavérico e ele viu o que já vira antes, mas que percebia agora claramente: que ela se consumia sob aquela tensão de esperar uma morte solitária.

-Que há, mãe?

-Clem, não há nada para comer. Tenho medo de contar ao pai.

-Oh, mãe - exclamou ele. - Todo aquele pão já se foi?

-Sim, e todas as latas. Tenho um pouco de farinha que posso misturar com água para esta manhã. E é só o que há.

Ele sabia o que a mãe desejava e que temia pedir-lhe. Por isso ofereceu-se antes de que ela falasse:

-Vou sair para ver se consigo alguma coisa.

-Oh, Clem, tenho medo por ti, mas, se não fores, o teu pai irá e podes esgueirar-te pelos hutungs melhor do que ele. Ele talvez pare para rezar.

-Isso não farei eu - disse Clem amargamente.

-Então veste as tuas roupas chinesas.

-Será melhor que eu saia só depois de comermos, senão o pai notará.

-Sim, é verdade, vai depois, enquanto ele estiver a estudar a sua Bíblia.

-Sim.

Os suaves olhos da mãe procuravam a sua face com ansiosa tristeza. - Clem, perdoa-me.

-Não há nada que perdoar, mãe. A culpa não é sua.

Viu as lágrimas nos seus olhos e, com carinho e ansiosa impaciência, deteve-as:

-Não chore, mãe, por favor. Já suportei tudo o que podia suportar.

Virou-se, sofrendo com a sua cólera, mas ainda assim prote­gendo-se com ela.

Manteve-se silencioso durante a parca refeição, silencioso enquanto seu pai orava mais longamente que de costume. O pirão estava quente. Estavam sem lenha, mas ele arrancara alguns sarrafos da parede. O seu senhorio não se aproximava deles agora. Já estavam muito contentes por ele não os pôr na rua.

Depois de terem comido, Clem esperou que o pai fosse para a sala de dentro, depois vestiu as rotas roupas chinesas de algodão azul, de modo que as meninas não pudessem vê-lo e ficar sabendo que ele ia sair. Sem se despedir nem mesmo da mãe, esperou que ela estivesse na cozinha. Galgou o muro para não deixar o portão aberto e caiu na viela.

Onde, em toda a vasta cidade inimiga, poderia procurar alimento? Não se atrevia a ir à casa de Mr. Fong. Não havia aonde ir, senão a Mr. Lane, sôzinho no compound. Ele dera-lhes alimento antes e daria de novo, e Clem não se importava de ir, agora que William não estava lá. Assim, por vielas e ruas trans­versais, todas desertas, dirigiu-se, através da cidade, para o com­pound. Nenhum dos compounds se achava no bairro das legações, mas aquele era mais perto do que os outros.

O portão estava fechado. Bateu suavemente com os dedos. Abriu-se uma janelinha por cima dele, e o rosto do porteiro esprei­tou. Quando viu o garoto estrangeiro, retirou a tranca e deixou-o entrar.

-O Professor está em casa? - perguntou Clem, ao ver-se salvo, lá dentro.

-Agora está sempre em casa - replicou o porteiro. - Que deseja?

-Venho pedir-lhe uma coisa.

Em tempos comuns, o porteiro tê-lo-ia despedido, como Clem bem sabia, mas agora não despedia nenhum rosto branco. Aqueles estrangeiros estavam todos em enorme perigo, e ele era um louco em permanecer junto do seu patrão estrangeiro, mas ainda assim não o deixava. Não tinha mulher nem filhos e, estava em questão apenas a sua própria vida, que era muito pequena. Dirigiu-se, à frente de Clem, para a grande casa quadrada e bateu na porta principal. Foi aberta pelo próprio Dr. Lane, que ficou espantado de ver um menino estrangeiro.

-Eu conheço-te? -perguntou.

-Creio que não. Mas eu é que o conheço. Sou Clem Miller. -Oh, sim... - disse o Dr. Lane vagamente. - Os Millers...

Eu conheço teu pai. Entra. Não deverias andar na rua. -Meu pai não sabe que eu saí - respondeu Clem. Penetrou na casa. Parecia desnudada e fria.

-A minha família está em Xangai - disse o Dr. Lane. -Estou sòzinho. Conheces o meu filho William? Senta-te.

-Já o vi, uma vez - respondeu Clem com cautela. Sentou-se na extremidade de uma cadeira esculpida.

O Dr. Lane continuava a olhá-lo com uns tristes olhos escuros. Tinha uma face bondosa, mas parecia que o não estava a escutar.

-Que te trouxe cá? - perguntou com voz amável.

-Não temos que comer - respondeu simplesmente. O sangue espalhou-se-lhe na pálida face. - Sei que o senhor já nos ajudou há tempos. Eu não teria vindo se soubesse aonde poderia ir.

-Tudo está muito bem - disse o Dr. Lane. - Eu sentiria...

Clem interrompeu-o.

-Outra coisa, Dr. Lane. Não creio, quando lhe peço ali­mento, que é Deus que está a providenciar. Sei que não é. Não penso como meu pai a esse respeito. Não viria apenas por mim, em todo o caso. Mas há a minha mãe e as minhas duas irmãs.

-Tudo está muito bem - disse o Dr. Lane. - Tenho mais alimentos do que necessito. Um bom lote de conservas... rece­bemos de Tientsin justamente antes de ser interrompido o tráfego.

A casa estava poeirenta, notou Clem, e a cozinha vazia. O Dr. Lane parecia desanimado. - Não sei precisamente onde estão as coisas. O cozinheiro foi-se embora ontem. Era o último. Não os posso censurar. É muito perigoso ficar por cá.

-Porque é que o senhor não foi com William? - perguntou Clem.

O Dr. Lane continuava a procurar. - Aqui está uma cesta. Eu não fui por causa da minha paróquia. Os cristãos chineses estão a passar por uma época de provação. Não posso fazer muito por eles, senão justamente ficar. Aqui estão algumas latas de leite condensado e carne... presunto enlatado, creio eu.

Encheu a cesta e cobriu-a com uma toalha de cozinha. -É melhor não levar as latas à mostra. Poderiam tentar alguém. Eu desejaria mandar-te para casa no jinriquixá, mas naturalmente o carregador foi-se embora... um fiel amigo, também. Cha­mava-se Lao Li. Ficou apenas o porteiro.

Seguiu na direcção da porta. -É bom que vás para .casa o mais depressa possível. Dize a teu pai que deve levar a família para o bairro das Legações. Devemos estar todos juntos. Suponho que os nossos governos mandarão soldados para nos socorrer. Devem vir a caminho.

-Receio que meu pai não queira ir para a Legação - disse Clem. Explicar que seu pai consideraria essa retirada uma total perda de fé, poderia ferir os sentimentos do Dr. Lane.

Mas o Dr. Lane sabia. - Ah, para tamanha fé - disse ele-, é preciso muito mais coragem do que a que tenho. Por mim mesmo, eu teria... mas não por meu filho.

Achavam-se agora na porta e o velho porteiro esperava. -Até à vista, Clem - disse o Dr. Lane.

-Até à vista, senhor.

O porteiro olhou para a cesta e foi até ao seu quarto, de onde trouxe alguns sapatos velhos, que colocou em cima da toalha. - É melhor que pareça lixo - disse ele-senão serás roubado.

O portão fechou-se atrás de Clem, e ele viu-se sòzinho na rua, com a pesada cesta debaixo do braço. Era manhã alta e o Sol começava a aquecer. Havia um pouco de gente agora, todos homens, e viu que eram soldados, com o folgado e vivamente colorido uniforme do Palácio Imperial. Tentou escapar à sua atenção e conseguiu-o, pensou, pois o seu oficial estava rindo e gracejando e não o notou. Estavam olhando para uma espin­garda estrangeira que o oficial empunhava. Depois viram-no e encaminharam-se para ele. Clem começou a correr. Em qualquer outro dia, em qualquer outra ocasião, poderia ter demonstrado mais senso se parasse para falar com eles na sua própria língua. Agora desejava apenas ocultar a face, a sua face e os seus claros olhos estrangeiros. Correu das vielas para a Rua Hatamen, limite oriental da Legação. Talvez pudesse entrar no portão da Legação. Voltou-se e foi detido por uma pequena procissão de duas liteiras e seus condutores. Notou dentro das liteiras duas caras estran­geiras, arrogantes, severas, duas faces barbudas que jamais vira. Antes que pudesse tomar de novo por uma viela, ficou, preso entre os soldados chineses e os estrangeiros nas suas liteiras. Os soldados bloquearam a rua de modo que os condutores foram forçados a deter os carros.

Então ergueu-se a cortina da primeira liteira e o homem deitou de fora a cabeça e gritou arrogantemente para os soldados: «Abram caminho! Eu sou Von Ketteler, embaixador da Alemanha, e vou para uma audiência com a Imperatriz!»

A segunda liteira abriu-se e ele ouviu uma voz gutural, avi­sando. Era demasiado tarde. O oficial chinês ergueu a arma estrangeira e visou o alemão. Clem viu uma chispa de fogo, e o embaixador tombou morto. Clem meteu-se por detrás da liteira e, apertando a cesta, fugiu o mais depressa que pôde do teatro do crime.

Corria agora pelas ruas que se enchiam de gente. Impossível escapar. Mãos avançaram, tiraram fora a cobertura da cesta, revelando a comida que havia no fundo. Sujas mãos lutaram pelas latas e esvaziaram a cesta num instante, e depois sentiu que o agarravam.

-Um estrangeiro, um diabo estrangeiro... -ouviu vozes gritando ao avistar a sua face. Ele meteu-se por entre pernas e forçou o caminho, ágil de terror, e escondeu-se num portão aberto, até que viu uma raivosa face de mulher à janela e partiu de novo. Agora estava perto de casa, e a multidão surgia na direcção oposta para ver o alemão morto. Estava salvo por um momento, mas que faria ele sem a comida? Começou a soluçar e tentou parar, pois os soluços sacudiam-no tanto que não podia correr, e depois, como não tinha fôlego para correr, começou a caminhar, manquejando e arquejando, para o hutung do pequeno portão. Teria de bater; estava muito fraco para galgar o muro. Ah, o portão estava aberto! Parou, aturdido, e viu alguma coisa brilhante, na poeira do limiar, a seus pés. Era sangue, brilhantemente vermelho, correndo dos degraus para a poeira. E novo e mais desesperado terror o assaltou. Não podia pensar. Atravessou o portão e o pequeno pátio. As portas da pequena sala central estavam balançando de um lado para outro, e ele atravessou-as. Então parou. Sobre o chão de ladrilhos jazia o pai, caído sobre o seu próprio sangue, que corria lentamente de um grande ferimento na garganta, tão profundo que a cabeça estava quase separada. Os braços estavam muito abertos, as pernas estiradas. Sobre a tranquila face, embora exangue, viu o antigo e suave sorriso de seu pai, o acolhimento que dava a todos os que entrassem na sua casa, tanto a estranhos como aos seus, e agora ao seu filho. Sob as pálpebras meio cerradas, os olhos azuis pareciam fitar. Clem olhava o pai, incapaz de gritar. Muitas vezes tinha visto mortos. No Inverno o povo morre pelas ruas, mendigos, refugiados da fome, uma criança estúpida, um escravo fugido, uma indesejável menina recém-nascida. Mas aquele era o seu pai. Sufocava, a respiração não queria sair, e tentava gritar. Era bom para ele que não viesse nenhum som, pois no silêncio da noite poderia ser ouvido e aqueles que se tinham afastado poderiam voltar. Deu uma grande passada por sobre os pés do pai e correu para o outro quarto, onde se achava a cama de sua mãe. Ali viu os outros três, sua mãe e suas duas irmãs. Estavam encolhidas no fundo da grande cama chinesa, as duas meninas agarradas à mãe, mas não tinham escapado. A mesma afiada espada que cortara a garganta de seu pai tinha decepado as cabeças das crianças. Sòmente os longos cabelos loiros de sua mãe ocultavam o que lhe tinham feito, e estavam tintos de sangue escarlate.

Ficou a olhar, com a boca caída, os olhos fora das órbitas. Não podia chorar, não se podia mover. Não havia refúgio para onde pudesse escapar. Onde, em toda aquela cidade, poderia achar um buraco em que se esconder? Pensou um instante em William Lane e na segurança daquela sólida casa abrigada atrás de muros. Logo reconheceu que lá não havia segurança. Os mortos podiam estar estirados naquele soalho, também. Não, a sua própria gente não o poderia salvar.

Voltou-se e correu, como tinha vindo, ao longo dos altos muros das vielas, por solitárias passagens longe das grandes ruas, de volta à casa de Mr. Fong.

No quarto central, atrás da loja, estava Mr. Fong sentado em silêncio, com sua esposa e seus filhos. Do Palácio Imperial, haviam corrido novas através da cidade de que dois alemães haviam ati­rado sobre inocentes chineses e que um bravo soldado chinês os vingara, matando um dos alemães e ferindo o outro. Mr. Fong duvidava da história, mas não sabia como desvendar a verdade.

-O vento sopra e a relva deve curvar-se - disse ele a Mrs. Fong. -Nós permaneceremos silenciosos atrás das nossas portas.

Achava-se preocupado porque seu filho mais velho sabia falar inglês e temia que isso pudesse causar a sua morte. Não só os estrangeiros seriam mortos. A Velha Buda tinha ordenado hoje, na sua primeira audiência no palácio, que todos os que tinham comido pão da religião estrangeira e todos os que falavam línguas estrangeiras fossem também mortos.

Mr. Fon tinha justamente acabado de discutir com a mulher, e este era outro motivo do silêncio da família. A discussão, pro­vinda do terror do que estava a acontecer na cidade, de que corriam boatos por toda a parte, tinha sido justamente sobre o facto de o filho mais velho falar inglês.

-Eu bem te disse que não deixasses o nosso Yusan aprender a língua estrangeira - dissera Mrs. Fong num sussurro bastante forte. O suor corria-lhe pela face abaixo, junto aos ouvidos. Embora se abanasse constantemente com a ventarola, nada lhe secava o suor naquele dia.

-Quem poderia imaginar que a Velha Imperatriz mandaria prender o jovem Imperador? - replicara Mr. Fong. - Há dois anos atrás, tudo era pelo progresso. Se tudo tivesse corrido bem, o jovem Imperador estaria agora no trono e a Velha na prisão.

-Os deuses assim o não quiseram - declarara Mrs. Fong.

Nada irritava mais Mr. Fong do que ouvir falar em deuses. Lia o mais possível dos livros que vendia e, entre estes, havia lido os dos intelectuais revolucionários e outros que eles haviam tra­duzido de países estrangeiros. Assim, sabia muitas coisas que ocultara a Mrs. Fong, que não sabia ler. Por intermédio do primo, soubera muito do que acontecia na Cidade Proibida. Sabia que havia certa companhia de actores que, alguns anos antes, fora chamada de Shangai para representar na corte imperial. Entre os actores, estavam dois famosos intelectuais revolucionários, Liang Ch'i Ch'ao e T'an Tzu-t'ung, os quais foram os responsáveis de informar ao jovem Imperador que os tempos tinham mudado e que os caminhos de ferro, escolas e hospitais eram boas coisas. Que pena que todos os seus esforços tivessem agora falhado! Aquele homem da corte em que eles haviam acreditado, aquele Yuan Shi K'ai, fingindo ter simpatia por eles, tinha-os traído junto do primeiro eunuco Jung-lu, porque os dois tinham há muito tempo jurado ser irmãos de sangue, e Jung-lu contara à Velha Imperatriz, e assim ela havia vencido afinal de contas, Liang escapara com Kang Yu-wei, tutor do jovem Imperador, mas T'an fora morto. Desde então o Velho Demónio, como Mr. Fong a chamava intimamente, fora do mau para o pior.

Não adiantava contar tudo isso a Mrs. Fong. Ouvia a sua voz a queixar-se ainda contra ele, embora baixinho, e, estando assus­tado e cansado, mais do que um pouco receoso que ela tivesse razão, franzira as sobrancelhas, abrira a boca e gritara para ela:

-Fique quieta, sua idiota!

Mrs. Fong começara a chorar, e as crianças, não sabendo que caminho tomar entre os pais, puseram-se a choramingar junto da mãe.

No meio daquele barulho que Mr. Fong agora tentava parar depois de o haver provocado, ouviram uma pancada sorrateira na porta dos fundos. Mr. Fong ergueu a mão.

-Fiquem quietos! - ordenou ele de novo, num sussurro enérgico.

Instantâneamente todos se calaram. Podiam muito bem ouvir o som dos punhos na porta trancada.

-É apenas um par de mãos - disse Mr. Fong. - Vou abrir o portão e ver quem é. Talvez seja um recado de meu primo.

Ergueu-se, e Mrs. Fong, lembrando-se do seu dever, também se ergueu, e com ela as crianças. Assim juntos, foram até o estreito pátio dos fundos e, polegada por polegada, Mr. Fong retirou a barra. As pancadas cessaram quando isso começou e, por fim, Mr. Fong abriu uma fresta na porta e espreitou. Voltou a cabeça para Mrs. Fong.

-É o Irmãozinho Estrangeiro! - murmurou ele.

-Não o deixes entrar - exclamou a mulher. - Se o encon­tram aqui, seremos todos mortos.

Mr. Fong segurava a porta, sem saber o que fazer. Contra a sua própria vontade, ouvia a voz de Clem, que lhe contava coisas horríveis.

-Meu pai e minha mãe estão mortos! Minhas irmãs tam­bém! Cortaram-lhes a cabeça! Meu pai está no chão, com a gar­ganta aberta. Não tenho para onde ir agora.

Muito contrafeito, Mr. Fong abriu a porta, deixou que Clem entrasse, e depois trancou-a de novo, ràpidamente. O menino havia vomitado, vendo-se ainda a sujidade nas suas vestes. A face estava cadavérica e os seus olhos tinham-se-lhe encovado, nesse tão curto espaço de tempo.

-Que faremos agora? - perguntou Mrs. Fong.

-Que podemos fazer? - replicou Mr. Fong.

Ficaram a olhar um para o outro, tentando pensar. Clem, incapaz de pensar, fitava-os no rosto.

-Devemos considerar os nossos próprios filhos - disse Mrs. Fong. Mas era uma boa mulher e, agora que via o menino e o estado em que ele se encontrava, queria limpá-lo e confortá-lo, a despeito do medo que sentia.

-Porque matariam eles a tua família? - perguntou Mr. Fong a Clem. - Teu pai era pobre e fraco, mas bom homem.

-Não foi só meu pai - disse Clem em voz débil. - Eu vi-os matar um alemão, e o outro escapou, embora ferido na perna.

-Os alemães não atiraram sobre um grupo? - perguntou Mr. Fong.

Clem meneou a cabeça: - Não havia nenhum grupo. Ape­nas eu.

-Quem atirou sobre eles?

-Um soldado.

-Com que uniforme? - perguntou Mr. Fong.

-O do Palácio Imperial - disse Clem, que falava ver­dade. Mr. Fong lia-o na sua desesperada face de rapazinho honesto.

-A Velha Imperatriz enlouqueceu - disse Mr. Fong entre den­tes. - Pode acaso fazer-se que os ponteiros andem para trás? Vamos voltar à época dos nossos antepassados, enquanto todo o Mundo vai para a frente? Ela tornou-nos motivo de troça de todos os povos. Vão enviar os seus exércitos e as suas armas, e vamos ser todos exterminados porque demos ouvidos a uma velha ignorante que está sentada num trono. Eu não a receio!

Assim dizendo, agarrou Clem pelo ombro rasgado do casaco e levou-o para dentro de casa, e atrás dele seguiu a família.

-Tira essa roupa para que eu a lave - disse Mrs. Fong.

-Vai para o quarto do fundo e deita-te na cama - disse Mr. Fong. -Afinal de contas, nós somos uma família obscura. Não temos inimigos, creio eu. Se vierem perguntar por que tínha­mos um jovem estrangeiro aqui para ensinar o nosso filho, direi que era porque o estrangeiro não passava de um mendigo.

Como um mendigo, pois, Clem foi para o escuro quartinho dos fundos e, despindo as suas vestes, meteu-se sob a colcha de retalhos da cama. Estava gelado até aos ossos. Não tinha lágrimas, nem saliva na boca. A própria bexiga estava seca e, embora os rins lhe doessem, não podia verter água. Sentia comichão nas palmas das mãos e nas solas dos pés. Torturado por essa sequidão, jazia sob a colcha e começou a agitar-se num violento tremor de frio.

Clem esteve assim oculto, não sabia por quantos dias. Nem sabia o que estava acontecendo na cidade. Nem uma vez Mr. Fong ou qualquer da sua família atravessou as portas exteriores da loja. O primo vinha algumas vezes à meia-noite e, por seu intermédio, Mr. Fong sabia dos acontecimentos. Foi assim que soube que o Velho Demónio, na sua cólera, marcara o quarto dia após a morte do alemão, como o dia em que todos os estrangeiros do Império deveriam ser assassinados.

Havia outros éditos. Assim, no sétimo dia do sétimo mês, a milícia de Boxers foi louvada e exortada à lealdade e os chineses que fossem cristãos exortados a arrepender-se se quisessem con­tinuar com vida.

Mr. Fong que não era cristão, sabia também, por seu primo, que todos os estrangeiros da cidade estavam encerrados no Bairro das Legações, e que se estava a travar uma batalha contra eles. Tinha ouvido contínuos tiros, mas não se atrevera a sair para ver o que era. No seu coração, tentava pensar como poderia confinar Clem secretamente na sua própria fortaleza e assim afastar o seu lar do perigo, mas não podia atinar com coisa alguma. Não se atrevia a falar, nem mesmo ao primo, da presença de Clem na casa, pois se fosse descoberto como o primo era um amigo de coração do jovem Imperador e, portanto, um inimigo da Velha Imperatriz, poderia ser preso e torturado, e, para se salvar a si mesmo, poderia obter perdão denunciando um próprio parente que dava asilo a um estrangeiro. Mr. Fong não dizia nada e escutava tudo.

Para Clem o dia e a noite eram iguais. A porta do seu pequeno quarto do fundo conservava-se trancada e era apenas aberta por Mrs. Fong, que trazia a comida, ou às vezes por Mr. Fong, que vinha tomar-lhe o pulso para ver a febre. Clem jazia numa modorra consciente, recusando-se a lembrar tudo o que tinha visto, sem pensar, sem sentir.

Depois, um dia, e numa hora que ele não sabia qual fosse, sentiu-se incapaz de conter o choro. O vigor renascente do seu corpo, muito jovem para aceitar o sono contínuo, despertou-lhe o espírito relutante, e de súbito viu claramente, na tela de seu cérebro, a lembrança da família morta, retalhada por espadas, e sentiu-se forte bastante para chorar. O seu turbado espírito voltou à vida, e as lágrimas jorraram. Das lágrimas subiu aos soluços, que não pôde dominar. Ouvindo esses soluços, Mr. Fong apres­sou-se a entrar no quarto. Clem tinha-se erguido a custo e estava sentado na beira da cama, estreitando o peito com as mãos.

-Não há tempo para chorar - disse Mr. Fong num mur­múrio. - Estava à espera que despertasses. És ainda muito novo para morrer de dor.

Dirigiu-se a uma cómoda que estava encostada à parede e dela tirou um casaco curto e calças azuis de algodão.

-Comprei isto numa casa de penhores há duas noites atrás, -continuou ele. -A loucura abrandou um pouco na cidade. Dizem que os exércitos estrangeiros estão muito perto. Preparei as roupas para este momento. Hão-de servir-te. Também pre­parámos tintura preta para os teus cabelos e aqui estão uns sapatos. Calça-os e come bem do que minha mulher está a preparar para os meus filhos. Ela cozeu pães e fez um pacote de peixe salgado e mostarda para ti, e colocou-os numa cesta dessas que os meninos do campo carregam.

Clem parou de soluçar. - O que vou então eu fazer, Velho Irmão?

-Deves ir até o mar, para um navio - disse Mr. Fong num sussurro. As suas faces lisas, sempre tão cheias, pareciam cavas, e os olhos estavam fundos sob as duras sobrancelhas. Havia dias que não se barbeava e o rabicho estava descomposto.

-Agora escuta com toda a atenção, Irmãozinho. Todos os da tua raça que não foram mortos estão por detrás dos muros no bairro estrangeiro, onde se trava uma terrível batalha. Nós perderemos logo que cheguem os soldados estrangeiros com canhões. A nossa estúpida Velha só saberá que perdeu quando tiver de fugir para salvar a vida. Só resta viver para esperar por essa hora, que não está longe. Mas o nosso povo não está com ela. Evita as cidades, Irmãozinho. Caminha próximo das aldeias e, quando passares por alguém na estrada, olha para o chão para esconderes a cor azul dos teus olhos.

Clem vestiu as roupas chinesas e, apesar de ter as pernas tré­mulas de fraqueza, o pensamento de fugir deu-lhe forças. Serviu-se bem do suculento caldo de carne e do pão e alho que Mrs. Fong colocou à sua frente, e tudo isso em silêncio. Depois de ele ter comido, ela trouxe uma tigela de tintura preta, das que usam as velhas para pintar as cãs, e, com uma forte pena de ganso, passou a tintura pelos seus cabelos cor de areia, pelas suas sobrancelhas e, até mesmo, pelas suas pálpebras.

-É uma sorte que o teu nariz não seja comprido - disse ela. Depois de finda a sua obra, recuou para admirar a transforma­ção. - Pareces até mais bonito de que um chinês.

Mr. Fong riu em silêncio. Depois colocou a cesta no braço de Clem e, juntos, conduziram-no até à pequena porta das traseiras.

-Sabes o caminho até à Porta do Sul - murmurou Mr. Fong. -O vento agora soprava do Sul. Segue-o e anda durante três dias, depois toma para Leste, em direcção ao mar. Ali encontrarás um navio com bandeira estrangeira, e pede que te dêem algum serviço a bordo.

Clem parou por um instante junto à porta. -Agradeço-lhes por minha vida-gaguejou.

-Não nos agradeças - replicou Fong. -A estupidez da Velha não nos tornou inimigos. Volta à terra dos teus antepassados. Toma isto, Irmãozinho. Se não fosse tão pobre dar-te-ia uma bolsa cheia.

Colocou a bolsa na mão de Clem, que ele tentou recusar. -Deves aceitar isto para meu próprio sossego de espírito - ­disse Mr. Fong. Então Clem aceitou.

Até Yusan, o seu infantil aluno, achou que lhe devia dar um último presente. O menino não compreendia porque deviam ocultar Clem ou mandá-lo embora em segredo, mas puxou a mão de Clem e deu-lhe duas moedas de cobre. Mrs. Fong levou a ponta das mangas aos olhos e bateu duas vezes no braço de Clem, Mr. Fong abriu a porta e o pequeno saiu.

Era noite, as horas não as saberia dizer, mas a escuridão era profunda e a cidade silenciosa. Ficou à escuta, e ouviu o surdo som da tranca de madeira quando Mr. Fong a baixou. Ainda à escuta, ouviu à distância o sibilar das balas, uma descarga e depois outra. Só podia seguir avante e, sentindo sob os pés a macia poeira, ergueu o rosto para o vento, tomando-o como guia na direcção do Sul.

 

SOBRE um mar tão branco como o Céu ao alto, um navio britânico fulgurava com a alvura de um banco de gelo. William Lane passeando pelo convés após um sólido breakfast inglês, mantinha-se de cabeça erguida, consciente dos olhares que o acompanhavam. As damas acomodavam-se nas cadeiras do tombadilho, e minutos antes tinha ajudado a mãe no arranjo das suas coisas: o cobertor, a almofada, o «crochet» e o livro. Henrieta estava a escrever cartas no salão e Ruth jogava shuffleboard. Tinha desejos de ir jogar com ela, mas justamente agora desejava também passear o seu sorriso pelo tom­badilho.

Por ordem do pai, tinham tomado passagem no primeiro navio que deixava Xangai. Sômente as palavras do cônsul-geral os persuadiram a partir.

-Sem dúvida nada poderão ajudar se ficarem aqui - dissera irritadamente o cônsul-geral a Mrs. Lane, quando lhes foram pedir conselho. -O seu marido está bastante seguro com todos os outros estrangeiros no Bairro das Legações. Estão em estado de sítio, é verdade, mas têm suficiente alimento e água, e o auxílio acha-se a caminho. É uma questão de dias.

-Porque então devemos ir? - perguntara Henrieta com a sua voz brusca.

O cônsul-geral encarara a jovem. - Simplesmente para que sigam o seu caminho - replicou. Queria ele dizer: simplesmente para que saiam do meu caminho.

Mrs. Lane decidiu o assunto abruptamente. - Será melhor irmos, senão teremos de ficar durante meses - disse ela a William. -Vou pôr-te num colégio e Henrieta num internato. Passaremos o Verão com o teu avô em Old Harbour. Se as coisas se acalmarem em Pequim, voltaremos no Outono. Se não, teu pai virá para casa. Nós todos precisamos de repouso e de uma mudança. Estou cansada da China e de tudo o que é chinês.

De modo que tomaram passagem. Como os navios britânicos aportavam em Vancouver, o seu rumo era para o Norte, e o tempo fresco e firme.

William Lane tentava não pensar no pai, e conseguiu-o boa parte do tempo. Ele sentia muitas coisas na sua idade, e todas intensamente. Antes de tudo, estava sinceramente satisfeito por nunca mais tornar a ver o pensionato inglês, onde tantas vezes se sentira infeliz. Tinha vergonha e ao mesmo tempo orgulho de ser americano : vergonha porque ser americano na escola mantivera-o em segundo lugar, orgulho porque a América era maior do que a Inglaterra. A consciência de uma inferioridade que ele não podia acreditar fosse real havia ensombrado os seus dias escolares. Afastara-se tanto dos americanos como dos ingleses, vivendo em solidão.

Envergonhava-se, por outro lado, de ser filho de um missio­nário. Até os filhos de missionários ingleses eram secundários. Só o filho do embaixador americano tinha uma espécie de igual­dade com os rapazes ingleses e, vendo isso, William muitas vezes havia amarguradamente desejado que seu pai fosse embaixador. Os homens deveriam considerar o que eram, pensava sombria­mente, em consideração a seus filhos. Odiava Henrieta porque, quando chegara no ano passado à escola, imediatamente se jun­tara com os americanos e declarara levianamente que não se importava com o que fosse o seu pai. De modo que William e Henrieta se tinham mantido separados na escola e o seu afasta­mento não diminuíra. Tomara como amiga do coração uma menina a quem ele particularmente desprezava, filha de um missio­nário americano que vivia numa cidade do interior e era de uma baixa seita baptista. A jovem era abominàvelmente sardenta e os seus vestidos eram absurdos. Nunca havia estado na escola, sabia-o William, e considerava-se humilhado por a ter como amiga predilecta da sua própria irmã. Na sua solidão, desenvolvia uma dignidade de porte, uma altivez de olhar que afastava os outros. Evitava Henrieta porque esta não lhe tinha medo. Algumas vezes ria-se dele.

-Pareces um galo, quando se pavoneia dessa maneira -declarara ela na frente das suas companheiras. As gargalhadas haviam-lhe destruído a alma.

-Ah! -gritara o capitão de «cricket» - você parece mesmo um galo!

Bem, isso eram águas passadas. Agora nunca mais precisava de voltar à escola. Mas o que não sabia, nem saberia, era o quão profundamente desejava ter nascido inglês. O mais que se permitia era sonhar ocasionalmente, enquanto passeava pelo tombadilho de cabeça erguida, pois aquela gente, que não o conhecia, pensava que fosse inglês. Lane era um bom nome inglês. A sua pronúncia, depois de quatro anos de escola, era nitidamente inglesa. O jovem mais feliz que jamais encontrara era o filho de um lorde inglês que passara um dia na escola uma vez que seu pai viera a terra, de bordo de um navio de guerra britânico surto no porto chinês.

Passou por sua irmã no shuffleboard. - Queria que jogasses comigo agora, William - disse ela com voz queixosa.

-Bem, bem, já vou - replicou ele. Parou, escolheu os ins­trumentos, e o jogo começou. Jogava muito melhor do que a irmã. A única graça que achava em jogar com ela era permitir­-lhe que ganhasse até quase ao fim, mas quando resolveria que era tempo de parar, ele chegava súbitamente ao final com a vitória.

-Oh! William! -exclamava ela, invariàvelmente desapon­tada.

-Não tenho culpa de ser melhor do que tu - replicou ele hoje, e começou a andar, com o seu sorrisinho seco.

Não gostava de jogar com Henrieta. Era uma jogadora irre­gular, que perdia fàcilmente algumas vezes, e outras vezes ganhava por algum truque que ele não podia apreender. Nunca sabia como se haver com ela.

Não havia rapazes no navio com quem se importasse de travar relações, a não ser um jovem, inglês, cinco a seis anos mais velho do que ele, com quem gostaria de falar, mas como o outro nunca falava primeiro, William não queria parecer americano. Na escola, os camaradas sempre diziam que os americanos eram muito livres, muito intrometidos, que falavam primeiro com quem quer que fosse.

Haveria de se aborrecer muitíssimo se não pensasse muito no seu futuro e se não houvesse ali tantas refeições. Agora mesmo o caldo da manhã estava a ser servido em mesinhas de rodas, puxadas por rapazes chineses vestidos de branco. Aproximou-se de uma das mesinhas, pegou numa taça de caldo quente de carne, tomou uma mancheia do que ele aprendera a chamar «biscuits» e sentou-se numa cadeira ao lado da mãe. Ela já havia escolhido caldo de galinha, como alimento mais leve. Queixou-se do excesso de refeições, embora, como ele notou, comesse tanto como os outros. Não custava mais caro, por mais que se comesse, embora ninguém dissesse tal coisa em voz alta, excepto Henrieta.

-Henrieta parece que pescou um rapaz - disse a mãe.

Fez um gesto de cabeça para o tombadilho superior e William viu sua irmã recostada ao parapeito, com o vento a agitar-lhe os cabelos negros. Estava a conversar, à sua maneira sincera e abrupta, com o jovem inglês. William sentiu um choque no coração. Renunciou à amizade que planeara. Quem quer que fosse amigo de Henrieta não o poderia ser seu.

-Henrieta fala seja com quem for - respondeu ele. - Notei isso na escola.

 

Clem seguia caminho através da terra chinesa. Conhecia os costumes do povo e nenhum ser humano lhe era estranho. Miseri­córdia não esperava de ninguém, com bondade não contava e, quando não as recebia, não censurava ninguém. Caminhava de noite e dormia de dia entre os altos caniços de sorgo que cresciam no campo naquela estação. Quando espreitava de entre os caniços e não via ninguém à frente na estrada, aproveitava-se para cobrir quantas milhas podia das que ainda o separavam do mar. Os caniços mantinham-no fora da vista de qualquer trabalhador que estivesse a mourejar nos campos, e apenas tinha de olhar para a frente, pois caminhava mais depressa do que qualquer outro que viesse atrás dele.

Um dia topou com uma velha camponesa. Há muito que ela passara da idade de se ocultar por pudor e tinha parado para se aliviar na estrada. A comodidade estava agora acima de tudo. Clem encontrou-a perto do meio-dia numa solitária estrada e, por um momento, pensou que ela fizesse parte de um grupo de bandidos. Quando os caniços estão crescidos é a estação dos ban­didos, e às vezes um bando carrega consigo uma mulher como isca.

A mulher riu quando o viu estacar. - Não tenhas medo de mim, rapaz - disse ela com voz jovial, enquanto amarrava o cinto.

Falava um dialecto do campo que Clem compreendia, pois as suas raízes eram as da mesma língua que ouvia em Pequim.

-Não tenho medo de ti, avó - disse - lhe então Clem. - Que mal podemos fazer um ao outro?

Ela riu, por nada, como fazem as camponesas. - Não me podes fazer nenhum mal - disse ela, com uma voz muito fresca para uma face tão enrugada. -Há trinta anos talvez, mas agora não! Para onde vais?

Pôs-se a caminhar a seu lado e ele diminuiu o passo. Seria bom para ele ser visto ao lado daquela velha camponesa. Podia ser tido como seu neto. - Vou para Leste - respondeu.

Tentava ocultar-lhe o perigoso azul dos seus olhos, mas, quando os ergueu para ela, viu que era desnecessário tal cuidado. Tinha cataratas em ambos os olhos, não muito espessas ainda, mas o bastante para ver tão-sòmente o vago contorno do seu companheiro de jornada.

-Meu pai morreu em Pequim, e eu vou para junto de meu avô.

-Onde está o teu avô?

-Lá para o Leste.

-Eu também vou para Leste - disse ela. - Vamos juntos. -É muito longe? -perguntou ele com cautela. Ela nomeou uma cidade na fronteira da província. -Como é que anda sòzinha? - perguntou Clem por sua vez.

-Não tenho filho - replicou a mulher. -Portanto não tenho nora. Mas tenho uma filha casada com um ferreiro na cidade e vou lá pedir abrigo. Meu velho, o pai dela morreu na semana passada e eu vendi a casa. Tínhamos uma terrinha. Se eu tivesse um filho, ficaria lá. Mas não tenho sorte. Os meus dois filhos gémeos morreram no mesmo dia com menos de um ano de idade.

Suspirou e abriu a gola como se não pudesse respirar, des­nudando o pescoço enrugado, Clem viu em torno dele uma fita suja de que pendia um amuleto.

-Que tens no teu pescoço, avó?

Ela riu de novo, desta vez meio envergonhada. - Então não sabes o que é?

-Onde conseguiste isso?

-Porque queres saber? -perguntou a velha desconfiada­mente.

O facto é que era um estranho amuleto aquele para uma chi­nesa trazer consigo: um pequeno crucifixo de latão. -Parece cristão - disse Clem.

A mulher lançou-lhe um olhar assustado.

-Como é que um menino como tu sabe o que é cristão? - ­perguntou ela, e abotoou a gola.

-És cristã? -perguntou Clem suavemente.

-Porque havia eu de ser cristã? - começou a mulher a exclamar. - Os cristãos não prestam. A nossa Velha Buda manda-os matar. Como vens de Pequim, deves saber disso.

-A cruz é boa - disse Clem num murmúrio.

Ela parou no meio da estrada ao ouvir tal coisa. - Dizes que é boa? -perguntou.

-Meu pai acreditava que a cruz era boa. -Teu pai era um deles?

Então Clem resolveu arriscar a vida. - Sim, mas morreu. Mataram-no. -E dizia isso sem que ela soubesse que ele não era chinês.

Viu que a móvel face enrugada da velha tomava um ar bon­doso. - Vamo-nos sentar - disse ela. - Mas primeiro olha para os lados para ver se vem alguém.

Não se via ninguém. O implacável Sol do meio-dia inun­dava a estrada poeirenta.

-Já comeste? - perguntou a velha.

Há quatro dias que ele caminhava e o seu mantimento de pão acabara-se. Restava-lhe um pouco de mostarda.

-Então comeremos juntos - disse a velha. - Tenho alguns pães aqui. Cozi-os esta manhã.

-E eu tenho algumas folhas de mostarda - replicou Clem. Repartiram o alimento e a velha continuou a tagarelar. -Pedi ao Céu que me fizesse encontrar com alguém que pudesse ajudar-me na estrada. E não tinha andado o tempo entre o nascer do Sol e o meio-dia quando tu apareceste. Isso deve-se a este amuleto.

-Porque dizes Céu em vez de Deus? - perguntou Clem. -É o mesmo - respondeu a velha sem se perturbar. -O padre disse que eu não preciso de dizer o nome de um deus estrangeiro.

Posso dizer Céu, como sempre tenho feito. -Que padre? - perguntou Clem.

-Nunca me posso lembrar do seu nome. - Estrangeiro?

-Estrangeiro, mas de cabelos pretos e olhos como os nossos - disse a velha. - Tinha uma saia comprida e trazia uma grande cruz de prata ao peito. Rezava numa língua estrangeira.

Católico, pensou Clem. - Que foi que esse padre disse que o amuleto significava? -perguntou ele.

A velha riu. -Ele disse, mas não me posso lembrar. Significa coisa boa, em todo o caso... só coisa boa. -Tinha um ar tão contente ao mastigar o pão, com o Sol na face, que não parecia sentir dor alguma em estar sòzinha no Mundo.

-Ele não te ensinou orações? - perguntou Clem.

-Ensinou, sim, mas não me podia lembrar. Assim, man­dou-me rezar o meu velho O-mi-to-fu que eu costumava dizer ao nosso Kwanyin, mas que, quando o fizesse, segurasse o amuleto na minha mão. Isso fazia com que a oração subisse direito ao Céu.

Hábil padre, pensou Clem, usar as velhas orações para o novo deus! Teve um momento de cinismo. Orações e fé pareciam sonhos tolos agora que o seu pai estava morto.

A velha continuava a falar. - Está morto aquele bom padre. Se estivesse vivo, iria procurá-lo. Morava num pátio perto do seu templo, não um templo do nosso Buda, naturalmente. Havia deuses ali, um homem pregado num pedaço de madeira, sangrando. -Porque está a sangrar esse homem? - perguntei. E o padre disse: -Os homens maus mataram-no. -Havia também uma dama parecida com a Kwanyin, mas tinha apenas duas mãos. Tinha pele branca e eu perguntei ao padre se ela era estrangeira e ele disse que não, sòmente a imagem é que fora feita nalguma terra estrangeira onde o povo tinha pele branca, mas, se a imagem tivesse sido feita aqui, a dama teria pele igual à nossa, pois era virtude sua que, onde quer que estivesse, se parecia com o povo do lugar. O homem da cruz era filho dela, e eu perguntei porque ela não o ocultou dos homens maus, e o padre disse que ela não podia. Ele era um filho voluntarioso e ia aonde bem queria, suponho eu.

-Como foi que o padre morreu? - perguntou Clem com um pressentimento.

A velha respondeu, ainda com jovialidade: - Os soldados cortaram-no em pedaços e deram os pedaços aos cachorros e os cachorros adoeceram, e então eles disseram que ele era mau. Eu não me animei a dizer que ele não era mau. Foi um dia depois da morte do meu velho e eu não tinha quem me protegesse.

Sentaram-se ao Sol, terminada agora a refeição, e Clem, ao ouvir a morte terrível do padre, lembrou-se, com opressão, do fim do seu próprio pai. - Vem, avó - disse ele. - Sigamos o nosso caminho.

Resolvera guardar o seu segredo consigo. Quando avançou o dia, ocorreu-lhe um bom plano. Poderia fingir que era cego, manter fechados os seus olhos azuis, tactear o seu caminho, agir como neto da velha, e assim poderiam caminhar todo o dia mais rápida e seguramente que de noite. Também poderia ainda usar do dinheiro que Mr. Fong lhe dera e que até então não se atrevera a gastar numa hospedaria. Mas, para representar essa farsa, era necessário dizer à velha a sua identidade, e ela era tão simples que não sabia se se atreveria a confiar a vida nas suas mãos.

Quando a noite se aproximou e uma aldeia apareceu numa distante poeira de luzes, pensou que poderia contar-lhe. Sabia agora que ela era boa e que era apenas o que havia dito ser, e, se estivesse com ela, poderia conservá-la atenta ao perigo. Se por acaso ela o traísse como não chinês, ele escaparia o melhor que pudesse.

Assim, antes que chegassem à aldeia, ele levou-a para um lado, com grande espanto da velha, pois não sabia porque estaria a puxá-la pela manga. Atrás de uma grande tamareira, de onde poderia enxergar em todas as direcções, ele contou-lhe tudo.

-Avó, tu tens sido correcta comigo, mas não te disse quem sou.

-És um bandido?! - exclamou ela com algum terror.

-Não... eu sou uma coisa pior para ti. Meu pai era um estrangeiro, como o teu padre.

-É verdade? - exclamou a velha. Apertou os olhos e depois estendeu a mão para lhe apalpar o rosto.

-Sim - disse ele-. E meu pai e minha mãe e minhas irmãs foram mortos como o padre foi morto e eu vou até ao mar para encontrar um navio que me leve para a minha terra.

- Triste... triste... - murmurou ela. - Não és bastante grande... Ainda não cresceste...

-Não - respondeu Clem. - Mas estou sòzinho e fiquei con­tente por me teres encontrado.

-Foi o amuleto - observou ela. -O Céu viu-nos sòzinhos a caminhar pela mesma estrada e juntou-nos.

-Avó, não podes ver os meus olhos, mas não são pretos como eram os do padre.

-Não? -perguntou ela com surpresa. -De que cor são então?

-Azuis.

-Azuis? - repetiu ela. - Mas só os animais selvagens têm olhos azuis.

-Muita gente do meu país tem os olhos azuis.

Ela estremeceu - Ah, eu tenho ouvido dizer que os estran­geiros são como feras!

-Meu pai não era - replicou Clem. - E minha mãe era muito boa. Haverias de gostar dela.

-Ela falava a nossa língua?

-Sim - disse Clem, e viu que não poderia falar mais em sua mãe.

-Ai - suspirou a velha-, há muito mal por toda a parte. -Avó... -recomeçou Clem.

-Gosto de te ouvir chamar-me assim - disse a velha. – Eu nunca tive um neto, pois os meus filhos morreram. -Queres ajudar-me? - perguntou Clem. -Claro que sim - replicou ela.

E assim ele contou-lhe o seu plano e ela escutou, assentindo com a cabeça. - Uma velha meio cega conduzindo um neto cego - ­repetia ela.

-Podemos ir até à estalagem da aldeia e dormir debaixo de um tecto. Todas as noites tenho dormido entre os caniços e durante duas noites choveu.

-Tenho algum dinheiro - disse ela, remexendo na cintura. -Eu também - replicou Clem. - Deixa-me gastar o meu primeiro.

-Não, o meu.

-O meu, avó, pois quando chegar à minha terra já não me servirá.

Ela divertiu-se com aquilo. - Como é que o dinheiro não pode servir?

-Nós temos uma moeda diferente.

Recomeçaram a caminhar e a fazer os seus planos. Longe de ser estúpida como a julgara, era tão esperta como ele. Toda a sua vida fora uma mulher de um pobre homem obrigado a iludir a polícia rural e os cobradores de impostos e sabia como parecer o que não era e ocultar o que era.

Uma hora mais tarde, Clem descia a rua da aldeia com ela, de olhos fechados, segurando na mão a ponta de uma vara cuja outra ponta ela segurava. Seguiram pela única rua até à estalagem e ela pediu dois lugares na plataforma de dormir, e o estalajadeiro deu-lhes sem mais perguntas do que habitualmente tais homens fazem às pessoas a quem nunca viram antes.

A velha contou uma simples história, na maior parte verdade, de como seu marido e seu filho tinham ambos morrido da mesma doença e como tinha ela ficado apenas com aquele neto, estando agora de volta para a sua antiga cidade, onde fora criada e onde iria procurar sua filha casada com um ferreiro.

-Como é o nome dele? - indagou o hospedeiro.

-Chamam-no Liu Grande - disse a velha.

Ouvindo isso, disse um viajante: - Há um ferreiro chamado Liu que mora junto à porta oriental daquela cidade e que forjou um ferro para a roda do meu carro, quando por lá passei. Falta-lhe um dedo numa das mãos.

-É ele mesmo - disse a velha. - Perdeu o dedo quando estava a experimentar uma navalha que havia afiado. Ela cortou-lhe o dedo como o fogo corta a neve.

Clem passou a noite deitado entre os viajantes, num vasto leito de tijolos forrado de palha e dormiu bem, apesar do ar empestado de alho, pois, por enquanto, sentia-se em segurança.

 

Assim passou Clem noites e dias, sempre como neto da velha, e cada dia ela mais gostava dele. Contava-lhe curiosas histórias da sua remota infância e perguntava-lhe coisas a respeito da sua gente e da sua terra e porque estava ali em vez de estar entre o seu próprio povo, e espantava-se de que ele nada soubesse acerca dos seus antepassados.

-Vocês estrangeiros - disse ela um dia - enlouquecem com a febre de Deus. Há algo de demónio nos seus deuses para que arrastem vocês a esse ponto. Os nossos deuses são razoáveis. Pedem-nos apenas algumas boas obras. Mas para os deuses de vocês, não bastam boas obras. Têm de ser louvados e ouvir sempre que eles são os únicos deuses e que todos os outros são falsos.

Riu e disse animadamente: - O Céu está cheio de deuses como a Terra está cheia de homens, e alguns são bons e outros são maus, e não existe um grande Deus acima de todos os outros.

Clem não discutia com ela. Não havia um resto de fé no seu coração, a não ser uma nova e pequenina fé na bondade de algumas pessoas. Mr. Fong e sua mulher tinham sido bons com ele, como aquela velha agora, e ele ficava a escutá-la enquanto iam cobrindo as milhas, lado a lado, a não ser quando chegavam ao meio de gente e ele se fingia ceguinho, segurando a ponta da vara cuja outra extremidade ela puxava. Dos seus lábios, ele aprendia uma espécie de rude sabedoria, comparava-a com o que aprendera antes e achava-a verdadeira. Assim, dizia ela, a grande falta do Céu e de quaisquer deuses que existissem, era porque não tinham arranjado as coisas de modo que o alimento chovesse todas as noites do Céu, o suficiente para que todos comessem e não pudesse haver motivo para lutas.

Se a barriga estivesse cheia, dizia ela, se soubéssemos que sempre estaria cheia, os homens seriam alegres e ririam e brin­cariam como crianças, e então teríamos paz e felicidade.

Tais palavras, pensava Clem, eram as coisas mais sábias que jamais ouvira. Se seu pai não tivesse necessidade de pensar no pão, a sua fé poderia ter sido perfeita. Com o pão garantido, seu pai poderia ter pregado e orado e ser um santo.

Assim falando e pensando, dormindo em hospedarias à noite, Clem e a velha alcançaram a cidade onde ela devia parar. Um dia por outro, notara que a velha parecia de mau humor, res­mungando às vezes. - E porque não? - perguntava a si mesma. Ou dizia: - Quem se importa que eu... - Ou então: - Minha filha nem sabe se eu ainda estou viva.

Uma tarde, antes de chegarem à cidade, após uma tempes­tade durante a qual se tinham refugiado num templo à beira da estrada, onde havia deuses mas não sacerdotes, a velha desabafou o que vinha dizendo consigo mesma.

-Meu neto, devo ir até à costa contigo. Que será de ti se te deixo? Algum malandro descobrirá os teus olhos e procurará cair nas graças da Imperatriz e cortará a tua cabeça e levá-la-á para a capital para ganhar um prémio.

Clem recusou peremptòriamente tamanha bondade. - Avó, estás muito velha e cansada. Ontem mesmo me disseste que os teus pés estavam inchados.

Puseram-se a discutir e por fim a velha disse: - Pelo menos vem comigo até à porta da casa de minha filha. Veremos o que diz Liu Grande.

Clem consentiu e, quando chegaram à cidade, a velha não quis entrar antes da hora do encerramento das portas, para que o povo não os pudesse distinguir nitidamente. Ao cair da noite, juntaram-se aos últimos que se recolhiam e, caminhando silen­ciosamente entre a multidão, chegaram à casa de Liu, o ferreiro.

A primeira visão que teve Clem do ferreiro foi deveras impres­sionante. A forja estava aberta para a rua, e ali se achava o atlético vulto, de pernas afastadas, a mão direita erguida e segurando um grande malho de ferro, e na mão esquerda uma grossa tenaz que segurava um rubro pedaço de metal em brasa. Sobre esse metal batia ele com o malho e, a cada golpe, chispavam faíscas no escuro da noite. O ferreiro estava negro de fumo e os seus lábios estavam afastados dos dentes, de modo que estes se mos­travam muito brancos, como muito branco, também, era o branco dos seus olhos, sobre os quais se adensavam severas sobrancelhas negras.

-É ele - disse baixinho a velha.

Ela entrou ousadamente e gritou: - Ei, Liu Grande! Minha filha está em casa? Liu Grande pousou o malho e encarou-a. -Não és, boa velha, a mãe da mãe dos meus filhos? - gritou ele.

-Sou eu, sim - disse a velha. Depois enxugou os olhos com as mangas. - O meu velho, pai dela, morreu.

Liu Grande ainda olhava para ela. - Entra - ordenou. Quando viu que Clem a seguia, parou de novo. -Quem é este menino? - perguntou.

-É o meu neto adoptivo - disse a velha; depois continuou ràpidamente: - É um òrfãozinho, coitado, e eu sou uma pobre velha sem ninguém; encontrámo-nos na estrada, os deuses é que o mandaram, juro, para que cuidasse de mim, pois sei que não é uma criança como as outras, mas uma espécie de espírito que baixou. Os seus olhos são os olhos do Céu e o seu coração é bondoso.

Falando assim muito depressa, enquanto Liu Grande olhava, a velha procurava pôr Clem a salvo.

Mas Clem meneou a cabeça. - Vou dizer-lhe quem sou - ­disse ele a Liu Grande. Entraram no quarto interior e tiveram de esperar até que a velha e a filha se houvessem saudado, exclamado, chorado e abraçado as três crianças. Liu Grande ficou então sabendo que Clem não era chinês e tornou-se muito sério. Ergueu-se e foi fechar as portas, enquanto as mulheres falavam e choravam, e, por fim, mandou que se calassem e voltou-se para Clem.

-Tu és estrangeiro - disse ele.

-Sim. Não lhe posso ocultar tal coisa.

Depois contou a sua história, e a velha interrompia-o con­tinuamente para encarecer como ele era bom e que o deviam ajudar, e, se Liu Grande não fizesse um jeito, ela iria com Clem para o mar.

Liu Grande ficou silencioso por algum tempo, e até a sua mulher parecia grave e reuniu os filhos em torno de si. Por fim, Liu Grande disse: - Não devemos conservar-te aqui um único dia. Se souberem que há um estrangeiro em minha casa, tu mor­rerás, e nós todos também. Deves seguir adiante, logo que ao romper da aurora se abrir a porta de Leste.

Clem ergueu-se. - Irei - disse ele.

Liu Grande fez um gesto com a sua grande mão negra. - Espera... Eu não te quero mandar para a morte. Tenho um aprendiz, meu sobrinho, um rapaz mais velho do que tu, que te conduzirá até à costa. Já que estás aqui, vai lavar-te, e eu dar-te-ei roupas melhores. Depois trata de dormir algumas horas. A mãe dos meus filhos te dará comida. Tens dinheiro?

-Ele não tem dinheiro - disse a velha. - Gastou o dele no caminho e eu lhe darei o meu.

Liu Grande ergueu de novo a mão. - Não, guarda o teu dinheiro, boa mulher. Eu lhe darei o suficiente.

Foi assim que aconteceu. Clem obedeceu a Liu Grande exactamente como este dissera, pois aquele homenzarrão tinha uma voz e um ar de comando, embora falasse baixo e com simplicidade. Clem tomou um banho completo com a água quente de um balde de madeira e vestiu algumas roupas limpas que lhe trouxe o aprendiz, que arregalava os olhos ante a pele branca de Clem.

Este comeu duas tigelas cheias de talharim e óleo de sésamo e deitou-se numa esteira de bambu, na cozinha, enquanto o aprendiz se acomodava no chão. Mas Clem não podia dormir. Sabia que o ferreiro estava sentado e desperto, temeroso de que alguém descobrisse que ele estava em sua casa, e, embora a velha lhe dissesse que não tivesse medo, ele também não podia dormir, vezes seguidas vinha verificar se ele estava a sossegar e dizia­-lhe que devia dormir para conservar as suas forças. Quanto ao aprendiz, não estava a gostar nada daquela nova tarefa, mas como nunca vira o litoral nem um navio, estava dividido entre o medo e o prazer.

Antes do nascer do Sol, Liu Grande entrou na cozinha e Clem saltou da esteira e vestiu a sua jaqueta.

O aprendiz, estava a dormir, mas levantou-se também, e atava a cinta de algodão e enrolava o rabicho sob o gorro ras­gado, e assim se dirigiram para a porta.

-Saiam por este portãozinho detrás - disse Liu. - Vai dar a uma viela cheia de imundície, mas ainda é mais segura do que a rua.

A velha chamou Clem um momento. Colocou os braços sobre os seus ombros e bateu-lhe nas costas e depois suspirou e gemeu uma ou duas vezes. -Tu vais esquecer-te de mim depois de atra­vessares esse mar estrangeiro - queixou-se ela.

-Nunca te esquecerei - prometeu Clem.

-E eu não tenho nada para te dar... Ah, espera!

Lembrara-se do amuleto; rebentou a corda e atou-lha ao pulso, de onde a pequena cruz ficou pendente.

-Dou-te isto. Há-de conservar-te em segurança. Só não te esqueças de dizer O-mi-to-fu quando rezares, pois o deus deste amuleto está acostumado a essa prece.

Chorou um pouco e depois afastou-o brandamente de si, e assim Clem a deixou e seguiu o seu caminho com o aprendiz.

A este, pouco disse nos dias em que viajaram juntos e que eram pouco menos de metade do que os que já havia andado. Viajavam de dia, o outro ia também calado a maior parte do tempo, e dormiam à noite em hospedarias, ou às vezes apenas num barranco atrás de algumas árvores, para se ocultarem, pois o aprendiz ficava com medo sempre que encontravam soldados. Mas nunca eram detidos, pois Clem ostentava o seu velho chapéu como qualquer camponesinho e conservava os olhos baixos.

Quando chegaram à costa, separaram-se, e Clem deu ao aprendiz quase tudo o que restava do seu dinheiro. Havia vários navios no porto, e ele não os deixaria partir sem encontrar algum que o tomasse a bordo. Ali já não tinha medo, pois era um porto, e ele viu polícias e homens brancos e mulheres a passear e a andar de jinriquixá ou de carro. Não se aproximou de nenhum deles, pois não queria ser detido no seu propósito, que era atravessar os mares para alcançar o seu país. Mas soube de boas novas. Numa estalagem onde ficara sentado sòzinho depois de o aprendiz o ter deixado, ouviu que a Velha Imperatriz fora obrigada a ceder ante os exércitos brancos. Tinha fugido do palácio, deixando em seu lugar uma jovem princesa que se atirara a um poço. E os exércitos estrangeiros entraram na cidade, saqueando, ma­tando homens e raptando raparigas, de modo que toda a China chorava o sofrimento que a Velha Imperatriz lhe trouxera.

Clem ouviu isto sem poder indagar mais nada. Perguntava a si mesmo que teria sido feito de Fong e dos seus, se teriam partilhado do sofrimento, se teriam sido mortos por sua vez, como acontecera com a sua família. Mas nada podia saber. Depois de ter comido, foi para as docas e meteu-se no meio de alguns marinheiros e, naquele mesmo dia, conseguiu emprego de camareiro num dos navios. Quanto ao aprendiz, depois de con­templar os navios durante metade do dia e de vaguear pela cidade, regressou à sua casa.

 

Num cargueiro americano, seguiu Clem para o Ocidente. O navio trouxera munições e trigo para a China e tomara um carregamento de peles e óleos vegetais. As peles, imperfeitamente tratadas, impregnavam o navio com o seu cheiro, e Clem, atacado seguidamente de enjoo, desejava às vezes também ter morrido. Mas o desejo não durou muito. Sobre os mares cinzentos rompeu o Sol, os ventos amainaram, acalmaram-se as vagas. Então, não comendo devorando na cozinha com os trinta estranhos homens que compunham a tripulação, quis viver para alcançar a granja.

Os homens conheciam a sua história. Tinham-na ouvido pri­meiro no cais, quando, ao aproximar-se de um deles, lhe pedira timidamente um emprego no navio.

-Não queremos chineses - replicara o marinheiro. -Mas eu não sou chinês.

-Não? - retrucara o marinheiro, incrédulo.

Clem apontara para os próprios olhos. - Veja, são azuis. -Lá isso, são-reconheceu o marinheiro, depois de o olhar um momento. - Eh, rapazes, alguém já viu um china de olhos azuis?

-Quando é que um china não é um china? - inquirira um marinheiro. - Ora, quando a mãe é também outra coisa.

-Ela não era! - declarara Clem com indignação. - Era uma mulher honesta, e meu pai era um homem decente. Eles eram americanos e eu também o sou.

Mas o inglês soava estranho na sua língua, depois de tantos dias em que falara sòmente chinês.

Os homens tinham-se reunido à sua volta, adiando os divertimentos que haviam planeado para as suas breves horas em terra, e escutaram com dó e espanto a sua história. Olhando ora uma ora outra daquelas caras rudes, viu-se a contar tudo a fim de salvar a vida. - Até as coisas que não se permitira a si mesmo lembrar, ele contou-as, e começou de novo a soluçar, tentando evitá-lo, com os punhos contra a boca.

Os homens ouviam e olhavam uns para os outros e um cor­pulento marinheiro tomara a cabeça de Clem entre as mãos.

-Bem, isto são águas passadas. Nós acreditamos em ti. E vens connosco, ainda que seja preciso viajar escondido. Mas o velho não é mau. Ele dar-te-á serviço a bordo.

Tinham-no levado à presença de um capitão de rosto magro e curtido e fizeram-lhe contar novamente a história, e assim fora empregado como camareiro. Tivera longas conversações com o capitão.

-Creio que, depois disto, nunca mais hás-de querer voltar para uma terra infiel.

-Não sei - replicou Clem. Tinha misturado whisky com soda, que colocara em frente do capitão. - Assim devia eu pensar, mas acontece que Mr. Fong me salvou a vida. E todos se mostraram bons comigo nos dias em que andei viajando. Também não posso esquecer a velha avó.

Não, jamais os poderia esquecer. À noite, no seu duro e estreito beliche sacudido pelas ondas, lembrava-se dos longos dias em que atravessara a terra chinesa, ao lado da velha. O Verão tinha amadurecido os campos e a longa sombra dos sorgos verdes, por cima das suas cabeças, dava-lhes bom trigo. Liu Grande também fora bondoso. Seria fácil falar à polícia local num menino estrangeiro e receber assim uma recompensa. Liu Grande era bastante pobre para saber o valor do dinheiro, e Clem era um estrangeiro. Ninguém daria pela sua falta se ele morresse, mas Liu Grande não o havia traído. Espanto e gratidão ante a bondade dos homens e mulheres comuns enchiam de fé o coração de Clem, não a fé de seu pai, mas uma nova fé, uma fé que o prendia à terra.

Os marinheiros também eram bons, embora fossem rudes e de uma ignorância como jamais vira. Eram grosseiros, bêbedos sempre que podiam, lúbricos em actos e palavras, fáceis de irritar, sempre prontos para a briga. Considerava-os metade homens, inacabados, ignorantes. Não sabiam o que faziam.

A gente da sua terra seria toda igual àquela? Não tinha ninguém por quem a julgasse, jamais conhecera gente da sua espécie, a não ser o pai, que sentia vagamente ser um homem de género particular. Fazia bem lembrar a delicadeza dos chineses.

Ali no navio, embora soubesse que os homens eram seus amigos, por qualquer coisa, ou por coisa nenhuma, excepto quando um homem estava de mau humor por ter bebido demasiadamente em terra, podiam a cada momento puxar-lhe as orelhas, dar-lhe um tabefe, ou derrubá-lo com um soco. Viu que era inútil enco­lerizar-se, pois imediatamente o homem desafiava-o alegremente para a luta, e ele não se podia medir com nenhum deles, pequeno e delgado como era. Um dia queixou-se ao capitão, mas foi só uma vez.

-Pensas que te vou defender? - indagara o capitão. -Não, senhor - respondeu Clem-,mas talvez dizendo-lhes que me deixem em paz...

-Eles têm-te raiva?

-Não, senhor. Creio que não. É uma simples brincadeira, talvez...

-Então aguenta-te - respondeu o capitão.

Mas aquela longa viagem por mar fez bem a Clem. Um infindável rugir de ordens soava-lhe aos ouvidos. Tinha de obede­cer a todos aqueles homens. Duas vezes o navio parou para ser abastecido, uma vez no Japão, outra nas Ilhas Havaianas, mas ele não desceu a terra. Para além da doca, contemplava estranhas paisagens e gentes desconhecidas e via montanhas altas contra o Céu. À noite, ajudava os marinheiros bêbedos a recolherem-se, cambaleando sob o peso dos corpos apoiados em seus ombros, sentindo o seu hálito empestado. Repugnava-lhe a grosseria daque­les homens, mas ainda assim compadecia-se deles. Nada tinham que os tornasse melhores. Odiavam o mar, temiam-no, amaldi­çoavam-no, e continuavam a viver no mar, pois não sabiam fazer outra coisa. Durante uma tempestade encheram-se de pânico. Clem sentia-se velho a seu lado, velho como um pai, e às vezes como um pai ajudava-os, tirando-lhes os sapatos, quando adorme­ciam antes de poder despir-se, trazendo-lhes o café ao amanhe­cer quando estavam muito aturdidos para poder entrar de quarto. Em compensação mostravam-se bons com ele, meio envergonha­dos porque sabiam que não passava de um garoto, e, no entanto, desorientados com ele. Clem continuava a ser um estranho para eles, arredio até mesmo quando os atendia. Em Clem, a piedade evitava a censura, e a sua piedade tornava-os muita vez silenciosos quando Clem se aproximava deles. Mas ele ignorava isso. Dentro de si, sentia apenas uma crescente solidão e ansiava pelo fim da viagem, para que afinal pudesse conhecer aqueles que eram como ele.

A viagem por fim terminou e um dia desembarcou numa terra que era a sua e na qual, entretanto, se sentia ainda estrangeiro. A tripulação fez uma colecta em seu favor, e esse gesto jamais o esqueceria. Significava que poderia viajar para Leste em caminho de ferro, em vez de palmilhar milhas e milhas, como o fizera na China. Lá não se havia importado, porque conhecia o povo e tinha a velha a seu lado, mas ali, onde não sabia como era a gente, nem a comida, seria muito diferente.

Assim, embora os marinheiros fossem daquela feição, eram bons, também. No primeiro dia que desembarcaram em S. Fran­cisco, foram juntos a uma loja e compraram um fato para Clem. Ficava-lhe muito grande, mas ele enrolou os punhos das mangas e as bainhas das calças. Compraram-lhe duas camisas, uma gravata vermelha, um chapéu, um par de sapatos, três pares de meias e uma mala de papelão. Conduziram-no depois até à estação, onde lhe compraram uma passagem para Pittsburgh. Não havia lá muito dinheiro, pois não queriam que ele gastasse os dólares que lhe tinham dado, e um deles empenhara um anel de ouro que havia comprado em Singapura. Bateram-lhe nas costas, abraça­ram-no, deram-lhe conselhos.

-Não fales com ninguém, estás a ouvir, Clem? -Especialmente com mulheres.

-Ah! Ele ainda é muito pequeno para mulheres.

-Se conhecesses as mulheres como eu as conheço... Não lhes fales, Clem!

-Manda-nos um postal de vez em quando, Clem. -Não jogues às cartas, Clem!

O comboio partiu e ele ficou a acenar-lhes com o seu chapéu novo, até que os perdeu de vista. Agora estava outra vez sòzinho, correndo num comboio através do seu próprio país. Tinha um assento para si, fronteiro ao de um homem de roupa cinzenta e face vermelha, que dormia a maior parte do tempo e lhe sorria vagamente cada vez que acordava. «Não fales com ninguém no comboio», haviam-lhe dito os marinheiros, «esses tipos de terra podem surripiar-te o dinheiro». Mantinha-se silencioso e a sua carteira estava no bolso interior do casaco, onde a podia sentir contra as costelas cada vez que respirava profundamente. Quando necessitava de dinheiro para gastar em comida, ia à retrete e ali, solitário, tirava um dólar de cada vez, guardando o troco no bolso traseiro, contra as costas do banco.

Hora após hora, olhava constantemente pela janela, contem­plando uma terra que não conseguia compreender. Parecia-lhe deserta. Onde estava essa gente? As montanhas eram mais altas do que poderia imaginar, os desertos mais vastos e mais desolados, o seu vazio mais aterrador. Para seu espanto, muitas vezes, nas estações, via homens brancos fazendo trabalho de «coolies», e, na orla dos desertos, homens e mulheres mais esfarrapados, mais pobres, embora brancos, do que quaisquer outros que ele vira na China. Onde estava a terra de leite e mel, como seu pai costumava chamar à sua terra natal?

Uma noite, enquanto dormia sentado no seu banco, pene­traram em verdes planícies. Quando despertou, ao amanhecer, viu-se num outro país. Campos verdes e largas estradas, e, nas granjas, os grandes celeiros e as habitações maciças e limpas encantavam-lhe os olhos. Era a Pensilvânia, sem dúvida!

 

Muito antes de Clem ter iniciado a sua viagem, William havia chegado à América. O alvo navio inglês ancorou em Van­couver, e Mrs. Lane, animada e experiente, aturdiu os polidos funcionários da alfândega canadense e conseguiu os melhores lugares no comboio que os levou, através do Canadá, até Montreal, onde fizeram baldeação para Nova York.

Era uma viagem amena, e William saboreava-a com tran­quila dignidade. Mantinha-se afastado da mãe e das irmãs, ficando a maior parte do tempo na cabina de observação, onde, por detrás de uma revista, escutava a conversa dos homens. Não houve dificuldade em Montreal, e em Nova York a mãe levou-os para o Murray Hill, onde William conseguiu um quarto só para si, porque era quase um homem. O tecto era alto e as grandes janelas tinham cortinas de veludo vermelho, seguras por argolas de cobre. O luxo do quarto de dormir e da casa de banho agradou­-lhe. Com que então aquilo era a América! Era muito melhor do que pensava.

Comeram numa sala de jantar onde se erguiam chafarizes e cantavam canários, o que também lhe agradou.

-Pensei no melhor - disse-lhe a mãe. - Além disso, meu pai e minha mãe sempre paravam aqui quando vinham à cidade.

A mãe conservou-o consigo em Nova York por uma semana, enquanto lhe preparava a ida para o colégio. Quanto a Henrieta e Ruth, mandou-as para a casa de seus pais em Old Harbour. Não o levou logo ao escritório da Mission Board. Em vez disso, percorreu as melhores lojas, a pedir para ver roupas para rapaz. Quando encontrava coisa que lhe agradava, William tinha de ver se lhe servia. Mas não comprou nada, limitando-se a tomar nota de roupas e preços.

Com essas notas num caderno, foi, na manhã do quarto dia, aos escritórios da Missão, onde foi recebida com tanta deferência que foi um verdadeiro bálsamo para o orgulho de William.

-Ah, Mrs. Lane - disse um funcionário de faces rosadas e cabelos brancos -estávamos à sua espera. Recebemos um tele­grama do Dr. Lane. Em que lhe podemos ser úteis, minha senhora?

-Tenho umas compras a fazer para a entrada de meu filho em Harvard - disse Mrs. Lane. A sua voz e o seu ar eram igual­mente seguros.

O nédio e idoso funcionário, ele próprio ministro aposen­tado, pareceu indeciso. - Temos contratos especiais com lojas de preço módico que nos concedem dez por cento de desconto.

Mrs. Lane interrompeu-o, sem mostrar interesse pelas lojas de preço módico. - Desejo falar imediatamente com o tesoureiro.

-Pois não, Mrs. Lane! Por aqui, tenha a bondade - disse o homem de cabelos brancos.

-Fica aqui, William - ordenou Mrs. Lane.

Enquanto William esperava, sua mãe teve uma longa con­ferência com o tesoureiro da Missão, que o deixou aparentemente ofuscado e indubitàvelmente silencioso. William ficara na sala de leitura, porque sua mãe desejava, como dizia, lidar sôzinha com as finanças. Andara de um lugar para o outro, lendo impacientemente os folhetos que se achavam ali. Eram religiosos e cheios de esperançosos relatórios de hospitais, escolas, orfanatos e igrejas, coisas de que estava farto e refarto. Queria afastar-se de tudo o que conhecera antes. Quando no Outono entrasse para o colégio, não diria a ninguém quem era o seu pai, nem que ele mesmo viera da China.

-Bem - disse Mrs. Lane, quando surgiu da outra sala - já arranjei tudo. Agora sim, poderás ir para o colégio.

Segurava a longa saia com uma das mãos e disse por cima do ombro para o pequeno tesoureiro da missão:

-Obrigada, Mr. Emmons, o senhor foi muito prestante.

Mr. Emmons quebrou o seu silêncio. - A senhora compreende, Mrs. Lane, que não fiz nenhuma promessa? Quero dizer... tenho de discutir antes com a junta estas requisições um tanto desusadas... trajos para a noite, por exemplo...

-Estou certa de que hão-de compreender que meu filho merece uma especial consideração, depois de tudo o que passámos - disse Mrs. Lane, na sua voz clara e cortante. -Vamos, William, ainda temos de tomar o comboio do meio-dia.

Ele acompanhou-a, mantendo-se empertigado e sem dirigir palavra ao mesquinho pequeno tesoureiro.

 

Quando chegaram à casa do avô em Old Harbour, ficou satisfeito ao ver como ela era grande. De estilo antigo, e bastante necessitada de pintura, ficava num terreno vasto, embora um tanto descuidado.

-Estou a ver que meu pai não conserva as coisas como antiga­mente-comentou sua mãe. Tinham tomado um carro de aluguer na estação e agora desembarcavam. Ela estendeu-lhe a bolsa: -Paga um dólar ao homem, William.

-É preciso aparar a relva-continuou ela. -Suponho que meu pai não pode ter sempre um jardineiro, hoje que está apo­sentado.

O carro deu uma volta e William olhou para as malas que o homem colocara no chão. - É melhor pegarmos no que pudermos - disse a mãe com algum embaraço. - Não sei quantos criados meu pai terá agora. Costumávamos ter um caseiro e três criadas.

Ergueu duas malas e William, muito contra a sua vontade, segurou a outra e acompanhou-a até a casa. A porta estava aberta e, ao entrar, encontraram Henrieta e Ruth, de roupão de banho, e um velho senhor, desleixadamente vestido, que ele reconheceu como seu avô.

Mrs. Lane curvou-se sobre ele. - Bem, pai, aqui estou de novo.

-Estás um pouco mais velha - disse ele erguendo os olhos para a filha.

Mr. Vandervent já não tinha imponência. Era um homen­zinho barrigudo, de aspecto bonacheirão, que parecia tímido ante o seu alto neto.

-Como vais, William? - perguntou, estendendo a pequena mão rechonchuda.

William apertou-a friamente. - Muito bem, senhor - respon­deu com correcção. -Espero que o senhor também esteja bem.

-Assim, assim - disse Mr. Vandervent. - O mar, na verdade, não me agrada, mas a tua avó gosta.

-O que nós passámos... -começou Mrs. Lane.

Foi interrompida por um alto brado. Uma corpulenta mulher de avental irrompeu de uma porta.

-Helen, meu anjo!

Era a sua mãe. Abraçaram-se e beijaram-se. - Eu estava justamente a bater um de meus bolos de chocolate, pensando que William talvez... agora só temos duas criadas, Helen... Como! És tu mesmo, William? Não me digam! Não é o retrato de teu pai, Robert? O teu bisavô era um belo homem, William!

Henrieta desaparecera e, pela janela, William viu-a cami­nhando ao longo da praia. Ruth parava ora num pé ora noutro.

-William, vai vestir a tua roupa de banho. O mar está maravilhoso.

Ele apanhou o pretexto.

-Posso ir, mãe?

-Vai - disse-lhe bondosamente a avó. - Tens bastante tempo antes da ceia.

Ceia! A palavra deu-lhe um calafrio na espinha. Ouvira-a entre os missionários mais vulgares, os Adventistas do Sétimo Dia, os Baptistas Primitivos, os Pentecostes... Na escola inglesa a refeição da noite era sempre chamada jantar e, como na sua própria casa era assim, nunca lhe ocorrera que pudesse ser ali de outro modo.

Subia vagarosamente a escada quando foi detido pela voz da mãe. - Olha, William, já que vais subir, bem podias levar algumas das malas.

Ele parou, não podendo acreditar no que ouvia, e olhou para a mãe. Ela ria, mas ele adivinhou embaraço nos cinzentos olhos de aço que ela conservava afastados dos seus. - Podes muito bem compreender que estás na América, filho - disse ela. - Terás de trabalhar um pouco aqui.

Ele ficou ainda parado um instante; depois, com apaixonada energia, voltou-se, desceu correndo as escadas, apanhou as malas e subiu de novo. Lançou um olhar à balaustrada para ver se alguém estava a olhar para ele. Não estava ninguém. Sua mãe falava acerca do cerco, e tinham-no esquecido.

 

Ninguém dissera a Clem que telegrafasse para o avô, e ele sentia relutância em gastar o dinheiro que trazia. Quando afinal chegou a Canterville, ninguém veio ao seu encontro, mas também já contava com isso, naturalmente. Carregando com a mala, aproximou-se de um homem gordo que olhava para o comboio e coçava a cabeça.

-Pode dizer-me onde mora Mr. Charles Miller? - indagou Clem.

O homem parou em meio de um bocejo. - Nunca ouvi falar nele.

-Mora numa granja - explicou Clem.

-Siga então por esse caminho - disse o homem, fazendo um gesto com o queixo na direcção do Sul. -Muito obrigado - disse Clem.

O homem pareceu surpreso, mas não disse nada e Clem começou a caminhar. Aqueles dias passados no mar tinham-lhe tornado os pés delicados, embora já uma vez tivessem sido rijos, das longas caminhadas nas duras estradas chinesas. Mas os seus músculos ainda estavam fortes. O calor não era nada, comparado com o da China, e o ar era suave, com certa fragrância agreste. Não viu ninguém depois de ter deixado a pequena cidade ferroviária, e achava isso estranho. Não havia gente ali? Ocorreu-lhe que era quase meio-dia e que deveriam estar a comer. Mesmo assim, onde estavam as aldeias? Até onde podia a vista alcançar, não divisava povoação nenhuma. Os campos estendiam-se em ondas de verde vivo contra um Sol de azul compacto. Viu com surpresa que estavam semeados de milho. A gente de ali só comia milho? Após uma hora sentiu-se cansado e com fome, e desejaria ter parado para comer alguma coisa. Na sua excitação, cinco maçarocas não lhe haviam parecido nada. Ao chegar à margem de um riacho, bebeu água e descansou, e, enquanto estava ali sentado, chegou uma carroça puxada por dois cavalos altos como camelos.

Guiava-os um homem, sentado num banco da carroça. - Olá, camarada-gritou ele-, não quer uma boleia?

Clem estava cauteloso. Porque haveria um estranho de lhe oferecer boleia? Quem sabe se aquele tipo não seria um bandido? -Não, muito obrigado - respondeu.

O homem parou a carroça. -Você parece estrangeiro - disse.

Clem não replicou. O barbeiro do navio raspara-lhe a cabeça para o livrar do cabelo pintado, e ele constrangia-se com a sua cabeça pelada.

-Aonde vai? -perguntou o homem.

-A granja de Mr. Charles Miller- respondeu Clem.

O homem fitou-o de olhos arregalados, com o queixo caído. Era um indivíduo sujo, de camisa empapada de suor e calças de algodão azul. Pela abertura da camisa desabotoada, Clem via-lhe o peito coberto de pêlos repulsivamente vermelhos.

-O velho Charley Miller morreu - disse o homem.

A luz do Sol cintilava na paisagem com a agudeza de pontas de punhal a saltar das bordas das folhas, do ápice das lâminas das ervas e das extremidades dos varões das cercas. Os olhos de Clem turvaram-se e a debilidade tomou conta dos seus joelhos.

-Quando foi que ele morreu? - perguntou, sentindo a boca cheia de pó.

-Há uns dois anos.

O homem preparou-se para contar a história. Cuspiu na estrada uma saliva grossa e pardacenta e empurrou para trás o chapéu de palha rasgado.

-Para falar verdade, o velho enforcou-se no seu celeiro. Desiludido, aí está. Há dez anos que andava à espera de um lugar prometido pelos republicanos, e quando estes foram para o governo deram-lhe o cargo de. xerife. Logo no primeiro dia tinha que tirar uma granja das mãos de alguém. Uma hipoteca que o dono não podia pagar. O velho Charley era muito compassivo, tanto que não teve coragem de fazer aquilo. Enforcou-se na véspera... Foi assim.

O homem sacudiu a cabeça e suspirou.

-Era incapaz de fazer mal a uma mosca, o velho Charley. Vivia sòzinho. Tinha um filho não sei onde, e que nunca voltou para casa.

-O filho dele era meu pai. - As palavras escaparam dos lábios de Clem como um grito.

O homem arregalou os olhos, com a saliva escura a escorrer­-lhe pelo queixo.

-Não diga!

Clem fez que sim.

-Também morreu. Foi por isso que vim procurar meu avô. Mas se não tenho ninguém... acho... acho que não sei o que hei-de fazer.

O homem mostrou-se bastante bondoso.

-Suba cá para cima, meu filho, porque vou levá-lo para a granja do seu avô. Mora gente lá. Pode ser que o ajudem.

Não lhe ocorrendo outra coisa que fazer, Clem obedeceu. Ergueu a mala e deu-a ao homem, depois, pondo o pé no eixo da carroça, trepou para o assento. Ali ficou sentado, sob o Sol quente, com a mala entre os joelhos; o homem guiou em silêncio por duas milhas e fê-lo descer diante de um portão sem pintura, aberto numa cerca arruinada de madeira que se perdia entre as ervas altas. A carroça afastou-se e Clem ficou a olhar a pequena e sólida casa de pedra.

Era aquele o lugar com que sonhara desde pequeno. No próprio pátio as ervas eram altas, desordenadas. Um enorme plátano inclinava-se sobre a casa. Viu debaixo da árvore algumas crianças esfarrapadas. Eram dois rapazes e duas meninas. Os rapa­zes tinham mais ou menos a mesma idade que ele; as meninas eram mais novas, ou, pelo menos, menores.

Estavam a comer pão seco, arrancando nacos com os dentes. Quando o viram, esconderam o pão nas mãos, conservando-as atrás das costas.

-Que queres tu aqui? - perguntou o maior dos rapazes, com voz áspera. Tinha um rosto magro e sardento, e os cabelos crescidos desciam-lhe até o pescoço.

-Quem mora aqui? -perguntou Clem.

-Pop e Mom Berger - disse uma das meninas, que recomeçou a mastigar o seu pão: - É melhor ires-te embora, senão eles vão atiçar os cães.

-Vocês são filhos deles? - perguntou Clem. Aonde havia de ir, num país desconhecido que, entretanto, era o seu?

Foi o menino magro que respondeu. -Não, nós somos crianças do Auxílio.

Clem olhou-os sem compreender. - Quer dizer que... o nome de vocês é Auxílio?

Eles entreolharam-se, surpreendidos com tanta estupidez. -Crianças do Auxílio-repetiu a menina. -Que quer dizer com isso? - perguntou Clem.

-Crianças do Auxílio. Crianças que não têm ninguém. Clem fitou-os, e o seu coração confrangeu-se. Também ele não tinha ninguém. Seria, então, uma criança do Auxílio? Antes que pudesse responder a essa aterradora pergunta, um homem baixo e robusto saiu pela porta aberta da casa e gritou

-Eh, rapazes! Voltem para o trabalho.

As crianças correram para o fundo da casa e o homem ficou a olhar para Clem por sobre as ervas pisadas. -De onde vens? -perguntou.

-Pensei que meu avô, Charles Miller, estava aqui - disse Clem.

-Há dois anos que ele se foi - tornou o homem. - Eu comprei isto e fiquei com a hipoteca. Nunca ouvi dizer que ele tinha um neto.

-Decerto meu pai não lhe escrevia. Nós vivíamos muito longe.

-Para Oeste?

-Sim.

-A tua gente ainda vive lá?

-Morreram todos. Foi por isso que eu voltei.

-Que eu saiba, não existe nenhum parente teu por aqui, Ia voltar para a casa quando pareceu que lhe ocorria uma ideia.

-Que idade tens? - perguntou.

-Quinze - respondeu Clem.

-Pouco crescido - resmungou o homem. - Bom, é melhor entrares. Nós estávamos mesmo a pensar que outro rapaz do Auxílio nos seria útil. O trabalho está a tornar-se pesado.

Fez um gesto com a cabeça.

-Entra.

Clem pegou na mala. Não tinha outro lugar para onde ir. Acompanhou o homem ao interior da casa.

-Vou dar parte ao Auxílio quando a mulher aparecer - ­disse o homem.

 

William Lane caminhava solitário ao longo da praia. Tinha de ficar sòzinho a maior parte do tempo, pois não encontrava rapazes da sua idade e não tolerava a companhia das irmãs. Ocasionalmente ia nadar com Ruth, mas sòmente quando a praia estava deserta. Supusera naturalmente que a praia era privada, visto ficar defronte da casa do seu avô e, no dia da sua chegada, quando fora nadar com Ruth, ficara chocado ao ver apenas cinquenta pessoas passeando na margem ou a nadar.

-Como é que o Avô deixa que toda essa gente se utilize da nossa praia? -perguntara ele a Ruth'

Antes que a irmã lhe pudesse responder, ouviu a odiosa gargalhada de Henrieta. Vinha a nadar do mar, com os seus longos cabelos soltos sobre os ombros. -Ninguém tem praias particulares aqui, seu estúpido - disse ela rudemente.

Rute viera em sua defesa, como de costume.

-Como é que William pode saber isso, se acaba de chegar? -É bom então que aprenda já - retorquiu Henrieta, voltando para o mar.

Agora naturalmente ele sabia a verdade. A praia pertencia a toda a gente. Qualquer pessoa podia chegar ali. Eram todos americanos, bem o sabia, embora fossem tão diferentes e vulgares que o faziam sentir-se a alma mais solitária do Mundo. Suspirava pelos seus colegas ingleses, ainda que estivesse afastado deles para sempre, porque não queria tornar a vê-los, para não ter de lhes confessar que a América era exactamente como eles diziam: uma terra cheia de gente vulgar.

Ergueu a cabeça com um resoluto e arrogante gesto que era quase inconsciente, mas não de todo, pois o tomara do capitão da equipa de «cricket» do ano anterior, um rapagão alto e loiro, cujo pai era sir Gregory Scott, cônsul-geral britânico. Ronald Scott era o que havia de mais esplêndido e intemerato. Por que não, se tinha tudo na vida?

Afinal, pensava William, a casa do seu avô era melhor do que algumas das outras casas da praia e tinha duas criadas. Sentiu-se um pouco melhor quando descobriu que a maioria das outras casas não tinha criados, se bem que na China as mulheres fossem unicamente amas de crianças. As duas criadas eram velhas e não conheciam as suas obrigações. Na primeira noite, deixara os sapatos do lado de fora da porta do quarto e na manhã seguinte ainda lá estavam, mas não engraxados.

-Quem é que engraxa os sapatos nesta casa? - perguntara à mãe.

Ela dirigira-lhe um curioso sorriso. - Nós mesmos - disse brandamente e sem explicações. Essa era outra coisa que o tornava solitário. Em Pequim, sempre podia contar com a mãe, mas ali nunca sabia com quem ela estava. Ficava do seu lado quando estavam sòzinhos, mas diante das outras pessoas não era assim. Quando deixara o chapéu e a capa no vestíbulo para a criada os recolher, sua mãe apanhara-os e fora pendurá-los no cabide. A avó mostrara-se severa. -William, não deixes tua mãe fazer as coisas em teu lugar!

-Oh, não tem importância - apressou-se a dizer sua mãe.

-Estás a estragar o menino, Helen - replicara a avó.

-Daqui a poucas semanas ele vai para o colégio, e então terá de se arranjar sòzinho. - Fora essa a fraca resposta que sua mãe tinha encontrado. Ele olhara altivamente para ambas e não dissera coisa alguma.

O dia, hoje, era límpido e frio como um dia de junho em Pequim, e o mar estava muito azul. Ele saíra de casa após o almoço e, vendo a praia cheia de gente, afastara-se para a outra parte de Old Harbour, a parte melhor. Não levara muitos dias para des­cobrir que era ali onde realmente vivia a gente rica. Grandes casas assentes em vastos relvados defrontavam largas e brancas praias quase desertas. Agora ia ali quase todos os dias, muito orgulhoso para fingir que pertencia àquele meio, mas ainda assim suspirando por saber o que faria ante um encontro ocasional.

Naquelas primeiras horas da tarde não se avistava ninguém. O Sol era forte, embora o ar estivesse fresco, e todos se achavam, supunha ele, no interior das suas grandes casas. Ia caminhando ao pé de um barranco e subitamente resolveu galgá-lo. A ascensão não era difícil. Mal a havia iniciado quando viu uma escada de madeira e foi tentado a utilizá-la. Seria degradante se o surpreendessem a penetrar em propriedade alheia, mas a sua curiosidade era grande. Resolveu a questão não usando os degraus e subindo pela encosta até ao relvado. Também ali se viu sôzinho. Por um quarto de milha o terreno descia na direcção de uma colina, onde, meio oculta entre árvores, divisou uma vasta residência. A sua fantasia começou a trabalhar. Se seu avô morasse ali e ele pertencesse àquele meio, como lhe seria fácil orgulhar-se da sua terra!

Deitou-se de barriga no relvado, ocultando a face nas mãos. O Sol batia-lhe nas costas e ele sentia-se sufocado de desespero. Ansiava que passasse o Verão para deixar a família e ficar sôzinho no colégio. Mas como poderia ele ter êxito lá, visto que o avô não parecia ter a intenção de o ajudar com algum dinheiro? A mãe tinha indagado abertamente de seus pais se não poderiam auxiliá-lo, de modo que pudesse consagrar todo o tempo aos estudos, e o avô respondera: - Deixa o rapaz arranjar-se como puder. Será bom para ele.

A mãe havia-lhe contado isso com curiosa hesitação. - Supo­nho que de certo modo será bom para ti - disse ela pensativamente. -Mas, por outro lado, creio que não seria. Aqui o trabalho classifica a gente, como na China. Desejaria mandar-te para Groton.

-E porque não manda? -perguntou ele àsperamente.

-O dinheiro... - disse ela simplesmente. -Apenas o dinheiro. Tudo vem dar nisso.

-O avô não tem dinheiro?

-Parece que tem apenas o necessário para si mesmo.

Depois sua mãe acrescentou, numa de suas inexplicáveis mudanças : -Porque digo isso? Ele está a sustentar-nos a todos nós. Quatro bocas. Semana após semana. Acho que é alguma coisa.

William desejaria agora chorar, se não fosse demasiado altivo. Continuava deitado imóvel, ao Sol, com o corpo quente e o coração frio. O seu desengano tornava-se insuportável. De tudo o que tinha visto na sua pátria, nada era como ele esperava, nada, excepto aquele lugar onde grandes mansões defrontavam o mar, do alto das suas colinas verdes, mas nada daquilo lhe pertencia.

Eis senão quando ouviu uma voz

-Que fazes aqui, rapaz?

Ergueu a cabeça e viu um velho senhor apoiado a uma ben­gala. Um grande chapéu de pano castanho caía-lhe para a testa e usava um amplo casacão da mesma cor. A sua face era também escura, contrastando com o branco da barba e bigodes.

-Invadindo terreno alheio, receio eu, meu senhor.

William ergueu-se e manteve-se de pé. Procedia com a sua melhor maneira britânica, inspirada pelo reitor de Chefoo. - Não pude resistir à tentação de subir o barranco para ver o que havia aqui. Depois fiquei cansado e quis repousar um pouco.

-Gostas do que estás a ver?

- Muito!

Sentiu algo de aprovativo no ar do velho senhor e obrigou o seu olhar cinzento a encontrar-se com o duro olhar azul que o fitava. Depois sorriu, um leve e cauteloso sorriso.

O velho senhor afinal respondeu, rindo

-Pareces inglês!

-Não, senhor, não sou. Mas acabo de chegar da China. O velho senhor pareceu interessado. -China? Ah! De que parte?

-De Pequim, senhor.

-Houve barulho por lá...

-Sim, senhor. Foi por isso que nós viemos todos... isto é, excepto meu pai... ele está no cerco.

O velho senhor sentou-se cuidadosamente num banco de pedra.

-É o diabo todos aqueles americanos encurralados lá! Os chineses precisam de tomar uma boa lição, tanto mais que sempre fomos decentes com eles... a política de Porta Aberta e assim por diante. Que faz teu pai em Pequim?

Era a pergunta que ele receava. Pensou por um momento em mentir, mas desistiu da ideia. -Espero que não ache isso estranho, senhor. É missionário... episcopal.

Queria explicar, mas não o conseguiu, que ser «episcopal» significa afinal de contas uma aristocracia cristã.

Desviou os olhos para se esquivar ao inevitável olhar de desgosto. Para espanto seu, o senhor mostrou-se cordial.

-Um missionário? Muito interessante! Nós somos cristãos­-cientistas. Como se chama ele?

-Lane. William Lane.

Estava tão desconcertado com a aprovação como o ficaria com a desaprovação. Antes que tivesse tempo de se refazer, o velho senhor disse numa voz aguda e bondosa: - Então vamos chegando até casa. Minha mulher há-de gostar de te ver. Podes falar-lhe acerca de teu pai. Ela interessa-se pelos trabalhos no estrangeiro. Eu também, aliás.

Seguiu à frente de William, arquejando um pouco quando subiam o declive para a casa. Atrás dele, William caminhava graciosamente, quase perdido na sua excitação. Ia entrar naquela casa, toda fulgurante em sua branca beleza!

-Tenho um filho - dizia Mr. Cameron. -Não é tão forte como desejaríamos, e estamos aqui a prepará-lo para os exames de admissão em Harvard.

-Também vou para Harvard - disse William.

-Então Jeremias gostará de te falar.

Mr. Cameron parou diante de um pórtico branco e William foi obrigado também a fazê-lo, embora os seus pés o impelissem para a entrada. Os agudos olhos azuis de Mr. Cameron percorriam o mar e o céu e fixaram-se no horizonte.

-Não há tempestade à vista - murmurou.

Voltou-se abruptamente e entrou, pela porta aberta, num espaçoso vestíbulo, seguido de um corredor que atravessava a casa para se abrir de novo sobre jardins floridos.

-Não sei se está alguém em casa - murmurou de novo Mr. Cameron. Tocou uma campainha, aparecendo então um criado de uniforme, que lhe apanhou o casaco e o chapéu, lançou um rápido olhar a William e logo olhou para outro lado.

-Onde está Mrs. Cameron?

-No roseiral, senhor.

-Vá avisá-la de que trouxe alguém para a visitar. Jere­mias está com ela?

-Sim, senhor.

- Perfeitamente.

O homem dirigiu-se silenciosamente para o fim do corredor e Mr. Cameron disse a William:

-Nos jardins está sempre quente.

Seguiu adiante e William acompanhou-o. Os seus olhos con­servavam-se erguidos e vislumbrou grandes salas frescas mobi­ladas de azul claro e cor-de-rosa. Cortinas cinzentas pendiam das janelas e havia vasos com flores. Ali estavam os seus sonhos. Ergueu a cabeça e sorriu. Se tais sonhos pudessem realizar-se, tê-los-ia algum dia para si mesmo.

A quentura do Sol sobre fragrantes flores impregnou o ar quando alcançaram as portas abertas. Sabia muito bem, pelo jardim da casa da missão em Pequim, que sòmente os jardineiros é que conseguiam a perfeição do que via agora. Canteiros tão belos como tapetes florais estendiam-se à sua frente. Um caminho de tijolos claros levava a um caramanchão, a um quarto de milha adiante, e o próprio caramanchão erguia os seus pilares de entre rosas. O criado emergiu lá de dentro e esperou respeitosamente enquanto Mr. Cameron se aproximava.

-Mrs. Cameron está aqui. Servirei chá dentro de meia hora, se quiser.

-Muito bem - replicou Mr. Cameron displicentemente. Penetraram na latada, e William viu uma elegante e bela mulher, cujos cabelos já começavam a branquear, e um rapazito.

Estava sentada junto a uma mesa, enchendo de rosas um grande açafate.

-Este rapaz é William Lane, minha querida - explicou Mr. Cameron. - Achei-o deitado no alto do barranco e diz que acaba de chegar da China.

-Ali! Sim? - exclamou Mrs. Cameron. -Que interessante! -Ergueu uns grandes e suaves olhos azuis para o rosto de William.

-Sim, Mrs. Cameron, e estimo que isso lhe interesse.

-Este é Jeremias - apresentou Mr. Cameron. Os dois rapazes apertaram-se as mãos.

Mr. Cameron sentou-se. - Tenho uma filha, também. Onde está ela, querida?

-Candace? -Mrs. Cameron estava de novo ocupada com as rosas. - Foi à cidade comprar qualquer coisa. Pedi-lhe que esperasse, mas bem sabes como ela é.

Mr. Cameron não deu resposta. Olhou para o filho. - Bem, Jeremias, William vai também para Harvard. Coincidência, hem? Vocês devem travar relações.

Jeremias sorriu. A sua boca, descaída nos cantos, era suave e um tanto débil. - Eu estimaria... Mas a China! Não a achou apaixonante? Sente-se. Eu, se pudesse, levantava-me.

William sentou-se. -Não me parece uma coisa muito extraor­dinária, porque sempre vivi lá.

-E na América, não acha nada estranho? -Não aqui - disse William.

-Os chineses _gostam de flores, suponho... - disse Mrs. Cameron.

William reflectiu. -Na verdade não frequentei muito as casas dos chineses - respondeu. - Cresci num dos quarteirões murados dos estrangeiros, e minha mãe tinha medo que eu apanhasse alguma doença. Mas tínhamos crisântemos e lembro-me dos vasos de lírios que o nosso jardineiro costumava trazer antes do Ano Novo chinês.

Sentiu que estava a faltar um pouco à verdade e o seu ansioso instinto obrigou-o à franqueza. -Creio que não sei grande coisa a respeito dos chineses, mas a gente não pensa muito quando está a crescer. Lá, a gente comum é um tanto suja, acho; e os outros, que estão agora fartos dos ocidentais, não queriam mis­turar-se connosco. Havia até perigo nisso... A Velha Imperatriz não favorecia as aproximações.

-Uma velha estúpida, pelo que ouvi dizer - exclamou de repente Mr. Cameron. - Tentava paralisar o comércio normal!

-Estimo que seus pais se tenham salvo - suspirou Mrs. Came­ron. - Foi horrível o que li nos jornais! Tão chocante! Como se o que nós estávamos afazer não fosse para seu bem!

William foi impedido de replicar ao ouvir uma clara voz juvenil.

Uma linda jovem de cabelos louros vinha caminhando na sua direcção. Estava toda de branco e segurava uma raqueta de ténis a que estavam atados sapatos brancos. À entrada do cara­manchão parou, com o Sol a bater-lhe e formando um nimbo em torno das suas encantadoras faces rosadas. Parecia-se com Jeremias e tinha a mesma boca suave, mas os lábios eram cheios e vermelhos.

-Olá! - disse ela em voz baixa.

-Entra - disse Jeremias. - Apresento-te William Lane. Wil­liam, esta é a minha irmã Candy.

Ela cumprimentou com a cabeça e perguntou: - Joga ténis? -Sim, mas não tenho os meus apetrechos aqui. - Venha comigo, é o que não nos falta.

-Candace querida... talvez ele não queira... - começou Mrs. Cameron.

-Com todo o prazer - disse William.

Ergueu-se. Na verdade jogava ténis muito bem.

-Volte - disse Jeremias, com o seu sorriso melancólico.

-Volte - disse calorosamente Mrs. Cameron.

Mr. Cameron estava silencioso. Reclinado na almofada da cadeira, tinha fechado os olhos e adormecera.

Ao lado da jovem, William mantinha-se hirto e em silêncio. O seu instinto dizia-lhe que ela estava acostumada a muita con­versa e galanteios. A seu ver, todas as americanas eram mimadas e petulantes. Até as criadas da casa do seu avô o irritavam com a sua independência. Na China uma amah não era uma mulher... era apenas uma criada.

Espero que você não se importe com o chão de cimento, - disse Candace, enquanto lhe dava sapatos de ténis e uma raqueta que tirara de um armário do vestíbulo. -Os nossos campos de ténis são terrivelmente antiquados, mas meu pai não os quer modificar. Gostaria de um relvado, mas isso não é nada fácil na praia. Meu pai, se quisesse, poderia fazer isso... mas não quer...

-Não, não me importo - disse William.

-Que idade tem você? - indagou Candace, fitando o seu belo perfil.

-Dezassete.

-E eu, dezasseis.

-Está numa Universidade?

-Não. Estou na escola por um ano, e depois serei apresen­tada à sociedade.

Ele tinha as mais vagas noções do que significava isso para uma jovem, mas, agora que sabia que era um ano mais velho do que ela, sentia-se mais à vontade. - Em Nova York?

-Naturalmente... onde então?

-Pensei que talvez em Londres...

-Não, meu pai é terrivelmente americano. Devo ser apre­sentada na Corte de St. James, mais tarde. O antigo sócio de meu pai é embaixador americano lá.

-Conheço uma porção de ingleses na China. -Sim?

-Não gosto deles. São muito arrogantes, como se fossem donos do país. Os seus navios mercantes navegam pelas águas internas, e os seus navios de guerra, também... Se não fôssemos nós, teriam feito uma colónia de toda a China.

-Sim? Mas eles não fazem muito bem essas coisas?

-Não têm o direito de abocanhar tudo - respondeu William secamente.

Candace reflectiu um pouco. - Suponho que não, embora nunca tenha pensado sobre essas coisas. Temos estado muito na Inglaterra... Minha mãe, Jeremias e eu. Meu pai não tem tempo.

-Que faz o seu pai?

-Está nos Armazéns, e em Wall Street, o que significa que está em tudo.

Estavam agora nos campos de ténis, dois rectângulos divididos por redes de arame. Em redor havia cadeiras e grandes guarda­-sóis. Mas por ali não se via ninguém.

-Está muito calor para jogar, por isso é que não há nin­guém aqui - disse Candace displicentemente. -Daqui a duas horas estará repleto.

-Eu é que não posso ficar... - disse William ràpidamente... -Porquê?

-Com roupa de praia e uma jaqueta?

-Não importa. Nós todos tomamos banho ao pôr-do-sol. Há dança à noite. Gosta de dançar?

-Sim.

Ele dançava mal, nunca tivera lições, e resolveu falar à sua mãe acerca disso. Antes de ir para Harvard, devia tomar algumas lições.

Estavam a jogar agora, e ele viu que dentro de poucos minu­tos a poderia vencer, não fàcilmente, mas certamente. Ela jogava bem para uma jovem, com o seu vulto branco a voar pelo campo oposto ao dele, embora atirasse a bola descuidadamente.

-Não sei como é que você pode rebater a bola ficando parado! -gritou-lhe ela afinal com alguma irritação.

-Realmente não estou parado - retorquiu. - Aprendi a não correr atrás da bola. O Sol era quente na China.

-Aqui também.

Ela largou a raqueta ao fim de uma hora e veio até à rede apertar-lhe formalmente as mãos.

-Muito bem. Por hoje basta. Você joga bem. Tenho de ir mudar de roupa. Vai chegar gente e estou encharcada. Pode deixar os sapatos e a raqueta aqui.

Ela não lhe pediu que ficasse para o chá, e ele retirou-se, profundamente magoado. - Adeus, então. É melhor que eu vá andando.

Ela acenou-lhe com a raqueta, sorriu e deixou que ele encon­trasse por si mesmo o seu caminho. Não devia ter jogado tão magistralmente, pensou William. Para seu próprio bem, seria melhor que a deixasse ganhar. As raparigas americanas são mima­das. Depois ergueu a cabeça. Sempre jogaria da melhor maneira e não se curvaria a ninguém.

Seguiu pelo vasto relvado, desceu os degraus e foi para casa, com a jaqueta no braço e o Sol a bater-lhe nas costas. A água brincava na areia e ele caminhava sobre as ondas rendilhadas. Entrou na casa do avô, com os pés cheios de areia e água. Millie, a mais modesta das criadas, apareceu com uma vassoura.

-Oh! Esses pés... - exclamou. -Justamente quando acabo de lavar! Olha, Willum, eu...

Estavam sozinhos e ele voltou-se para a criada com a fúria de um tigre novo. - Que pretende chamando-me Willum? --res­mungou por entre os alvos dentes arreganhados. --Como se atreve? Você só tem modos de... selvagem!

Deixou-a abruptamente, sem se voltar para lhe ver a face transtornada pela mágoa e pela surpresa das suas palavras cho­cantes. No meio da escada ouviu abrir-se uma porta.

Pouco depois, a mãe batia-lhe à porta do quarto.

-Entre - disse ele negligentemente. Lavara-se e vestira roupa limpa, e sentara-se à sua mesa para escrever alguns versos.

-William, que disseste à Millie?

Ele girou na cadeira. - O que ela me disse era o que a senhora devia perguntar. Chamou-me Willum!

-Ora, William... Não fiques tão raivoso... Ela vem do Maine e todos...

-Não me importa de onde ela vem. Pode chamar-me Master William.

-Ela não chamaria ninguém dessa forma... -Então não precisava de me falar.

-William, não é fácil viver com todos nós nesta casa. As criadas não estão acostumadas com crianças. -Eu não sou uma criança.

-Eu sei, mas...

-Mãe, eu simplesmente não quero ser insultado pelos criados.

-Eu sei, querido, mas eles não são nossos criados. -Mas não deixam de ser criados.

A mãe sentou-se numa cadeira de balanço. -De certo modo, é relativamente mais fácil viver em Pequim, admito-o. Mas nós somos americanos, William, e deves acostumar-te a isso.

-Jamais me acostumarei a uma coisa dessas.

Através da aflição da mãe, William notava a admiração. Ela estava orgulhosa do seu génio, orgulhosa das suas maneiras, orgulhosa do seu orgulho. Embalou-se desanimadamente por alguns minutos e depois levantou-se. - Vou dar alguma coisa à Millie...

Saiu do quarto e ele ficou de novo a sós. Não estava a escrever versos para Candace. Não se sentia atraído por ela. Tentava escrever sobre a alma de um homem que descobria a sua própria terra, mas não pôde satisfazer o seu desejo pela pompa verbal. A sua poesia não era lá muito boa, e rasgou as folhas e atirou-as para o cesto dos papéis.

 

A granja de Pensilvânia era tão afastada do resto do Mundo como se estivesse numa ilha perdida no mar. Ninguém chegava e os moradores nunca saíam. As cinco crianças, a cujo número Clem agora pertencia, formavam um grupo humano, sólido, por­que eram terrivelmente solitários e à mercê das duas pessoas grandes, um homem e uma mulher, que eram cruéis.

Para Clem, a lembrança dos pais mortos e das duas meninas que tinham sido suas irmãs tornava-se vaga e distante. Haviam sido assassinados por homens que nunca tinha visto, uma coisa tão inexplicável como um tufão nos mares do Sul. Mas ali, naquela encantadora terra, a crueldade era comum e constante. Não sabia como lhe escapar. O homem e a mulher, como ele sempre os chamava em pensamento, pois a sua língua recusava-se a cha­mar-lhes Pop e Mom, eram bestiais na sua crueldade, ralhando com as crianças e batendo-lhes por um nada. Assim, quando a vaca malhada tivera um novilho em vez de uma bezerra, Pop Berger empurrara Tim, berrando

-Sai da minha vista!

Tim recuou para escapar ao punho erguido do homem, mas este alcançou-o, e ele caiu contra o chão de pedra do estábulo.

Clem viu tudo e não disse nada. Os seus olhos observadores, o seu silencio, a estranheza da sua inexplicável presença, tudo isso fazia com que os Berger o temessem. Ainda não lhe tinham batido. A sua habilidade no trabalho, a sua inteligência superior a qual­quer outro, não lhes dava pretexto, e, embora não necessitassem de pretexto com as outras crianças, com ele ainda procuravam algum.

Erguia-se de madrugada e ia lavar-se no riacho atrás da casa, e depois ia ordenhar as vacas. Não conseguia tomar leite, por mais fome que tivesse, e estava sempre com fome. O quente cheiro animal do leite embrulhava-lhe o estômago, o contacto das tetas nas suas mãos enojava-o. Mas ele juntava a mínima sobra e aprendeu a tirar a última gota de uma vaca, o bastante para que se animasse a dar em segredo uma caneca cheia a cada uma das crianças. Escondia a caneca atrás de uma pedra solta do muro do estábulo. As crianças aprenderam a aproximar-se uma por uma logo que ele começava a ordenhar, antes que Pop se levan­tasse. A caneca de leite fresco sustentava os seus delgados estô­magos até que chegasse a hora das papas de milho. E o dia continuava em seu árduo labor, com o pensamento de todos eles sempre a girar em torno da comida.

Clem, até então pálido e franzino, começou subitamente a desenvolver-se. Os seus ossos ampliavam-se e ele vivia obcecado com a fome. Não roubaria àqueles estranhos, entre os quais viera cair, e vivia esfomeado. Sonhava com comida, fumegantes tigelas de arroz, peixe defumado, verduras. Na China, Deus dera-lhes alimento e haviam comido. Mas a sua fome não o levava a rezar a Deus para conseguir comida, como seu pai o fizera. Seu pai recorria a outra gente, que o atendia. Ali, não havia gente assim, que ele conhecesse. Não lhe ocorria que Deus pudesse manifes­tar-se através de gente como os Berger.

Causavam-lhe estupefacção aquelas criaturas entre as quais se achava. Quem eram eles? Onde estavam aqueles com quem eram relacionados? Ninguém se aproximava da granja, nem amigos nem parentes. Na China, todas as pessoas tinham parentes, um clã a que pertenciam. Aqueles, o homem e a mulher maus, e as desoladas crianças não pertenciam a coisa alguma. Clem não comunicava com eles, eles não lhe diziam nada, não falavam uns com os outros, a não ser as poucas palavras referentes ao trabalho ou à alimenta­ção. O silêncio naquela casa era o dos animais. Nada suavizava a irremediável dureza dos dias, não havia nenhuma mudança, excepto a mudança do dia e da noite.

Mas enquanto passavam os dias, Clem sentia que devia escapar. Aquilo era uma rede em que caíra, uma armadilha de que não suspeitara. Devia simplesmente deixar aquilo. O que quer que houvesse do outro lado não poderia ser pior. As pobres crianças jamais tinham sonhado em fugir, ao que parecia, mas não tinham sonhos de espécie alguma, como veio a descobrir. As suas esperanças não iam além de roubar alguma coisa para comer quando Mom Berger estava distraído, ou parar de trabalhar quando Pop estava de costas. Eram ignorantes e, como ele próprio verificou, igualmente depravados. Quando descobriu essa depravação, entristeceu-se. Seus pais tinham sido gente de coração puro, e deles herdara o amor da pureza. Embora tivesse visto uma simples naturalidade no comportamento dos homens em Pequim, este era puro. O nascimento era puro e as relações entre homem e mulher eram decentes. Não havia nada a esse respeito que ele não soubesse, como conhecia a própria vida. Mas o que encontrou ali foi inde­cência, o furtivo contacto de rapazes e garotas que eram animais.

Pop sorriu ao descobri-lo, mas Mom Berger pôs-se a berrar pala­vrões.

Ela era uma mulher robusta, com o pescoço da largura da cabeça, a cintura da largura dos ombros, os tornozelos da largura das pernas. Usava um informe vestido sem cinto, como se fosse uma grande fronha. A não ser às vezes, quando ia à cidade com Pop, andava sempre descalça. Clem nunca tinha visto até ali os pés de uma mulher. As mulheres chinesas sempre usavam sapatos nos seus pèzinhos enfaixados e sua mãe usava sapatos e meias. Na China, mostrar os pés era uma desonra para uma mulher. E assim devia ser, pensava Clem, evitando olhar para as pesadas patas com que se movia Mom Berger.

Nos primeiros dias, tinha vivido em completo silencio junto das crianças. Não havia tempo para falar, por mais bem disposto que estivesse. Pop fê-lo subir a um quarto sujo onde havia uma grande cama, uma cadeira quebrada e alguns cabides. Dos cabides pendiam umas pobres roupas esfarrapadas. Pop coçou a cabeça, olhando o quarto: - Bem, essa cama não aguenta - resmungou. -­Precisamos de arranjar qualquer coisa para ti. Vou falar com Mom.

Desceu a estreita escada de caracol e deixou Clem sòzinho. Aquele era, pois, o seu regresso. Encaminhou-se para uma das janelas, profundamente embutida na pesada parede de pedra, e olhou para a bela paisagem lá fora. Longas e baixas colinas estendiam-se até ao horizonte, com luxuriantes campos entre elas. Nunca tinha visto aquelas árvores, mas vira muito poucas árvores: a China Setentrional era despida de vegetação, excepto alguns salgueiros e tamareiras na aldeia. Aquela era uma terra feita para sonhos, mas ele bem sabia que os sonhos que se trouxessem para aquela casa logo morreriam. Tentava imaginar seu pai, quando menino, talvez naquele mesmo quarto, ouvindo a chamada de Deus para um país remoto. Oh! Se seu pai não tivesse ouvido a voz de Deus, ele, Clem, bem poderia ter nascido ali e aquela casa seria sua. Agora nada adiantava pensar nisso.

Ouviu pesados passos na escada e a grossa voz de Mom Berger a chamá-lo.

-Vem cá ajudar-me, garoto!

Foi até à escada e viu uma vermelha face a fitá-lo por sobre uma braçada de suja roupa de cama e um velho colchão.

-Eu vou dormir nisto? -perguntou.

-Que mais queres? Ainda te deves dar por muito feliz! Arranja-te!

Ela jogou com tudo aquilo ao chão e desceu novamente a escada. Ele apanhou o colchão e estendeu-o, procurando o ponto mais limpo para dormir. Deveria dormir vestido até que pudesse escapar-se, pois naturalmente ir-se-ia embora no dia seguinte ou no outro, logo que descobrisse o nome de uma cidade ou de uma granja decente.

Mas não o fez. A miséria das cinco crianças como que o prendeu. Não tinha família e, num estranho raciocínio, achou que elas estavam a seu cargo. Iria, sim, mas sômente quando as houvesse ajudado, ou encontrado os seus parentes, ou algum bom homem a quem contasse a sua situação. A sua perambulação, a sua solidão, haviam-lhe dado confiança em si próprio. Ele próprio não tinha medo, mas se as deixasse como estavam, jamais as pode­ria esquecer.

No silêncio daquele primeiro dia, arranjou o seu leito e pôs a mala de cadeado à sua cabeceira. Colocou na mala a roupa boa e vestiu o macaco azul. Depois desceu as escadas.

A grande cozinha fazia as vezes de sala de estar. Mom Berger cozinhava qualquer coisa numa pesada panela de ferro, que mexia com uma longa colher.

-Pop diz que deves ir para aquele campo - disse ela, ace­nando com a cabeça para a porta aberta. -Estão a cortar feno.

Ele saiu para um campo, onde viu todos a trabalhar à dis­tância. O Sol estava quente, mas não como o de Pequim, e parecia­-lhe apenas agradável. O cheiro da relva e das árvores chegava-lhe às narinas, rica e verde fragrância da terra. O que era feno? Nunca o tinha visto. Quando chegou perto, viu que era apenas capim, como o que os chineses cortavam nas colinas para com­bustível.

Esperou um momento até que Pop Berger o avistou. -Eh, vai ajudar Tim, ali!

Clem encaminhou-se para o rapazinho de cabelos amarelos. -Você tem de me indicar como é. Eu nunca cortei feno.

-De onde vens tu? - replicou Tim, sem esperar resposta. -Não estás a ver?!

Clem não respondeu. Viu as fortes garras de Tim empunha­rem um grande forcado e amontoar feno sobre uma carroça puxada por dois grandes cavalos. Parecia fácil, mas era pesado. No entanto, continuou a trabalhar activamente até ao pôr-do-sol.

E assim daquele dia em diante a sua vida continuou.. O tra­balho mudava de um para outro local, mas as horas eram as mesmas, de Sol a Sol, para todos eles. As raparigas trabalhavam em casa, com a mulher.

Descobriu que os rapazes esperavam uma visita, cada vez mais próxima, e a que chamavam Auxílio. O que era esse Auxílio, ele não podia adivinhar. Interrogou Tim, o mais velho e mais esperto dos rapazes. Com as raparigas não falava. Sentia nelas um terror tão profundo, uma timidez tão grande que achava que sairiam a correr se as chamasse pelos seus nomes, Mamie ou Jen.

-Auxílio? - repetiu Tim estupidamente. - Auxílio é... Auxí­lio. É uma mulher.

-Porque a chamam Auxílio?

Tim pensou um minuto.

-Não sei.

-Ela auxilia vocês?

-Não. Ela conversa com Pop e Mom. - Que diz ela?

-Pergunta coisas...

-Que coisas?

-Quer saber se trabalhamos bem... se os rapazes moram separados das raparigas... coisas assim. -Tim sorriu. Eles adu­lam a velha.

-Porque não lhe contam?

-Contar o quê?

-Que vocês não têm comida suficiente... que eles batem em vocês...

-Nós somos apenas crianças do Auxílio. -Que é isso? - recomeçou Clem. -Não temos parentes.

-Quer dizer que vocês não sabem onde estão os seus parentes? Tim sacudiu a cabeça.

-Estão mortos? -perguntou Clem.

-Bump nunca teve nenhum - disse o outro, ao avistar Bump. Bump era o segundo garoto, que trazia agora o carrinho de mão para o encher de estrume.

-Bump, não tens nenhum parente? - perguntou Clem. -Como?

-Tios e tias e primos.

-Nunca tive - disse Bump. Estava a colocar no carrinho o estrume que Clem amontoara.

-Nunca ninguém veio visitar vocês?

-Ninguém sabe que estamos aqui, a não ser que o Auxílio o conte.

-Então porque é que vocês todos querem que essa mulher venha?

-Porque Mom nos dá um bom almoço - explicou Tim.

Clem largou o forcado. - Se vocês disserem à mulher do Auxílio como são tratados, talvez ela os coloque noutra parte.

Houve um silêncio. Depois Tim falou:

-Nós estamos acostumados aqui. E aqui sempre estivemos juntos. Talvez Bump seja mandado para outro lugar, e nós estamos acostumados com Mamie e Jen, também. Elas têm medo de se ir embora. Eu prometi que nunca diria nada.

Clem percebeu naquilo uma profunda sensibilidade. Aquelas crianças órfãs e sem lar tinham constituído uma espécie de família por sua própria conta. Dentro da cruel estreiteza das circuns­tâncias, haviam assumido uns para com os outros a rude intimi­dade do parentesco. Tim, por ser o mais velho, era uma espécie de pai, e os outros dependiam dele. Mamie, a mais velha das meninas, tão sem vida, tão quieta, era no entanto uma espécie de mãe. Enquanto passavam os dias, percebia-se que era a forma como se haviam arranjado, mesmo na depravação. O homem e a mulher estavam fora da sua vida, tão indesejáveis como demó­nios. Sofriam sob a sua opressão, e ficavam em silêncio, e assim o podiam fazer porque tinham no seu grupo quem fazia as vezes de pai e mãe, de irmão e irmã. Com a família que tinham impro­visado, haviam ultrapassado a sua miséria e preferiam qualquer coisa à separação.

Clem não fez mais perguntas e o seu coração desistiu de julgar. Alguma coisa parecida com o amor começou a crescer dentro de si para com aquelas crianças. Espantava-se como poderia haver-se encontrado com elas e perguntava a si mesmo se o aceitariam como um dos seus. Mantivera-se afastado por causa da porcaria delas, porque sempre andavam com piolhos e feridas. Tencionara deixá-las o mais cedo que pudesse. Mas, à medida que as semanas passavam, compreendia que não as poderia abandonar... por enquanto. Eram tudo o que ele possuía.

Reflectia sobre a solidão delas. Na China todos se conser­vavam no seio das suas famílias, não havia crianças solitárias, excepto, talvez, nas épocas de fome ou de guerra, em que todos podiam morrer. Se os pais morressem de alguma catástrofe, havia sempre tios e tias, e, se estes morressem, havia então os primos em primeiro grau, e, se estes morriam, havia primos-segundos, terceiros, e assim por diante, todos do mesmo nome, e as crianças ficavam abrigadas e conservadas dentro do círculo do nome de família. Mas aquelas crianças não tinham nome de família. Ele havia perguntado a Tim, e este respondera, após o seu habitual momento de reflexão: - Está escrito no livro da Auxílio.

-Mas qual é o teu sobrenome - insistira Clem.

-Eu... esqueci-me... - disse Tim afinal.

À medida que se aproximava o dia em que deveria chegar a Auxílio, Mom Berger tornava-se mais irritável. - Quero esta casa bem limpa - disse ela certa manhã na cozinha, enquanto as crianças estavam a comer o seu pão e a beber o café fraco e sem açúcar. - A Auxílio estará aqui na terça-feira. Vocês todos devem andar bem limpos. Roupas e tudo.

Desde aquele dia não houve paz na casa ou no estábulo. Até o estábulo tiveram de limpar.

-Essa mulher do Auxílio - resmungou Pop - nunca se dá por satisfeita. Até vem ver as vacas. Vou dizer-lhe que necessito de mais ajuda. Para conservar isto limpo, tenho de arranjar outro rapaz.

-Quantas vezes vem ela? -indagou Clem.

-Pela lei, deve vir de três em três meses. Mas só vem uma ou duas vezes por ano. Mas sempre nos avisa antes de chegar. Recebi um cartão seu há coisa de um mês.

No dia anterior, eles tomaram banho um após outro numa tina, com sabão feito em casa.

-Não estás muito sujo, Clem - disse Tim com alguma admi­ração, olhando para o esguio corpo do outro.

-Lavo-me no riacho - replicou Clem.

-E quando chegar o Inverno?

-Usarei gelo... se ainda estiver aqui.

A estas palavras todos eles lançaram um olhar para a porta. Tim sussurrou, com os olhos ainda pregados no trinco: - Mas tu não vais deixar-nos, pois não?

Bump parou de esfregar as suas míseras costelas. - Clem, tu não vais deixar-me!

-Eu não pertenço a isto - respondeu Clem simplesmente.

-Tu pertence-nos - replicou Tim.

-Ah! Como? -Clem compreendeu que se manifestara um cálido sentimento na profunda desolação do silêncio.

Trémulo e nu, Tim mergulhara numa das suas longas pausas. Os ossos dos seus ombros eram cavernosos e, entre os pontiagudos ilíacos, a barriga era uma cavidade. Desmaiados pêlos de puber­dade brotavam-lhe no peito e na pélvis. - Também não tens ninguém.

-É verdade -reconheceu Clem.

Tim fez um grande esforço de imaginação. -Sabes uma coisa? -O que é?

-Se ficássemos aqui todos, vivendo a nossa vida, poderias ser o chefe... como se fosses o nosso pai.

Os punhos da mulher bateram à porta. - Acabem com isso, rapazes. As raparigas vão lavar-se.

Todos se apressaram, menos Clem. Despejou sobre o corpo um balde de água fria, limpando-se assim da água em que os outros se tinham lavado.

-Talvez fique - disse ele a si mesmo. - Talvez seja melhor que eu fique.

À noite, na cama mais limpa em que havia dormido desde que chegara, pôs-se a pensar na sua estranha família. Recordou os corpos nus dos rapazes como os vira naquele dia, as costelas como arcos de barris, os espinhaços salientes como cordas, os pescoços arqueados, as pernas finas. A comida era a coisa mais preciosa do Mundo. Sem comida, ninguém podia ser humano. Eles não poderiam pensar, nem sentir, nem crescer, ou, se cresces­sem, desenvolver-se-iam como coisas míseras, doentias. O alimento deveria ser gratuito, de modo que quando alguém estivesse com fome, era só caminhar até não muito longe e comer. O alimento deveria ser tão gratuito como o ar que a gente respira.

Pôs-se a pensar em si mesmo já crescido e como homem feito, rico e independente. Quando ficasse rico, procuraria um meio de fazer com que não faltasse alimento a ninguém. - Eu não quero viver na dependência de Deus, como meu pai fazia - pensou.

 

A Auxílio chegou justamente antes do meio-dia. Tinham estado à sua espera durante toda uma infindável manhã. O celeiro estava limpo, a casa igualmente. Tudo o que não pudera ser lavado fora escondido até que ela se fosse embora. As raparigas estavam com vestidos quase novos que Clem nunca as vira usar até ali. Tinham calçado sapatos e meias pela primeira vez. Pop tinha envergado a sua melhor roupa, mas tirara o casaco, para que não parecesse que não trabalhava.

-Vista-o quando se sentar à mesa - ordenou Mom.

-Não precisa de me ensinar as boas maneiras - retorquiu Pop.

Ela mantinha-se sentada todo o tempo porque também estava de sapatos e meias, e os pés doíam-lhe. As raparigas tinham de lhe levar as coisas de que precisava. Vestia uma roupa cinzenta de algodão que estava quase limpa. Clem pusera o trajo que havia comprado no alfaiate. Sentaram-se na cozinha, aspi­rando o cheiro quente da comida, com os estômagos a doer de fome.

-Lá vem ela! -gritou Pop de repente.

Todos olharam pela porta aberta. Clem viu uma mulherzinha magra e de preto descendo de uma aranha que ela mesma guiava. Amarrou o cavalo ao portão e penetrou no pátio, carregando uma sovada bolsa preta. Pop apressou-se a ir ao seu encontro e Mom ergueu-se, apesar de ter os pés doridos.

-Ora veja! - gritou ela. - Na verdade não sabíamos quando a senhora chegaria e acabamos de terminar o nosso trabalho. íamos almoçar agora mesmo. Teria preparado um frango, se sou­besse que a senhora vinha. Temos apenas porco, verduras e batatas.

-óptimo! - exclamou a mulher. Tinha uma voz aguda, mas não sem bondade, e estava parada à soleira da porta a olhar para eles. - Bem, como vão todos?

-Muito bem - disse Mom Berger. - As crianças parecem um pouco fracas por causa de um resfriado de Verão. Gostam de brincar descalças no arroio e repugna-me proibir-lhes esse divertimento. A senhora bem sabe o que são crianças. Venha sentar-se, enquanto acabo de pôr a mesa.

-Foi um Verão muito quente - suspirou a Auxílio. Sentou-se e tirou o seu velho chapéu preto. - Pelo que vejo, eles estão a crescer...

-É mais um motivo da sua magreza - observou Mom Berger. -Procuro alimentá-los bem, mas eles não engordam mais do que eu. O seu apetite é bom, também. A senhora vai ver como eles comem. Mas não os invejo.

-Certamente que não - disse a Auxílio distraidamente. Ela estava a mexer nos papéis que trazia na sua bolsa. -Acho melhor começar já a inspecção. Tenho de partir logo depois do almoço. A zona sob a minha fiscalização é demasiado grande para uma só pessoa. Vejamos, a senhora tem cinco crianças. Mas como?! O livro assinala quatro!

-É Clem, um novo rapaz - começou Pop apressadamente. -Apareceu um dia por aqui e eu fiquei com ele, porque não tinha para onde ir. Já lhe ia dizer isso.

A Auxílio ficou súbitamente carrancuda.

-Rapaz, de onde vieste? - perguntou ela.

-Do Oeste - respondeu Clem. Estava de pé, como as outras crianças. Não tinha dito a nenhum deles que viera da China. Não sabiam da existência da China e não adiantava explicar-lhes coisa alguma.

-Não podes ter chegado assim sem mais nem menos - ­declarou a Auxílio. A indignação fuzilava nos seus pequeninos olhos negros. -Devias ter ficado onde estavas. O Estado não pode encarregar-se dos casos de caridade dos outros Estados. Isso vai causar-me muita maçada.

-Pensava que meu avô ainda estivesse vivo - disse Clem. -Ele morava aqui.

-O velho Charley Miller - explicou Pop. - Enforcou-se quando ia ser xerife.

A Auxílio olhou para Clem -És neto dele?

-Sim.

-Diz «sim, senhora»-emendou a mulher àsperamente. -Onde estão os teus papéis?

-Não tenho nenhum.

-Ele é mesmo neto de Charley - apressou-se Pop a dizer. - ­É a cara do velho, e os olhos são da mesma cor. Garanto-o por ele.

-Não sei o que hei-de fazer - suspirou a Auxílio. Tinha uma comprida face pálida e uma pequenina boca enrugada. Por detrás dos óculos, os seus olhos ficaram sem expressão, depois de passado o breve assomo de cólera. Não tinha aliança no dedo. Nunca se casara e estava farta dos filhos dos outros.

-Porque não marca cinco? - sugeriu Pop. -Isso livrá-la-á de incómodos.

-Sim, eu poderia fazer isso - disse ela, pensativa. -Morreu uma das crianças da última casa que visitei. Poderia transferir o dinheiro daquele menino para este.

-Sim, desta maneira pouparia incómodos - insistiu Pop.

E assim foi feito. Clem tomou o lugar do garoto falecido.

Sentaram-se todos à mesa, onde havia uma grande travessa com carne de porco e verduras e batatas, e pratos com várias qualidades de conservas. Havia também tortas de maçã, e as crianças serviram-se do leite de uma jarra, com excepção de Clem, que só tomava água.

-Deves tomar leite, meu rapaz - disse a Auxílio. -Por isso é que é tão bom que as crianças morem no campo. -Não gosto de leite - respondeu Clem.

-Dize «senhora» - relembrou-lhe a Auxílio. - Não importa que gostes ou não. A senhora deve obrigá-lo a tomar leite, Mrs. Berger.

-Assim farei - prometeu Mom.

Não havia tempo para conversa. À mesa havia apenas tempo para comer. As crianças comeram até não poder mais.

-Compreendo o que quer dizer - observou a Auxílio. - Nessa idade, nada lhes chega.

-Faço o possível - disse Mom.

Terminado o almoço, a Auxílio ergueu-se e pôs o chapéu. -Parecem-me muito bem - disse ela. - Terei muito prazer em recomendar o nome dos senhores à directoria. Creio desnecessário ir até lá acima. Visitarei o estábulo de passagem, Mr. Berger... As crianças tem mesmo muita sorte... Estão melhor do que se estivessem em suas próprias casas... O que é que há?

Alguns murmúrios provindos de Tim fizeram-na parar à porta. Ele olhava desesperadamente para Clem.

-Tim deseja saber qual é o seu sobrenome - respondeu Clem pelo amigo.

Os olhos vazios da Auxílio iluminaram-se súbitamente e ela encaminhou-se para Clem. - Dize «senhora» quando falares comigo.

Clem não respondeu, e Pop interveio, rápido: - Eu o ensi­narei antes de a senhora voltar cá outra vez.

-Assim o espero - disse a Auxílio, cheia de indignação. Esqueceu a pergunta de Clem e dirigiu-se ràpidamente para o estábulo.

A consciência no íntimo de Clem era tão concreta e pura como um diamante. Crescera juntamente com ele e agora tinha facetas que lhe eram estranhas. Iniciada que fora pela fé demasiado simples de seu pai, ganhara um acréscimo, não de fé, mas de dúvida, mesclada de sofrimento, compaixão e amor, primeiro por seu pai, mãe e irmãs quando tinham fome, e agora, após a sua morte, compaixão pelos famintos, onde quer que os encontrasse. Ele, também, estava ali, esfomeado, na granja de seu falecido avô, mas a sua fome apenas intensificava e tornava mais pesada a sua consciência. Se estava faminto, o que não aconteceria com os outros, aquelas crianças? Pois percebia que Tim, embora mais velho e algumas polegadas mais alto do que ele, era e seria sempre apenas uma criança. Outros deveriam alimentá-lo enquanto vivesse e sempre estaria à mercê de qualquer homem de mediana inteligência. Mamie, também, era meiga e dócil, e Jen era uma rapariga medrosa, sempre a tremer dos terrores passados e com os terrores que viriam. Bump era estúpido e silencioso e seguia Clem como um cachorro. À noite, com muda obstinação, insistia em dormir ao lado de Clem.

Quem poderia saber o que ia no íntimo de cada um deles? Viviam obcecados pela fome. Não se atreviam a roubar o pão da despensa ou os restos deixados no armário, mas roubavam do cachorro. Mom amontoava os restos das panelas e os ossos numa grande tijela de latão que punha do lado de fora da porta. Um dia, quando vinha inesperadamente do celeiro, Clem encon­trou as quatro crianças à espera da comida do cão para come­rem à farta. Não se atreviam a arrebatar a comida do animal, com medo de que ele rosnasse e Mom Berger pudesse ouvir. Mas usavam de astúcia. Bump, a quem o cão era muito afeiçoado, acariciava-o em silêncio, procurando afastar a sua atenção do prato. Quando o cão erguia a cabeça e sacudia a cauda, Tim e Mamie arrebatavam mancheias dos seus restos. Ao ver os olhos de Clem fixos neles, recuaram tremendo, como se estivessem na presença de Pop Berger. Isso fez com que a sua consciência ardesse na cintilante chama que tão bem conhecia, uma chama ao mesmo tempo fria e consumidora. Não amava aquelas crianças maltra­pilhas, repugnava-lhe a sua sujidade e a sua ignorância. A lin­guagem que elas falavam parecia-lhe o indistinto grunhir com que se comunicavam os animais. Contudo, não mereciam arrebentar de fome.

Vendo-os com a comida do cão apertada nas mãos, fitando-o com os olhos esgazeados de medo, deu uma volta e regressou ao estábulo. Ali sentou-se de novo a descascar os grãos. Pop Berger dormia em cima de um monte de feno. Pensando no trabalho por fazer, Pop bocejara profundamente após o almoço.

-Acho que podes terminar perfeitamente o trabalho - ­dissera ele, enquanto se refestelava sobre o feno. Uma hora após, Clem levantara-se para ir até casa beber água. O porco e os legu­mes que haviam comido estavam muito salgados, mas agora havia esquecido a sua sede. O seu espírito ardia na decisão de fugir.

- Das trinta e seis maneiras de fugir - dissera uma vez Mr. Fong a Clem-a melhor é correr para a frente. - Era um velho ditado chinês, que, agora, aflorava ao espírito de Clem. Em muitos sentidos, Clem era mais chinês do que ele próprio suspeitava. A velha sabedoria do povo que de há muito havia aprendido o que era essencial, insinuava-se-lhe no espírito desde que começara a ter entendimento. Corajoso como era, sabia que a principal sabedoria de um verdadeiro sábio consiste em conser­var-se vivo e, portanto, alerta. Só os mortos se calam, só os mortos estão ao desamparo.

A consciência de seu pai era a sua herança, sim, e também a do seu avô. Às vezes Clem ia sôzinho ao estábulo e ficava a olhar para a viga que Pop lhe tinha mostrado um dia.

-Foi ali que ele se enforcou.

-E porque fez isso?

-Coração mole - respondera Pop em tom de acusação. Mais tarde acrescentara pormenores. -O velho usara uma corda nova que tinha comprado uns dias antes para atar um bezerro. Tinha umas esquisitas ideias de que, se entrassem homens bons para o governo, poderiam endireitar as coisas. Ele não queria o cargo de xerife, mas o chefe político disse-lhe que o deveria con­servar a bem do próprio partido. A primeira coisa que o velho tinha a fazer era executar a hipoteca daquela granja. - E Pop apontara pela porta aberta. - Pois bem, ele tinha o coração mole, como já disse. Declarou que preferia morrer. Ninguém o levou a sério. No dia seguinte encontraram-no enforcado aqui.

Clem não respondeu. Pop Berger jamais compreenderia a única resposta que ele poderia dar. Naturalmente seu avô pre­ferira a morte. Tinha sido a sua maneira de escapar a um intole­rável dever. Pensava muito em seu avô, procurando por tudo os menores sinais de um consciencioso, cuidadoso e bom ancião. Os estábulos das vacas, por exemplo, eram maiores dos que os usuais. Em cada um havia espaço suficiente para uma vaca se deitar a todo o comprimento. Pop arrepelava-se com aquele desperdício de espaço. Havia fora um bebedouro que dava para os cavalos se dessedentarem todos ao mesmo tempo; a água vinha da parede por um cano, de modo que estava sempre fresca. Na casa, o degrau entre a sala de estar e a cozinha fora retirado e transformado num suave declive. Era porque sua avó tinha ficado cega na velhice, explicara-lhe Pop Berger.

Herdeiro da consciência de seus pais, Clem não poderia ficar insensibilizado com as misérias da sua vida actual, mas sentia um constante mal-estar, um remorso por pecados de que não tinha a culpa. Tentava agora abrandar superficialmente essa inquietação ajudando as crianças a conseguir mais alimento. Não era nada fácil e, depois de alguma luta consigo mesmo, resolveu, lembrando o prato do cão, recorrer ao furto.

Depois de a mulher do Auxílio ter partido, para só voltar dali a muitos meses, um ano talvez, ficou indignado ao ver como o homem e a mulher voltavam instantâneamente à sua inconsciente crueldade. A carne foi retirada e o leite aguado. Mas não se atreveu a queixar-se. Ele, também, estava agora em poder daqueles dois, e, se se dessem conta da sua coragem, poderiam prevenir a fuga que planeara. A sua infância chinesa ensinara-lhe a nunca se descuidar, nem mesmo quando encolerizado, pois a cólera não é arma. A cólera pode dar energia ao espírito, mas sômente quando este está encouraçado e controlado. Engoliu, pois, a sua cólera e, tendo-se decidido a furtar, usou de toda a sua astúcia. Roubava tão hàbilmente a comida que o homem pensava que a mulher tinha comido alguns restos, e a mulher pensava que o homem tinha feito o mesmo. Nenhum dos dois acreditava no outro, e punham-se a discutir, enquanto as caras impassíveis dos rapazes não diziam nada. Era um consolo para Clem pensar que dentro do delgado estômago de Tim havia um bom pedaço de assado ou uma fatia de presunto e que Jen comera pão com manteiga. Apesar de ser o autor dos furtos, não guardava nada para si mesmo. À mesa tinha coragem bastante para comer mais do que os outros rapazes e, como trabalhava bem e parecia obediente, Pop dava-lhe mais do que devia. Quanto ao leite, Clem roubava-o sem necessitar de muita cautela. No campo, ocultos por uma colina, as crianças aprenderam a vir ao seu encontro entre as refeições, e ele retirava uma caneca debaixo de uma pedra e ia-a enchendo, tirando um pouco de cada vaca. Cada criança conseguia assim, duas vezes por dia, uma caneca cheia de puro leite, ainda quentinho do calor da vaca. Quando ficassem bastante fortes, fugiriam juntos. Devia ser antes da chegada do Inverno.

Ao chegar o Outono, supôs que todos iriam à escola. Tim havia-lhe dito que a lei determinava que todas as crianças deviam frequentar a escola gratuita, e até Pop tinha de obedecer à lei. Neste caso, pensava Clem, seria fácil fugir. Seria um dia, no caminho de volta, antes que a noite viesse e antes que Pop, ao ver que eles não regressavam, pudesse dar parte da sua fuga.

Mas não havia contado com a esperteza de Pop. Pop disse, um dia, no estábulo: «Não precisam de te chamar para a escola, Clem. És muito grande».

Clem ergueu a cabeça: -Quero ir para a escola. Pop soltou uma risadinha:

-Ah sim? Ninguém sabe que estás aqui.

Clem ficou em silêncio, e a olhar. Um terrível sentimento abria caminho no seu cérebro.

-Estás a ver? - disse Pop. Ele estava recostado contra um estábulo a palitar os dentes depois do almoço. - Apareceste por aqui sem mais nem menos, não foi? Pelo que vejo, não és de parte alguma. O Serviço Escolar nem ao menos sabe que existes.

-Eu lhes direi.

-Pois experimenta!

Clem não respondeu, continuando a cortar o feno, enquanto a sua mente trabalhava celere. Aquela era a razão final por que teria de se ir embora de vez. Não podia esperar mais tempo. Crescer na ignorância e na solidão era mais do que poderia supor­tar. Tinha pensado vagamente em achar alguém que o ajudasse, professores a quem pudesse contar a miséria daquelas crianças. Mas talvez Pop o tivesse previsto, também.

-Não nos animamos a contar nada ao professor - disse Mamie certa vez. -Pop disse que nos matava se contássemos. E ele quando diz que mata, mata mesmo.

-É a pura verdade - concordara Tim.

-E então-estava Pop a perguntar-lhe agora, - não lhes vais contar nada?

-Não - respondeu Clem. - Afinal de contas, eu nunca estive na escola...

Estava com o rosto voltado para o outro lado, e Pop, que apenas viu o seu corpo curvado sobre o trabalho, retirou-se para casa.

Mas Clem, cuja paciência provinha da longa resistência dos que só haviam conhecido sofrimentos, chegara súbitamente a uma decisão. Fugiria no sábado, quando o homem e a mulher fossem à cidade fazer compras no mercado. Tinha de abandonar aquela profanada casa dos seus antepassados e levar as crianças consigo, para seu próprio descanso, pois, sem ele, os outros morreriam de fome. Mais cedo ou mais tarde, cairiam doentes um por um e, então morreriam, porque já estavam meio mortos, com seus frágeis corpos a lutar por viver, mesmo quando não se achavam doentes. Aonde iria, não sabia, nem o que faria com eles. E mesmo que encontrasse trabalho, como ganhar o suficiente para os ali­mentar?

Recordava os dias em Pequim como um doce que não apre­ciara bastante para o saborear enquanto o tinha na boca. Recor­dava a aprazível loja de Mr. Fong, o agradável calor das salas do fundo, onde se sentava à mesa quadrada, leccionando Yusan. Era uma casa hospitaleira - as suas pálpebras tremiam quando pen­sava nela. Em seus próprios pais não queria ele pensar. Recor­dava-os, não já como eram quando vivos, mas sòmente como os tinha visto mortos, e esta lembrança não a podia suportar e afastava-a para tão longe que ela se tornava indistinta, apagada, nula. Nem, sequer, podia lembrar os seus rostos. O de Mrs. Fong via-o claramente, sempre enrugado de sorrisos, como quando ela lhes trazia bolos e croquetes de carne. Chegava a sonhar com aquilo.

Sem pressas, enquanto a consciência lhe ardia como uma chama, Clem ia fazendo os seus planos. No sábado, logo que o homem e a mulher partissem para a cidade, falaria com as crianças. Não se atreveria a preparar-lhes desde já o espírito porque eram muito pequenas para que se pudesse ter confiança nelas. Ajudá-las-ia a juntar e entrouxar as suas roupas. Levariam todo o alimento que houvesse em casa.

A manhã de sábado despontou límpida e fresca. Por mais odiosa que fosse ali a sua vida, Clem, no entanto, enamorara-se da terra. Acordou cedo como de costume, mesmo antes que os pesados passos do homem agitassem a estreita escada. Vestiu-se, deixou-se cair da janela para o telhado do alpendre e dali saltou para o chão. Chegando ao arroio, lavou-se numa panela que havia debaixo de uma queda de água. O leito do regato era rochoso, e escalonado de lajes tão simètricamente dispostas que afloravam sob as águas da cascata como grandes telhas chinesas. Arrancara umas vinte e colocara-as cuidadosamente no fundo do panelão do arroio e, quando o Sol atravessava as águas, como naquela manhã, as pedras refulgiam em tons de âmbar e de ouro.

O arroio ficava fora das vistas da casa, oculto por uma fila de pequenos sicómoros, filhos do velho e forte sicómoro cujas raízes desciam pela colina até ao leito das águas. Atrás daquele muro verde, Clem despiu-se e mergulhou na água, quase tão fria aquela manhã como no Inverno. Por sobre ele as colinas erguiam-se graciosamente, com as copas verdes mas salpicadas do ocasional ouro do Outono. O Céu era belo, de um azul mais suave do que os céus chineses, e muito mais variado, com as suas brancas nuvens errantes.

Mas onde, perguntava às vezes Clem a si mesmo, onde estava a gente daquela terra, e como podia ser que uma casa cheia de crianças à mercê de um homem e de uma mulher ignorantes e brutais permanecesse desconhecida e jamais procurada por quem quer que fosse? Na China, não seria possível que a casa de um velho não fosse visitada,-ou que fosse vendida após a sua morte de maneira tão sumária. Perguntara a Pop Berger uma vez por­que tinham vendido a casa e este respondera que fora para cobrir os impostos não pagos. Mas porque não foram pagos por alguns parentes? Como viera a suceder que seu velho avô houvesse ficado em tamanha solidão, ainda que seu filho estivesse tão longe? E porque, porque, e esta era a suprema interrogação, que jamais obteria resposta, porque teria seu pai deixado a sua casa e o seu velho progenitor para atravessar os mares e chegar a uma terra que jamais tinha visto, onde os habitantes falavam uma língua que lhe era estranha, e ali falar-lhes de um deus indesejado e desconhecido? Nenhuma dessas perguntas poderia ter resposta. O que Pop tinha dito era verdade. Não havia ninguém que soubesse da sua existência.

Clem saiu da panela e, com as mãos, ajudou a água a escorrer do corpo, agitando depois os braços e inclinando-se para a frente e para trás. Apesar da escassez do alimento, era forte e logo o sangue aqueceu e lhe coloriu a pele. Vestiu-se e galgou a colina em direcção à casa. Pop Berger já saíra para o estábulo, e Clem para ali se dirigiu; sem cumprimentar, tomou um pequeno mocho e um balde e começou o trabalho de ordenhar.

De princípio, acostumado com os chineses a cumprimentar quem quer que encontrasse, tentara saudar o homem, a mulher e as crianças a primeira vez que os via pela manhã. Depois desco­briu que isso apenas despertava o seu desprezo, pois pensavam que ele o fazia com alguma intenção oculta. Aprendeu a pre­servar a sua paz e trabalhar em silêncio.

Naquela manhã não havia nada da habitual balbúrdia e gritos. Pop Berger preparou a carroça cedo e começou a carregá-la com alguns sacos de trigo que pretendia vender e alguns cestos de maçãs. Deixou o trabalho de ordenhar para Clem e foi até à cozinha a fim de comer alguma coisa e vestir-se. Ali, a mulher também se apressava, comendo e vestindo-se, e dali a uma hora o casal estava pronto para partir, deixando a lavagem dos pratos e a limpeza da casa ao cuidado das duas pequenas.

-Clem! - gritou Pop Berger, do assento da carroça. - Podes retirar todo o esterco hoje mesmo. Não te esqueças das galinhas. Tim pode fazer o que tu mandares. Já lhe recomendei que te obedecesse.

-E eu deixei a comida para vocês na despensa. É o que têm para comer. Não abram mais nada! - gritou Mom.

Clem disse que sim com a cabeça, mantendo-se muito hirto, e de braços cruzados, enquanto os via partir. Admirava-se de não os odiar. Eram o que eram, não pròpriamente por culpa sua; a sua ignorância era feroz mas inocente, e a sua crueldade era fruto da ignorância. Algumas vezes já tinha visto actos de crueldade nas ruas de Pequim. Ali o povo sabia, tinham-lhe ensinado o que era Humanidade, e, quando violavam o que sabiam, o mal era imenso. Mas àqueles dois, aquele homem e aquela mulher, nunca lhes haviam ensinado coisa alguma. Agiam tão cruamente como animais. De onde tinham vindo? Pensava Clem às vezes. Seriam os outros iguais a eles? Não havia vizinhos perto e não tinha ninguém com quem os comparar.

Acabou de ordenhar as vacas e levou o leite para o porão, onde se conservaria fresco. Depois foi para a cozinha a fim de comer. Ali, como sempre acontecia quando o homem e a mulher estavam ausentes, tudo estava por fazer. A mesa estava cheia de pratos vazios. Imóveis e silenciosas, Mamie e Jen estavam senta­das ao lado, numa invencível preguiça. Tim estirara-se na velha espreguiçadeira de Pop Berger. Bump estava ainda a comer, apanhando as últimas migalhas de pão.

-Onde está a minha comida, Mamie? - perguntou Clem.

Ela fez um gesto na direcção do fogão, cuja porta ele abriu, retirando uma tigela de papas de trigo, e sentou-se à ponta da mesa.

Olhou para eles, um por um. Os olhos opacos de Tim tinham menos expressão do que os de um cão, e a sua boca, sempre aberta, mostrava uma estranha e volumosa língua, que se agitava entre os dentes. O seu corpo, comprido e esguio, verdadeira colecção de ossos mal-ajustados, tomava por si mesmo posições desajeitadas. Mamie era uma criaturinha pálida que não poderia ser lembrada para coisa alguma. Jen não poderia viver. Nela, as cordas da vida, já estavam quase mortas. A pobre nem ao menos crescia.

-Olha - disse ele a Bump-, não quero isto. Come tu.

Ele estendeu a tigela e Bump agarrou-a, indo sentar-se sobre a pilha de lenha atrás do fogão. Às vezes a mulher erguia o ati­çador e punha-o para fora dali, mas agora ele podia desfrutar sossegadamente aquele oculto cantinho.

-Escutem, todos - disse Clem, inclinando-se sobre a mesa.

E todos voltaram o rosto para ele.

-Vocês gostariam de sair daqui? - Falava clara e incisiva­mente, pois sabia que só assim o escutariam. Acostumados às vozes fortes do homem e da mulher, parecia que não ouviram mais nada.

-Para onde? - perguntou Tim, depois de uma pausa. -Não sei... para diante, para encontrar alguma coisa melhor. -Onde dormiremos? -perguntou Mamie.

-Cada um levará um cobertor, e dormiremos junto a uma meda de feno em qualquer parte, até conseguir uma casa ou alguns quartos.

-Que iremos comer? -perguntou ela.

-Eu trabalharei e conseguirei dinheiro para comprar alguma coisa. Tim também poderá trabalhar. Talvez encontres emprego nalguma casa.

Esperava uma espécie de excitação, até mesmo uma pequena alegria, mas nada houve. Continuaram a olhar para ele com os olhos ainda sonolentos. Jen não dizia nada, como se não tivesse ouvido. Parecia meio adormecida, ou talvez doente.

-Jen, estás doente? - perguntou Clem.

Ela ergueu os grandes e pálidos olhos azuis para a sua face, olhando-o não pròpriamente nos olhos, mas talvez na boca.

Meneou a cabeça e murmurou: - Muito cansada.

-Muito cansada para vir connosco... para fora.., para o Sol? Ela sacudiu novamente a cabeça.

-Se Jen não for, também não vou - disse Mamie. -Eu não vou - disse Tim.

Clem fitou-os. - Mas vocês não gostam disto aqui - insistiu ele. - Eles são uns miseráveis com vocês, porque vocês não comem o suficiente.

-Não passamos de crianças do Auxílio - disse Tim. - Se formos para qualquer outra parte, será exactamente como aqui.

-Vocês nunca mais serão meninos do Auxílio - declarou Clem.

-Sempre seremos crianças do Auxílio - repetiu Tim. - ­Quando somos do Auxílio, não podemos fazer nada.

Clem ficou súbitamente encolerizado. - Então deixá-los-ei aqui. Resolvi deixar isto e irei. Podem dizer, quando eles chegarem hoje à noite. Digam que me fui embora e que nunca mais voltarei. Eles não precisam de me procurar.

Todos o fitavam; os olhos de Jen estavam rasos de água.

-Para onde vais? -perguntou Tim com voz débil.

-Vou para o lugar de onde vim - respondeu Clem com ar despreocupado. Suspirava por voltar de qualquer maneira à casa de Mr. Fong, às familiares ruas de Pequim, que ele não sabia que amava. Isso era impossível, mas deixar aquela casa era possível. De momento, a cólera enovoava-lhe a consciência. Dava­-lhes uma oportunidade e eles não a queriam aproveitar. Dissera que se encarregaria deles, embora não fosse seu parente, e eles haviam recusado até essa restrição que ele impunha à sua própria liberdade. Dali por diante, pensaria apenas em si próprio.

Subiu as escadas e arrumou as roupas na mala. Tinha um pouco do dinheiro que sobrara da colecta que os marinheiros lhe haviam feito e que conservava sempre consigo na bolsinha de couro que lhe tinham fabricado. Essa bolsa, conservara-a atada à cinta, noite e dia, para que a mulher ou o homem não a descobrissem e ficassem com ela. Parou por um momento para resolver se levaria ou não um cobertor, depois revoltou-se com o pensamento de levar o que quer que fosse daquela casa. Nem mesmo pão levaria. Teria a liberdade de morrer de fome sem dar satisfação a ninguém.

Desceu a escada, carregando com a mala. Eles ainda estavam na cozinha, como os havia deixado. Nenhum deles se mexera. Os olhos fitaram-no quando ele entrou.

-Adeus a todos! - disse afinal, criando coragem. - Não se esqueçam de que os quis levar comigo.

Tirou o gorro que trazia enrolado no bolso e pô-lo na cabeça. -Adeus! - disse novamente.

Olharam para ele, ainda sem dizer nada, e ele, impulsionado pela cólera crescente, atravessou o pátio cheio de macegas até o pequeno portão desmantelado, por sobre o qual saltou.

O desespero conduzia-o e dava-lhe coragem, e depois a beleza da paisagem aliviou-lhe o coração. Certamente nalguma parte haveria gente boa, alguém como Mr. Fong, que o identifi­caria e lhe daria abrigo provisório. Trabalharia para pagar tudo o que recebesse, e algum dia haveria de voltar para visitar as míseras crianças que tinha deixado naquela cozinha.

Tinha andado cerca de uma milha quando ouviu passos na areia atrás de si. Parou e, voltando a cabeça, avistou Bump, que vinha correndo com dificuldade. Esperou por ele.

-Que queres, Bump? - perguntou.

Bump, ofegante, olhava para ele, pestanejando. Ainda havia em redor da sua boca vestígios da papa que tinha comido.

-Vou contigo - balbuciou.

Clem fitou-o, aborrecido de momento com mais aquele incómodo. Depois a sua consciência despertou de novo. Certa­mente que poderia levar aquela criaturinha consigo, aonde quer que fosse, como um irmão mais novo.

-Muito bem. Vamos andando.

 

PELOS meados de Agosto anunciaram os jornais o fim do cerco de Pequim, e o Dr. Lane enviou um telegrama informando que pretendia continuar no seu posto. A Corte Imperial fugira e a Velha Imperatriz chorara a sua humilhação. Nem sequer tivera tempo de se pentear, e o seu almoço, no dia da fuga, constara apenas de um ovo mal cozido.

-Em boa hora recebi este telegrama! - disse Mrs. Lane seve­ramente. - Bem, William, parece que tenho de ir para junto de teu pai. Mas poderás arranjar-te sòzinho depois de ter preparado as tuas roupas antes de partir.

William seguiu para Cambridge para os exames finais de Setembro. Tinha perdido os preparatórios, mas Mrs. Lane fora ter com o deão e apresentara um atestado com a assinatura do director do Chefoo Boy's School. Tanto falara e argumentara que o deão sentiu-se impressionado, garantindo-lhe certa condescen­dência para com o seu filho, e William foi admitido condicional­mente. Confiava ele que no decurso de quatro anos poderia cum­prir quaisquer promessas que sua mãe tivesse feito ao deão. Na ver­dade, preferia não saber tudo o que sua mãe dissera e fizera por ele. Assim não sabia, embora o suspeitasse, que o admirável acordo a que chegara com Mr. Cameron para ser companheiro de alojamento de Jeremias e, quando necessário, seu tutor, primeiro se delineara no activo cérebro de sua mãe.

Mrs. Lane, antes de voltar para a China, escolhera o fim de uma tarde de domingo para visitar os Cameron. Tornara-se, se não íntima, pelo menos amiga deles, durante o Verão, quando William ia quase todos os dias jogar ténis com Candace. Ele pediu-lhe que fosse visitar Mrs. Cameron, impondo que nenhuma das suas irmãs nem sua avó a acompanharia.

-Os Cameron são aquela classe a que pertenço. Quero que saibam que tenho uma mãe de que não preciso de me envergo­nhar. Nada mais importa.

Mrs. Lane comoveu-se. - Agradeço-te, querido.

A visita correu muito bem, e Mrs. Cameron pediu desculpas por a não poder retribuir, pois não fazia visitas no Verão. Mrs. Lane e William ficavam, no entanto, convidados para almoçar com eles. Depois da tarde passada agradàvelmente com a palestra de Mrs. Lane sobre a Velha Imperatriz e a magnificência de Pequim, ocorrera àquela irrequieta mãe que poderia então ser resolvido um problema que de há muito a vinha preocupando. A despeito de todos os seus esforços, era claro que William seria obrigado a ganhar dinheiro de alguma forma durante o curso, e ela não podia saber como. Interrogara o deão, e este sugeriu que William ser­visse à mesa e lavasse os pratos. Ela aceitou tal sugestão com grati­dão aparente, mas sabia que era inviável. William não serviria de criado nem lavaria pratos. Seria impossível obrigá-lo a isso. Lembrava-se da deliciosa tarde na grande casa à beira-mar. Era uma pena, pensava, que o herdeiro de toda aquela riqueza fosse apenas um pálido e doentio rapaz. Como William teria desfrutado aquela riqueza, como a saberia empregar bem, e sempre em forma e magnífico! Tinha reflectido profundamente durante uma semana e, por fim, resolvera fazer uma última visita aos Cameron. Escreveu uma breve carta a Mrs. Cameron, a agradecer todas as bondades de que fora alvo durante o Verão, mencionando o seu iminente regresso à China e como temia deixar seu filho ali, tão inexperiente e sem amizades, e pediu permissão para lhe ir apre­sentar as despedidas. Quando Mrs. Cameron lhe telefonou que esta­riam em casa certo domingo, para lá se dirigiu, às cinco em ponto.

O mordomo introduziu-a na sala de estar, onde Mrs. Came­ron se achava sem fazer nada, enquanto Mr. Cameron lia o Transcrip t.

-Sente-se - disse Mrs. Cameron, fazendo um gracioso gesto com a mão esquerda.

-Obrigada - replicou Mrs. Lane.

Levara ela muito tempo a reflectir sobre o seu trajo para aquela ocasião. Devia ser simples, mas não pobre. Devia denotar bom gosto e refinamento.

Conhecendo a fácil impaciência dos ricos, entrou no assunto logo que Mr. Cameron baixou o jornal para a saudar.

-Não quero interromper a sua leitura. Vim por alguns minutos para me despedir e... para outro motivo. É a respeito de William.

-Que se passa com William? - inquiriu Mr. Cameron.

-Ele sempre fez boa figura nos estudos - disse Mrs. Lane. -Aliás já esperávamos por isso. Seu pai foi diplomado summa cum laude em Harvard. Mas, o que me preocupa é outra coisa. William é tão jovem, tão solitário... Não tem ninguém que tome o lugar de seus pais. Seus avós, meu pai e minha mãe, são muito velhos e não o compreendem. Têm também a responsabilidade das meninas. Os pais de meu marido faleceram e a família disper­sou-se. Se eu pudesse ter a certeza de que William encontraria assistência da parte do senhor e de Mrs. Cameron... dada a sua amizade com Jeremias...

-Ele bem pode vir para cá - ofereceu Mrs. Cameron amàvel­mente. - Creio que há bastante lugar.

Mrs. Lane suspirou. -Obrigada, minha querida Mrs. Came­ron. Eu temia as longas férias. Meu marido diz que ele deve tra­balhar para ganhar parte do seu sustento, mas que sabe William dessas coisas?

-Não lhe fará mal trabalhar - replicou Mr. Cameron.

Mrs. Lane apressou-se em concordar. - É justamente o que diz meu marido, e eu estou certa de que o senhor e ele têm razão. Por favor, Mr. Cameron, neste primeiro Verão pelo menos, poderia o senhor ajudar a encontrar alguma coisa adequada para o meu filho, alguma coisa que não o deixe em más companhias? Ele ainda não conhece os seus próprios patrícios, os americanos.

-Está bem - disse Mr. Cameron. - Posso fazer isso. Há sempre trabalho à espera dos rapazes, quando eles querem traba­lhar. Saiba a senhora que comecei a ganhar a minha vida aos quinze anos.

Mrs. Lane abordou corajosamente a parte mais difícil da sua missão.

-Vou fazer-lhe uma pergunta realmente ousada, Mr. Carne­ron. -Acha que William poderia ser útil de algum modo a seu filho? Não poderia talvez cuidar dele, auxiliá-lo até nas suas lições? Quando... isto é só para exemplificar... quando ele esti­vesse adoentado, William poderia tomar notas na aula para ele e...

Mrs. Lane sentia-se desamparada sob o olhar duro de Mr. Ca­meron, e olhou para Mrs. Cameron à procura de auxílio. Para alegria sua, encontrou aprovação da parte da boa senhora.

-Eis uma boa ideia, Roger - disse Mrs. Cameron.

-William é um rapaz muito orgulhoso - replicou Roger.

-Não tão orgulhoso que não ajude um amigo - disse Mrs. Lane. - William é um rapaz cristão, Mr. Cameron.

Roger apertou os lábios. - Quanto espera que eu pague a seu filho?

Mrs. Lane sabia que a sua batalha estava ganha. Meneou a cabeça e cruzou as mãos no regaço. - Não me pergunte isso, por favor, Mr. Cameron. Confio no seu critério... e na sua generosi­dade. Prefiro não ter de falar em dinheiro... é tão embaraçoso... Se meu marido tivesse ficado aqui, em vez de escolher o trabalho de missionário... mas não importa! - Sorriu tristemente e mudou de assunto. Dez minutos depois de animada palestra inspirada nas últimas cartas do marido, ela levantou-se para se despedir.

Apertou a mão de Mrs. Cameron entre as suas e sorriu confiantemente: - Não imagina como me sinto tranquilizada agora a respeito de William! Deixo-o ao vosso cuidado, meus bons amigos!

Mr. e Mrs. Cameron inclinaram-se, ainda que um pouco desconcertados, ao que parecia. Depois de a porta se ter fechado, sentaram-se exactamente como estavam antes e Mr. Cameron ergueu o jornal. Nenhum deles falou durante alguns minutos, e Mrs. Cameron olhava através da janela para o jardim.

-É bom que William seja tão gentil - disse ela afinal. -Verdadeiramente não fazemos muita questão de o ter aqui. Candy diz que ele é muito esperto. Espero que continue a ser bom para Jeremias. Ás vezes penso que há algo de cruel na sua boca. As suas mãos são pequenas para a sua altura. Não notou isso? Eu sempre achei que mãos pequenas significam crueldade num homem.

Não falava muito frequentemente, mas, quando o fazia, uma pequena torrente de palavras jorrava-lhe dos lábios, como se a reserva tivesse sido temporàriamente suspensa.

Mr. Cameron escutava, ainda lendo o jornal. - Não há-de ser mau para Jeremias ter a seu lado um camarada jovem e forte para o animar.

Mrs. Cameron ficou calada por uns instantes. depois disse:

-Quanto às férias, não deves esquecer que Candace está também aqui em casa. Sendo os dois tão saudáveis, gostarão de praticar desporto juntos... E sinceramente não me agradaria que ela casasse com o filho de um missionário.

-Candy casará com quem bem lhe aprouver - disse Mr. Ca­meron. Amava a sua filha e sentia-se orgulhoso dela, embora com pessimismo. Mais cedo ou mais tarde, os rapazes acabam por trair os velhos.

-Tranquiliza- te, ela é uma menina ajuizada - continuou ele. -Esse Bryan tira-me a paciência, até nos domingos. Será a nossa perdição, no caso das Filipinas. Que sabe ele acerca daqueles estrangeiros?

Mrs. Cameron conservou-se em silêncio, e Mr. Cameron recomeçou a ler furiosamente o jornal, mastigando as pontas amareladas do bigode.

William passou fàcilmente nos exames, pelo que ficou grato às exigências do professorado inglês. Mas reconhecia que também podia agradecer à sua própria inteligência e ambição. Era-lhe intolerável não fazer bem o que resolvia fazer. Quando Mr. Came­ron lhe pediu que o fosse visitar, um dia após a partida de sua mãe para a China, apresentou-se com certa excitação interior, embora exteriormente aparentasse completa calma. A mãe dissera­-lhe, não com muita fidelidade talvez, o que Mr. Cameron lhe desejava dizer.

-Pensa que poderias ser uma espécie de tutor de Jere­mias - disse ela no último dia. - Não sejas orgulhoso, não recuses, William. Lembra-te de que a alternativa é lavar pratos ou servir à mesa na Universidade. Serás simplesmente companheiro de residência de Jeremias e terás oportunidade de morar naqueles belos apartamentos. Eu não poderia alojar-te lá de outra maneira.

Os belos alojamentos, como já descobrira, estavam naquela pequena e nobre rua chamada a Costa de Ouro. Viviam ali os filhos dos ricos como jovens príncipes em apartamentos, cada um com dois quartos separados, casa de banho privativa e uma sala de estar comum. Menos do que isso parecia impossível a William. Resolveu aceitar o que quer que Mr. Cameron oferecesse.

Ficou, pois, muito satisfeito ao ser-lhe apresentada a proposta.

-Deixo-lhe - concluiu Mr. Cameron - a escolha da melhor maneira de poder ajudar meu filho. Agora já o conhece perfeita­mente, não é verdade?

-Assim o creio - disse William, e acrescentou com toda a sinceridade: - Pelo menos, estimo-o muito mais do que aos outros rapazes que tenho conhecido.

-Muito bem - disse Mr. Cameron, com mais cordialidade do que habitualmente. - Então poderá ajudá-lo, assim o espero. Trate de o animar... isso é muito importante. Nós não acreditamos em medicamentos. Importa muito acreditar no domínio do espírito sobre a matéria.

-Assim o creio - disse William.

-Agora uma coisa - continuou Mr. Cameron. - Está bem cem dólares por mês?

-O que o senhor quiser, está bem - replicou William. Estava aturdido com a quantia, mas não queria demonstrar surpresa.

-Bem, se vir que não é suficiente, é só dizer-me. E agora outra coisa: este pequeno arranjo fica entre nós. Senão Jeremias poderia ficar constrangido... Você sabe, ele é todo democrático...

-Quer dizer o senhor que isto fica apenas entre nós dois? - insistiu William. Pensava em Candace. Não queria que ela viesse a saber que ele recebia dinheiro do seu pai.

-Apenas entre nós dois - disse Mr. Cameron. - Natural­mente minha esposa sabe por alto do que se trata, mas, se eu lhe recomendar, nada dirá a alguém. Além disso, não se interessa pelos pormenores.

-Estimo - disse William - , estimo que eu também possa esquecer esse aspecto, pois não desejaria ligar ideias de dinheiro a Jeremias.

-Compreendo, compreendo... - disse Mr. Cameron, muito satisfeito.

-Justamente ia perguntar a Jeremias se não desejaria morar comigo...

-Muito bem - disse Mr. Cameron. -Combinem tudo, e no dia primeiro de cada mês receberá um cheque.

O resultado de tudo isso foi que, quando os dois rapazes entraram para o colégio, William encontrou-se na Costa de Ouro, com um quarto próprio, que dava para uma aprazível sala de estar, do outro lado da qual se achava o quarto de Jeremias. Mrs. Came­ron acompanhou-os e passou uma semana a mobilar adequadamente os quartos. Havia até um pequeno piano de cauda para Jeremias. William, fiado no cheque mensal, gastou o dinheiro que a mãe lhe deixara, comprou alguns artigos de luxo que não conseguira convencer o impertinente tesoureiro da missão a incluir nas' suas necessidades: um belo jogo de navalhas, alguns pijamas de seda, um chambre de brocado azul e pantufas para combinar.

E assim começou William os seus quatro anos de Universi­dade. Era reservado, modesto e digno, e fazia o seu trabalho com secreta seriedade, embora com aparente displicência. Desempe­nhava estritamente as suas obrigações para com Jeremias, mos­trando-se ao mesmo tempo bondoso e firme. Sentia algumas vezes que Jeremias não gostava dele, mas não se perturbava com isso. O brilho da sua posição na escola era compensação suficiente. Entre as centenas de jovens matriculados naquele ano, William fazia-se notar. Prudentemente, não procurava por enquanto amiza­des íntimas, mas estudava cuidadosamente a Costa de Ouro. Não lhe ocorria ter amigos fora dessa brilhante zona. Marcava aqui e ali aqueles cuja amizade poderia posteriormente cultivar. Havia tempo.

Contudo, pelo Natal, aproximara-se de um camarada que o atraía mais que todos os outros, um simpático jovem que morava em Westmorly, muito descuidado para ambicionar a consideração dos professores, muito confiante em si mesmo para achar que as distinções escolares tivessem grande importância. Tinha já o seu grupo de amigos, tanto entre os veteranos como entre os calouros. Fazia excelentemente várias coisas. Cantava no clube recreativo dos calouros, remava muito bem e já estava indicado para sócio dos clubes em que William tanto desejava ingressar. Franklin Roosevelt era o homem, diria William consigo, que desejaria ter sido, de pai rico e mãe de alta posição social. Tendo tudo, o jovial e simpático estudante podia dizer o que bem lhe aprouvesse, acreditar no que bem lhe parecesse, portar-se como bem quisesse. Nas eleições daquele Outono ele era por Bryan, embora o seu pró­prio primo, Theodore Roosevelt, fosse candidato à vice-presidência, e escarnecia da Inglaterra, angariando dinheiro para os Boers. Era essa livre maneira de ser que atraíra a atenção de William. Ele não poderia ficar contra a Inglaterra, mesmo que não apro­vasse os Boers ou desaprovasse os ingleses, e admirava a facilidade com que Franklin parecia fazer ambas as coisas, sem gostar dos Boers ou desgostar dos ingleses. Por alguma razão que William não podia compreender, parecia haver tamanha exuberância naquele jovem, tão ilimitada liberdade, que ele acreditava que os pobres, os ignorantes, os miseráveis deveriam ser defendidos, sem que, no entanto, isso implicasse ódio ao opressor.

William nada sabia da África do Sul. Para provar pelo menos a si próprio que o homem que ele involuntàriamente admi­rava estava errado, começou pela primeira vez na vida a ler jornais e a perceber, ainda que obscuramente, a omnipotência da Imprensa. Até mesmo dependia deles para formar a sua própria opinião sobre a guerra. Estava convencido, pelo que lia, de que a Inglaterra tinha razão e de que os Boers não passavam de uns rústicos e ignorantes campónios. Quando expôs essa opinião, não directamente a Franklin Roosevelt, mas na sua presença, recebeu como resposta uma forte, embora cordial gargalhada. O seu opositor recusava-se a discutir. Pouco lhe importava a opinião de William.

Aquele jovem também fazia outras coisas ainda mais espan­tosas. Instigava os que residiam no Yard, nos dormitórios baratos, a organizarem-se, para vencer nas eleições o pequeno grupo que sempre alcançava a vitória.

-Ele é capaz de tudo para conseguir a popularidade - escar­neciam os da Costa de Ouro.

William ouvia muito e pouco falava. Era cauteloso no ambiente da sua própria terra natal, ainda tão nova para ele, e, inseguro e mal preparado para desempenhar o que julgava ser o seu adequado papel, rondava o jovem Roosevelt que, esse, não tinha dúvidas, conduzia-se como o príncipe de uma casa real. Fez uma tentativa de aproximação durante uma conversa no refeitório do Memorial Ha11. Roosevelt respondia sem assumir ares de superiori­dade e mostrara-se muito interessado ao saber do nascimento de William na China. Seu próprio avô fizera fortuna naquele país, e sua avó, quando nova, frequentara a alta sociedade de Hong­-Kong e Cantão.

Sobre esse cordial acolhimento, William edificou as suas esperanças. De todos os rapazes que conhecia, aquele era o que mais se aproximava do seu modo de ser, o mais adequado para se tornar seu amigo. Porque não vingou essa amizade, porque não foram avante as relações, William jamais o soube. Era um botão que não se abrira em flor. As saudações de Franklin Roosevelt eram displicentemente amigáveis, mas ele não dispunha de tempo. Nunca havia oportunidade para conversar ou para andar juntos, e William, muito sensível, fechou-se numa atitude de fria e severa crítica, tal como nos tempos da escola inglesa de Chefoo. Como não lhe era concedido aviar, refugiou-se novamente no ódio. Aquele camarada, dizia para consigo, o que queria era governar o colégio. Quando foram ambos escolhidos para a redacção do jornal do colégio, o Crimson, William sentiu-se esfriar perante aquele jovem que, no entanto, se sentia muito feliz para que pudesse notar a sua mudança de atitude.

Por um frio dia de janeiro, quando se achava William no segundo ano do curso, seu pai parou diante do balcão da livraria de Mr. Fong. O Dr. Lane conhecia bem Pequim, tinha andado pela rua, a estudar cada casa, conforme a sua posição relativa­mente à Porta Setentrional, por onde, naquele dia, o sétimo do primeiro mês ocidental, entraria a Velha Imperatriz, de volta ao Palácio, com a sua Corte Imperial. O Dr. Lane não conhecia Mr. Fong e foi por mera curiosidade que viu por cima daquela loja a estreita sacada a que se subia por uma escada de mão, pois não passava de uma abertura praticada no frontão que se erguia na frente do telhado. Dali, contudo, tinha-se a melhor vista possível para assistir ao grande acontecimento do dia seguinte.

O Dr. Lane entrou na loja e cumprimentou Mr. Fong, que estava atrás do contador a ler um velho livro que comprara na biblioteca de um homem recentemente falecido; como o homem não deixara filhos e nenhuma das mulheres da casa sabia ler, não havia necessidade de biblioteca.

-Em que o posso servir, Velho Irmão? -perguntou Mr. Fong. Mostrava-se polido com todos os estrangeiros, porque, sendo um homem bom, entristecia-se com tudo o que havia acontecido. Embora não pudesse dizer que se alegrava com a derrota do seu país, pois não tinha mais fé nos governos estrangeiros do que num governo nacional, lamentava os estrangeiros e os chineses que tinham sido mortos.

Envergonhava-o especialmente a loucura da Velha, que tinha acreditado na associação de ignorantes denominados Boxers. Merecia a catástrofe que desabara sobre ela, dezassete meses antes, quando fora obrigada a sair da cidade tão ràpidamente Pelo que ouvira Mr. Fong, tão desabalada tinha sido a fuga da Corte que mais gente fora morta pela Guarda Imperial que levava a Imperatriz para fora da cidade do que pelos soldados estrangeiros, quando entraram. Afinal, tudo tinha acabado, para desgraça de todos os envolvidos e para que se chorassem os mortos, tanto chineses como estrangeiros, e especialmente as crianças. Mr. Fong mostrava-se delicado à vista de um estrangeiro, agora que não havia perigo em tratá-lo amistosamente.

O Dr. Lane respondeu com igual polidez. - Desejo alugar amanhã a sua esplêndida sacada, a fim de assistir ao regresso da Imperatriz.

Mr. Fong ficou surpreendido. - Velho Irmão, o senhor e os outros velhos irmãos seus patrícios estão contentes por a ver de volta?

-Eu, pelo menos, estou - disse o Dr. Lane. - Acredito que o povo necessite do seu governo e espero que a Imperatriz tenha aproveitado a lição e permita agora que o jovem Imperador faça reformas.

-Os velhos irmãos ocidentais têm mais fé nas mulheres do que nós - replicou Mr. Fong. - Seu velho irmão tem razão, eu não sei, e é muito provável que eu é que esteja errado. Não posso pedir dinheiro pela sacada. Queira utilizá-la como se fosse sua.

Alguns minutos depois desta conversa, Mr. Fong aceitou afinal dois taéis de prata, o que, a bem dizer, não era muito, uma vez que os estrangeiros estavam a alugar, sem discutir, qualquer espaço que encontrassem. Aos chineses, naturalmente, não era permitido assistirem ao regresso real. Todas as portas e janelas tinham de ser fechadas, e desde já estavam a ser penduradas cortinas azuis através das ruas laterais, para que os olhos do vulgo não pudessem ver a Velha Buda. Quanto aos estrangeiros, não podiam ser assim controlados, porque eram os vencedores.

-Sabe, Velho Irmão? - disse Mr. Fong depois de terminada a transacção. -Ainda mais me sinto constrangido por ter recebido dinheiro do senhor porque uma vez hospedei aqui em casa um inteligente menino da sua raça.

-Ah, sim?

-Sim - disse Mr. Fong, cofiando a sua barba rala. - Ele vinha ensinar a meu filho uma língua estrangeira. Não recebia dinheiro em pagamento. Em vez disso, pedia alguns livros estran­geiros que eu tinha. Esses livros, os criados roubavam-nos dos patrões estrangeiros para os vender por algumas moedas, e era assim que eu conseguia alguns.

-Quem era esse menino estrangeiro? - indagou o Dr. Lane.

-Não se lembra daquele missionário que foi assassinado juntamente com a mulher e os filhos? Aquele que andava sempre a pedir comida?

-Sim - disse o Dr. Lane - lembro-me muito bem que encon­traram a família Miller banhada no próprio sangue, mas o menino não estava lá, nem jamais se ouviu falar dele, embora os funcio­nários americanos tivessem feito o possível para o localizar.

-O menino estava aqui - disse Mr. Fong solenemente. Ele bateu com a sua longa unha na madeira polida do contador. - Estava aqui em minha casa. Chegou cedo para leccionar meu filho. E assim escapou à morte. Deve haver alguma significação em tal facto. Considero isso como um bom augúrio para a minha casa.

-Que foi feito dele? -perguntou o Dr. Lane, sumamente interessado.

-Foi para casa e depois voltou, dizendo-me o que tinha encontrado lá. Ficou connosco até estar em condições de fugir. Recomendei-lhe que se dirigisse para a costa, que procurasse um navio estrangeiro e voltasse para a terra e para a casa do seu avô. -Foi muita bondade sua - disse o Dr. Lane. - Comunicarei isso aos funcionários americanos.

-Por favor, não faça tal - disse Mr. Fong apressadamente. -É melhor não dizer nada enquanto a Velha estiver viva. Ela voltará sorrindo, como o senhor verá amanhã, mas quem poderá saber o que lhe vai no coração?

Na verdade, quem o poderia saber? O próprio Dr. Lane jamais haveria de se refazer inteiramente do longo cerco da Legação Estrangeira. Tinha sido atacado de disenteria no rigor daquele Verão e estava quase morto quando, por fim, entraram na cidade as forças ocidentais. Quando sua mulher voltou da América, depois de William ter entrado para a Universidade, tentou fazer com que ele deixasse a China.

-Você já fez bastante, Henry.

-Eu ainda não fiz nada - replicou. Foi o começo da longa luta entre ambos para saber se a China era digna da sua vida.

-Vê quantos estrangeiros foram assassinados - exclamara ela arrebatadamente.

-Centenas dos nossos foram salvos, e por seis homens - retorquira ele.

Era verdade. Junglu, o favorito da Imperatriz, fez tudo o que podia para salvar os estrangeiros da fúria da sua soberana. Yuan­-cheng e Hsu Ching-seng tinham deliberadamente trocado a palavra «matar», no édito real, por «proteger». Li-shao, e Liu-yuan, e Hsu Tung-i, a Imperatriz mandara-os executar, por se oporem à guerra contra os estrangeiros. E havia a nobre hoste, aqueles que ele jamais esquecia, os milhares de chineses cristãos, de que cerca de cinquenta pertenciam à sua própria igreja ali em Pequim, que se recusaram a renegar a sua fé e morreram como mártires por um deus que, para eles, era um deus estrangeiro.

Não, disse consigo resolutamente o Dr. Lane, estava acima do poder de sua mulher, por mais forte que ela fosse, demovê-lo da sua própria fé, não sômente em Deus, mas também no povo chinês.

-Estarei aqui amanhã - prometeu ele a Mr. Fong.

Assim, no dia seguinte o Dr. Lane subiu à sacada, envolto numa grossa túnica chinesa, dentro da qual ele ainda tiritava. Mrs. Lane recusara-se a ir para lá com ele, quando, olhando pela janela do quarto naquela manhã, vira a cidade envolta na poeira amarela dos desertos do Noroeste. Forte vento soprava então. O Dr. Lane ficara um tanto irritado ao percebê-lo, pois aquilo vinha aumentar as honrarias do regresso imperial. Era uma antiga tradição da cidade, que, sempre que um imperador deixava o palácio, um impetuoso vento o acompanhava, regressando depois com ele. Até o Céu parecia estar do lado da Velha Buda.

Enquanto esperava no balcão sob a fúria do vento gelado, o Dr. Lane pensava no que lhe contara Mr. Fong. O jovem Miller com certeza fizera exactamente o que lhe tinha recomendado o seu amigo chinês. Devia agora estar a salvo na América. Por isso escreveria a William sobre essa possibilidade. No dia anterior contara o caso aos funcionários americanos, ocultando o nome de Mr. Fong.

Olhava atentamente para a grande porta. Ainda não havia sinal de coisa alguma. Bem avisada andava Helen, talvez, con­tentando-se em ver a Imperatriz na grandiosa recepção que ela ofereceria aos seus vencedores quando chegasse ao Palácio Impe­rial. Mas ele não queria ir até lá. Não se deixava ofuscar com o seu arrogante e bárbaro esplendor. Queria vê-la quando entrasse pela Porta Setentrional e descobrir por si mesmo se estava arre­pendida. Havia rezado ardentemente para que o seu coração se abrandasse para bem do povo. Em sã consciência, não poderia dizer se as suas preces haviam sido ouvidas.

Tudo estava preparado para o grande momento. Haviam retirado da rua todos os vendedores, com suas tendas e mostruários. A rua por onde devia passar o cortejo fora varrida e espalhara-se sobre o seu leito uma brilhante areia amarela: amarelo, a cor imperial. Nenhum homem comum se achava na rua. A guarda imperial estava à espera, e os príncipes e capitães da nobreza estavam a postos, cada qual com a sua própria guarda e estandarte. Ao longo da rua, aqui e ali, viam-se estrangeiros nas janelas, abertas a meio, dada a permissão que tinham os forasteiros de assistir ao regresso da Imperatriz.

A cabeça de Mr. Fong apareceu ao cimo da escada. Trazia um pequeno braseiro portátil. -Fique com isto, Velho Irmão -sussurrou ele. -Pus carvão novo.

O Dr. Lane segurou com gratidão o braseiro e, antes que lhe pudesse expressar os seus agradecimentos, Mr. Fong havia desaparecido. Agora percebia certos sinais. Uma linha de cabeças chinesas aparecia aqui e ali por detrás de um frontão, para desaparecer instantâneamente. Corria pela cidade que a Velha Buda estava perto. Tinha desembarcado do comboio. Pela primeira vez na sua vida a Velha Buda viajara em caminho de ferro, e, com ela, a sua corte. Não tinha gostado. O calor fora sufocante, o barulho insuportável. Quando a locomotiva apitou, ficou aterrorizada e indignada e, ao saber que isso era obrigação do maquinista, mandou dizer-lhe por um eunuco que não apitasse sem lhe mandar aviso prévio. A via-férrea Paoting-Pequim fora destruída durante a guerra e reconstruída pelos vencedores, e os soldados estran­geiros tinham-na prolongado até ao centro da cidade, abrindo enormes brechas nas muralhas. A Velha Buda não quisera atra­vessar aquelas muralhas profanadas. Tinha ordenado à corte que descesse fora dos muros e embarcasse nos seus palanquins reais, para regressarem à cidade de modo condigno, através da grande porta.

O Dr. Lane, segurando o pequeno braseiro, ouviu um cres­cente rumor. Um pequeno esquadrão de eunucos vinha galopando, da grande porta, em direcção ao centro. Ostentavam barretes pretos com plumas vermelhas e o peito das suas túnicas era bordado a vermelho e amarelo. Seguia-os o arauto imperial, bradando estentòriamente que a Corte estava de regresso. Todos os que estavam esperando ao longo da rua se ajoelharam e cur­varam a cabeça até o chão. O Dr. Lane curvou-se sobre o frágil balaústre e olhou para baixo, procurando fixar fielmente aquele momento histórico. Não perdia nada, no intento de contar tudo a William. Viu a Guarda Imperial, seguida por oficiais. Grandes bandeiras de cetim amarelo drapejavam ao vento, e em cada uma estava bordado um dragão azul engolindo um Sol vermelho. De cada lado das bandeiras vinham os estandartes bordados com as armas imperiais.

Depois vinha o jovem Imperador, um melancólico adoles­cente, em seu palanquim amarelo forrado de seda azul. A cortina estava erguida, e a gente via-o sentado, com a face imóvel, os olhos esgazeados olhando fixo para a frente. Estava sentado sobre os pés entrecruzados, na posição de um Buda.

-O sacrifício da juventude - murmurou o Dr. Lane para ninguém. A morte já se desenhava claramente sobre aquela face trágica.

Mas a morte nada tinha a fazer com a própria Imperatriz.

Sentia-se revoltado ao ver a terrível figura, sentada em seu grande palanquim, no meio dos guardas, seguida pela jovem Imperatriz e as damas de honor. Naquela alegre e perversa face, não havia nada senão o mais vivo regozijo. Ao ver os estrangeiros, que eram os seus vencedores, ela afastou as cortinas do palanquim e agitou­-lhes o lenço. O dr. Lane ficou ainda mais revoltado ao ver algumas senhoras estrangeiras, entre as quais reconheceu ameri­canas, também a acenar, rindo, para a sinistra velha. Como se esquecia tudo depressa!

Desceu da sacada e devolveu o braseiro a Mr. Fong, com agradecimentos.

-Como estava a Velha? -inquiriu Mr. Fong.

-Ela não se arrependeu - disse o Dr. Lane amargamente. -Eu não lhe disse? - replicou Mr. Fong, rindo, embora a sua face estivesse cheia de tristeza.

 

William lembrou-se súbitamente, enquanto estava a estudar para uma sabatina de inglês, que ainda não tinha lido a carta de seu pai. Chegara de manhã com outras cartas, entre as quais uma de Candace, e as de Candace lia-as ele primeiro. Desejava muito amar deveras Candace, e, na maior parte do tempo, pensava que estivesse deveras enamorado. O obstáculo a essa completa con­vicção era bastante simples: a própria Candace. Esta esperava dele certa solicitude, uma constante galantaria, que ele achava um tanto degradante. A seu ver, o essencial, nas mulheres, era ser bela. Desprezava sua irmã Henrieta por ter um rosto vulgar. Candace era bastante bela para o satisfazer, pudesse ele abstrair das suas outras qualidades menos atraentes.

Naquele momento, contudo, as suas relações com Candace eram difíceis e enervantes. Sentia a desvantagem de não ter vivido sempre no seu próprio país. A secreta hostilidade que sempre alimentara contra seu pai, por tê-lo obrigado a nascer filho de um missionário na China, renovava-se agora numa profunda e deses­perada ira. Apesar disto, amava seu pai, com um estranho amor temperado de ódio, e os seus mais amargos momentos eram aqueles em que imaginara o que ele poderia ter sido se não tivesse ouvido o malfadado apelo de Deus. Belo de feições, atraente de maneiras, um tipo de condutor de homens, não havia razão, pensava William quando a sua fantasia se alcandorava, para que seu pai não tivesse ingressado na política e até mesmo alcançado a presidência dos Estados Unidos. Não havia nada de extraordinário em Theo­dore R oosevelt; passava uma boa parte de tempo a estudar aquela impertinente e angulosa face. Qualquer podia ser Pre­sidente!

Tirou a carta de seu pai do bolso, guardou o selo chinês para Jeremias, rasgou o sobrescrito e retirou as folhas de fino papel, onde se alinhava cerradamente aquela delicada e familiar cali­grafia. Via perfeitamente que seu pai sempre tinha o cuidado de se comunicar com ele no mesmo tom, e em especial para lhe referir constantemente o que acontecia na terra que ele havia deixado. William era muito astuto para não compreender tais cuidados. O sonho de seu pai era que o seu querido filho único voltasse para a China, para ser o melhor missionário de quantos houvessem existido e conquistar para Deus a mutável nação. Bem sabia William que, mais dia, menos dia, teria de destruir tal sonho. Mas ainda não tivera coragem para o fazer. Aliás, não encarava a coisa sob o ponto de vista da coragem. Dizia que estava apenas à espera do momento em que isso magoasse menos seu pai. E agora, depressa e descuidadamente, lia o que seu pai havia escrito devagar e com todo o cuidado:

«Já te falei no iminente regresso da Corte. Agora já chegou. Foi um estranho e bárbaro espectáculo, uma variegada multidão dominada por uma déspota, mas ainda assim havia magnificência naquilo tudo, uma espécie de bárbaro e natural esplendor, a atmosfera que os chineses sabem emprestar tão bem a tudo quanto fazem. A Velha Imperatriz é uma grande criatura, a despeito da sua monstruosa maldade, para que possa permanecer de coração fechado. Reconheceu a sua derrota, se não a sua falta, e agora compreende que deve iniciar reformas a bem do povo. Já antes do regresso, fez inserir um édito ordenando que os funcionários do Império aprendessem imediatamente tudo o que houvesse sobre ciência, política e leis internacionais. Deu-lhes seis meses para completar os seus estudos, sob pena de morte. Aqui se revela a velha ignorância... e a nova!

«Mais significativo talvez, porque mais praticável, é o facto de haver nomeado uma comissão para planear um sistema de instrução pública, o primeiro que a China jamais teve. Algum dia os velhos exames serão completamente abolidos e a China será modernizada. Pode isso acontecer antes de terminares o teu curso, meu querido filho, de modo que, quando voltares, será um país totalmente diverso, um país em que poderás construir.

«Mas não quero falar apenas da China. Conta-me a respeito da tua vida universitária. O que dizes de Jeremias parece-me esplêndido. Que sorte encontrar um amigo assim! Receava pela tua solidão. Os jovens mostram-se às vezes tão cruéis para os que não têm a sua própria experiência! Apresenta-lhe os meus mais sinceros cumprimentos.

«Tua mãe vai escrever-te amanhã, diz ela, a respeito da recepção que a Velha Imperatriz ofereceu a todos os estrangeiros. Foi uma coisa notável. Compareceram todos os diplomatas com as suas esposas e, pelo que pude saber por tua mãe, a Imperatriz portou-se exactamente como se houvesse vencido a guerra e como se estivesse graciosamente a receber os seus cativos e a libertar os prisioneiros. Foi tão bem sucedida que grande número de senhoras capitulou ante o seu terrível encanto. Quanto a mim, recusei-me a comparecer.

Ser-me-ia insuportável ter de me mostrar delicado para com essa personificação feminina de Satã. Tua mãe não foi tão escrupulosa e parece que gostou da festa».

 

As cartas de seu pai sempre conduziam o seu pensamento para a China, por mais que quisesse resistir. Via claramente a indomável figura da Velha Imperatriz, grande assaz para aceitar de boa graça a derrota e contudo permanecer ainda imperial, ainda poderosa. Havia nela um intrínseco poder que William sentia que era sagrado, despertando em si próprio algo que poderia ser um poder semelhante. Enquanto o adolescente se ia fazendo homem, sentia a ambição igualmente crescer. Era sempre fascinado pelos poderosos e pelos orgulhosos. Certa vez, ao atravessar o pátio, encontrara o famoso reitor da Universidade sobraçando uma enorme melancia, e nunca mais sentira por ele o mesmo respeito de antes. Qualquer que fosse a inteligência de Charles Eliot, e William sabia reconhecer a inteligência, era diminuída pela falta de orgulho do homem. Nada poderia persuadir William a trans­portar nem mesmo um pacote debaixo do braço.

Na verdade, poucos dos seus professores preenchiam as suas secretas expectativas. Era difícil venerar um rechonchudo filósofo com uma enorme cabeça de hirsutos cabelos cinzentos-amarelados e com velho chapéu informe, ou um homenzinho de testa grande e bastos bigodes mal tratados. Apenas dois homens satisfaziam o seu instinto de dignidade e seriedade: um, era um grande e belo alemão que se parecia com o Kaiser e ensinava psicologia com a voz de um Júpiter Tonante. O outro era um homem alto esguio, espanhol, cujos olhos eram negros e frios. Sòmente diante de George Santayana era que William se mantinha em completa reverência. O homem era um aristocrata.

O mesmo absoluto e requintado orgulho vira ele anos antes na Imperatriz da China, uma têmpera que não se dobrava à gente comum. Para William a democracia significava nada menos que, dentre a massa comum, poderia surgir um herói carlyliano, um «leader» inexplicável. Esse herói não poderia ser explicado, como também não o poderia ser a Imperatriz da China, pois ela nascera filha de um vulgar funcionário militar de baixa categoria. Em dada altura no curso das gerações, certos gérmens encontraram-se para formar a invencível combinação. Jamais esqueceria a altiva face da indomável regedora de homens inclinada sobre ele, um rapaz americano. Fora o seu primeiro vislumbre de grandeza, e essa impressão gravara-se-lhe no íntimo, como permanente in­fluência.

Assim William criou o seu mundo à sua própria imagem. Os filhos dos deuses eram os salvadores da Humanidade e viviam na Costa de Ouro.

William dobrou a carta do pai e viu nas costas da folha um post-scriptum:

«Eis uma coisa interessante. Deves estar lembrado dos missionários Miller, a família que foi assassinada pelos Boxers. Na verdade o menino escapou. Encontrei por acaso um chinês que lhe salvou a vida e o mandou para a costa. Dali, se ele tomou um navio, deve ter alcançado a América a salvo, onde agora deve estar, sob a protecção de Deus».

Tal notícia não interessou William. Aquela breve e humi­lhante cena na poeirenta rua de Pequim era repulsiva, até mesmo na recordação. Amarrotou a carta e atirou-a para o cesto de papéis.

No penúltimo ano do seu curso, o ódio que William votava a Franklin Roosevelt atingiu o auge quando Roosevelt foi escolhido para director do Crimson. William julgava-se garantido para o posto e não podia atinar com a causa do malogro. Não pôde ocultar o seu desapontamento a Jeremias, sempre pronto a sentir o sofrimento alheio.

-Sinto muito - disse Jeremias. - Poderias fazer um magní­fico trabalho.

-Não tem importância - disse William com uma careta. -Não te envergonhes dos teus sentimentos - disse gentil­mente Jeremias.

William permitiu que se lhe escapassem algumas palavras do fundo do seu imenso desespero:

-Parece uma injustiça que eu não o tenha conseguido quando aquele colega o conseguiu com tanta facilidade.

Viu que Jeremias o fitava com uma peculiar expressão e desviou os olhos.

-Gostaria de te dizer uma coisa, William, se me permitisses. -E daí? - William sentiu como a sua própria voz soava áspera e forçada.

-Talvez nos seja difícil dizer tais coisas um ao outro. Em todo o caso, nunca as dissemos. Mas, se as disséssemos, talvez nos sentíssemos melhor.

-Dize o que quiseres - respondeu William. Sentou-se abruptamente na carteira e pôs-se a encher a caneta de tinta permanente.

-Roosevelt conseguiu o que queria porque é cordial para com todos. Ele é cheio de uma espécie de... de... amor, se com­preendes o que quero dizer.

-Creio que não. Ele é cheio, sim, mas de ideias tolas pelo que pude compreender.

-Sei que algumas das suas ideias são estapafúrdias - admitiu Jeremias. - Mas tudo o mais nele é tão correcto que pode pensar como lhe aprouver.

William derrubou a caneta. Os seus olhos cinzentos estavam furiosos sob as sobrancelhas negras e os seus lábios fremiam.

-Suponho que queres dizer que o seu pai é mais rico e que a sua mãe é socialmente distinta, que vivem num bairro aristo­crático... enfim, todas as coisas que não possuo!

-Bem sabes que não é isso o que quero dizer - protestou Jeremias. - Não falemos mais no assunto.

Não tocaram mais no caso. William era muito orgulhoso para confessar a Jeremias que bem sabia o que ele queria dizer. William começava a compreender que faltava uma graça entre os seus dons. Não podia ganhar o amor da gente comum. Descul­pava-se dizendo que era porque sentiam a sua superioridade, o seu óbvio poder mental, a sua capacidade para fazer fàcilmente o que os outros só conseguiam com esforço. O homem superior, dizia a si mesmo, folheando o seu Nietzsche, não pode deixar de ser odiado pelos seus inferiores, mas até esse ódio poderá trans­formar-se em vantagem e tornar-se instrumento para maior poder.

-Devo esperar o ódio - pensava William. - Devo aceitá-lo como coisa que me é devida, porque não me compreendem. O homem comum odeia o que não pode compreender.

Às vezes chegava a pensar que até Jeremias o odiava. Mas tais momentos passavam e ele procurava mostrar-se mais bondoso com o seu amigo, mais solícito em ajudá-lo, mais paciente com as suas fraquezas, suas dores de cabeça, seus hábitos.

William, a remoer incessantemente a sua derrota, sentia-se, além disso, preocupado com um editorial do Cri nson antes das eleições universitárias. Roosevelt escrevera: «Há um dever mais alto do que votar pelos próprios amigos pessoais: é o de assegurar, para todas as classes, «leaders» que realmente mereçam as posi­ções».

Estas eram as palavras de um homem decidido a ser um liberal, a despeito da classe e propriedade. Se a Costa de Ouro os repudiava, o facto é que os votos pertenciam à multidão.

William jamais perdoou a Franklin Roosevelt. Já tinha começado a acreditar que, em qualquer parte do Mundo, o povo é composto de estúpidos e tolos, e agora estava convencido da sua loucura. Os Boers que lutaram contra a Inglaterra eram estúpidos e tolos. Os chineses de que se recordava das ruas de Pequim eram estúpidos e tolos. Dali por diante não falaria com ninguém em Harvard, excepto com os que moravam na Costa de Ouro.

Mas um dia ouviu uma observação que novamente o alarmou. Um pálido professor de longos bigodes disse estas palavras com uma ênfase demasiado ardente para o gosto de William: «O povo americano controla o seu próprio destino».

William começou então um sério estudo da História e do governo do seu país. Reconheceu, para seu desconsolo, que a observação do professor era verdadeira. Por estúpidos e tolos que fossem, os americanos elegiam os seus governadores, zombavam deles, desprezavam-nos ou admiravam-nos, obedeciam-lhes ou não, apegavam-se a eles ou rejeitavam-nos. Começou, depois disso, a olhar as pessoas com que cruzava na rua com consternação e até com receio. Mau grado a ignorância aparente no seu rosto e óbvia no seu rude falar, aqueles homens escolhiam, no seu próprio meio, certos homens seus semelhantes a quem conferiam os poderes de Estado. Era monstruoso. Durante meses William sentiu-se num covil de feras. Procurou falar a esse respeito com Jeremias, que primeiro se riu dele e depois tentou explicar:

-Os americanos não são pròpriamente um povo... são americanos.

William não tinha tal reverência. O que via além da Costa de Ouro lembrava-lhe ominosamente as ruas e as estradas da China. Temia a gente comum de lá. Pois não se tinham erguido, em toda a sua loucura, contra homens como seu pai? Von Ketler fora assassinado por um tolo ignorante. Lembrava aquele digno alemão que uma vez, nas comemorações do 4 de Julho da Embaixada Americana, lhe falara cortêsmente. O povo comum poderia erguer-se de novo contra os seus superiores e matá-los, contanto que fosse dirigido e controlado.

Sim, como controlar aqueles irrequietos e independentes trocistas que eram o povo comum da sua própria terra? Não tolerariam um verdadeiro dirigente, não tinham respeito pelos que lhes eram superiores. Gostavam de apear os grandes e de os aniqui­lar. Veja-se o Almirante Dewey, por exemplo, herói por uma hora, cujo arco triunfal de estuque, destinado ao mármore, acabou por cair por terra, sendo afinal transportado pelos varredores de detritos! O capricho do povo era a mais terrível força do Mundo.

Depois disto, William, conhecendo agora a sua própria falta de encanto, reflectia sobre aquele estranho e inexplicável poder de atrair os seus camaradas, o encanto que o jovem Franklin Roosevelt possuía tão naturalmente como possuía estatura, intre­pidez e riso pronto. Sem esse frágil dom, dizia William orgulhosa­mente consigo mesmo, devia puxar pelo cérebro e descobrir um meio de ensinar e controlar a besta feroz das multidões. Conduzi­-las-ia sàbiamente, insidiosamente, encantando-as com palavras, sem jamais ser visto.

Naquele terceiro ano do curso, escreveu ao pai para lhe dizer que não voltaria à China. «Sinto que sou mais necessário aqui do que aí. A verdade é que não me deixei impressionar pela civili­zação americana. Pretendo fundar uma espécie de jornal, alguma coisa que o povo comum possa ler, ou pelo menos olhar, e assim fazer o que possa para esclarecer os meus compatriotas».

Um dia, jurava William a si próprio que seria editor e proprietário de um jornal, talvez até de uma cadeia de jornais, com que poderia derrotar qualquer homem de que não gostasse ou desaprovasse. Desgostar era desaprovar. Precisava de dinheiro, naturalmente, mas consegui-lo-ia de alguma forma. Homens intei­ramente estúpidos, pelo que via, eram capazes de enriquecer.

Neste entretanto, Franklin Roosevelt não obteve o Phi Beta Kappa, e William sentiu-se consolado quando ele próprio se viu entre os escolhidos.

Mas aqueles anos eram bons, afinal: com o tempo, tornou-se membro da família Ca meron e passava as férias com eles, depois de breves visitas de obrigação a seus avós e irmãs. Reconhe­ciam agora que William era independente e diferente. Henrieta conservava-se em orgulhoso mutismo na sua frente, Ruth adorava-o timidamente e seus avós procuravam, um tanto em vão, tratá-lo como a qualquer rapaz. Sabiam que ele era extraordinário. Até Mrs. Cameron estava agora convencida disso. Era-lhe agra­dável ter junto de si um belo jovem que sabia vestir-se e estava sempre pronto para a atender. Ele dava pouca atenção a Candace, actuava com Mrs. Cameron depois de cada período de férias e era uma espécie de irmão mais velho para o seu pobre filho. Em certa festa de Natal, apresentou William às senhoras suas amigas e esqueceu-se de mencionar que seu pai era missionário, deixando a impressão de que ele estava ligado ao corpo diplomático em Pequim. William não a corrigiu.

Os seus sonhos voejavam em torno das felizes semanas que passava na mansão da Quinta Avenida. Todas as manhãs, aceitava um encargo que Mr. Cameron lhe oferecia. Foi à Europa com Jeremias, fazendo às vezes de secretário e guia, e tinham um criado para ambos. Visitaram juntos as velhas cidades e singraram o Mediterrâneo. E estava assente que William sempre voltaria para casa com Jeremias depois de terminada a viagem. Tinha dois quartos na vasta mansão Cameron, que comunicavam com os aposentos de Jeremias. Dali, escrevia de raro em raro para as suas irmãs e avós, e Pequim estava quase esquecida. Os Cameron haviam-se tornado a sua família.

Reflectia muito sobre os Cameron, ponderando como poderia alcançar por seu intermédio as culminâncias que vagamente entrevia. Era uma das coisas que discutia com Jeremias. William não era rude. Não fora debalde que vivera tanto tempo entre chineses, embora essa convivência se restringisse aos criados. Sentia a rudeza de sua mãe, mas perdoava-lhe por causa da sua capacidade de sacrifício. Sua mãe era «por» ele, e William, quando descobria essa qualidade numa pessoa, abstraía de tudo o mais. Contudo, aprazia-lhe que, durante aqueles anos de escola, sua mãe estivesse lá longe, em Pequim. Ainda não estava certo se os Cameron eram inteiramente «por» ele, nem mesmo Jeremias. Essa incerteza tornava-o desconfiado e inseguro nas suas relações com cada um deles. Para Jeremias, ele tornou-se gradativamente alguém sempre desejoso de lhe poupar o trabalho de subir escadas quando queria um livro da biblioteca, e assim ia minando qualquer possível aversão da parte do outro. Ante o silêncio atento de William, Jeremias, quando em férias, falava mais livremente do que na escola, revelando uma alma delicada e poética, atormen­tada de interrogações, e um espírito perplexo com problemas de consciência. E desse modo abordou a sólida questão do dinheiro.

-Bem sei que, se meu pai não fosse rico, eu agora estaria morto. Mas desejaria dever a minha vida a alguma coisa mais.

- Querias talvez dizer que deves a vida ao facto de teu pai possuir a capacidade de enriquecer.

-Duvido que a capacidade de enriquecer seja alguma coisa de particularmente nobre - replicou Jeremias.

-Em todo o caso, nem todos podem fazer isso. Teu pai deve possuir algum dom natural.

A mutável e pálida face de Jeremias assumiu um súbito ar de aversão.

-Esse dom - disse ele - consiste apenas na capacidade de vencer os competidores menos fortes.

William guardou silêncio e, no silêncio, Jeremias continuou a falar. - Os filhos dos ricos sempre se queixam da riqueza dos pais, suponho eu. Mas deve haver algum meio de viver que não seja devido ao esmagamento dos demais.

William não respondeu. Jeremias, pensou ele, não tinha nada que o prendesse à vida. O mal de Jeremias consistia em não desejar nada. Mas ele, William, desejava tudo: êxito no jornal que pretendia fundar, e depois uma esposa bela e rica, uma mansão para morar, um lugar em que pudesse ser cínico de uma maneira que ainda não sabia qual fosse. E o meio para conseguir tudo isso, bem o sabia, era o dinheiro. Tinha a plena certeza de que o dinheiro era o que desejava antes de tudo.

Mais tarde reflectiu calmamente, à sua maneira, sobre a família Cameron. Poderia fàcilmente desenvolver as suas relações fraternais com Jeremias. Na verdade, gostava mesmo de Jeremias. Quanto a Candace, consideraria o caso com o correr do tempo. Aproximava-se muito do tipo intelectual para que tivesse pressa de casar. Quanto a Mrs. Cameron, compreendia-a e não a temia. Os seus pensamentos aproximavam-se agora cautelosamente da imagem de Mr. Cameron. Essa era a figura central, a mais impor­tante, que devia abordar com real finura. Mr. Cameron conhecia segredos. Pensando nessa vaga e pouco impressionante pessoa, William percebia que por detrás da face sem expressão, de lábios delgados, havia qualquer coisa de grande, um poder extraordi­nário e profundamente contido. Ele adivinhava, por alguma intui­tiva afinidade, que Mr. Cameron nunca revelava os seus verda­deiros pensamentos à família, não às mulheres certamente, e, provàvelmente, nem ao seu frágil e hipersensível filho. E William resolveu penetrar naquela solidão, não com estratagemas, mas com toda a franqueza e honestidade.

-Mr. Cameron - disse ele no Domingo de Páscoa - desejava pedir o seu conselho sobre uma coisa.

-Pois não! - replicou Mr. Cameron. O domingo era um dia em que ele fazia sesta. Mas agora já tivera tempo de fazer a lenta digestão. Dormira, despertara, fora passear no jardim com a mulher e a filha, para ver como iam os pés de narcisos, e voltara depressa para reler o jornal junto à janela da sala de estar, que era o seu lugar favorito de repouso. Ali fora ter William, depois de esperar pacientemente à sua própria janela, de onde podia observar o movimento no jardim. Jeremias e Candace tinham ido com a mãe visitar os seus avós.

Sentou-se a respeitosa distância de Mr. Cameron e numa cadeira de encosto. A sua infância em Pequim ensinara-lhe a deferência para com os mais velhos, e não se sentiria à vontade se tivesse escolhido uma das profundas poltronas de couro.

-Desejaria falar sobre o meu futuro, Mr. Cameron - disse ele.

-Que há quanto ao seu futuro? - perguntou Mr. Cameron. Os seus olhos pousaram no jornal que tinha a seus pés. A secção financeira estava à vista e ele mostrava-se desgostoso porque os lucros de uma companhia rival tivessem excedido ràpidamente os da sua própria companhia.

-Desejo enriquecer -proferiu William simplesmente.

Os tufos grisalhos das sobrancelhas de Mr. Cameron palpi­taram como antenas. - Para que quer você ser rico? -perguntou. Olhou para William com algo mais do que o displicente interesse de sempre.

-Vejo que, aqui, nos Estados Unidos ninguém pode conseguir nada do que deseja a não ser que seja rico.

Mr. Cameron sorriu e concordou subitamente. - Tem toda a razão. - Levantou o jornal do chão, reclinou-se para trás e pro­curou um charuto no bolso. Era curto e grosso; acendeu-o e largou uma baforada de fumo azul e perfumado. Caíra a vaga barreira que sempre se levantara entre ele e os filhos dos seus amigos. Com­preendeu que poderia falar com William. Sempre desejara poder falar com os rapazes e dizer-lhes as coisas que sabia. Se um velho lhe tivesse falado quando ele era jovem, teria ido muito mais longe.

-Uma coisa lhe digo. - Desviou o charuto para o canto da boca. -Se quiser enriquecer, William, terá de deixar de pensar absolutamente sobre qualquer outra coisa. Tem de se con­centrar e de aplicar todo o seu cérebro a essa ideia.

-Sim, senhor - disse William, atento, com as mãos cruzadas sobre os joelhos. Eram mãos pequenas, como Mr. Cameron lembrava que sua mulher havia dito, e já cobertas de um velo negro surpreendentemente espesso. Os cabelos de William eram negros também, em contraste com os seus claros olhos verde-cinza. Um tipo estranho, reflectiu Mr. Cameron, embora tão bonito.

-Pensou nalgum ramo especial? - perguntou Mr. Cameron.

William hesitou. -E o senhor já tinha pensado na minha idade?

-Pensei, sim - replicou Mr. Cameron. - Aí é que está a questão. Você tem de pensar nalguma coisa que o público queira -não em meia dúzia de ricos, note bem, mas em todos aqueles que não têm muito dinheiro. Tem de pensar nalguma coisa que eles precisam de comprar, mas que não custe muito caro. Foi assim que pensei nos Armazéns.

William conhecia muito bem os Cameron Stores. Havia uma dessas lojas em quase todas as cidades. Tinha vagueado por elas mais de uma vez, olhando as pilhas de roupa-branca barata e utensílios de cozinha, miudezas, louças, carrinhos de criança, linóleos, tudo aquilo que uma família comum poderia desejar e nada daquilo que Mr. Cameron teria em sua própria casa. Pura zurrapa.

-Pensei num jornal - disse William.

-Um jornal? - Mr. Cameron parecia confuso.

-Um jornal barato - explicou William-. Com uma porção de fotografias, para que o público primeiro olhe e depois leia.

-Nunca tinha pensado nisso - disse Mr. Cameron. Olhava para William digerindo a nova e notável ideia. - Já existem muitos jornais.

-Não do género que pretendo publicar.

-Que género? - perguntou Mr. Cameron. -Eu julgava conhecer todos os géneros...

-Creio que conhece, sim. Esse género, no entanto, ainda não existe na América. Colhi a ideia da Inglaterra... e um pouco também, talvez, do New Tork World e depois do , jtournal. Mas eu próprio não tinha pensado em fazer nada até que comecei a ter conhecimento do que fazia Alfred Harmsworth na Inglaterra. O senhor já viu os seus jornais?

-Não - respondeu Mr. Cameron. - Quando estou em Lon­dres sempre leio o Times e, quando muito, dou uma vista de olhos ao Illustrated Times.

-O meu jornal - explicou William, como se este já existisse -é o que se chama «tabloid» e deve conter tudo o que possa inte­ressar às massas. Não será para pessoas como o senhor, Mr. Came­ron. Será repleto de ilustrações. Tenho notado, até mesmo na escola, que os homens, na sua grande maioria, não lêem realmente muito, mas sempre observam as ilustrações.

-Espero que não se queira dedicar ao jornalismo sensa­cionalista - disse Mr. Cameron severamente.

-Pode ficar tranquilo - assegurou William. - Espero fazer alguma coisa mais subtil do que isso. - Fez uma pausa, e depois continuou, reflectidamente, com os olhos fitos nos desenhos do tapete: - Pretendo, se o senhor me permite, falar sobre este assunto com Jeremias, e um dia poderemos ambos pôr mãos à obra.

Mr. Cameron estava satisfeito. Aquele poderia ser o trabalho adequado para Jeremias: trabalho leve, sentado a uma secretária. Já tinha muitas vezes pensado no que poderia fazer com o seu débil filho, mas era demasiado prudente para demonstrar apro­vação. -Bem, isso depende do que Jeremias pretenda fazer. Os jornais demandam muito dinheiro para começar.

William estava calmo. Era muito prudente para repetir o que sua mãe tantas vezes lhe dissera, mesmo antes da sua ida para Chefoo. «Só deves ter poucos amigos - dizia ela. - E cada amigo deve contar para alguma coisa.» Tinha visto a inanidade de imprestáveis amigos na escola inglesa: as suas relações, ali, com o filho do Embaixador britânico, tinham-lhe sido de muito mais utilidade do que toda a horda dos filhos dos missionários.

Na Universidade, havia três de entre os amigos de Jeremias que ele procurava atrair para si: Blayne Parker, Seth James e Martin Rosvaine. Quanto a Blavne, William ainda estava em dúvida, porque Blavne era poeta e Jeremias oferecia-lhe algo que William se sentia incapaz de suprir. Quanto a Seth e Martin, estava resolvido a conservá-los. Em todo o caso, não havia razão para que os cinco, inclusive jeremias, não continuassem juntos depois de diplomados. O pai de Seth poderia, sòzinho, entrar com o capital de que necessitassem. Entretanto, ia frequentando os seus clubes.

-Tudo calculado, hem? - disse Mr. Cameron. Um ar de admiração transparecia-lhe no rosto, mesclado de relutância. Fosse Jeremias um rapaz assim e tê-lo-ia colocado nos Estabele­cimentos. O convite estava na ponta da língua. -Gostaria de...? -Dali a dez anos, quando ele próprio estivesse velho, já William estaria com bastante prática. E poderia ser que ele não estivesse então em condições de lutar com aquela esperteza de jovem, no caso de oposição entre ambos. Estava muito bem que se desse uma oportu­nidade aos novos, mas não completamente toda. Por outro lado, quando viesse mesmo a precisar de alguém, William bem poderia ser a sua mão direita nos seus Estabelecimentos. Se William desposasse Candy, por exemplo, seria quase tão bom como se o rapaz tivesse nascido na família. Bem, pensaria nisso com o vagar que o caso requeria... Recostou-se na cadeira e cruzou as mãos sobre a absurda barriguinha que lhe avultava no corpo esguio.

-Quando houver oportunidade - disse ele pensativamente - é possível que eu mesmo faça alguma coisa, William. Digo possível, somente. Pois nesta época e com estes governos...

William ergueu-se. -Eu não pensaria em tal, Mr. Cameron - replicou com voz firme e sonora. - Estou certo de que me arranjarei por mim mesmo.

Sim, era a resposta adequada, embora sentisse que, quando houvesse uma oportunidade, necessitaria de Mr. Cameron. Antes dever a Mr. Cameron que ao pai de Seth James.

Antes que Mr. Cameron pudesse responder, a porta abriu-se e Candace surgiu. Irrompeu como a estrela da manhã, pensou ternamente o pai. Estava toda de cor-de-rosa e prata e com peliças de raposa branca. As suas faces estavam coradas devido ao vento, pois insistira em manter abertas as vidraças do automóvel, e os seus cabelos loiros encaracolavam-se sobre as orelhas e a testa.

-Porque vieram esconder-se aqui? - perguntou ela. - A mãe, manda dizer que façam o favor de se apresentar. Temos visitas.

-Estávamos a falar de negócios - disse Mr. Cameron. Era a seca e instintiva resposta a quaisquer perguntas femininas.

-Absurdo - disse Candace. - William não lida com negócios.

-Mas tem uma ideia muito interessante - disse Mr. Cameron, unindo as pontas dos dedos. - Uma ideia muito interessante.

Depois ele próprio teve uma ideia. Ergueu-se e apressou-se, com o seu arrastado passo, na direcção da porta. - Irei, apenas, para agradar a tua mãe. William não precisa de se aborrecer com os nossos amigos, a não ser que o queira. Aposto que são os Cordies.

-São, sim - disse a jovem, abrindo duas covinhas nas faces.

-Não venha, William - disse Mr. Cameron. - De qualquer maneira eles não se lembrariam de si na próxima vez em que o encontrassem.

Assim deixou os dois jovens a sós e continuou, satisfeito, o seu caminho. Em Candace podia ele confiar. Ela não deixaria nem sequer o próprio marido causar qualquer dano à família. Ele não pregava prego sem estopa. Era o segredo da sua fortuna. Isso... e a deliberada ignorância das desgraças alheias. Talvez ajudasse William, quando fosse oportuno. Tinha algum dinheiro em caixa, de que não sabia o que fazer.

Ficando a sós com Candace, William não disse nada, e ela tirou a jaqueta de pele e ergueu um pouco mais o pequenino chapéu de flores.

-A respeito de que estavam a falar?

-Teu pai perguntou-me o que desejava fazer depois de diplomado, e eu disse-lhe que pretendia fundar um jornal.

Os claros olhos azuis da jovem estavam docemente fitos nele. -E porquê um jornal?

William ergueu os seus belos ombros. - Porque fazemos nós uma coisa, a não ser porque tem vontade de a fazer?

-Não, William, não fujas à questão. Porque te sentes tão inferior aos outros?

Ela cravara-lhe um punhal no coração. William sentiu o sangue subir-lhe ao rosto e teve o cuidado de não olhar para ela. -Como, sinto-me inferior?

A sua voz, habitualmente tão controlada, perdera a firmeza. -E não te sentes? -perguntou ela. -Na verdade eu próprio não sei.

Ela não quis assumir a responsabilidade de uma asserção pessoal. - Qualquer pessoa pode ver que nunca respondes francamente. Sempre calculas o que vais dizer.

-Suponho que seja porque não tenho vivido suficientemente na América - replicou ele. Embora desprezasse a sua China, não raro achava conveniente refugiar-se nela. Isso dava-lhe uma razão, levemente romântica, da diferença entre ele e a gente vulgar.

-Queres dizer que os chineses não respondem francamente? - perguntou ela.

-Penso que preferem responder correctamente.

-Mas a franqueza é sempre correcta.

-Sim? - disse ele, com um ar de amável e superior sabedoria.

-Pois não é?

-Não sei - respondeu ele de novo.

-Mas tens de pensar alguma coisa? - exclamou a rapariga com branda impaciência.

-Nem sempre sei o que pensar - replicou. -Na maior parte do tempo vivo tacteando o meu caminho. Todos os dias encontro gente que não posso compreender. Não tenho experiência que me ajude.

Ela reflectiu um momento. - São os chineses tão diferentes de nós ou estás apenas a fingir?

-Fingindo o quê?

-Que és diferente.

-Espero que não seja muito diferente de ti, Candy.

Era um passo em frente, e ela recolheu-se.

-Não sei se és diferente ou não. Eu não posso entender-te, William.

Ele sentiu que tinha avançado bastante. -, Nem eu a ti, às vezes. Excepto, hoje, que pareces amável. Não é preciso que nos entendamos, como dizes... pelo menos por enquanto. Para que nos apressarmos, Candy? Quero que chegues a conhecer-me, como na verdade penso que nem eu próprio me conheço. E isso demanda tempo, muito tempo.

Disse tudo isso com o seu culto acento inglês, que ainda não tinha perdido.

-Porque insistes em falar em tempo? - indagou Candace.

Ele riu em silêncio. - Porque não quero que ninguém possa arrebatar-te de mim, de um momento para o outro.

Isso fora bastante directo na verdade, e ela baixou os olhos para a rosa que prendera no seu regalo de peles, reflectindo. E quando falou, foi com suave malícia na voz

-Mas sempre estou certa de que sempre alcanças o que queres... desde que estejas certo de que o queres.

William aparou o golpe com astúcia. - Ah, mas tu com­preendes, desta vez podes não querer o que eu quero. E confesso que ainda neste ponto sou chinês: não gosto de ser repelido, nem mesmo indirectamente. Prefiro não ser colocado em tal posição.

-É o teu sentimento de inferioridade que voltou.

-Chama-lhe antes sensibilidade.

-É um mau jogo, então.

-O assunto de que estamos a tratar não é nenhum jogo.

Ele falou com uma autoridade tão tranquila que ela viu-se compelida a respeitá-lo. Era apenas um ano mais velho do que ela, mas era como se tivesse dez anos mais.

-Não sei, afinal, de que estamos a tratar - disse ela.

-De ti e de mim - respondeu ele gravemente-. Embora para o futuro, daqui a dois ou três anos, talvez.

-Não pretendo casar-me com alguém, ainda por muito tempo.

-Era só o que eu queria saber - replicou William. Estava encostado à lareira, com as mãos nos bolsos. Agora inclinou-se para ela, ergueu-lhe a mão e levou-a aos lábios. Ela procurou evitá-lo, mas ele não lhe deu tempo. No mesmo instante, ele largou-lhe a mão e retirou-se. Ela pegou o lenço e limpou a mão; depois meteu-a profundamente no regalo, e ali ficou sentada, por muito tempo, a pensar.

 

À medida que passavam os meses, William vivia opresso com medo de que seus pais resolvessem voltar por ocasião da sua formatura, um medo que jamais confessara a si próprio, até que seu pai lhe escreveu de Pequim, em Abril:

«Nem tua mãe nem eu podemos estar aí para assistir à tua formatura, meu querido filho. É um grande pesar para nós. Dis­cutimos o assunto várias vezes, e no princípio eu estava inclinado, com ela, a fazer uso das nossas pequenas economias e pedir uma licença sem remuneração. Depois pareceu-me que não tinha o direito de colocar os sentimentos pessoais acima do trabalho de Deus. Estamos agora a viver na China uma época muito especial. A oportunidade de pregar o Evangelho é verdadeiramente sem precedentes. Por mais que deplore a maneira com que, finalmente, dominámos a Velha Imperatriz, e principalmente a ocupação da cidade pelas tropas ocidentais, ela recebeu, contudo, uma boa lição. Temos agora todas as oportunidades. Deus opera por misteriosos desígnios, e não devemos perder a colheita. Desejo apenas que a Velha Imperatriz venha a compreender que está derrotada. Mas ela não o pode imaginar...»

Duas semanas mais tarde sua mãe tinha-lhe mandado umas páginas divertidamente desoladoras.

«Meu querido William, não posso ir ver-te em toda a magnificência da formatura por Harvard! As meninas saíram-nos muito caro este ano. A operação de apendicite de Henrieta foi uma das causas. O Conselho Directivo pagou-a, naturalmente, como devia fazer. Mas quando pedi umas pequenas férias para assistir à for­matura do meu único filho, recusaram-se, dizendo que já tinham feito muita despesa. Não podemos culpar Henrieta, mas é estranho que isso tenha acontecido exactamente agora. Poderíamos recorrer às nossas economias-uma miséria-, mas eu não o quis fazer: isso poderia meter coisas na cabeça do Conselho. Ó meu filho, vê se consegues várias fotografias do acontecimento! Estou certa de que tens amigos que, em consideração à tua mãe, farão com que eu tenha uma vista desse dia. Fala com o bom Jeremias, ou com Mr. Cameron. Dize-lhes como me dói o coração por não poder estar contigo e com eles.»

William escrevera uma carta adequadamente triste e depois, com o espírito livre da possibilidade da presença dos seus importu­nos pais, empenhara-se em terminar condignamente o seu úl­timo ano.

Numa noite de junho estava a preparar-se para um baile. Era poucos dias antes da formatura, e o baile realizava-se em casa da família de Martin Rosvaine, em Boston. Os Rosvaines eram antigos bostonianos, com a ressalva de que os seus antepassados eram franceses em vez de ingleses. A riqueza encobria esse defeito, e a alegria gaulesa corria nas suas veias, induzindo-os a divertimentos muito mais dispendiosos do que habitualmente seria de esperar dos outros bostonianos. Nessa noite William achava-se tão perto da completa felicidade quanto lho permitiam as suas insatisfeitas ambições. Candace estava entre as jovens convidadas, e ela e seus pais ficaram no Hotel Somerset até depois da formatura. Ele sentia uma doce antecipação quando pensava na sua linda e meiga face e indagava consigo se deveria dizer-lhe que o nome dele estava entre os poucos que receberiam o seu diploma summa cum laude. Resolveu que não, pois Jeremias passara pela tangente, como se diz, apesar da infatigável ajuda dele, William, na mate­mática superior e nas línguas modernas. Candace estava sempre pronta a zombar de gabarolices e ele não podia explicar-lhe que os mestres-escolas ingleses lhe haviam dado uma boa base e que tinha aprendido a assentar bem os fundamentos. Jeremias, guiado por professores particulares durante uma delicada infância, não sabia que as matemáticas devem ser aprendidas como se apanham cardos, que o alemão não pode ser aprendido a não ser que a gente se engalfinhe nele e o domine à força, que o francês pode enganar o espírito e a língua com a sua suavidade e escapar inteiramente à memória. Como um mestre-escola num porto chinês, tinha usado livremente a régua nas palmas de William e batido na cabeça e torcido as orelhas, com os mais amargos sarcasmos sobre os novos-ricos americanos que, na verdade, não passavam de coloniais ingleses, William aprendera cedo a cumprir as suas menores ambições. Mesmo na mais obscura e particular acção, tinha de haver luta e domínio.

Não possuindo a vantagem de tal experiência, Jeremias contentara-se em escapar à reprovação. Estava agora deitado na cama, com um pijama de seda cor de alfazema, que combinava com os seus cabelos claros e a sua tez pálida. Declarara-se cansado só de assistir à partida de «baseball», à tarde. Contemplava pregui­çosamente William a fazer a sua cerrada barba escura com uma navalha à moda antiga. O Sol de junho atravessava as janelas, e William tinha os pés em cima de um brilhante quadrado de luz. O seu espírito estava ocupado com planos que nada tinham a ver com a Universidade. Depois da formatura, passaria duas semanas de férias com os Camerons e depois trataria a sério de conseguir dinheiro para o jornal. Abandonara inteiramente os seus primeiros planos. Não podia pedir dinheiro aos seus colegas nem sequer dos parentes deles. Ele mesmo o conseguiria, se fosse possível, com Roger Cameron, e talvez o tomasse emprestado, com a fiança de Roger. Depois contrataria Martin Rosvaine e Seth James. Mas ele faria o trabalho principal.

-Estás a pensar no jornal - exclamou Jeremias de súbito.

-De facto - replicou William. Estava atando a gravata, com os seus pequenos dedos hábeis e ágeis. -Como sabias?

-Vi por esse ar decidido que tens agora - respondeu preguiçosamente Jeremias. -Temo-o e respeito-o.

---Não sou filho de um milionário - disse William com um impiedoso sorriso. -Tenho de me mexer e lutar, como fez o teu velho. Talvez o meu filho possa ficar deitado e escrever versos.

-Não posso imaginar um filho teu a fazer uma coisa dessas - - replicou Jeremias.

Mas calou-se, depois dessa referência ao filho de William, pois inevitàvelmente um filho deve ter uma mãe e ele sabia agora que William desejava desposar Candace. Estava no embaraçoso papel de confidente de sua irmã e do seu amigo e era incapaz de denunciar a qualquer deles o que o outro lhe dissera. Cada um estava igualmente incerto. William dissera francamente, poucos dias antes: «Não sei se faço bem em me deixar apaixonar por Candy. Agrada-me que ela seja tua irmã, agrada-me a ideia de ser teu cunhado. Mas ela está acostumada a tudo, e eu terei um osso duro para roer. Não a quero ver às costas do pai. Quando casar, serei o senhor. Se eu tiver de comer batatas, ela terá de comer e gostar.»

William parecia particularmente agradável enquanto assim falava. Tinham voltado de um jantar entre homens no seu clube, e envergava um fato novo oferecido por sua mãe. Tinha ido a Nova York para o mandar ajustar.

Jeremias rira. - Garanto que não comerás batatas duas vezes! - replicara. Os gostos de William em matéria culinária eram faus­tosos e caros, de acordo, dizia sempre Jeremias, com o seu antigo costume de comer barbatanas de tubarão e sopa de ninhos de passarinho em Pequim.

Quando afinal Candace tinha falado em casamento na sua presença, ele avisara-a de que William era duro de coração. -Ele quer ser o senhor - dissera a Candace. -Ele tem-se mostrado assim contigo? -perguntara ela. -Não, porque ainda não conseguiu de mim tudo o que deseja.

-E que deseja ele?

-Deseja poder, antes de tudo - disse Jeremias pensativamente.

-É porque se sente inferior - replicara afinal Candace. - ­No fundo do coração, ele tem medo. Isso faz pena, Jeremias! Ele ignora que não precisa de ter medo de nada nem de ninguém, porque é realmente encantador. Ele não sabe o quanto é encan­tador.

Jeremias sorrira-lhe fraternalmente. -Decerto ele havia de gostar que lhe falasses assim. Mas aviso-te, Candy! Terás de te vergar a ele, uma vez que ele te consiga. -E, após um instante de silêncio: - Isso corta-me o coração.

Essas palavras alarmaram-na. -Porquê? -indagara ela.

Ele sacudira a cabeça. -Não há nele nenhum amor por ninguém.

-Talvez não tenha encontrado ninguém para amar - dissera ela, simplesmente.

Fragmentos de semelhantes conversas vinham-lhe à memória enquanto via William vestir-se.

-Vais atrasar-te - avisou William, lançando-lhe um olhar severo. Os seus olhos claros, sob as espessas e escuras sobrancelhas, tinham um estranho brilho metálico.

-A minha família está acostumada comigo. Hão-de esperar. Desejava que meu pai tivesse comprado um Apperson, em vez de um Maxwell.

-O Maxwell 'é maior - disse William.

Mr. Cameron surpreendera todos com a compra de um automóvel depois da Páscoa, e escolhera o Maxwell para viagens. Era movido a vapor, um sistema já antiquado, mas Mr. Cameron tinha medo dos novos carros accionados a gasolina.

Uma espécie de grasnar de ganso atravessou a janela aberta, acompanhado de uma baforada de fumo. Jeremias saltou da cama, meteu a cabeça pela janela e gritou para o motorista: -Esfria isso, Jackson! -E desapareceu na casa de banho, apa­nhando toalhas pelo caminho, macias toalhas de seda bordadas com um grande e complicado monograma.

Tendo ficado sozinho, William pensou em Candace enquanto acabava de se vestir. Arranjadas as unhas, ajustado o casaco, a gravata correcta, o cabelo penteado, examinou-se ao espelho. O moreno oval da sua face não lhe desagradou, apesar da leve parecença que achava ter com Henrieta.

Consultou o relógio. Era mais tarde do que pensava, e per­guntou a si próprio se o florista teria mandado entregar as rosas e os miosótis que encomendara para Cand..ace. Os seus pensamentos revoaram agradàvelmente em torne dela durante um momento. Tinha resolvido desposá-la e, pensando nisso, sentiu uma excitação, até então vaga, apossar-se de si. Porque não pediria a sua mão naquela noite? Uma cálida e bela noite, o romântico cenário de uma casa opulenta, o seu próprio sentimento do êxito de ser coroado em breve com summa cum lande--que mais lhe faltava? Ele não era impulsivo, a emoção fora abrandando lentamente até aquele momento, e desejaria completar esse primeiro capítulo da sua história assentando de vez a questão do casamento.

Estava tão silencioso e até solene que Jeremias fitou-o pensativamente enquanto se vestia. No automóvel, abrigados com bonés e guarda-pós, foram compelidos ao silêncio, enquanto Jackson corria a mais de dez milhas por hora através do campo que escurecia. Ventava e, quando em Boston se abriu para eles a porta da grande mansão, um criado levou-os ao vestiário, onde os dois jovens se limparam da poeira da estrada.

William foi imediatamente separado de Jeremias por Martin, que veio ao seu encontro.

-William... escuta! -rogou Martin, em voz baixa e exci­tada. -A minha velha tia Rosamond acha-se aqui e está interes­sada pelo jornal! -Tinha levado William para um canto, debaixo da grande escada de carvalho.

-Não posso pedir dinheiro a ninguém - murmurou William.

-Não sejas parvo - disse Martin, e, segurando-o pelo coto­velo, levou-o, através do salão, até onde se achava uma velha dama, toda de rendas pretas e com diamantes, sentada numa cadeira de espaldar alto, de encontro a umas palmas.

-Tia, apresento-lhe William Lane.

William inclinou-se.

-Então é o senhor o jovem - disse Tia Rosamond em voz alta. -Veio da China, pelo que disse o meu neto. Terrível país aquele, pelo que ouvi contar, onde atam os pés das mulheres e matam os missionários.

-Tudo isso já pertence ao passado, espero eu-proferiu William gentilmente.

--Não fale na China! -suplicou Martin impacientemente - ­Fale acerca do nosso jornal! -Por sobre a cabeça branca emplu­mada, Martin piscou o olho para William.

-Porque haveria de se importar com um jornal ilustrado para gente que mal sabe ler? -perguntou William.

-Tia Rosamond é uma mulher esperta - replicou Martin.

-Nã< é verdade, Tia? Olha, ela diz aos seus próprios procura­dores o que devem comprar e o que devem vender.

Tia Rosamond sorriu. -Eu sou velha bastante para ser mãe deles - replicou com a sua voz áspera e alta. -Sim, sou velha bas­tante para ser mãe de quem quer que seja. Poderia ser sua bisavó, mas estimo que não o seja. Os rapazes são tão pândegos hoje em dia... O seu jornal vai dar dinheiro?

-Muito! - respondeu William. -Por isso é que o vamos fundar.

-Espero que não seja para nenhuma dessas tolices de fazer o bem das massas - disse a tia Rosamond ainda mais alto.

-Sômente para o nosso próprio bem - disse William. -Quero ser milionário antes dos trinta anos. -Ele sabia agora que o único caminho para interessar os ricos era acenar-lhes com mais riquezas.

-Venha visitar-me - ordenou Tia Rosamond com súbito interesse. Ergueu para ele os seus grandes olhos negros e William viu com surpresa que ela deveria ter sido um dia bela.

-Obrigado - disse William, voltando-se para Jeremias. -Aí está Candace. Desculpe-me, Miss Rosamond. -Inclinou-se e deixou-os, porque não desejava parecer muito solícito com uma velha dama rica, e viu na cara de Martin a relutante admiração que ele amava.

Atravessando o soalho atapetado, parou para apertar a mão de Mrs. Rosvaine, uma simpática mulher grisalha de vestido de seda prateado, e depois a de Mr. Rosvaine, que se parecia com o retrato de seu bisavô francês, que pendia acima da lareira. Depois dirigiu-se aos Camerons e, fingindo que vira Candace por último, apertou as mãos dos dois velhos antes de se voltar para ela. Vestia um longo e vaporoso vestido branco e trazia as rosas e os miosótis. Parecia como uma bela jovem deveria parecer e como ele desejava que sua esposa parecesse, e o profundo e secreto egoísmo da sua natureza extravasou-se-lhe do coração. Era into­lerável que alguém, a não ser ele, possuísse aquela preciosa criatura com todos os seus dons e graças. Poderia percorrer o Mundo inteiro e não encontraria uma mulher cujo carácter combinasse tão bem com o seu e que estivesse ao mesmo tempo ao seu alcance.

-Pareces uma princesa!

-William, não me digas que estás poético. -Dirigiu-lhe o seu descuidoso e belo sorriso.

-Não, não estou - protestou ele. -Criei-me nas vizinhanças de um palácio em Pequim, como sabes, onde moravam e brin­cavam princesas.

Mrs. Cameron ouviu falar e perguntou um tanto secamente: -As suas irmãs vem assistir à sua formatura, William? Apanhado de surpresa, ele também falou mais secamente do que pretendia: - Chegam amanhã.

-Que bicho tão original és tu! -acudiu Jeremias. -Por­que não me disseste que elas vinham?

-Não pensei que estivesses interessado - retorquiu William. -Naturalmente que estou - insistiu Jeremias. -Conheces a minha irmã e eu não conheço as tuas.

-Henrieta é feia - disse William com aparente franqueza. -E, embora Ruth seja bonita, nunca descobri nada de interes­sante nela.

-Os homens nunca vêem nada nas suas irmãs - declarou Candace.

O interesse deles por qualquer assunto que não se ligasse às suas pessoas desvanecia-se ràpidamente. Como todos os ricos, pensou William.

-As salas estão a aquecer - exclamou Mrs. Cameron em voz queixosa.

-Decerto não sentirás tanto calor nessa roupa como eu na minha - disse-lhe Mr. Cameron.

-Não sei - respondeu ela. -Tenho de aguentar um calo... -Mãe, por favor! -interrompeu Candace. -Não me importo com William - disse Mrs. Cameron.

-Já está acostumado connosco.

-Obrigado, Mrs. Cameron - replicou William. -Sente-se. Espero que tenha feito com que Candace reserve a primeira dança para mim. Ela prometeu-me, mas nunca cumpre as suas pro­messas.

-Essa menina é uma nulidade - disse Mrs. Cameron com uma vaga indulgência, sentando-se.

-Reservei, sim - afirmou Candace. -E nunca quebro as minhas promessas.

A orquestra começou a tocar e o salão de baile pareceu subitamente cheio. William deu-lhe um sorriso em resposta e arrastou Candace nos seus braços. Ele dançava bem e tinha a certeza de que o estavam olhando. Imaginava que o consideravam com admiração, embora forçada. Gostava de provocar a admi­ração.

Depois baixou os olhos e viu o rosto de Candace, calmo e belo. A sua pele era bonita, suave, os seus lábios doces e bem delineados. Que felicidade se ela pudesse casar logo com ele! Para quê um noivado longo? Precisava de Candace agora, por ela e por tudo que lhe poderia trazer. Pediria a sua mão naquela mesma noite. Via os olhos de jeremias a espiá-lo. Com quem casasse, e quando, isso era um assunto que só a ele competia. Imerso em tais pensamentos, atravessou a noite, evitando jeremias, dançando repetidamente com Candace e sem convidar mais nin­guém, quando ela não estava livre. Depois, com horror, viu-a dançar duas vezes seguidas com Seth James. Sentiu-se angustiado. Seth era da classe de Candace, filho de um homem mais rico até do que o pai dela.

Dirigiu-se a Candace para reclamar a sua última dança. -Não posso deixar Seth a olhar-te dessa maneira - disse-lhe severamente, enquanto a tomava nos braços.

Ela sorriu sonhadoramente sem responder e ele viu os seus ombros alvos e os seus cabelos de ouro brilhando à luz das lâmpadas. Imaginou que ela estava longe dele e instantâneamente desejou forçar a sua atenção para si mesmo.

-Não vou dizer-te como estás bonita - declarou displicen­temente. -Suponho que Seth já te disse isso tudo. -Sim - murmurou ela.

Imaginou que ela se conservava afastada e puxou-a mais para perto. -Não estás no ritmo.

-Estão a tocar a valsa muito lentamente - replicou ela, mas obedeceu, com a face quase a tocar-lhe no ombro. Mas ainda assim ele não estava satisfeito.

Parou, e permaneceram imóveis no meio da multidão rodopiante. -Vamos lá para fora - disse abruptamente. -Toda a noite tenho estado com uma coisa aqui... uma coisa que eu desejaria dizer.

Ele colocou a mão dela no seu braço e conduziu-a, parecendo estranhamente carrancudo para um jovem enamorado. Jeremias viu-os encaminharem-se, através do salão, para uma porta aberta e, como não estava a dançar, foi ao encontro de seus pais, que dançavam vagarosamente num canto afastado e pararam quando ele chegou.

-Desejava avisá-los - disse em voz baixa. -Exactamente neste instante William está a pedir Candace em casamento.

-Oh! Meu filho... - exclamou sua mãe.

O pai parecia grave. -Não sei o que possamos fazer a esse respeito - disse ele, depois de pensar um instante.

Diante dos olhos atónitos de Jeremias, os dois olharam um para o outro e reiniciaram os lentos compassos da sua valsa. Após um momento retirou-se e depois foi servir-se de um grande copo de whisky, que bebeu de uma só vez.

Lá fora, sob um caramanchão de glicínias, no jardim alu­miado por lanternas chinesas, William iniciou, finalmente, a sua proposta de casamento a Candace. Tinha-se perguntado muitas vezes como isso ocorreria, e tinha feito meia dúzia de planos, nenhum dos quais pôs em execução agora. Ela parecia tão serena, tão cheia de suave bom-senso, que lhe pareceu avisado abordá-la de igual modo.

-Candy, creio que sabes há muito tempo que desejo casar-me contigo, se me quiseres.

Estas foram as palavras que disse quase imediatamente depois de se sentar a seu lado. Ela abanou o pequeno leque chinês. Dera-lho ele no último Natal. Era um leque de seda e sândalo que sua mãe escolhera para ele em Pequim. Ele sentia agora o cheiro do sândalo no ar morno da noite, e lembranças da infância surgiam-sândalo e incenso e o cheiro abafado e adocicado dos velhos templos das colinas, onde as famílias dos missionários americanos iam algumas vezes fazer piqueniques, nos longos e cla­ros Verões setentrionais. Afastou de si essas inúteis recordações.

Candace não tinha replicado.

-E então? -perguntou ele um tanto bruscamente.

-Não pensava que fosses fazer já o pedido - respondeu ela.

Não poderia dizer, pelo tom límpido e frio da voz, se ela estava alegre ou triste. -Eu tão-pouco o sabia - replicou ele, na maneira como tinha escolhido para se apresentar. -Talvez eu deva esperar até que tenha alguma espécie de renda. Mas nestes últimos dias tenho perguntado a mim mesmo porque haveria de esperar. Prefiro lembrar-me algum dia, depois de ter construído um palácio e o ter enchido de escravos, que te fiz o pedido quando não tinha dinheiro e que me aceitaste assim mesmo.

Ela riu. -Bela ideia! -Agitou o leque, e mais uma vez o ar perfumado lhe bateu no rosto. Ele desviou-se, meio impa­ciente.

-Queres então, Candy?

-Quero o quê?

-Oh, Candy, não brinques!

-Mas ainda não me disseste que me amas! -Naturalmente que te amo.

Era a primeira vez que se dirigia a alguém nestes termos e as suas palavras agitavam-se-lhe na língua como seixos.

-De que modo estranho dizes isso! - observou ela maliciosamente.

-É porque é estranho para mim. Eu nunca disse isto a mais ninguém.

Isso sensibilizou-a, ele bem o sabia. Ela olhou-o curiosamente, com as pestanas erguidas, imóveis. Ele tinha em si a habitual carga de paixão, supunha, embora nunca o tivesse experimentado. Jeremias era puro e delicado, e, apesar de Martin visitar estra­nhos lugares, os rapazes com quem William se havia dado não eram fisicamente grosseiros. A luxúria não era um dos seus pecados naturais. Mas lentamente sentiu erguer-se em si um forte desejo de abraçar aquela bela jovem e, guiado pelo instinto, abriu os braços e sentiu-a abrigar-se entre eles. Sentiu-lhe os cabelos contra a sua face.

-Querida!

A palavra brotou por si mesma nos seus lábios. Ouvira seu pai usá-la uma, duas vezes, com sua mãe. Raramente se mostravam afectuosos diante dos outros, e a palavra gravara-se-lhe no espírito.

-Serás bom para mim, William?

-Sim. Juro que sim.

Ouviu-a suspirar, sentiu-a inclinar-se contra ele, e o leque caiu no chão. Pareceu-lhe subitamente que a amava com todo o amor de que era capaz.

Por sobre o jardim, à claridade mista do luar e das lanter­nas, uma valsa rápida flutuava em ondas de música e Candace perfilou-se. -Vamos dançar!

-Ficamos, pois, comprometidos, Candy?

Ela ergueu-se, mas ele não a deixou ir, com os braços a enlaçar-lhe a cintura.

-Eu... eu suponho que sim - disse ela, meio hesitante, meio receosa.

-Comprometidos!

Ele ergueu-se, enlaçou-a de novo e beijou-a forte e demoradamente. Quando a largou, ela soltou um pequeno grito: -Ah, quebraste o meu leque!

Com efeito, quando o ergueu, estava nas suas mãos como uma flor partida. Esmagara-lhe a filigrana com o calcanhar, e o cheiro, forte, subiu-lhe às narinas.

-Não importa, mandarei buscar outro a Pequim, de marfim em vez de sândalo, e forrado com penas de alcião em vez de seda.

-O marfim não tem perfume - queixou-se ela. -Dá-me os pedaços, William. Jamais gostarei tanto de outro leque.

Ele deu-lhos, quase ressentidamente, após o que penetraram no salão e começaram a dançar em silêncio. Ficara aborrecido consigo mesmo e depois com ela. O momento que desejara perfeito havia terminado mal. Ele fora desastrado, talvez, mas ela tinha sido imperdoável. Em todo o caso, fizera o pedido e fora aceito. Continuaram a dançar.

 

No dia da formatura, William levantou-se e tomou café antes que Jeremias despertasse. Depois atravessou o pátio e diri­giu-se até ao grande olmo junto do qual tinha combinado encon­trar-se com suas irmãs e avós. Tinha chegado cedo à cidade e tomado um carro até um pequeno hotel de segunda classe, onde lhes haviam servido o breakfast.

Via-os à sua espera agora e, por um momento, pareceram-lhe tão destacados, tão isolados, como uma fotografia num álbum de família.

Henrieta estava mais vulgar do que nunca, e seus avós eram mais classe média do que julgara possível. Ruth crescera bonita e graciosa, e ele sentiu um súbito renovo de afeição por ela. Não precisava de se envergonhar dela. Mas nenhum desgosto transpare­ceu na sua moça e resoluta face; e apertou a mão dos velhos.

-Como vai, avô? Avó, foi muita bondade da sua parte... realmente... Espero que a viagem não tenha sido muito incómoda. -Beijou a face de Henrieta e enlaçou os esbeltos ombros de Ruth. -Venham. Vamos conseguir bons lugares.

O pátio enchia-se de vida. Finalistas de gorro e capa atare­favam-se aqui e ali.

Deixou os seus hóspedes na vasta entrada do «hall», onde já começava a reunir-se alguma gente, e empenhou-se em encontrar lugares de onde pudessem vê-lo receber o diploma.

-Ruth ficará no corredor. Assim poderá ver-me quando entrarmos marchando - disse ele, colhendo um seu sorriso.

Henrieta nada dissera desde que se haviam encontrado. Traz um simples vestido de linho azul e um pequeno gorro de marinheiro que ainda mais lhe realçava os ângulos da face. Tinha olhos castanhos como os do pai, mas eram fundos e intensos, ao passo que os dele eram rasos e suaves. William observou isso, mas não notou o silêncio dela. Apressava-se em tratar dos seus próprios assuntos e em deixá-los.

Esperem-me de novo debaixo do olmo, quando isto ter­minar.

Encontrou os seus graves, deslumbrados olhos, tentou sorrir e retirou-se à pressa. Os seus aposentos estavam vazios, Jeremias tinha saído. Apanhou o capelo e a capa e ajeitou-os, lançou um olhar ao espelho e juntou-se à apertada multidão. Sentiu que- o miravam enquanto se dirigia para o pátio, mas não olhou para ninguém. A confiança, a animação, a segurança do triunfo estavam ocultos por de trás da sua calma e bela face. A honra que o dia lhe traria era apenas o primeiro degrau de tudo o que havia à sua frente, e ele sabia-o. Tomou lugar entre os seus colegas, e o importante dia começou, com o fim e propósito de quatro longos e às vezes fasti­diosos anos.

Depois, de súbito, perdeu-o, como perderia tantos dias da sua vida. Tudo se tornou irreal para ele. O seu espírito parecia abandonar o corpo. Corria adiante dos anos, planeando, lutando, conquistando tudo quanto desejava. Quando teria o suficiente? Quando saberia o que era a satisfação? Tentava concentrar-se naquela hora que, agora que a tinha, não mais parecia um fim, mas apenas um princípio. Chegava a sentir vagamente que a estava a perder e desejava conservá-la. Era uma parte de satisfação, pelo menos o primeiro passo para o complemento, e um fragmento da sua vida que se completava. Tentava pensar em Candace enquanto se achava sentado entre os seus colegas; e tentava avaliar o som do seu nome na lista de honra.

«Wiiliam Lane, summa cum laude.»

Mas já cessara de avaliar o que possuía, tão imenso era o seu desejo do que ainda estava por vir.

Quando a longa manhã terminou, foi novamente ao encontro dos seus avós e irmãs. Estavam à sua espera, junto do grande olmo, e a avó murmurou afectuosamente quando ele se aproximava:

-Tua mãe vai ficar tão orgulhosa! -E os olhos humedece­ram-se-lhe com o fácil pranto dos velhos.

-Meu pai obteve as mesmas honras - disse William modestamente. -E no seu tempo era mais difícil. Exigiam muito mais grego do que agora.

Ruth estendeu-lhe uma caixinha, e ele tomou-a com afectada surpresa. -Uma corrente para o teu relógio - murmurou ela. -Não é grande coisa.

-Eu trouxe-te um livro - disse Henrieta, apresentando um pacote. -Embrulhei-o em papel vermelho porque é como fazem na China.

-E a tua avó e eu trouxemos-te um pequeno cheque - disse o avô, entregando-lhe um sobrescrito.

-Tudo isso é muito - disse William gentilmente.

-Vamos ver - disse Ruth-se não há cartas da mãe e do pai! Eu sei que a mãe ia fazer com que chegasse uma carta neste mesmo dia. -Passaremos pelo meu quarto a caminho do hotel – disse William.

Quando procurou na sua caixa, não havia carta da China. Havia ali algumas contas e uma carta sobrescrita com uma letra que não reconheceu. Eram uns apertados gatafunhos, mas que ti­nham uma curiosa forma pessoal. Leu no sobrescrito o endereço, de uma cidade de Ohio que não conhecia, e acima estava o nome de Clem Miller.

-Nenhuma carta - disse ele ás suas irmãs. -Quero dizer, nenhuma carta deles. Mas aqui está uma estranha.

Rasgou o sobrescrito. Dentro havia uma simples folha de papel pautado, coberta com a mesma letra apertada, mas clara.

Prezado William:

Não se deve lembrar de mim. Uma vez, em Pequim, você disse-me que parasse de brigar com um garoto chinês. Nunca mais o vi depois disso. Aqui estou eu, num armazém de mercearia. Um bom trabalho. Mas gostaria de ter tido uma oportunidade como William. Em todo o caso, vou lutando por melhor coisa. Consegui o seu endereço por intermédio de seu pai. Eu tinha escrito aos Fong, uns amigos meus de Pequim, mas, como estava muito esquecido do chinês, escrevi em inglês, pensando que talvez o filho deles, Tusan, pudesse ler. Ele mostrou a carta ao Dr. Lane, e este escreveu-me dizendo que William estava terminando o seu curso. Seu pai recomendou-me que entrasse em contacto consigo, e assim o faço, em lembrança dos velhos dias.

Sinceramente seu,

Clem Miller

-De quem é? -perguntou Ruth, enquanto caminhavam pela rua.

William procurava um automóvel. O Sol fazia-se quente. -Lembram-se daquela Missão Familiar de Pequim? Ruth meneou a cabeça. -Não me lembro muito de Pequim. -Eu lembro-me deles-proferiu Henrieta de súbito. -Deixa-me ver a carta.

-Podes ficar com ela, se quiseres - disse William displicen­temente. -Não há motivo para que lhe responda.

Avistou um automóvel, chamou-o e subiram todos. William tomou o pequeno e incómodo assento, embora Ruth se oferecesse para o ocupar. -Vocês são meus hóspedes - anunciou ele com o seu melhor sorriso.

O dia continuou, e ele vivia aborrecido mas correctamente cada uma das suas horas. Mostrou o colégio à sua família, e sua avó sugeriu que fossem visitar os seus aposentos. Ele foi-se esquecendo disso, até que Henrieta súbitamente protestou. -Acho que não nos queres mostrar a tua casa - declarou ela.

Diante disto, com secreta raiva, ele conduziu-os aos seus aposentos, receando a possibilidade de que os Camerons lá estivessem. Mas os quartos estavam vazios e sua avó sentou-se na poltrona de Jeremias e baixou o sapato no calcanhar. --Comprei sapatos novos para o grande dia - disse ela, à guisa de desculpa, e bem sabes o que é um sapato novo.

Ele não respondeu a essa terrível observação, e não teve repouso enquanto não os viu erguerem-se. Mas não a tempo, pois no momento em que alcançavam a porta, Jeremias entrou, e William não pôde furtar-se às apresentações. Jeremias, com a sua graça habitual, parou a falar com os velhos, e Ruth juntou-se a eles. Henrieta conservava-se à parte, à sua maneira.

Isso não durou mais que um momento, e ele conduziu-os de novo, agora para o portão e o carro. Depois de terem partido, sentiu-se exausto, embora não pudesse demonstrar cansaço, pois alguns homens que não conhecia paravam para se congratular com ele. Tentava aceitar modestamente os seus louvores, parecer indiferente, como se as honras nada significassem para si, mas imaginou que eles notavam o seu fingimento, e então tornou-se seco e altivo e sentiu-se mal-humorado. Fazia calor, e desejava tomar um banho e dormir alguns minutos.

Meia hora mais tarde, estendido na cama no quarto solitário, com as cortinas descidas por causa do Sol, quando procurava pensar em Candace, surpreendeu-se, em vez disso, a pensar na Tia Rosamond. Podia ser muito fácil na verdade conseguir dinheiro de uma velha dama como aquela, talvez muito dinheiro. Depois de ter tido esses pensamentos, achou que, em sã consciência, deveria envergonhar-se, mas tal não aconteceu. Não tinha nada de seu nem ninguém que o ajudasse. Não havia uma única pessoa na sua família que não fosse mais que um estorvo para si e, quanto mais cedo se separasse deles, melhor. Divertiu-se ao lem­brar-se do convite da Tia Rosamond. Isso nada significava. Sabia agora que os ricos podiam dizer palavras amáveis com a mesma facilidade como respiravam, e com igual significação. Era duro ser amigo de ricos e dos seus filhos, mas era o único meio de con­seguir o que necessitava para a sua própria independência. Algum dia, quando tivesse tudo o que desejava, haveria de lhes mostrar o quanto os desprezava.

 

SoziNHa no quente e acanhado quarto da casa suburbana, Henrieta escrevia uma carta a Clem Miller. Estava deses­peradamente cansada e, como habitualmente depois de ter estado com William, cheia de melancolia. O primeiro olhar de William para si fora o suficiente para lhe dizer que era ainda feia, era ainda tudo o que não desejava ser. Era nela um sinal de grandeza, que desconhecia, que amasse Ruth terna e humildemente, apesar da preferência de William. Ora, dizia ela consigo aquela noite, que importava o que William pensasse. Mas importava-lhe e sempre lhe importaria o que ele pensava dela. Começara nos velhos dias da casa da Missão em Pequim, quando a amah que os tinha criado todos lhe dissera que as meninas deviam sempre curvar-se ao precioso filho único da família.

-Tu - dissera-lhe Liu Amah - és apenas uma menina. Weelee é um menino. As meninas não são tão boas como os-meni­nos. Os homens valem mais do que as mulheres.

Henrieta suspirou. Era tarde, e ela já devia estar a dormir, mas não o conseguia. Seus avós e Ruth já dormiam, senão a avó teria vindo bater-lhe à porta para lhe perguntar porque estava ainda com a luz acesa. Mergulhada no insondável desamparo dos jovens, Henrieta ainda estava acordada e pensava em Clem. A carta dele ainda estava na sua carteira e ela lera-a duas vezes, atenta e vagarosamente. Então começou a escrever:

 

Prezado Clem:

Você não me conhece, mas eu sou irmã de William Lane. William é muito orgulhoso para lhe escrever. Ele sempre foi um rapaz muito orgulhoso, e agora está pior do que nunca, embora já não seja um garoto. Considera-se um homem. Suponho que seja um homem, pois já terminou o curso. É muito distinto. Diplomou-se ontem com as maiores honras. Sinto dizer que não creio que ele alguma vez lhe escreva. Mas penso que alguém deveria fazê-lo, visto que vocês se conheceram na velha Pequim, e por isso lhe escrevo.

Não sei muito a seu respeito, de modo que lhe falarei acerca de mim mesma. Tenho dezoito anos, e no próximo Outono entrarei para a Universi­dade, como espero. Não sou nada bonita... é melhor ir logo dizendo. É estra­nho, pois pareço-me bastante com William, e ele é considerado um belo rapaz. Suponho que não é obrigatório uma rapariga ser bonita. Minha irmã Ruth é que é bonita.

 

Ela parou e viu que não tinha mais nada a dizer. Essa era mais uma das suas deficiências. Era tão sensível, tão cheia de inde­finidas mágoas e anseios, e de infinita solidão, mas nada disso ela poderia dizer em palavras a ninguém. Ela e Ruth haviam fre­quentado uma escola pública, uma vez que todo o dinheiro fora necessário para William, mas lá não encontrara especiais amizades. As meninas achavam-na esquisita porque se criara na China. Talvez fosse por isso. Mordeu a ponta da caneta de madeira e continuou:

 

Você nunca pensa em Pequim? Eu penso, e muitas vezes. Da janela do meu quarto lá onde meus pais moravam, eu costumava olhar para um pequeno e baixo pagode--um dagoba, que era como se chamava, creio. Tinha sinos nos cantos e, quando a janela estava aberta, eu podia, da minha cama, ouvi-los tilintar. Queira dizer-me se ainda pensa nessas coisas. E se pretende voltar lá um dia. Eu bem gostaria, mas não sei como poderia ganhar a minha vida lá, visto que não pretendo ser missionária.

 

Depois, como não conseguiu continuar assinou «sinceramente», etc. Depois de fechada e selada a carta, pareceu-lhe que a devia remeter imediatamente, embora já fosse meia-noite. Este severo aviso deu-lho o relógio que estava por cima da sua lareira, mas não fez caso. Pôs um vestido sobre a camisa de dormir, calçou os chinelos, desceu silenciosamente as escadas até à porta da rua, onde havia um marco postal. Às sete horas, sabia-o ela, a corres­pondência seria recolhida e, à hora do café, a carta estaria a cami­nho da pequena cidade de Ohio que parecia tão longe como Pequim. Ouviu o sobrescrito cair, surdamente por detrás da aber­tura, e depois voltou ao seu quarto. Agora podia ir para a cama. Tinha estendido a mão nas trevas e talvez alguém estendesse a sua e a estreitasse. Confortada pela esperança, meteu-se na cama e mergulhou num sono que a levou aos sonhos infantis de uma residência murada em Pequim, a uma sombria casa missionária, onde silenciosos criados amarelos iam e vinham, trazendo sorrisos e gentil estímulo a uma assustada e vulgar rapariga americana.

 

Quando a carta chegou às mãos de Clem, achava-se ele na loja. Era por volta do meio-dia, e Owen Janison, o proprietário, seu patrão, voltava da sua diária travessia da rua até o Correio.

As cartas de Clem eram poucas e até agora tinham vindo com selos e carimbos chineses.

-Você recebeu uma carta de algum lugar de Nova York, parece - disse Mr. Janison. Era um homem alto e magro, cujos bigodes pendentes se juntavam, no queixo, a uma desbotada barba amarela. Vestia um fato cor de cinza e uma camisa engomada, com colarinho de celulóide.

Clem estava em mangas de camisa atrás do balcão. Tomou a carta e olhou-a cuidadosamente, sem abri-la. -Obrigado, Mr. Ja­nison - disse ele. Estendeu uma manta de carne seca em cima do velho balcão.

-Uma libra, não foi o que disse, Mrs. Bates? -inquiriu ele.

-Talvez libra e meia - replicou a freguesa, hesitante. - ­Mr. Bates é que gosta muito disso, mas, mal como um pedaço, engasgo-me.

Clem não respondeu a essa observação. Desde que ele e Bump, por uma fatigante manhã, tinham chegado a New Point, no Ohio, aprendera a viver em dois planos, o imediato e o real. Até mesmo Mr. Janison, de que ele e Bump dependiam para viver, era imediato e não real. Real era o passado e real o futuro, ambos igualmente claros apenas para ele. Para recapturar o passado, tinha escrito a Yusan, o filho de Mr. Fong, e recebera a carta do Dr. Lane. Yusan tinha esquecido o seu inglês e entregara a carta de Clem ao missionário. Do Dr. Lane viera uma amistosa carta, a maior parte da qual a respeito de William e só um pouco a respeito de Yusan. O Dr. Lane considerava óbvio que um jovem residente na América chamado Clem Miller devia interessar-se por seu filho William.

Lendo as linhas um tanto pomposas da carta, pois tudo quanto escrevia o Dr. Lane caía inevitàvelmente no estilo de um sermão, Clem sentira todas as velhas realidades. Yusan, aos dezasseis anos, estava noivo de uma jovem da escola missionária, embora o casa­mento não fosse para já. Tornara-se um correcto rapaz, por cuja alma o missionário velava. Mas Yusan recusava-se a ser cristão. Real era a lembrança de Yusan, o teimoso rapaz que se estava fazendo homem. Reais eram as horas que Clem passara com ele na casa de Mr. Fong. Real era a lembrança das ruas de Pequim, a neve que no Inverno cobria os telhados da casa e do palácio. Reais eram os fabulosos céus de Verão. Clem relembrava cada pormenor da sua infância, o prazer de possuir às vezes algumas moedas para comprar um cartucho de amendoim embrulhado em papel pardo manufacturado, grosso e tenro como mata-borrão. Real, também, era a alegria de uma batata doce quente, por uma fria manhã, comprada à boca do forno de um vendedor, e real o prazer de uma rubra melancia aberta num dia de julho. Reais eram as caravanas de camelos trotando através da poeira, condu­zidos por um homem da Mongólia que teria um abrigo enquanto caminhava, arrancando dos camelos as longas estrias de pêlos que eles mudavam no fim do Inverno. Reais eram os macaquinhos acorrentados e os ursos dançarinos, os actores ambulantes e os mágicos e tudo o que fazia das ruas da cidade um lugar de diversão para um errante rapaz estrangeiro.

Na necessidade de trazer mais para perto aquela realidade da infância, até ao remoto país que era o seu, mas que não podia reclamar e que não o reclamava, Clem havia escrito, num impulso, a William, de quem se lembrava apenas como lhe aparecera naquele dia em que um garoto chinês chamara a seu pai mendigo porque deixava o pão ao cuidado de Deus.

A carta que Mr. Janison agora lhe trazia, era, supunha ele, de William. Esperou, no entanto, até que chegasse a hora do seu almoço, que consistia num pão velho e uma fatia de queijo, que ele comia na despensa. Mr. Janison ia almoçar a casa ao meio-dia, e Bump estava a trabalhar numa granja, agora que a escola terminara. Clem mostrara-se severo quanto aos estudos de Bump. Pusera de parte a esperança de algum dia ele mesmo frequentar uma escola, embora não para aprender coisas ordinárias como geografia e aritmética, que poderia estudar em livros, à noite, no seu quarto. Desejava estudar grandes e importantes matérias, tais como a de alimentar milhões de pessoas. Estava obcecado com o problema da alimentação, embora o seu próprio apetite fosse frugal. Menino magro e meão que fora, conservava a mesma compleição como rapaz. Tinha os ombros quadrados, a cintura fina, sem carne alguma. Até os ângulos do seu rosto permaneciam descarnados, e as suas faces eram cavas e os seus olhos fundos.

Tinha abandonado a crença de seu pai e não rezava, excepto as orações que fazia no íntimo da sua própria alma. Havia, acre­ditava ele, apenas umas poucas coisas essenciais a uma boa vida, mas que eram, porém, essenciais a todos, e o alimento estava em primeiro lugar, alimento barato e nutritivo. Bump, por exeemplo, nunca se fartava. Sentava-se às vezes a ver Bump comer, no pequeno quarto em que moravam juntos. Sempre levava uma boa refeição à noite para Bump, um cozido ou carne e repolho, bastante pão e manteiga. O seu modesto apetite era logo satisfeito, mas aprazia-lhe a voracidade de Bump. Conseguira o alimento, e esse era o prazer que sentia. Ninguém lhes dera coisa alguma. Tinha trabalhado e comprado o alimento. Comprava alimento barato, pois esse era bastante bom. Não desejava fantasias culi­nárias e mostrava-se severo com Bump a respeito de tortas e pastéis. Se todos pudessem comer suficientemente um bom e simples ali­mento, dizia ele a Bump, então não haveria mais perturbações no Mundo.

Educava Bump, às vezes com severidade, mas bondosamente em suma, com o profundo instinto paternal com que, na verdade, encarava o Mundo, embora não o soubesse. O tratamento para com um bêbedo que viesse, numa noite de Inverno, ao armazém, pedir um níquel para «tomar café», era dar-lhe uma alentada sanduíche de queijo. «Coma isso, e não sentirá necessidade de se embebedar por algum tempo», dizia ele com juvenil autoridade.

No quarto do fundo do armazém, deserto durante a hora do almoço, estava ele agora sentado num cesto e tirou a carta do bolso. Sem perder tempo em conjecturas, rasgou o sobrescrito e ficou pasmado ante as primeiras palavras da carta. Nunca tinha recebido carta de uma rapariga, nem escrito a nenhuma. Pouco pensara em quaisquer raparigas, ocupado como sempre estivera em ganhar a vida e educar Bump. Agora uma rapariga havia-lhe escrito.

Leu a carta atentamente, achou-a bastante razoável, e tornou a lê-la. Com que então ela também se lembrava de Pequim? Sentiu-se excitado, não porque fosse uma rapariga que lhe escrevia, mas porque ela, como ele, nascera num outro mundo, de que ninguém ali tinha noção alguma. Aprendera agora a viver na América, mas para ele sempre havia também o Mundo e mais outros povos. Não poderia falar nisso aos americanos. Eles não desejavam saber nada a esse respeito. O povo ali satisfazia-se apenas em saber o que acontecia nas suas próprias ruas.

Ficou ali sentado a cismar até que, ouvindo a sineta que anunciava um freguês, voltou para a loja. Responderia à carta, sim, talvez no domingo, depois de Bump ter partido para a escola dominical.

Assim, duas semanas mais tarde, numa quinta-feira de manhã, Henrieta recebeu a carta por que esperava e pela qual tinha ido todas as manhãs abrir a porta ao carteiro. Imediatamente meteu-a no bolso do avental. Naquele dia estava ela a fazer a limpeza do sótão, um mofento e abafado lugar debaixo do telhado, cheio de velhas coisas fora de uso. Para lá voltou, a fim de ler a sós a carta de Clem.

 

Prezada Henrieta:

Foi uma surpresa, naturalmente, mas era mais fácil receber uma carta sua do que de William. Sou mais velho do que você, mas não posso frequentar a escola por ter de ganhar a vida. Sou órfão, e tenho também de sustentar um órfão. Nem mesmo sei como é o nome dele por extenso; chamam-no Bump, mas estou certo de que não é esse o seu nome. Diz ele que, quando era pequeno, achavam-no metediço (bumptious) e assim começaram a chamá-lo Bump. Não pode lembrar-se de jamais ter tido família, e é o que chamam um filho do Auxílio. Não sei porque lhe estou falando nisso agora. Algum dia contarei mais por miúdos como foi que ele ficou a meu cargo.

Sou um mau rabiscador de cartas, pois não disponho de muito tempo, mas gostaria que você soubesse que me lembro de Pequim. Como ninguém aqui sabe nada de Pequim, seria bom que eu pudesse conversar consigo sobre isso. Quem sabe, um dia talvez eu possa ir vê-la pessoalmente, mas isso só depois de Bump estar encaminhado. Tenho muitas ideias sobre o que hei-de fazer depois, quando puder pensar em mim e na minha própria vida.

Gostaria de receber outra carta sua. Seu sinceramente,

Clem Miller

Assim começou a troca de cartas entre uma pequena cidade de Ohio e um subúrbio de Nova York. Sem se ver um ao outro durante mais de dois anos, teciam ambos uma comum teia de sonhos. Tão profunda era a sua necessidade de sonhar que nenhum desperdiçava tempo em contar ao outro os factos mais singelos da sua vida : Henrieta, que se formara por uma escola pública superior, quase sem amizades, porque as outras raparigas a julgavam muito altiva para tomar parte nas suas conversas sobre namorados e bailes, e Clem, que gastava a sua mocidade atrás do balcão de uma casa comercial do interior. Coisas como essas nenhum deles as considerava importantes. Estavam ambos reconstruindo o passado para construir o futuro. Passaram-se anos antes que Henrieta soubesse todos os simples factos da vida de Clem.

Eis os factos. Ele voltara-se naquele dia, vendo Bump que corria, ofegante, ao seu encontro, na poeira da estrada. Nessa noite haviam dormido num estábulo, tendo o cuidado de não despertar o granjeiro e a sua família, e dali puseram-se a caminho pela madru­gada.

-Acha que a Auxílio vai mandar gente atrás de nós? -per­guntou Bump no outro dia.

-Não creio que eles se importem muito com o que nos suceda- - replicou Clem.

O tempo estava magnífico. Naquele dia ele começou a ter uma aproximação mais íntima com a sua própria terra. Tinha andado infindáveis milhas através da terra chinesa com uma velha que não conhecia, ligando aldeia a aldeia com seus solitários passos. Agora caminhava outras tantas milhas com um garoto que era um estranho para ele, através de uma terra igualmente estranha. Ali havia poucas aldeias, e as granjas eram separadas e solitárias. Evitava-as, excepto quando precisava de comida; ia então bater à porta de uma cozinha para pedir trabalho. Era duro com as mulheres compassivas que queriam dar-lhe um prato de comida e pedia que lhe fosse permitido pagar o que comia, e era igualmente duro com os homens grosseiros que declaravam que não havia trabalho. Tinha de haver trabalho, dizia-lhes, porque tinham de comer.

Quantos dias 'caminharam por aquele Outono luminoso, não os contou, ou não se importou em contá-los. Lentamente aprendeu a amar o aspecto daquela terra, mesmo os seus espaços incultos e as suas estradas ásperas. Aprendeu a desconfiar dos velhos vagabundos e a escolher as estradas laterais que estes evitavam. Mas nessas estradas e nas granjas remotas a gente que encontrava era boa. Não eram gregários aqueles campónios da sua terra. Não viviam em grandes famílias como os chineses. Duas gerações numa casa, era suficiente, e talvez muito. Muitas vezes um homem, uma mulher e seus filhos viviam sòzinhos sob um tecto. As crianças eram geralmente towheaded e tinham a face curtida pelo Sol e o vento e, como era um estranho, fugiam à sua aproximação, como as crianças chinesas. Considerava aqueles possuidores da terra como gente meio selvagem e escassamente civilizada, mas conservava-se entre eles.

-Não vamos parar nalguma parte? -perguntou Bump um dia.

-Sim, em breve. Tens de ir para a escola - respondeu Clem.

-Tenho de ir para a escola? -gemeu Bump.

-Naturalmente que sim - disse Clem com severidade:

Um dia chegaram a uma cidade que lhe agradou, ,embora não parecesse diferente de qualquer outra. Mas era em Ohio, um Estado de que vinha gostando, onde a gente era correcta e lia a Bíblia. Lembravam-lhe os seus próprios pais ledores da Bíblia, que mesclavam a bondade com uma rígida virtude. As ruas da cidade eram limpas e havia uma escola com tabuleta branca. A igreja, o correio e o armazém geral ficavam em volta de uma praça verde, no meio da qual se erguia uma tosca estátua de Lineoln. Estes foram os motivos por que Clem escolheu New Point, dirigiu-se primeiro ao armazém. Lá encontrou o homem alto e magro, que lhe deu emprego, após alguma hesitação, e deixou-o ocupar um quarto no andar superior, como parte do seu salário semanal. Clem comprou para Bump um fato, um par de calças e dois pares de meias a crédito, e mandou-o para a escola na próxima segunda-feira.

No fim dessa segunda-feira, dera ele em Bump a sua primeira e única surra. O rapaz tinha voltado da escola com ar sombrio e dirigira-se em silencio para o quarto. Clem estava ocupado com um freguês e, logo que se viu livre, apressou-se em subir as escadas. Foi encontrar Bump empacotando as suas roupas num saco de farinha.

-Que estás a fazer? -perguntou Clem.

Bump lançou-lhe um olhar duro. -Não quero ficar contigo - respondeu numa voz débil.

-Porque não?

-Não quero ir à escola.

Clem olhou para aquele garoto em que se resumia agora toda a sua família. -Por que razão? -indagou de novo. -Não gosto da escola.

A cólera ferveu na alma de Clem. Não gostar de ir à escola, não aproveitar a oportunidade que lhe era oferecida, não aceitar o dom do sacrifício, parecia a Clem tamanha ingratidão que a Terra não a poderia sustentar nem o Céu permiti-la. Atirou-se a Bump, segurou-o pelo fundilho das calças e ergueu-o do chão. Deixou-o cair em cheio, ajoelhou-se a seu lado e bateu-lhe com ambas as mãos até que o rapaz se pôs a gritar. Mr. Janison, ouvindo o barulho, apressou-se em subir as escadas.

-Larga-o! -gritou ele. -Queres matar a criança?

Clem voltou para ele uma face imóvel e branca. -Ele há-de aproveitar a sua oportunidade, ainda que eu tenha de o matar! -- - replicou, e continuou o seu castigo. Depois de ter deixado Bump erguer-se, apontou para o saco de farinha e esperou até que o garoto, aos soluços, retirasse dali as suas roupas.

Janison também esperava, com um sorriso singular por detrás dos bigodes. Depois Clem voltou-se solenemente para o seu patrão: -Quero criar este rapaz como meu próprio irmão. Isso quer dizer que ele vai ter uma boa educação, a educação que eu desejaria ter tido. Ele tem de ser um homem, e não um inútil qualquer.

Mr. Janison coçou a barbicha. -Sim, senhor! Foi a mais linda lambada que já vi.

Voltou para a loja e Clem sentou-se na cama. -Bump, espero nunca mais tornar a bater-te - afirmou gravemente. -Não acre­dito nisso e não acho que deva fazê-lo. Mas, se te atreveres a fugir e deitar fora uma oportunidade como a que te ofereço, sairei atrás de ti e dou-te uma sova, em qualquer lugar que te encontre. Estás a ouvir?

-S... sim - disse Bump.

-Está bem. -Clem não sabia agora como continuar. -Vai lá para baixo. Vou dar-te bolachas e queijo... e doces - disse finalmente. Comida, pensou ele, era de que o garoto precisava, e de alguma coisa doce, também.

Nos próximos anos, enquanto Bump se tornava um rapaz ajuizado, Clem pensava às vezes na sua origem. Era um rapaz sem pais, sabia-o Clem; sem pais, isto é, excepto no mais simples sentido animal. Mom Berger dissera-lhe uma vez, depois de os garotos terem ido para a cama, que eles eram todos filhos do amor, «menos o tal Bump».

-Que é ele? -perguntou Clem.

-Não sei como lhe chamar - dissera ela misteriosamente. Com um embaraço que ficava ridículo na sua grosseira pessoa, ela franzira os lábios e permanecera em silencio. Pop Berger conti­nuara a sórdida história.

-Esse tal Bump - disse ele, após uns instantes de ruminação e mastigando a ponta de um cigarro - é o que se pode chamar filho da violência.

-Quer dizer...?

-Hã - disse Pop Berger lentamente, saboreando a pérfida revelação. -O pai dele atacou e derrubou uma menina nas ruas de Filadélfia. Veio em todos os jornais.

-Ahn... - disse Mom Berger atrás do fogão. -Pergunto se terá sido mesmo à força... Uma mulher não se deixa forçar tão fàcilmente... Ou, se deixa, onde é que está a violência?

Pop continuou a história. - Mas o facto é que o caso foi levado a justiça como estupro, e o seu autor, isto é, o pai de Bump, teve de pagar uma indemnização.

-Umas fazem a vida de uma maneira e outras de outra - ­dissera Mom Berger, que batera numa tampa do fogão para dar a entender a Pop que bastava.

Se a história era verdadeira, pensava Clem cheio de compaixão então Bump não tinha absolutamente pais, isto é, nem pai nem mãe. Pelo acidente de dois corpos em conflito, fora ele concebido, a sua alma apanhada nalguma parte entre as estrelas. Não era órfão, pois até um órfão já possuiu pais uma vez. A solitária criação do garoto bóia tudo o que havia de fraternal em Clem, e que era a maior parte do seu ser.

Não se vira sòzinho no que procurava fazer por Bump ou por si mesmo. Com a afeição tão fàcilmente encontrada em qual­quer pequena cidade americana, os cidadãos observavam o soli­tário e ambicioso jovem. Apenas sabiam a seu respeito que era um órfão e tinham como certo que Bump era seu irmão. Mr. Ja­nison logo começou a divulgar as excepcionais qualidades de Clem. O seu apego ao trabalho era espantoso para o patrão. Quando os outros jovens da cidade pareciam loucos com a abertura da temporada de «base-ball», Clem continuou atrás do seu balcão e até ficou para varrer a loja como de costume, quando o dia terminou. A sua tardia chegada ao campo de «base-ball» e o frenesi dos que o esperavam apenas o tornaram mais estimado. Com a sua mediana estatura, Clem tinha, no entanto, longos e fortes braços que podiam rodar no ar e enviar uma bola mais longe que a imaginação. «Um belo camarada-decidiu New Point --um camarada que irá longe».

Duas pessoas se preocupavam com Clem. Miss Mira Bean, professora de Bump, com a qual Clem tinha ido falar depois da surra, sabia que Clem era mais do que New Point discernia. Soubera-o no primeiro dia em que ele tinha ido bater à sua porta, escovado, penteado e de chapéu na mão.

-Entre - dissera ela, com a habitual rispidez com que falava aos rapazes.

Clem tinha ido ao seu pequeno apartamento de duas salas. -Chamo-me Clem Miller.

-Sente-se - ordenou ela.

As salas eram pequenas e cheias de móveis e livros. Havia pouco espaço para se sentar e ele acomodou-se na ponta de um sofá. Miss Bean era como qualquer das mulheres de meia-idade que via nas ruas de New Point, uma loira magra, vestida com discrição, de cabelos corridos e olhos cinzentos.

-Que deseja, Clem? -perguntou ela.

-Desejo falar a respeito de Bump - disse ele. Continuou e chegou a contar-lhe como se vira obrigado a surrar o garoto.

-Mas eu não posso continuar a bater-lhe -concluiu ele. --A senhora, Miss Bean, tem de fazer com que ele goste suficien­temente da escola para que deseje receber instrução.

-Ele tem de frequentar a escola - disse Miss Bean um tanto àsperamente. -É a lei.

Clem continuara sentado, a olhá-la. -Não creio que a senhora deva tirar vantagem disso - disse ele. -A lei está do seu lado, naturalmente. Mas nem mesmo a lei pode fazer com que uma criança receba instrução. A lei pode apenas fazê-lo sentar várias horas por dia num banco da aula, mas tem de gostar disso para que se possa instruir.

Miss Bean não era nada estúpida e ficou impressionada com tal sabedoria num rapaz ainda muito jovem para ser considerado um homem.

-Você tem razão - disse ela após um momento.

E ela fizera todo o possível, não só por Bump como também por Clem, emprestando-lhe livros, guiando as suas leituras, dei­xando-o falar durante horas aos domingos. Pois embora Clem obrigasse Bump a ir à escola dominical e o doutrinasse sobre as vantagens de frequentar a igreja, ele próprio nunca ia.

-Porque não vais então, se é tão bom? - resmungava Bump.

Clem, lustrando os gastos sapatos escolares de Bump, parava para lhe responder o mais honestamente possível. -Eu apenas não posso resolver-me a ir-confessou. -E mais: não posso dizer-te por quê. Uma vez aconteceu-me uma coisa...

-Que foi?

Clem sacudiu a cabeça. -Levaria muito tempo a contar.

Nunca contava nada a ninguém a respeito de si próprio. Na verdade levaria muito tempo. Por onde começar e como explicar a sua origem? Como poderia contar a alguém, naquela pacífica cidade de Ohio, que tinha uma vez vivido em Pequim, na China, e que vira os seus pais assassinados? Havia coisas muito infindá­veis de contar. Sòmente a Henrieta havia de falar um dia, porque ela pelo menos sabia o princípio.

O sino da igreja veio em seu auxílio. -Anda depressa! - disse a Bump. Os sapatos estavam engraxados, e ele agora lavava as mãos. Depois endireitou a gravata, apartou-lhe de novo os cabelos e passou-lhes a escova. -Trata de aprender os textos, - disse ele severamente.

O ministro da Igreja Baptista era a outra pessoa de New Point que se preocupava com Clem. Parava às vezes na loja para ver o industrioso jovem e convidá-lo a visitar a casa de Deus. Era um jovem pastor de cabelos de fogo, faces rosadas, voz fresca e maneiras alegres, e nada havia nele que desagradasse. Mas Clem temia-o, embora o jovem ministro fosse persuasivo e ardente.

-Venha adorar a Deus connosco, meu amigo - disse ele um dia a Clem ao balcão, quando fora comprar meio quilo de carne para cozer.

Clem foi buscar a carne e aprontou a faca. -Eu, na verdade, não tenho muito tempo, Mr. Brown - disse ele brandamente. -Preciso mesmo dos meus domingos.

-Custa mais tempo no fim não ser cristão, tendo diante de si a Eternidade.

Clem sorriu e não deu resposta. Cortou a carne e pesou-a, e depois cortou mais outro pedaço. -Diga a Mrs. Brown que pus um bocado extra. -Era a sua habitual maneira de responder àqueles a quem recusava alguma coisa. Dava-lhes um pouco de alimento extra.

O armazém, reconhecia-o Clem à medida que passavam os anos, não era o seu destino final. Ao mesmo tempo que aprendia o comércio de compra e venda, tomava conhecimento do seu próprio povo. Vivendo entre os amistosos cidadãos da pequena cidade, começou a refazer-se do choque da granja e do homem e da mulher que a dirigiam. No seu género, pensava às vezes, tinha sido um choque mais rude do que o que recebera ao encon­trar seus pais assassinados naquele dia de Verão em Pequim. Era movido por uma energia nervosa, nunca descansava, e havia dias em que não podia comer sem náuseas. Considerava sagrado o alimento; contudo, o alimento podia pesar-lhe no seu próprio estômago. Não podia tomar leite ou comer manteiga porque não suportava o cheiro das vacas, e não gostava de ovos. Carne, quase que a não comia, em parte por estar muito pouco habituado a ela. Esquecia-se de si próprio. Mas em torno do problema da alimen­tação a sua imaginação agitava-se e o seu poder criador era esti­mulado. Sob a direcção de Miss Bean, pôs-se a ler assuntos eco­nómicos e chegou até Malthus, e aí então perdeu a paciência. O homem devia ter sido um desses pensadores cegos, sentado no seu gabinete, a lidar com algarismos, em vez de sair a ver o que realmente acontecia no Mundo. O povo estava faminto, sim, mas o alimento apodrecia nos armazéns porque não podiam adquiri-lo. Havia muito alimento, não havia bocas em demasia, o mal pro­vinha do facto de os homens não fixarem o espírito na simples questão de organizar a distribuição dos alimentos. O alimento devia ser comprado onde o houvesse em quantidade e barato, e conduzido para onde o povo o pudesse comprar.

Quando essa ideia ocorreu a Clem, o seu efeito fora como o da conversão religiosa. Ainda não o sabia, mas estava iluminado como antes dele estivera seu pai, não pela satisfação de alimentar corpos humanos, mas pelo entusiasmo de salvar as almas dos homens. Clem não se interessava por salvar as almas, pois tinha uma elevada e inquebrantável fé nas almas dos homens tal como as conhecia, suficientemente boas como Deus as fizera, excepto quando os males da Terra as assediavam. E esses males, estava convencido, provinham antes de tudo da fome, pois da fome vinha a doença e a pobreza e toda a miséria que levava os homens ao desespero e depois a insensatas querelas. As suas almas eram degradadas e perdidas por causa da clamorosa fome dos seus cor­pos. Tão simplesmente como seu pai deixara a sua terra e seguira o apelo de Deus através dos mares, Clem acreditava agora que po­deria curar os males dos homens e das mulheres, e dos seus filhos.

Não desejava deixar a sua terra como seu pai fizera. Ali, entre a sua própria gente, faria o seu trabalho e, se fosse bem sucedido, como sabia que havia de ser, então estenderia o seu plano de salvação a outras terras e a outros povos, e em primeiro lugar, naturalmente, aos chineses. Outros povos veriam o seu bom resultado e o seguiriam. Se tivesse dinheiro, não o guardaria. Empregá-lo-ia todo em propagar o evangelho do bom alimento para todos os homens.

Aos domingos, quando Bump estava na Escola Dominical e a cidade em repouso, Clem, sózinho no seu quarto ou caminhando pelos arredores, fazia planos sobre a sua vida. Logo que Bump terminasse a escola superior, ele começaria a sua missão e Bump poderia ajudá-lo. Mr. Janison oferecera-lhe sociedade no arma­zém por mais três anos. Ele aceitaria a oferta. Tinha de ter um centro nalguma parte. Faria de New Point o centro de uma vasta rede comercial, comprando toneladas de alimento nas regiões onde as colheitas fossem boas e suprindo os mercados onde houvesse escassez. Neste entretanto, devia preparar-se. Deveria aprender contabilidade e administração. Devia aprender a geografia do país até a conhecer como a palma da mão, de modo a saber perfei­tamente quantas colheitas se poderiam esperar de cada região.

Um vasto plano, dizia a si próprio, um vasto e elevado plano e desejava contá-lo a Henrieta. E depois esclareceu o seu próprio pensamento durante várias semanas, escrevendo-lhe, todos os domingos, sobre o desenvolvimento das suas ideias.

«Guarda as minhas cartas, Henrieta-recomendou-lhe. -Não tenho tempo de tirar cópias. Algum dia posso querer confron­tar-me e ver como as minhas noções se foram aclarando e com­pletando».

Henrieta guardava as suas cartas cuidadosamente. Comprou uma caixa de folha, pintou-a de vermelho, conservando-a fechada à chave no fundo do seu armário. A chave trazia-a numa pequena corrente ao pescoço, e depois de ela lhe ter contado isto, Clem enviou-lhe um estranho e pequeno amuleto, narrando-lhe como o tinha conseguido de uma velha campónia chinesa. «Guarda-o na caixa com as minhas cartas. Pode ser que nos traga sorte».

 

O casamento de William realizou-se em Setembro, após a sua formatura. Ele não queria casar tão cedo, e sugerira a Candace que esperassem um ano, ou mesmo dois, até que soubesse como conseguiria os duzentos mil dólares que considerava o mínimo de capital para começar o seu jornal. Candace amuara-se ante a ideia de um adiamento.

-Se é apenas dinheiro...

-Não é precisamente dinheiro - disse William. -Tenho de fazer os meus planos com todo o cuidado. Não se trata apenas de fundar um jornal. É preciso organizar um programa, achar um testa de ferro, fazer propaganda.

-Todas essas coisas, podes fazê-las tão bem depois do casa­mento como antes - insistiu ela. -Vou falar ao pai.

William esteve a ponto de lhe proibir que tomasse essa ini­ciativa, mas não o fez. Durante todo o Verão havia trabalhado bastante e até tarde na cidade, e trabalhara sôzinho. Durante meses tão quentes que, um por um, Martin Rosvaine, Blayne Perry e Seth James, tinham fugido para luxuosas casas junto a praias, montanhas e lagos, William ficara firme num pequeno aparta­mento barato da baixa Nova York, trabalhando dia e noite, para conseguir exactamente o jornal que desejava. Uma vez por mês, permitia-se uma visita a Candace. Por ocasião de uma dessas visitas, estava agora a falar.

-Não desejo depender de teu pai - disse, por fim.

-Não sejas pateta - replicou Candace com rudeza. -Meu pai faria tudo por mim.

-E eu também - replicou ele sorrindo.

-Então deixa-me falar com o pai.

-Mas não lhe peças dinheiro, por favor. Posso consegui-lo em qualquer outra parte.

Estava dolorosamente tentado pela possibilidade que se escondia atrás das palavras dela, pois fora obrigado a adiar o casamento enquanto procurava dinheiro. Sèriamente amável e resolutamente brando, criara amizades entre os ricos. Não era rico, mas sabia como poderia ser. Embora todo aquele Verão ficasse como um «cool.ie», com uma toalha em volta da cintura, enquanto transpirava à sua secretária noite após noite, havia outras noites em que a sua indumentária era tal que ele não temia nenhum mordomo quando saía para cear ou dançar onde se reuniam os ricos. Não falava fàcilmente, mas a sua cabeça erguida e a sua correcta polidez faziam as vezes disso. O silêncio tinha o seu valor, pensava ele, para que, quando falasse, os outros o ouvissem.

Na sua próxima visita, a última antes do seu casamento, Roger Cameron pediu-lhe que fosse à sua biblioteca após o jantar. William conhecia bem a sala, pois tinha entrada livre nela durante as férias. Os livros eram curiosos e heterogéneos e constituíam uma significativa amostra da auto-educação de Mr. Cameron. Havia uma prateleira inteira de Christian Science, e agora, nos últimos anos, uma outra sobre as religiões da índia.

- Sente-se - disse Mr. Cameron. - Candace conversou comigo.

-Eu bem lhe pedi que o não fizesse - disse William um tanto secamente, sentando-se.

-Sim, sim... Candace nunca obedece a ninguém - replicou Mr. Cameron com brandura. -Pois bem, William, ela quer casar e disse-me que você acha que não o pode fazer antes de um ou dois anos.

-Creio, apenas, que devo desbravar o meu caminho antes de tomar o encargo de uma esposa, de uma casa e do resto - disse William.

-Isso é razoável -concordou Mr. Cameron. -Muito certo e razoável. Eu não fiz outra coisa na minha mocidade. É verdade, tive de esperar. O pai de Mrs. Cameron não queria saber de nada, por mais que ela chorasse ou que eu me atormentasse. Nós espe­rámos. Bem, pensando nisso agora, não desejo que a minha filha passe pelo que a mãe dela passou. De quanto necessita você, William?

William parecia hesitante. -Não sei exactamente.

- Bem sei que você não o sabe exactamente – proferiu Mr. Cameron com branda impaciência. -Apenas pergunto. -Creio que uns duzentos mil dólares... - disse William. Mr. Cameron avançou o lábio inferior. -Você não precisa disso tudo de uma vez.

-Não. Mas preciso de meios para dispor disso.

Ficaram em silêncio por um momento. A grande sala estava ensombrada pelos painéis de carvalho e as luzes perdiam-se no tecto.

-Porque não me explica um pouco mais acerca desse jornal? -perguntou por fim Roger Cameron. -Em todo o caso, porque deseja um jornal? Porque não entra para os Armazéns comigo?

-Eu aprecio os seus Armazéns, Mr. Cameron - respondeu William polidamente. -Aprecio-os, na verdade. Mas tenho o pro­pósito de fundar um jornal inteiramente original. Se tiver êxito, iniciarei uma cadeia. Custará dois cêntimos e terá mais notícias do que quaisquer outros jornais do mesmo preço.

-Terá de arranjar uma boa quantidade de anúncios - observou Mr. Cameron.

-É de onde virá o dinheiro - replicou William. -Mas não se trata própriamente de uma questão de dinheiro.

-Se não é questão de dinheiro, que é então? - perguntou Mr. Cameron com algum espanto.

-Desejo fazer mais do que dinheiro - respondeu William. Ele não receava contar a verdade a Mr. Cameron. O elegante corpo direito, a cabeça erguida, as pequenas mãos enclavinhadas, tudo nele denotava decisão. -Eu considero o problema assim, Mr. Cameron. O Mundo é na maioria constituído por indivíduos comuns. São estúpidos e ignorantes. O que aprendem na escola não os ajuda a pensar. Não podem pensar. É preciso ensinar-lhes o que devem pensar. Não sabem o que é verdadeiro e o que é errado. Têm de ser dirigidos.

-O povo não gosta de pensar - disse Mr. Cameron astu­tamente.

-Bem sei. Agem, portanto, sem pensar, ou deixam-se levar por socialistas e agitadores e agem insensatamente e compro­metem as pessoas decentes. Tenho o propósito de concretizar o pensamento, Mr. Cameron. É por isso que quero um jornal.

-Como sabe que o povo vai adoptar os seus pensamentos? -perguntou Mr. Cameron. Estava deveras espantado. Não sabia o que pensar daquele jovem de duros olhos cinzentos.

-Não quero dizer que eles tenham os meus pensamentos, Mr. Cameron - disse William. -Farei exactamente o que o senhor faz nos seus Armazéns. O senhor tem homens cuja função é des­cobrir o que melhor se vende, e o senhor compra por atacado o que pensa que o povo quer. Na realidade, o senhor mostra ao povo o que ele deve comprar. É o que eu farei. O meu jornal virá cheio de coisas de que o povo gosta. Virá cheio de histórias com ilus­trações sobre anormalidades, assassínios, acidentes. Mas haverá as coisas que acontecem no Mundo, também, e que o povo deve saber.

-Mas... e as suas ideias? -perguntou Mr. Cameron. -Estarão na maneira como as coisas serão ditas - respondeu William. -E não ditas- acrescentou.

Mr. Cameron lançou-lhe um perspicaz olhar. –Esplêndido - murmurou. -Esplêndido. Espero que tenha sempre razão. -Não pretendo ter sempre razão - replicou William. –Mas procurarei tê-la.

Era o máximo que já tinha dito a alguém, mesmo aos seus amigos. Sabiam que ele seria o editor, pois sempre o afirmara, mas não sabiam que projectava determinar cada parágrafo, cada linha, decidir as notícias que deviam ser publicadas e as que não deviam. Depois de sair o primeiro número, mostrá-lo-ia às grandes firmas e aos homens de projecção. E diria: «Eis aqui a vossa salvaguarda. Anunciai aqui e ajudai-me a influenciar o povo a favor de Nós e contra Eles».

-Você parece que não gosta do povo? -perguntou súbita­mente Mr. Cameron.

William não sabia o que lhe responder. Escolheu então a verdade: - Compadeço-me profundamente dele.

-A compaixão leva ao desprezo -sentenciou Mr. Cameron.

-Talvez - disse William. -Em todo o caso, o senhor sente da mesma maneira, Mr. Cameron.

Mr. Cameron avançou novamente o lábio inferior. -De certo modo - admitiu ele.

-Percebi logo que conheci os seus Armazéns - disse William. -Se o senhor não desprezasse o povo, não lhe venderia aquelas coisas.

-Bem... bem... -pronunciou Mr. Cameron constrangida­mente.

-Admiro-o por isso - disse William. -Mas tenho um pouco mais de idealismo do que o senhor. Penso que o povo deve ser orientado para melhores coisas.

Mr. Cameron olhou-o de soslaio. -Você pode estar enganado, William. O povo é terrivelmente teimoso.

William não cedeu. -O povo pode ser dirigido para alguma coisa ou afastado dela, exactamente como nos Armazéns. Se o senhor resolver que o vermelho vai ser a cor da estação, decidirá o povo a comprar tudo vermelho.

-Não me importa - disse Mr. Cameron. -Não me faz dife­rença o que o povo compre.

-Pois importo-me eu-suplicou William.

Não falaram muito depois disso, mas após uns outros dez minutos, Mr. Cameron ergueu-se. -Pois bem, William, quaisquer que sejam as suas razões, digo-lhe isto: entrarei com cem mil dólares-metade do que precisa-e desejo que você vá avante e que se case.

William corou. -Nada me agradaria tanto, Mr. Cameron, - respondeu.

 

O dia do seu casamento amanheceu tão belo como se ele houvesse dado ordem ao Sol. Ante toda aquela luz que lhe inun­dava as janelas abertas, lembrou-se de uma história que sua mãe costumava contar sobre a sua infância. Tinha ele uma vez acordado de madrugada no velho templo em que sua família estava veranieando, numa das montanhas dos arredores de Pequim. A luz irisava-se na fímbria do horizonte, e ele gritara, saltando da cama: «Levanta-te, Sol!» Naquele momento, como em obe­diência à sua ordem, o Sol surgiu no horizonte. Ele não podia ter mais que quatro anos de idade.

O Sol erguera-se com igual subitaneidade naquela manhã, e ficou deitado na cama, tentando avaliar a significação daquele dia. Tudo estava pronto, e só o que tinha a fazer era ser sim­plesmente o noivo que o dia demandava. Não tinha mais dúvidas, pois estaria sôzinho: discutiria consigo durante meses sobre se as irmãs e os avós assistiriam ao casamento, mas depois livrara a sua consciência. As duas pequenas estavam no colégio e o seu avô não estava bem. O velho convalescia lentamente de um derramamento cerebral, e um dos lados do rosto estava parali­sado. William não os desejaria no seu casamento.

Quando Candace se referiu a eles, William meneara a cabeça «não «não os quero cá». Ela fitara-o com um estranho olhar e nada dissera.

As damas de honor eram seis das colegas e amigas de Can­dace. Jeremias era o padrinho dele, e Martin, Blayne e Seth as suas testemunhas. Fizera tudo tal como desejava.

A porta abriu-se e entrou o mordomo, um homem de meia­-idade com um pronunciado acento inglês.

-Devo preparar-lhe o banho, senhor? - Perfeitamente.

-Mrs. Cameron pensa que o senhor gostaria que lhe trou­xessem o breakfast numa bandeja.

-Sim, obrigado.

A cerimónia seria ao meio-dia, e eles embarcariam imediatamente para a Inglaterra. Roger Cameron pagava-lhes ,a viagem. Dava-lhes também uma casa não grande, mas uma bonita e pe­quena casa de tijolos cor de creme perto de Washington Square. William não negara que não poderia permitir-se nenhum desses luxos.

-Um dia poderei fazer todas estas coisas por Candy - dissera ele, aceitando gentilmente os presentes.

-Naturalmente - replicara Roger Cameron.

A água do banho parou de correr, e um criado alcançou-lhe um roupão de seda, com a cabeça voltada para o outro lado. William saltou da cama e vestiu-o.

-Traga o breakfast daqui a meia hora - ordenou da maneira brusca com que aprendera a falar aos criados na sua infância. O criado desapareceu e William entrou no banho. Desejaria ficar no quarto naquela manhã, longe de todos. O ensaio saíra bem no dia anterior. Não se esquecera de nenhum pormenor que pudesse causar-lhe cuidado. Candace deveria dormir até que fosse preciso vesti-la para a cerimónia. Ele não queria ver Jeremias ou qualquer dos outros. Contaria com duas horas de puro lazer.

Bateram à porta. Entrou outro criado, empurrando uma mesinha de rodízios, em que havia uma grande bandeja de pratos cobertos, de entre os quais se erguia um pequeno vaso de prata com rosas.

-O seu breakfast, Mr. Lane - murmurou o homem.

-Ponha-o junto à janela, Barney - replicou William. O ho­mem era novo e não muito mais velho que o próprio William. Era irlandês, como o denotava a sua face um tanto informe, e os seus olhos eram cândidos e humildes como sempre seriam os olhos dos pobres e ignorantes. William gostava dele e às vezes estimulava-o a falar.

-Um lindo dia para casar - disse Barney. Arranjou a bandeja junto à janela, de onde se avistavam as árvores do parque, com o seu verde já marcado pela aproximação do Outono.

-Sim, na verdade - disse William. Tinha vestido o seu novo chambre, de listas azuis e pretas, o que combinava com os seus cabelos escuros e os seus olhos cinzentos. Talvez o houvesse guar­dado para o dia seguinte, quando tomasse o breakfast em compa­nhia de Candace, mas achara que o luxo solitário tinha também um prazer especial.

Barney curvou-se sobre a mesa. -Os ovos estão como gosta, senhor, e as torradas eu mesmo as preparei. -Obrigado.

-Bem, senhor- - disse Barney por fim      os meus votos de felicidade.

-Obrigado - disse novamente William.

 

Perante tamanha compostura, Barney retirou-se. Depois de ter comido, William ficou um momento sentado, fumando um cigarro e bebendo uma segunda xícara de café. Tinha duas horas para não fazer nada. Não sabia como não fazer nada. Pensou em ir para a cama, mas não podia dormir mais. Não desejava pensar em Candace. Havia muito tempo para isso. Não podia ler.

Duas horas... um precioso tempo! Quando poderia estar novamente a sós? Ergueu-se abruptamente e foi sentar-se à secre­tária, na outra extremidade do quarto. Havia duas horas que trabalhava com afinco e em silêncio quando uma pancada à sua porta lhe anunciou Jeremias. Era tempo de se preparar para o casamento.

 

Um perfeito casamento, naturalmente, como ele esperava. Os seus introdutores desempenharam-se bem; apenas Jeremias se mostrou menos eficiente. Parecia estranhamente pensativo durante a cerimónia e, chegado o momento da entrega da aliança, hesitou longo tempo, tão longo que Candace olhou surpresa para ele. Mas a aliança estava ali no bolso do colete de Jeremias e ele entregou-a a William com um velado e súplice olhar.

William não notou o gesto. Estava concentrado no próprio desempenho da sua parte e enfiou a aliança no dedo de Candace e fez as suas promessas. Descendo o corredor alguns minutos mais tarde, com os passos medidos pela música, mantinha a cabeça erguida, na sua habitual e orgulhosa maneira.

A elegante igreja estava apinhada. Não olhava para ninguém, embora tivesse consciência de cada personagem que se achava ali. A seu lado Candace caminhava tão altivamente como ele, mas era ele quem marcava o passo. Tinha começado a grandiosa marcha da sua vida.

O compromisso entre Clem e Henrieta efectivou-se inopinadamente e, até mesmo, desajeitadamente. As primeiras cartas que haviam trocado significavam muito mais do que nelas estava escrito. Eram comunicações secretas entre duas criaturas completamente solitárias. Embora levasse uma vida serena e sem maiores novidades na escola pública e na casa do pacato subúrbio onde morava com Ruth, os avós e duas velhas criadas, Henrieta sen­tia-se tão sozinha como se vivesse numa ilha deserta. Ruth era muito afável e bonita e, fàcilmente, poderia ter casado ainda muito jovem com algum dos inúmeros pretendentes que a assediavam. Se ainda o não fizera, se adiava o casamento por causa dos estudos, ao que dizia, era porque frequentava cada vez mais assiduamente a casa de William. Em breve, as férias não significaram mais do que uns poucos e apressados dias com Henrieta, que ambas passavam na preparação conjunta de vestidos adequados ao resto das férias com William e Candace. Não entrava em discussão a ida de Hen­rieta, também. Ruth aprendera a viver diplomàticamente com o irmão e a irmã, dando a cada um a impressão do maior afecto.

-Sinto-me culpada - disse ela a Henrieta. -Saio a passear e ficas tu aqui a cuidar dos velhos...

-É o que eu quero fazer - respondeu Henrieta.

Ruth parou em meio da costura. -Haverias de gostar de Candace. Todos a estimam. Ela é muito simples.

-Acho que gostaria de Candace, mas há William... -replicou Henrieta com a sua terrível franqueza.

-É teu irmão - insistiu Ruth, embora timidamente, pois temia igualmente Henrieta e William.

-Que posso fazer? - replicou Henrieta. Não esqueças que o conheço há mais tempo do que tu, e muito melhor. Passámos juntos aqueles dois anos na escola de Chefoo, quando estavas em Pequim com o pai e a mãe.

No entanto, logo que Ruth se retirava e lhe via o risonho rosto sob o chapéu florido, atrás da janela do comboio que partia, Henrieta sentia-se abandonada. As suas feições, como as de William, eram severas, e a sua compleição era angulosa e alta. No íntimo, também se parecia com ele, mas, ao mesmo tempo, como era diferente! Era tão parecida com o irmão que podia estudar em si os próprios defeitos de William. Ela não tinha senso de humor, nem ele tão-pouco. Mas entre o génio de ambos não havia seme­lhança. Ela era de uma franqueza e de uma simplicidade que a todos assustava, menos os fortes, e, entre os jovens, poucos havia que fossem fortes. Os rapazes temiam-na e as raparigas evitavam-na. Faltava Clem, a quem nunca vira e que nunca a tinha visto. A Clem, nas silenciosas noites de Verão, ela confiava quase inteira­mente os seus sentimentos. Ele respondia às suas cartas nos domin­gos, depois de ter mandado Bump para a igreja. Não dispunha de outra hora vaga durante a semana. Até nos domingos tinha de fazer a escrita da firma para Mr. Janison.

Ela frequentava uma escola barata, ao passo que Ruth resolvera ir para Vassar. Não quisera acompanhar Ruth, pois descobrira então que esta havia optado por William e a espécie de vida que ele desejava. Repelida e abandonada, ouvia Ruth falar sobre aquela vida. Os esvoaçantes cabelos loiros de Ruth, os seus doces olhos azuis, a sua pele branca e o seu vulto esbelto, eram os meios pelos quais fora ela acolhida na existência de William. William morava numa bela casa, nem grande nem pequena, na Quinta Avenida. Candace decorara-a de cor-de­-rosa, cinzento e ouro. Havia um grande salão onde ofereciam recepções. Eram primitivamente duas salas, a que William tinha mandado derrubar a parede intermédia. William trabalhava imenso, e o seu jornal começava a obter êxito. Todos falavam na sua gazeta.

-Devemos orgulhar-nos dele - dizia Ruth.

Henrieta não respondia. Ficava a olhar para Ruth e ninguém saberia que, no íntimo, ela renunciava àquela irmã a quem tanto amava. Quando Ruth regressou de um longo Verão passado com William, preparara-se para lhe falar a respeito de Clem. Tinha-o projectado de vários modos. Poderia dizer: «Ruth, não quero que penses que estou apaixonada, mas...» Ou então: «Não te lembras da Missão Familiar de Pequim? Bem, eu dou-me com Clem agora». Ou poderia simplesmente escolher uma das cartas de Clem, talvez a que explicava como ele desejava abrir uma cadeia de mercados, através do país, em que o povo pudesse comprar alimentação boa e barata, ou, se não tivesse dinheiro, simplesmente pedi-lo de graça. «O povo não pede senão quando precisa... isto é, a maioria do povo», escrevera Clem. Tinha uma profunda fé na bondade do povo. O povo não gostava de pedir, ou que lhe dessem alguma coisa de graça. O coração humano era independente. Henrieta comovia-se com a grandeza da fé de Clem. Na sua solidão, desejava desesperadamente acreditar que aquilo era verdade. Mas quando Ruth lhe falava em William, Henrieta não lhe podia falar em Clem. Os dois nomes não combinavam.

Depois, um dia, viu alguma coisa de novo na face de Ruth, um tremor nos lábios, uma timidez naqueles doces olhos. Ruth, vendo a terna interrogação no olhar de Henrieta, desfez-se súbitamente em pranto, com os braços em redor do pescoço da irmã.

-O que há, criança? -sussurrou Henrieta. Não usava esse nome desde quando brincavam em casa, em pequeninas, e ela sempre fora a mãe e Ruth a filha. Enlaçou agora a pequena cria­tura e apertou-a contra si, sentindo com estranheza que há muito tempo não acariciava alguém. Ela e Ruth não se mostravam expansivas nos últimos anos, e não havia mais ninguém.

-Estou apaixonada-soluçou Ruth. -Amo terrivelmente.

-Não chores - murmurou Henrieta. -Está muito bem. Não há nada de mal. Quem é ele?

-Jeremias - disse Ruth com voz débil.

Henrieta não desprendeu o abraço. Tentava lembrar-se de Jeremias tal como o vira por ocasião da formatura de William. Uma bela face, um pouco magra, muito pálida, muito bondosa, disto se lembrava ela. Depois lembrou os gestos lentos, um tanto contidos, como se alguma coisa o ferisse interiormente, e as mãos brancas, delicadas, magras, mas não pequenas.

-Ele sabe? -perguntou Henrieta.

-Sim, sabe - respondeu Ruth, que, deslizando do regaço de Henrieta para o chão, se inclinou contra o seu joelho e enxugou os olhos na ponta da saia de Henrieta. -Ele disse-me primeiro... eu não me atreveria...

-Quer dizer que estão comprometidos? -indagou Henrieta.

Ruth fez um gesto afirmativo. -Suponho que sim... Logo que ele se anime a falar. Candace sabe, mas nenhum de nós se anima a dizer a William.

-Porque não?! - exclamou Henrieta, irada. -Há alguma razão para que isto seja da sua conta?

-É o que parece - disse Ruth.

-Tolice - replicou Henrieta.

O seu espírito voou para Clem. Não seria aquele o momento de revelar que ela também estava apaixonada? Mas ainda não podia falar nele.

-Eu própria o direi a William - declarou.

-Oh, não! -pediu Ruth apressadamente. -Jeremias quer dizer-lhe. Fá-lo-á um dia destes. Não sei porque é que ele pensa que William não vai gostar.

-Eu sei - disse Henrieta. A sua voz era sombria. -William não quer que a gente que visita pense que ele tem família. Ninguém é suficientemente bom para si.

-Isso não é bem assim - disse Ruth. -Habitualmente, William é muito bom para mim.

-Porque sempre fazes o que te diz.

-Bem, em geral, não vejo nenhum motivo para que não o faça - observou Ruth. -Em todo o caso, isto tem de ficar em segredo, por enquanto.

Ergueu-se do soalho, encaminhou-se para o espelho e pôs-se a arranjar os cabelos. O momento de intimidade havia passado. William quebrara-o, como sempre, e Henrieta nada disse a res­peito de Clem.

O ano escolar recomeçou e as irmãs separaram-se.

As cartas que Clem escrevia no domingo chegavam às mãos de Henrieta na quarta-feira. Às quartas, de tarde, Henrieta ia ao laboratório de química e, entre as suas provas de ensaio, lia a longa carta escondida entre as suas notas de aula. Até que, numa semana, veio a carta que ela não esperava. Nas quintas-feiras raramente se preocupava em ir ver se havia correspondência, mas, num desses dias, sucedeu-lhe passar pelo correio e entrou para ver se acaso não haveria uma carta de sua mãe. Em vez dessa, recebeu uma outra carta de Clem.

 

-Tenho de voltar para casa cedo? -perguntou Bump.

Era agora um rechonchudo rapaz que justamente começara a usar óculos. Desde há muito que deixara de se rebelar contra Clem.

Este consultou a velha «cebola». - Podes demorar-te até às onze horas, mas nada de jogar bilhar.

-Eu ia ao cinema.

- Muito bem.

Assim ficara Clem, sôzinho no seu quarto naquela noite de segunda-feira em que escrevera a Henrieta. Talvez fosse a solidão que o induzira agora a pedir-lhe que casasse com ele. Também podia ter sido o seu constante desejo de a confortar na sua solidão. Era certamente o seu contínuo sentimento de união com ela, embora nunca tivesse visto o seu rosto. Ela era a única pessoa no Mundo que poderia entender quando falava na sua infância, esse outro mundo em que as suas raízes estavam tão profunda­mente implantadas que seria impossível arrancá-las.

«Ainda não nos encontrámos-escrevia ele agora. -Pode parecer -parou para verificar a palavra no dicionário - presunção da minha parte ter tido a ideia. Mas o facto é que a tive e, portanto, devo dizer-ta. Parece-me que ambos estamos destinados a casarmo­-nos. Ainda te não vi, nem tu a mim, mas creio que em primeiro lugar não é a aparência que nos importa. Existe algo mais que nos une. Sabemos compreender as coisas, eu assim o penso. Espero que tenhas o mesmo sentimento».

Fez aqui uma longa pausa. Depois continuou : «Não gosto desta ideia de pedir a tua mão por carta. Se te interessares, poderei ir visitar-te. Mr. Janison deve-me uma folga, e eu economizei dinheiro. Bump pode ajudar no armazém, depois da escola. Eu poderia ausentar-me por alguns dias e passar uma tarde inteira contigo».

Depois de ter escrito estas palavras, continuou a falar nas coisas habituais da sua vida. Bump acabara por gostar da escola e até já falava em ir para a Universidade. Tinha de fazer a sua vida. Da sua parte, Clem abandonara a esperança de uma verda­deira educação, mas lia um pouco e Miss Bean indicava-lhe os livros. Justamente acabara de ler The Wealth of Nations. Era de difícil leitura, mas cheio de ideias judiciosas. Depois contou-lhe a grande novidade. Mr. Janison, não tendo filhos, perguntara-lhe se não desejaria considerar a possibilidade de tomar conta da loja algum dia.

Depois de lhe ter contado isso, Clem ficou a morder a caneta por alguns instantes. Mas continuou a dizer a Henrieta o que sentia e o que nunca tinha dito a mais ninguém. «Se ficar com este armazém, só me contentarei quando puder controlar o aprovisio­namento. Desejo abrir armazéns de alimentação barata noutros locais. Aperfeiçoando a organização, acredito que tudo possa ser feito no sentido de que já falei. As granjas poderiam vender barato se pudessem vender directamente. Muita gente necessita de comer mais e melhor. Talvez se possa arranjar algum meio de enviar alimento para a China, ou ajudá-los lá mesmo, uma vez que se consiga organizar ali, como aqui, a produção e a distribuição. É, na verdade, um projecto mundial.»

Parou de novo, franziu a testa e suspirou. «Henrieta, espero que compreendas que não estou pròpriamente interessado em coisas materiais. Mas creio que, se todos tivessem alimento sufi­ciente, não precisariam de se preocupar como conseguir a própria refeição, e poderiam então pensar em melhores coisas. Não tenho instrução para educar o povo, mas poderia alimentá-lo. Em todo o caso, na minha opinião, o alimento é uma coisa que o povo devia ter como tem água e ar. Não deviam ter de o pedir, ou mesmo de trabalhar por ele, pois todos têm o direito de viver.»

Parou de novo e fechou a carta com estas palavras: «Espero que te esqueças da atitude do teu irmão William para contigo, e lembra-te de que me esforçarei bastante para a compensar, se mo permitires».

Tal carta merecia muita leitura e ele releu-a conscienciosa­mente. Nada havia que mudar, concluiu ele por fim, embora a desejasse mais perfeita na redacção, uma vez que Henrieta fre­quentava uma escola superior. Mas isso é que não sabia fazer, de modo que a fechou, selou, sobrescritou e a foi colocar no marco postal da esquina. Ali viu, pelo relógio municipal, que já eram onze e um quarto. Já começava a agastar-se com Bump quando viu a luz acender-se no quarto por cima do armazém. O rapaz tinha voltado, pois. Tudo estava bem. Desceu a rua em direcção ao armazém, assobiando alegremente fora do compasso uma canção cujo nome não sabia.

Foi essa a carta que Henrieta recebeu numa quinta-feira. Guardou-a consigo toda a noite, acordando duas vezes para a ler de novo, à débil luz de uma vela abrigada por um anteparo, para não despertar a sua companheira de quarto que dormia. Natural­mente que desejava casar-se com Clem... Nunca um homem lhe havia pedido que casasse com ele, nunca um rapaz a tinha con­vidado para dançar... Mas queria reflectir bem, porque era o seu único romance, e não haveria outro. Era maravilhoso sentir, com aquela carta no seio, uma cálida e viva promessa de amor. Podia acreditar naquele amor como nem mesmo tinha acreditado no amor de seus pais, ou na solícita afeição de Ruth. No dia seguinte, na biblioteca, onde reinava calma e onde tinha um cantinho reservado, pois estava a fazer um trabalho original de pesquisa química, escreveria a Clem e dir-lhe-ia que, se quando se encon­trassem, sentissem ambos a mesma afeição...

No dia seguinte, na biblioteca, quando escrevia essas mesmas palavras, foi interrompida pela sua sorridente companheira de quarto

-Henrieta, está aí um homem à tua procura!

-Um homem? -Ela estava incrédula, também.

-Um rapaz, terrivelmente magro, coberto de pó!

Soube imediatamente que era Clem. Sem uma palavra mais, desceu a estreita escada de ferro e foi direito à sala de estar. Era às primeiras horas da tarde e ninguém mais se achava ali, excepto Clem, que estava de pé no meio da sala, esperando por ela.

-Eu tinha de vir - disse ele abruptamente, e apertou-lhe enèrgicamente a mão. -Eu não devia ter dito aquilo em carta. Quem quer casar com uma jovem tem de vir dizer-lho.

-Oh! - disse ela, ofegante. -Está tudo muito bem. Eu não me importarei...

Ficaram a olhar um para o outro, examinando-se. Eram ambos simples, ambos sinceros, ambos solitários e, um rosto olhando para o outro, via ali o seu próprio reflexo.

-Henrieta, sentes o mesmo que eu? -perguntou Clem. A sua voz tremia.

Henrieta corou. Ele não se importava, então, com o seu aspecto, os seus duros cabelos negros, o seu nariz feio, os seus pequenos olhos cinzentos, a sua boca grande...

-Podes não gostar de mim... depois de me conhecer. - ­A sua voz também tremia.

-Tudo o que és, logo em ti se vê - disse ele. -És o que eu necessito... alguém em que eu possa pôr toda a minha fé. Oh, eu preciso de fé!

Ela deu um grande suspiro que terminou num soluço. -Nunca ninguém precisou de mim... Oh! Clem...

Enlaçaram-se desajeitadamente e os lábios de ambos encontraram-se num beijo de inexperiente amor.

Ele ficou o resto do dia e ela esqueceu o seu trabalho. Passea­ram pelo pátio da escola e ela designou-lhe os edifícios e apontou­-lhe a sua janela. Levou-o ao laboratório de química, deserto no fim do dia, e explicou-lhe o que estava a tentar fazer, enquanto ele ouvia, procurando compreender a união dos elementos.

-Desejaria ter tido instrução - confessou com tão grande tristeza que ela não a pôde suportar.

-Clem, porque não deixas o armazém e não entras para uma escola? Muitos colegas estudam e vencem...

Ele meneou a cabeça. -Não posso permitir-me isso. Já fui muito longe no meu caminho. Aliás, não tenho tempo para isso tudo. Quero aprender exclusivamente o que preciso... química, por exemplo. Tenho ideia de que poderia descobrir uma porção de alimentos novos. Alguém já tentou esse caminho?

-Que eu saiba, não- - respondeu ela.

Tomaram o comboio das oito para a cidade e comeram uma sanduíche num restaurante barato. A noite era quente e ainda não estava muito escuro quando terminaram. Andaram de um lado para o outro, na plataforma, temendo separar-se, agora que se tinham conhecido.

-Quando nos encontraremos de novo? -perguntou ela. -Não sei. Devo fazer o pedido a teu pai. Não é isso que é preciso?

-Suponho que ninguém precisava de saber-acentuou ela com veemência. -Desejaria que nos uníssemos e ninguém mais o soubesse.

-Creio que não seria muito correcto - disse ele com voz ponderada. -Penso que seria muito melhor que eu escrevesse a teu pai, contando-lhe tudo. Talvez eu deva dizer a William.

-Não! - exclamou Henrieta. A ponta do seu sapato raspou o chão. -Quero guardar tudo para mim, até que estejamos real­mente casados.

-Não queres dizer a William? -Clem parecia preocupado. -Não - respondeu Henrieta com a mesma veemência. -Pelo menos não devemos dizer a William.

-Mais cedo ou mais tarde ele terá de saber - observou Clem. -Que o descubra por si próprio!

O comboio chegou, resfolegante, abafando-lhe as vozes, e beijaram-se de novo, ràpidamente, preocupados com a gente que os cercava, embora fossem todos estranhos. Depois Clem embarcou e ela ficou ali, com as mãos no bolso do seu casacão verde, até que ele partisse.

 

A uma carta de tua mãe - disse Candace a William, que nunca abria as cartas endereçadas ao marido, por ter descoberto, durante a lua-de-mel, que ele não gostava disso. Perguntava-se às vezes se não seria estúpida, porque nunca poderia adivinhar o que ele gostava e o que lhe desagradava. Mas, uma vez aprendida uma coisa nunca mais a esquecia.

Era em Dezembro, e estavam na sua casa da cidade. Na próxima semana devia ela reunir-se a toda a família para o Natal. Apegava-se àqueles últimos dias do ano, passando as horas da tarde numa vasta varanda envidraçada. Estava para ter o segundo filho.

Justamente agora, Willie, diminutivo de William, ia fazer dois anos. Havia mais de cinco anos que ela estava casada. Acha­va-se reclinada numa longa e confortável espreguiçadeira, e sentia-se um tanto cansada, talvez por ter andado a cavalo no Parque. Não dissera a William que o médico a proibira de cavalgar porque não pretendia obedecer a tais ordens. William, se o sou­besse, insistiria na obediência.

Ele estava sentado a uma mesinha de metal e abriu o enve­lope com selos chineses. Havia duas cartas, uma com a letra de seu pai e a outra de sua mãe. Escolheu a carta da mãe, pois ela dava-lhe mais notícias do que estava a acontecer em Pequim. Ela costumava narrar os incidentes, e o pai encarregava-se dos comentários. William estava profundamente interessado no que ali sucedia, pois acreditava que era uma amostra do que deveria acontecer em toda a Ásia, um levantamento do populacho-que ele temia e em quem não confiava. Aquela antiga desordem na rua de Pequim enraizara-se-lhe profundamente no cérebro. A única força que poderia controlar tal loucura era a indomável Imperatriz. Recordava aquela velha face, impaciente e arrogante, inclinada para ele quando ainda criança. Recordava as vezes em que galgara a Colina de Carvão para olhar os telhados dos seus palácios. Tendo agora visto muitas mansões, compreendia que a Velha Imperatriz tinha uma magnificência que nenhum simples milionário poderia comprar. Os seus palácios eram vedados a todos os homens, mas ninguém poderia proibir que um rapaz americano trepasse a uma colina e olhasse para os seus telhados de porcelana azul e ouro e seus pilares de mármore, ou que algum transeunte ficasse a olhar para os seus portões fechados de esmalte vermelho.

Em princípios de julho sua mãe escrevera-lhe acerca de um «garden-party» que seria dado em Setembro no Palácio de Verão, para o qual estavam convidados todos os diplomatas e os seus amigos. Lia agora que essa festa jamais se realizaria. A Velha Imperatriz tinha caído doente num belo dia de Outono, escrevia agora sua mãe. O jovem Imperador, sentado à sua mesa de tra­balho, fora interrompido por um eunuco que entrara correndo e bradando: «A Velha Buda morreu!» Sem uma palavra, sem esperar um instante, o jovem Imperador começou a escrever numa folha de papel que tinha preparado para a pintura de um poema. Em vez do poema, escreveu uma sentença de morte para aquele político que o denunciara à Imperatriz dez anos antes, quando sonhara modernizar a sua pátria. Antes que pudesse apor o selo real no papel, entrou de novo o eunuco, a bradar ainda mais alto: «A Velha Buda está viva outra vez!» Ela havia-se rea­nimado, para viver algumas semanas mais.

William conservou-se em silêncio, pois Candace não podia saber o que a Velha Imperatriz significava para ele. Continuou a ler. Ela havia recuperado a saúde mais de uma vez depois disso, resolvida a sobreviver ao jovem Imperador, em que não confiava devido ao seu empenho em mudar o velho estado de coisas. Ele, também, estava muito doente, e ela teimava em viver quando ouvia que ele ainda não tinha morrido. Quando lhe disseram que ele afinal se fora, deu um grande suspiro de alívio e resignou-se a morrer.

«Eu, de escassos méritos-escreveu a soberba mulher na sua última mensagem ao povo-, conduzi o governo, trabalhando noite e dia. Orientei os chefes metropolitanos e provinciais e os comandantes militares, lutando duramente para assegurar a paz. Coloquei os homens honrados nos cargos públicos e ouvi as adver­tências dos meus conselheiros. Acudi ao povo por ocasião das cheias e das fomes. Pela graça dos Céus, sufoquei todas as rebe­liões e restabeleci a paz sem perigos».

William sorriu amargamente. Valente Velha Imperatriz, valente até ao fim! Não morrera enquanto não vira morto aquele fracalhão, aquele jovem degenerado, um fantoche nas mãos dos revolucionários, que teria desencadeado toda a loucura do povo.

Candace observava-o, mas ele não o notava. Nunca podia ler no seu rosto, mas viu o amargo sorriso e quis saber a sua causa.

-Que foi, William? Aconteceu alguma coisa?

-Sempre está acontecendo alguma coisa - replicou William. Curvou levemente os lábios para baixo. Estava agora lendo uma carta do pai, uma breve carta, que terminava como sempre com uma citação dos clássicos. «Estamos no limiar de maravilhosos eventos, agora que a terrível velha se foi - escrevia-lhe o pai. -O povo, dizia Mencius, quatrocentos anos antes de Cristo, é o fundamento do Estado; os altares nacionais são de importância secundária; o monarca é o menos importante de todos. Meu filho, desejaria que a tua vida se pudesse passar aqui na China. Aqui é o centro do Mundo futuro, embora poucos o saibam».

William sorriu de novo diante disto, um sorriso diferente. Não acreditava um só momento que a China fosse o centro do Mundo e não concordava com Mencius.

Candace, observando-lhe o rosto, sentiu-se dominar por uma das suas crises de desânimo. Porque tinha medo de William? Não tinha medo dele antes de casar e não se podia lembrar de uma única razão, de um único incidente, por certo, que explicasse por que sentia agora que ele poderia ser cruel. Jeremias era res­ponsável em parte. Jeremias bebia demasiado. Tentara dizer alguma coisa a seu pai a esse respeito, mas ele recusara-se a acre­ditar. A sua religião era um travesseiro contra tudo que lhe desa­gradasse, e nela se refugiava sem vexame. Não adiantava falar a sua mãe e tinha medo de contar a William. Ele era bastante severo com Jeremias no escritório-severo com Seth, também. Seth era o chefe da redacção. Jeremias era o gerente e ficava entre Seth e William. William insistia em examinar todos os originais e Seth tinha de os adaptar à política traçada por William, a cada acontecimento que se desenrolava no Mundo.

-Não precisamos de pensar - dissera Jeremias com o seu humor demasiado jovial. -É maravilhoso não ter de pensar, Candy. Isso poupa-nos muito tempo...

Seth não era tão alegre. Evitava falar acerca de William, e com Candace mostrava-se excessivamente formal. Teve de per­guntar a Jeremias o que havia com Seth.

-É um espírito independente - disse Jeremias com o seu imutável humorismo. -Não precisamos disso. Temos William.

Ninguém podia contrariar William. O fantástico êxito do seu jornal era a resposta final para qualquer discordância com as suas decisões. Em cinco anos, o único jornal que havia fundado em Nova York havia-se desdobrado em quatro, sendo os outros publicados em Chicago, S. Louis e S. Francisco. Com uma sábia combinação de fotografias, desenhos e textos, William inventara algo que se tornara indispensável a milhões de pessoas que nunca vira. Os seus jornais eram suficientemente pequenos para ser manuseados com facilidade no comboio subterrâneo e enquanto os homens faziam o lanche nos apinhados balcões dos drug-stores. Ele dera-lhes exactamente o que queriam: notícias comerciais e financeiras em breve espaço, com uma curta meia coluna de pre­dição e conselhos; notícias de dramas sensacionais, com escolhidas ilustrações, tendo os fotógrafos todo o empenho em só mostrar a acção concentrada; notícias em comprimidos, de texto cuida­dosa e simplesmente escrito, adequado a milhões de pessoas que liam com dificuldade e pensavam muito pouco, e que pediam contínuas diversões por causa de seu vazio interior. William era demasiado astuto para doutrinar. O que ele queria podia ser feito com a escolha das notícias a relatar e da maneira como as desenvolvia. A eliminação era o segredo do seu poder, e o resto eram os cabeçalhos. Só os cabeçalhos podiam indicar ao povo o que devia pensar.

Jeremias, Martin Rosvaine e Seth James encontravam-se às vezes para falar nos jornais e em William. Eles admiravam o seu talento, ao mesmo tempo que cada vez mais o temiam.

-Dentro de dez anos, William dirá ao Mundo o que deve pensar, e ninguém o saberá - dizia MM-iartin. -Naturalmente, a tia Rosamond adora-o simplesmente. Ela não lhe deixa devol­ver os seus cem mil dólares.

Tia Rosamond, logo que ouvira dizer que Roger Cameron tinha dado cem mil dólares a William, insistira em fazer o mesmo. William repusera o dinheiro de Roger, mas também era verdade que a tia Rosamond havia recusado qualquer pagamento.

-O interesse é a minha anuidade, William- - cacarejou tia Rosamond na sua rouca e velha voz. Estava quase cega, mas sempre insistia nas visitas de William, e este tratava-a quase com afecto. Havia alguma coisa que lhe agradava na rude, impiedosa e egoísta velha, que se alegrava com os seus triunfos e ria dos seus Jornais.

-Maravilhosa droga - chamava-lhes ela quando estavam a sós, e batia-lhe nas costas com o seu agudo cotovelo de velha.

Nos três jovens, contudo, o grandioso e crescente êxito de William começava a produzir efeito. Martin tinha rebates de consciência, irritado com a ganância da tia Rosamond, Seth ameaçava rebelar-se contra a interferência de William nos seus originais e Jeremias começara a beber. A longa indecisão a res­peito de Ruth, os meses em que eles eram meio noivos, os meses que ele sentia que não queria casar com ninguém, outros meses em que era Ruth que não queria, haviam-se tornado anos. Durante todo esse tempo, a imutável paciência da jovem, a sua inque­brantável doçura e fiel amor não se tinham interrompido. No fim Ruth acabara por vencer.

Um mês antes, Candace pensara que Jeremias havia abran­dado, tornando-se mais parecido com o jovem que ela sempre conhecera, um extravagante rapaz, de uma alegria que não lhe agradava, mas capaz de épocas de ponderada gravidade, horas em que podia conversar com ela, momentos nos quais trazia às vezes punhados de versos para serem apreciados. Havia anos que não fazia versos, mas agora talvez recomeçasse, e ela desejava que assim fosse, pois era bom para ele escrever versos. Alguma coisa nele se cristalizava e assim se tornava permanente.

Pensou compreender a mudança quando ele lhe disse que resolvera casar com Ruth. Afinal enamorara-se verdadeiramente de Ruth, pensava ela, embora Jeremias apresentasse como motivo o facto de Ruth ser o oposto de William.

-Mas tu gostavas de William na escola - observou Candace. -Eu dependia dele - disse Jeremias. -Não teria passado nos exames se não fosse ele. Tenho agora o mesmo sentimento. -Não tens necessidade de trabalhar - disse Candace. –Tu e Ruth poderiam viver muito bem em qualquer parte. O pai não se importaria.

Jeremias olhou-a perplexo. -Não sei porque não posso fazer isso - disse.

Só então ela começou realmente a pensar em Ruth. -Jere­mias, eu ainda não disse que estou satisfeita. Mas creio que estou. William gostará?

-Naturalmente que não - disse Jeremias. -Até mesmo Ruth pensa assim.

-Oh, porque não?

-Ele tem o instinto de renegar a todos, excepto a si próprio. Gosta de sentir que não tem carne e sangue herdados. Acaricia o mito de que nasceu sem pais... puro filho de Deus.

Candace sentiu-se chocada. --Bela coisa para dizer quando vou ter um filho.

-Oh! Esse será certamente outro filho de Deus - disse com impertinência Jeremias, que se deitara de costas na relva, o corpo mole, a voz preguiçosa, contemplando o céu por entre as folhagens. Candace não lhe respondera.

 

-William, queria dizer-te uma coisa.

William dobrou as cartas da China. -E então?

-Jeremias e Ruth estão noivos afinal - disse ela, sem mais preâmbulos. -Estou satisfeita. O namoro já se arrastava há anos... ele não se resolvia. -Ela voltou a cabeça para observar William e viu uma onda de sangue subir-lhe ao rosto.

-Quando foi isso? -perguntou ele.

-Há cerca de um mês.

-E durante todo esse tempo já sabias?

-Não inteiramente.

Ela aguardou a sua cólera, mas esta não desabou. A onda de sangue refluiu e ele ficou mais pálido do que nunca.

-Não achas que está muito bem assim? -perguntou ela. Ele ergueu-se, com as cartas na mão. -Não penso coisa alguma a esse respeito. Parece-me um assunto sem a mínima importância.

-Então não te importas que ela se case aqui? -Creio que não.

-Gostaria de preparar um belo casamento... logo, antes de que fique muito pesada. Eles não querem esperar.

-Como queiras - disse William. Hesitou um momento e depois continuou, quase abruptamente: -Estas cartas sugeriram-me o tema para um editorial, que gostaria de escrever para amanhã. Espero que não te importes se não aparecer para o jantar.

-Sentirei a tua falta - disse ela com um sorriso gracioso.

-Sinto muito - replicou ele, um tanto formalmente. No entanto, antes de sair, inclinou-se para ela e beijou-lhe os cabelos. Ela olhou-o enquanto ele se afastava e, vendo a sua cabeça incli­nada, as mãos cruzadas nas costas segurando as cartas, pensou subitamente que ele se parecia com um padre. Isso era, talvez, o que William deveria ter sido.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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